POR UM FEMINISMO QUEER: BEATRIZ PRECIADO
E A PORNOGRAFIA COMO PRE-TEXTOS
Salomé Coelho
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Resumo Com a emergência de feminismos dissidentes, o sujeito político do feminismo hegemónico é colocado sob suspeita. Se, até então, para o feminismo hegemónico a
categoria de mulher era relativamente estável, incorporando e subentendendo um sujeito
político biologicamente mulher, ocidental, de classe média, branca e heterossexual (silenciando subjectividades outras), com as críticas introduzidas pelos feminismos dissidentes
esta categoria universal e naturalizada será alvo de profundos descentramentos ou des-territorializações. Tais des-territorializações (sejam discursivas, geográficas ou biopolíticas/no
próprio corpo) surgem, entre outros, de discursos críticos do pós-modernismo, pós-feminismos, feminismos negros (Black Feminism), pós-coloniais e de teóricos gays e teóricas lésbicas, trabalhadoras/es sexuais ou actrizes porno que vêm iluminar – com categorias como
raça, etnia, orientação sexual, heteronormatividade – a complexidade e multiplicidade de
opressões. Tendo como pretexto a(s) teoria(s) da sexualidade de Beatriz Preciado (2002)
lançada(s) no Manifiesto contra-sexuale recorrendo às discussões sobre pornografia nos
movimentos feministas, este artigo pretende ser um pré-texto da confrontação reflexiva
reclamada, aos feminismos, pelos desafios colocados pelas abordagens queer
Palavras-chave tecnologias (hetero)sexuais, feminismos, abordagens queer, contra-sexualidade, (pós)pornografia.
Abstract
Towards a queer feminism: Beatriz Preciado and pornography as pre-texts
With the emergency of dissident feminisms, the political subject of the hegemonic
feminism is placed under suspicion. If, until then, the category of woman was relatively
stable to the hegemonic feminism, incorporating and assuming a political biological
woman subject, from the west, middle-class, white and heterosexual (silencing other subjectivities), with the criticism introduced by the dissident feminisms, this universal and
naturalised category will be the target of deep decentralisations or de-territorialisations.
Such de-territorialisations (discursive, geographical or bio-political/in own body) appear,
among others, from critical speeches from post-modernism, post-feminism, black feminisms, post-colonial, gay and lesbian theoreticians, sexual workers or porno actresses that
bring to light with categories such as race, ethnic group, sexual orientation, heteronormativity – the complexity and multiplicity of different types of oppression. Assuming the
sexuality theory(ies) of Beatriz Preciado (2002) published in the Manifiesto Contra-Sexual
and using the issues about pornography in the feminist movements, this article aims to be
a pre-text of the reclaimed reflexive confrontation, to the feminisms, by the challenges
placed by queer approaches.
Keywords (hetero)sexual technologies, feminisms, queer studies, counter-sexuality,
(post)pornography.
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Résumé
Pour un féminisme queer: Beatriz Preciado et la pornographie comme pré-textes
Avec l’urgence des féminismes dissidents, le sujet politique du féminisme hégémonique se plaçait sous suspecte. Si, pour le féminisme hégémonique, la catégorie de femme
avait une certaine stabilité, en incorporant et sous-entendant un sujet politique biologiquement féminin, occidental, de classe moyen, blanc et hétérosexuel (passant sous silences des
subjectivités autres), des critiques produites par des féminismes dissidentes décentrent et
déterritorialisent profondément cette catégorie universel. Telles déterritorialisations (soient
elles discursives, géographiques ou biopolitiques/dans le propre corps) nait, entre outres,
des discours critiques du postmodernisme, des post-féminismes, des féminismes noires,
des discours postcoloniales et des théoriques/théoriciennes gays ou lesbiennes, des travailleurs sexuelles ou des actrices porno, de tous ceux qui illuminent avec des catégories
comme race, ethnie, orientation sexuel, hétéronormativité – la complexité et multiplicité
des oppressions. Ayant comme prétexte les théories de la Sexualité de Beatriz Preciado
(2002) publiées dans le Manifiesto contra-sexual et recourant à des disputes sur la pornographie au coeur des mouvements féministes, ce texte veut s’affirmer comme un pré-texte de
dispute réflexive réclamée aux féminismes, par les défis lancés par les positions queer.
