ENTREVISTA
Uma conversa com Gilles Fauconnier1
Carla Viana Coscarelli2
Universidade Federal de Minas Gerais
Carla: Você poderia me dizer o que é a Teoria dos Espaços Mentais?
Fauconnier: Grande parte do trabalho sobre espaços mentais trata do
que acontece nos bastidores da cognição. Em outras palavras, trata do
que acontece em nossas mentes, dos processos que não podemos ver
ou ouvir. Espaços mentais se referem ao que acontece por detrás das
cenas quando falamos ou pensamos; são construções mentais muito
complexas, até mesmo para as sentenças mais corriqueiras. São
pequenos conjuntos de memória de trabalho que construímos
enquanto pensamos e falamos. Nós conectamos esses espaços entre si
e também os relacionamos a conhecimentos mais estáveis. Muitas
evidências para essas atividades mentais implícitas e para as conexões
dos espaços mentais são fornecidas através de conhecimentos
lingüísticos e gramaticais.
Carla: O que exatamente é um espaço mental?
Fauconnier: É difícil definir um espaço mental abstratamente, sem o
uso de exemplos e sem um contexto mais completo. Até onde
podemos dizer, os espaços mentais são, provavelmente, ativações que
são estabelecidas no cérebro, na memória de trabalho. Provavelmente
nós os organizamos e os conectamos através de excitações sincrônicas
de conjuntos de neurônios. Mas isso são suposições, uma vez que
ninguém, de fato, pode ver os espaços mentais no cérebro. Portanto,
eles são definidos como um tipo de descrição de alto nível, baseada
1
Entrevista gravada em vídeo na University of California at San Diego em abril
de 2004. Transcrita e traduzida por Arabela Franco e Carla V. Coscarelli.
2
Agradeço o apoio da CAPES, processo BEX 0418/04-8.
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em generalizações e que nos permitem explicar ou formular hipóteses
sobre a linguagem, sobre a gramática ou sobre o pensamento.
Carla: Qual o seu exemplo favorito de espaços mentais?
Fauconnier: As piadas são meus exemplos favoritos. Não considero
o exemplo que darei aqui como simples ou elementar para explicar os
espaços mentais, pois ele envolve elementos contrafactuais e metáforas.
É uma piada sobre o presidente Bill Clinton, sobre como ele pôde ter
tido sua popularidade aumentada apesar de ter sido atacado pelos mais
variados tipos de inimigos. Todos pensavam que ele estaria em apuros,
mas, na realidade, o que aconteceu foi que ele estava ficando cada vez
mais popular. Então, naquele momento, as pessoas costumavam dizer
que “se Clinton fosse o Titanic, o iceberg é que teria afundado”.
Clinton foi então comparado ao Titanic; e o Titanic, quando era o
Clinton, era tão forte que, ao chocar-se com o iceberg, este é que
afundaria, contrariando assim as leis da física.
Para a compreensão dessa piada, temos de abrir um espaço mental
do iceberg e do Titanic, no qual nós sabemos o que é o Titanic: um
navio enorme que afundou. Temos de construir também um outro
espaço mental com o conhecimento que temos sobre o Clinton e sobre
todos os ataques que ele sofreu. A partir desses dois espaços mentais,
temos de construir um terceiro. Agora temos uma espécie de ClintonTitanic tão forte que é capaz de afundar um iceberg. Esse é, portanto,
um exemplo do que geralmente fazemos quando contamos uma piada
ou quando conversamos.
Carla: O que há de novo no livro The Way We Think, que você
escreveu com Mark Turner, em comparação com os seus outros
livros?
Fauconnier: Nós chamamos a atenção no livro The Way We Think para
uma operação cognitiva fundamental para os seres humanos: a
capacidade de agrupar diversos espaços mentais e, a partir desse
agrupamento, criar novos espaços mentais que possuem uma estrutura
emergente. Os seres humanos, em particular, parecem capazes do que
chamamos de “integrações de duplo escopo”, em que espaços mentais
conflitantes são introduzidos. A partir dessa integração de espaços
podem surgir novas estruturas muito criativas. Argumentamos
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indiretamente que essa capacidade de fazer mesclas duplas pode, de
fato, ser o que caracteriza as capacidades cognitivas de nossa espécie.
