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Direitos Humanos e da Transnacionalidade.

2016, Direitos Humanos e Transnacionalidade

Este livro é o resultado teórico do Grupo de Trabalho nº 3 – Direitos Humanos e Transnacionalidade, ocorrido por ocasião do IV Seminário Internacional de Direito, Democracia e Sustentabilidade, em 2016, realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Meridional. Dividido em dezessete capítulos, o livro busca abordar temas importantes dos Direitos Humanos e da Transnacionalidade no cenário jurídico, político e social da contemporaneidade, como o tema da dignidade, das migrações e da apatridia, das vulnerabilidades, do genocídio, do desenvolvimento sustentável e, ainda, das problemáticas ambientais e seus efeitos. Em cada capítulo, os autores e autoras investigaram os temas de maneira série e científica, sem deixar de se preocupar com a necessidade de se pensar os Direitos Humanos de maneira imanente e concreta.

Obra publicada com recursos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, processo n. 88881.118665/2016-01 2 APRESENTAÇÃO Este livro é o resultado teórico do Grupo de Trabalho nº 3 – Direitos Humanos e Transnacionalidade –, ocorrido por ocasião do IV Seminário Internacional de Direito, Democracia e Sustentabilidade, em 2016, realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Meridional. Dividido em dezessete capítulos, o livro busca abordar temas importantes dos Direitos Humanos e da Transnacionalidade no cenário jurídico, político e social da contemporaneidade, como o tema da dignidade, das migrações e da apatridia, das vulnerabilidades, do genocídio, do desenvolvimento sustentável e, ainda, das problemáticas ambientais e seus efeitos. Em cada capítulo, os autores e autoras investigaram os temas de maneira série e científica, sem deixar de se preocupar com a necessidade de se pensar os Direitos Humanos de maneira imanente e concreta. O primeiro capítulo, escrito por Yury Augusto dos Santos Queiroz e por Priscila Portella Coutinho, tem por objetivo realizar considerações sobre o direito do trabalho e a dimensão social da sustentabilidade. Buscando realizar uma análise sobre os direitos e garantias trabalhistas dos refugiados, a pesquisa concede ênfase à necessidade da real efetivação desses direitos e garantias aos migrantes haitianos em território brasileiro. O objeto do segundo capítulo é a problemática da apatridia no mundo contemporâneo. Escrito por Caroline Bresolin Maia Cadore e por Leilane Serratine Grubba, o capítulo objetiva analisar a situação das pessoas apátridas à luz do desenvolvimento humano. Para tanto, as autoras questionam o conceito de apatridia e problematizam, por meio da ideia de desenvolvimento, as possibilidades que as pessoas apátridas têm de acessarem aos direitos humanos e de satisfazerem as necessidades de vida digna. O terceiro capítulo, escrito por Amanda Muniz Oliveira e por Rodolpho Alexandre Santos Melo Bastos, concede ênfase à análise do genocídio armênio e busca analisá-lo de maneira interdisciplinar, isto é, pelo campo do saber denominado Direito & Música. Por meio de um estudo da banda System of a Down, os autores questionam a possibilidade de o rock ser 3 capaz de visibilizar temáticas pouco debatidas no Direito, como a questão do genocídio armênio, presente nas letras da banda de rock mencionada. O quarto capítulo objetiva examinar o controle difuso da convencionalidade na produção normativa infraconstitucional interna como possível mecanismo processual para a efetivação dos Direitos Humanos. Escrito por Leandro Caletti, o trabalho considera que, da necessidade de um juízo vertical de compatibilidade entre os Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados e as leis internas brasileiras, deve haver um modo de se extinguir com a produção interna contrária aos Direitos Humanos. O objeto do quinto capítulo é o empoderamento da mulher. Escrito por Luana Paula Lucca e por Neuro José Zambam, o trabalho põe ênfase na teoria de Amartya Sen e objetiva investigar se a teoria da justiça do mencionado autor pode, a partir do direito à condição de agente, efetivar o empoderamento feminino. Para os autores, a ideia de liberdade substantiva possibilita empoderar as mulheres. Com foco no multiculturalismo e nas migrações, o sexto capítulo, escrito por Júlia Fragomeni Bicca, objetiva analisar a problemática dos refugiados ambientais. A autora analisa a atual situação do meio ambiente e das mudanças climáticas, para perceber o refúgio também como um efeito da crise ambiental, bem como reclamar a necessidade do seu reconhecimento e da sua proteção jurídica. O sétimo capítulo tem por objeto a problemática indígena e busca analisar a consolidação de um panorama para essa questão a partir da Opinião Consultiva nº 22 da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Escrito por Rafaela da Cruz Mello, Márcio Morais Brum e por Tiéli Zamperetti Donadel, o trabalho sugere que o reconhecimento de percepções indígenas pela Comissão Internamericana possibilita o rompimento para com a influência de estruturas do paradigma racionalista da América Latina, bem como possibilita a consolidação de novas gramáticas para a região. O oitavo capítulo, escrito por Márcio Morais Brum e por Rafaela da Cruz Mello, objetiva analisar os avanços e os limites da jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos no que se refere à proteção socioambiental, a fim de averiguar se o mencionado Sistema consegue dialogar com as teorias da ecologia política e com as reivindicações dos movimentos sociais em prol da defesa socioambiental. 4 O nono capítulo tem por objetivo uma análise crítica da proibição do uso do véu muçulmano na França. Escrito por Franciane Hasse, Marilin Soares Sperandio e por Amanda Simor, o trabalho busca discutir o confronto entre a liberdade, no Estado laico francês, e a proibição do uso do véu muçulmano nas vias públicas. Para as autoras, a mencionada proibição fere o pressuposto e direito de liberdade religiosa, bem como fere a própria Declaração onusiana sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou na crença. Tendo por objeto os Direitos Humanos no caso Garibaldi, o décimo artigo, escrito por Karine Arnemann e por Eliete Vanessa Schneider, objetiva analisar a possível omissão do Estado Brasileiro no caso Garibaldi. Para tanto, as autoras irão realizar um estudo acerca da internacionalização dos direitos humanos, bem como da formação dos Sistemas Global e Regionais de proteção dos direitos humanos. No décimo primeiro artigo, o autor Alan Felipe Provin busca analisar a problemática da consolidação dos direitos das pessoas com deficiência, com ênfase na Lei de Inclusão. O trabalho objetiva investigar as consequências jurídicas e sociais da mencionada Lei no que se refere à tutela dos direitos humanos das pessoas com deficiência. Visando à problemática dos refugiados do Sudão do Sul, o décimo segundo capítulo realiza um estudo de Direito & Cinema. Escrito por Andy Portella Battezini, Danielli Cristine Segalin e por Lucas Jacques da Silva, o trabalho tem por objeto os refugiados do Sudão do Sul, a partir do filme Uma Boa Mentira, e busca evidenciar o papel humanitário do cinema, bem como analisar a situação envolvendo a migração e a violação de direitos humanos no caso dos refugiados. O capítulo décimo terceiro também abordará os refugiados ambientais. Escrito por Rodrigo Tonel, Guilherme Hammarstrom Dobler e por Daniel Rubens Cenci, o trabalho irá refletir acerca dos efeitos das mudanças climáticas para os direitos humanos, com ênfase nas migrações em decorrência das problemáticas ambientais. Para os autores, é urgente a necessidade da construção de uma legislação de proteção internacional às pessoas que necessitam migrar por motivos climáticos e ambientais. Na esteira do capítulo anterior, o capítulo décimo quarto também foca na problemática das migrações ambientais, com ênfase no caso dos imigrantes haitianos no norte do Estado do Rio Grande do Sul. Escrito por Thaís 5 Janaina Wenczenovicz e por Rodrigo Espiúca dos Anjos Siqueira, o trabalho objetiva analisar a possibilidade de integração e inclusão dos imigrantes haitianos por meio da educação. O capítulo décimo quinto, escrito por Luiz Carlos Segala, Mariana Caroline Lemes e por Jivago Pizarro Schulte Ulguim, tem por objeto as migrações no mundo contemporâneo e busca analisar o direito ao espaço urbano ecologicamente equilibrado no contexto das migrações e da xenofobia. O objeto do capítulo décimo sexto é a educação em direitos humanos. Escrito por Diogo Dal Magro, o trabalho objetiva investigar a importância da sensibilidade para o ensino dos direitos humanos. Partindo da teoria crítica, o autor sugere que a sensibilidade auxilia no desenvolvimento da alteridade e no reconhecimento das demais pessoas como sujeito. Por fim, o décimo sétimo e último capítulo, escrito por Gustavo Polis, busca analisar os direitos humanos no paradigma do transnacionalismo e, mais ainda, discorrer sobre o direito no mundo sem fronteiras. Acreditamos que esse livro nos brinda a importância do estudo, debate e ensino-aprendizagem dos Direitos Humanos, tanto em sua teoria e leis, quanto na eficácia concreta de suas normas e na dignidade material. O livro perpassa temas interessantes e urgentes no mundo contemporâneo, como a problemática das migrações, o genocídio, as vulnerabilidades e o Desenvolvimento Humano Sustentável. Nesse sentido, o texto desenvolvido pelos autores do livro, muitas vezes com temas que se entrecruzam e se completam, se torna essencial para os pesquisadores e estudantes dos Direitos Humanos que buscam um contato mais aprofundado com as problemáticas concretas que assaltam a dignidade humana em sua acepção mais material: a da vida digna. Passo Fundo, 21 de novembro de 2016. Leilane Serratine Grubba Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado – em Direito da Faculdade Meridional - IMED 6 A DIMENSÃO SOCIAL DA SUSTENTABILIDADE NO DIREITO DO TRABALHO COM ENFOQUE NOS HAITIANOS Yury Augusto dos Santos Queiroz1 Priscila Portella Coutinho2 RESUMO Por causa do enorme fluxo de refugiados haitianos no Brasil, o presente artigo traz considerações acerca da dimensão social da sustentabilidade no direito do trabalho, em seguida elenca quais são os direitos e garantias trabalhistas dos refugiados que o Brasil deve garantir, tratando especialmente dos Haitianos, no último capítulo de modo não exaustivo, expõe os principais problemas na efetivação dos direitos e garantias dos refugiados haitianos em relação ao direito do trabalho no Brasil. Quanto à metodologia foram utilizadas as Técnicas do Referente, da Categoria, do Conceito Operacional e da Pesquisa Bibliográfica, incluindo doutrina e jurisprudência, pelo método indutivo. Palavras-chave: sustentabilidade; direito do trabalho; refugiados. 1 INTRODUÇÃO O presente artigo tem como pressuposto o estudo da dimensão social da sustentabilidade aplicada ao direito do trabalho, principalmente com relação aos trabalhadores Haitianos, os quais em uma grande maioria ingressam no país na qualidade de refugiados buscando melhor qualidade de vida, por vezes deixando toda família em seu país de origem. Como dito, esses indivíduos saem do seu país de origem na busca de um local mais seguro e com a expectativa de garantir o mínimo existencial, o território brasileiro têm recebido um fluxo enorme dessas pessoas, esse ingresso teve maior destaque principalmente a partir do ano de 2010 quando o fluxo migratório significativo dessas pessoas para o Brasil teve início, atualmente segundo dados apurados pelo site do Jornal Espanhol El País, a população com nacionalidade haitiana no Brasil figura em torno de 50 mil, 7 dos quais 17 mil chegaram com visto e somente 14 mil foram incorporados ao mercado de trabalho, especialmente na construção civil e na indústria de processamento de carne, segundo o escritório consular do Brasil em Quito, no Peru, país que serve de rota migratória, pois faz fronteira com o Acre no Norte do Brasil, estado que recebe o maior fluxo migratório de chegada da população haitiana. Considerando os dados acima, onde pelo menos 3 mil haitianos que possuem visto não conseguiram emprego, e mais 33 mil sequer possuem visto e consequentemente, caso empregados atuarão no mercado informal, surgiu a ideia do presente trabalho, pois para que ocorra uma conexão com a nova sociedade, ainda que de forma temporária, é necessário que o Estado receptor supra a necessidade dessas pessoas, assegurando-lhes oportunidades de trabalho em conformidade com a legislação trabalhista vigente. Nesse contexto iniciou-se o estudo de como a aplicação e a inserção desses haitianos no mercado formal de trabalho contribuiria para o alcance da sustentabilidade social, no Brasil, mas que também possivelmente reflete no Haiti, uma vez que muitos dos haitianos que trabalham aqui no Brasil enviam parte de seus rendimentos para familiares em sua terra natal. Para essa análise foi colocado como princípio norteador da pesquisa o dever do Estado em acolher tais indivíduos, buscando verificar quais são os direitos e garantias inseridos na Constituição Federal e legislação trabalhista que vêm sendo aplicados de maneira adequada aos trabalhadores “refugiados3”, na medida em que um ambiente de trabalho equilibrado e saudável é fator primordial para a qualidade de vida de qualquer trabalhador, independentemente de sua origem, atuando no Brasil. Dessa forma, tem-se como objetivo geral da pesquisa, a investigação do conceito de sustentabilidade em sua dimensão social como paradigma das relações de trabalho, considerando a inserção dos refugiados nesse meio. O presente trabalho se justifica quando se fornece um meio ambiente seguro e sadio aos trabalhadores, estaria sendo concretizada a valorização social da dignidade do ser humano refletindo diretamente no desenvolvimento da sociedade. Buscou-se também verificar quais são os principais problemas enfrentados atualmente pela população haitiana nas relações de trabalho, e se há efetivação de seus direitos e garantias enquanto “refugiados”, considerando que muitas vezes acabam sendo discriminados pelos 8 empregadores que também violam os seus direitos trabalhistas, sobretudo com a ausência de registro ou com pagamento de salários abaixo do piso da categoria ou do salário mínimo. Para facilitar a exposição do tema o presente artigo restou divido em três itens, o primeiro traz considerações acerca da dimensão social da sustentabilidade no direito do trabalho, posteriormente se buscou elencar quais são os direitos e garantias dos refugiados que o Brasil deve garantir, tratando especialmente dos Haitianos e o direito do trabalho, no último item foram elencados de modo não exaustivo, os principais problemas na efetivação dos direitos e garantias dos refugiados haitianos em relação ao direito do trabalho no Brasil. Quanto à metodologia empregada no artigo científico, este se realizou pela base lógica indutiva, e foram utilizadas as Técnicas do Referente, da Categoria, do Conceito Operacional e da Pesquisa Bibliográfica, incluindo doutrina e jurisprudência. 2 DIMENSÃO SOCIAL DA SUSTENTABILIDADE NO DIREITO DO TRABALHO A sustentabilidade é definida como um processo mediante o qual se tenta construir uma sociedade global capaz de se perpetuar indefinidamente no tempo em condições que garantam a dignidade humana, logo, será sustentável tudo aquilo que contribua com esse processo e insustentável será aquilo que se afaste dele (CRUZ, FERRER, 2015, p.240). Nos dizeres de Huntigton (apud CANOTILHO, 2002, p.25), a sustentabilidade corresponde num dos fundamentos do que se chama de princípio da responsabilidade de longa duração, consistindo na obrigação dos Estados e de outras forças políticas em adotarem medidas de precaução e proteção, em nível elevado, para garantir a sobrevivência da espécie humana e da existência condicente com a dignidade das futuras gerações. Por demandar esforços de todas as áreas e entidades, a sustentabilidade é multidimensional, ou seja, não se opera em um único âmbito da sociedade. Quando se iniciaram os primeiros passos em busca da sustentabilidade foram definidas inicialmente três dimensões da sustentabilidade para facilitar a implementação de seu ideal, são elas: a social, a ambiental e a econômica. Essas dimensões são vistas como os pilares da sustentabilidade 9 que ao mesmo tempo em que são interdependentes, também se sustentam mutuamente. Além das três dimensões citadas, outros autores como Gabriel Real Ferrer e Juarez Freitas elencam pelo menos mais duas dimensões da sustentabilidade. Para Freitas (2012, p.58) a sustentabilidade pode ser estudada em pelo menos cinco dimensões: social, ética, ambiental, econômica e jurídico-politica4, Ferrer (2015, p.253) por seu turno acrescenta a dimensão tecnológica ao estudo da sustentabilidade5. Porém como o presente artigo se fundamenta especificamente na dimensão social da sustentabilidade, somente está dimensão será mais bem definida a seguir. No aspecto social a sustentabilidade parte do princípio de que não se pode admitir um modelo de desenvolvimento onde se incluem alguns e se excluem outros, seja por raça, gênero ou qualquer outra forma pré-definida. Como dito anteriormente se deve sempre ir à busca da qualidade de vida digna para todos, sobre este ponto Ferrer (2012, p.311) diz o seguinte: [...] la calidade de vida se asocia y depende del entorno vital en que nos movamos. Entorno físico-natural, etorno afectivo y entorno-social. Pois bien, como veremos, la humanidad tiene ante sí el monumental reto de adecuar sus conductas individuales e celectivas para hacer posible um futuro de esperanza que conserve um medio ambiente adecuado para nuestro desenvolcimiento colectivo y sea capaz de crear una sociedad, más justa y solidaria, que haga posible nuestra realización personal em um marco de dignidade colectiva. Ese es el reto y ese el nuevo paradigma, la sostenibilidad. Ou seja, o alcance da sustentabilidade demanda um esforço comum de todas as áreas, de todas as pessoas, um modelo de governança que apresente medidas universais com eficiência e eficácia (FREITAS, 2012, p.59), os agentes devem pensar globalmente e atuar localmente (FERRER, 2013, p.359). Em busca de melhor entendermos a dimensão social da sustentabilidade, temos também a definição de Denise e Heloise Garcia (2015, p.44), para quem a dimensão social: [...] consiste no aspecto social relacionado às qualidades dos seres humanos, sendo também conhecida como o capital humano. Ela está baseada num processo de melhoria na qualidade de vida da sociedade através da redução das discrepâncias entre a opulência e a miséria com o nivelamento do padrão de renda, o acesso à educação, à moradia, à alimentação. Estando, então, intimamente ligada à garantia dos Direitos Sociais, previstos no art.6º da Carta Política Nacional, e da Dignidade da Pessoa Humana, princípio basilar da República Federativa do Brasil. 10 Complementando o conceito acima, para Freitas (2012, p.60) a dimensão social da sustentabilidade reclama incremento da equidade, na potencialização e no fomento das qualidades humanas com educação de qualidade, além do engajamento na causa do desenvolvimento que perdura e faz a sociedade mais apta a viver a longo prazo, com dignidade e acima de tudo respeito à dignidade dos demais seres vivos. Nesse contexto, é possível verificar, por exemplo, que a preservação do meio ambiente ou a obtenção de uma sociedade “sustentável”, será manifestamente insustentável se obtida por meio de trabalho indecente, escravo ou que possua qualquer outro aspecto análogo, que fira a dignidade do ser humano. Maia e Pires (2011, p.182) destacam que o desenvolvimento sustentável significa prosperidade globalmente compartilhada e ambientalmente sustentável. Indicam que, para o desenvolvimento sustentável, são necessárias três mudanças fundamentais: sustentabilidade ambiental, estabilização populacional e fim da miséria. Essas mudanças só poderão ser alcançadas com uma mobilização global, fundamentada em um processo de cooperação e interação entre povos, mas que exige negociação e acomodação entre as visões de mundo criadas pelas pessoas, regiões e nações sobre a sustentabilidade. Dentro desse desenvolvimento sustentável e considerando a dimensão social da sustentabilidade, o meio ambiente de trabalho também deve guardar equilíbrio, Freitas (2012, p.59) diz que este não pode seguir acidentado, tóxico e contaminado, física e psicologicamente, sob pena de ser insustentável. É impossível dizer que existe uma sociedade sustentável onde direitos básicos são tolhidos, Diniz e Maciel (2012, p.500), asseveram que o meio ambiente de trabalho deve ser visto sob os seguintes aspectos: a) fisiológico, que corresponde ao grau de adaptação do trabalhador ao meio físico; b) moral, decorrente de aptidões humanas, motivação, grau de satisfação, personalidade, etc; c) social, ou seja, a interdependência entre o trabalho e a sociedade; d) econômico, relacionado com a produção de riquezas, propriedade, os bens produzidos, organizações empresariais e outros. E uma vez feridos qualquer um desses aspectos, inexiste a sustentabilidade no ambiente de trabalho e impossível é o desenvolvimento sustentável, bem como o alcance da sustentabilidade. 11 A proteção do meio ambiente de trabalho fundamenta-se no princípio da solidariedade, previsto no art. 3º, I, da Constituição Federal, pois, sendo difusa a sua natureza, as consequências decorrentes de sua degradação, como os acidentes de trabalho e as doenças ocupacionais, atingem toda a sociedade (CIRINO, 2014, p.100). Assim, é possível dizer que mais fundamental do que produzir vagas de emprego, é indispensável manter um ambiente de trabalho digno e sustentável, isso porque os problemas ambientais e sociais estão necessariamente interligados e somente será possível tutelar adequadamente o meio ambiente com a melhora das condições gerais da população (CRUZ; FERRER, 2015, p.253), e somente proporcionando um ambiente de trabalho digno bem como os direitos básicos do trabalhador é que se verá satisfeita a dimensão social da sustentabilidade. Em resumo, a sustentabilidade só pode ser alcançada se operada em todos os setores da sociedade, logo, o ambiente de trabalho não está excluído, uma vez que para maioria da população, pelo menos metade de seu tempo útil é gasto nas atividades desempenhadas em seu local de trabalho. 3 DIREITOS E GARANTIAS DOS REFUGIADOS NO BRASIL: HAITIANOS A Carta Magna brasileira traz entre seus artigos além dos princípios básicos pelos quais se deve guiar o pais, um elenco de vários direitos individuais e coletivos que devem ser garantidos à a todos aqueles que estejam em nosso território, dentre eles: dignidade (art.1º, III), valores sociais do trabalho e livre iniciativa (art.1º, IV), uma sociedade justa e solidária, desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais e regionais, promoção do bem de todos sem distinção, sem preconceito ou qualquer outra forma de discriminação (art.3º, I, II, III, IV), e estes são apenas os elencados nos três primeiros dispositivos da CRFB/88. E o rol continua: assegura que ninguém deve ser submetido a tratamento desumano ou degradante (art.5º, III), assegura a igualde entre todos (art.5º, caput), assegura o livre exercício do trabalho (art.5º, XIII), define como direitos sociais a educação, saúde, alimentação, o trabalho, 12 moradia, lazer, segurança, a previdência social, proteção da maternidade (art.6º). Em relação ao Direito do Trabalho a Carta Magna também assegura alguns direitos específicos, em sua maioria estão elencados no art.7º da CRFB/88, e podemos colocar como principais, os seguintes: proteção contra despedida arbitrária ou sem justa causa, concessão do segurodesemprego, fundo de garantia por tempo de serviço, o salário mínimo ou piso salarial e irredutibilidade do mesmo, décimo terceiro salário, saláriofamília, repouso semanal, licença maternidade, aposentadoria, seguro contra acidente de trabalho, proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. Além dos exemplos acima constantes da CRFB/88, a própria CLT – Consolidação das Leis de Trabalho traz outras várias garantias ao trabalhador, buscando a em primeiro lugar proteger o “proletariado” em relação ao “Capital”, através da manutenção dos direitos adquiridos pelo trabalhador com muito custo ao longo dos anos. Porém, questiona-se se esses direitos são garantidos também aos refugiados que atualmente são residentes no pais? Ou melhor, será que essas garantias ainda que disponíveis a eles, são efetivadas pelos empregadores? Antes de responder estes questionamentos, é necessário saber primeiro como são regulados os refugiados no Brasil, e se os haitianos, objeto central do presente artigo, são considerados refugiados ou possuem outra qualificação no direito internacional. Araújo (2001, p.67) explica que: [...] os direitos dos refugiados no Brasil transitam por duas etapas: a das declarações e a dos tratados. O Brasil foi partícipe ativo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e ainda assinou, ratificou e promulgou os principais documentos relativos aos refugiados: Estatuto dos Refugiados, de 1951, e o Protocolo sobre o Estatuto, de 1967. Assim, pode-se dizer que no plano interno a regulamentação de origem internacional e cunho universal foi adotada plenamente pelo Brasil, que além disso, recentemente estabeleceu esses direitos e deveres através de uma lei interna, a Lei n.9.474/97, que implementou os mecanismos preconizados no Estatuto dos Refugiados. A Lei n.9.474/97 que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951 e dá outras providencias, ainda que nãos 13 seja mais tão recente quanto citou Araújo acima, ainda é vigente e explica que serão considerados refugiados todos os indivíduos que: I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país. Por outro lado segundo pesquisa levantada entre 2012 e 2013, e denominada de “Estudos sobre a migração Haitiana ao Brasil e Diálogo Bilateral” de fevereiro de 2014, produzida com o apoio da PUC Minas e Ministério do Trabalho, a maior parte dos Haitianos que entram no pais vêm por causa do terremoto que atingiu o Haiti em 12 de Janeiro de 2010, ou seja, não deixam o pais por conta de perseguição política ou qualquer outro fator elencado no Estatuto dos Refugiados ou na Lei n.9.474/97 que o recepcionou em nosso pais, sendo assim, qual é o tipo de visto concedido a estas pessoas que entram em nosso pais em busca de melhores condições de vida “fugindo” da devastação causada por desastre natural? Antes de adentrar na resposta, é importante consignar que atualmente existem pelo menos dois órgãos principais que cuidam da situação dos estrangeiros, refugiados ou não, residentes no Brasil e também daquelas pessoas que desejam entrar no pais e nele permanecer por outras razões além daquelas diretamente relacionadas ao visto de refugiado. Com a criação mais recente temos o CONARE - Comitê Nacional para os Refugiados, é um órgão de deliberação coletiva, no âmbito do Ministério da Justiça, criado pela Lei n.9.474/97, suas atribuições e regulamento estão relacionados na referida lei, mas em resumo ele é competente para: a) analisar o pedido e declarar o reconhecimento, em primeira instância, da condição de refugiado, b) decidir a cessação, em primeira instância, ex officio ou mediante requerimento das autoridades competentes, da condição de refugiado, c) determinar a perda, em primeira instância, da condição de refugiado; d) orientar e coordenar as ações necessárias à 14 eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados; e) aprovar instruções normativas esclarecedoras à execução desta Lei. Há também o CNIg - Conselho Nacional de Imigração criado pela Lei n.6.815/80, esta que também define a situação dos estrangeiros no Brasil. Ao CNIg compete: a) formular a política de imigração, b) coordenar e orientar as atividades de imigração, c) efetuar o levantamento periódico das necessidades de mão-de-obra estrangeira qualificada, para admissão em caráter permanente ou temporário, d) definir as regiões de que trata o art. 18 da Lei n° 6.815, de 19 de agosto de 1980, e elaborar os respectivos planos de imigração, e) promover ou fornecer estudos de problemas relativos à imigração, f) estabelecer normas de seleção de imigrantes, visando proporcionar mão-de-obra especializada aos vários setores da economia nacional e captar recursos para setores específicos, g) dirimir as dúvidas e solucionar os casos omissos, no que diz respeito a imigrantes, h) opinar sobre alteração da legislação relativa à imigração, quando proposta por qualquer órgão do Poder Executivo. Pois bem, considerando que o motivo que trouxe a maioria dos haitianos ao Brasil é a ocorrência do terremoto que devastou o Haiti em 2010, e que essas pessoas não podem e não devem ser consideradas refugiadas, pois não se encaixam nos requisitos elencados pelo Estatuto dos Refugiados ou da Lei n.9.474/97, mas que também não poderia o Brasil deixar de atuar junto à essas pessoas, com a finalidade de não deixá-los a mercê da sorte, o CNIg editou a resolução n.97 em 12/01/2012 que permite a concessão de visto permanente ao nacional do Haiti conforme previsão do art. 16 da Lei nº 6.815/80, por razões humanitárias6, condicionado ao prazo de 5 (cinco) anos, nos termos do art. 18 da mesma Lei, circunstância que constará da Cédula de Identidade do Estrangeiro, após este prazo o indivíduo deverá comprovar a sua situação laboral para fins da convalidação da permanência no Brasil e expedição de nova Cédula de Identidade de Estrangeiro. A validade da resolução n.97 seria de apenas dois anos, mas restou prorrogada até 30 de Outubro de 2016. Complementando a resolução acima o Conselho Nacional de Justiça através de Despacho publicado no D.O.U. em 12/11/2015, listou nominalmente os 43.871 haitianos residente no País que devem encaminhar-se aos departamentos da Polícia Federal para solicitar o visto 15 permanente e regularizar sua situação no Brasil de acordo com a referida resolução. Até agora se verificou que são concedidos vistos humanitários pelo prazo de cinco anos, e depois ou se preenchidos os requisitos antes, é concedido o visto permanente aos estrangeiros que desejam permanecer no Brasil, entre eles os Haitianos. Pois bem, mas é as garantias de trabalho? Só os estrangeiros com visto permanente é que podem obter a carteira de trabalho e gozar dos mesmos direitos de trabalhadores brasileiros? A resposta é não, após o registro na Polícia Federal, o nacional haitiano estará apto a retirar seu documento para trabalho nas agências credenciadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), ainda que não lhe tenha sido concedido o visto permanente ou esteja seu pedido sob análise do CNIg, o estrangeiro também pode realizar o pedido do CPF após o registro junto a Polícia Federal (MILESI, ALVES, 2012, p. 02). Assim, em posse do documento necessário ao ingresso nas relações de trabalho formais, Carteira de Trabalho (CLT, art.13), o estrangeiro e especificamente para fins deste trabalho os Haitianos, gozam dos mesmos direitos inerentes aos trabalhadores brasileiros, por força do art.5º da CRFB/88 que determina a igualdade de direitos entre brasileiros e estrangeiros. Porém, infelizmente os empregadores nem sempre garantem à essas pessoas os direitos da CLT conforme será abordado no próximo capítulo. 