Mots-clés technologies (hétéro)sexuelles, féminismes, théories queer, contre-sexualité, (post)pornographie.
Pornografia: de objecto de censura a espaço de emancipação
Na década de 1980, nos Estados Unidos, a pornografia1 era campo de aceso
debate entre feministas, tendo as discussões ficado cunhadas como «guerras
feministas do sexo» (Preciado, 2007). Catharine Mackinnon e Andrea Dworkin,
figuras proeminentes do chamado feminismo «anti-sexo» ou «pró-censura»,
vêem a pornografia como modelo explicativo e multiplicador da opressão política e sexual das mulheres. Para estas feministas, e para o movimento do qual
eram porta-vozes, a pornografia era uma forma de promoção da violência e da
dominação política e sexual sobre as mulheres. Tal violência derivaria da objectificação das mulheres e da sua redução, de acordo com Lynne Segal (1992: 2), à
passividade e à condição «de corpos – ou pedaços de corpos – eternamente disponíveis para servir os homens»2. Assim, a pornografia objectificaria as mulheres
e tudo o que as objectifica seria considerado pornografia.
De acordo com Dworkin (1981: 49), os homens veriam, invariavelmente, as
mulheres como objectos, independentemente da sua orientação sexual, filosofia
política, nacionalidade ou classe. Esta visão das mulheres como objectos tratar-se-ia de uma das múltiplas formas de exercício soberano do poder masculino; de
1
2
Do grego pórne, prostituta e grafé, representação.
As citações presentes no texto foram traduzidas por mim, a partir do inglês e do castelhano.
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um poder que «alguns asseguram que (…) sobrevive à morte física» (idem: 13).
Nesta compreensão do masculino, Dworkin denota uma visão totalizadora e
totalizante dos homens, apagando as suas diferenças e criando uma identidade
masculina única, fixa e essencialista. Simultaneamente, parece atribuir aos
homens um poder sobrenatural, transcendental3 que, para os propósitos feministas de «libertação das mulheres – objecto», me parece especialmente contraditório, uma vez que mais não faz do que reificar e subentender a inevitabilidade e
eterna dominação masculina. Para além da visão da identidade masculina como
única e invariável, também a feminina é homogeneizada. Nesta concepção da
pornografia como violência, as mulheres teriam um papel único: o de vítimas,
sem voz, sem acção4.
Ao denunciar esta passividade, Dworkin não mais faz que reforçá-la. Por
um lado, parece indicar que as mulheres não são sujeitos (apresenta-as como
meros receptáculos de uma vontade masculina), por outro lado, a própria autora
não «lhes dá», uma vez que seja, voz. Em nenhuma parte do seu tratado antipornografia – Men possessing women (1981) – as mulheres têm voz. A única que se
ouve é a de Dworkin, num tom abafador de vozes outras.
Este movimento feminista «anti-sexo» concebe a pornografia não apenas
como representação da submissão feminina aos desejos masculinos, mas sendo,
ela própria, construtora dessa realidade, como afirma MacKinnon (apud Butler,
2004: 113):
[…] Mais do que representar uma mensagem da realidade, a pornografia apresenta-se como sendo a realidade […]. A pornografia, através da sua produção e uso,
transforma o mundo num espaço pornográfico, […] construindo a realidade social
do que é uma mulher […].
Sendo construtora da submissão feminina, a única estratégia possível e viável para fazer face à pornografia, segundo os movimentos «anti-sexo», é a sua
censura e abolição. E é neste sentido que foram (e vão) as reivindicações abolicionistas da pornografia e do trabalho sexual em geral.
De acordo com Preciado (2007), Ellen Willis será, em 1981, a primeira a criticar este discurso abolicionista, argumentando que reivindicar a censura e a
actuação do estado «sobre» a pornografia é conferir e perpetuar o poder que
3
4
Tal é o poder masculino que até à morte sobrevive.