É ela que nos permite fazer coisas tais como arte, ferramentas, ciência
e linguagem, habilidades que outras espécies não parecem possuir.
Essas habilidades são relativamente recentes, mesmo na evolução
biológica de espécies semelhantes à do homem. Elas provavelmente
surgiram por volta de 50, 60 ou 70 mil anos atrás e parece que todas
surgiram ao mesmo tempo. Nós especulamos que isso possa estar
relacionado à capacidade de fazer integrações conceituais de formas
mirabolantes como, por exemplo, no nível das “integrações de escopo
duplo”. É isso que se difere nesse livro. Nos outros, as reflexões sobre
os espaços mentais não tinham, na verdade, realmente descoberto que,
além de estabelecer os espaços mentais, conectá-los e transferi-los,
projetando as estruturas de uns para outros, havia também esse outro
aspecto defendido no livro, segundo o qual se podem criar espaços
mentais à medida que se avança, e essa é uma atividade cognitiva muito
importante. Isso é a grande diferença.
O livro The Way We Think é o resultado de 6 ou 7 anos de trabalho
com Mark Turner e com outras pessoas que se interessaram pela teoria
da mesclagem dos espaços mentais. No ano em que o livro foi escrito,
nós percebemos algo da teoria de mesclagem que, até então, não
tínhamos notado. Vimos que as projeções entre os espaços mentais
usadas para criar redes são, na realidade, muito ricas e podem ser de
diferentes tipos. Descobrimos que elas parecem pertencer a um
conjunto de projeções de relações vitais e que são de certa forma muito
importantes para os seres humanos. Relações vitais incluem coisas do
tipo: causa e efeito, mudança, identidade, tempo, espaço, entre outras.
Existe aproximadamente uma dúzia de diferenças e semelhanças e há
em torno de 15 ou 16 relações vitais. Nossa grande descoberta é que
uma das funções das mesclagens e da criação dessas elaboradas redes
conceituais é possibilitar a compreensão de relações vitais. São
compressões muito sistemáticas, de forma que podemos comprimir o
que chamamos de espaço externo ou interno, ou podemos tomar
emprestadas compressões já existentes, com a finalidade de criarmos
novas mesclas. É o resultado dessas compressões que torna as coisas
mais acessíveis, mais inteligíveis, e mais fáceis de serem manipuladas
pelos seres humanos.
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O exemplo do Clinton e do Titanic é um bom exemplo de
compressão, porque o que estamos falando naquela história é, na
verdade, algo complexo e difuso. Há muitos atores, muitos políticos e
muitas intrigas envolvidas. O próprio Clinton teve muitas aventuras de
diversos tipos, por isso essa é uma história complexa, difusa e difícil
de entender. Da maneira como a história é contada, em termos da
possibilidade contrafactual de o Titanic afundar o iceberg, o que
acontece é que os eventos são comprimidos em uma história bem mais
simples, com a redução de muitos atores e de muitos objetos. A própria
história também foi comprimida – a relação causa-efeito foi reduzida
a um único evento numa escala humana no qual surgem o Titanic e
o iceberg, e um colide com outro causando, então, imediatamente, o
afundamento de um deles. Esse é o resultado das possibilidades de
compressão que deixamos passar desapercebido nos trabalhos
anteriores sobre espaços mentais e mesclagem.
Carla: Como a Teoria de Espaços Mentais lida com ou se encaixa
na idéia tradicional dos domínios de processamentos? Eu
poderia dizer que os Espaços Mentais são compatíveis com o
conexionismo ou qualquer outra visão sobre a compreensão?
Fauconnier: O nível de descrição que estamos tratando está sendo
expresso em termos de processamento em um nível relativamente
elevado, isto é, nós descrevemos o pensamento e a linguagem como
de fato estabelecendo esses espaços, encontrando conexões entre eles
e construindo novos espaços. Nesse sentido, podemos dizer que é um
modelo de processamento de noções cognitivas de níveis superiores.