4 PRINCIPAIS PROBLEMAS NA EFETIVAÇÃO DAS GARANTIAS E DIREITOS DOS REFUGIADOS HAITIANOS EM RELAÇÃO AO DIREITO DO TRABALHO. Conforme a abordagem trazida nos itens anteriores, verificou-se que o principal motivo da chegada de Haitianos no Brasil é a busca por melhores condições de vida, incluindo as condições de trabalho, comparadas ao que tinham em seu país de origem. Principalmente considerando a ocorrência do terremoto que abalou o país em 2010, causando a grande situação de miserabilidade para a população. Em relação ao ingresso desses indivíduos no mercado de trabalho, foi visto que não há nenhum óbice na legislação, no sentido de impedir que os 16 imigrantes haitianos recebam o mesmo tratamento digno e tenham garantido os mesmos direitos trabalhistas que são assegurados aos brasileiros. Portanto, após a entrada no país com o cumprimento de todas as exigências legais, tais como: retirada do visto, emissão da Cédula de Identidade de Estrangeiro, CPF e CTPS, em tese, o imigrante haitiano estará apto para buscar emprego, a fim de garantir o seu sustendo e de sua família. No sentido de facilitar o acesso dessas pessoas no país, além da iniciativa e incentivos dados pelo governo, principalmente na emissão dos vistos para entrada legal e regular no Brasil, algumas organizações não governamentais criaram projetos que promovem a integração do imigrante haitiano na sociedade brasileira. Como exemplo disso, pode-se citar a ONG Viva Rio7 que conforme sua própria descrição, atua na formação de comunidades seguras e sadias, tem entre suas realizações o projeto denominado “Haiti Aqui”, o objetivo é de facilitar a integração do imigrante haitiano8. No site da ONG disponível em português, inglês, francês e crioulo haitiano, essas últimas, consideradas as línguas oficiais do Haiti, estão presentes várias informações sobre os procedimentos necessários para retiradas de documentos, telefones e endereços úteis para a utilização do imigrante haitiano, além de atendimentos e eventos elaborados para auxiliar em diversos temas, tais como: saúde, educação, lazer e trabalho. No que diz respeito às questões trabalhistas, além de informações básicas presentes no próprio site e do atendimento realizado na sede da Viva Rio, consta também um link que encaminha o leitor ao “Guia de Informação Sobre Trabalho aos Haitianos” (2012), que foi elaborado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, e serve como explicativo aos imigrantes vindos do Haiti, contendo informações essenciais sobre como solicitar a CTPS, elaborar um currículo, de como se portar em uma entrevista de emprego, ou ainda, em relação ao momento da contratação, quais são os direitos básicos do trabalhador, como: salário mínimo, jornada de trabalho, descontos salariais, FGTS, férias, rescisão contratual, e outros direitos e deveres inseridos na legislação trabalhista brasileira, as quais também atingem e são aplicáveis ao trabalhador haitiano. Além disso, também estão disponíveis orientações sobre quais procedimentos deverão ser tomados em caso de descumprimento dessas 17 obrigações e da legislação vigente por parte do empregador. Entretanto, apesar de algumas ONGs como a citada anteriormente prezarem pela efetivação e o cumprimento das normas trabalhistas aos haitianos, bem como no acesso à informação de maneira simplificada, o que se vê na prática é que ainda existe muita discriminação em face de esses indivíduos, trazendo problemas como clandestinidade nas contratações, irregularidades de registro, salários abaixo do piso ou do mínimo ou até mesmo algumas situações de trabalho escravo. Em pesquisa ao site Portal Brasil, com notícia publicada em janeiro de 2016, verificou-se que no ano de 2015 mais de 1000 (mil) pessoas foram resgatadas do trabalho escravo, dentre estas, se encontravam aproximadamente 65 imigrantes haitianos. No mesmo sentido, a Universidade Federal de Minas Gerais, desenvolve um projeto denominado “Clinica de Trabalho escravo e Tráfico de Pessoas” que faz parte do curso de Direito da Universidade e, dentre outros objetivos e estudos, realiza pesquisas em âmbito nacional e internacional a cerca dessa problemática, verificou-se em notícia de junho deste ano que o número de refugiados e imigrantes disparou no Brasil desde 2010 em 2.800%. Ou seja, trata-se de questão de grande dificuldade tanto para o governo, quanto para a sociedade, no sentido de fornecer tratamento adequado e em igualdade para essas pessoas. Por esta razão, em virtude da ausência ou do pouco investimento em políticas migratórias, é que surgem as principais dificuldades enfrentadas, inclusive os abusos por parte de pessoas que aproveitam esta situação para explorar e escravizar os imigrantes. Segundo estudo divulgado pela UFMG (2016), no ano de 2013 mais de 120 haitianos foram resgatados de condições análogas à escravidão em duas operações realizadas pelo Ministério do Trabalho. No maior desses resgates, onde cerca de 100 imigrantes haitianos foram retirados de condições extremas de escravidão, o auditor fiscal Marcelo Gonçalves Campos9, comparou a situação em que o grupo se encontrava como uma verdadeira senzala: “Uma das casas parecia uma senzala da época da colônia, era absolutamente precária. No fundo, havia um espaço grande com fogões a lenha. A construção nem era de alvenaria”. Outro caso envolvendo escravidão de haitianos ocorreu em Cuiabá – Mato Grosso, onde 21 vítimas foram resgatadas de um alojamento em 18 situação degradante, com falta de água constante, além de não haver cama para todos os moradores, que haviam sido contratados para construção de casas em um residencial financiado pelo programa de habitação Minha Casa Minha Vida. Ou seja, nem o programa financiado pelo Governo Federal estava sendo fiscalizado corretamente a fim de evitar esse tipo de situação. Em decorrência dessa situação que assola o país, já existem decisões judiciais que discorrem sobre casos de irregularidades que vem sido enfrentados por imigrantes. Em decisão do TRT da 1ª Região de Rondônia, o Relator Gustavo Tadeu Alkmim mencionou em trecho do seu acordão o seguinte10: [...] não se pode negar ao estrangeiro, ainda que em situação irregular no Brasil, direitos concedidos pela lei a qualquer trabalhador, uma vez constatado, como é o caso dos autos, a existência de uma relação típica de emprego, nos moldes da CLT. Seria um incentivo à precarização das relações laborais, um desprezo à dignidade da pessoa humana, que não se restringe aos brasileiros, os quais, por muito tempo, já sofreram esse tipo de discriminação no então chamado “Primeiro Mundo”. Nem se diga, como atualmente alguns defendem, em razão do êxodo haitiano, que esse tipo de postura ameaça o mercado de trabalho para os nativos aqui. Ao contrário. Negar a estrangeiros em situação irregular direitos trabalhistas, isso sim, incentivará a contratação deles em detrimento dos brasileiros, já que esses últimos podem recorrer à Justiça se forem lesados. Para o relator, a situação irregular do trabalhador estrangeiro não é obste para o reconhecimento de vínculo empregatício, bem como anotação da CTPS e recolhimento previdenciário. Tampouco deve servir de desculpa dos empregadores para sonegação dos direitos e garantias fundamentais que devem ser aplicados tanto aos nacionais quanto aos imigrantes. Ainda sobre o tema, segundo dados levantados pelo CNIg (Conselho Nacional de Imigração), Paulo Sérgio de Almeida, presidente do Conselho, informou que aproximadamente 30% dos haitianos que trabalham no país possuem Carteira de Trabalho assinada, enquanto que este número chega à 60% para os trabalhadores brasileiros.11 Informa ainda, que as recomendações do governo aos haitianos chegam no país, é de buscar entidades como ONGs para que possam obter informações necessárias e ajuda de como se manter no Brasil. Porém, ainda que existam essas entidades e algumas políticas elaboradas pelo Ministério da Educação e do Trabalho, ainda é pouco diante da imensidão de novos imigrantes que 19 chegam a cada dia, além da falta de fiscalização em decorrência da extensão do território nacional. Ressalta-se, que além da carência nas políticas públicas para imigrantes, outras dificuldades também são enfrentadas pelos Haitianos na chegada ao país, o que reflete em vários obstáculos para obtenção e manutenção de empregos regulares. De acordo com a pesquisa levantada pelo Ministério do Trabalho e Emprego em 2012 e 2013, denominada “Estudos sobre a migração Haitiana ao Brasil e Diálogo Bilateral” (2014), o próprio serviço público, em questões de demora e burocracia para retirada de documentação e de vistos permanentes, contribuem para este impacto negativo. Além disso, no mesmo estudo foi questionado quais sugestões os imigrantes haitianos poderiam dar ao governo brasileiro e também do Haiti, para a melhoria dos problemas encontrados no processo migratório. Dentre as sugestões, 24% estão relacionadas à melhora no acesso ao mercado de trabalho e de salários, sendo que 14 % diz respeito ao atendimento do governo com os imigrantes. Portanto, percebe-se que um dos principais problemas, senão o principal a ser enfrentado, ainda está relacionado à garantia de acesso a empregos regularizados. Como dito no início do capítulo, algumas medidas vêm sendo tomadas para amenizar essa questão. As principais ações a nível federal com relação aos haitianos foram: a concessão dos vistos permanentes em caráter humanitário a partir de 2012; o lançamento e distribuição de duas cartilhas direcionadas a esses migrantes, as quais foram mencionadas anteriormente; e por fim, medidas para reduzir o número de haitianos que permanecem por mais tempo no abrigo de Brasileia, no Acre. Entretanto, o processo ainda é lento, pois como visto, as medidas adotadas pelo governo federal para regulamentação do estrangeiro haitiano no país, ainda são muito pequenas em relação à demanda. Dessa forma, por mais que a legislação brasileira permita que trabalhadores imigrantes tenham os mesmos direitos e garantias fundamentais assegurados aos nacionais, na prática a tendência é que a situação de irregularidade no mercado de trabalho só aumente, ante a ausência de fiscalização e de medidas governamentais para aplicação correta dessas leis. 20 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente pesquisa realizou uma exposição acerca do estudo da dimensão social da sustentabilidade no que tange aos “refugiados” ambientais Haitianos e a efetividade da aplicação das normas trabalhistas a esses indivíduos. Como visto no decorrer do trabalho, desde o terremoto que atingiu o país em 2010, o Brasil vem recebendo enorme fluxo dessas pessoas, as quais buscam principalmente melhores condições de vida para seus familiares, tendo como objetivo a procura por condições de trabalho adequadas para garantir a referida condição. Constatou-se que a preservação do ambiente ou de uma sociedade sustentável somente é possível a partir do momento em que é obtida por meio de trabalho decente e que não afronte a dignidade da pessoa humana. Dentro dessa perspectiva de desenvolvimento sustentável, foi possível constatar que o meio de ambiente de trabalho deve ser equilibrado para garantir o crescimento sadio e seguro da sociedade, a fim de que os direitos básicos do trabalhador sejam assegurados. Observou-se ainda que os haitianos na maioria das vezes se mudam para o Brasil na tentativa de fugir dos desastres causados pelo terremoto que os atingiu em 2010, logo esta motivação não lhes permite enquadrar-se no conceito de refugiados propriamente ditos, por este motivo recebem visto humanitário para permanecerem em território brasileiro legalmente. Em relação às garantias trabalhistas, os haitianos assim como qualquer outro estrangeiro residente no território brasileiro, goza dos mesmos direitos adquiridos pelos nacionais. Porém, muito embora esses imigrantes devam receber o mesmo tratamento e tenham os mesmos direitos dos brasileiros, na prática a situação é diferente. Como visto no último item, algumas iniciativas foram tomadas pelo governo do Brasil, como por exemplo, a emissão de vistos permanentes aos imigrantes e a criação de programas do Ministério do Trabalho e Emprego em parceria com ONGs e Universidades, no sentido de informatizar e prestar auxílio a essas pessoas, principalmente para direcioná-las na retirado da documentação necessária para o ingresso e permanência no mercado de trabalho. 21 Além disso, ao longo dos anos foram criadas cartilhas com informações sobre os principais direitos trabalhistas assegurados aos brasileiros e também aplicáveis aos haitianos, na tentativa de prepará-los melhor e facilitar sua integração. Ocorre que apesar desses programas criados pelas ONGs e também da facilitação dada pelos órgãos governamentais, observou-se que o investimento nesse sentido ainda é baixo, o que leva a questão da clandestinidade e da ausência de cumprimento das normas trabalhistas pela falta de fiscalização. E que além desses fatores, há também grande discriminação face a esses indivíduos. Por conta desses problemas acima destacados e do estudo realizado, podemos dizer que o principal problema que se pode notar está relacionado ao trabalho sem a devida anotação da CTPS, pagamento de salário abaixo do piso ou até mesmo do mínimo o que acarreta em situações piores, como a de escravidão. Por outro lado, esse problema não atinge somente os Haitianos, ele atinge também brasileiros menos favorecidos e não conhecedores da integralidade de seus direitos trabalhistas, ainda há falta de informação adequada e fiscalização na aplicação das normas trabalhistas, esse é um problema velho no Brasil, mas que ainda não foi solucionado, cabe aos nossos governantes agir nesse sentido de forma mais atenta, mas cabe também ao cidadão exigir o cumprimento da Lei e a efetividade de seus direitos alcançados a duras penas. 6 REFERENCIAS ARAUJO, Nadia de. ALMEIDA, Guilherme Assis de (Coord.). 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Nesse sentido, a pesquisa problematizou se é possível estabelecer uma relação entre a situação das pessoas apátridas e os resultados alcançados pelo Indexador de Desenvolvimento Humano (IDH), considerando-se os dados relativos à saúde, à educação e ao rendimento. A hipótese provisória apresentada sugere que, justamente a desigualdade de acesso aos bens que perfazem a dignidade, como a saúde e a educação, entre grupos de pessoas apátridas e pessoas cidadãs de determinado país, implica em considerar que a situação de desenvolvimento humano relacionada aos apátridas difere do resultado final apresentado pelo mencionado indexador global. Certo é que a análise do indexador, que se refere aos dados médios de um determinado país, não abarcando as desigualdades ajustadas, não permite inferir dados relativos às pessoas apátridas. Por outro lado, a aparente desigualdade de acesso aos bens por parte dos apátridas possibilita inferir uma desigualdade no que tange aos dados médios apresentados pelo IDH. Este trabalho compreende que há relação direta entre a situação de apatridia e o aumento ou diminuição do Índice de Desenvolvimento Humano. 25 Palavras-chave: Apatridia.IDH. Direitos Humanos. Desenvolvimento Humano. 1 INTRODUÇÃO Aproximadamente quinze milhões de pessoas não possuem vínculo de nacionalidade com qualquer Estado. Pessoas que, por motivos de dissolução de seu Estado originário, por motivos de migração, por motivos de afiliação, dentre outros motivos, não são reconhecidas por nenhum Estado como nacionais. Essas pessoas, denominadas apátridas pelo Direito Internacional, vêm largamente aumentando em número nos últimos anos, segundo as Nações Unidas. Essa situação de não vínculo-Estatal e não pertencimento comunitário parece gerar graves consequências ao desenvolvimento humano. O problema da apatridia, em primeira análise, pode parecer simples. Ele gera, contudo, impacto severo nas vidas das pessoas. A nacionalidade, conforme o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), é requisito essencial para a participação na sociedade, bem como pré-requisito para o usufruto dos direitos humanos, em seus múltiplos aspectos. Apesar de serem, os direitos humanos, universais e inerentes a todos, alguns direitos, como direitos políticos, são limitados à nacionalidade. Outros direitos, como direitos sociais, são veementemente violados na prática. Os apátridas são frequentemente impossibilitados de obterem documentos de identidade física, motivo pelo qual acessam a educação e aos serviços de saúde em completa desigualdade para com os nacionais14. Frente à grave situação de desenvolvimento dos apátridas, a pesquisa objetiva analisa-los, a nível mundial, bem como investigar as consequências geradas pelo não vínculo de nacionalidade. Busca-se analisar a situação das pessoas apátridas à luz do desenvolvimento humano. Diante disso, o artigo problematiza a relação possível entre o desenvolvimento humano, principalmente o indexador de desenvolvimento humano e a situação dos apátridas. Considerando-se os indicadores medida do desenvolvimento humano, é possível afirmar que existe uma equitatividade de desenvolvimento entre as pessoas cidadãs e as apátridas? 26 Preliminarmente, a hipótese sugere que os apátridas, em razão do menor acesso aos direitos inerentes, como direitos políticos e sociais, não conseguem acessar equitativamente o mesmo nível de desenvolvimento que alcançam as pessoas com cidadania. A hipótese apresentada parte do pressuposto oferecido pelos dados de desigualdade de acesso aos direitos por parte dos apátridas e a relação entre tal desigualdade e os dados médios obtidos pelo IDH. Importante mencionar que nenhuma análise do IDH possibilita uma inferência acerca dos índices de desigualdade relacionado às pessoas sem nacionalidade dentro de um país, tampouco permite extrair dados específicos relativos aos apátridas. O enfrentamento do problema e da hipótese ocorrerá por meio do método da tentativa e erro. Metodologicamente, se busca averiguar se a hipótese oferecida ao problema pode ser tida como provisoriamente corroborada ou se deve ser ela refutada. Diante disso, em primeiro lugar, será apresentado o problema do artigo: será analisado o conceito de desenvolvimento e o seu indexador medida, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Sequencialmente, será apresentada a hipótese provisória, isto é, o conceito e consequências da apatridia. Finalmente, será realizado um balanço a fim de investigar se a hipótese apresentada consegue sustentar-se por meio dos dados concretos relacionados às consequências da apatridia e, ainda, os objetivos do desenvolvimento humano e suas características. 2 DESENVOLVIMENTO HUMANO E O SEU ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO A definição de desenvolvimento humano foi concebida a partir da ideia de ampliação das possibilidades de escolhas das pessoas, com o objetivo que elas desenvolvam capacidades e aptidões, bem como tenham oportunidades que viabilizem se tornarem o que quiserem ser. Além disso, baseia-se no preceito de que é necessário ultrapassar a visão estritamente econômica para examinar a melhora na qualidade de vida de modo mais efetivo, levando em consideração, entre outros, fatores sociais e culturais. Não afasta, em absoluto, a importância da renda, mas analisa seu papel 27 apenas como um dos meios de obtenção do desenvolvimento, dentre outros meios importantes (PNUD, 2016). O desenvolvimento humano, visto sob esse viés, é uma tentativa de proporcionar dignidade material às pessoas, isto é, de saber se os direitos humanos, garantidos jurídica e politicamente, são efetivos na vida das pessoas, considerando-se o acesso delas aos bens materiais e imateriais que garantem a vida digna. Assim, o desenvolvimento, além de humano, deve ser equânime e sustentável. Isso significa a possibilidade de acesso a uma vida satisfatória equitativamente pela atual geração, bem como a reserva dos recursos para as gerações futuras. Para confrontar o Produto Interno Bruto per capita (PIB per capita), que encara apenas a esfera econômica de desenvolvimento, foi criado o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Fica evidente o viés antagônico do indexador ao se verificar que o PIB se refere apenas ao aspecto financeiro, enquanto o IDH pretende ser um parâmetro que considera de forma geral o desenvolvimento humano. Ainda que alargue a visão acerca dele, alguns aspectos importantes não são alcançados por essa conta, que deixa de fora questões como democracia e desigualdades nos seios sociais. Cabe salientar que o objetivo do Índice de Desenvolvimento Humano em nada tem a ver com mensurar o nível de alegria em números, mas sim substanciar e incentivar o debate sobre o que realmente pesa na melhoria de vida das pessoas. Evidentemente, essa mudança de perspectiva na qual o ser humano passa a ser o foco da avaliação do desenvolvimento humano resulta em uma avaliação de dados subjetivos, mas que são baseados principalmente em três pilares: educação, renda e saúde. Ao analisar o item educação, avalia-se a média de anos de estudo dos adultos (a partir de 25 anos) e a perspectiva de quantos anos de escolaridade uma criança com idade para ingressar na escola pode esperar cursar se os indicadores por idade determinada de matrículas continuarem os mesmos. A renda é calculada de forma bem específica aonde a Renda Nacional Bruta (RNB) per capita traduz o poder de paridade de compra (PPP) em dólar, com referência à cotação de 2005. Por fim a saúde mede-se através da expectativa de vida longa e saudável (PNUD, 2016). Existem índices auxiliares de desenvolvimento humano que complementam a avaliação de pontos ainda mais específicos. O Índice de 28 Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade (IDHAD) é um deles. Surgido em 2010, o IDAHD contempla as desigualdades entre as três dimensões calculadas no IDH e subtrai uma média de cada uma conforme o nível de desigualdade. A diferença entre o valor apresentado pelo IDH e o apresentado pelo IDHAD é considerada a perda no desenvolvimento humano potencial. Pode-se dizer que o Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade apresenta um desenvolvimento mais próximo do real. (PNUD, 2016) O Índice de Igualdade de Gênero (IDG), outro índice auxiliar, expõe desigualdades baseadas no gênero ao elencar a perda no desenvolvimento humano em virtude da desigualdade entre homens e mulheres, dentro de três dimensões: a saúde reprodutiva, autonomia e atividade econômica. O último índice auxiliar é o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM), que observa as privações referentes à saúde, à educação e ao padrão de vida. Esse índice tem como principal objetivo detectar a miséria que vai além da falta básica econômica, ou seja, a pobreza além da renda. O IPM leva em consideração as situações de privação multidimensionais, considerando-se que uma pessoa pode sofrer privações pela pobreza, mas também pode sofrer multidimensionalmente mais privações em razão de situações de vulnerabilidade nas quais se encontra exposta, como a religião ou credo que professa, a origem étnica ou cultural, a cor da pele, o gênero e também a idade. O levantamento do Índice de Desenvolvimento Humano é compilado anualmente desde 1990 e é publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) através do Relatório de Desenvolvimento Humano (ONU, 1990). O IDH é fundamental para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e objetivos do Desenvolvimento Sustentável, lançados pela ONU e tem sido utilizado pelos governos federais, estaduais e municipais através do IDH-M – Índice de Desenvolvimento Humano Municipal. Com a idealização do economista paquistanês Mahbub ul Haq (19341998) e com a colaboração do prêmio Nobel de Economia Amartya Sen, o Relatório de Desenvolvimento Humano possui independência garantida através de uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, que assegura sua autonomia editorial e tem o objetivo de informar não apenas os governos, mas principalmente as pessoas, para incentivar uma leitura 29 consciente das realidades e auxiliar na busca por informações que se tornem viabilizadoras de soluções. (PNUD, 2016) Sendo assim, parece possível dizer que o Índice de Desenvolvimento Humano é um reflexo, ainda que desfocado, em virtude de sua qualidade abstrata, de faces primordiais do desenvolvimento humano. A complexidade e a multiplicidade das condições avaliadas e divulgadas pela ONU através do Relatório anual demonstram a importância do conhecimento acerca dos níveis de investimento dos governos em setores que são diretamente atingidos pelas políticas públicas que influenciam na qualidade de vida dos cidadãos. 3 A SITUAÇÃO DA APATRIDIA No mundo contemporâneo, existem aproximadamente entre dez e quinze milhões de pessoas sem vínculo de nacionalidade com qualquer Estado. Essas pessoas, denominadas apátridas pelo Direito Internacional, vêm largamente aumentando em número nos últimos anos, segundo as Nações Unidas. Essa situação de não vínculo-Estatal e não pertencimento comunitário parece gerar graves consequências ao desenvolvimento humano. Assim, parece ser necessário questionar quais são essas graves consequências e como podem elas ser minimizadas. A Convenção de Haia de 1930, investida de nível internacional que visava garantir que todas as pessoas adquirissem uma nacionalidade, no seu Artigo 1º dispõe que: Cabe a cada Estado determinar, segundo a sua própria legislação, quem são os seus cidadãos. Essa legislação será reconhecida por outros Estados na medida em que seja compatível com as convenções internacionais, o costume internacional e os princípios de direito geralmente reconhecidos em matéria de nacionalidade (ONU, 1930 apud ONU, 2014). De maneira parecida, o artigo 15 da Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, afirma que “todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade”. A apatridia ocorre quando o indivíduo não possui nacionalidade ou cidadania, ou seja, quando a ligação entre ele e o Estado não existe (nunca existiu ou deixou de existir) (ONU, 1948). Segundo Convenção para o Estatuto dos Apátridas, aprovada em Nova Iorque em 1954, em seu artigo 1º, o termo apátrida designa “toda a pessoa que não seja 30 considerada por qualquer Estado, segundo a sua legislação, como seu nacional” (ONU, 1954). O importante não é ter uma nacionalidade efetiva, mas de fato. Ainda que seja complexo diferenciar o reconhecimento como nacional, mas não ter tal tratamento e efetivamente não ser reconhecido como nacional, as duas situações são substancialmente diferentes. O primeiro caso é imediatamente relacionado aos direitos intrínsecos à nacionalidade ao passo que no segundo caso, o impasse está ligado ao direito à nacionalidade em si. Diante disso, convém esclarecer que existem dois tipos de apatridia: de jure e de facto. Os apátridas de jure são aqueles que não são considerados nacionais em nenhum país. Já os apátridas de fato são aqueles que possuem uma nacionalidade, entretanto, sem nenhuma eficiência. Segundo os dados da ONU, entre 10 e 15 milhões de pessoas encontram-se nesses limbos jurídicos em todo o mundo. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) avalia que os casos de apatridia oscilaram muito no decorrer do tempo, com diminuição em alguns países e aumento em outros. A elevada ocorrência de apatridia condensada no início da década de 90 foi encolhendo conforme os países da antiga União Soviética conferiram cidadania a milhares de pessoas que haviam ficado desprotegidas da qualidade de nacional, entretanto houve aumento significativo na África e no Leste Europeu por exemplo (ACNUR, 2011a). A apatridia pode se dar por diferentes causas, algumas de difícil resolução, ao passo que outras poderiam ser resolvidas apenas com a regularização de documentos, por exemplo. Não registrar uma criança ao nascer não indica seguramente a falta de cidadania. Contudo, em alguns países, devido à grande mobilidade migratória global, não possuir registro de nascimento impossibilita comprovar aonde a criança nasceu e de onde seus pais eram. Dentre os principais fatores históricos, a secessão de Estados, já citada anteriormente, é de suma relevância. Ocorrida no início da década de 1990, com o desmembramento da União Soviética, Iugoslávia e Checoslováquia, que causaram deslocamentos internos e externos, os quais resultaram em um grande número de pessoas sem nacionalidade. Na esfera cultural, a discriminação racial e étnica aparece de forma importante, uma vez que, em grande parte dos países em que existe esse fator de apatridia, a vontade 31 governamental para uma possível solução é praticamente nula (ACNUR, 2011a). Em virtude do direito soberano que os países possuem de definir quem é considerado cidadão ou não, apresenta-se uma diversidade de leis que podem causar dificuldades para alguns grupos em situações diferenciadas. Existem países, por exemplo, em que o nacional perde a cidadania se residir muito tempo no exterior. Além disso, em muitos países Norte-Africanos, apenas os homens passam a nacionalidade para seus filhos. Dentro dessa realidade, existem inúmeros casos de mulheres que ficam viúvas de seus maridos estrangeiros e acabam deixando seus filhos descobertos de nacionalidade. Dentre as maiores barreiras enfrentadas pelos apátridas pode-se citar a falta de acesso aos direitos básicos como saúde, educação, direito eleitoral, de propriedade e de livre deslocamento. A condição de apatridia, além de ter efeito direto sobre as pessoas incapacitadas de exercerem seu papel como cidadãos, têm consequências muito mais significativas nas crianças, mulheres e pessoas mais vulneráveis estruturalmente. Essa situação também gera efeitos em cadeia, tais como grande instabilidade social, consequente tensão na comunidade em que estejam inseridas e finalmente a possibilidade de deslocamento forçado, tanto dentro do país quanto extraterritorialmente. Em virtude disso, estão mais vulneráveis a tratamento abusivo, muitas vezes até criminosos, como o tráfico de pessoas. Ainda que a situação de apatridia force a fuga para outras localidades, com as migrações e possível refúgio internacional, a grande maioria das pessoas em situação de apatridia preferem permanecer nas suas regiões, aonde nasceram, cresceram e viveram a vida toda. Torna-se necessário avaliar o sofrimento dessas pessoas, visto que seus direitos humanos restam profundamente feridos e, muitas vezes, sequer existem. Com a ausência de nacionalidade, o registro para exercer o voto é impossível. Documentos para viagem ou de qualquer outra natureza são negados, e indivíduos apátridas que se encontrem fora de seu país de origem correm riscos reais de detenção arbitrária e prolongada. De maneira geral, os direitos mais básicos sofrem severas limitações e impossibilitam o acesso à educação, saúde e ao trabalho, os pilares do Índice de Desenvolvimento Humano. (ACNUR, 2011a). 32 Apesar dos Direitos Humanos alcançarem a todos os indivíduos independentemente de sua nacionalidade, existem direitos que são garantidos apenas através do reconhecimento de cidadania e a falta deles, tais como a ausência de direitos políticos, ausência de direitos sociais, ausência do sentimento de pertencimento ou de comunidade, além do efeito causado pela ausência de identidade nacional, atinge a esfera jurídica da pessoa apátrida diretamente no que concerne à garantia do Desenvolvimento Humano adequado. Para guardar o respeito aos direitos primordiais relativos à nacionalidade, foi desenvolvido dois tratados que alcançam a situação dos apátridas: a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (ONU, 1951) e a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (ONU, 1954; ACNUR, 2011b). Além dessas duas, a Convenção de 1961, para Reduzir os Casos de Apatridia, orienta os Estados acerca da redução do número de apátridas através da salvaguarda em suas leis nacionais (ONU, 1961; ACNUR, 2010). A relevância do assunto fica clara quando se expõe que o direito à nacionalidade, por ser um direito fundamental, garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, é inerente à pessoa humana. Mesmo que exista essa regulamentação internacional acerca da nacionalidade, cumpre a cada país sancionar o tema no âmbito do seu ordenamento jurídico. Tornase necessário, a partir da ideia de desenvolvimento humano, que as nações passem a aderir e a cumprir, dentro da esfera jurídica as convenções sobre apatridia propostas pela Organização das Nações Unidas, lançando um tratamento especifico e diferenciado para as pessoas sem nacionalidade. 4 EXISTE RELAÇÃO ENTRE DESENVOLVIMENTO E NACIONALIDADE? Os casos de apatridia podem ser enfrentados como casos de violação dos direitos humanos. A falta de nacionalidade é um produto do descumprimento de outros direitos e pode-se citar como um claro exemplo disso os casos de negação da condição de cidadão em função de discriminação racial, étnica, religiosa ou de gênero. A nacionalidade foi consagrada, no Direito Internacional, como direito humano fundamental e inerente, considerando-se sua importância intrínseca 33 e relevância para a garantia do gozo de outros direitos humanos. Contudo, conforme foi abordado na seção anterior, grande número de pessoas são privadas da nacionalidade nos dias atuais, não sendo considerado nacional por nenhum Estado. A privação de nacionalidade causa uma situação de exclusão, abuso e discriminação, que muitas vezes se torna de difícil solução. Ao terem cerceados os direitos primários e necessários para uma vida digna, os apátridas convertem-se em elementos de uma segregação jurídica que acaba por rejeitá-los dentro de seu próprio território de origem. Dessa forma, em virtude da diferença de acesso às ferramentas que legitimam a dignidade, tais como saúde e educação, entre os apátridas e os cidadãos, é necessário refletir que o Índice de Desenvolvimento Humano dos apátridas, ainda que não calculado exclusivamente, diverge do resultado final do indexador global. Quer dizer, a análise do índice de desenvolvimento humano, o IDH, realiza uma média de dados do país em análise, nos quesitos rendimento, saúde e educação, mas não mede as desigualdades específicas existentes em um determinado país, nem aponta para os grupos considerados vulneráveis estruturalmente em uma dada sociedade. Assim, a análise dos dados do IDH, conforme o problema e hipótese deste artigo, não possibilita crer que abarca, em seu dado final, a situação concreta dos apátridas, que em saúde, educação e rendimentos parecem estar muito abaixo dos índices do IDH. O número contabilizado de pessoas sem nacionalidade, segundo as estatísticas do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, gira em torno de 3,5 milhões de pessoas. Contudo, estima-se que o número real ultrapasse os 10 ou 12 milhões de pessoas. Alcançar a quantia exata de apátridas no mundo é difícil, uma vez que a maioria dessas pessoas vive em situação de extrema precariedade e à margem da sociedade. Entretanto, é de suma importância a identificação, pois é um dos passos iniciais para se detectar as dificuldades enfrentadas por eles, bem como de direcionar os esforços governamentais, da ACNUR e de outros agentes, a fim de reduzir os casos de apatridia (UNHCR, 2015). Ainda que exista um empenho da ACNUR, com a ajuda dos governos e de ONG’s para a coleta e elaboração mais precisa de dados, a Agência não consegue ainda fornecer o número de apátridas exato em cada país. O reflexo desse trabalho de coleta de dados pode ser visto quando, em 2004, a 34 quantidade de países com informações sobre o número de apátridas era 30, enquanto em 11 países sabia-se da existência dessa situação embora sem nenhum dado disponível e em 2014 eram 77 países com índices conhecidos de apatridia e 16 ainda sem conhecimento de seus números (UNHCR, 2015). Mesmo que as estatísticas coletadas pela ACNUR sejam as mais completas e atualizadas fontes de dados sobre os apátridas no mundo, isso não é uma responsabilidade exclusiva da Agência. Os Estados devem identificar os apátridas que vivem em seu território para cumprir suas obrigações com essa população. Esses compromissos derivam da Convenção para o Estatuto dos Apátridas de 1954, da Convenção para Redução dos Casos de Apatridia de 1961, além de leis internacionais de Direitos Humanos, todavia importa salientar que não são apenas os Estados que ratificaram as Convenções tem a responsabilidade de reportar esses dados. Além disso, outras agências subordinadas à ONU, a sociedade civil, inclusive a academia, devem auxiliar na identificação e contagem dos apátridas (ISI, 2014). Seguramente pode-se afirmar que mapear a apatridia é um desafio e alguns fatores importantes colaboram para que isso se torne inda mais difícil. Dentro do campo metodológico de mapeamento, a questão semântica tem um peso grande, uma vez que a definição de apatridia não é simples e pode englobar uma análise jurídica diversa – apatridia de jure ou defacto. Aslacunas na coleta de dados, causadas pelo desinteresse dos governos e até pela tentativa de negação desses dados, refletem também uma imagem distorcida dos números, assim como a falta de coleta de dados completa e adequada, considerações de proteção na identificação de apatridia e, finalmente, um item que refere ao próprio apátrida, a falta de vontade ou de consciência de se auto- identificar como tal (ISI, 2014). Após apresentar estes breves dados, pode-se perceber um problema real no cruzamento dos índices de apatridia com o Índice de Desenvolvimento Humano. Ao constatar a falta de correspondência com o número real de apátridas e os divulgados pela ACNUR, parece que o IDH não abrange essa parcela de pessoas, que embora não figurem como cidadãos, têm seus direitos relativos à saúde, educação e renda, dentre outros, abalados pela falta de reconhecimento de nacionalidade. 35 Para contextualizar esse posicionamento pode-se analisar as tendências do Índice de Desenvolvimento Humano no espaço de tempo em que foi iniciada a divulgação do Relatório de Desenvolvimento Humano em 1990 (e dados anteriores) até o ano de 2014 e o número de apátridas em determinados países (UNHCR, 2016). Ao analisar o caso da Alemanha nota-se que até 2003 o índice de apátridas não era computado ou era igual a zero e o IDH era de 0,921 (ONU, 2003), imediatamente em 2004 esse número saltou para 10.619 pessoas e o IDH 0,925 (ONU, 2004). Percebe-se assim um impacto ínfimo no Índice de Desenvolvimento Humano em função do crescimento significativo do número de apátridas. Claro que, o que se deve levar em consideração é a ausência de dados sobre apátridas no primeiro momento, o que pode significar que não houve alteração significativa sobre o número real dos apátridas entre os anos de 2003 e 2004 na Alemanha. Da mesma forma ao analisar a Suécia pode-se notar que no ano de 2004 o número de apátridas era igual a zero ou não computado e o IDH correspondia a 0,946 (ONU, 2004), enquanto no ano de 2015 o número de apátridas elevou-se para 31,062 e o IDH para 0,907 (ONU, 2015), o que demonstra uma variação irrisória, dado o espaço temporal maior de 10 anos. Uma vez que não havia um número declarado de apátridas por ocasião da primeira medição, a pequena variação dos dados do IDH não permite crer que ocorreu em razão do aumento do número real de apátridas, pois a ausência de dados concretos não permite inferir que houve uma manutenção, aumento ou diminuição das pessoas apátridas por ocasião desse período de tempo. De outra maneira, o caso da Síria é simbólico, uma vez que, no ano de 2004, o IDH computava o total de 0,710 (ONU, 2004) e o número de apátridas correspondia a 300.000 e, após 11 anos, em 2015 o IDH sírio caiu para 0,594 (ONU, 2015) enquanto o número de pessoas em situação de apatridia caiu para 160.000. No mesmo sentido do que foi afirmado anteriormente, o índice de desenvolvimento humano não permite crer sua relação de dados com o número de apátridas. Mesmo na Síria, em que havia um número de apátridas declarados no ano de 2004 e o número de apátridas em 2015, considerando-se que o IDH leva em consideração dados de saúde, educação e rendimento, não se pode inferir que o resultado final do IDH/2015 possui relação com a diferença do número de pessoas apátridas 36 na região. A diferença do IDH registrado pode estar relacionada a vários outros fatores, como guerras civis ou problemáticas econômicas. O que parece certo afirmar é que não se pode extrair uma relação entre os dados do IDH, independentemente do país, e os dados relativos à apatridia. Isso porque, na ausência de dados específicos que relacionem os índices do IDH à apatridia, nenhuma inferência pode ser tida como lógica ou correta. Contudo, por outro lado, a impossibilidade de se extrair uma relação entre os dados do IDH e os dados relativos à apatridia parece possibilitar uma conclusão oposta: a de que os dados do IDH pouco se referem às pessoas apátridas. Isso significa que os dados finais do IDH, relativos à saúde, educação e rendimento de um país, representam uma média nacional, não apontando para as situações de desigualdade dentro das sociedades. Assim, considerando que as pessoas apátridas são consideradas estruturalmente vulneráveis, em razão das reiteradas violações de direitos e desigualdade no acesso aos bens materiais e imateriais de dignidade, parece que os dados finais e médios do IDH não conseguem abarcar essa população que sofre reiteradamente a desigualdade social. Sabe-se que os números isoladamente não refletem a realidade que cada país vive, no entanto, e quiçá exatamente por isso, os dados não demonstram uma relação concreta entre número de apátridas e índice de desenvolvimento humano. Os dados e indexadores refletem diretamente no mundo real. Entretanto, o levantamento desses indicadores exige uma metodologia mais efetiva, que não nos cabe avaliar nesse artigo, porém é necessário citar que essas falhas não abrangem a realidade, impossibilitando a aplicação de políticas públicas efetivas e leis mais eficazes acerca erradicação da apatridia. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O artigo teve por objeto a problemática da apatridia no mundo contemporâneo e buscou analisar a relação entre o Desenvolvimento Humano, o Índice de Desenvolvimento e a situação da apatridia. Frente à grave situação de desenvolvimento dos apátridas, a pesquisa objetivou analisa-los, a nível mundial, bem como investigar as consequências geradas pelo não vínculo de nacionalidade. Buscou-se analisar a situação das 37 pessoas apátridas à luz do desenvolvimento humano. O artigo problematiza a relação possível entre o desenvolvimento humano, principalmente o indexador de desenvolvimento humano e a situação dos apátridas. Para cumprir com o objetivo proposto, em seu capítulo inicial, o artigo analisou o conceito de Desenvolvimento Humano e sua perspectiva de oportunidades de potencializar as aptidões das pessoas facilitando assim a sua realização pessoal. Apresentou-se também uma breve elucidação sobre a construção do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e quais seus indexadores principais e acessórios, além de referir à construção do Relatório de Desenvolvimento Humano realizado anualmente pelo PNUD. O conceito de Desenvolvimento Humano mostrou-se essencial para compreensão dos índices que pautam os Relatórios anuais. Ficou claro que mesmo tendo certa abstração, em virtude de focar em “perspectiva” e “realização pessoal”, dois fatores extremamente subjetivos, o IDH demonstra de que maneira a vida de determinada população está evoluindo com base na saúde, educação e renda. Embora não se afasta de maneira alguma a importância do fator econômico que vem medido pelo PIB per capita, o IDH leva em consideração fatores cruciais para um desenvolvimento humano adequado com o foco central no ser humano e não no valor monetário. Sequencialmente o artigo analisou o conceito de apatridia e trouxe documentos que fazem a devida contextualização. Diferenciou os tipos de apatridia e realizou uma breve avaliação das principais causas dessa situação, aonde pode-se destacar o direito soberano de cada país legislar acerca da nacionalidade, o que causa um meandro complexo de leis que muitas vezes se desencontram. Diante disso, pode-se observar que a hipótese inicial foi confirmada pois foi possível perceber que, em razão do menor acesso aos direitos inerentes, como direitos políticos e sociais, os apátridas não conseguem atingir igualmente o mesmo nível de desenvolvimento humano que alcançam as pessoas com cidadania, uma vez que o indexador leva em conta o acesso à saúde, educação e renda. Pode se dizer por fim que, a apatridia é uma consequência da violação de determinados direitos humanos e ao mesmo tempo é também a causa do descumprimento de outros. Logo, a situação das pessoas apátridas deve ser colocada em uma posição de destaque e não apenas simbólica dentro da 38 perspectiva humanitária de desenvolvimento. Uma vez que nos dias atuais os índices de imigração e apatridia estão cada vez mais significativos, a avaliação indexadora de desenvolvimento humano poderia dedicar uma pesquisa direcionada a esses grupos que embora existentes, não estão inseridos de forma igualitária na sociedade. Tal prática poderia proporcionar uma visão mais realista do nível de desenvolvimento que essas pessoas estão conseguindo galgar e abriria caminho para a aplicação de iniciativas que quebrariam com o círculo vicioso no qual os apátridas encontram-se. 6 REFERÊNCIAS ACNUR. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Prevenção e Proteção da Apatridia. Convenção da ONU de 1961 para Reduzir os Casos de Apatridia. 2010. Disponível em: <http://www.acnur.org/fileadmin/scripts/doc.php? file=fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2011/Prevencao_e_Reducao_da_Apatridia>. Acesso em: 22 ago. 2016. ______. Doze milhões de apátridas vivem em limbo legal. 2011a. Disponível em: <http://www.acnur.org/fileadmin/scripts/doc.php? file=fileadmin/Documentos/portugues/eventos/Apatridia_no_mundo>. Acesso em: 20 ago. 2016. ______. Protegendo os Direitos dos Apátridas. Convenção da ONU de 1954 sobre o Estatuto dos Apátridas. 2011b. 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Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Refugiados-Asilos-Nacionalidades-eAp%C3%A1tridas/convencao-para-a-reducao-dos-casos-de-apatridia.html>. Acesso em: 15 jul. 2016. ______. Human development report 1990. New York: Oxford University Press, 1990. ______. Relatório de desenvolvimento humano 2003: objectivos de desenvolvimento do milénio: um pacto entre nações para eliminar a pobreza humana. Lisboa: Mensagem, 2003. Disponível em: < http://www.undp.org/content/brazil/pt/home/library/relatorios-de-desenvolvimento-humano/relatoriodo-desenvolvimento-humano-20003/>. Acesso em: 27 ago. 2016. 39 ______. Relatório de desenvolvimento humano 2004: liberdade cultural num mundo diversificado. Lisboa: Mensagem, 2004. Disponível em: < http://www.undp.org/content/brazil/pt/home/library/relatorios-de-desenvolvimentohumano/relatorio-do-desenvolvimento-humano-20004/>. Acesso em: 27 ago. 2016. ______. Nacionalidade e apatridia: Manual para parlamentares. 2014. 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Acesso em: 27 de ago de 2016. Disponível em: 40 VOCÊ CONSEGUE OUVIR AS MONTANHAS SAGRADAS? : A QUESTÃO DO GENOCÍDIO ARMÊNIO NAS 15 MÚSICAS DO SYSTEM OF A DOWN Amanda Muniz Oliveira16 Rodolpho Alexandre Santos Melo Bastos17 RESUMO O trabalho questiona se uma mídia como o rock seria capaz de dar visibilidade a temáticas pouco debatidas, auxiliando na busca pela efetivação de direitos humanos. Assim, estudaremos o caso da banda System of a Down, que por meio de suas canções procura trazer à tona a questão do genocídio armênio. A partir de análise de fontes primárias, será possível verificar se e como a banda contribui para a emergência de um tema propositadamente silenciado e se suas ações possuem algum tipo de efeito prático. Palavras-Chave: rock, direitos humanos, genocídio armênio. 1INTRODUÇÃO Apesar de ser frequentemente vista com desconfiança e repúdio, especialmente pelos juristas, a cultura popular veiculada pela mídia pode ser compreendida como uma valiosa fonte de estudos para diversas áreas. Responsável por naturalizar comportamentos, dar visibilidade a assuntos até então não abordados, contestar ou manter a ordem vigente, estas manifestações artísticas podem não só auxiliar a compreender o nosso tempo e espaço, mas também conscientizar e lançar as bases para mudanças no plano real. Neste diapasão, o rock, como produto artístico e midiático, não pode ser compreendido como um simples e inocente entretenimento. Assim como novelas, filmes, seriados e literaturas diversas, o rock é um artefato produtivo, capaz de criar, ratificar ou contestar sentidos que circulam no meio social, negociando significados e estabelecendo hierarquias. 41 Neste sentido, questiona-se se uma mídia tão popular e acessível como o rock, fruto da chamada indústria cultural, seria capaz de dar visibilidade a temáticas pouco debatidas pelos populares, auxiliando na busca pela efetivação de direitos humanos. Para tanto, estudaremos o caso da banda americana System of a Down, que por meio de suas canções e utilizando de seu espaço midiático privilegiado, procura trazer à tona a polêmica questão do genocídio armênio. Considerado por muitos como o primeiro genocídio do séc. XX, precursor do holocausto judeu e fonte de inspiração de Adolf Hitler, a questão ainda é controversa. Governos como a Inglaterra, os Estados Unidos e o Brasil se recusam a reconhecer os atos praticados pelo antecessor da Turquia, o Império Otomano, como genocídio. Além disso, a própria Turquia nega a existência deste crime, punindo os cidadãos que ousam tocar no assunto dentro de suas fronteiras. A questão armênia passa quase despercebida, negligenciada por uma história escrita por vencedores e por leis promulgadas por e para grandes nações. Neste contexto de silenciamento, nos chama a atenção os berros e guitarras distorcidas dos quatro descendentes de armênios que formam a banda System of a Down. Desta forma, procuraremos verificar de que forma o assunto é abordado nas canções da banda, e de que forma os ouvintes encaram o tema. A partir de análise da letra e performance de uma de suas mais significativas canções sobre o tema, além de depoimentos de fãs e ativistas que lutam pela causa armênia, será possível verificar se e como a banda contribui para a emergência de um tema propositadamente silenciado, e se suas ações possuem algum tipo de efeito prático. Em um primeiro momento, faremos alguns comentários sobre uma possível teoria da musicalidade do direito; em seguida, resgataremos as questões históricas e políticas que permeiam o acontecimento conhecido como Genocídio Armênio; por fim, analisaremos a letra e performance de uma das principais canções da banda System of a Down que se refere explicitamente ao genocídio armênio, P.L.U.C.K., e a forma pela qual a difusão dessa questão contribui (ou não) para uma maior conscientização popular, gerando alguns efeitos práticos. 42 2 A TEORIA DA MUSICALIDADE DO DIREITO Em 2011, os Professores Horácio Wanderlei Rodrigues e Leilane Serratine Grubba escreveram interessante proposta para se pensar as relações entre os direitos humanos e a música. Para os referidos Autores (2011, p.71): A relação entre o Direito e a Música não é recente. O que é recente e pouco explorado é a busca de uma relação teórica entre os campos cognitivos do Direito e da Música, mais propriamente da Teoria Jurídica e da Teoria Musical. Até porque, não existe uma teoria que vincule ambas as esferas do conhecimento, mas permanecem apenas pontos de encontro e de convergência. Esses pontos de convergência seriam essencialmente dois: as legislações relativas ao Direito Autoral, que regulamentam a exploração da atividade musical, e a música como uma forma de se compreender os anseios e críticas sociais relativos ao mundo jurídico. Para que uma abordagem referente ao segundo ponto seja viável, porém, faz-se necessário definir o que se entender por Direito, para só então compreender como e porque a música pode ser encarada pelos juristas como uma fonte de pesquisa. Segundo Rodrigues e Grubba (2011, p.73), o Direito não se limita ao compilado de artigos, incisos e alíneas presentes em nossas legislações positivadas. Além dessa perspectiva normativa, o Direito pode ser compreendido como uma prática social constante, contextualizado histórica e socialmente. Os embates sociais, econômicos e políticos, dentre outros, seriam, assim, parte do fenômeno jurídico, motivo pelo qual não devem ser ignorados. Neste sentido, segundo os referidos Autores (2011, p. 73): A possibilidade de uma abordagem do Direito que esquematize os pontos de integração do fenômeno jurídico na vida social e que verifique como transparecem os ângulos de entrosamento dos diferentes aspectos, se dá por meio da aplicação de um modelo dialético. Esse modelo ‘[...] há de ser aberto e com a preocupação constante de encarar os fatos, dentro de uma perspectiva que enfatiza o devir (a transformação constante) e a totalidade (a ligação de todos os segmentos da realidade, em função de conjunto)’. Somente dessa forma é que podemos apreender o pluralismo no Direito.A análise dialética não é conclusiva, mas de cunho social, uma vez que,ao refletir o real, não visa à superação ou anulação de suas contradições intrínsecas, mas, antes, quer absorvê-las e reorganizá-las, pois as considera tanto parte integrante quanto elementos fundidos e transfigurados Desta forma, compreendendo o Direito como um processo constante, influenciado por transformações e fenômenos sociais diversos, pode-se vislumbrar a música e os 43 mais diversos gêneros musicais, como uma forma de se mediar anseios e lutas por justiça e dignidade. Graças ao seu alcance e a sua fácil apreensão, a música, assim, pode ser entendida como uma poderosa ferramenta de diversos sujeitos relegados à margem do sistema jurídico e político. Para Rodrigues e Grubba (2011, p. 74): [...] a música é manifestação individual do corpo social, detendo o condão de traduzir as aspirações populares, as críticas à sociedade, à ausência da eficácia dos direitos ou à ausência da vida digna. A música então, enquanto manifestação humana, não é considerada um fim em si mesma quando utilizada como um meio para a luta por vida digna e por direitos, entendidos como o resultado provisório das próprias lutas por dignidade (ou por bens materiais e imateriais necessários a uma vida digna) Assim, quando falamos em música e direitos humanos, essa luta por vida digna e direitos ganha destaque na medida em que delimitamos essa categoria de direitos, frequentemente invocados de forma vaga. Conforme Rodrigues e Grubba (2011, p. 78): [...] os Direitos Humanos passaram a ser vistos como processos que possibilitam a abertura e a consolidação de espaços de luta pela dignidade humana. Isso, em virtude de que o humano não tem necessidade de direitos em si, mas de dignidade, ou seja, de uma vida digna na qual possa satisfazer e lutar pela satisfação de seus desejos e necessidades, sejam elas materiais ou imateriais. Nessa perspectiva, tendo em vista os Direitos Humanos como um processo de busca pela efetivação de uma dignidade humana, pode-se compreender que as manifestações sociais mais diversas são capazes de compor e influenciar este processo. Com a música, não seria diferente: insatisfações, anseios populares e críticas sociais presentes nas letras de diversas canções, dos mais diversos gêneros musicais, podem, assim, ser vistas como parte de um processo de luta por dignidade e efetivação de direitos. Uma visão meramente normativa, portanto, seria incapaz de englobar as demandas sociais que dão forma aos Direitos Humanos. É por isso que concordamos com Rodrigues e Grubba (2011): Os Direitos Humanos estão no mundo da prática cotidiana, tal como a expressão musical. São os anseios das pessoas por uma vida digna e pela dignidade humana. São processos de luta pelo acesso igualitário aos bens materiais e imateriais a uma vida digna de ser vivida, 44 sejam eles de expressão, convicção religiosa, educação, moradia, trabalho, meio ambiente, cidadania, alimentação sadia, lazer, formação, patrimônio histórico, cultural, etc. Nesse sentido, são sempre o resultado transitório pela vida digna. Portanto, direitos positivados não criam direitos. Mas Direitos Humanos podem ser positivados, em que pese nunca definitivamente, com o fim de obtenção de garantias jurídicas para facilitar sua eficácia, efetividade e validade. Tendo como ponto de partida esses dois conceitos chaves – o direito como um fenômeno dialético e os direitos humanos como processos de luta social por dignidade – Rodrigues e Grubba (2011, p. 81) cunham a expressão teoria da musicalidade do direito: Não existe uma Teoria da Musicalidade do Direito. Contudo, o Direito se aproxima da Música, enquanto arte, de variadas maneiras. Em primeiro lugar, ambos, o Direito e a Música, se desenvolvem no mesmo campo, o campo das relações humanas.Em segundo lugar, as consequências sociais da aplicação do Direito geram influência nas letras das músicas, que tanto podem elogiar os resultados sociais, quanto criticar as políticas públicas, legislações e suas consequências no âmbito da sociedade. Desse modo, a música pode influenciar a própria sociedade na busca de empoderamento, de liberdade, de igualdade, etc., enfim, a música grita dignidade; como tal, a música pode servir de termômetro para os pesquisadores do Direito. Enfim, podemos afirmar que a relação entre ambos é dialética. Essa possibilidade, portanto, de compreender a música como um termômetro, ou sintoma social para os pesquisadores do Direito, abarca o problema e o objetivo levantados neste artigo. Será possível que a crítica presente nas canções sirva como porta-voz de demandas sociais específicas? E em caso positivo, essa crítica acarreta algum efeito prático? Para tentar lançar luz sobre essas questões, faremos um estudo da banda americana System of a Down. Composta por estadunidenses descendentes de armênios foragidos em razão do genocídio, a banda utiliza seu local de destaque para gravar canções ácidas e realizar críticas vorazes nos palcos em que se apresenta. A partir da análise da letra e performance de uma das principais canções referentes ao genocídio armênio, P.L.U.C.K., bem como de outras fontes primárias relacionadas à recepção da banda pelo público, procuraremos esclarecer as questões lançadas. Antes, porém, faz-se necessário algumas considerações sobre o acontecimento histórico conhecido como Genocídio Armênio. 3 O GENOCÍDIO 45 Para melhor compreender a militância dos integrantes da banda selecionada para o presente trabalho, System of a Down, faz-se necessário entender o que de fato foi o evento posteriormente conhecido como genocídio armênio. Após séculos de convivência nem sempre pacífica dentro dos limites de um mesmo espaço geográfico, a ascensão do sultão Abdul-Hamid II, ao trono do então Império Otomano, trará novos contornos para as relações entre cristãos armênios e turcos muçulmanos. Para Loureiro (2015, p. 4), será este déspota entusiasta da centralização Otomana que irá desencadear os primeiros ataques aos povos armênios, com sua política pan-islâmica. Após a construção de um cenário maniqueísta de nós muçulmanos versuseles, infiéis responsáveis por todas as mazelas do país, inicia-se uma onda de ataques aos não muçulmanos por parte do próprio governo, sob o argumento de uma possível rebelião interna por parte dos armênios. Mas o pior ainda estava por vir. A situação econômica do Império Otomano estava insustentável. Segundo Loureiro (2015, p. 5), a dívida externa alcançava números alarmantes. É neste contexto que um grupo de jovens, que haviam sido educados no ocidente e, assim, postos em contato com ideais liberais e positivistas, passa a questionar a política do sultão. Aliados a um grupo de também jovens membros do exército, formam então o Comitê União e Progresso, mais conhecido pela alcunha de Jovens Turcos. Entusiastas de uma política inclusiva, o Comitê ganhou a simpatia e o apoio das minorias ameaçadas pelo sultanato, principalmente no que se refere aos armênios. Após uma série de acontecimentos que irá culminar com o exílio do então líder Abdul-Hamid II, os Jovens Turcos assumem o controle do Império Otomano. Conforme Loureiro (2015, p. 6), os armênios comemoraram essa vitória, esperançosos com o discurso inclusivo proferido pelo Comitê. Mas na prática, a situação armênia não sofreu alterações significativas. A falta de fiscalização governamental contribuiu para que os ataques e violências sofridos pelos armênios, habitantes de territórios distantes do centro, persistissem. Em 1909, o assassinato de dois turcos por um armênio desencadeia uma onda de violência, amparada por agentes estatais otomanos. O discurso de inclusão otomana propagado pelo Comitê rapidamente converte-se em um discurso de exclusão, anticristão e antiarmênio. De acordo com Loureiro (2015, p. 7): 46 1909 constitui o elo genocida entre os anos de 1890 e 1915, elo esse que nos permite concluir que os planos de expurgo do elemento armênio de dentro do Império Otomano nunca deixaram de existir na cúpula dos Jovens Turcos. A aniquilação dos armênios sempre esteve em pauta, esperando apenas o momento ideal para tomar formas de solução final. De acordo com Ternon (1996, p. 190-191), a política nacionalista ganha força a partir de 1910, ano da derrota otomana na Guerra dos Balcãs. É nesta época que o Império perderá 25% de seu território, ação apoiada pelo Império Russo. Cumpre destacar que a Rússia gozava de certa influência nos territórios habitados por armênios, o que só fazia aumentar os temores do governo em relação à ocorrência de uma revolta armênia que esfacelasse ainda mais o Império Otomano. Segundo Loureiro (2015, p. 8) Como uma entidade paraestatal, o Comitê União e Progresso criou em sua estrutura grandes objetivos a serem alcançados a qualquer preço. A pauta panturquista estava na ordem do dia. Com esse discurso, a legitimação do genocídio armênio seria feita assim que os Jovens Turcos elegessem os armênios como o mal a ser extirpado do império. A partir daí, coube ao Comitê montar o aparelho genocida utilizando o controle do Estado. Nomeando secretários, delegados, governadores e inspetores, os arquitetos do genocídio conseguiram ter capilaridade em todo o império para atingir os seus fins. Com o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, surge a oportunidade perfeita para que os otomanos acertassem as contas com as nações vencedoras da Guerra dos Balcãs. Para Balakian (2003, p. 166), o estado de guerra também permitiu que todo o ódio otomano contra o Império Russo viesse à tona, pois ambos tomaram lados opostos na contenda; além disso, o sentimento de perigo iminente e aversão aos estrangeiros, também permitirá que o genocídio armênio não apenas aconteça, mas que posteriormente seja justificado como uma triste consequência da guerra. Os dois principais motivos que embasaram os massacres contra a população armênia são apontados por Loureiro (2015, p. 8): (a) uma possível revolta separatista; e (b) O suposto apoio que este povo estaria oferecendo aos russos. Para o referido Autor, ambos os motivos são infundados. Todavia, Almeida (2013, p. 73-75) cita trechos de documentos que afirmam a relação entre armênios e russos, concluindo que “É fato que muitos armênios desertaram das fileiras otomanas e fugiram para o front russo. Com certeza o início da guerra foi uma excelente oportunidade, tanto para revolucionários armênios como para os adeptos da turquificação completa do país”. 47 É no dia 24 de abril de 1915, que se tem o início do genocídio armênio. Conforme Loureiro (2015, p. 8) cerca de 250 armênios, habitantes da capital Constantinopla, são presos. Eram intelectuais, líderes das comunidades, e suas mortes serviriam como uma forma de silenciar os armênios. O governo ordenou, ainda, o desarmamento de todo cidadão armênio, e os realocou em campos de trabalho forçado, sendo que os que não pereciam frente as condições do labor, eram assassinados. Loureiro (2015, p. 9) complementa: A chegada dos grupos armados nas cidades e vilas era apenas o primeiro passo. A partir daí, os armênios eram destituídos de suas casas e posses, organizados em colunas que marchariam até “colônias agrícolas”, afastadas das áreas que estavam ameaçadas por causa da Guerra. Obviamente, tais colônias não existiam e eram apenas um eufemismo para grandes campos de concentrações de deportados, como o da cidade de Aleppo. Depois de reunidos na cidade, os armênios marchavam rumo ao deserto de Der-el-Zor, ou seja, rumo à morte. O fato é que a maioria dos armênios deportados sequer chegava aos campos de refugiados. As colunas de mulheres, crianças e idosos iam se desintegrando pelo caminho, com muitos de seus componentes morrendo por inanição e maus-tratos. Muitas mulheres e crianças eram raptadas e levadas para haréns, como parte do espólio conquistado. Outras tantas eram estupradas e mortas. Em algumas regiões, a deportação dos armênios era feita por ferrovias, inaugurando assim o uso das estradas de ferro para transportar a população civil com propósitos genocidas. Conforme Lara e Kahwage (2015, p. 61), “Entre 1918 e 1920, constituiuse a República Armênia, formalmente independente e incorporada à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, encerrando-se a questão armênia”. Não concordamos com as autoras de que a questão armênia esteja, de forma alguma, encerrada. Juridicamente nenhuma medida foi tomada contra a Turquia, sucessora do Império Otomano, em virtude das particularidades inerentes ao Direito Internacional: não há como impor pena a um Estado nacional soberano, a menos que esta seja sua vontade. Ademais, a comunidade internacional como um todo mantem-se inerte, não demonstrando interesse na condenação da Turquia pelos graves crimes cometidos contra a diversidade humana, sendo apontada por Casella (2015, p. 581) como corresponsável pelo genocídio armênio: Há também a responsabilidade indireta, esta decorrente de conivência e de omissão, cometida pelas demais potências da época: falhou fragorosamente o sistema então vigente, primeiro, em prevenir, e caso vencida esta barreira, depois, em coibir e pôr cobro ao crime cometido em escala que supera mais de um milhão e meio de vítimas, de população que vivia há séculos integrada em sociedade, majoritariamente turca e muçulmana, mas tinha a sua identidade como povo, como cultura, como língua e como religião, e forma perseguidos 48 e mortos, enquanto tais: em decorrência de sua confissão cristã e sua condição de integrantes do grupo étnico, cultural e linguístico armênio. Tal fato, porém, não impede de caracterizarmos as ações do Império Otomano como crime de genocídio, nos termos do artigo segundo da Convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio. Neste sentido, importante destacar a atuação do Tribunal Permanente dos Povos que mesmo sem força coercitiva e atuando como um tribunal de opinião, sem concentração de poderes políticos e/ou jurídicos, debruçou-se sobre a causa armênia em 1984, reconhecendo a responsabilidade dos Jovens Turcos e da Turquia pelo genocídio armênio. Conforme Lara e Kahwage (2015, p. 62-63) O veredito teve como base a Declaração Universal dos Direitos dos Povos (Argel, 4 de julho de 1976), que entre outras coisas prevê que: Artigo 1 - Todo povo tem direito à existência. Artigo 2 - Todo povo tem direito ao respeito por sua identidade nacional e cultural. Artigo 3 - Todo povo tem direito de conservar a posse pacífica do seu território e de retornar a ele em caso de expulsão. Artigo 4 - Nenhuma pessoa pode ser submetida, por causa de sua identidade nacional ou cultural, ao massacre, à tortura, à perseguição, à deportação, à expulsão ou a condições de vida que possam comprometer a identidade ou à integridade do povo ao qual pertence. No veredito do Tribunal Permanente dos Povos, consta que o crime de genocídio pode ser reconhecido mesmo em relação a fatos anteriores à Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948, uma vez que o massacre de um grupo étnico não pode ser tolerado legalmente, ainda que inexistam leis escritas que o proíba explicitamente. [...] Ainda, concluiu-se no veredito que os armênios constituem um grupo nacional com direito à autodeterminação, tendo restado comprovada a sujeição deste grupo a condições que irão conduzi-lo à morte. Desta forma, confirmou-se a intenção de destruir o grupo, que é a principal característica do genocídio, e foram afastadas todas as alegações do governo turco para justificar o massacre Todavia, conforme salientado anteriormente, o Tribunal Permanente dos Povos não possui poder coercitivo, tratando-se de um simples tribunal de opinião, que, conforme Moita (2015, p. 39), são: [...] iniciativas de cidadãos, sem qualquer mandato oficial, [que] têm assumido a forma de processo judicial para enunciarem pronunciamentos relativos a questões onde estão em causa direitos humanos fundamentais. Eles constituem assim uma espécie de jurisdições internacionais informais, oriundas da sociedade civil e não dos poderes estabelecidos, desprovidas de força coercitiva, mas ambicionando sensibilizar a opinião internacional e os poderes públicos graças ao valor moral das suas sentenças, aliás fundadas elas próprias no direito internacional vigente. Desta forma, a intenção maior é pressionar e sensibilizar os agentes internacionais para que medidas jurídicas efetivas sejam tomadas. Tal 49 atuação assemelha-se ao que a banda System of a Down tem feito nos últimos anos: conquistar a atenção de cidadãos diversos para uma causa cujo Direito por si só se mostra incapaz de resolver, principalmente por razões políticas. Neste sentido, importante ressaltar que essas violações jurídicas, acessíveis a nós por meio das frias letras gravadas em livros e documentos, foram contadas e recontadas diversas vezes aos integrantes da banda System of a Down, por antepassados que vivenciaram na pele este massacre. Em entrevista à revista Rolling Stone, o vocalista Serj Tankian afirma: [Meus avós] tinham essas incríveis e assombráveis histórias de sua sobrevivência. Ambos eram crianças, crianças pequenas. Minha avó e a avó dela foram salvos por um prefeito turco em uma pequena cidade, quando eles estavam marchando pela Turquia em direção à Síria, para Deir Ezzor, no deserto. Eles foram salvos dessa forma. Meu avô perdeu a maior parte de sua família no massacre. Ele acabou indo para um orfanato diferente e foi para o Líbano, em termos de encontrar uma casa lá e crescer por lá. Histórias realmente comoventes. Quando meu avô ainda estava vivo, colocamos ele na frente das câmeras para este filme que nós fizemos parte, chamado ‘Screamers’. Foi uma boa narração parcial de sua história, o que foi muito gratificante para mim. Temos gravada uma fita de 16 horas dessas histórias importantes que estão desaparecendo porque os sobreviventes foram quase todos embora18. A militância do System of a Down assume um papel de suma importância no sentido de que não apenas dissemina o assunto e o torna acessível às massas, mas procura preservar a memória do ocorrido, que aos poucos se esvai. Isso porque a Turquia, sucessora do antigo Império Otomano, nega o ocorrido, tendo apoio significativo da comunidade internacional. O fim da Guerra, em 1918, não trouxe fim às deportações de armênios, que só irá cessar em 1923, quando da criação da República da Turquia. Estima-se que entre 600 mil (segundo os turcos) e 1,5 milhões (segundo os armênios) de armênios foram mortos. Apesar disso, a comunidade internacional guardará um silêncio ensurdecedor sobre o caso. Conforme Almeida (2013, p. 121), com o fim do império e a emergência de uma república, a história turca foi recontada, de forma a eliminar vestígios não louváveis de seu passado. Apesar da luta de armênios e ativistas para que tais eventos sejam esclarecidos e responsáveis sejam culpados, nações como os Estados Unidos19 e Inglaterra desconversam sobre o assunto. Na Turquia, a simples menção ao genocídio armênio pode configurar crime20. Assim, o não reconhecimento do genocídio não apenas contribui para que o assunto caia no esquecimento, mas impossibilita a punição dos 50 possíveis responsáveis e também abre brechas para que extermínios desta magnitude ocorram novamente – como de fato ocorreram e ocorrem. Desta forma, procuraremos, no próximo tópico, demonstrar como solos de guitarra e gritos exaltados em refrãos podem auxiliar na conscientização e na visibilidade de vozes silenciadas e despidas de qualquer direito, sobretudo humano, como no caso do massacre armênio pelo Império Otomano. 4 O SYSTEM OF A DOWN E A QUESTÃO ARMÊNIA Em um show de 2005, o guitarrista Daron Malakian diz as seguintes palavras para um público enlouquecido: “Escutem! Essa banda não começou a mudar o mundo, essa banda não começou a mudar sua mentalidade. Essa banda só começou a fazer você questionar!21”. Sem dúvidas concordamos com tais palavras. É preciso se ter em mente que o rock não tem o mágico poder de alterar a realidade social em que vivemos, ou de por si só tonar as pessoas mais críticas. Mas o que ele pode fazer é lançar perguntas, descortinar assuntos intencionalmente encobertos ou evitados e assim contribuir para uma conscientização e mobilização para mudanças sociais. Neste sentido, necessário destacar que desde a gravação de seus primeiros álbuns a banda System of a Down apresenta em suas músicas ferrenhas críticas sociais. Em seu primeiro disco de estúdio, lançado em 1998 e nomeado System of a Down, pode-se encontrar a música P.L.U.C.K., que conforme Neil (2016, p. 16) “is referring to the American government’s refusal to officially acknowledge the Armenian Genocide of 191522”. O título da canção é uma sigla das palavras em inglês politically lying unholy cowardly killers23. O primeiro refrão da música diz: Elimination, Elimination, Elimination Die, Why, Walk Down, Walk Down A whole race Genocide, Taken away all of our pride, A whole race Genocide, Taken away, watch them all fall down24. 