Esta cristalização de identidades e conceitos de Dworkin não é apenas visível nas suas afirmações sobre homens, masculinidade e mulheres, feminilidade. Ao relembrar a origem etimológica da palavra «pornografia» e ao afirmar que «o significado da palavra não mudou», Dworkin (1981: 200) parece querer afirmar que os significados são estáticos e alheios ao
desenvolvimento de outros significados e discursos, e parece igualmente querer esquecer-se
que um significado vale em/na relação com significados outros – por que não, então, discorrer
também sobre a evolução e os vários significados do termo «prostituta» (não esquecer, por
exemplo, que prostituta já significou mulheres adúlteras, pecadoras, etc.)?
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aquele exerce sobre as representações da sexualidade. Com Willis inaugura-se
um feminismo «pró-sexo» (expressão que a própria funda) em que o corpo, a
sexualidade e a pornografia são entendidos, de acordo com Kipnis (apud Attwood, 2004: 9), como «um reino de transgressão às normas dominantes dos corpos, sexualidades, e do desejo em si». Os corpos, sexualidades e pornografia deixam, assim, de ser objecto de censura e regulação para passarem a ser vistos,
neste movimento, como espaços que possibilitam, às mulheres e às minorias
sexuais, o empoderamento económico e político.
Pós-pornografia: a contra-sexualidade
De-preciado ou a-preciado: Beatriz e o manifesto contra-sexual
Beatriz Preciado, apropriando-se, segundo a própria, de conceitos de teóricos e teóricas como Michel Foucault, Monique Wittig, Teresa De Lauretis, Antonio Negri, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Donna Haraway, Halberstam ou Judith
Butler, assim como da desconstrução Derridiana, vai propor, no seu Manifiesto
contra-sexual, um vulcânico romper do hímen epistemológico que tem marcado
as recentes reflexões sobre a política da sexualidade e do género, não só no feminismo como nas teorias do corpo e da performatividade e, consequentemente, na
visão da pornografia.
Com um «humor corrosivo» (como diz Bourcier no prefácio da obra), Preciado
denuncia, no Manifiesto contra-sexual, as tecnologias sexuais e sociais que criam a
diferenciação sexual e a naturalizam, bem como apresenta práticas contra-sexuais
(descritas e ilustradas) que permitem uma nova cultura do sexo/uma resignificação das experiências sexuais5. A proclamação da equivalência de todos os corpos-sujeitos que se comprometem a seguir o contrato contra-sexual, bem como a procura de desconstrução da pretensa «Natureza» (que é usada para legitimar a sujeição de uns corpos a outros) constituem as grandes propostas da nova sociedade
contra-sexual6, em que o dildo assume um papel de destaque.
No princípio era o dildo
Butler (2007: 266), na senda da sua teoria da performatividade, afirma que
«a essência ou a identidade […] são invenções fabricadas e preservadas mediante
signos corpóreos e outros meios discursivos», por via da regulação pública e
5
6
Seguindo a proposta de Teresa de Lauretis (apud Preciado: 2008) de o feminismo ter como possível campo de trabalho a análise das diferentes «tecnologias de género» que operam socialmente produzindo sujeitos de enunciação e acção.
Os princípios caracterizadores orientadores desta sociedade serão abordados adiante.
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social e com vista a manter a ordem (hetero)sexual; também Preciado (2002: 18)
considera que as diferenças sexuais são performatividades normativas inscritas
nos corpos como verdades biológicas. No entanto, Preciado vai reclamar a materialidade do «género» que Butler teria ignorado, isto é, convoca as formas de
incorporação e de corporeidade específicas que caracterizam distintas inscrições
performativas da identidade. Assim, e de acordo com Preciado (idem: 25), o
«género» não é apenas discursivo e linguístico, mas sobretudo protésico, «puramente construído e ao mesmo tempo internamente orgânico»7. Na sequência
desta visão do género como prótese, Preciado propõe que pensemos o género
como um dildo, como uma prótese que ultrapassa a mera imitação, criando e
reconfigurando o que pretende complementar.