Agora, quando se fala em processamento nas Ciências Cognitivas e
na Psicologia, normalmente refere-se a níveis mais inferiores de
processamento. Na realidade, uma das atuais ambições é explicar níveis
bem inferiores de processamento que estariam no nível neuronal. Os
psicólogos têm normalmente tratado dos níveis de processamento um
pouco mais elevados e querem saber, por exemplo, o que é que as
pessoas estão integrando em um dado momento, o que se passa a cada
milésimo de segundo. Contudo, não é isso que interessa à teoria dos
espaços mentais. Precisamos nos referir a esse tipo de questão e integrar
os insights sobre os espaços mentais e, para isso, precisamos de uma
teoria psicológica sobre como o sentido é processado, incluindo as
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conexões dos espaços mentais, etc. Portanto, essas coisas são bem
distintas, porque a abordagem da teoria dos espaços mentais não é
simbólica, não é sobre a manipulação de algum tipo de linguagem do
pensamento ou alguma coisa semelhante. Não é manipulação de
símbolos na mente como o sistema lógico faria. Em vez disso,
construímos espaços cognitivos elaborados que incluem muita
informação visual, informações imaginativas, e daí por diante.
Conseqüentemente, esse é um tipo de processo bem distinto. Nesse
sentido, o processamento certamente não corresponderia ao
processamento simbólico do tipo que decompõe símbolos.
A teoria dos espaços mentais é certamente compatível com as visões
conexionistas, mas neste momento podemos especular que o
processamento no cérebro é provavelmente muito mais complexo do
que propõe qualquer sistema conexionista que temos visto. Para os
espaços mentais em particular, precisamos ter conexões múltiplas entre
espaços mentais, e também precisamos ter estruturas emergentes
surgindo dessas múltiplas ligações. E isso não é algo que emergiria
naturalmente em abordagens conexionistas. Portanto, em qualquer
evento, os sistemas de processamento precisariam ser consideravelmente enriquecidos para lidar com o fenômeno dos espaços mentais
ou fenômenos que envolvem analogia. Há várias propostas de modelos
de analogia, e isso tem provado ser extremamente difícil – parece estar
além das capacidades dos atuais modelos de processamento. Há
também trabalhos tentando modelar coisas como mesclagens
conceituais, e isso tem sido ainda mais difícil.
Carla: O que você poderia me dizer sobre a relação entre Espaços
Mentais e Enunciação?
Fauconnier: Eu não tenho nada específico a dizer a respeito dessa
relação, exceto por um embasamento comum que é o de não ver a
linguagem como formas sintáticas estáticas que são logicamente
interpretadas em sistemas semânticos, e que ambas consideram
extremamente importante a dinâmica completa da situação comunicacional, como também o fato de que nas situações enunciativas nós nos
adaptamos à medida que o discurso se desdobra dinamicamente. Nesse
sentido, uma das coisas que podemos dizer é que os espaços mentais
incorporam as situações enunciativas do falante, do ouvinte, do
narrador e assim por diante.
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Outra coisa que é bem conhecida a princípio, e que também se
manifestou naturalmente no trabalho sobre espaços mentais, é que a
perspectiva e o ponto de vista são extremamente importantes para
entender a linguagem. Isso também é verdade em outras áreas da
semântica cognitiva como, por exemplo, no trabalho de Langacker
sobre gramática cognitiva, ou no trabalho de Talmy em semântica
cognitiva, em que há fortes componentes de perspectiva e ponto de
vista. Na teoria dos espaços mentais isso é incorporado – o que torna
possível a mudança de um espaço mental para um outro. Assim, um
deles é tomado como foco, e o outro como ponto de vista, e outro, por
exemplo, como uma base ou ponto de partida. Dessa forma, enquanto
você pensa ou fala, você está metaforicamente se movendo de um
espaço mental para um outro, e mudando de pontos de vista e de
perspectivas. Acredito que isso seria compatível e harmonioso com
várias teorias da enunciação, em oposição a outras teorias que só vêem
formas estáticas e interpretações lógicas. Também é compatível com
a idéia geral de que a linguagem em si mesma não nos diz muito a
respeito do significado. Isso nos dá pistas sobre como construir
significados quando nos encontramos em determinado contexto, em
determinadas situações, usando nossas imensas capacidades cognitivas,
mas também buscando muitas informações sobre o contexto e a
situação. E mais, utilizamos toda uma gama de âncoras materiais que
podemos captar das outras pessoas, falantes, ouvintes, objetos, etc. De
fato, a linguagem nos propicia construir esquemas de mapeamento e
as nossas habilidades de criar espaços mentais nos permitem construílos de uma determinada maneira.