51 Trata-se de uma referência expressa ao genocídio armênio, e ao possível sentimento desencadeado na nação armênia pelo evento: a perca do orgulho de pertença a uma determinada etnia. Na segunda estrofe, a banda lança possíveis forma de se reparar o ocorrido: Revolution, the only solution, The armed response of an entire nation, Revolution, the only solution, We’ve taken all your shit, now it’s time for restitution. Recognition, Restoration, Reparation, Recognition, Restoration, Reparation, Watch them all fall down25. Além de convocar a nação armênia para uma revolução armada, em busca de algum tipo de reparação, a banda também elenca uma outra possibilidade: o reconhecimento. Reconhecimento, restauração e reparação: reconhecer o genocídio armênio como tal, seria uma importante maneira de reparar os danos e perdas sofridos por este povo. A última estrofe salienta as consequências das ações do Império Otomano: The plan was mastered and called Genocide (Never want to see you around) Took all the children and then we died, (Never want to see you around) The few that remained were never found, (Never want to see you around) All in a system of Down Down Down Down Walk Down...26 Como explicado anteriormente, os turcos já buscavam uma justificativa para expulsar os armênios de suas fronteiras geográficas – por isso a 52 referência a um plano, foi uma ação premeditada e não uma simples consequência da guerra. As crianças extraditadas e os adultos assassinatos também estão presentes na estrofe, sendo que a repulsa do governo turco à presença dos armênios é salientada na frase que se repete, nunca quero ver você por perto. No que se refere a performatividade desta canção, em um show comemorativo dos noventa anos do genocídio em 2005 (terceira edição do show beneficente denominado Souls) a canção é introduzida por uma breve fala do vocalista Serj Tankian: “Essa noite não é apenas o aniversário de 90 anos do genocídio armênio. É também o momento de derrubar os muros de hipocrisia no mundo com todos os genocídios, conhecidos e desconhecidos, aceitos ou negados. É hora de fazer o governo turco pagar por seus crimes!27”. Dez anos depois, em um show realizado na Armênia por ocasião do centenário do genocídio (cuja turnê foi denominada Wake up the souls), a mesma canção é precedida por um vídeo28 sobre a Segunda Guerra Mundial veiculado nos telões, no qual é possível ver uma representação de Hitler indagando “Quem agora se lembra dos armênios?”, disseminando a ideia de que holocausto judeu foi inspirado no genocídio armênio e que a falta de punição deste crime influencia os massacres ocorridos, por exemplo, em Ruanda e no Camboja, até os dias atuais. Ambas as introduções criadas para a música, reforçam seu caráter político de conscientização, crítica e disseminação de informações até então negligenciadas pelo grande público. A música P.L.U.C.K., assim, torna-se uma verdadeira porta voz das angústias e anseios de um povo que até hoje sente-se silenciado e injustiçado. Em 2000, a banda irá realizar a primeira edição do show beneficente Souls, dedicado às vítimas do genocídio armênio. Em um vídeo de divulgação do evento, Tankian menciona o fato de que um grande número de jovens americanos começa a escrever para a banda a respeito do genocídio, o que o leva a crer que graças ao engajamento artístico, o assunto passa a ganhar visibilidade29. O evento ganhará uma segunda versão em 2004 e uma terceira em 2005. É possível ver a mobilização política tanto da banda quanto de seus fãs nesta terceira edição, em trechos reproduzidos no documentário Screamers. No início do show, são exibidas imagens e narrações que explicam o que foi o genocídio armênio e é nesta 53 ocasião que Tankian discursa na introdução da música P.L.U.C.K., como mencionado anteriormente. Ainda no documentário, fora dos palcos (07:31) podemos ver alguém assinando uma série de documentos, enquanto a voz de Tankian diz “São cartas ao congresso para que reconheçam o genocídio”. Na sequência, uma série de pessoas, ativistas e fãs não identificados, deixam seus depoimentos, que merecem ser transcritos na íntegra: [Ativista 1]: A música atrai. E uma vez que acontece, [os fãs] são introduzidos para temas e questões políticas. [Ativista 2]: Eles [System of a Down] nos ajudam de uma forma inimaginável. Eles atingem um público que nunca poderíamos atingir. [Fã 1]: Hoje se completam 90 anos do genocídio armênio. System of a Down tem uma obrigação não apenas como seres humanos, mas também como armênios, de mostrar quem são os armênios. [Fã 2]: Nós não aprendemos essas coisas na escola. Precisamos de gente como o System of a Down para mostrar isso ao mundo. Acho que fazem um bom trabalho. Sem eles, ninguém saberia nada sobre isso. [Fã 3]: Sou turco. System foi quem me informou, pois não está nos livros de história e eu acho que deveria estar. Deveriam ensinar isso nas escolas e reconhecer isso como um genocídio. Acham uma besteira. Mas eu não acho. O governo turco nega, diz que não aconteceu. Não são melhores que Hitler. [Fã 4]: Eu sou judeu e eu digo aos meus filhos o que aconteceu na segunda guerra mundial. Hitler aprendeu com os turcos. Deveriam ensinar isso nas escolas. Ou vai voltar a acontecer o que aconteceu 4 ou 5 anos atrás, mais genocídio. [Fã 5]: Noventa anos passam num piscar de olhos. E não podemos nunca esquecer. Três pontos merecem ser analisados com maior atenção. Primeiramente, o fato de ativistas que lutam pela causa armênia ressaltarem a importância da banda reforça a nossa hipótese de que o rock, como produto midiático veiculado para as massas tem a capacidade de atingir um grande número de pessoas com suas mensagens, discursos e ideologias. É preciso ter em mente que o público alvo deste ritmo é a geração mais jovem, que segundo relato do Ativista 2, dificilmente seria atingida de outra forma. Desta forma, a banda contribui para que o tema genocídio armênio adquira certa visibilidade entre jovens de todas as nacionalidades, não apenas armênios, 54 uma vez que suas músicas são veiculadas por todo o mundo, inclusive no Brasil. Em segundo lugar, três dos cinco fãs entrevistados afirmam que o tema não é abordado nas escolas, o que explicaria o desconhecimento do assunto por grande parte da população. Um deles é turco, o que explica sua fala, já que a Turquia não apenas nega a ocorrência de um genocídio como também pune quem fala sobre o assunto, como mencionado anteriormente. Outros dois parecem ser estadunidenses, já que o show seria realizado nos EUA. Todavia, verificar se e como o assunto é abordado no ensino americano, extrapola em muito os objetivos deste trabalho. Por fim, merece destaque o fato de que um dos entrevistados é um cidadão turco, o que só corrobora a abrangência mundial da banda e de seus discursos veiculados pelas mídias sonoras. Ainda sobre o impacto político da banda na geração mais jovens, ouvintes de suas músicas, podemos citar a fala de Aram Hamparian, o diretor executivo do Comitê armênio dos EUA (Armenian National Committee of America - ANCA) registrada no documentário Screamers (13:58): Mais pessoas sabem do genocídio por meio do System of a Down do que em qualquer outra campanha. Eles vêm através da música, da arte, com uma mensagem persuasiva e isso é uma questão importante, porque o genocídio não é uma coisa do passado, mas sim do futuro. O depoimento de alguns fãs ingleses, entrevistados no aludido documentário (22:52), também corroboram essa concepção: [Fã 1]: Nós damos nossa opinião. A expressamos na política, mas eles fazem música e mostram ao mundo. São uma fonte de inspiração para as pessoas, capaz de dizer que nós queremos fazer alguma coisa. [Fã 2]: Muitas pessoas da nossa idade não entendem sobre política, só gostam de se divertir. Eu acho que é melhor. [Fã 3]: Eu gosto do tema de B.Y.O.B. Causa uma grande impressão. Eu sou anti-Bush, antiBlair, genuinamente. Eu posso entender que eles são contra a guerra. É indiscutível que são contrários à guerra. Importante destacar aqui o comentário do Fã 2, que assume que as pessoas de sua faixa etária são desinteressadas em política e preferem a diversão, como ele próprio. Tal depoimento é crucial para compreendermos que o simples fato de uma banda de rock utilizar suas músicas como 55 ferramentas de protesto não irá mudar o mundo ou a mentalidade das pessoas, como concordamos com Malakian no início desta seção. Obviamente não são todos os fãs que serão atingidos por estas mensagens e que despertarão algum interesse sobre o tema, mas o simples fato de já terem ouvido falar em genocídio armênio por meio do System of a Down nos parece algo importante, já que se trata de um assunto raramente abordado nas grandes mídias. Mesmo que não concorde com a militância da banda ou que não ache o tema atraente, o Fã 2 já ouviu falar sobre tal evento histórico, o que para nós parece melhor do que jamais ter contato com a temática. Sobre a questão do ensino, na fila deste mesmo show, um cidadão identificado como Greg Topalian aparece, distribuindo alguns panfletos, e explica: São panfletos que as pessoas podem dar a seus professores. Os professores podem obter materiais educativos sobre o genocídio. O governo britânico não o reconhece. Eles gostam de usar a base aérea de Incirlik, se a grã-bretanha reconhecer, a Turquia não permitirá que use a base. É novamente levantada a questão do genocídio armênio estar fora dos parâmetros curriculares de ensino, desta vez na Inglaterra. Trata-se uma informação interessante, mas averiguar sua veracidade, assim como no caso americano, ultrapassa nossos objetivos. Podemos, a partir dos dados levantados e analisados, responder então às nossas questões. A música, aqui representada pelo rock, não apenas é capaz de servir como porta-voz a questões nem sempre presentes nas grandes pautas do dia, como também é capaz de produzir alguns efeitos práticos. No caso da banda System of a Down, esse efeito é a conscientização de toda uma geração jovem sobre um evento histórico ocorrido há 101 anos e que até os dias atuais encontra-se sem uma resposta jurídica. Neste sentido, compreendemos que a música do System of a Down compõe um processo significativo de reconhecimento e efetivação de direitos humanos, pois por meio de uma dialética social é capaz de transmitir mensagens e exigir posicionamentos. A empreitada em busca de uma dignidade violada, no caso dos armênios, ganha mais adeptos e mais peso à medida em que sua causa é veiculada por diversas mídias para diversos ouvintes. Assim, ainda que não haja uma resposta jurídica 56 imediata, é preciso lembrar que os direitos humanos são um processo, formado, também, pela dinâmica das relações sociais – incluindo aqui, as críticas e protestos presentes na música. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme a fala de Samantha Power, acadêmica, jornalista e diplomata, no documentário Screamers (1:15:10) “As únicas vezes que as questões humanitárias captaram a atenção da política, foram quando houveram grande pressão popular”. Desta forma, o fato da banda americana System of a Down utilizar seu lugar de destaque para disseminar informações sobre o genocídio armênio, pode ser compreendido como uma das formas de incitar os populares a pressionar os governantes para a efetivação de uma justiça até então negada aos armênios. Por meio de suas canções, seus shows e seus discursos, o System of a Down tem conscientizado um número cada vez maior de pessoas sobre a questão armênia: eis o efeito prático de suas ações. Além disso, eles dialogam constantemente com líderes políticos, como político Dennis Hastert que prometeu apoiar a pauta, mudando subitamente de ideia posteriormente30 e o presidente da Armênia Serzh Sargsyan31, chegando inclusive a pedir ao presidente americano Barack Obama para que reconhecesse o genocídio32. Assim, ao superar a visão simplista de o direito e os direitos humanos correspondem única e exclusivamente às leis positivadas, podemos perceber como o elemento social pode influenciar e ser influenciado pelo mundo jurídico. A recusa da comunidade internacional em tomar medidas jurídicas contra o genocídio armênio desencadeia a crítica e a revolta por parte de pessoas como os integrantes do System of a Down, que por meio de suas músicas e ações procura exercer algum tipo de influência para que a situação seja modificada – seja disseminando o ocorrido, seja exercendo algum tipo de pressão sobre os governantes. O fato do assunto genocídio armênio ganhar espaço e ser conhecidas e debatidas por mais pessoas pode contribuir para a conscientização dos particulares que, se articulados, podem exigir um tratamento justo por parte dos governos – especialmente no que se refere ao genocídio armênio. O rock da banda System of a Down, assim, mostra-se assim como um grito de protesto, barulhento e 57 ensurdecedor, que vem ecoando e ganhando força à medida que é consumido. Se medidas jurídicas serão tomadas, só o tempo poderá dizer; mas o assunto já circula, e romper mordaças, acreditamos, é o primeiro passo para cobrar atitudes. 6 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Lívia Cristina Sanchez de. Armênios e Gregos otomanos: a polêmica de um genocídio. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2013. Disponível em: <http://migre.me/u2gbw>. Acesso em 06/06/2016. BALAKIAN, Peter. The Burning Tigris: The Armenian Genocide and America´s Response. 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Paris: Seuil, 1996. 58 O CONTROLE DIFUSO DA CONVENCIONALIDADE DAS LEIS COMO MECANISMO PROCESSUAL DE PROTEÇÃO E EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS Leandro Caletti33* RESUMO o estudo que ora se apresenta tem por escopo examinar o controle difuso da convencionalidade da produção normativa infraconstitucional interna enquanto mecanismo processual para a otimização e a efetividade dos Direitos Humanos de matriz internacional, notadamente no fomento da aproximação destes últimos com novos atores. Como consequência da porosidade que decorre do entrelaçamento entre ordenamento interno e internacional, emerge a necessidade de um juízo de compatibilidade vertical entre leis domésticas e normas de tratados ratificados pela República brasileira, de modo a repelir a produção interna predatória de Direitos Humanos de matriz internacional. Essa aferição concretiza os Direitos Humanos e os interconecta com o processo, permitindo, para além disso, a aproximação dos primeiros com novos atores. A pesquisa se vale do método hipotético dedutivo e da pesquisa bibliográfica como técnica. Palavras-chave: Controle de convencionalidade. Direitos Humanos. Processo. 1 INTRODUÇÃO Este ensaio tenciona qualificar o controle difuso da convencionalidade da produção normativa infraconstitucional doméstica como mecanismo processual para a otimização e a efetividade34 dos Direitos Humanos de matriz internacional. Para tanto, num primeiro momento, se examina a porosidade do ordenamento constitucional brasileiro às normas de matriz internacional que versam Direitos Humanos, notadamente tendo-se em mira os dispositivos constitucionais de abertura. Pretende-se demonstrar, aqui, a fertilidade do terreno para a admissão da eficácia de normas internacionais 59 de Direitos Humanos nas relações jurídicas domésticas concretas, através do exame difuso da convencionalidade. Por derradeiro, na segunda seção, esmiúça-se o controle difuso da convencionalidade, demarcando seu histórico de nascimento e aparição na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e afirmando a aproximação desses últimos com atores até então impensados. 2 A POROSIDADE DO ORDENAMENTO INTERNO AO INTERNACIONAL Com o advento da Constituição Federal de 1988, abriu-se o ordenamento interno ao respeito aos Direitos Humanos, notadamente através da adoção, no inciso II do artigo 4º, do “princípio da prevalência dos direitos humanos” como objetivo da República. Esse dispositivo constitucional representou o ressurgimento do Brasil no cenário de direito internacional, do qual estivera ausente pelos vinte e um anos de período ditatorial de exceção. A par de uma premissa louvável, tal norma se consubstanciou em verdadeira diretriz de atuação para o Estado brasileiro na ordem internacional, todavia, não apenas na participação elaborativa e deliberativa de normas convencionais protetivas dos Direitos Humanos (relações entre Estados), mas também – e principalmente – na sujeição de seus comportamentos ao regramento convencional a que se obrigou voluntariamente. Em paralelo, mas com imbricação clara, erigiu o legislador constituinte a cláusula de abertura material do parágrafo 2º do artigo 5º, pela qual o catálogo de direitos fundamentais não se esgota no texto constitucional, sendo, ao revés, receptivo das normas de matriz internacional oriundas de tratados ratificados pela República brasileira. Abriu-se, assim, o direito constitucional positivo brasileiro a uma fundamentalidade material assim retratada por Sarlet (2012, p. 78-79): Inspirada na IX Emenda da Constituição dos EUA e tendo, por sua vez, posteriormente influenciado outras ordens constitucionais (de modo especial a Constituição portuguesa de 1911 [art. 4º]), a citada norma traduz o entendimento de que, para além do conceito formal de Constituição (e de direitos fundamentais), há um conceito material, no sentido de existirem direitos que, por sua substância, pertencem ao corpo fundamental da Constituição de um Estado, mesmo não constando no catálogo. 60 De efeito, essa porosidade do ordenamento interno ao internacional traz consequências de duas ordens: uma, no âmbito da titularidade de novos direitos fundamentais (de índole material), e, outra, na compatibilidade da produção normativa doméstica com as normas de matriz internacional ratificadas. No tocante à primeira, leciona Cançado Trindade (1993, p. 53): Com a interação entre o Direito Internacional e o Direito interno, os grandes beneficiários são as pessoas protegidas. [...] No presente contexto, o Direito Internacional e o Direito interno interagem e se auxiliam mutuamente no processo de expansão e fortalecimento do direito de proteção do ser humano. Referentemente à segunda ordem de consequências, é preciso perquirir por como se fixou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no tema da hierarquia das normas de matriz internacional ratificadas, depois de anos de discussões entre monismo e dualismo35. No Supremo Tribunal Federal, desde o julgamento do recurso extraordinário n. 80.004, em 1977, vigorou o entendimento da paridade entre normas oriundas de tratados internacionais – de que natureza fossem – e a legislação ordinária. Eventual dissenso, nesse cenário, era resolvido pelos critérios ordinários de solução de antinomia de regras (cronológico, especialidade e hierárquico), em se tratando de incompatibilidade com a legislação ordinária, e a absoluta supremacia das normas constitucionais, nas hipóteses de confrontos com o texto constitucional. A partir, todavia, do julgamento do recurso extraordinário n. 466.343, ocorrido em 3 de dezembro de 2008, o Supremo Tribunal Federal uniformizou interpretação segundo a qual as normas de matriz internacional atinentes a Direitos Humanos gozam de supralegalidade em face da legislação ordinária nacional. Embora se tenha perdido a oportunidade de atribuir nível materialmente constitucional às normas de Direitos Humanos oriundas de tratados internacionais – posição que defendo de longa data36 – a posição vencedora no julgamento – supralegalidade –, malgrado progressiva, acabou conduzindo a uma impropriedade de alta indagação. Ela fez nascer, no ordenamento, uma duplicidade de regimes jurídicos impertinente para o atual sistema de proteção dos Direitos Humanos, uma vez que erigiu “categorias” de tratados que têm o mesmo fundamento jurídico (conforme 61 ingressados a partir dos mecanismos do parágrafo 3º [nível constitucional] ou do parágrafo 2º [nível supralegal] do artigo 5º da Constituição Federal). Tal “novidade” redundou num obliterado tratamento de instrumentos iguais por meio de modos totalmente distintos. Mais: ao criar uma categoria supralegal de normas, por via oblíqua, relega essas normas a um plano de paralegalidade, dando a entender que os tratados de Direitos Humanos insertos nessa condição encontram-se apartados do arcabouço jurídico aplicável. Ainda assim, a partir da conclusão do julgamento do recurso extraordinário n. 466.343, se verifica uma nova divisão na pirâmide normativa clássica, localizada entre a base (legislação ordinária) e o topo (Constituição) e representada pelas normas oriundas de tratados internacionais inerentes a Direitos Humanos. Importa referir que, no tocante aos tratados de matéria ordinária ou comum, a supralegalidade emerge diretamente do artigo 27 da Convenção de Viena, internalizada através do Decreto n. 7.030/0937. Essa porosidade do ordenamento interno ao internacional não é, todavia, reflexo apenas da abertura material constitucional, que revela maturidade democrática, mas também da irreversibilidade de fenômenos hodiernos como como a Globalização e o Transnacionalismo. A primeira, segundo Arnaud (2006, p. 18), é um processo considerado inelutável, em marcha em direção à “sociedade aberta” ou à “Grande Sociedade”, segundo se prefira a expressão de Popper ou a de Hayek, que tende a invadir todos os espaços da vida social, econômica e política, primeiramente, através dos modelos de produção que se modificam. Depois, se observa um deslocamento da atividade econômica, que facilita as transferências de uma parte das operações de trabalho de um país ao outro, contribuindo para a emergência de uma nova divisão internacional do trabalho. Os mercados de capitais desenvolvem-se, vinculados transversalmente às nações. Um fluxo livre de investimentos se produz sem levar em conta as fronteiras nacionais. Estas últimas revelam-se impotentes para represar os fluxos transnacionais de informação, para permitir a contenção dos riscos, para assegurar um controle absolutamente eficaz, mesmo por meio do direito. Outrora qualificadas de multinacionais, as empresas – hoje em dia transformadas em verdadeiras transnacionais – tornaram-se capazes de fazer explodir a sua produção, tendo o seu poder de 62 negociação e de regateamento reforçados ao nível de uma economia que se tornou planetária. Atores atualmente centrais das relações econômicas globais escapam largamente à regulação tanto nacional como internacional. Uma lex mercatoria instaura-se; regras que se reclamam internacional e asseguram a promoção do livre comércio são criadas no dia a dia, impondose aos direitos nacionais e erigindo-se em direito internacional do comércio. O Estado, que em princípio ainda detém o monopólio do direito, aparece como uma estrutura cada vez mais ausente quando tratamos das relações jurídicas de fato, que passam cada vez mais à margem do direito estatal. Já o Transnacionalismo, decorrência clara do fenômeno globalizatório, representa o novo contexto mundial, surgido a partir da intensificação das operações de natureza econômica-comercial no período do pós-guerra, caracterizado, especialmente, pela desterritorialização, pela expansão capitalista, pelo enfraquecimento da soberania e emergência de ordenamento jurídico gerado à margem do monopólio estatal. (GONÇALVES e STELZER, 2009, p. 1048-1097). Por essa razão, defende Staffen (2015, p. 39) estar em curso o momento de [...] mensurar a impotência do Estado com a alvorada de novas instituições transnacionais. Momento em que o Estado deixa a centralidade que ocupou com a modernidade e, com ele, o Direito moderno. Momento em que as grandes discussões jurídicas são travadas no anseio de estabelecer-se diretrizes para a equação Law-Body-Space. Demais disso, afigura-se oportuna a advertência de Varella (2012, p. 543), no sentido de que o Direito não é mais construção exclusiva do Estado, por meio dos mecanismos tradicionais, constitucionalmente estabelecidos; atores públicos e privados internos, com graus variáveis de cogência, Estados (internacionais), direitos nacionais (transnacionais) também produzem Direito no momento presente, disposições estas oponíveis, inclusive, conforme sua força, aos próprios Estados (tornando-se supranacional). Essas conexões, combinadas com o grande fluxo migratório, resulta na superação progressiva dos limites do Estado que, tornando porosa a Constituição do território (Zagrebelsky), isto é, desterritorializando a soberania, resulta na ciência de que cada Estado não dispõe mais daqueles instrumentos jurídicos que lhe permitiam, sozinho, atender as necessidades de seus cidadãos, seu bem-estar e sua saúde, ameaçados por alimentos transgênicos, vírus e radiação que vêm de longe. (REPOSO, 2009, p. 26, tradução livre). 63 Não é disparate observar, nesse contexto, o enfraquecimento dos protagonistas de outrora na arena nacional (Estado constitucional soberano), fraqueza essa aferível com mais clareza na consequente criação de vácuos de poder e de legitimidade, os quais passaram a ser preenchidos por instituições sui generis, híbridas, não raro privadas, que representam claros interesses transnacionais. É precisamente nessa toada a conclusão de Teubner (2004), no sentido de que a força motriz do Direito não se circunscreve aos anseios de limitação jurídica dos poderes domésticos absolutos, mas, sim, a regulação de relações policêntricas inerentes aos movimentos da Globalização, como a circulação de modelos, capitais, pessoas e instituições em espaços físicos e virtuais. Seja como for, o controle da convencionalidade – delimitado, neste ensaio, na forma difusa – se constitui em instrumento de anteparo e de concretude das normas de Direitos Humanos, desiderato esse cumprido, mormente, como escrito alhures, através do controle jurisdicional difuso, numa importante imbricação entre processo (procedimento) e Direitos Humanos. 3 O CONTROLE DIFUSO DE CONVENCIONALIDADE COMO FORMA DE OTIMIZAÇÃO E EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS Como alhures demarcado, os tratados de Direitos Humanos aprovados pelo quorum do parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição38 se constituem em paradigmas, inclusive, para o controle jurisdicional concentrado da convencionalidade. A forma difusa já estava autorizada desde a promulgação do texto constitucional de 1988 e, mesmo, a partir da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, consolidada no julgamento do já tão citado recurso extraordinário n. 466.343 (atribuição de supralegalidade às normas oriundas de tratados de Direitos Humanos em relação à legislação interna). A Emenda Constitucional 45/2004, que acrescentou o § 3º ao art. 5º da Constituição, trouxe a possibilidade de os tratados internacionais de direitos humanos serem aprovados com um quorum qualificado, a fim de passarem (desde que ratificados e em vigor no plano internacional) de um status materialmente constitucional para a condição (formal) de tratados “equivalentes às emendas constitucionais”. E tal acréscimo constitucional trouxe ao 64 direito brasileiro um novo tipo de controle à normatividade interna, até hoje desconhecido entre nós: o controle de convencionalidade das leis. Ora, à medida que os tratados de direitos humanos ou são materialmente constitucionais (art. 5º, § 2º) ou material e formalmente constitucionais (art. 5º, § 3º), é lícito entender que, para além do clássico “controle de constitucionalidade”, deve ainda existir (doravante) um “controle de convencionalidade” das leis, que é a compatibilização das normas de direito interno com os tratados de direitos humanos ratificados pelo governo e em vigor no país. (MAZZUOLI, 2011, p. 73). O controle da convencionalidade, entendido, na lavra de García Ramírez (2011, p. 127), como “una expresión o vertiente de la recepción nacional, sistemática y organizada del orden jurídico convencional internacional (o supranacional)”, aparece pela primeira vez na jurisprudência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Almonacid Arellano vs. Chile39, constituindo-se em ferramenta que permite aos Estados cumprir a obrigação de garantia dos Direitos Humanos no âmbito interno. Isso se concretiza na verificação da conformidade da produção normativa e das práticas nacionais com a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH)40, com outros instrumentos convencionais internacionais e com a jurisprudência principalmente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, obrigação essa que emerge diretamente do artigo 2º, combinado com o artigo 74.2 (depósito dos instrumentos de ratificação), ambos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos41. Demais disso, o predito encargo sofre o reforço do artigo 27 da Convenção de Viena, que preconiza a impossibilidade de determinado Estado se escudar em disposições do seu direito interno para afastar o cumprimento de obrigações convencionais internacionais. Seja como for, o que interessa ao deslinde da questão atinente ao manejo do controle difusa da convencionalidade como mecanismo processual de otimização e efetividade aos Direitos Humanos é que tribunais e juízes efetivamente realizem o cotejo de compatibilidade vertical do direito doméstico com o corpo de tratados que versem Direitos Humanos, seja pela via concentrada (Supremo Tribunal Federal e Tribunais de Justiça dos Estados), seja pela difusa (Poder Judiciário), no exercício da competência dos tratados, afastando a validade das normas internas incompatíveis. Releva chamar a atenção, no ponto, para uma conclusão advinda com o controle de convencionalidade: a compatibilidade da lei com o texto constitucional não lhe garante mais o atributo da validade no âmbito do ordenamento interno. Essa garantia só lhe é conferida depois do seu cotejo 65 com o corpo de tratados ratificados pelo país (controle de convencionalidade e de supralegalidade42). A negativa de vigência das normas de Direitos Humanos de matriz internacional ratificadas e justapostas à produção normativa interna – não realização do controle da convencionalidade – não apenas depõe a favor da inocuidade dos Direitos Humanos, como também assinala um pernicioso proceder da República na direção do cometimento de ilícitos internacionais. Em reiteradas oportunidades, a Corte Interamericana de Direitos Humanos recomendou que o Estado-parte em que verificada a incompatibilidade entre a norma de matriz internacional ratificada e a legislação interna realizasse o efetivo controle de convencionalidade43. Confira-se, no ponto, a título ilustrativo, o “Caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2015), no qual restou consignado que, embora reconhecendo que os juízes e tribunais estão obrigados a aplicar as disposições do ordenamento interno, a partir da firmatura de um tratado internacional como a Convenção Americana, os órgãos jurisdicionais, aparato do Estado que são, também estão submetidos a ela, o que os obriga a velar para que os efeitos da norma consensual não sejam atingidos predatoriamente pela legislação interna. Há, portanto, nítido mandamento para o exercício do controle de convencionalidade.44 Relativamente à República brasileira, colhe-se o seguinte julgado da Corte Interamericana de Direitos Humanos, retratado por Piovesan (2012, p. 96): Em 24 de novembro de 2010, no caso Gomes Lund e outros versus Brasil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil em virtude do desaparecimento de integrantes da guerrilha do Araguaia durante as operações militares ocorridas na década de 70. Realçou a corte que as disposições da lei de anistia de 1979 são manifestamente incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação de graves violações de direitos humanos nem para a identificação e punição dos responsáveis. Enfatizou que leis de anistia relativas a graves violações de direitos humanos são incompatíveis com o Direito Internacional e as obrigações jurídicas internacionais contraídas pelos Estados. Respaldou a sua argumentação em vasta e sólida jurisprudência produzida por órgãos das Nações Unidas e do sistema interamericano, destacando também decisões judiciais emblemáticas invalidando leis de anistia na Argentina, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Colômbia. 66 Antes de se prosseguir com o exame das medidas pontuais de controle difuso de convencionalidade que vêm emergindo pelos tribunais do país, se afigura pertinente uma pausa para lançar algumas linhas acerca do julgamento do “Caso Guerrilha do Araguaia”, acima citado, e a oportunidade que tivera, antes, o Supremo Tribunal Federal de controlar a convencionalidade. Malgrado, na espécie, se esteja a pisar no terreno do controle concentrado de convencionalidade, que não é objeto deste estudo, as considerações doravante articuladas contextualizam o cenário brasileiro do instituto, de inexorável olhar para a boa compreensão. A sentença cujo excerto foi colacionado restou proferida, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 24 de novembro de 2010. Sucede que, em 29 de abril daquele ano, o Supremo Tribunal Federal julgara improcedente a arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 153, que perseguia a declaração de não receptividade, pela Constituição Federal de 1988, do parágrafo 1º do artigo 1º da Lei n. 6.683, de 19 de dezembro de 1979 (Lei de Anistia). Equivale dizer que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, mesmo ciente do julgamento de receptividade da Lei de Anistia pelo Pretório Excelso, proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade, acabou admoestando a Corte constitucional brasileira, ao condenar a República no caso submetido à jurisdição interamericana. E isso não é sem razão, porquanto o julgamento do Supremo Tribunal Federal, excepcionada breve referência no voto do Ministro Celso de Mello, ignorou solenemente a jurisprudência maciça da Corte Interamericana de Direitos Humanos atinente à matéria (colacionada alhures). Mesmo os votos vencidos não contêm uma linha sequer dos julgados da Corte intercontinental. O problema central dessa omissão, entretanto, em nosso sentir, não repousa no fato de a Corte suprema de um país que aceitou se submeter à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos desconsiderar os julgados dessa última; reside, isto, sim, em encaminhar o Estado brasileiro a um sancionamento por ilícito internacional, circunstância que se verificou meses depois. A par, é claro, de, enquanto instância máxima do Poder Judiciário nacional, desencorajar as instâncias inferiores à prática – salutar e otimizadora de direitos – do controle de convencionalidade. É exatamente por essa razão que se afirmou, linhas atrás, que desconsiderar a negativa de 67 vigência das normas de Direitos Humanos de matriz internacional ratificadas e justapostas à produção normativa interna – não realização do controle de convencionalidade – não apenas depõe a favor da inocuidade dos Direitos Humanos, como também assinala um pernicioso proceder da República na direção do cometimento de ilícitos internacionais. Seja como for, esse precedente interamericano parece ter sido, internamente, a centelha de uma maior atenção, dos juízes e tribunais, para a necessidade de se controlar, além da constitucionalidade das normas internas, a sua compatibilidade vertical com os tratados de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil. Atendendo, pois, a essa exigência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos – que, no defender deste estudo, otimiza e confere exigibilidade aos Direitos Humanos em casos processuais práticos –, a atividade pretoriana nacional tem se dedicado a controlar, na via difusa, a convencionalidade da produção normativa doméstica com os tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Em 17 de março de 2015, proferindo sentença nos Autos n. 006737064.2012.8.24.0023, o magistrado Alexandre Morais da Rosa controlou a convencionalidade do artigo 331 do Código Penal em face da Declaração de Princípios Sobre a Liberdade de Expressão (inscrita no artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos), ponderando cumprir ao julgador afastar a aplicação de normas internas que se justaponham a tratados internacionais de Direitos Humanos, destacando, em especial, a Convenção Americana e a jurisprudência das instâncias judiciárias internacionais de âmbito americano e global. De efeito, no caso concreto colacionado, afastou-se a incidência do artigo 331 do Código Penal porque incompatível (norma existente, mas inválida) com a norma do artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Igual modo, em 17 de junho de 2015, o Tribunal Superior do Trabalho, no exame do recurso de revista n. TST-RR-804-12.2012.5.04.0292, controlou a convencionalidade do artigo 146 da Consolidação das Leis do Trabalho em face dos artigos 4º e 11 da Resolução n. 132 da Organização Internacional do Trabalho, retratando com perfeição em que medida o instrumento examinado neste artigo pode contribuir para a otimização e a exigibilidade dos Direitos Humanos de matriz internacional. Vale dizer, a 68 norma internacional confere ao trabalhador nacional o benefício de concessão de férias proporcionais, mesmo na hipótese de demissão por justa causa, o que era vedado pela legislação interna, inclusive com a reafirmação através de verbete sumular do tribunal superior. Ora, se circunstâncias que tais, possibilitadas unicamente pelo controle difuso de convencionalidade, não se constituem em mecanismo de otimização e exigibilidade dos Direitos Humanos, nada se constitui, visto que incidente norma de matriz internacional diretamente no afastamento da validade de norma interna, no âmago de relação processual de nítido caráter privado. Prima facie, àqueles que torcem o nariz para a modificação que as fontes do direito têm passado, pode ressoar até metafísica a aspiração de que normas de Direitos Humanos de matriz internacional, convencionais e, não raro, até oriundas mesmo de instituições que não possuem caráter de direito público externo, tenham eficácia e sejam efetivas a ponto de suplantar norma doméstica positiva e tida por recepcionada pela Constituição vigente. Todavia, na esteira da nova arquitetura das fontes do direito – que não mais se estratificam na forma piramidal, assemelhando-se, agora, a uma infinita rede ou teia, com interligações e ramais –, o ordenamento interno, que, outrora, se mostrava sólido, passou a ostentar uma descalcificação que dá azo à entrada e à efetividade das normas de estatura internacional. E tanto é assim, que o próprio Poder Executivo já se lança a, em condutas proativas e administrativas, controlar previamente a convencionalidade. A Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo, a título ilustrativo, editou, em 23 de abril de 2015, a Recomendação Conjunta Subdefensoria e CDH n. 02/2015, que orienta à sustentação da absolvição do agente nas hipóteses de incriminação pelo crime de desacato. E, convenha-se, não poderia ser de outra forma. Os tratados modernos sobre Direitos Humanos têm um caráter peculiar, cujos objeto e fim desaguam num ponto comum, a saber, a proteção dos direitos dos seres humanos, com independência da sua nacionalidade, tanto frente ao próprio Estado (consabidamente, o maior violador de Direitos Humanos), quanto aos restantes estados contratantes. Significa compreender que não se está a tratar de tratados multilaterais tradicionais, concluídos em função de uma relação recíproca de troca de direitos, para o benefício mútuo dos estados contratantes; ao contrário, quando os Estados aprovam um tratado sobre 69 Direitos Humanos, aceitam se submeter a um ordenamento sui generis, dentro do qual assumem diversas obrigações, não com os demais estados contratantes, mas, sim, com as pessoas internamente jurisdicionadas. O controle difuso de convencionalidade, nessa medida – como também o seria o concentrado, se admitido, por via das ações constitucionais –, afora se consubstanciar em anteparo às normas de Direitos Humanos (de tratados ratificados pelo Brasil e em vigor), se constitui em verdadeiro instrumento endoprocessual de otimização e exigibilidade desses últimos. Essa afirmação tem cabimento não apenas pela importância e pela pertinência teórica do exame de compatibilidade vertical da produção doméstica com o corpo de tratados, que desvela maturidade democrática institucional e credibilidade internacional, mas também e mormente por seu efeito prático e concreto na vida das pessoas. Noutras palavras, trata-se mesmo de concretizar a Constituição, através de sua interpretação no caso concreto, na lide posta, no bem da vida que é objeto daquela relação jurídica em específico e na influência direta que esse bem e o que o rodeia tem na vida das pessoas envolvidas. [...] é impensável uma interpretação da Constituição sem o cidadão ativo e sem as potências públicas mencionadas. Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta, ou até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição. (HÄBERLE, 1997, p. 14-15). Significa consolidar, como lido, a ideia de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição, como propugnado por Peter Häberle, pela qual o círculo de intérpretes da Lei Fundamental deve ser alargado para abarcar não apenas as autoridades públicas e as partes formais nos processos de controle de constitucionalidade, mas todos os cidadãos e grupos sociais que, de uma forma ou de outra, vivenciam a realidade constitucional num cenário multinível de proteção dos Direitos Humanos que se espraia sistema jurídico afora, inclusive com a circulação de modelos jurídicos no âmbito de um direito global, que, embora ainda não totalmente conhecido, entendido e explorado, se mostra um fato incontestável. Se, pois, a Constituição é um documento misterioso, como atesta John Paul Stevens, necessita-se abrir clareiras coerentes para sua interpretação e vivência. 