O dildo é, para Preciado, não uma mera reposição de um ente ausente,
nem uma simples reprodução mimética do órgão que pretende substituir, mas
sim um mote para a modificação e o desenvolvimento de um órgão vivo – tal
como o telefone que, como prótese do ouvido, apura a possibilidade de comunicação com corpos distantes. Para Preciado, o dildo não é apenas um objecto
mas uma operação de deslocalização/des-territorialização do suposto centro
orgânico de produção sexual (de desejo, prazer) para um lugar externo ao
corpo. Esta operação de corte e trasladação que o dildo representa inaugura a
deslocação do significante que, por seu turno, inicia o processo de destruição
da ordem heterocêntrica. O dildo não é, então, uma «falsa imitação» do pénis-falo, antes deixa antever como se constrói o pénis-falo como significante sexual
autêntico. Esta reconfiguração dos limites erógenos que o dildo vem introduzir
coloca em questão a ideia de que os limites da carne coincidem com os limites
do corpo (idem: 71). Uma vez que a prótese não pode ser estabilizada, definida
como orgânica ou mecânica ou como corpo ou máquina, vai pertencer por um
tempo ao corpo vivo, mas resiste à incorporação definitiva. Este estatuto borderline da prótese expressa a impossibilidade de traçar limites nítidos entre o
«natural» e o «artificial», entre o «corpo» e a «máquina». Como no mito do
ciborgue, de Donna Haraway (in Macedo, 2002: 222-225), os corpos tornam-se
num «organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, simultaneamente uma criatura com realidade social e uma criatura de ficção» em que a
fronteira que separa a «ficção da realidade social é uma ilusão de óptica» e a
«natureza e a cultura são reelaboradas; uma já não pode ser alvo de apropriação e incorporação pela outra».
Como objecto móvel que é possível «deslocar», desprender e separar do
corpo, ou como algo cujo uso é reversível, o dildo ameaça constantemente as
oposições órgão natural/máquina, dentro/fora, passivo/activo, penetrar/cagar,
oferecer/tomar (Preciado, 2002: 70).
7
Por protésico, Preciado entende, na linha do conceito de suplemento/prótese, de Derrida, o acrescento» que cria aquilo que supostamente apenas pretende complementar (veja-se Derrida, 1967).
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Confrontada com este pequeno objecto, a totalidade do sistema heterossexual de papéis de «género» perde sentido, já que o dildo não é apenas uma
reprodução mimética do pénis que, utilizado, entra na ordem heterossexual, mas
uma conversão de qualquer espaço como centro; tudo é dildo e, como tal, tudo se
torna orifício (idem: 69). Assim, a tecnologia (hetero)sexual que destaca determinadas partes do corpo (sexuais-reprodutoras) para as naturalizar e as apresentar
como exclusivos significantes sexuais e como centros erógenos (em detrimento
de qualquer outra parte do corpo) é ameaçada. O corpo já não mais respeita a
biopolítica heterossexual sendo reconfigurado, tal como dita o artigo 11 dos princípios da sexualidade contra-sexual: «a sociedade contra-sexual estabelecerá os
princípios de uma arquitectura contra-sexual», em que novos espaços contra-sexuais são criados e a fronteira entre o público e o privado é desconstruída
(Preciado, idem: 35). Indo um pouco mais além na leitura de Preciado, aquilo que
a sociedade contra-sexual parece sugerir é a desconstrução do público e privado
dentro do próprio privado, uma vez que, nesta «esfera», partes do corpo são
mais privatizadas (menos públicas) que outras, como é exemplo o ânus.
As tecnologias (hetero)sexuais
No Manifiesto contra-sexual, Preciado (idem: 99-104) recorre, ainda, às cirurgias de «mudança de sexo» de pessoas transexuais para reflectir sobre as dinâmicas da tecnologia (hetero)sexual. A faloplastia, uma das cirurgias realizadas a
pessoas transexuais, consiste, segundo os discursos médicos e legais contemporâneos, na reconstrução do pénis e necessita de, pelo menos, quatro intervenções
cirúrgicas complexas. Já a vaginoplastia não é referenciada como construção dos
órgãos genitais femininos, mas como a cirurgia que permite transformar («invaginar») um pénis numa vagina. Ora, se este processo se executa como uma «invaginação» do pénis, tal significa que, no discurso médico heterossexual, a masculinidade contém em si mesma a possibilidade da feminilidade: não é necessário
construir uma vagina, bastando encontrar a vagina que está no interior do pénis.