Carla: Qual a diferença entre os espaços genéricos e frames? Que
tipo de coisa podemos esperar encontrar em um frame?
Fauconnier: Alguns de vocês provavelmente sabem mais do que
outros sobre a teoria da mesclagem conceitual. Uma das coisas que ela
tipicamente inclui quando construímos redes é que há partes em
comum do input que irá se mesclar. Portanto, há coisas em comum que
são tipicamente representadas na teoria por um espaço mental genérico
que pode, em si mesmo, ser manipulado em alguns casos.
O que isso quer dizer é que espaços genéricos contêm coisas que
são comuns ao input. No meu exemplo do Clinton, o espaço genérico
seria um exemplo bem esquemático porque ele tem a ver com algum
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tipo de colisão num sentido bem abstrato, que poderia ser concreto
no caso de dois objetos – a colisão do Titanic com o iceberg. Poderia
também ser social, como no caso de pessoas tentarem o impeachment
do presidente, e daí por diante. Contudo, nesse exemplo, o espaço
genérico é realmente muito abstrato. De fato, tão abstrato que nem
chega a ser um frame identificável. Mas em outros casos, o espaço
genérico pode até ser bem concreto, como no exemplo de uma corrida
de barcos, no qual a mesclagem é formada pelas jornadas de dois
barcos diferentes que se mesclam em uma única jornada, na qual os
barcos competem entre si. Nesse exemplo, o que há de comum a esses
dois eventos com relação ao espaço genérico é uma jornada que parte
de um ponto específico, no caso a cidade de São Francisco, para uma
outra cidade, Boston. Esse não é um frame geral. Esse é um caso
específico de uma viagem de barco. Portanto, estamos nos referindo
a alguma coisa que está entre um frame e eventos mais específicos. O
genérico não se relaciona tanto com frames em geral quanto se
relaciona com o input. O genérico é normalmente um pouco menos
específico que o input. Algumas vezes ele é muito menos específico,
já que carrega o que há de comum entre o input. Por isso é que ele é
menos específico. Em muitos exemplos, o genérico é apenas o frame
que você percebe, pois normalmente é o que acontece quando já existe
um frame comum para o input. Portanto, o genérico terá esse frame
em si mesmo.
Carla: Como os 3 Is – Identificação, Imaginação e Integração
funcionam?
Fauconnier: No capítulo introdutório do livro The Way We Think, nós
falamos sobre os 3 Is da mente. Em inglês, isso é um jogo de palavras,
porque a letra I realiza-se fonologicamente da mesma forma como a
palavra que significa olho: EYE /aI/. Com isso, /aI/ pode ser o olho com
o qual nós vemos, como também pode ser a representação das letras
iniciais de cada uma das palavras Identificação, Integração e Imaginação.
O nosso livro direciona para a idéia de que, de fato, atividades mentais
humanas muito complexas são realizadas nesses 3 Is.
Os 3 Is referem-se à Identificação no mesmo sentido em que a teoria
dos espaços mentais se referia desde o início. Nós temos que ser
capazes de conectar elementos entre os espaços mentais, ainda que
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esses elementos sejam completamente diferentes em termos de suas
propriedades. Mais uma vez, no meu exemplo do Clinton, nós temos
que ser capazes de conectar o Titanic e o Clinton. Temos de identificar
esses dois elementos, o indivíduo e o navio, mesmo não havendo
nenhuma analogia de qualquer natureza entre eles. Esse é um produto
da nossa atividade mental. Também é um produto da nossa Imaginação.
