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Réquiem para os vícios ocultos - Migalhas
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Responsabilidade Civil
Réquiem para os vícios ocultos
Atala Correia
quinta-feira, 18 de novembro de 2021
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No campo das trocas econômicas, a qualidade do bem que se adquire é tema central.
O direito contratual, buscando formalizar e proporcionar segurança aos negócios, toma
em consideração ferramentas diversas para regular esse tema.
De modo simples e intuitivo, cabe aos contratantes negociarem e ajustarem a
qualidade do bem que transacionam. Nos contratos escritos, é de se esperar que as
partes estipulem cláusulas a este respeito, para assegurar que o bem terá as
qualidades e utilidades esperadas. Se houver descumprimento, cabe ao credor
resolver o contrato ou exigir cumprimento específico.
Nas trocas cotidianas, em que o comprador pode avaliar o produto, isto é feito com
avaliação das características externas e experimentação. Na busca de produtos de boa
qualidade, o comprador escolhe as frutas no mercado. Há, entretanto, estratégias
econômicas mais sofisticadas a embasar este simples ato de escolha, com a
construção de símbolos de qualidade, que se expressam por marcas, denominações
de origem controlada, adoção de normas técnico-profissionais, dentre outros. Isto é
bastante perceptível, por exemplo, na compra de produtos orgânicos, pois, quanto a
eles, sua qualidade mais relevante - a de estar livre de agrotóxicos - não pode ser
constatada visivelmente. Por isso, a produção desses produtos segue normas técnicas
e ordinariamente é assinalada por símbolos próprios.
Quando não há negociação expressa da qualidade, as soluções que os ordenamentos
jurídicos podem apresentar para este dilema variam entre dois extremos: o caveat
emptor e o caveat venditor . Historicamente, a venda surgiu sobre a premissa do caveat
emptor, vale dizer, cabia ao comprador precaver-se quanto à qualidade do produto.
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Isso porque tratava-se de contrato em que o alienante cumpria sua obrigação ao
entregar coisa certa, que, sob exame do comprador, tem sua qualidade testada. Aceito
o produto, a obrigação do vendedor estava extinta, salvo prova de dolo.
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Tratava-se, naturalmente, de uma regulação jurídica primitiva, que não poderia dar
conta de maior complexidade. Há certos tipos de bens cuja qualidade só se conhece
com o uso ou longo tempo após a contratação1. Nessas situações, o tema da
qualidade é muito mais delicado, porque ela só pode ser aferida quando a contratação
já está há muito terminada e quando o uso recorrente já desgasta a coisa.
Sem regular o problema dos bens de experiência, o direito romano clássico evoluiu. O
mais tradicional remédio para este tema surge por obra dos pretores comerciais, para
regular a compra de escravos e animais2. Em seus editos, os pretores permitiam que,
após a venda e constatação da qualidade do produto pelos compradores, pudesse
haver o desfazimento do contrato de compra caso fossem constatados vícios ocultos
ou, alternativamente, para que pudesse haver abatimento no preço. A responsabilidade
por vícios ocultos, diferentemente do que ocorria no regime contratual básico, não
exige culpa ou dolo do vendedor.
O regime dos vícios ocultos foi aprimorado ao longo dos séculos para especificar no
que consistem e em que prazo devem ser descobertos. De todo o modo, o que temos
é uma dicotomia entre a responsabilidade por inadimplemento (que hoje, na
responsabilidade contratual se dá ordinariamente com culpa presumida) e o regime de
garantia por vícios da coisa, que se dá independentemente da culpa. Caso a qualidade
tenha sido negociada e descumprida, cabe ao credor exigir o cumprimento específico
da obrigação ou, por outro lado, resolver o contrato e haver perdas e danos. Como sua
opção não está sujeita a prazo, as duas opções podem ser exercidas no prazo
prescricional de 10 (dez) anos. Caso a falta de qualidade se conforme na hipótese de
um vício oculto, aplica-se o art. 445, do Código Civil. Vale dizer, o adquirente pode
optar por dois remédios (i) desfazer ou redibir o negócio; ou (ii) obter abatimento do
preço. De todo modo, sua opção deve ser exercida no prazo de 30 dias se a coisa for
móvel, e de 1 ano se for imóvel. E, "quando o vício, por sua natureza, só puder ser
conhecido mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até
o prazo máximo de cento e oitenta dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano,
para os imóveis" (art. 445, §1º, CC).
Feitas essas observações e no intuito de refinar o quadro teórico até aqui apresentado,
é importante observar que os vícios do produto são tradicionalmente considerados
problemas intrínsecos às coisas, que, com ela se manifestam. No campo da edificação,
temos exemplificativamente as paredes que vêm a ruir, total o parcialmente, a piscina
que infiltra, dentre outros. Vale dizer, portanto, que o tema da qualidade estava
cercado pela negociação expressa das partes e pelo regime dos vícios intrínsecos.
Entretanto, há problemas de qualidade relacionados não à coisa em si, mas ao que
dela esperamos. Nesse campo, temos o encanamento de água que apresenta baixa
pressão, o esgotamento que não permite rápida vazão, o revestimento de paredes que
rapidamente não resiste as intempéries. Havia alguma dificuldade de enquadrar essas
situações como vícios da coisa, porque são coisas hígidas, porém de baixa qualidade.