Assim se reforça a visão médica do século XVIII de que a «biologia» feminina é o
masculino que não se desenvolveu biologicamente.
Outro cenário que, para Preciado (idem: 104-117), torna visível o labor da
tecnologia heterossexual é o processo de «atribuição de sexo» a pessoas «intersexuais», os tratamentos hormonais e as cirurgias «reconstrutivas» inerentes. Aí é
possível observar que o ideal científico consiste em evitar qualquer tipo de ambiguidade, procurando que a atribuição de sexo coincida com o nascimento. A
ambiguidade seria muito perigosa e ameaçadora da ordem sexual hegemónica e,
portanto, há que catalogar os corpos e órgãos intersexuais como «subdesenvolvidos», «mal-formados», «inacabados», como «excepções patológicas», etc., mas
nunca como verdadeiros órgãos. Esta exclusão da ordem heterossexual (a sua
conotação como desvio) só a vem reforçar e estabilizar enquanto isso mesmo:
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norma (l). A atribuição de sexo aos/às recém-nascidos/as intersexuais depende, no
modelo criado por John Money (e que serve ainda hoje de base a este processo),
exclusivamente dos órgãos sexuais (as zonas não sexuais são consideradas periféricas). A partir da «reconstrução» do nariz ou da boca, denuncia Preciado, é impossível, nesta lógica, reconstruir a totalidade do corpo como sexuado, ao passo que
através da reconstrução dos «órgãos genitais» já o é. Se um/a recém-nascido/a
intersexual se considera geneticamente feminino (XX) há que accionar uma série
de tratamentos e cirurgias, uma das quais a formação de um canal vaginal que
deve estar sobretudo preparado para receber um pénis. Esta visão da vagina
como orifício que alberga um pénis desnuda os sistemas de pensamento heterossexuais em que, tal como afirma Atkinson (apud Wittig, 1992), «o coito é visto
como instituição» e ilumina a afirmação de Wittig quando diz que as lésbicas não
têm vagina. Mas nem sempre a análise dos cromossomas é determinante para a
atribuição de sexo. Mesmo que, depois de uma análise dos cromossomas, se
identifique geneticamente o recém-nascido intersexual como masculino, é atribuído o sexo feminino se o corpo for susceptível de gravidez, revela Preciado
(idem: 116). Esta atribuição de sexo feminino com base na capacidade de parir
vem reforçar a lógica heterossexual em que a sexualidade/diferença sexual se
define pela maternidade. Ainda que um bebé intersexuado possa ser cromossomaticamente feminino, diz-nos Preciado (idem: 113), se apresentar uma «protuberância de tamanho apropriado» será definido como masculino, por se acreditar
que um pénis é suficiente para provocar uma identidade masculina. Por esta
razão, é possível afirmar que nos discursos médicos e legais contemporâneos, o
pénis adquire um carácter quase-transcendental, situando-se para lá dos artifícios, como se fosse a única «Natureza». E é precisamente aqui, afirma Preciado
(idem: 117), que o dildo irrompe como um «espectro vivo».
Para Preciado, também a pornografia constitui uma tecnologia sexual central8 «na biopolítica global de produção e normalização do corpo», sexualidade e
prazer, por excluir todas as expressões, práticas e corpos que não se encaixam
nessa «normalidade». No entanto – e apesar de considerar a pornografia tradicional como tecnologia sexual –, Preciado não propõe, ao contrário das feministas «anti-sexo», que a estratégia utilizada seja a censura. Preciado (2007) afirma,
antes, que «o melhor antídoto contra a pornografia dominante» é «a produção de
representações alternativas, criadas a partir de olhares divergentes». Nas representações «pornográficas» alternativas têm especial destaque as partes do corpo
que foram privatizadas/silenciadas em prol de uma normatividade heterossexual, bem como as práticas sexuais catalogadas como «monstruosas» (como o
Sado-masoquismo). Assim, a pornografia aparece como uma plataforma política
8
Preciado vai basear-se, entre outros, em conceitos de Foucault (1994) e Wittig (1992), nomeadamente quando esta diz que o discurso pornográfico é uma das estratégias de violência que
humilha e avilta, tendo como função ser um aviso para os corpos «anormais»: chamar o medo
para que se mantenham alinhados com a norma sexual hegemónica.