Para que tenhamos Clinton-Titanic afundando o iceberg, nós temos
que imaginar uma cena fantástica. Lembramos que a imaginação está
na raiz da maior parte das coisas que fazemos. Está na raiz do ato de
contar histórias, da ficção, da produção de filmes, do fato de termos
idéias, de nos perguntarmos o que vamos fazer com nossos amigos.
A imaginação está também na raíz dos grandes avanços científicos –
a teoria da Relatividade de Einstein é um grande exemplo.
A peça central dessa faculdade da imaginação dos homens é a
capacidade para a integração conceitual avançada, e as mesclagens
conceptuais de duplo escopo, em particular, são um dos motores da
imaginação. É uma das coisas que faz a imaginação humana tão
perceptível para nós, mas também, certamente, muito mais notável para
o resto do mundo, no sentido de que da nossa imaginação, para bem
ou para mal, surgem todos os tipos de coisas. O mundo é diferente
porque a partir das integrações que fazemos, acabamos por mudá-lo
em vários sentidos.
Carla: O que é inferência? Faz sentido falarmos sobre inferências,
considerando os espaços mentais e as mesclagens? Não seriam
todas as construções de significado essencialmente inferenciais?
E nesse raciocínio, faz sentindo falarmos em metáforas?
Fauconnier: Inferência é um termo da lógica que remete a Aristóteles
e ao fato de haver padrões de pensamento. Portanto, tomemos a
premissa “todos os homens são mortais” e, se “Sócrates é homem”, você
pode inferir que “ele é mortal”. Isso é inferência em termos lógicos. É
claro que nós fazemos muitas inferências sem que expliquemos, através
da lógica, cada passo delas. Nós fazemos muitas inferências simplesmente
porque nós temos padrões cognitivos muito complexos. Dessa forma,
nós sabemos coisas sobre os frames que podemos chamar de
inferências no sentido de que nós podemos inferi-las. Se, por exemplo,
alguém sai pela porta deste escritório, nós inferimos que agora essa
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pessoa está do lado de fora do escritório. Ficaríamos surpresos se nós
abríssemos a porta logo em seguida e essa pessoa tivesse desaparecido,
ou se fôssemos informados de que ela agora está na Austrália. Nós
inferimos que essa pessoa não está tão distante do escritório; e nós
fazemos milhares de inferências desse tipo. Nós podemos chamar esses
ricos sistemas de inferências de frames gerais do conhecimento, que são
tanto as coisas que acontecem dentro dos frames quanto a forma como
manipulamos esses frames.
Um componente importante desse sistema de inferências no
momento em que ele acontece é a habilidade de projetarmos
inferências que são válidas em um espaço mental em um outro espaço,
como acontece nas analogias em geral ou em espaços mesclados nos
quais você tem muitas inferências feitas a partir de determinado input.
Essas inferências são, por sua vez, projetadas nos espaços mesclados.
Mas, além disso, é por causa do fenômeno das estruturas emergentes
que você terá uma estrutura emergente com seu próprio conjunto de
propriedades. Isto é, surgirá uma estrutura com suas próprias propriedades
inferenciais, dentro desse novo espaço mesclado. Dessa forma, seremos
capazes de manipular essas estruturas emergentes nos espaços mesclados
de maneira produtiva.
Tomando mais uma vez o exemplo do Titanic, a estrutura que
emerge é a de que navios podem afundar icebergs. Sabemos que, de
acordo com as leis da física, isso é impossível, porque icebergs não
afundam, pois são mais leves que a água. Mas nos espaços mesclados
a estrutura emergente permite que o iceberg afunde. Portanto, sabemos
como manipular essa estrutura, mesmo sendo ela impossível. Agora, em
particular, sabemos como o iceberg afundou; sabemos que o Titanic
ainda está seguindo sua jornada, indo em direção ao seu destino, e é
ainda bem-sucedido.
Qual a relevância disso tudo? Bem, nós agora podemos projetar tudo
isso. Nessas inferências engraçadas que fomos capazes de manipular,
no espaço mesclado, o Titanic ainda está em seu curso, na direção
certa, de maneira esplêndida; e o pobre iceberg está agora no fundo
do oceano. Nós projetamos isso no espaço do qual estamos falando.