70 Em complemento, faz-se necessário reconhecer a compulsoriedade de vivência humanista e constitucional pelos indivíduos num todo e não simplesmente como roteiro de práticas estatais. Não se duvida que os Direitos Humanos, a Constituição, assim como todo o ordenamento jurídico45, precisam ser incluídos nas práticas intersubjetivas dos indivíduos com espontaneidade. Somente quando se está inserido neste processo vigora o interesse na defesa das suas determinações. Em síntese, os Direitos Humanos não podem estar divorciados das rotinas mais “simples” da vida social. A concretização conjugada, assim, da Constituição e dos Direitos Humanos que a orientam e conformam (aberturas formal e material), numa imbricação necessária e sistemática por ela própria instituída, redunda na exigibilidade e na otimização de ambos. Satisfazem-se, assim, de forma prática, os de bens da vida das pessoas, numa aproximação salutar e necessária entre direito, processo (enquanto procedimento) e realidade. De igual sorte, conforme adverte Häberle (2001, p. 33), do ponto de vista jurídico, o povo (enquanto elemento humano do Estado) tem uma Constituição, mas isto não pode ser exauriente. É necessário que se avance para sendas mais abertas e se reconheça que a humanidade é parte da Constituição, seguindo, aliás, pertinente recomendação de Hermann Heller46. 4 NOVOS ATORES E NOVOS HORIZONTES PARA OS DIREITOS HUMANOS A concretização dos Direitos Humanos endoprocessualmente, na vida prática das relações jurídicas (um comportamento eleito por Cassese (2012) como embrionário dos Direitos Humanos no momento presente) acarreta, a tiracolo, em salutares aproximações que, há duas décadas, eram irrefletidas para os Direitos Humanos. Uma delas é a proximidade entre esses últimos e a iniciativa privada (sem perder de vista o sucesso já antigo do ombreamento com entidades da sociedade civil e organizações nãogovernamentais). Para Bloomer (2014, p. 120-121), [...] as empresas são atualmente alguns dos atores mais poderosos do mundo. Nossa economia em rápida globalização ao longo dos últimos trinta anos tem levado muitas corporações transnacionais a se tornarem entidades econômicas maiores do que Estados- 71 nações inteiros. Seu poder e sua riqueza as trouxeram cada vez mais para o centro da arena dos direitos humanos. Neste âmbito, essas empresas não conseguem escolher e selecionar, a partir de uma variedade, apenas questões com as quais elas se sentem confortáveis. Em muitos aspectos, o Estado permanece justamente como o portador do dever primário em relação aos direitos humanos, mas um número crescente de empresas nacionais e internacionais sabe que estão sendo cada vez mais responsabilizadas por seu desempenho em direitos humanos. Infelizmente essa prestação de contas ainda é cada vez mais exercida pelo tribunal da opinião pública, mais do que pelos tribunais de justiça. E tanto é assim que, desde 2011, foram estabelecidos os Princípios Orientadores das Nações Unidas para Empresas e Direitos Humanos (UNITED NATIONS, 2011), congregando normas voluntárias que envolvem deveres dos Estados e das empresas na proteção dos Direitos Humanos e o encargo mútuo de assegurar a existência de mecanismos judiciais e extrajudiciais de denúncia e de reparação. Meyersfeld e Kinley (2015, p. 205) vão mais longe, propugnando um interessante diálogo entre bancos e os Direitos Humanos: Uma avaliação de direitos humanos requer uma análise não apenas sobre o impacto financeiro de curto prazo do contrato, mas também sobre seu impacto ambiental, social e cultural a longo prazo. Embora isto possa ser contrário à tendência histórica de olhar para os lucros em curto prazo que serão obtidos por um projeto, esta abordagem dupla tem vantagens comerciais claras. Se é bem verdade que, pela influência que as empresas multinacionais possuem (a ponto, por exemplo, de direcionar decisões estatais), afastam com facilidade a responsabilidade por violações aos Direitos Humanos (porque a politização destes últimos também é uma realidade)47, noutro plano, se consegue, em rara oportunidade e ainda que incipiente, de efetivar os Direitos Humanos numa instância pré-violatória48. São reflexo dessa nova proximidade, por exemplo, as normas de compliance, que nasceram no âmbito corporativo como respeito a regras éticas de conduta nos negócios e se alargaram também para a esfera pública. Note-se, a tal título, o advento, em 2013, da Lei n. º 12.846/13, chamada de “Lei Anticorrupção”, a representar claro avanço na previsão da responsabilização objetiva, no âmbito civil e administrativo, de empresas que praticam atos lesivos contra a administração pública nacional ou estrangeira. Além de atender a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, a nova lei finalmente fecha uma lacuna no ordenamento jurídico do país ao tratar diretamente da conduta dos corruptores. 72 Noutro quadrante, se está ampliando os limites do dever de cuidado com os Direitos Humanos nas empresas que possuem subsidiárias. O Tribunal de Apelações da Inglaterra e do País de Gales tomou uma decisão importantíssima, segundo a qual as matrizes podem ser responsabilizadas pelas devidas implementação e observação dos parâmetros de comportamento estabelecidos por elas para suas subsidiárias (algo comum entre as multinacionais) nos casos das vítimas de sua negligência. Ainda que isso não seja seguido por todas as cortes nacionais, enquanto decisão paradigmática, terá uma influência considerável em outras instâncias. Em certo sentido, se especula que estes sejam passos bastante técnicos, mas de importância central. (LEADER, 2012, p. 42). Com efeito, se a criação de um Tribunal Internacional de Direitos Humanos49 ainda é utópica, cabe a esse mecanismo singelo – porém, não menos importantes –, prático e processualmente legítimo do controle difuso da convencionalidade das leis o encargo de, por ora, nas lides práticas do cotidiano, dar concretude e fazer efetivas as normas de Direitos Humanos de matriz internacional. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando se está a tratar de Direitos Humanos, se impõe reconhecer que os tratados multilaterais que os conduzem não são tradicionais, concluídos em função de uma relação recíproca de troca de direitos, para o benefício mútuo dos estados contratantes. De forma contrária, quando os Estados aprovam um tratado sobre Direitos Humanos, aceitam se submeter a um ordenamento sui generis, dentro do qual assumem diversas obrigações, não com os demais estados contratantes, mas, sim, com as pessoas internamente jurisdicionadas. O controle difuso da convencionalidade, nessa medida, afora se consubstanciar em anteparo às normas de Direitos Humanos (de tratados ratificados pelo Brasil e em vigor), se constitui em verdadeiro instrumento de otimização e efetividade desses últimos, desvelando salutar maturidade democrática institucional e credibilidade internacional. Ademais, faz transparecer a perfeita concretização da Constituição, através de sua interpretação na lide posta, no bem da vida que é objeto daquela relação jurídica em específico. 73 Releva constatar, assim, o reconhecimento da compulsoriedade da vivência humanista e constitucional pelos indivíduos num todo e não simplesmente como roteiro de práticas estatais, porquanto os Direitos Humanos, a Constituição, assim como todo o ordenamento jurídico precisam ser incluídos nas práticas intersubjetivas dos indivíduos com espontaneidade. Aliás, somente quando se está inserido neste processo, vigora o interesse na defesa das suas determinações. A concretização conjugada, assim, da Constituição e dos Direitos Humanos que a orientam e conformam (aberturas formal e material), numa imbricação necessária e sistemática por ela própria instituída, redunda na exigibilidade e na otimização de ambos. Satisfazem-se, assim, de forma prática, os de bens da vida das pessoas, numa aproximação salutar, afanosa e necessária entre direito, processo (enquanto procedimento) e realidade. Ademais, essa nova arquitetura, forjada nos signos da Globalização, do Transnacionalismo e de um paradigma de Direito global, permite aproximar os Direitos Humanos da iniciativa privada, de modo a desvelar também seu caráter pré-violatório, historicamente tão requisitado. 6REFERÊNCIAS ARNAUD, André-Jean. Prefácio. In: ARNAUD, André-Jean; JUNQUEIRA, Eliane Botelho (Org.). Dicionário da Globalização: Direito – Ciência Política. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. BLOOMER, Phil. Os direitos humanos são uma ferramenta eficaz para a mudança social? 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A contextualização e o desenvolvimento das capacidades (capabilities) são necessárias em vista das condições de justiça social. O método de abordagem adotado nesta pesquisa é investigativo bibliográfico consultando obras de Amartya Sen e de comentadores. As contradições sociais e o contexto das mudanças de forte repercussão serão evidenciadas. Palavras-chave: Capabilities. Empoderamento feminino. Democracia e Direitos. 1 INTRODUÇÃO O empoderamento feminino está cada vez mais presente em nosso dia-adia, por essa razão precisa ser incentivado, pois a sociedade toda ganha, por trazer benefícios e realização profissional e pessoal em diversas áreas. O que se pretende é que a mulher possa ter o poder de tomar decisão, decidir o momento certo para cada coisa em sua vida, deve ter a condição de agente para assumir suas capacidades e poder dar conta de suas responsabilidades. A mulher conquistando uma condição de agente,numera suas prioridades e tem a vida que julga melhor para si. A família é sem dúvidas muito importante para uma mulher. O objetivo deste trabalho é demonstrar que através da liberdade substantiva pode-se optar pelo tempo certo para cada atividade da vida, mostrando que a mulher tem capacidade de organizar suas tarefas em 78 ambos os setores que ela se compromete em exercer, com resultados satisfatórios para a sociedade. Sendo assim, podendo usufruir da capacidade de escolher o que quer para o momento através de decisões conjuntas com sua família e tendo também o direito de opinar perante a sociedade. Esses avanços são notáveis na sociedade, mas cada vez mais precisamos trazer direitos e com os direitos, os deveres para a sociedade feminina. É através das capabilities que as condições de justiça se efetivam na sociedade, surgindo uma sociedade com equidade de gênero no sentido amplo, defendendo os direitos e deveres de cada cidadão, pois as mulheres precisam ter sua condição de escolha para ocupar os cargos que julgam melhor para seu sucesso profissional e pessoal. O trabalho divide-se em três partes: a primeira apresenta o empoderamento da mulher e sua repercussão social; a segunda à condição de agente da mulher; e a terceira as capabilities das mulheres. O método de abordagem adotado é investigativo-bibliográfico nos escritos de Amartya Sen, materiais doutrinários e comentadores, apresentando as contradições sociais no contexto de aceleradas mudanças. 2 O EMPODERAMENTO DA MULHER E SUA REPERCUSSÃO SOCIAL Este artigo demonstra que com a constante evolução da sociedade, a visão social foi se modificando e ganhando aperfeiçoamentos, e o empoderamento feminino foi se tornando cada vez mais importante, onde passou-se a ver a mulher de uma forma diversa como sujeito ativo de mudança e não mais como sujeito passivo de ajuda, conquistando espaços antes não visualizados para este gênero, como aperfeiçoamento em áreas que antigamente só eram representadas pelo sexo masculino, e assim a mulher rompeu as barreiras. Antigamente o papel imposto para a mulher era o de dona de casa, hoje seu lugar é onde quiser, onde achar melhor, sendo assim, adquiriu direitos como o de votar e ser votada, de escolher seu trabalho, estudar, de ter liberdade, usufruir da sua condição de agente. O empoderamento feminino é a capacidade que a mulher tem de ser vista pela sociedade e por si mesma como parte importante, conquistando cada vez mais a sua liberdade e igualdade. A equidade de gêneros é um direito 79 básico da sociedade, é uma peça de extrema relevância para atingir o desenvolvimento sustentável. Esses diversos aspectos da situação feminina (potencial para auferir rendimentos, papel econômico fora da família, alfabetização e instrução, direitos de propriedade etc.) podem, à primeira vista, parecer demasiadamente variados e díspares. Mas o que todos têm em comum é sua contribuição positiva para fortalecer a voz ativa e a condição de agente da mulher – por meio da independência e do ganho de poder. (SEN, 2010, p.249). A mulher adquiriu muitos direitos, um deles é o direito de votar e ser votada, através do Decreto nº 21.076 instituído no Código Eleitoral Brasileiro de 24 de fevereiro de 1932 por Getúlio Vargas, e consolidado na Constituição de 1934. Mas no Brasil a participação da mulher na política continua pequena, sendo que a legislação estabelece um percentual mínimo de 30% de candidaturas de cada sexo no artigo 10, § 3º, da Lei 9.504, de 1997. Através dos movimentos feministas as mulheres começaram a pôr em prática o artigo 5° da Constituição Federal, onde diz que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade”. Mas somente no século XIX, a mulher passou a assumir cargos em indústrias, mas ainda com algumas discriminações de gêneros, como salários maiores para os homens. No momento que a mulher entra no mercado de trabalho, se esforça e trabalha tanto quanto o homem e apresenta grande êxito nas atividades exercidas, mas ainda hoje elas recebem globalmente 24% menos do que homens (Relatório de Desenvolvimento Humano de 2015). Quando a mulher possui privações que a restringe da vida social e política, são privadas de liberdades importantes para conduzir suas vidas. Então quanto mais capacitações elas obtiverem, mais vão ocupar cargos importantes, sendo exemplo para as próximas gerações, pois se suas filhas observarem que a mãe está feliz, realizando seus objetivos, tendo sucesso profissional, vão querer seguir seus exemplos, tornando a sociedade feminina com mais liberdade de escolhas, influenciando a si mesmas e outras mulheres e servindo de exemplo na sua família. Outra dificuldade que a mulher se depara é em encontrar um equilíbrio entre a vida pessoal (casa, filhos) e a profissional. Este acúmulo de funções 80 faz com que a mulher intensifique mais sua jornada de trabalho e muitas vezes acabam por deixar um de lado, então se precisa de uma divisão de funções com a colaboração do gênero masculino em ambientes familiares, com divisão de funções, que antigamente era imposta somente ao gênero feminino, uma igualdade de gêneros no sentido amplo sem distinção em nenhuma esfera, para que a mulher possa realizar-se tanto na vida pessoal quanto profissional. O empoderamento feminino é sem dúvidas o meio pelo qual a mulher toma para si o direito de existir na sociedade, é o momento em que ela adquiriu a liberdade de ter sua condição de agente, ou seja, se ver como independente, sendo respeitada, valorizada, tendo seus deveres e direitos assegurados. O empoderamento ocorre quando todos da sociedade ajudam, dão oportunidade para a mulher se estabelecer no mercado de trabalho, ocorre quando ela nota que sua presença é importante para aquele cargo, quando ela pega para si o direito de sua existência na sociedade. [...] “Não é tanto uma questão de ter regras exatas sobre como exatamente devemos agir, e sim de reconhecer a relevância de nossa condição humana comum para fazer as escolhas que se nos apesentam”. (SEN,2010, p.360) Em 2010 a ONU Mulher e o Pacto Global criaram os princípios de Empoderamento das Mulheres, para que, por meio destes, as empresas incorporem a equidade de gênero. 1. Estabelecer liderança corporativa sensível à igualdade de gênero, no mais alto nível. 2. Tratar todas as mulheres e homens de forma justa no trabalho, respeitando e apoiando os direitos humanos e a não discriminação. 3. Garantir a saúde, segurança e bem-estar de todas as mulheres e homens que trabalham na empresa. 4. Promover educação, capacitação e desenvolvimento profissional para as mulheres. 5. Apoiar empreendedorismo de mulheres e promover políticas de empoderamento das mulheres através das cadeias de suprimentos e marketing. 6. Promover a igualdade de gênero através de iniciativas voltadas à comunidade e ao ativismo social. 7. Medir, documentar e publicar os progressos da empresa na promoção da igualdade de gênero. (ONU MULHER, 2010). 81 Esses princípios têm como fundamento diminuir com qualquer barreira que impeça a promoção profissional das mulheres, promover a igualdade no mais amplo sentido, buscando o equilíbrio e excluindo qualquer tipo de violência. Também tem por objetivo promover a capacitação pessoal e profissional. A mulher adquiriu muitas conquistas, como está cada vez mais entrando no mercado de trabalho, conquistando cargos de liderança, um exemplo é a primeira presidente mulher do Brasil Dilma Rousseff, cargos que antes não ás visualizava. A mulher deve ser enxergada como um forte agente econômico e sem dúvidas o primeiro passo é a própria mulher enxergar seu potencial. Mas ainda possui muitos desafios, pois a desigualdade de gênero ainda existe nos dias atuais em algumas áreas, por essa razão a mulher para conquistar boa oportunidade no mercado de trabalho, precisa ser mais bem qualificada, gastando muito dinheiro e tempo. Não se quer que as mulheres tenham mais direitos que os homens e sim conquistar uma equidade de gêneros, com os direitos acompanhando os deveres. Pois os deveres acompanham as responsabilidades e os direitos são essenciais para uma maior liberdade e uma sociedade mais justa e igualitária. A democracia deve ser vista como a criação de várias oportunidades, e o uso dessas oportunidades dependem de práticas democráticas, para expressar publicamente o que avaliamos ser o correto e exigir que se dê a devida atenção a isso, devemos ter liberdade de expressão e decisões democráticas. 3 A CONDIÇÃO DE AGENTE DA MULHER A mulher passou a ser importante na sociedade, adquiriu sua liberdade de escolha, podendo optar pelo que ela julga melhor para uma vida pessoal e profissional, organizando a sua vida da maneira mais satisfatória, abandonando aquele conceito imposto que esta seria submissa do homem e conquistando cargos importantes, conquistando sua liberdade de escolha. Sendo assim, a mulher começou a buscar cada vez mais pela realização de seus objetivos e teve oportunidade de mostrar sua alta capacidade perante a sociedade, ou seja, “[...] As vidas que as mulheres salvam por meio de uma 82 condição de agente mais poderosa certamente incluem as suas próprias”. (SEN, 2010, p.251) Quando a mulher conquista uma vaga no mercado de trabalho e assumem cargos importantes, ela apresenta resultado satisfatório, demonstrando que tem interesse em seu sucesso profissional, podendo então assumir essa responsabilidade, conseguindo tomar iniciativas nos cargos que lhe são dados com grande êxito. As mulheres cada vez mais devem ocupar o cargo que elas quiserem, devem optar não por uma profissão mais feminina e sim por aquela profissão que elas planejam e almejam para seu futuro, podendo ser o que quiserem. A condição de agente é o papel que essa condição pode ter na remoção das inequidades que restringem o bem-estar feminino (SEN, 2010). Temos então um empoderamento que engloba diferentes áreas, engloba o acesso à informação, ao conhecimento e a capacitação, também abrange o poder de voz ativa no plano político e não podendo esquecer da autoestima e autoconfiança, a mulher deve confiar que pode e que consegue, para desenvolver um bom desempenho, ou seja, ter controle de sua vida. Tudo isso, para a conquista da cidadania e o direito a igualdade nos diversos campos. A responsabilidade do Mundo em que vivemos é nossa, precisamos fazer a diferença, criar e ajudar no desenvolvimento da condição de agente a mulher, pois indivíduos privados do bem-estar e de seu potencial para levar a vida que desejam, são privados da liberdade. A liberdade substantiva é algo indispensável para exercer nossos direitos e deveres. É responsabilidade das mulheres decidirem o que querem fazer, cabem a elas a escolha do seu próprio bem-estar, sendo assim a liberdade é de suma relevância para termos responsabilidade e com isso termos uma sociedade justa para todos, pois é através de oportunidades de emprego e educação que as mulheres adquirem a liberdade. Assim, fazendo com que os outros veja-a como sujeito ativo de opinião, ganhando mais poder de influenciar em várias questões no âmbito familiar e empresarial. (SEN, ٢٠١٠). O desenvolvimento social é sem dúvidas um meio para diminuir as taxas de fecundidade, pois o aumento do poder da mulher faz com que as pessoas optem por famílias menores, então não se precisa tirar o poder da liberdade 83 das famílias, como na China (SEN, 2010), mas sim apenas expandir os programas que estimulam a autonomia da mulher. No início da luta pela justiça com a mulher, o que se queria era o bemestar feminino, mas agora o que se procura é que a mulher deixe de ser vista como agente passivo de ajuda, e sim agente ativo de mudança produzindo transformações positivas para a sociedade, pois trazendo a voz ativa ás mulheres, acaba gerando uma corrente que afeta as futuras gerações e a sociedade como um todo. O resultado que se procura alcançar é que cada vez mais as mulheres acabem com a desigualdade que ainda encontram na sociedade. A condição de agente da mulher é relevante para aumentar sua autoestima, sua eficácia e sua educação, o que se pretende conquistar é a liberdade substantiva para que a mulher possa escolher o que julga melhor para si mesma e para sua família. É de extrema relevância para um melhor desempenho a autoconfiança em sua capacidade, acreditar que é capaz e que pode trazer transformações positivas para a sociedade. O ganho de poder da mulher traz mudanças significativas, diminui os índices de fecundidade e reduz a mortalidade infantil principalmente por meio da importância que as mães dão ao bem-estar dos filhos e da oportunidade de influenciar nas decisões familiares. Á partir do momento que ela passa a assumir poder, ela mesmo passa a se ver como agente ativo, como capaz de exercer suas potencialidades, capaz de tomar decisões relevantes para sua vida e de sua família. [...] Pode-se dizer que nada atualmente é tão importante na economia política do desenvolvimento quanto um reconhecimento da participação e da liderança política, econômica e social das mulheres. Esse é, de fato, um aspecto crucial do “desenvolvimento como liberdade” (SEN, 2010, p.263). Um aspecto central para o desenvolvimento é o ganho de poder das mulheres, é elas poderem ocupar cargos diversos como agrícolas, onde a presença feminina não era notada antigamente, pois estas devem ter a oportunidade e a liberdade de exercem o cargo que gostariam, de se organizar conforme suas prioridades na vida. 4 CAPABILITIES E A CONDIÇÃO DE AGENTE DAS MULHERES 84 A perspectiva das potencialidades das mulheres está ligada à capacidade de elas poderem escolher a vida que valorizam, terem poder de decidir o que querem para si, dispor da liberdade de escolha. A ausência das capabilities compromete diretamente a condição de justiça e o equilíbrio das relações sociais, pois quando não tem o poder de exercê-las não tem como decidir em utiliza-la ou não. [...] Sem a liberdade substantiva e a capacidade para realizar alguma coisa, a pessoa não pode ser responsável por fazê-la. Mas ter efetivamente a liberdade e a capacidade para fazer alguma coisa impõe a pessoa o dever de refletir sobre fazê-la ou não, e isso envolve responsabilidade individual. Neste sentido, a liberdade é necessária e suficiente para a responsabilidade (SEN,2010, p.361). Conforme a mulher adquire e desenvolve suas capabilities, conquistam espaços, empregos remunerados para ajudar na renda familiar, prosperidade e prestígio, temos uma diminuição nos índices de pobrezas, pois elas ajudam nas despesas da casa, sendo que a pobreza é uma forma de privação das capacidades de uma pessoa. Com uma renda baixa perde-se a liberdade substantiva, perde o direito de optar pelo que julga melhor, e deve-se optar pelo que está disponível no momento. É com a expansão do aumento das capacidades que se ajuda a enriquecer a vida humana para fins realmente valiosos como maior prosperidade nos diversos campos, sem dúvidas a capacidade é um tipo de liberdade substantiva. A condição de agente representa analisar a pessoa segundo seus valores, suas capacidades, seus ideais, suas características pessoais, ou seja, o ser humano busca sua realização pessoal através daquilo que considera importante, por essa razão que o conjunto de capacidades varia de uma pessoa para outra, tudo depende do que cada um almeja para seu futuro. As capabilidades representam a liberdade que a pessoa tem para, de acordo com suas características individuais e as aspirações sociais, conduzir as suas escolhas diante de cenários diversificados para, assim, construir a sua identidade e poder influenciar na organização de uma boa estrutura. (ZAMBAM, 2012, p.107). É a partir das capabilities que as mulheres fazem as escolhas que julgam melhor para o seu bem-estar e para seu futuro, conquistando assim seus direitos, uma organização social justa e as relações sociais equilibradas. 85 A capacidade reflete na liberdade substantiva de escolher o melhor modo para viver, sendo assim, adquirindo a capacidade adquire-se o poder de escolha, pois ter opções é essencial para o bem-estar, realização social e também pessoal. As capabilities têm como objetivo a valorização da pessoa como objeto último, nunca apenas como meio para outro fim. Sen se propõe a promover um novo conceito de desenvolvimento, baseando-se nas capabilities, ou seja, as liberdades substantivas da pessoa humana. A sociedade por meio de seus recursos tem como responsabilidade de expandir o acesso a liberdade, para que chegue a todos os seus membros, onde os mesmos possam desenvolver suas potencialidades e realizar as escolhas que julgam adequadas para preencher suas expectativas. As capabilities representam a liberdade que as pessoas têm de escolher diante de um senário muito diversificado o que é mais adequado para suas vidas. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Analisar o empoderamento feminino é relevante pelo fato desse tema ainda, apresentar nos dias atuais muitas dificuldades. Se nota uma grande desigualdade de gêneros. Por obvio que foi realizada muitas conquistas equiparado com o século anterior, foram conquistados muitos direitos e adquiridos deveres, mas ainda existem muitos obstáculos a vencer. A mulher hoje luta cada vez mais para a conquista de sua condição de agente, tem sua liberdade, pode escolher a vida que julga mais adequada para seu sucesso e realização profissional, com isso vem trazendo grandes avanços, pois é através desta que podemos visualizar um desenvolvimento como liberdade. O empoderamento feminino é promover a igualdade de gênero em todas as atividades, para uma melhor qualidade de vida de todos que os cercam, pois com a conquista da liberdade da mulher irá possibilitar o auxílio nas despesas da casa, servirá como exemplo para sua família, vai ajudar nas decisões dentro de sua casa, além de atuar nas mais diversas áreas. A liberdade só se concretiza no momento em que as capabilities podem ser utilizadas, no momento em que podemos, através destas, usufruir das diversas possibilidades para escolher. A capacidade é uma liberdade interna da pessoa. 86 Todos os direitos que as mulheres vêm conquistando ao longo dos anos, são através de lutas. O empoderamento feminino não é um tema recente, por isso devemos sempre ajudar no seu desenvolvimento, para uma maior liberdade substantiva das mulheres e da sociedade toda que a cerca, pois quando provocamos o empoderamento dando oportunidades de emprego a uma mulher, podemos observar que esta apresenta grande êxito em suas atividades, além de proporcionar uma renda dentro de sua casa e servir de exemplo para as futuras gerações. A condição da liberdade é essencial para escolhermos o que julgamos mais adequado para cada momento, é podermos desenvolver as nossas capabilities. Não se quer que os direitos femininos se sobressaiam aos masculinos e sim que exista uma equidade nos mais diversos campos. 6 REFERÊNCIAS BRASIL. Mais mulheres na política. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/proc-publicacoes/2a-edicao-do-livretomais-mulheres-na-politica >. Acesso em: 10 ago. BRASIL. Vade Mecum. 20° ed. São Paulo: Saraiva; 2015. BRASIL. Voto da mulher. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/eleitor/glossario/termos/voto-damulher>. Acesso em: 02 ago. ONU MULHERES. Princípios de empoderamento das mulheres. Disponível em: < http://www.onumulheres.org.br/referencias/principios-de-empoderamento-das-mulheres/>. Acesso em: 28 jul. PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Relatório de Desenvolvimento Humano de 2015. Disponível em: <Publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento>. Acesso em: 20 jul. SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia de bolso; 2010. 460p. SEN, A. O desenvolvimento como expansão da capacidade. Lua Nova. 1993. Disponível em: <https://books.google.com.br/books? id=aL5dCNwB2rcC&pg=PA313&lpg=PA313&dq=o+desenvolvimento+como+expans%C3%A3o+d e+capacidades&source=bl&ots=19Mf3Z0oLo&sig=rN7YizYwfpWIgDbsKFutl8ejDm8&hl=ptBR&sa=X&ved=0ahUKEwiHxZmd9jOAhXHhZAKHYefD60Q6AEIODAC#v=onepage&q=o%20desenvolvimento%20como%20expans %C3%A3o%20de%20capacidades&f=false >. Acesso em: 23 jul. SOUZA, M. F. N. de.; ZAMBAM, N. J. Democracia e Justiça para o Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: <https://www.imed.edu.br/Uploads/neurozambam(%C3%A1rea3).pdf>. Acesso em: 07 ago. ZAMBAM, N. J. Amartya Sen liberdade, justiça e desenvolvimento sustentável. Passo Fundo: Imed; 2012. 335p. 87 DIREITOS HUMANOS, MULTICULTURALISMO E MIGRAÇÕES Júlia Fragomeni Bicca52 RESUMO O meio ambiente está com problemas cada vez mais alarmantes, devido a mudanças climáticas e outros efeitos, em que pessoas têm que sair de seu lugar de origem e se refugiar. Como problema principal buscam-se ferramentas importantes para auxiliar os atores internacionais no desafio da construção de um sistema de proteção jurídica internacional aos “refugiados ambientais”, a partir de uma visão crítica e multifacetada do problema, contribuindo para o preenchimento importante lacuna normativa do Direito Internacional na Atualidade. Avaliar-se-á ainda, se o multiculturalismo pode agir como mediador entre as diferenças culturais. O método utilizado será o Hipotético-Dedutivo. Palavras-chave: direitos humanos, globalização, migrações, multiculturalismo. 1 INTRODUÇÃO Com o surgimento da nova classe, os denominados refugiados ambientais, por mais que ainda não reconhecidos, visualiza-se que a não limitação dos danos e de toda a atividade perigosa exercida no globo e os desastres ambientais cada vez mais comuns criam a importância de se dialogar, criar um diálogo entre nações, discutir a relação entre direito humano ao meio ambiente, pois este é um mínimo comum entre todas as culturas. Somente através desse diálogo multicultural é que o desafio transnacional de um meio ambiente equilibrado a todos poderá ser vencido trazendo uma sadia qualidade de vida, tanto para as presentes, quanto para as futuras gerações, evitando tantos desastres ambientais e tantos deslocados, refugiados ambientais. Não se pode ignorar as discussões com relação aos direitos humanos e ao meio ambiente, estes se destacam por força das constatações de crise e da 88 possibilidade de esgotamento dos recursos naturais, o que viria a ameaçar, seriamente, o futuro da humanidade Os direitos humanos são direitos fundamentais do ser humano. Sem eles, o homem não conseguiria se incluir plenamente na vida em sociedade. E neste artigo buscaremos meios de inserir o refugiado ambiental em uma gama de direitos e garantias mínimas para sua sobrevivência. 2 DIREITOS HUMANOS E DECLARAÇÃO UNIVERSAL No curso de sua existência a Declaração Universal de Direitos Humanos, realmente cumpriu papel fundamental para humanidade. Assim, povos oprimidos tiveram algumas de suas reivindicações atendidas. As lutas políticas por direitos tiveram amparo e diversas constituições Estaduais surgiram dela. Criou uma nova disciplina jurídica para direitos humanos e direito internacional. Substitui-se a eficácia da força bruta pela força ética e moral. Seu principal objetivo foi promover entre os Estados-membros da ONU a adoção de políticas públicas e legislações nacionais que tivessem como parâmetros normativos os artigos contidos na DUDH.Os Direitos, para Perez-Luño, (2002, p 23): [...] São ingredientes básicos na formação histórica da idéia dos direitos humanos duas direções doutrinárias que alcançam seu apogeu no clima da Ilustração: o jusnaturalismo racionalista e o contratualismo. O primeiro, ao postular que todos os seres humanos desde sua própria natureza possuem direitos naturais que emanam de sua racionalidade, como um traço comum a todos os homens, e que esses direitos devem ser reconhecidos pelo poder político através do direito positivo. Por sua vez, o contratualismo, tese cujos antecedentes remotos podemos situar na sofística e que alcança ampla difusão no século XVIII, sustenta que as normas jurídicas e as instituições políticas não podem conceber-se como o produto do arbítrio dos governantes, senão como resultado do consenso da vontade popular. [Tradução livre] Assim, historicamente, o desenvolvimento laico do pensamento jusnaturalista, nos séculos XVII e XVIII que as ideias acerca da dignidade da pessoa humana começam a ganhar importância, especialmente pelos pensamentos de Samuel Pufendorf e Immanuel Kant (FACHIN, 2009, p. 48). Para Ricardo Castilho (2011, p. 137), a dignidade humana: Está fundada no conjunto de direitos inerentes à personalidade da pessoa (liberdade e igualdade) e também no conjunto de direitos estabelecidos para a coletividade (sociais, 89 econômicos e culturais). Por isso mesmo, a dignidade da pessoa não admite discriminação, seja de nascimento, sexo, idade, opiniões ou crenças, classe social e outras. No artigo 22, da DUDH também se encontra uma definição dos direitos de todo o ser humano: Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade. Segundo Norberto BOBBIO, (2004, p. 30) “os direitos humanos nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incorpora Declaração de Direitos) para finalmente encontrar a plena realização como direitos positivos universais”. O que se indica que com a DUDH, a construção do futuro tende a transformar a cidadania nacional, surgida com os Estados territoriais modernos, em forças sociais transnacionais, abrindo caminho para a criação de uma sociedade civil global emergente. A ideia de que a cidadania global teria apenas uma força moral é originária da Paz Perpétua de Kant, com o seu apelo à solidariedade em relação aos estrangeiros. Segundo Kant (1992, p. 127): O processo pelo qual todos os povos da terra estabeleceram uma comunidade universal chegou a um ponto em que a violação de direitos em uma parte do mundo ésentida em toda parte, isto significa que a idéia de um direito cosmopolita, não é mais uma idéia fantástica ou extravagante. É um complemento necessário ao direito civil e internacional, transformando-o em direito público da humanidade (ou direitos humanos); apenas sob esta condição (a saber, a existência de uma esfera pública em funcionamento) podemos nos gabar de estarmos continuamente avançando em direção à paz perpétua. Na visão de Kant (1992, p. 140), vislumbra-se uma espécie de prelúdio criando uma perspectiva de cidadania global. Há preocupação com a violação dos direitos humanos em qualquer parte do mundo: “[...] Identificou o fenômeno de uma esfera pública mundial, que hoje está se transformando em realidade pela primeira vez com as novas relações de comunicação global”. Mas é esta cidadania global que se discute, Santos (2004, p. 246) traz que: 90 Enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado e, portanto, como uma forma de globalização hegemónica. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização contra-hegemôminca, os direitos humanos têm de ser reconceptualizados como multiculturais. Concebidos como direitos universais, como tem sucedido, os direitos humanos tenderão sempre a ser um instrumento de ‘choque de civilizações. Observando o texto e o explanado até agora, temos que observar do que realmente se tratam os direitos humanos universais, direitos estes que como diz a etimologia da palavra universal, deveriam ser passíveis de aplicação em qualquer lugar do mundo, independentemente de, localização, religião, política e economia. A noção de direitos humanos é complexa e adversa nos diversos cantos do mundo, sendo mais evidentes entre oriente e ocidente, cada país possui em evidência a sua cultura. 