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de acção e intervenção pública e resistência aos códigos normativos da pornografia tradicional. À reapropriação deste espaço e a sua «transformação» em plataforma de contra-poder/sexualidade Preciado (2004) vai designar de políticas
das multitudes queer.
O corpo e o prazer como plataformas políticas de resistência
– as Multitudes Queer
As multitudes queer, isto é, os corpos, partes dos corpos e os desejos considerados abjectos9, «os órgãos que não funcionam para a norma heterossexual, os
defeitos, o que está fora do padrão» (Borges e Bensusan, 2008) e que é descartado
e invisibilizado pela norma sexual – as lésbicas, os maricas, os negros, as pessoas
transexuais, as putas, as travecas, as drag-kings, as mulheres barbudas, o sado-masoquismo, a bissexualidade – outrora representados como objectos monstruosos são agora, nesta política, sujeitos de enunciação e «lugares de resistência ao
ponto de vista “universal”, à história branca, colonial e hetero do “humano”»
(Preciado, 2004). Esta resistência pode assumir, de acordo com Preciado (2002: 29),
várias estratégias, entre as quais a des-identificação, tal como nos mostram os
artigos 1 e 2 dos princípios da sociedade contra-sexual:
Artigo 1
A sociedade contra-sexual ordena que se cague nas denominações «masculino» e
«feminino», correspondentes às categorias biológicas (…) do bilhete de identidade,
assim como de todos os formulários administrativos e legais de carácter estatal (…).
Artigo 2
Para evitar a reapropriação dos corpos como feminino ou masculino (…), cada novo
corpo (…) terá um novo nome que escape às marcas de género (…).
Esta des-identificação passa, então, pela negação e não identificação com
categorias naturalizadas (homem, mulher, transsexual, homossexual, lésbica,
etc.), caminhando, progressivamente, para a des-ontologização dos sujeitos e das
políticas identitárias (uma outra estratégia/ambição da sociedade contra-sexual e
da política das multitudes queer). Apesar da sua relevância estratégica, a des-identificação não será, para Preciado (2004), suficiente para o desmantelar e reconverter as tecnologias da sexualidade e dos corpos. São necessárias, igualmente, identificações estratégicas.
9
Por abjecto entenda-se os corpos «expulsos» da norma que servem, justamente, para definir
essa norma. Tal como «abjecto», em Kristeva (apud Butler, 2007: 261): nomeia «o que foi expulso
do corpo, evacuado como excremento, literalmente convertido em «Outro». […] A construção
do «não eu» como o abjecto determina os limites do corpo que também são os primeiros contornos do sujeito».
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O que Preciado propõe com estas identificações estratégias baseia-se na re-significação dos textos10 em que modalidades de poder são voltadas contra si
próprias a fim de produzir estruturas de poder alternativas, tal como afirma
Butler (2004: 117), «se o texto actua uma vez, poderá actuar novamente, e é possível que dessa vez o faça contra o acto precedente, sendo que esta re-significação
abre possibilidades a uma leitura alternativa da performatividade e da política».
Para minar e destruir a ordem (hetero)sexual, esta re-significação deve ser
multiplicada, sendo que tal proliferação não implica uma estabilização dos significados alternativos e subversivos nem a substituição de um significado normativo por outro, mas sim a proliferação de corpos, desejos, prazeres e formas de
intimidade (Seidman, 1994: 116) «que recusam replicar-se fielmente uns aos
outros» (Salih & Butler, 2004: 198).
A contra-sexualidade implica, então, estas re-significações mas que não se
podem ficar apenas pelo domínio dos discursos, até porque, como vimos, Preciado reclama a materialidade dos corpos. Assim, Preciado vai apresentar, no
Manifiesto contra-sexual11, sugestões práticas (que não excluem, obviamente, os
discursos) de contra-sexualidade que vão desde masturbar um braço à autopenetração anal. No artigo 4 dos princípios que regem a sociedade contra-sexual,
Preciado (2002: 30-31) propõe ainda:
(…) a universalização das práticas estigmatizadas como abjectas no quadro heterocêntrico e (…) encontrar e propor novas formas de sensibilidade e afecto (…).