Em outras palavras, Clinton está se saindo muito bem: ainda é o
presidente, não sofreu o impeachment, e seus inimigos pediram
demissão e caíram. É por isso que o sistema inferencial é tão forte; é
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aí que a estrutura da imaginação é capaz de combinar com o sistema
inferencial. Assim, ao imaginar – ainda que sejam coisas fantásticas
como esse exemplo do iceberg – nós podemos utilizar sistemas de
inferências bem sólidos, a fim de projetarmos inferências de volta para
o que esperamos que seja respondido.
Metáforas? Essa é uma questão interessante. Não seria tudo metáfora?
Não seria tudo inferência? Não seria tudo mesclagem e daí por diante?
De algum modo sim, isso é verdade! Porém, não há nada de errado com
isso. Você também pode dizer “tudo é molécula!” Contudo, isso por si
só não explica o mundo. Dizer que tudo é molécula apenas nos abre
um vasto programa de pesquisa que pergunta: quais são elas? Como
elas se combinam? Que tipos de moléculas existem? Esses questionamentos aparecem principalmente na Química e na Biologia. Longe das
abordagens reducionistas que dizem que “tudo são moléculas,
explicamos tudo”, o fato de descobrir que tudo é molécula abre uma
incrível gama de possibilidades de pesquisas. Com o trabalho a respeito
das mesclagens, nós esperamos ter, pelo menos, começado algo similar,
no sentido de que, longe de dizer que tudo se reduz a mesclagens ou
a metáforas, dizemos o contrário: “veja a variedade de mesclagens que
podemos ter!”. Nós mostramos essa rica tipologia de redes de mesclagens;
nós também apresentamos um rico conjunto de restrições, a que
chamamos de princípios governantes e princípios constitutivos, para
essas determinadas moléculas de significado.
Carla: Você me contou que existem lacunas relacionadas com a
forma como lidamos com as Ciências Sociais. Você poderia
mencionar algumas dessas lacunas? Você me falou que quase
ninguém estuda as crianças e as mesclas que elas fazem...
Fauconnier: A ciência é em grande parte constituída de lacunas; da
mesma forma são as Ciências Sociais. Há muitas coisas esperando para
serem estudadas e descobertas. Quando nós falamos e estudamos sobre
aprendizagem, fazemos experimentos psicológicos em crianças,
gravamos dados sobre elas para ver o que é que aprendem, em qual
estágio, em que idade, e daí por diante. Isso é inevitável e não é uma
coisa ruim. É simplesmente um fato da ciência que você seja sempre
prisioneiro de uma determinada abordagem teórica. Portanto, se você
segue determinada linha teórica que enfatiza, por exemplo, a sintaxe
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formal, você vai estudar a maneira como aprendemos formas sintáticas.
Você vai estudar muito da Psicolingüística, que tem a ver com questões
do tipo: como as crianças aprendem transformações; como elas
aprendem a fazer construções gramaticais complexas. Se você mudar
para uma outra área como, por exemplo, a área do pensamento
conceitual, você logo terá idéias de como poderá descobrir, por
exemplo, quando as crianças aprendem a mentir. Quando de repente
o seu foco muda, quando você está interessado em mentiras, você está
interessado em como as crianças se projetam em outras pessoas, em
determinadas teorias de outras mentes, como as pessoas interpretam
o que a criança vai dizer, e daí por diante. Isso abre toda uma área de
experimentos em Psicologia.
Quando se percebe a construção de muitos espaços mentais e, em
particular, um grande número de mesclagens conceituais que
acontecem bem cedo, antes mesmo de a linguagem se manifestar, é
claro que se abre um outro campo muito vasto de estudo. Surgem
questões do tipo: como as crianças estão aprendendo essas coisas?
Quando isso se dá?