3 INTEGRAÇÃO MULTICULTURALISMO E MIGRAÇÕES Cada Estado possui a sua legislação e a sua cultura, seus rituais, que servem para criação de uma identidade civil, dentro das convenções que a Declaração Universal de Direitos Humanos trata, devemos buscar a preservação das diferenças culturais através da integração e valorização da diversidade por meio do multiculturalismo. Hoje, não é descomedido ressaltar que devido a globalização o povo e a população se confundem e a ideia de um Estado formado pelo povo e uma população específica já não condiz, há tempos, com a realidade atual. (HELLER, 1968, p. 183/195) Canotilho (2003, p. 1350) enuncia que:“O velho ‘direito nas fronteiras’ é dissolvido […]. As comunidades de Imigrantes e de refugiados criam um ‘quinto multicultural’ dentro das fronteiras dos estados de acolhimento” Assim, cada um destes imigrantes traz consigo uma bagagem cultural única composta por uma miscigenação de culturas. Essas culturas serão mantidas na sociedade de destino que se adaptará na medida em que se relacionar com a cultura da sociedade acolhedora. O multiculturalismo vem aliado com a globalização facilitar essa interação de culturas, facilitando a abertura e troca de novas experiências, facilitadas pela tecnologia. E com essas novas interações é possível perceber que há adaptações para todos os envolvidos, nacionais e recém- 91 chegados, cada um aceitando a condição do outro como ser humano. Assim, forma-se o ciclo do multiculturalismo. Para Bauman (2010, p. 199), esse processo de intensas inter-relações estabelecidas partir das migrações transnacionais em um ambiente multicultural que almeja uma forma harmônica de coexistência de um fator humano multicultural. Para isso, se faz necessário defender a liberdade como um valor fundamental; a liberdade de escolha cultural deve incluir o direito de optar por uma cultura ou por várias. Assim as migrações transnacionais são um importante exemplo de ralações transnacionais induzidas pelas forças da globalização, mas também se verifica que essa coexistência e troca de culturas muitas vezes não é pacífica, e o ambiente multicultural não é alcançado, e algumas vezes os transmigrantes acabam tornando-se seres em direitos. Para garantir a proteção dos direitos humanos dos migrantes se faz necessário “[…] converter os direitos humanos em tema de legítimo interesse da comunidade internacional, o que implica em processos de universalização e internacionalização destes mesmos direitos”. (PIOVESAN, 1998, p. 49/50) Resta salientar que a ideia de cada Estado proteger os direitos humanos dentro de seu domínio não se sustenta, tendo em vista tratar-se de tema legítimo de interesse internacional. (PIOVESAN, 2012, p 43.) Mantendo a característica de universalidade Piovesan, (2012, p. 43) demostra que: “Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é requisito único para a titularidade de direitos, considerando o Ser Humano um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana”. Nesse sentido, Boaventura de Souza Santos (2004, p. 250) entende que: “Enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado e, portanto, como uma forma de globalização hegemónica. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização contra-hegemôminca, os direitos humanos têm de ser reconceptualizados como multiculturais. Concebidos como direitos universais, como tem sucedido, os direitos humanos tenderão sempre a ser um instrumento de ‘choque de civilizações” Como localismo globalizado entende-se o processo onde um fato local é globalizado com sucesso, ou seja, um fato endógeno de uma determinada 92 cultura que acaba por se exteriorizar. (BOAVENTURA, 2004, p. 146) Já Boaventura (2004, p. 250) define a globalização hegemônica e a globalização contra hegemônica são assim definidas: “A globalização hegemônica é a nova fase do capitalismo global, constituída pela primazia do princípio do mercado, liberalização do comércio, privatização da economia, desregulação do capital financeiro, precariedade das relações de trabalho, degradação da proteção social, exploração irresponsável dos recursos naturais, especulação com produtos alimentares, mercantilização global da vida social e política. A globalização contra-hegemônica, ou globalização a partir de baixo, é constituída pelos movimentos e organizações sociais que, mediante articulações locais, nacionais e globais, lutam contra a opressão capitalista e colonialista, a desigualdade e a discriminação racial e sexual, a destruição dos modos de vida de populações empobrecidas, a catástrofe ecológica, a expulsão de camponeses e povos indígenas dos seus territórios ancestrais por exigência dos megaprojetos mineiros ou hidroelétricos, a violência urbana e rural, a imposição de normas culturais ocidentais e a destruição das não ocidentais, o endividamento das famílias, dos pequenos empresários e dos Estados como forma de controle social e político, a criminalização do protesto social.” Ainda, cosmopolitismo, para o Autor, é: [...] um conjunto muito vasto e heterogéneo de iniciativas, movimentos e organizações que partilham a luta contra a exclusão e a discriminação sociais e a destruição ambiental produzidas pelos localismos globalizados e pelos globalismos localizados, recorrendo a articulações transnacionais tornadas possíveis pela revolução das tecnologias de informação e de comunicação. [...] Não uso cosmopolitismo no sentido moderno convencional. Na modernidade ocidental, cosmopolitismo está associado com as ideias de universalismo desenraizado, individualismo, cidadania mundial e negação de fronteiras territoriais ou culturais. [...] Para mim, cosmopolitismo é a solidariedade transnacional entre grupos explorados, oprimidos ou excluídos pela globalização hegemónica. [...] O cosmopolitismo que defendo é o cosmopolitismo do subalterno em luta contra a subalternização. (SANTOS, 2004, p. 248) Daí o autor defende a multiculturalidade dos direitos humanos, eis que “os direitos humanos não são universais em sua aplicação” (BOAVENTURA, 2004, p. 250). Em seguida tentaremos verificar a proteção dos refugiados ambientais no Direito Internacional. 4 A PROTEÇÃO DOS REFUGIADOS AMBIENTAIS NO REGIME INTERNACIONAL DE REFUGIADOS Busca-se demonstrar a possibilidade de inserção do “refugiado ambiental” na proteção internacional da pessoa humana por meio de 93 instrumentos jurídicos já existentes e pela análise de propostas de tratados internacionais sobre a condição jurídica do refugiado ambiental, visto que, apesar de estarem presentes na Convenção de Viena, ainda não são categoria reconhecida juridicamente, e assim não são seres de direitos. Para Comparato (2008, p. 96) todo ser humano conta com direitos e deveres na ordem interna e internacional, a proteção jurídica diz respeito a afirmação dos direitos humanos como tema global apenas a partir da declaração ambiental de direitos humanos, firmada sobre a égide da então criada ONU em 1948. Embora tenha apenas 30 artigos à declaração possui grande importância histórica por relacionar direitos básicos dos indivíduos. Trindade (1996, p. 28) relata que sob a perspectiva do direito internacional, são aplicáveis aos refugiados ambientais as normas existentes do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), bem como os princípios de direito internacional que regem todo o espectro da proteção internacional da pessoa humana, também conhecida como as três vertentes da proteção internacional da pessoa humana – composta pelo DIDH, pelo Direito Internacional Humanitário (DIH) e pelo Direito Internacional dos Refugiados . Para saber-se que norma genérica aplicar, ou para criar-se um sistema de leis protetivas exclusivas ao refugiado ambiental, necessita-se de uma diferenciação entre migrante refugiado e “refugiado ambiental”. Oderth (2002, p. 58) ressalta que a migração humana consiste na mudança, permanente ou temporária, de residência de uma pessoa ou de um grupo de pessoas. A migração é bastante complexa e geralmente envolve mais de um fator que condiciona o fluxo migratório individual, familiar ou grupal. Por isso fala-se na existência de fluxos migratórios mistos, fluxos que comportam mais de uma causa motivadora do movimento migratório. A situação dos “refugiados ambientais” acaba sendo esta, que, na maioria das vezes, quando se consideram os refugiados ambientais advindos de rupturas ambientais de aparecimento lento. (BROWN, 2009, p. 75) A expressão refugiados ambientais já havia sido cunhada por Lester na década de 70, quando o autor alertava para o crescente número de migrantes advindos da desertificação, das enchentes, das tempestades intensas, da escassez de recursos hídricos e do excesso de poluentes no meio ambiente. (BROWN, 2011, p. 113) 94 Segal (2001, p. 48) afirma que os refugiados ambientais refletem a profunda destruição do planeta; esses refugiados, ela aponta, não são vítimas de perseguição política, religiosa, racial, de nacionalidade ou de pertencimento a um grupo social: eles são vítimas de mudanças causadas no meio ambiente e, por não conseguirem sustentar-se em locais ambientalmente degradados, eventualmente têm que migrar internamente ao seu país ou para o exterior. O tema das migrações é bastante amplo e está relacionado a uma série de questões, tais como: os direitos humanos, a proteção jurídica aos trabalhadores migrantes, a vulnerabilidade dos migrantes, a igualdade de gêneros, o tráfico de pessoas, as implicações da emigração qualificada, o alcance da integração regional e as possibilidades de governabilidade futura da migração, que demandam um lugar de destaque nas agendas políticas dos países de origem, trânsito e destino. (SADER, 2006, 794.) O ACNUR, no relatório Tendências Globais 2008, contabilizou: 42 milhões de pessoas forçadamente deslocadas, das quais 15,2 milhões são refugiados, 827 mil solicitantes de asilo e 26 milhões deslocados internos, sendo que aproximadamente 25 milhões receberam proteção ou assistência pelo ACNUR, dos quais 10,5 milhões de refugiados e 14,4 milhões de deslocados internos. Diante desses números, pode-se concluir que o número de deslocados internos e a demanda humanitária daí decorrente é significativamente maior que a dos refugiados. Como os deslocados internos permanecem no território do próprio Estado, a responsabilidade por sua proteção recai, em primeiro plano, sobre os governos nacionais e as autoridades locais. No entanto, tal fato não afasta a necessidade de uma disciplina internacional para a promoção efetiva dos direitos dos deslocados internos, mesmo porque nem sempre será possível ao Estado garantir sua segurança e seu bem-estar, especialmente em situações de crise e conflito, que dificultam e podem inviabilizar a prestação de assistência internamente pelo Estado. Os imigrantes acabam sofrendo preconceitos, e muitas barreiras são impostas a eles pelo simples fato de não serem “locais”. Desconsidera-se o fato de que muitas vezes o que estas pessoas mais gostariam era permanecer em seu Estado de origem, inserido em seu território e sua cultura. O desrespeito com o refugiado, as vezes acaba em violência, em descaso, 95 devido a sua não inserção no meio social e sua ausência de direitos e garantias. Um exemplo disto, é o fato de que na Europa, existem trabalhos nos quais os europeus não se interessam, não querem se submeter e os imigrantes aproveitam estas vagas para garantir sua subsistência no país desconhecido, e mesmo com o desinteresse dos europeus para com o trabalho mais pesado, ainda a presença do imigrante é vista como ameaça, eles continuam sendo ignorados, e muitas vezes invisíveis, seres sem direitos e sem qualquer reconhecimento. Paulo Ferrero (2014, p. 59) diz que é evidente que a imigração é um fenômeno baseado no fato de que os países pobres produzem migrantes e os países ricos tem a necessidade do trabalho destes migrantes. Fica evidente que se os imigrantes não existissem, a Itália por exemplo, na opinião do autor, não funcionaria. Alessandro Dal Lago (2011, p, 44), complementa que: A violência racista das minorias ideológicas, a indiferença vinda de hostilidade das maiorias silenciosas, a discriminação judiciária, a exclusão social são formas diversas nas quais uma Sociedade substancialmente unida e compactuadaquanto ao medo dos migrantes (a vergonha das suas diferenças ideológicas e políticas) constrói uma barreira intransitável entre ‘eles’ e ‘nós’, mesmo se alguns deles se permite ficar temporariamente entre nos. ‘Eles’ são todos aqueles que. Por qualquer motivo, pretendem viver entre nós mesmo não sendo como nós somos. (Tradução livre) Além disso, conforme se depreende da contribuição de Lopes (2002, p. 44), conclui-se que: “ Os discursos da política e as práticas atuais (legislação, policialização) induzem a pensar que imigrar é crime, pois a imigração é controlada pela polícia, e os imigrantesestão sujeitos a serem presos (e confinados em centros de detenção, que é quase a mesma coisa) e deportados para seus países de origem, mesmo quando mais que imigrante, são refugiados por motivos de subsistência. A mídia já consagrou ao termo imigrante uma condição de ilegalidade intrínseca” 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como os deslocados internos permanecem no território do próprio Estado, a responsabilidade por sua proteção recai, em primeiro plano, sobre os governos nacionais e as autoridades locais. No entanto, tal fato não afasta a necessidade de uma disciplina internacional para a promoção 96 efetiva dos direitos dos deslocados internos, mesmo porque nem sempre será possível ao Estado garantir sua segurança e seu bem-estar, especialmente em situações de crise e conflito, que dificultam e podem inviabilizar a prestação de assistência internamente pelo Estado. Apesar disso, a proteção aos deslocados internos, no plano internacional, ainda é bastante incipiente, carecendo de um instrumento internacional de alcance geral com força vinculante, já que os princípios orientadores não constituem um documento obrigatório, sendo insuficiente para garantir a proteção e a assistência às pessoas e grupos nessa condição. Por outro lado, também não parece suficiente pensar um sistema de proteção específico para os migrantes ambientais tendo como base exclusivamente a proteção e a assistência humanitária que, de fato, é medida necessária e mais imediata, mas pode não representar a solução mais adequada ou a mais duradoura para os casos concretos. É difícil conceber um sistema de proteção aos “refugiados ambientais” sem levar em conta a progressiva vinculação entre a proteção dos direitos humanos e do meio ambiente. Por tais razões, percebe-se que os avanços na busca de soluções originais para o problema das migrações ambientais, de uma forma geral, ainda são pouco significativos. Por um lado, há os que defendem a adaptação de antigas fórmulas e institutos do Direito Internacional a essa realidade, bem mais complexa e dinâmica. De outro lado, há os que reconhecem a necessidade de um sistema de proteção específico, mas não necessariamente vinculante, haja vista a dificuldade na obtenção de um consenso mínimo por parte dos atores envolvidos, o que implica na assunção de compromissos e responsabilidades, inclusive de natureza financeira. Entende-se ainda, que a globalização pode ajudar na inserção deste imigrante, trazendo à tona o multiculturalismo, como alternativa possível e adequada na inserção dos Direitos Humanos na sociedade que habitam, atenuando os efeitos da globalização econômica, e possibilitando que os envolvidos possam fazer valer o caráter multicultural da sociedade atual, com vistas à manutenção dos traços culturais de cada pessoa, e reivindicação de sua condição com ser de direitos. 97 6 REFERÊNCIAS 2008 Global Trends: Refugees, Asylum-seekers, Returnees, Internally Displaced and Stateless Persons.UNHCR, june 2009. Disponível em: <http://www.unhcr.org/4a375c426.html>. Acesso em: 13 Jan. 2016. 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San José, Costa Rica/ Brasília: Instituto Interamericano de Direitos Humanos/ Comitê Internacional da Cruz Vermelha/ Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, 1996 99 GRAMÁTICAS DE DIREITOS HUMANOS NA AMÉRICA LATINA: OPINIÃO CONSULTIVA Nº 22 DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E A CONSOLIDAÇÃO DE UM NOVO PANORAMA PARA A QUESTÃO INDÍGENA Rafaela da Cruz Mello53 Márcio Morais Brum54 Tiéli Zamperetti Donadel55 RESUMO Em 2016 a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu a Opinião Consultiva (OC) nº. 22 afirmando que comunidades indígenas podem ser titulares de direitos protegidos pelo sistema interamericano. Nesse contexto, indaga-se: Quais são as implicações desta OC? O reconhecimento das comunidades indígenas como sujeitos de direitos viabiliza uma nova gramática de direitos humanos na América Latina tendo por base a multiculturalidade e a sociobiodiversidade? Com o método dedutivo de abordagem, apresenta-se o modo como a CIDH compreende questões indígenas, a fim de delinear bases de consolidação de uma nova gramática de direitos humanos para a América Latina. Conclui-se que o reconhecimento pela CIDH de percepções indígenas em relação a alguns temas auxilia no rompimento com a influência de algumas estruturas do paradigma racionalista na América Latina e na consolidação de novas gramáticas para a região. Palavras-chave: Opinião consultiva; Direitos Humanos; Indígenas. 1 INTRODUÇÃO Uma das grandes mudanças apresentadas pelo século XX e radicalizada pelo século XXI é a alteração de estruturas políticas e jurídicas em âmbito global. Se no século XIX o único sujeito de direito internacional era o Estado, o século XX vê a paisagem mundial ser alterada pela multiplicação 100 de atores das relações internacionais e de sujeitos de direito em âmbito internacional. Nesse sentido, os Estados passam a conviver com Organizações Internacionais, Empresas Transnacionais e até mesmo indivíduos que separadamente ou em conjunto, passam a receber tutela de normas internacionais. Sob essa estrutura, as políticas e decisões internas e externas dos Estados passam a sofrer influência de outros atores e sujeitos. Exemplifica-se isso com a notícia de que, em 2016, o Banco Mundial realizará a revisão de suas políticas socioambientais. Isso significa que os critérios dessa instituição para garantir a concessão de empréstimos aos Estados serão alterados, supostamente a fim de garantir maior sustentabilidade e garantia aos direitos humanos. Conforme relatos de organizações internacionais protetivas de Direitos Humanos, como é o caso da organização Conectas, o que era para ser um processo de fortalecimento de políticas visando à sustentabilidade e à garantia aos direitos humanos pode, na prática, no contexto latino americano, refletir enormes retrocessos em relação à questão indígena. Nesse viés, nas últimas décadas, a América Latina foi e é palco de diversos avanços em relação a questões indígenas e de comunidades tribais, como é o caso, por exemplo, da Opinião Consultiva nº 22/2016 emitida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que reconheceu a titularidade de direitos contidos da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) para as comunidades indígenas e tribais latino-americanas e não somente para os indivíduos pertencentes a essas comunidades. Avanços como este ou como as próprias conquistas advindas de estruturas do novo constitucionalismo latino-americano são periodicamente colocados em risco em nome dos direitos humanos positivados e reconhecidos em âmbito global. Nesse sentido, os problemas que emergem e que pretendem ser respondidos nesse trabalho são os seguintes: Seria aplicável, à América Latina, uma gramática universalista moderna dos direitos humanos? Quais seriam as alternativas de novas gramáticas de direitos humanos para a América Latina? O reconhecimento das comunidades indígenas como sujeitos de direitos viabiliza uma gramática multicultural tendo por base a cultura indígena e os direitos da sociobiodiversidade? Qual é o papel da Corte Interamericana de Direitos Humanos na construção de uma nova gramática de direitos humanos para a 101 América Latina, principalmente no que tange às questões indígenas? Quais são as implicações da Opinião Consultiva nº 22/2016 no contexto latinoamericano? Utilizando-se do método dedutivo de abordagem e da teoria da colonialidade do poder para elucidar questões referentes aos direitos humanos na América Latina, objetiva-se demonstrar que a visão moderna, eurocêntrica e universalista de direitos humanos é incapaz de tutelar e compreender os pluralismos identitários e culturais da região e que novas alternativas vêm sendo encontradas, inclusive institucionalmente, como é o caso da postura da CIDH, para romper com tal visão moderna. Assim, o trabalho será dividido em duas grandes partes: na primeira serão expostos os riscos de uma gramática universalista moderna de direitos humanos para a América Latina (1.1) e as possibilidades de novas gramáticas advindas do reconhecimento de questões da sociobiodiversidade e de particularismos locais (1.2). Na sequência, como alternativa institucional que corrobora com a construção e consolidação de novas visões de direitos humanos no contexto latino americano, serão abordados os particularismos do direito interamericano (2.1), bem como decisões da Corte Interamericana no sentido de valorizar a postura dialógica em relação aos conhecimentos das comunidades indígenas e as implicações da OC nº 22/2016 para a região (2.2). 2 RISCOS DE UMA GRAMÁTICA UNIVERSALISTA DE DIREITOS HUMANOS PARA A AMÉRICA LATINA Duas das grandes descobertas do segundo milênio, segundo Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 188) foram a natureza e o selvagem ameríndio. Ambos são vistos, respectivamente, como lugar de exterioridade e de inferioridade, sujeitos a estratégias de poder e dominação por um paradigma epistemológico, político e econômico dominante. Apesar do fato de que o meio ambiente global tenha emergido como importante questão na política mundial nas últimas décadas é inegável que o paradigma da modernidade clássica ainda rege as relações do homem tanto com outros homens como com o meio ambiente. 102 As consequências, segundo Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 189), da manutenção desse paradigma epistemológico de percepção e interpretação de mundo são a crise ambiental e a questão da biodiversidade. A primeira se justifica pelo fato de que o paradigma da modernidade trata a natureza como um recurso a ser explorado com vistas ao desenvolvimento econômico. A segunda, por sua vez, procura repor em um novo plano a sobreposição matricial entre a descoberta do selvagem e a descoberta da natureza, de modo que no início do terceiro milênio, grande parte da biodiversidade do planeta encontra-se na posse de povos indígenas e no Sul Social do planeta. O terceiro milênio, desta forma, apresenta como propósito, em relação ao Sul Social, uma ressignificação dos conceitos de natureza e dos povos tradicionais. Todavia, para que tal ressignificação ocorra, é necessário que se faça o rompimento com o paradigma da modernidade ocidental e a superação da visão europeia e universalizante de direitos humanos (1.1), com a valorização dos particularismos interamericanos e dos direitos da sociobiodiversidade para que sejam bases para o fortalecimento de uma gramática multicultural e própria dos direitos humanos para a América Latina (1.2). 2.1 A inaplicabilidade do universalismo da concepção moderna de direitos humanos no contexto latino americano. Tomando como base o local em que se está, descolonizar é enxergar o que está ao redor de um ponto de vista próprio e não com o que fora importado de outros lugares. Essa premissa é de extrema relevância quando se menciona a América Latina. Nesta apesar de as independências de diversos países datarem de meados do século XIX e início do século XX, a ruptura ocorrida foi meramente política e administrativa em relação aos países do “lado de lá” do Atlântico, uma vez que o fim do colonialismo político enquanto forma de dominação não significou o fim das relações sociais desiguais geradas por ele (MELLO et VELHO, 2015). Esse é o sentido da teoria da colonialidade do poder, desenvolvida por Aníbal Quijano (2010). Segundo ele, embora o colonialismo político tenha tido um fim com as independências dos diversos países da América, a 103 manutenção da relação colonial ainda se encontra presente na colonização do imaginário dos dominados. As relações de poder e dominação ultrapassam a esfera meramente política, recaindo sobre os modos de conhecer, de produzir conhecimento, imagens e símbolos, através da imposição de padrões utilizados pelos dominadores, na forma de controle social e cultural (BALDE, 2014). Nesse mesmo lapso em que a dominação colonial europeia se consolida, a racionalidade moderna, também europeia, passa a ser o paradigma universal de conhecimento e o exemplo de relação entre a humanidade e o resto do globo. A predominância da metafísica, do cartesianismo e dos propósitos iluministas fazem com que na modernidade haja a abissal distinção entre sujeito e objeto, sendo o sujeito visto como indivíduo isolado, constituído em si e diante de si e o objeto, uma entidade diferente do sujeito e externo a ele. Sob essa égide, o conhecimento foi concebido à semelhança de uma propriedade, em que o sujeito congnoscente omite a existência de qualquer outro ser ou o torna objeto (BALDE, 2014). Sob o paradigma da modernidade produzem-se invisibilidades e inexistências em relação aos sujeitos não europeus, visto como objetos. Assim, o sujeito de direitos é homem, um único indivíduo – as coletividades eram excluídas – e, terra, natureza e povos não europeus são vistos como objetos de direitos. Nesse viés, Fernanda Frizzo Bragato (2014) afirma que os direitos humanos são frutos do individualismo antropocêntrico moderno em que o foco se encontrava na garantia de direitos individuais. Assim, a positivação dos direitos humanos a partir do século XVIII, com a Declaração de Independência Americana de 1776 e com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 seguem cânones liberais e individualistas como é o caso das percepções em relação à vida, liberdade e propriedade. O grande ideal dessa percepção de direitos humanos criada com a modernidade e estendida como paradigma ainda atual é o de autonomia dos particulares contra o Estado, sendo tal autonomia fruto da natureza racional do homem. A construção moderna e universalista de direitos humanos, dessa forma, corrobora com a perpetuação de invisibilidades e vulnerabilidades. O ideal de igualdade trazido pelas declarações aludidas e ainda presente na concepção epistemológica universal de direitos humanos é apenas formal, 104 ou seja, não objetiva a concessão de uma vida digna a todos indistintamente, mas aos que tem liberdade para exercê-la (BRAGATO, 2014, p. 210). Como bem explicita César Augusto Baldi (2014), a ideia de Europa e de ocidente pressupõe a admissão de outras culturas e de diferenças com outras culturas. Entretanto, essas são admitidas como desigualdades em um sentido hierárquico, uma vez que somente a cultura europeia domina a razão, é capaz de se desenvolver e pode conter “sujeitos”. As demais culturas e sociedades são vistas como inferiores por natureza ou ainda inexistentes, corroborando a teoria de pensamento abissal (SANTOS, 2010b) e de produção de invisibilidades, de modo que não podem ser sujeitos, mas somente objetos. Como refere Aníbal Quijano (2010) a colonialidade reflete eixos de um padrão de poder que possui como um de seus tripés a identidade associada a hierarquias. Na relação entre conquistadores e conquistados, a raça constituía critério fundamental para o estabelecimento de relações de poder e de dominação. Mesmo que enquanto estrutura política o colonialismo tenha chegado ao fim no século XIX na América Latina, por meio de estruturas de colonialidade do poder, a raça continuou sendo critério fundamental para distribuir a população mundial em níveis, lugares e papeis na estrutura social, em uma verdadeira classificação social universal. Neste sentido é pertinente pensar os direitos humanos frente a esse paradigma racionalista moderno que sustenta até hoje estruturas de colonialidade do poder. A concepção dos direitos humanos, ainda que no terceiro milênio, têm raízes profundas na matriz liberal e ocidental, a qual os concebe como direitos individuais, privilegiando os direitos civis e políticos. Segundo Boaventura de Sousa Santos (2014) o direito e os direitos possuem uma genealogia dupla na modernidade ocidental: de um lado uma genealogia abissal e de outro, revolucionária. Sob a ótica abissal (SANTOS, 2010b, p. 31), que repartiu o mundo através de um sistema de divisões visíveis e invisíveis - respectivamente sociedades metropolitanas e sociedades coloniais – o discurso dos direitos humanos, enquanto discurso de emancipação, foi apenas construído para vigorar do lado da linha em que estavam as sociedades metropolitanas. O lado colonial da linha abissal, por sua vez, carrega a genealogia revolucionária, de rompimento com a percepção moderna (e ainda 105 reproduzida) de direitos humanos uma vez que estes possuem vinculação com as revoluções francesa e americana, ambas feitas sob os pilares de uma sociedade burguesa que, já possuindo a hegemonia econômica, buscava a consolidação de uma hegemonia política (SANTOS, 2014). Conforme Boaventura de Sousa Santos (2014, p.21), o discurso dominante dos direitos humanos passou a ser o de dignidade humana consonante com as políticas liberais, com o desenvolvimento capitalista e suas metamorfoses e com o colonialismo e suas metamorfoses (racismo, políticas migratórias repressivas, entre outros). Desta forma, a visão hegemônica de direitos humanos possui as seguintes características: universalidade independentemente do contexto social, político e cultural, bem como dos diferentes regimes de direito existentes em diferentes regiões do globo; na sua concepção atual, são vistos como a única gramática e linguagem de oposição disponível; questionar os direitos humanos em suas supostas limitações culturais e políticas contribui para perpetuar os males que eles originalmente visam a combater; concepções predominantemente individuais, sendo que o que conta como violação é o que está descrito em declarações universais, instituições multilaterais e organizações nãogovernamentais (predominantemente do Norte Social). A visão coletiva possui pouco espaço nessa concepção hegemônica amplamente difundida de direitos humanos. A tensão entre direitos individuais e coletivos resulta da luta histórica de grupos sociais, sendo que alguns, discriminados ou excluídos somente podem ser adequadamente protegidos enquanto grupo. É o caso de afrodescendentes, minorias religiosas e, o que mais interessa a este trabalho, povos indígenas, os quais observam muito lentamente os direitos coletivos estão ingressando na agenda política (SANTOS, 2014). Assim, parece evidente que a compreensão do mundo e dos direitos humanos excede a concepção ocidental da universalidade destes. A visão hegemônica reduz o mundo ao entendimento ocidental, ignorando, invisibilizando ou trivializando experiências políticas e culturais decisivas em países do Sul Social. No entanto, movimentos de resistência contra a marginalização e a exclusão passaram a emergir nas últimas décadas e possuem raízes em identidades históricas e culturais diversificadas e multisseculares (SCHETTINI, 2012). Um desses movimentos é o dos indígenas na América Latina. 106 Para uma compreensão total da questão indígena e para o reconhecimento do direito desses povos, é necessária a superação do paradigma racionalista moderno, de universalismo formal. Evidentemente balizas de mínimo ético universal e irredutível humano reconhecido em cartas internacionais não serão dispensados, mas é preciso observar a realidade social da região. Nesse sentido, os movimentos indígenas pelo reconhecimento de suas peculiaridades culturais e por seu direito de autodeterminação fazem ecoar as vozes de um Sul Social que demanda por uma ampliação na agenda de proteção de direitos e mesmo de concepção de direitos humanos (GOMES, 2014). É nesse aspecto que surge a necessidade de complementação da agenda tradicional de direitos humanos, composta pela tutela de direitos civis e políticos, por uma agenda mais ampla e com enfoque em direitos econômicos, sociais e culturais e em direitos da sociobiodiversidade. Modificações já foram presenciadas ultimamente na esfera legislativas56, com a transformação de normas dos sistemas jurídicos a fim de introduzir direitos sociais e elementos culturais próprios das comunidades tradicionais locais no ordenamento jurídico dos países da América Latina. Isso permitiu o fortalecimento de uma epistemologia própria e de uma tentativa contra hegemônica de rompimento com a colonialidade do poder e de consolidação de uma gramática multicultural de direitos humanos para a região. 2.2 O reconhecimento de elementos da sociobiodiversidade para elaboração de uma gramática multicultural de direitos humanos na América Latina com base nos particularismos locais. Em termos de América Latina, além da diversidade de organismos vivos de todas as origens, conjuntos de agrupamentos humanos tradicionais encontram-se espalhados pelo continente, preservando culturas, tradições e saberes relativos ao local em que habitam. Nesse sentido, um dos usos da biodiversidade é o de geração e desenvolvimento de culturas diversas, cada qual com sua interpretação e visão de mundo. A diversidade, nesse sentido, é vista sob três pilares: o humano, o natural e o cultural. Os povos tradicionais convivem com a biodiversidade e 107 interagem de modo harmônico com a natureza, percebendo-a como sujeito e não como objeto pronto para ser dominado. É dessa relação que surge o termo sociobiodiversidade. O modelo desenvolvimentista calcado nos primados do racionalismo moderno, seguido por uma lógica antidemocrática de exploração e mercantilização da natureza, interpretando-a somente como objeto, foi importado para a América Latina, sendo mais uma forma de demonstração da colonialidade do poder (BALDI, 2014). Assim, a adoção do discurso técnico-científico produtivista e depredador em relação ao meio ambiente gerou afastamento da noção de sociobiodiversidade e do vislumbre da natureza enquanto sujeito. Esse discurso técnico-científico para o modelo de desenvolvimento predatório importado passou a ser visto como o discurso de verdades no interior da sociedade moderno-colonial, levando à desqualificação de outros saberes. Utilizando-se da expressão de Boaventura de Sousa Santos (2010b) tal discurso produz verdadeiros epistemicídios na América, de modo que os saberes e os conhecimentos locais são vistos de modo inferior, como subculturas que nada tem a contribuir para as estratégias econômicas previstas para a região. Inclusive sob essa ótica, a questão ambiental somente é assimilada dentro da lógica técnico-científica como recurso a ser utilizado em busca de crescimento econômico e não enquanto questão cultural e política (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 68). Boaventura de Sousa Santos (2014) neste ínterim afirma que condições ou entidades locais estenderam e estendem suas influências ao longo do mundo, a fim de, de modo hegemônico, homogeneizar as práticas e conhecimentos sob suas diretrizes balizadoras. Logo, aquilo que é dito como global ou universal não deixa de ser uma projeção de um local ou de determinado discurso. É, portanto, sobre os panos de fundo da colonialidade do poder e do paradigma da modernidade ocidental (SCHETINNI, 2012) que as questões indígena e do meio ambiente se constroem na América Latina. Desta forma, a gramática de direitos humanos desenvolvida, com a pretensão de universalidade, não abarca as questões peculiares e específicas do continente, sendo necessária uma nova gramática de proteção dos direitos humanos, valorizando a multiculturalidade (dentro da qual estão os direitos dos indígenas) e os ideais da sociobiodiversidade. 