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Mignonnes - uma reflexão

2021, Revista Humanitas

Em meio ao avanço do obscurantismo, uma obra cinematográfica é boicotada. No entanto, ela coloca em discussão questões cruciais como classe social e diversidade cultural – temas que merecem urgente discussão.

143 EDUCAÇÃO SUPERIOR ELA DEVIA SER UM DOS PILARES DA SOCIEDADE, MAS TEM SIDO TRATADA COMO MERCADORIA EXÍLIO FORÇADO ARTEMÍSIA MUITO ANTES DE FRIDA, A EUROPA TEVE UMA ARTISTA DE ESPÍRITO SELVAGEM E FEMINISTA EDIÇÃO 143 - PREÇO R$ 20,00 A P O P U L AÇ ÃO E M S I T U AÇ ÃO D E R U A S Ó C R E S C E , E A S S A Í DA S PA R A O F U T U R O N ÃO D E V E M D E S P R E Z A R A N AT U R E Z A DA V I DA H U M A N A ANO XV • 2021 SEPARAÇÃO, ISOLAMENTO, SOLIDÃO E TÉDIO FORAM NOSSO DESTINO NO ANO PANDÊMICO. QUE MUNDO DESEJAMOS CONSTRUIR QUANDO AS PORTAS SE REABRIREM? SOCIEDADE MIGNONNES, UMA REFLEXÃO Em meio ao avanço do obscurantismo, uma obra cinematográfica é boicotada. No entanto, ela coloca em discussão questões cruciais como classe social e diversidade cultural – temas que merecem urgente discussão POR SIDNEI DE OLIVEIRA E LENARA ABREU DE MATTOS 68 • humanitas película cinematográfica com roteiro e direção da francesa de pais senegaleses Maïmouna Doucouré apresenta um discurso que vai além da capacidade do diálogo que, provavelmente, estava disposto a alcançar. Muitos não estão preparados para este filme, assim como não estão dispostos a dialogar sobre o tema, pois a sociedade brasileira está doente e tem festejado líderes homofóbicos, racistas, misóginos, fascistas que ainda defendem ideias como “Menino veste azul, menina veste rosa”. Mignonnes apresenta inúmeras questões que devem ser abordadas, sendo a classe social, a diversidade cultural, assim como a troca de cultura e de países entre as famílias que vivem em um conjunto habitacional, pontos cruciais para o debate. A diretora trabalha logo de início a ausência do pai de Amy, algo marcante, vista sua felicidade em um primeiro momento por saber do regresso dele, mas a mudança é drástica após tomar conhecimento sobre seu segundo casamento, além de acompanhar o sofrimento de sua mãe, que, por questões culturais e religiosas, não se impõe a tal ação, sendo a personagem da tia a representação máxima dessa mesma posição cultural e religiosa. A © PIXELMATOR / ISTOCKPHOTO.COM Sociedade hipócrita e doentia A hipocrisia brasileira é extrema, pois esquecem que não muito distante, a saber, desde a metade da década de 1980, mas principalmente no início de 1990, havia programas em TV aberta e em horário nobre que utilizavam crianças entre 5 e 7 anos para realizar danças sensuais, com roupas extremamente sexualizadas. Mas é sabido que a memória do povo brasileiro, tal como sua hipocrisia, trabalha simultaneamente para defender os seus princípios moralizantes. Sobre a postura da sociedade diante da falta de liberdade de meninas, adolescentes e mulheres para escolherem suas roupas, Beauvoir expõe, no capítulo intitulado Infância, algo que podemos analisar juntamente com algumas tomadas do filme. As palavras de Beauvoir têm como base uma pesquisa realizada pelo médico e psicólogo Havelock Ellis. humanitas • 69 SOCIEDADE “Os meninos estão em melhor situação. Eles não sofrem como as mulheres (…) Minha mãe teria me preferido (…) Um menino tem um trabalho interessante (…) Um menino está mais ocupado com a escola (…) Eu teria o prazer de assustar as meninas (…) Eles são mais livres (…) Os jogos dos meninos são mais divertidos (…) Eles não são prejudicados pelas roupas”.1 Mesmo com algumas dessemelhanças, os pontos imprescindíveis na fala de Beauvoir em seu texto de 1949 mostram a atualidade da obra e suas problemáticas. O