A baixa qualidade é problema que ordinariamente resolve-se por normas técnicas e
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A baixa qualidade é problema que ordinariamente resolve se por normas técnicas e
por regulação. Entretanto, nem todos os bens comercializados estão sob produção
regulamentada. Para superar esse problema, no direito brasileiro, a partir de 2002,
acrescentou-se um terceiro regime ao tema das qualidades. Diz-se que, não por força
da vontade nem das garantias por vício oculto, mas daquilo que se considera boa-fé
objetiva, ou seja, a legítima expectativa, certos bens devem gozar de qualidade
razoável ou legitimamente esperada, conforme aquilo que o juiz perceba existir no
meio social.
Como se percebe, portanto, em cada situação concreta, as partes podem litigar sobre
a qualidade em fundamentos estritamente contratuais, do que foi negociado
efetivamente, com base no conceito de vício oculto ou com base na noção de boa-fé
objetiva.
Com isso, percebe-se aqui a concorrência de diversas situações que ensejam
dificuldades de enquadramento legal, mas que, a depender da solução, redundam em
soluções práticas drasticamente diferentes. As partes precisam saber se estão diante
de um contrato de compra e venda, precisam saber se se aplica o regime do Código
Civil ou do Código de Defesa do Consumidor e, definido isto, precisamos enquadrar a
situação como problema de inadimplemento, vício oculto ou de conformidade com a
boa-fé objetiva.
Estando claro que existem diversos enquadramentos jurídicos possíveis para a falta de
qualidade dos bens comercializados, é necessário avançar um pouco mais nesta
análise e, então, destacar que há certa indeterminação nessas categorias, de modo
que as partes, com alguma facilidade, podem razoavelmente escolher sobre qual
fundamento haverão de litigar. Isso porque a diferença entre uma bem que contém
vícios intrínsecos evidentemente não atende à legítima expectativa do adquirente. Se é
assim, naturalmente irão escolher o caminho que lhe pareça mais favorável ou, ao
menos, menos penoso.
Nesta escolha, a questão do prazo exerce um papel crucial. Como o inadimplemento
contratual e a boa-fé objetiva permitem o ajuizamento de ações indenizatórias em 10
anos, a existência desses amplos prazos representa um incentivo para que o
adquirente se valha desta opção, escapando dos curtos prazos decadenciais que
marcam as ações atreladas aos vícios redibitórios. Vale dizer, com certa facilidade de
enquadrar um problema qualquer como vício oculto ou como violação da qualidade
legitimamente esperada, o adquirente optará pelo último caminho.
As partes adquirentes utilizam o incentivo legal para as pretensões indenizatórias em
seu favor. Vale dizer, quando ajuízam suas ações, enquadram os problemas de
qualidade essencialmente como inadimplemento ou de violação à boa-fé objetiva. A
jurisprudência valoriza esta solução, ao deixar o prazo decadencial adstrito à redibição,
e não ao direito protestativo de escolha. Com isso, mais e mais, o prazo decadencial
para reclamar cai em desuso e perde sua razão de ser. Isso revela-se em qualquer
pesquisa de jurisprudência sobre o tema, onde é difícil encontrar precedentes que
tenham efetivamente barrado o litígio com base nos curtos prazos decadenciais
próprios da decadência por vício oculto.
O que isso significa em termos práticos? É difícil de precisar, mas de modo geral,
pode-se imaginar que adquirentes mais hábeis na tarefa de litigar judicialmente
vençam seus litígios contra vendedores sem igual preparo argumentativo. Por outro
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lado, é de se imaginar que os adquirentes mais débeis estejam mais vulneráveis e que
justamente a eles sejam aplicados os prazos mais rigorosos dos vícios ocultos. Apenas
uma pesquisa empírica poderia responder precisamente esta dúvida. De todo modo, é
significativo de que o regime de vícios ocultos venha, aos poucos, sendo abandonado
em diversos campos para que todos os temas de qualidade sejam tratados como
mero inadimplemento. Deixa-se a teoria da garantia em direção à teoria da
conformidade.
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1 Veja nosso aprofundamento sobre o tema em CORREIA, Atalá. Limitação das indenizações por extravio
de bagagens no transporte aéreo internacional: uma abordagem sob a perspectiva da Análise
Econômica do Direito. Revista IBERC, v. 4, n. 2, p. 1-17, 26 jul. 2021.
2 Um exame mais pormenorizado deste tema pode ser visto em CORREIA, Atalá.
decadência:
Prescrição e
entre passado e futuro. 2020. Tese (Doutorado em Direito Civil) - Faculdade de Direito,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020. doi:10.11606/T.2.2020.tde-29042021-200829, p. 365. Acesso
em: 2021-08-17.
____________
*Atalá Correia é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo São
Francisco da Universidade de São Paulo. É professor do Instituto Brasileiro de Ensino,
Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), onde co-coordena o Grupo de pesquisa Direito
Privado no Século XXI. Atualmente é Juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e Territórios. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade
Civil. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Civil Contemporâneo. É Presidente da
Seção Estadual do Distrito Federal da Associação de Direito de Família e das Sucessões
(ADFAS). Site pessoal: https://atalacorreia.academia.edu/
Atualizado em: 18/11/2021 08:50
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