108 Em meados do século XX, na América Latina, surgiram programas governamentais para atenção aos povos indígenas, os quais trataram de elevar as condições de vida dos indígenas, mas de modo mais assistencialista do que empoderante, vez que pretendiam a integração dos povos indígenas à cultura nacional dominante, com o abandono de elementos essenciais à sua cultura. No fim do século XX e no despontar do século XXI, tanto no plano internacional como internamente dentro de alguns Estados latino-americanos, houve a emergência dos povos indígenas como atores sociais com direito à autodeterminação e ao reconhecimento e valorização de suas especificidades culturais. Documentos internacionais como é o caso da Convenção 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais de 1989 e da Declaração das Nações Unidas sobre o Direitos dos Povos Indígenas de 2007 apresentam prerrogativas relativas ao direito de autodeterminação dos povos indígenas e tribais e, embora não tenham efetivamente levado à ruptura com o paradigma ocidental moderno, contribuíram para que a agenda internacional de direitos humanos se enriquecesse e para que houvesse um fortalecimento na causa de defesa desses povos (SCHETTINI, 2012). Em conjunto com tais documentos, as vertentes mais atuais do novo constitucionalismo latino-americano vislumbradas em constituições como a da Bolívia e do Equador, demonstram a alteração de estruturas institucionais e normativas em função do reconhecimento das particularidades dos povos indígenas da região e os direitos da sociobiodiversidade. Urge, nesse contexto, pensar sobre um novo paradigma para a América Latina, baseado na dicotomia das epistemologias do sul e na valorização dos conhecimentos e dos direitos da sociobiodiversidade. Essas duas bases para a construção de um novo ideário epistemológico para a América Latina propõem-se a valorizar os saberes locais e os conhecimentos dos povos tradicionais percebendo o continente como uma região rica em culturas e diversidade e não como uma subcultura em relação aos modelos europeus. Tais povos, apesar do genocídio e epistemicídio sofrido ao longo dos séculos, possuem uma enorme capacidade de resistência, além de uma identidade cultural capaz de resistir e sobreviver mesmo ao modelo desenvolvimentista excludente (SCHETTINI, 2014). Assim sendo, na batalha contra a modernidade colonial, duas são as frentes em que a luta 109 indígena se destaca: a primeira delas é assegurar a existência de disposições normativas capazes de resguardar seus direitos dentro da lógica do próprio sistema e a segunda é a resistência, com base nos direitos da sociobiodiversidade e na busca de concepções mais amplas de direitos humanos, que serve de base para a construção de uma racionalidade alternativa. O primeiro aspecto já fora demonstrado com a inclusão de questões indígenas na agenda internacional por meio de Convênios e Convenções específicas, tanto em âmbito global como regional. Entretanto, embora se tenha a inclusão da questão em tratados e normas internacionais, a construção de um sistema alternativo que quebre com aspectos do paradigma moderno racionalista necessita de uma nova gramática de interpretação dos direitos humanos para a questão indígena na América Latina, que vai além da mera afirmação de igualdade formal entre os povos. Isso porque, consoante fora explanado anteriormente, os direitos humanos, como produtos da racionalidade moderna, historicamente foram interpretados de modo a serem cúmplices da lógica colonizadora (HERRERA FLORES, 2009). Nesse aspecto que envolve os direitos humanos, a igualdade formal não basta para que se tenha a tutela efetiva de determinado grupo minoritário ou vulnerável. A visão de individual, abstrata, genérica e universalista dos direitos humanos acaba por não abarcar as peculiaridades da questão indígena. É preciso avaliar as especificidades culturais e os particularismos, na compreensão de que a mera proteção de um mínimo ético universal e o irredutível humano apresentado na noção abstrata e universalista dos direitos humanos, não abarca a dignidade da pessoa humana em seu aspecto cultural, não tutelando de fato os povos indígenas nas suas peculiaridades. Somente com a definição de políticas específicas que os espaços são abertos para a real descolonização das relações sociais e políticas (SCHETTINI, 2012). A base, portanto, para a construção de uma nova racionalidade, com o reconhecimento de diferentes identidades e culturas vistas em suas peculiaridades, com a proteção de grupos vulneráveis e pretensão de um modelo alternativo de desenvolvimento pode ser encontrada no reconhecimento do direito da multiculturalidade e da sociobiodiversidade, uma vez que estas rompem com a metafísica moderna de divisão entre 110 sujeito e objeto e, têm por base uma visão holística do mundo como um todo integrado (CAPRA, 2006). Imperiosa, portanto, a incorporação das bases da sociobiodiversidade para a gramática multicultural de direitos humanos na América Latina, a fim de reconhecer a diversidade cultural e natural da região como um dos pontos de conflito para a superação do paradigma racionalista moderno. Nesse aspecto, apesar de a luta pelo reconhecimento das epistemologias do sul e pelos direitos dos povos tradicionais latino americanos – em especial os povos indígenas – ser ampla, as esferas jurídica e legal podem ser instrumentos interessante para estimular bases de uma ruptura paradigmática com a colonialidade do poder e com o paradigma ocidental moderno. 3 CONTRIBUIÇÕES DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS PARA A CONSTRUÇÃO DE NOVAS GRAMÁTICAS DE DIREITOS HUMANOS POR MEIO DOS PARTICULARISMOS: AS IMPLICAÇÕES DA OPINIÃO CONSULTIVA NÚMERO 22/2016 E A QUESTÃO INDÍGENA. Herrera Flores (2009) ao trabalhar com direitos humanos e povos tradicionais aborda questionamentos interessantes e extremamente complexos. Um deles é: “podem confiar os coletivos tradicionalmente oprimidos e subordinados pelo conjunto de relações capitalistas no Direito Internacional dos Direitos Humanos como único instrumento de solução de seus problemas?”. Evidentemente que as questões envolvendo esse tema não podem somente ser resolvidas na seara jurídica, seja ela judicial ou legislativa, através de normas ou jurisprudência. Entretanto, embora seja importante a adoção de uma visão crítica acerca de até que ponto o edifício normativo e jurisprudencial pode romper com a estrutura de dominação e exploração das relações do capitalismo (SCHETTINI, 2012), não se deve desconsiderar o direito enquanto um possível instrumento de mudança, sendo um dos instrumentos disponíveis para os povos indígenas contra o modelo moderno-colonial ainda vigente. 111 Apesar de a luta indígena ir muito além da esfera jurídica, este capítulo analisará de que modo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a partir dos particularismos latino-americanos, vem se posicionando acerca de questões indígenas e contribuindo para a consolidação de gramáticas locais relativas aos direitos humanos (2.1), bem como quais são as implicações da decisão consultiva mais recente da CIDH, a Opinião Consultiva nº 22/2016 que reconheceu a comunidades indígenas e tribais a titularidade de direitos tutelados pelo Pacto de São José da Costa Rica (2.2). 3.1 O particularismo interamericano e as questões indígenas. No mundo existem três grandes sistemas regionais de proteção aos direitos humanos: o sistema europeu de proteção aos direitos humanos, cujo principal documento é a Convenção Europeia dos Direitos do Homem; o sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, que possui como baluarte a Convenção Americana de Direitos Humanos e, por último, o sistema africano de direitos humanos, instrumentalizado pela Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos. Tais instrumentos normativos apresentam direitos humanos positivados conforme as estruturas modernas, principalmente no que tange à proteção dos direitos vinculados ao indivíduo e não a uma coletividade. No entanto, os órgãos institucionais de cada um desses sistemas, tendo as convenções e tratados como elementos norteadores, são capazes de, consoante a realidade das regiões em que se inserem, interpretar de modo diferenciado determinadas questões, assumindo postura ora conservadora, ora vanguardista. Desta forma, costuma-se afirmar que cada um dos sistemas regionais dos direitos humanos apresenta a dicotomia de seguir premissas normativas universais em relação aos direitos do homem, porém, apresentar particularismos em sua jurisprudência. Como assevera Ludovic Hennebel (2009, p. 78) a jurisprudência do órgão contencioso e consultivo do sistema interamericano de direitos humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) é frequentemente original, criativa ou vanguardista e, por vezes, juridicamente não conformista, capaz então de reivindicar os particularismos interamericanos. Hennebel divide em cinco os prismas em que o particularismo interamericano se reflete: a) penalização; b) 112 constitucionalização; c) humanização, d) moralização e, e) subjetivização do direito interamericano (HENNEBEL, 2009, p. 79). Os aspectos que interessam a este trabalho se inserem no prisma da subjetivização do direito interamericano, porém, é pertinente destacar as características de cada um dos outros prismas. A penalização do direito interamericano, por exemplo, reflete-se pelo cariz penal de grande parte das demandas existentes junto à CIDH até hoje. O órgão jurisdicional do sistema iniciou, que iniciou seus trabalhos em 1979, durante as primeiras décadas, teve o exercício de sua competência contenciosa restrito, em grande parte, a casos envolvendo questões vinculadas aos crimes ocorridos durante as ditaduras militares de diversos países da América Latina. Desta maneira, Hennebel (2009, p. 84) destaca a coloração penal da maioria dos processos julgados ou em julgamento pela CIDH, agindo esta contra a impunidade de delitos perpetrados pelos próprios Estados. Outro particularismo exposto por Hennebel (2009, p. 91) é a constitucionalização do direito interamericano. Isso significa que a CIDH não se limita a interpretar a Convenção Americana de Direitos Humanos ou apenas controlar seu respeito. Sua tarefa é mais abrangente, no sentido de contribuir para instaurar uma verdadeira cultura de direitos humanos e justiça na América Latina. Assim, além da inclusão de elementos da Convenção Americana em constituições estatais, o direito interamericano produzido pela jurisprudência da CIDH, bem como os pareceres consultivos desta influenciam em políticas públicas estatais, legislações internas e decisões judiciais. Reflexo de tal postura se dá por meio do controle de convencionalidade. Em breve histórico da CIDH, destaca-se que no caso Almonacid Arellano vs Chile, de 2006 a Corte afirmou que o poder judiciário dos Estados deve exercer o controle de convencionalidade entre as normas internas que aplicam aos casos concretos e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Assim como devem observar a Convenção, os Estados também têm o dever de observar a interpretação que a CIDH dá à Convenção tanto em sua jurisprudência como em suas opiniões consultivas. Desta maneira, não só juízes, mas todos os níveis da administração da justiça têm a obrigação de exercer de ofício o controle de convencionalidade. Logo, tanto o Poder Judiciário de cada Estado quanto 113 seus poderes Executivo e Legislativo possuem o dever de pautar suas decisões não só em consonância com a Constituição, como também com o Pacto de San José da Costa Rica e as manifestações da CIDH. Na sequência, outro particularismo interamericano se reflete na chamada humanização do sistema interamericano. Segundo Hennebel (2009, p. 97) o eixo em torno do qual a Convenção Americana e as decisões da CIDH giram é o ser humano. Este é beneficiário de direitos e vítima de violações. Com essa dupla característica, a CIDH contribui, em sua jurisprudência, para conceitualizar uma dimensão interamericana em matéria de direitos humanos centrada na vítima. Como bem refere Hennebel (2009, p.104) a humanização do direito interamericano será materializada pela concepção muito extensiva da justiça, que deve proteger efetivamente e concretamente os indivíduos ameaçados e lhes oferecer recursos úteis em caso de violação. A moralização se constitui como um quarto particularismo do direito interamericano pode ser brevemente resumida como a capacidade da Corte Interamericana de adequar as medidas de reparação que pode ordenar aos Estados. Desta forma, a maioria dos casos não envolve apenas a obrigação de indenizar as vítimas por violações ocorridas, mas também outras ações e medidas que tenham objetivos mais amplos como são os casos de realização de cursos, de criação de monumentos ou memoriais de homenagem a atos ou pessoas, de prestações de saúdes ou educativas, entre outros. A Corte, portanto, se mostra paternalista e pedagógica ao atribuir ao Estado violador medidas com vistas de educar em direitos humanos. Por fim, o particularismo interamericano que interessa ao presente trabalho e que reflete em questões indígenas é o da subjetivização do direito interamericano. Indubitavelmente o ser humano é o centro da tutela e proteção do sistema interamericano, sendo que a subjetivação aponta para a tomada em consideração do critério da vulnerabilidade. Como explica Hennebel (2009, p. 80) a Corte conforme seu método interpretativo interessa-se mais pela percepção subjetiva do titular de direitos humanos do que pela percepção objetiva. Isso significa que, embora os elementos normativos do sistema apresentem o ser humano de modo genérico enquanto figura principal a obter tutela de seus direitos, a Corte possui liberdade de interpretação no que tange à definição pormenorizada dos titulares de direitos. Objetivamente, no texto da Convenção Americana, defende-se a tutela do 114 homem individual e concebido como tal pelo discurso hegemônico dos direitos humanos. Todavia, é na interpretação da Corte que se encontra o particularismo se sobrelevar aspectos específicos das situações ou dos indivíduos que tiveram seus direitos violados. Nesse ponto inserem-se as questões indígenas, a partir do momento em que as crenças religiosas, filosóficas e espirituais dos grupos indígenas são levadas em conta pela Corte no momento de estabelecer suas decisões. Hennebel (2009, p. 82) no que tange às demandas envolvendo grupos indígenas e comunidades tribais, afirma que a Corte realiza um processo de interpretação sociológica da Convenção Americana, ao compreender as disposições normativas desta à luz das crenças e compreensões dos povos referidos. Urge salientar, conforme se verá mais adiante que o esforço do direito interamericano propagado nas decisões da Corte envolvendo questões indígenas passa pela compreensão e promoção do pluralismo e não pela mera tentativa de adequar as crenças desses povos à visão hegemônica de direitos humanos. Há de fato reconhecimento das crenças, valores e experiências indígenas e não mera tolerância, corroborando a existência de um entrelaçamento pluridimensional e multiangular em torno dos direitos humanos (2009, p. 266). Tendo como base a necessidade de diálogo e de compreensão da pluralidade, os particularismos interamericanos encontrados na jurisprudência consultiva e contenciosa da CIDH são capazes de estabelecer bases para a elaboração de novas gramáticas de direitos humanos na América Latina. A seguir essa postura de reconhecimento do pluralismo será abordada a partir da exposição de casos importantes em que a CIDH valorizou direitos de comunidades locais, bem como será apresentada a Opinião Consultiva nº 22/2016 que estabelece a titularidade dos direitos tutelados pelo sistema interamericano para grupos indígenas e comunidades tribais. 3.2 As implicações da Opinião Consultiva número 22/2016 da Corte Interamericana de Direitos Humanos em relação a comunidades indígenas. 115 O território latino-americano possui como particularidade a presença de comunidades indígenas e populações autócnes distribuídas ao longo da extensão geográfica. Jean Dhommeaux (2009, p. 184) destaca que a situação social dos indivíduos pertencentes a esses grupos é caracterizada pela inferioridade e desdém em relação a sua cultura. A vulnerabilidade destes possui elementos históricos, desde o início da colonização da América Latina, com as tentativas de genocídio físico e cultural, usurpação de suas terras e, tratamento como indivíduos de segunda classe. A gramática hegemônica moderna de direitos humanos invisibiliza esse processo de vulnerabilidade e, consoante a matriz individualista de seu cerne, é incapaz de compreender a condição dos indígenas enquanto grupo e as especificidades de suas crenças. Nos últimos anos, no entanto, a complexidade e a pluralidade da composição indígena do território da América Latina estão sendo reconhecidas pela CIDH, que, em uma postura de reconhecimento e valorização dos particularismos locais vem se abrindo ao diálogo com vistas ao aprendizado recíproco. Desta maneira, a grande maioria dos casos envolvendo comunidades indígenas até hoje julgados pela CIDH abordam pontos sobre direito de propriedade comunal das comunidades indígenas, questões sobre vida digna e casos acerca do direito de consulta prévia das populações, de modo que em alguns desses quesitos, a corte demonstra avanços em relação à construção de um novo paradigma para a América Latina, em outros demonstra ainda estar comprometida ou arraigada a noções do racionalismo moderno, com pouca abertura para um diálogo multicultural. Na temática que envolve o conceito de vida digna, a CIDH interpreta que ter uma vida digna significa ter acesso condições necessárias para uma vida digna, sendo que o Estado, nesse aspecto possui obrigações negativas de não provar seus cidadãos e obrigações positivas de garantir elementos básicos para uma vida digna (SCHETTINI, 2012). Todavia, ao analisar tal questão, a CIDH em geral tem como base noções europeias e advindas da modernidade ocidental a respeito de vida digna. Para a Corte, nessa temática, o Estado enquanto garante, tem a obrigação de adotar medidas mais concretas e orientadas a real proteção do direito à vida digna, sobretudo em questões envolvendo grupos em estado de vulnerabilidade. No caso de questões indígenas, o acesso à terra é um dos pontos básico para a vida digna da comunidade e embora a Corte tenha 116 reconhecido isso, o conceito de vida digna num sentido amplo ainda segue as concepções do paradigma da modernidade (SCHETTINI, 2012). Prova disso é que os direitos econômicos, sociais e culturais, que se ligam intrinsecamente ao direito à vida na CIDH, ainda não incluem a riqueza das formas alternativas de vida das comunidades indígenas, que valorizam mais as formas de vida coletivas do que as individuais. Prova disso é o regime de Bem Viver, que ainda não é mencionado de forma recorrente pela CIDH, ou seja, não há diálogo intercultural e as visões indígenas não são postas em debate pela corte. Três casos da jurisprudência da Corte abarcam a questão do direito à vida enquanto direito à vida digna: o caso Comunidade Indígena Yakye Axa vs. Paraguai, de 2005, o caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai, de 2006 e o caso Comunidade Indígena Xákmok Kásek vs. Paraguai, de 2010. Em todos os casos houve expulsão dos indígenas de suas terras em razão de privatizações no Paraguai. Em razão desses processos feitos em nome de uma noção exploratória de desenvolvimento, desenvolveu-se um estado de vulnerabilidade alimentar, médica e sanitária nessas comunidades, uma vez que elas, em razão da sua proximidade com a terra dependiam de forma material e espiritual desta. Nesses três casos, o Estado Paraguaio foi condenado e considerado responsável por violações ao direito de vida digna e integridade dessas comunidades, vez que foram privadas do direito à saúde, à educação, à alimentação e outras garantias básicas que somente poderiam ser supridas com o acesso à terra. Assim, pertinente análise de Andrea Schettini (2012) de que embora afirmar que o direito à vida digna seja um passo fundamental que deve ser reconhecido como uma conquista para a proteção internacional do direito dos povos indígenas, a ausência de diálogo intercultural e de percepção plena da concepção de vivência em comunidade, faz com que as interpretações da CIDH nesta matéria não sejam suficientes para romper com o paradigma moderno de exploração, opressão e exclusão dos povos indígenas. Em um segundo aspecto, a temática mais recorrente em demandas indígenas julgadas pela Corte é o de proteção de propriedade comunal, que envolve desapropriações, deslocamento, venda ou qualquer outra utilização feita pelo Estado ou por entidades particulares. Sobre tal questão, a 117 integridade de julgados da Corte interpreta o conceito de propriedade para além do conceito moderno e individualista de propriedade privada. A Corte aborda a propriedade sob um viés coletivo57, introduzindo em sua jurisprudência a noção de dimensão cultural, social e coletiva de propriedade, cujo traço de ligação com os ancestrais por meio da terra e a relação cultural e espiritual de ligação com a natureza faz com que a terra não seja mero objeto de posse ou de propriedade destinado a um fim exploratório, mas que seja um elemento transgeracional e transfronteiriço58 capaz de ser um referente espacial de uma identidade coletiva. Além disso, um exemplo de que a jurisprudência da CIDH abarca conhecimentos da sociobiodiversidade é o fato de considerar que o direito à propriedade comunal não recai somente sobre o território físico, mas também recai no direito de os povos gozarem livremente da propriedade e dos recursos oferecidos pela natureza nesse território59. Ainda é preciso destacar que a garantia desse direito independe de formalidades burocráticas, ou seja, de escritura ou título de propriedade. Esse é o entendimento, por exemplo, do caso Moiwana vs. Suriname, de 2005, no qual a Corte asseverou que o direito de propriedade persiste mesmo sem título e mesmo que a comunidade tenha sofrido perturbações na posse. Em todos os casos julgados pela CIDH envolvendo propriedade comunal, os Estados foram condenados a restituir, satisfazer, não repetir, pagar indenizações por danos materiais e imateriais causados e devolver as terras, ou, caso não fosse viável fazer isso, conceder o acesso a outra gleba de mesma extensão e qualidade que deverá ser escolhida pelos indígenas (SCHETTINI, 2012). Ainda outra questão interessante e que demonstra certo avanço da Corte no sentido de ruptura com a aplicação de conceitos da modernidade ocidental para as questões indígenas se dá nas questões das reparações. Até o julgamento do caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Equador, julgado em 2012, a Corte vinha determinando reparações em relação a cada um dos membros da comunidade que teve seu direito violado, em sua individualidade. Todavia, neste caso mencionado, o órgão jurisdicional do sistema interamericano declara que a comunidade é um sujeito coletivo autônomo e, como tal, era coletivamente beneficiária das reparações. 118 Por fim, a última temática que já fora julgada pela CIDH em relação a comunidades indígenas: o direito dos povos à consulta prévia. Esse direito, em sua forma normativa, encontra-se tutelado no sistema interamericano no artigo 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Tal disposição determina que é dever dos Estados promover o direito a consulta prévia, uma vez que para os indígenas a consulta se configura em um meio necessário para a expressão de autodeterminação, ou seja exercer controle sobre seus próprios destinos e participar com igualdade na construção e desenvolvimento da ordem institucional governamental, rechaçando ou vetando eventuais ações do Estado que seja incompatível com suas formas de vida. Nesse aspecto, três são os casos com aportes da CIDH sobre consulta prévia: caso Saramaka vs. Suriname, julgado em 2005, caso Comunidade Indígena Xákmok Kásek vs. Paraguai, de 2010, caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Equador, julgado em 2012. Destaca-se o primeiro dos casos, no qual a Corte faz uma diferenciação entre consulta e consentimento. O caso abarca a outorga de terras indígenas a empresas privadas e nele a CIDH afirmou que consultas são sempre necessárias e consentimento, por sua vez, só é exigido no caso de projetos de grande dimensão que tenham maior impacto. Ainda determinou que as consultas devem observar os métodos tradicionais de tomada de decisões dos povos consultados. A partir dessa base jurisprudencial, fevereiro de 2016, respondendo a uma solicitação da República do Panamá, a CIDH emitiu a Opinião Consultiva nº 22 posicionando-se acerca da titularidade das pessoas jurídicas no sistema interamericano de direitos humanos. Nesta OC estabeleceu-se que a Convenção Americana de Direitos Humanos não atribui a pessoas jurídicas a titularidade de direitos reconhecidos no âmbito da convenção. Assim, por considerar que pessoas jurídicas não são titulares de direitos convencionais, estas não podem ser consideradas como possíveis vítimas em processos contenciosos diante da CIDH. No entanto, nessa mesma Opinião, a Corte considerou que comunidades indígenas e tribais da América Latina podem ser consideradas titulares de direitos protegidos pelo sistema interamericano, de modo que são capazes de defender os direitos próprios da comunidade enquanto ente coletivo, assim como interesses dos membros em particulares. O fundamento jurídico e normativo para tal decisão foi estabelecido a partir, principalmente, da 119 observância da jurisprudência da CIDH nas questões envolvendo comunidades indígenas e tribais. A observância das motivações sociais e filosóficas, no entanto, é que são capazes de apontar as inovações desse posicionamento. Reconhecer as comunidades e grupos indígenas e tribais como titulares de direitos no sistema interamericano significa reconhecer que a cultura desses povos valoriza a coletividade, os indivíduos dentro de um grupo e não enquanto indivíduos isolados. Ao reconhecer isso e ao abordar certas questões como propriedade sob a ótica indígena, a Corte inicia o processo do que Boaventura de Sousa Santos (2010) chama de hermenêutica diatópica, ou seja, o elemento forte de uma cultura, seu topoi, pode dialogar com elementos menos fortes de outras culturas, configurando um processo de troca e de valorização da pluralidade. Assim, o topoi dos grupos e comunidades indígenas é compreendido pela CIDH e utilizado por ela em suas decisões e na opinião consultiva destacada, mesmo que a estrutura normativa do sistema interamericano se baseie em elementos clássicos e individuais dos direitos humanos. Há, portanto, alguns direitos que membros das comunidades indígenas só são capazes de gozar no momento em que estão dentro de um grupo, vez que o exercício se dá de modo coletivo. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A teoria da colonialidade do poder demonstra que o paradigma racionalista moderno ocidental ainda se demonstra como corolário em relação a muitas regiões do globo e em relação a muitos assuntos e conceitos. Por isso é possível afirmar que na América Latina, em questões envolvendo direitos humanos, a gramática de interpretação que era vista como predominante era a da racionalidade moderna, de concepção universalista e abstrata de direitos humanos, com enfoque para os direitos individuais. Todavia uma nova gramática de direitos humanos é necessária para a região, justamente para que os povos tradicionais da região passem a ser sujeitos e não meros objetos do discurso dos direitos humanos. Para tanto, a gramática necessária para os direitos humanos na região é a que envolva as 120 peculiaridades e particularidades dessas culturas dos povos tradicionais, ou seja, é a que tenha por base os direitos da sociobiodiversidade. Embora a questão de superação de um paradigma seja um problema complexo, o direito, embora em alguns momentos tenha corroborado com a lógica de exploração e opressão do capitalismo e do colonialismo, pode, quando utilizado de forma contra hegemônica, ser um instrumento para a criação de uma concepção intercultural de América Latina. Nesse aspecto se insere a postura dialógica da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que em conjunto considerável de decisões jurisprudenciais se abriu ao diálogo com a cultura de comunidades indígenas e passou a reconhecer especificidades culturais de suas tradições sendo tal postura um particularismo da CIDH. O auge dessa postura dialógica e de valorização do pluralismo se deu com a Opinião Consultiva nº 22/2016, a qual reconheceu que comunidades indígenas e tribais da América Latina possuem titularidade dos direitos tutelados pelo sistema interamericano. Tal reconhecimento, sob o ponto de vista sociológico corrobora com a abertura da Corte para o reconhecimento de particularismos indígenas, na compreensão de que para a tradição desses povos o exercício e gozo efetivo de certos direitos, como o de propriedade, só podem ocorrer pelo viés coletivo. Assim, vislumbra-se um papel ativo da CIDH na disposição de surpreender-se em um aprendizado recíproco com a experiência com o outro, auxiliando no processo de ruptura com as premissas da modernidade ocidental. 5 REFERÊNCIAS BALDI, César Augusto. De/colonialidade, Direito e Quilombolas – Repensando a questão. In: FILHO, Carlos Frederico Marés de Souza, FERREIRA, Heline Sivini; NOGUEIRA, Caroline Barbosa Contente. Direito Socioambiental: uma questão para a América Latina. Curitiba: Letra da Lei, 2014. BRAGATO, Fernanda Frizzo. Para além do discurso eurocêntrico dos direitos humanos: contribuições para além da descolonialidade. Novos Estudos Jurídicos. v.19, n. 1, p.5, 2014. Disponível em: http://siaiweb06.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/5548. Acesso: 11 jun 2014. CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2006. DHOMMEAUX, Jean. 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Acesso: 15 jul 2016. 122 AVANÇOS E LIMITES DA JURISPRUDÊNCIA DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS NA PROTEÇÃO SOCIOAMBIENTAL Márcio Morais Brum60 Rafaela da Cruz Mello61 RESUMO Este trabalho realiza um estudo da jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em matéria de proteção socioambiental, para responder se o Sistema dialoga com os aportes teóricos da ecologia política e reivindicações dos movimentos sociais de defesa socioambiental. Utiliza o método dedutivo de abordagem, visto que as conclusões se baseiam numa generalidade de casos analisados. O texto está organizado em três partes: uma exposição da jurisprudência do Sistema em matéria de proteção socioambiental; uma abordagem sobre a abertura do Sistema ao diálogo com os aportes da ecologia política; e uma análise da sua abertura ao diálogo com os movimentos sociais. Palavras-chave: Sistema Interamericano de Direitos Humanos; Proteção socioambiental; Diálogos. 1 INTRODUÇÃO Na sociedade em rede são poucos os temas que podem ser abordados exclusivamente desde uma perspectiva local, possibilidade que diminui quando se está diante de um assunto cuja natureza do objeto principal é incompatível com as fronteiras artificiais criadas pelo homem, sendo este o caso da problemática sobre proteção socioambiental. Na medida em que os problemas relacionados ao meio-ambiente se transnacionalizam, as soluções já não podem ser encontradas localmente e passam a depender de discussões e acordos realizados em fóruns e organismos internacionais, dentre eles os tribunais de justiça. Cada vez mais proliferam e se consolidam espaços transnacionais de discussão, o que não significa, todavia, que se esteja a caminhar 123 necessariamente rumo a uma maior democratização da participação popular nas discussões e decisões políticas. Para tanto, há que se dialogar com a sociedade civil e movimentos sociais, inclusive no que diz respeito à produção do direito e aplicação pelos tribunais. Em matéria socioambiental, isso requer a abertura dos tribunais ao diálogo e aprendizagem com os conhecimentos produzidos pela ecologia política e com as reivindicações populares. Os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos cumprem papel importante na tutela da dignidade humana, não só em sua dimensão individual, mas também coletiva naquilo que diz respeito ao direito de se ter uma vida de qualidade em um meio ambiente saudável. Este trabalho objetiva realizar um estudo da jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), em matéria de proteção socioambiental, para responder ao seguinte questionamento: a jurisprudência do SIDH dialoga com os aportes teóricos da ecologia política e com as reivindicações dos grupos e movimentos sociais de defesa socioambiental? A pesquisa tem como base teórica a produção científica de autores da ecologia política, do direito internacional dos direitos humanos e dos críticos da globalização hegemônica. Utiliza o método dedutivo de abordagem, visto que as conclusões específicas sobre os avanços e limites da jurisprudência do SIDH são deduzidas a partir da generalidade dos casos sobre proteção socioambiental analisados. O trabalho está organizado em três partes: inicia com uma exposição da jurisprudência do Sistema Interamericano em matéria de proteção socioambiental; passa à abordagem sobre a necessidade de abertura do Sistema ao diálogo com os aportes científicos da ecologia política; e termina com uma análise sobre sua abertura ao diálogo com os movimentos sociais. 2 JURISPRUDÊNCIA DO SIDH SOBRE PROTEÇÃO SOCIOAMBIENTAL A conexão entre proteção ambiental e direitos do homem é reconhecida desde a primeira Conferência das ONU sobre o meio ambiente humano, realizada em Estocolmo, em 1972. O evento culminou na publicação da Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano, que em seu parágrafo 124 1º refere que “os dois aspectos do meio ambiente humano, o natural e o artificial, são essenciais para o bem-estar do homem e para o gozo dos direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à vida mesma”. Orellana (2007) percebe que, além do reconhecimento do vínculo entre meio ambiente e direitos humanos pelos instrumentos do direito internacional, os mecanismos regionais de proteção dos direitos humanos têm estreitado esses vínculos, em duas vertentes: por uma via se tem identificado o conteúdo ambiental de certos direitos protegidos, como o direito à vida, à integridade pessoal, à vida privada e o acesso à informação; e por outra via tem-se precisado as limitações permitidas ao exercício de certos direitos por razões ambientais, incluindo uma análise de necessidade, proporcionalidade e interesse público. No SIDH, a base jurídica da proteção dos direitos humanos é a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, de 1969. Embora não contenha previsão específica de qualquer direito ambiental, o dever de proteção dos recursos naturais como forma de garantir a sadia qualidade de vida se amolda ao disposto no art. 26 do Pacto, que trata do compromisso dos Estados em adotar providências a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da OEA. E, de fato, a prática da Corte Interamericana e da Comissão Interamericana vem demonstrando que é possível a proteção ambiental por meio de estratégias e técnicas que vinculem temas ambientais aos dispositivos da Convenção relacionados às garantias judiciais, ao direito à vida e à integridade pessoal, dentre outros (MAZZUOLI & TEIXEIRA, 2013). Ao lado do Pacto de San Jose da Costa Rica, o direito ao meio ambiente sadio vem disciplinado no artigo 11 do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador): “Artigo 11. Direito a um meio ambiente sadio. 1. Toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente sadio e a contar com os serviços públicos básicos; 2. Os Estados - Partes promoverão a proteção preservação e melhoramento do meio ambiente”. Este dispositivo demonstra a preocupação do Sistema Interamericano em garantir o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e ratifica o entendimento de que esse direito é considerado um direito humano fundamental. 