fato de Amy ser motivo de bullying psicológico e físico devido à sua roupa a faz mudar totalmente o seu estilo, aproximando-a assim de um ideário das mídias digitais. Outro momento importante que o filme retrata se faz na cena em que Amy tenta alisar o cabelo utilizando o ferro de passar roupa, mas ao queimar o próprio cabelo percebe que não alcançaria o resultado desejado. Ao reproduzir essa cena com a leveza da comicidade, o discurso por trás do ato é extremamente importante para compreender, em analogia, a necessidade da mulher negra de se integrar em uma sociedade racista, na qual há estereótipos que definem quem pode ser ou não amado na sociedade a partir de seu visual, não respeitando assim as diferenças. Em paralelo, o segundo casamento do pai de Amy é importante para instigar uma discussão cultural, pois apresenta o sofrimento de uma mulher submissa a uma cultura na qual está inserida. Amy, como toda criança, possui o seu estado de revolta e, por estar introjetando o sofrimento de sua mãe, precisa lidar com o próprio sofrimento. Ao observar o vestido que deveria ser utilizado no casamento, a reação é de espelhar a tristeza e melancolia de sua mãe, tal como sua rejeição. Para melhor compreensão, utilizo as palavras de Adichie no TED Ideas worth spreading, intitulada The danger of a single story ministrada no ano de 2009, quando diz: “Quando rejeitamos a única história, quando percebemos que nunca há uma única história sobre nenhum lugar, recuperamos uma espécie de paraíso”2. 70 • humanitas “O NEGRO SOFRE EM SEU CORPO DE MANEIRA DIFERENTE DO HOMEM BRANCO. ENTRE O HOMEM BRANCO E MIM, EXISTE UMA RELAÇÃO IRREMEDIÁVEL DE TRANSCENDÊNCIA” (FRANTZ FANON) Tradições A submissão da mulher aparece com face na religião e na cultura em diversos momentos, por exemplo, quando a tradição inerente da tia se manifesta na fala: “hoje vou ensiná-la a ser mulher, vamos cozinhar para o casamento de seu pai”. Para esse diálogo, trago o pensamento de Foucault sobre repressão vinculado a poder e sexualidade. A repressão foi, desde a época clássica, o modo fundamental de ligação entre poder, saber e sexualidade, só se pode liberar a um preço considerável: seria necessário nada menos que uma transgressão das leis, uma suspensão das interdições, uma irrupção da palavra, uma restituição do prazer ao real e toda uma nova economia dos mecanismos do poder, pois a menor eclosão de verdade é condicionada politicamente. Portanto, não se pode esperar tais efeitos de uma simples prática médica nem de um discurso teórico, por mais rigoroso que seja3. Se mesmo um adulto tem inúmeras dificuldades de adaptação, seja ela cultural, no trabalho ou em outros possíveis momentos de sua vida, a criança, ainda sem a capacidade reflexiva e crítica, quando vivencia uma mudança radical de cultura, sofre pela falta de formação de inteligência emocional. A ação de pais ignorarem a formação de seus filhos e filhas – por exemplo, por descaso ou excesso de horas de trabalho – é um caso típico que representa parte da sociedade. Três culturas Um dos pontos altos da beleza artística e musical se faz na utilização da composição Nisi Dominus. A ação de Amy é um ato de revolta, é um libertar-se, um protesto, que tem como pano de fundo o belíssimo Andande de Vivaldi que, em tradução livre, refere-se à herança do senhor – os filhos. A música tem ligação direta com a cena seguinte, quando a mãe de Amy não reage ao saber que ela havia se apropriado do dinheiro para fazer compras sem sua autorização. Nesse momento, a mãe percebe sua ausência enquanto mãe para com a filha, pois sua única preocupação era também o seu sofrimento – o segundo casamento de seu marido. O filme mostrou que a criança, assim como o