Parece inacreditável que essa área ainda não tinha recebido muita
atenção. Há mesclagens muito complexas que vemos nossas crianças
fazerem todo o tempo, por exemplo, ao brincarem “de faz de conta”,
ao montar a cavalo como cowboys, quando, na verdade, estão sentadas
na cadeira da cozinha, talvez com uma colher na mão. Esses são
comportamentos muito comuns das crianças, que nunca tiveram um
lugar central nos estudos psicológicos, por incrível que pareça. Uma
das razões foi que esse tipo de atividade foi tido pelos psicólogos como
sendo muito trivial se comparado com uma atividade mais formal como
a fala, o raciocínio lógico, o levantamento de premissas e conclusões.
De certa forma, viramos a mesa quando dissemos que o que as crianças
estão fazendo desde cedo, quando elas brincam de “faz de conta”, são
complexas mesclagens de duplo escopo. Isso por si só é muito mais
difícil do que provas lógicas, porém com uma diferença: a prova lógica
você faz explicitamente, de forma consciente, com as aplicações de
regras que foram dadas a você. É claro que no caso de brincar de “faz
de conta”, as crianças o fazem inconscientemente. Isso não faz com
que esse fato seja menos importante ou menos complexo. Isso abre
uma área que demanda por experimentos psicológicos que não foram
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ainda feitos por razões muito naturais: apenas porque as questões não
estavam lá para serem respondidas!
A Carla, que está me fazendo essas perguntas, nos mostrou aqui em
San Diego alguns ótimos exemplos de crianças com três anos de idade
fazendo construções de espaços mentais bem elaborados, que nós só
podemos notar porque, em primeiro lugar, nós temos o conceito de
construção de espaços mentais. Caso contrário, nós diríamos: “olha só,
a criança está confusa. A criança está inventando um jogo bobinho! Não
entende o que os adultos querem dizer!”.
Carla: Terminamos! Você gostaria de dizer mais alguma coisa?
Fauconnier: Eu adoraria dizer muito mais coisas. Mas você tem que
filmar! O que vocês estão vendo na tela é uma entrevista e o que eu
estou vendo aqui é uma câmera que está sobre a mesa deste escritório.
Em vez de ver as pessoas com quem eu estou falando, eu estou vendo
esta câmera! Não há um exemplo de mesclagem conceitual tão
poderoso quanto esta atividade na qual estamos envolvidos agora,
porque eu estou literalmente sentado na frente da câmera e, ainda
assim, reparem, eu estou conversando como se estivessem na minha
frente (e sabe-se lá quem são vocês!). Converso como se nós estivéssemos
interagindo. Quando pensamos sobre isso, percebemos que na verdade
essa é uma construção fantástica da mente. Desde o começo desta
entrevista, Carla e eu estamos manipulando espaços mentais
elaborados. Nós manipulamos o espaço mental que corresponde a uma
situação futura na qual ela vai mostrar esta fita para os colegas, alunos,
ou a quem quer que seja. Então, como se fosse mágica, o que estou
fazendo agora na frente desta pequena câmera vai ser percebido como
se eu estivesse realmente falando para as pessoas que estão assistindo
ao vídeo. Se pensarmos em fazer esse mesmo tipo de atividade com
chimpanzés, lagartos, ou outros animais, isso não pareceria tão óbvio
quanto nos parece.
A imaginação, como vocês podem notar, desempenha um papel
crucial nesta entrevista em particular. Acho que entrevista (Interview
em inglês) é o quarto “I” /aI/, (risos). A identificação também exerce
aqui um papel fundamental porque, ao olhar para a câmera, estou
identificando os ouvintes ou os espectadores que tenho e, é claro, não
faço idéia de quem sejam! Pelo que sei, a Carla está me pregando uma
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peça! Ela é uma espiã! Talvez as pessoas que irão assistir a este vídeo
não sejam, na verdade, as pessoas que imaginei (risos). Talvez, todo
o processo de identificação mais integração mais entrevista que eu
estou construindo não tenha nada a ver com o que vai acontecer no
futuro. Mas isso não tem importância, porque, em termos de construtos
psicológicos produzidos sob o impulso do momento, isso é o que
realmente está acontecendo na minha mente! Quem é que pode
imaginar o que está se passando na mente da Carla?!
Carla: Women, fire and dangerous things! Obrigada, Fauconnier!