Resexualizar o ânus (…) como centro contra-sexual universal [«Pelo ânus, o sistema
tradicional da representação sexo/género “caga-se”» (Preciado, 2002: 27)].
Difundir, distribuir e colocar em circulação práticas subversivas de re-citação dos
códigos, das categorias de masculinidade e feminilidade naturalizadas no quadro do
sistema heterocêntrico. A centralidade do pénis, como eixo do poder no quadro do
sistema heterocêntrico, requer um imenso de trabalho de re-significação e desconstrução. Como tal, (…) o dildo e todas as suas variações sintácticas – tais como dedos,
línguas, vibradores, pepinos, cenouras, braços, pernas, o corpo inteiro, etc. –, assim
como as suas variações semânticas – tais como (…) pistolas, (…) etc. – serão utilizadas por todos os corpos ou sujeitos falantes (…).
Parodiar e simular de forma sistemática os efeitos habitualmente associados ao
orgasmo, para assim subverter e transformar uma reacção natural ideologicamente
construída (…).
Este conceito de multitudes queer, as estratégias políticas nele intrincados,
bem como as práticas contra-sexuais e as novas formas de prazer-saber reconfiguram profundamente a forma dos feminismos encararem, produzirem e senti10
11
Um exemplo desta re-significação seria o termo »queer» que, em tempos utilizado como insulto,
«foi reclamado e territorializado positivamente» (Salih e Butler , 2004: 142).
Ver páginas 41-54 do Manifiesto contra-sexual (Preciado, 2002).
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rem a pornografia que, sendo assim subvertida, supera o próprio binarismo antipornografia/pró-pornografia. Não se trata, então, de regular e censurar a pornografia, uma vez que esta é espaço de subversão, nem de fazer a apologia da pornografia tradicional. Trata-se, antes, de reapropriar o dispositivo pornográfico,
transformando-o num espaço de subversão, contra-biopolítica e reconfiguração
das identidades sexuais e de género, através da representação de práticas
sexuais, prazeres, afectos e «identidades subalternas» (transgender12) e em que a
sexualidade é difusa, não se reduzindo, a geografia corporal, aos genitais (transformados, através da insistente filmagem de penetração e sexo oral, em centros
de prazer exclusivos). Assim, as representações pornográficas alternativas transformam-se, sobretudo, em exercícios de contra-biopolítica, como é exemplo, para
Preciado (2002: 44-45), a performance «Ânus Solar» de Ron Athey, em que o
artista, depois de tatuar, em torno do seu ânus, um sol negro, injecta um líquido
que deforma o seu pénis e testículos13. Estas representações das «subalternidades», re-significam a pornografia dando lugar à pós-pornografia.
Um feminismo queer?
A reconfiguração, re-significação e re-citação das sexualidades, a des-ontologização dos sujeitos, as multitudes queer colocam em questão o feminismo, uma
vez que abalam o seu sujeito político e a validade da categoria «género». No
entanto, e como afirma Preciado, as multitudes queer não querem actuar sem o
feminismo nem são pós-feministas, por não se fazerem fora da crítica ao sistema
de género. As multitudes queer são, antes, resultado da confrontação reflexiva do
próprio feminismo «com as diferenças que este silenciava para favorecer um
sujeito político «mulher» hegemónico e heterocentrado», e a sua consequente
renovação.
Os projectos das multitudes queer confrontam os feminismos com a possibilidade destes reforçarem as lógicas opressivas, quando o propósito seria combatê-las. Ao basearem as suas políticas em identidades que foram naturalizadas pelas
tecnologias sexuais, os feminismos acabam por ser cúmplices dessas mesmas tecnologias. É, assim, exigido aos feminismos que repensem os seus discursos e práticas discursivas, a fim de não sublinharem, mais de que questionarem, os mecanismos de exclusão.