adolescente, utiliza de suas forças para estar e permanecer em destaque, uma vez que é natural da idade. “A criança apenas imita o que ela vê, tentando alcançar algum resultado sem entender o significado. E, sim, é perigoso”4. Por mais que Amy navegue por três culturas, “sua família, França – cultura ocidental – e essa ficção hiper-real da mídia social”5, a tradição, por motivos de diferenças culturais, pode enaltecer a possibilidade de um diálogo que consiga romper com tradições que fundamentam uma cultura por séculos. A cena que remete a essa possibilidade se faz quando a tia, com apoio da mãe, chama um representante religioso, mas a fala deste religioso rompe com o que, provavelmente, seria a afirmação da tradição: “Sei o que está passando com o seu marido, sei que está difícil. Mas Deus nunca impôs fardo que uma mulher não pudesse carregar. Se ele é pesado demais, você tem o direito de se separar. Mas, atenção, não há diabo ou demônio aqui”. Considerações finais Mignonnes utilizou o concurso de dança como metáfora para apresentar esta arte como ato de sublimação para o sofrimento que o grupo de meninas percorreu, porém fez com que esta mesma arte fosse mal-entendida pelo público que, em seu olhar moralizante, enxergou apenas o que lhe convinha. Sua tia, seguidora fiel das tradições, que prende por livre vontade sua liberdade, repreende sua sobrinha com violência. Nesse momento a mãe vê sua filha, ainda menina, sendo julgada pela tradição que trouxe sofrimento a todo o núcleo familiar. Com seu vestido maravilhoso e de cabeça erguida, enfrenta a tradição por amor à filha. “Sabe que não é obrigada a ir”. Com essas palavras, quebra os grilhões que prenderam a liberdade de gerações de mulheres e suas tradições patriarcais. Nesse momento inicia, provavelmente, a canção mais bela de toda a película, Amanké Dionti, que em tradução livre significa algo próximo de “ela não é sua escrava”6. Por fim, Amy desce até a rua e brinca, pula corda com outras crianças e, a cada salto, alça voo para sua liberdade. N O TA S 1 BEAUVOIR, Das Andere Geschlecht. p. 376. 2 ADICHIE, The dangerof a single story. 3 FOUCAULT, História da sexualidade – I – Vontade de saber. p. 11. 4 DOUCOURÉ. Why I Made Cuties. 5 Idem. 6 CRUZ. Reseñas de Disco – Ablaye Cissoko & Volker Goetze – Amanké Dionti. REFERÊNCIAS ADICHIE, Chimamanda. The danger of a single story. In: TED Ideas worth spreading. Califórnia, 2009. Disponível em: <https://youtu.be/ D9Ihs241zeg>. Acesso em 05.12.2020. BEAUVOIR, Simone. Das Andere Geschlecht – Sitte und Sexus der Frau. Harmburg: Rowohlt Verlag GmbH, 1951. (Klassiker Des Modernen Denkes). CRUZ, Carlos Péres. Reseñas de Disco – AblayeCissoko & Volker Goetze – Amanké Dionti. Disponível em: <www.elclubdejazz.com/discos-int/249/>. Acesso em 05.12.2020. DOUCOURÉ, Maïmouna. Why I Made Cuties. In: Maïmouna Doucouré Interview – Netflix. 2020. Disponível em <https://youtu.be/Q8dsjAoazdY>. Acesso em 05.12.2020. FANON, Frantz. Peau noire, masques blancs. Paris: Éditions du Seuil, 1952. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade – I – A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. SIDNEI DE OLIVEIRA é músico e compositor. Licenciado em Música e Filosofia. Mestre (UNIFESP) e doutor (UNICAMP) em Filosofia com estágio de pesquisa do exterior pela Universidade de Leipzig - Alemanha (2014-15). É professor de Arte do Ensino Básico (SBC) e de pós-graduação em Filosofia (UNIFAI). Atualmente cursa seu segundo doutorado, agora em Música, pela UNESP. LENARA ABREU DE MATTOS é professora de Arte/Música da rede municipal de São Paulo. Possui Licenciatura em Música pela USP. Mestranda em Música (Prof-Artes) pelo programa de pós-graduação do IA/UNESP. humanitas • 71