O desafio que as abordagens queer, onde Preciado se inclui, colocam aos
feminismos é o de abandonar a identidade natural (homem/mulher) ou definições baseadas nas práticas (heterossexuais/homossexuais) para passar a basear-se e a actuar com «uma multiplicidade de corpos que se erguem contra os regí12
13
Ver, por exemplo, as representações artísticas d@ «terrorista de género» Del LaGrace Volcano,
em <http://www.sexmutant.com/del.htm> [consultado em 28 de Abril de 2009].
Sobre Ron Athey ver <http://www.ronathey.com> [consultado em 28 de Abril de 2009].
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menes que os constroem como “normais” ou “anormais”» (2004). As abordagens
queer incitam os feminismos a reclamar a música punk – essa música muitas vezes
descrita como «barulho e berros», esse ruído que ameaça o sistema melodioso e,
como tal, há que silenciar, tal como os corpos, prazeres e afectos que não se
incluem na (hetero)norma; incentivam, igualmente, à perspectivação dos filmes
pornográficos e de terror, do gótico, dos ciborgues e da performance no espaço
público, como plataformas artísticas e políticas de criação de um futuro comum.
As abordagens queer desafiam os feminismos a reinventarem-se e a imaginarem
um novo activismo que tenha em conta o impacto das novas tecnologias na construção das subjectividades, bem como desafiam à visão da sujeição dos corpos
não se fazendo (apenas) a partir do exterior, mas a partir do próprio corpo e no
corpo; desafiam à visão da tecnopolítica como assumindo a forma do corpo como
uma incorporação (Preciado, 2008: 66-67). As perspectivas queer lançam bases
para um activismo atento e baseado na micropolítica14 das células, que procura
pontos de fuga ao controlo estatal dos fluxos (hormonas, esperma, sangue, etc.) e
dos códigos (imagens, nomes, instituições), bem como às formas de escapar à privatização e mercantilização, por parte das multinacionais médicas e farmacêuticas, das tecnologias de produção e modificação do género e do sexo (Preciado,
2004). Num imaginário queer, o projecto feminista não passa tanto pela libertação
das mulheres e a sua igualdade legal, mas antes, e como afirma Preciado (2007),
pelo «desmantelar dos dispositivos políticos que produzem as diferenças de
classe, de raça, de género e de sexualidade». A reinvenção dos feminismos passa,
assim, pela mudança epistemológica «desde o ponto de vista humanista dos
sujeitos individuais como criadores de si próprios e próprias para uma (…) análise do código homo/hetero [género] e a sua transversal estruturação dos modos
de pensamento, conhecimento» (Seidman, 1994: 130).
Num feminismo que se pretende e imagina queer, o conceito naturalizado de
diferença sexual é abandonado, em detrimento da denúncia, transgressão e subversão das tecnologias que criam essa diferença e espartilham práticas, discursos,
prazeres e desejos «Outros». Neste feminismo queerizado, prevalece a anarquia
dos afectos15, em que no princípio era: o sem-princípio.
14
15
Estas linhas de acção baseiam-se na conceptualização, por parte de Preciado (2008), de uma
sociedade Farmacopornográfica (fármaco – moléculas de gestão do corpo, como as hormonas,
a pílula ou o silicone, por exemplo; pornográfica – técnicas de representação do sexo e da
sexualidade) que surgiria após a Segunda Guerra Mundial e que se seguiria à sociedade disciplinária iniciada no século XVIII. Sobre «sociedade soberana» e «sociedade disciplinária» ver
Foucault (1994).
Utilizo anarquia no seu sentido etimológico: do grego an (negação) – arké (princípio, palavra de
origem e fundadora).
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Salomé Coelho
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Salomé Coelho é doutoranda em Estudos Feministas, pela Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra. Desenvolve investigação na área das políticas identitárias
e feminismo queer. Integra o projecto de investigação em histórias de vida de mulheres vítimas de violência doméstica, desenvolvido pela UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta, em parceria com o Centro de Investigação e Intervenção Educativas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade
do Porto. Membro da direcção da UMAR.
Artigo recebido em 30 de Abril de 2009 e aceite para publicação em 24 de Julho de 2009.
ex æquo, n.º 20, 2009, pp. 29-40