125 Na prática, o aperfeiçoamento da jurisprudência regional interamericana sobre o tema do meio ambiente vem sendo realizado desde 1985, quando a Comissão Interamericana se debruçou sobre o caso Povo Yanomami x Brasil. A controvérsia estava relacionada à construção de uma estrada que passava pelo território Yanomami, e que havia trazido doenças e outros malefícios para os integrantes da tribo. A Comissão Interamericana constatou violações da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem com respeito ao direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal e ao direito à preservação da saúde e do bem-estar. Em seu Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil de 1997, a Comissão atestou que a integridade dos Yanomamis vinha sendo agredida por garimpeiros invasores e pela poluição ambiental por estes gerada, o que os mantinha em permanente situação de perigo em razão da contínua deterioração do seu habitat (CIDH, 1997). Posteriormente, a CIDH foi chamada a intervir na solução do caso da Comunidade indígena AwasTingni Mayagna (Sumo) x Nicarágua, relativa a disputa sobre demarcação de terras indígenas. A controvérsia acabou sendo remetida à Corte Interamericana, diante do fracasso da demarcação do território e da perspectiva do desmatamento sancionado pelo governo naquelas terras, o que constituiria uma violação da Convenção Americana. Em 2001, a Corte decidiu que o Estado violou os artigos 21 e 25 da CADH, ordenando a demarcação das terras dos Awas Tingni. (CORTE IDH, 2001). Além dos casos mencionados, vários outros relacionados ao meio ambiente já foram apreciados pela CIDH, como caso Comunidade de San Mateo de Huanchor v. Peru; caso Comunidade de La Oroya v. Peru; caso Mayasdel Toledo vs. Belize; casoTangamandápio v. Eldorado; e caso Victorio Spoltore vs. Argentina. Em todos eles, a Comissão constatou violações de direitos humanos relacionados ao ambiente e solicitou a tomada de providências pelos Estados para resolver tais situações. No que tange à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, até o presente momento não houve a submissão de nenhum caso visando a declaração da existência de uma violação direta ao direito humano ao meio ambiente sadio. Contudo, a matéria ambiental já foi objeto de análise do Tribunal, ocasiões em que violações ao direito ambiental foram reconhecidas de forma subsidiária à violação de direitos civis e políticos. 126 A primeira decisão da Corte, que se refere indiretamente à questão ambiental, foi exarada no caso Claude Reyes e outros vs. Chile, em 2006, referente à negativa do Estado do Chile de prestar informações sobre investimentos de uma empresa florestal no projeto de desflorestamento de montes nativos, que seria executado na ١٢ª região do Chile, para a instalação de uma serralheria e uma fábrica de chips, e que, segundo os denunciantes, poderia ser prejudicial ao meio ambiente e impedir o desenvolvimento sustentável da nação (CORTE IDH, ٢٠٠٦). A justificativa do Estado para a negativa das informações foi que estas estariam resguardadas pela confidencialidade relacionada ao direito de privacidade dos titulares da propriedade intelectual e tecnologia industrial. Na decisão, a Corte afirma que a informação sonegada era de interesse público, em razão do impacto ambiental que o projeto poderia causar, e que ao negar o seu fornecimento o Estado violou o artigo ١٣ da Convenção Americana dos Direitos Humanos. Neste caso, portanto, embora a questão do acesso à informação estivesse ligada ao assunto meio ambiente, não houve análise específica referente à problemática ambiental. Em 2007, a Corte julgou o caso Saramaka v. Suriname, cuja controvérsia girava em torno das concessões outorgadas pelo Estado a empresas madeireiras e de mineração para que explorassem suas atividades danosas ao ambiente na zona do Rio Suriname Superior, atingindo o território do povo Saramaka. Esta etnia compõe uma tribo com características culturais específicas e uma identidade conformada por uma complexa rede de relações com a terra e as estruturas familiares (CORTE IDH, 2007). Na apreciação do caso, a Corte afirma que, diante das provas apresentadas, o nível da consulta realizada pelo Estado ao povo Saramaka não foi suficiente para garantir sua participação efetiva no processo de tomada de decisões, além do que o Estado não levou a cabo nem supervisionou os estudos de impacto ambiental e social antes de emitir as concessões, as quais afetaram recursos naturais necessários para a subsistência econômica e cultural do povo Saramaka. A exploração ambiental na região, além de ter deixado um legado de destruição ambiental, privação dos recursos de subsistência e problemas espirituais e sociais, não gerou nenhum benefício aos povos do local. Em sua decisão, a Corte estabelece que, antes da outorga de concessões à projetos de desenvolvimento no território tradicional Saramaka, o Estado 127 deveria garantir a realização de estudos sobre impacto ambiental e social por entidades independentes e tecnicamente competentes, além de implementar medidas e mecanismos adequados para minimizar o prejuízo que esses projetos podem ter sobre a capacidade de sobrevivência social, econômica e cultural dos Saramakas. O Tribunal definiu que a consulta é um requisito procedimental que deve ser cumprido necessariamente antes da tomada de decisões. O seu não cumprimento determina a invalidez das medidas tomadas em inobservância a essa exigência. Recentemente, em junho de 2012, a Corte Interamericana apreciou o Caso Pueblo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Ecuador. O caso esteve relacionado à responsabilidade internacional pela violação dos direitos à consulta, à propriedade comunitária indígena e à identidade cultural, nos termos do artigo 21 da Convenção Americana, em conjunção com os artigos 1.1 e 2 do mesmo artigo, em detrimento do povo indígena Kichwa de Sarayaku (CORTE IDH, 2012). Na apreciação do caso, o Tribunal reafirmou que a exploração de recursos naturais nos territórios ancestrais, para que não signifique a negação dos meios de subsistência dos povos indígenas, deve ser precedida da realização de um processo participativo que garanta o direito à consulta; elaboração de estudo de impacto ambiental; e repartição razoável dos benefícios resultantes da exploração dos recursos naturais, segundo o que a própria comunidade determine e resolva sobre quem serão os beneficiários, de acordo com seus costumes e tradições. No entanto, no conhecido caso Belo Monte, semelhante aos demais no que diz respeito à não realização de adequada consulta prévia aos povos atingidos e aos impactos ambientais negativos na região de construção da usina hidrelétrica, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos adotou postura diversa. Embora, num primeiro momento, a Comissão Interamericana tenha outorgado medida cautelar recomendando ao Estado brasileiro a imediata suspensão das obras até que fosse realizado processo de consulta às comunidades afetadas e houvesse efetiva cessação das violações aos direitos humanos dos povos atingidos, posteriormente o Órgão reavaliou a decisão retirando a recomendação de suspensão das obras e realização da consulta prévia, sob a justificativa de que “o debate entre as partes no que se refere a consulta prévia e ao consentimento informado em relação ao projeto Belo 128 Monte se transformou em uma discussão sobre o mérito do assunto que transcende o âmbito do procedimento de medidas cautelares”. Neste caso, embora os peticionários62 tenham exposto a gravidade da situação63, a resposta do SIDH não atendeu plenamente às reivindicações, por ausência de efetivo diálogo entre os órgãos do Sistema Interamericano e as entidades protetoras do meio ambiente e dos direitos humanos envolvidas, o que permitiu a continuidade dos danos ambientais e das violações aos direitos dos povos indígenas e ribeirinhos da região, conforme relata a Procuradora da República, Thais Santi, em entrevista ao jornal El País (EL PAÍS, 2014). A observação das controvérsias envolvendo questões ambientais, submetidas ao SIDH, demonstra que todos os casos apresentam alta complexidade, porquanto envolvem questões jurídicas, políticas, epistemológicas e diplomáticas do interesse de diversos atores. Nota-se que o cerne das disputas diz respeito ao próprio modelo de desenvolvimento social desejado, o que suscita a reflexão sobre as maneiras do homem se relacionar com a natureza. Conforme observam Fleury e Almeida (2013), na disputa pela redefinição dos critérios de interpretação do desenvolvimento, a cultura e a natureza são mobilizadas pelas comunidades locais para confrontar o uso de critérios como geração de energia e crescimento. 3 ABERTURA AO DIÁLOGO COM AS LIÇÕES DA ECOLOGIA POLÍTICA François Ost (1995) leciona que a crise ecológica está relacionada, sem dúvida, à deflorestação e destruição sistemática das espécies animais, mas, antes de tudo, trata-se de uma crise da nossa representação da natureza e da nossa relação com a natureza. Portanto, afirma Ost, enquanto não repensarmos a relação homem-natureza e enquanto não formos capazes de descobrir o que dela nos diferencia e o que a ela nos liga, os esforços de preservação do equilíbrio ambiental serão insuficientes. De fato, desde o momento em que a problemática ambiental veio à tona, na década de 1950, se tem claro que se trata de uma questão epistemológica, política e ideológica. Os impactos da sociedade industrial 129 no meio natural ou geográfico e a consciência humana da necessidade de preservação e conservação do habitat natural forçaram ao questionamento sobre a viabilidade ao longo prazo do próprio modelo de desenvolvimento econômico neoliberal capitalista, o que envolve a reflexão sobre a maneira de habitar o planeta e as consequências da civilização industrial e da ideologia do progresso econômico sobre o meio ambiente. Porto-Gonçalves (2006, p.66) lembra que a ideia de progresso e desenvolvimento tem sido, rigorosamente, sinônimo de dominação da natureza, de modo que o desafio ambiental é “a busca de alternativas ao e não de desenvolvimento”. As críticas ao capitalismo neoliberal global revelam que esse modo de produção e de estilo de vida impacta negativamente o equilíbrio ambiental ao mesmo tempo em que dissolve a diversidade cultural por meio de uma instrumentalização acelerada. Rifkin (2001) destaca que esta dinâmica econômica resulta em erosão cultural e erosão biológica. Foi a partir dessas percepções que houve o nascimento da ecologia política como uma nova disciplina social, com o objetivo de construir a proposta de uma nova ordem social e política necessária para que a humanidade não se destrua ecologicamente. Para tanto, a ecologia política apresenta alternativas ao sistema dominante, entendendo a crise ambiental como uma crise civilizacional, razão pela qual será ineficaz qualquer política para superação do problema que não aspire por uma mudança do sistema social como um todo. Neste viés, a crise ambiental apresenta-se como precursora da necessidade de uma mudança paradigmática, já que o paradigma racionalista da modernidade, de crescimento econômico não sustentável, não se adapta às premissas do século XXI. Fritjof Capra, sob essa ótica, afirma que a ruptura paradigmática deriva da necessidade de superação do paradigma mecanicista, ou seja, da compreensão minuciosa das partes para entendimento do todo, e passagem ao paradigma ecológico ou sistêmico, segundo o qual “as propriedades essenciais de um organismo ou sistema vivo são propriedades do todo, que nenhuma parte tem” (CAPRA, 2006, p.36). A ecologia política se liga, portanto, diretamente à noção de racionalidade ambiental e de desconstrução de discursos (SANTOS, 2010). Mais do que uma nova ciência das relações homem-natureza (OST, 1995), a construção de uma racionalidade ambiental, sob a ótica da ecologia política, 130 implica a necessidade de desconstruir conceitos científicos sob os quais a racionalidade econômica se funda e sob os quais repousam o progresso produtivo insustentável, bem como dialogar com saberes não científicos, subalternos, invisibilizados ou “desaparecidos” (SHIVA, 2003), que podem contribuir para a construção de uma relação harmônica entre homem e natureza. Nesse sentido, “à ecologia política concernem não apenas os conflitos de distribuição ecológica; ela também assume a tarefa de explorar sob nova luz as relações de poder no saber que se entretecem entre o mundo globalizado e os mundos de vida das pessoas” (LEFF, 2006, p.301). Assim, são suscitados movimentos discursivos contrários às verticalidades hegemônicas Norte-Sul, que ampliam dialeticamente a pauta da questão ambiental internacional, provocando o debate em torno de questões como a justiça ambiental, o desenvolvimento, o acesso aos recursos biológicos e genéticos, em uma perspectiva pós-colonial. Como adverte François Ost, a injustiça das relações com a natureza é gerada pela injustiça das relações sociais, e todo combate ecológico sério conduz ao questionamento da ordem econômica injusta. Boaventura de Sousa Santos cunhou a expressão “cosmopolitismo subalterno” para nomear as iniciativas e movimentos que constituem a globalização contra-hegemônica. Trata-se de um conjunto de redes, iniciativas, organizações e movimentos que lutam contra a exclusão econômica, social, política e cultural gerada pela mais recente encarnação do capitalismo global, conhecido como globalização neoliberal (SANTOS, 2010). Segundo o autor, o cosmopolitismo subalterno requer uma “ecologia de saberes” que possibilite a valorização de outras formas de intervenção no real, diferentes das características da ciência moderna, que constitui uma verdadeira “monocultura do saber”, em palavras de Shiva (2003). Um exemplo de experiências invisibilizadas são as valiosas práticas de preservação da biodiversidade originária das culturas camponesas e indígenas que, paradoxalmente, hoje se encontram ameaçadas pela ciência moderna. Antes mesmo do advento da era informacional, no período da colonização, as populações tradicionais foram despojadas dos seus saberes intelectuais e dos seus meios de expressão exteriorizantes ou objetivantes. Foram reduzidas à condição de indivíduos rurais e iletrados. Em todo o mundo eurocentrado foi-se impondo a hegemonia do modo eurocêntrico de 131 percepção e produção de conhecimento e em grande parte da população mundial o próprio imaginário foi colonizado (QUIJANO, 2010). Hoje, a racionalidade eurocêntrica cartesiana continua tão arraigada e disseminada globalmente que o diálogo com a natureza ainda se dá em termos de dominação e controle irrestrito. Hugh Lacey (1998) reconhece como inato ao ser humano o ímpeto de controlar a natureza, mas nota que na modernidade esse controle se tornou um valor superior e, em contrapartida, o conhecimento tradicional não é reconhecido. Ao mesmo tempo, a virada cibernética converte o acesso à informação digital e genética em arma contra as culturas, à exceção da cultura tecnocientífica. Ou seja, a cibernética desqualifica todas as culturas perante a cultura tecnocientífica (SANTOS, 2003). Neste cenário, a ecologia de saberes surge como estratégia epistemológica contra-hegemônica que assume como injustificável a determinação de que só é relevante o conhecimento que esteja em função dos interesses dos países do Norte. Em síntese, o paradigma ecológico visa superar a ideia moderna de autonomia solipsista, o ímpeto de conquista e domínio da natureza pela ciência e pela técnica, bem como o uso e desfrute desmedido e imprudente dos recursos naturais (JUNGES, 2010, p.75). Ao mesmo tempo em que a problemática ambiental possui natureza política e epistemológica também envolve aspectos jurídicos fundamentais. François Ost refere-se à possível e necessária construção de um “meio justo”, onde a limitação da atual vontade de poder humana seja a garantia dos direitos das gerações futuras a um ambiente saudável, o que demanda juristas mobilizados e intimados a imaginar as condições normativas do meio justo, transcendendo o simples direito ambiental e produzindo uma “ecologização do direito” (OST, 1995, pp.18-19). Da mesma forma como os órgãos legislativos dos Estados e das instituições internacionais se abrem ao debate com as entidades que compõem o movimento ambiental, incorporando reivindicações à legislação, os órgãos jurisdicionais estatais e internacionais também são chamados à abertura ao diálogo com as entidades da sociedade civil e com as produções científicas acadêmicas como condição para a democratização da justiça, no sentido a que se refere Santos (2011). A atuação do Sistema, para além da reparação de violações em curso ou já ocorridas, deve buscar formas de prevenção dos danos socioambientais, o 132 que requer um maior diálogo com pesquisadores acadêmicos da área da ecologia política, bem como com as reivindicações dos movimentos sociais de proteção socioambiental, conforme abordado na sequência. 4 ABERTURA AO DIÁLOGO COM OS MOVIMENTOS SOCIAIS O que Boaventura denomina por “pensamento pós-abissal” pode ser sumariado como um aprender com o Sul usando uma epistemologia do Sul, o que significa confrontar a monocultura da ciência moderna com a ecologia de saberes. Baseia-se no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles que não comprometam a sua autonomia (SANTOS, 2010, p.53). No campo do direito, é tarefa das jurisdições nacionais e internacionais de direitos humanos abrir-se ao diálogo com a pluralidade dos saberes nãohegemônicos sobre os significados da dignidade humana e da proteção socioambiental, promovendo uma ecologia dos saberes jurídicos. Chamando atenção para as ilusões, limites e insucesso de políticas públicas e iniciativas de empresas em matéria socioambiental, François Ost (1995, p.395) argumenta que o “meio justo” não irá derivar da planificação de especialistas, por mais bem-intencionados e gabaritados que sejam, mas sim do debate democrático, de onde irão proceder as decisões capazes de transformar a nossa forma de habitar a Terra. Na América Latina há uma fértil proliferação de fontes de produção de saber contra hegemônico, que vai desde os conhecimentos dos povos tradicionais até as investigações acadêmicas na área da ecologia política, passando pelas contra epistemologias produzidas pelas organizações e movimentos sociais de proteção socioambiental. Mais da metade das organizações participantes do Fórum Social Mundial (FSM) são redes e movimentos ambientalistas da América Latina que promovem um debate horizontal e democrático sobre proteção do meio ambiente, sustentabilidade e ecologia política, diferente da maneira como se dão as negociações intergovernamentais no âmbito das instituições da ONU e das agências econômicas internacionais (MILANI, 2008). 133 Dentre os grupos participantes do FSM, estão os movimentos indígenas, que reivindicam uma reconstrução multicultural dos direitos humanos, desafiadora do seu caráter unicamente individualista e liberal, e aberta à incorporação de concepções alternativas de direitos, como titularidades coletivas da terra e inclusão da natureza como titular de direitos. Os movimentos camponeses lutam pela reforma agrária popular que, para além da redistribuição das terras, defende a substituição do modelo agrícola monocultural, transgênico e dependente do uso intensivo de agrotóxicos por um modelo agroecológico, produtor de alimentos saudáveis e ambientalmente sustentável. Por sua vez, o movimento feminista denuncia o caráter patriarcal da tradição ocidental de direitos humanos e cria novos instrumentos e concepções jurídicas de direitos que incorporam a justiça de gênero (SANTOS, 2007). Em grande medida, muitas das reinvindicações dos movimentos sociais foram recepcionadas e positivadas por novas Constituições de países da região, no contexto do chamado novo constitucionalismo latino-americano. Em matéria ambiental, as constituições da Bolívia, Equador e Venezuela incoporaram reinvindicações históricas dos movimentos populares, inaugurando um novo paradigma de proteção ambiental, marcado pelo conceito de “bem viver”. O chamado constitucionalismo ecológico (BOFF, 2015), superando a própria ideia de um direito humano ao meio ambiente sadio, passa a considerar a natureza (“Gaia”, “Pachamama” ou “Mãe Terra”) como sujeito de direitos, dentro de uma cosmovisão holista e não antropocêntrica do mundo. O artigo 71 da Constituição do Equador afirma que: Art. 71. La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos. Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la naturaleza. Para aplicar e interpretar estos derechos se observarán los principios establecidos en la Constitución, en lo que proceda. El Estado incentivará a las personas naturales y jurídicas, y a los colectivos, para que protejan la naturaleza, y promoverá el respeto a todos los elementos que forman un ecosistema. Este novo modelo constitucional não contrapõem o paradigma constitucionalista moderno, mas o aperfeiçoa e o ressignifica, sobretudo pela ampliação dos mecanismos de democracia participativa, sofisticação 134 de instrumentos de efetivação de direitos sociais e integração das minorias étnicas (BEDIN & CENCI, 2013). As novas construções epistemológicas, que implicam um novo regime de desenvolvimento e desafiam o direito internacional a incorporar conceitos provenientes de outras cosmovisões do mundo, diferentes da europeia, caminham para uma reconfiguração dos direitos humanos na direção da justiça ambiental, de gênero, étnica e econômica (SANTOS, 2007). Os festejados avanços conquistados no seio do novo constitucionalismo latino-americano não desarticulam, todavia, a atuação dos movimentos ambientalistas. Pelo contrário, lhes servem de estímulo na batalha por avanços no mesmo sentido em outros Estados, para ampliar as garantias já conquistadas e para resistir às ameaças de retrocesso por parte dos grupos dominantes mundiais. Neste cenário, uma das críticas atuais dos movimentos da América Latina diz respeito à ausência de debate, na esfera institucional dos países e das organizações internacionais, sobre questões centrais da ecologia política como o modelo de desenvolvimento e a distribuição de riquezas. Tais redes e movimentos consideram que até mesmo documentos internacionais importantes, como o Relatório Brundtland, ao tratar apenas do crescimento da riqueza para distribuição futura, deixam de estabelecer distinção entre a sustentabilidade forte e a sustentabilidade fraca. Argumentam que, por essa razão, as agências internacionais, incluindo os organismos de proteção ambiental e dos direitos humanos, não radicalizam o debate e optam por vias compatíveis com a regulação da crise ambiental pelos mercados (MILANI, 2008). Diferentemente, os movimentos populares contrários à globalização hegemônica dão maior ênfase ao debate sobre a sustentabilidade forte, propondo mudanças mais profundas nas relações sociedade-natureza. Tais movimentos, compostos por organizações camponesas, indígenas, de educação popular, religiosas (ligadas à teologia da libertação), feministas e militantes de direitos humanos, “desafiam, no campo do ambientalismo, a adesão exclusiva ao “culto da vida silvestre” e ao “evangelho da ecoeficiência”, uma vez que abraçam os princípios da justiça ambiental e do ecologismo dos pobres”, demandando uma regulação internacional dos bens comuns mundiais baseada em princípios éticos de solidariedade (MILANI, 2008, p.297). 135 Um exemplo de rede de movimentos sociais camponeses de abrangência global é a Via Campesina, que trata a temática ecológica de modo relacionado aos conflitos de distribuição de riquezas. Composta por 164 organizações locais – de pequenos e médios agricultores, trabalhadores sem-terra, indígenas e migrantes – de 73 diferentes países da África, Ásia, Europa e América, representando cerca de 200 milhões de campesinos, a Via se intitula um movimento autônomo, pluralista e multicultural que se opõe ao modelo do agronegócio e defende uma agricultura sustentável de pequena escala como meio para promover a justiça social e a dignidade. Posicionando-se contrariamente a projetos de grande impacto socioambiental negativo como usinas nucleares, megaempreendimentos de barragens e hidroelétricas, exploração excessiva de minérios e uso intensivo de transgênicos e agrotóxicos na agricultura, os movimentos da Via Campesina alertam para a necessidade de controle social democrático sobre o meio ambiente, implantação do modelo agroecológico de produção de alimentos, gestão sustentável e popular do território, bem como a democratização do conhecimento científico para garantir a saúde, bem-estar e a soberania alimentar dos povos. Pautas e reivindicações semelhantes são compartilhadas por diversos movimentos sociais urbanos da América Latina, como movimentos de trabalhadores sem teto, movimentos de luta por moradia e outros, que defendem um desenvolvimento ambientalmente saudável e voltado aos interesses do povo, através de campanhas pela ampliação das áreas urbanas verdes e contra modelos urbanísticos insustentáveis. Em síntese, para os movimentos de defesa do meio ambiente, sejam eles do campo ou da cidade, é preciso superar a oposição entre ambiente e desenvolvimento e entre atenção social e proteção ambiental por meio de um outro modelo de desenvolvimento, que priorize a harmonia entre o ser humano e a natureza. Tais movimentos e atores sociais, constituintes do movimento ambiental global, defendem valores e propostas que, como percebe Inoue (2007), se disseminam pelas estruturas governamentais, empresariado, comunidade científica e outros setores, tornando-se um movimento multissetorial. Este trabalho defende que, assim como as políticas legislativas e executivas dialogam com os movimentos de defesa ambiental, incorporando parte de suas reivindicações, as jurisdições nacionais e internacionais devem estar 136 também abertas ao diálogo, para que sua jurisprudência acompanhe os avanços políticos e impeça retrocessos. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O SIDH é um importante mecanismo institucional de proteção socioambiental. O Sistema reconhece o direito humano ao ambiente sadio e ao desenvolvimento sustentável, assim como o dever dos Estados de garantir a efetividade dos direitos dos povos originários, tais como a demarcação de terras, a consulta prévia e o consentimento para exploração de recursos em seus territórios, a preservação das suas culturas, a repartição dos benefícios, etc. Por outro lado, o SIDH ainda não adentrou diretamente na abordagem de uma questão central ao tema da proteção do meio ambiente e dos direitos humanos, relativa ao modelo de desenvolvimento social e econômico das sociedades capitalistas neoliberais contemporâneas e sua (in)compatibilidade com a efetiva proteção dos direitos socioambientais. O enfrentamento dessa questão pelo SIDH é fundamental para que possa oferecer respostas satisfatórias às reivindicações dos grupos e movimentos sociais e para que suas decisões gozem de eficácia concreta na proteção socioambiental. Para tanto, o SIDH deve ampliar o diálogo democrático com a acadêmica, a sociedade civil e os movimentos sociais, reconhecendo as diferentes concepções sobre dignidade humana, direitos humanos e direitos da natureza partilhadas pela pluralidade dos povos latino-americanos. Esta abertura ao diálogo implica em tratar os atingidos ambientais não apenas como vítimas, mas como sujeitos e protagonistas de mudanças, contribuindo ao seu empoderamento e capacidade de promover transformações sociais mais profundas. 6 REFERÊNCIAS AGOSTINI, Nilo. A Questão Ambiental na América Latina e no Caribe. Evangelização: contribuição franciscana. Petrópolis: FFB/Vozes, 2000, p. 138-156. Disponível em: 137 http://www.niloagostini.com.br/artigos/2010/pdf/21_230610_caribe.pdf. Acesso em 30 jul. 2015. BEDIN, Gilmar Antonio e CENCI, Ana Righi. O Constitucionalismo e Sua Recepção na América Latina: Uma leitura das fragilidades do Estado constitucional na região e suas novas possibilidades de realização. 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A questão assume maior importância, na medida em que houve anuência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) sendo, portanto, cerceado o direito do exercício da liberdade religiosa. Ambas as posturas, ferem diretamente as diretrizes estabelecidas pela Organização das Nações Unidas, na Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções, visto que referido direito constitui parte da identidade sociocultural da mulher muçulmana. Para construção do presente trabalho, o método utilizado foi o indutivo e a técnica de pesquisa foi a bibliográfica. Palavras-chave: Liberdade religiosa. Laicidade. Direitos Humanos. Véu. 1 INTRODUÇÃO As gerações contemporâneas têm experienciado o surgimento de uma série de mecanismos que se propõem de algum modo proteger os Direitos Humanos. Essa sistemática contundente de promoção de proteção e até mesmo conscientização dos direitos humanos e da própria dignidade da pessoa, podem ser atribuídas, no nível mundial, à incansável atuação das Nações Unidas, com a elaboração de diretrizes que tem por objetivo estabelecer parâmetros para definir direitos e definir eventuais coibições. No entanto, exsurgem direitos e formas de sua respectiva proteção, o trabalho para tal realização é muito mais árduo do que parece. Em verdade, um dos grandes desafios da sociedade contemporânea é compatibilizar 141 direitos individuais e coletivos em sociedades multiculturais. Esse também é um desafio enfrentado por mulheres muçulmanas na França. Diante deste contexto, a presente pesquisa propõe-se a discutir o confronto entre a liberdade em seu sentido amplo, assegurada pela França, a liberdade de manifestação religiosa e o princípio da laicidade estatal. Para tanto, inicialmente serão expostas considerações gerais acerca do Direito de Liberdade religiosa. Em um segundo momento será discutida a condição das mulheres muçulmanas na França e o enfrentamento da proibição do uso do véu em locais públicos. Deste modo será elaborada uma crítica reflexiva sobre alguns pontos controvertidos acerca da decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que ratifica a referida lei. De um modo geral, o objetivo do presente trabalho é discutir a seguinte questão: a proibição do uso do véu na França, endossada pelo Tribunal de Direitos Humanos contraria o posicionamento da ONU e entra em conflito com o direito de liberdade religiosa? 2 EM DEFESA DA LIBERDADE: O POSICIONAMENTO DA ONU EM RELAÇÃO À LIBERDADE DE RELIGIÃO A II Guerra Mundial causou atrocidades e provocou a devastação de dezenas de países, tomando a vida de milhões de pessoas. Neste contexto, a comunidade internacional compartilhou um sentimento de que era necessário encontrar uma forma de manter a paz entre os países. Foi então, no ano de 1945, que surgiu a Organização Nações Unidas67, uma tentativa de articular politicamente os países do mundo em função do estabelecimento da paz. É possível dizer que o maior comprometimento da ONU é, principalmente com a elaboração e promoção de políticas que envolvam a proteção dos Direitos Humanos, além de articular relações políticas que promovam relações amistosas entre as nações, o progresso social e, ainda proporcionar melhores condições de vida para as pessoas. Foi no ano de 1948 que o mundo assistiu a Assembleia-Geral das Nações Unidas, na qual foi promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, considerada como um ato histórico na luta contra a guerra, pela manutenção da paz e da dignidade humana. A Declaração que foi adotada 142 em forma de Resolução, abarcou em seu conteúdo diretrizes gerais de proteção aos direitos inerentes a todo e qualquer ser humano, isto é, direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, preceituando a fraternidade como valor universal (GRUBBA, 2016, p. 81). A partir daquele momento, foram proclamados diversos outros instrumentos internacionais que aprofundaram a noção de direitos humanos, bem como ampliaram-se suas formas de reconhecimento. Um, dos tantos exemplos, é o caso da Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação baseadas na religião ou crença. Documento promulgado em novembro de 1981, baseado no direito de liberdade da pessoa, estabelece que professar religião ou crença é um elemento fundamental para a concepção de vida. Portanto todas as pessoas são livres pare crer e praticar sua fé, sendo sua prática fundamental para o desenvolvimento humano. Ao proclamar a Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação baseadas na religião ou crença, a ONU resolveu adotar medidas necessárias para combater o avanço da eliminação de intolerância em todas as suas formas e manifestações, além da prevenção e combate à discriminação no que concerne à religião ou à crença (GRUBBA, 2016, p. 85). De acordo com a Declaração, professar a própria crença é uma liberdade fundamental. Trata-se de um direito que, em sendo violado, constitui uma ofensa à dignidade humana. A discriminação com base na crença ou religião deve ser condenada como uma violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamados na Declaração Universal de Direitos Humanos, sendo como um obstáculo para as relações amistosas e pacíficas entre as nações68. O direito de liberdade religiosa, então, integraliza parcela dos Direitos de Liberdade. No entanto, no mundo contemporâneo, surge o desafio: como compatibilizar as liberdades na sociedade de massa? (LIMA E BRITO, 2013, p. 79). Como compatibilizar a o direito de liberdade em espaços multiculturais? Nos últimos anos, em função dos processos imigratórios, a Europa, especialmente a França, têm enfrentado o desafio de conciliar o Direito de Liberdade Religiosa com o princípio do estado laico e questões de segurança pública. Problemática sobre a qual se passará a refletir na sequência desta pesquisa. 143 3 UM CHOQUE CULTURAL: A CONDIÇÃO DA MULHER MUÇULMANA FRENTE À SOCIEDADE FRANCESA As matrizes paradigmáticas da modernidade já não são mais suficientes para resolver problemas contemporâneos. O fenômeno da globalização, cujos movimentos efetivos tiveram início, principalmente, a partir do fim da Guerra Fria, com a abertura de mercados nacionais, impulsionou, para além das movimentações financeiras, um intenso fluxo de informações em escala jamais vista pela humanidade. Como se sabe, a globalização não se restringiu ao plano de movimentações financeiras, em verdade, acabou causando, por via reflexa, uma globalização jurídica, política, social e cultural (ROTH, 1996, p.16). Em função de tais transformações, as sociedades tornaram-se complexas, na medida em que apresentam em um mesmo contexto espacial a manifestação das mais variadas culturas e religiões. Tome-se como exemplo a Europa que, nas últimas décadas, têm sido o destino de muitos refugiados e imigrantes, transformando-se em palco de grande efervescência cultural. Neste contexto, a França adquire particular relevância ao assistir a construção de identidades culturais com movimentações sociais que, de algum modo, lutam pela afirmação e defesa de sua própria identidade. Um bom exemplo disto, é a problemática suscitada especialmente a partir do ano de 2010, com a lei que proíbe o uso do véu muçulmano em locais públicos. Trata-se, pois de uma difícil discussão que coloca direitos de liberdade de religião e convicção em confronto com medidas de segurança para proteção do Estado e, ainda, confronta a ideia de laicidade estatal. Com efeito, para questionar a problemática da referida lei francesa, antes, é necessário considerar algumas questões referentes à condição da mulher na comunidade muçulmana. Pois bem, em um primeiro momento é imprescindível alertar que a religião muçulmana possui variadas interpretações do Alcorão e, portanto, transforma-se conforme o tempo e o espaço onde é praticada. Além disto, é necessário apontar que em diversos países cuja população em sua maioria é muçulmana, a relação entre Estado e religião não tão é intrincada, como é o caso da Turquia (HIST, 2012, p.60) que se intitula como Estado laico. Por outro lado, existem países como o 144 Afeganistão e Arábia Saudita que aplicam os comandos normativos religiosos provenientes do Sharia, que faz parte da tradição muçulmana. Com efeito, dentre as práticas religiosas que o islamismo segue, está a diretriz de que as mulheres deveriam fazer o uso do véu que, nas suas variadas formas, isto é, a burqa (que cobre todo o corpo, inclusive os olhos com uma pequena tela), o niqab (que cobre todo o corpo, mas deixa de fora os olhos e as mão) e, ainda o hijab (esconde os cabelos e o colo, deixando o rosto descoberto) fazem parte da identidade cultural e religiosa do islamismo. Trata-se de uma vestimenta que, conforme determinações religiosas servem para preservar a privacidade da mulher. De acordo com a tradição islâmica, Allah determinou que as mulheres vestissem o véu para proteger a sua própria beleza que, ele (Allah), como criador havia posto nelas. Assim, sendo a mulher bela e atrativa, poderia apresentar algum tipo de tentação para os homens, e, justamente por esta razão, é que o uso do véu mantém a intimidade e santidade feminina preservadas. Além disto, o véu islâmico ajudaria as mulheres a cumprir sua função na sociedade, na medida em que seu valor não seria identificado por aquilo que elas poderiam parecer, isto é, beleza física; os homens também tratariam as mulheres com maior respeito e com um senso de igualdade. Assim, ao vestir-se com o véu, a beleza física da mulher, bem como sua dignidade e castidade seriam protegidas (BAHAMMAM, 2014, p.25). Evidentemente este significado é apenas uma conceituação geral e, potencialmente parcial, mas que apresenta um indicativo genérico do símbolo que o uso do véu assume nas comunidades muçulmanas. Dito de outro modo, o véu estabelece a relação entre a proteção da intimidade da mulher diante da comunidade política da qual ela faz parte e, ainda, constitui parte de sua identidade cultural, social e religiosa69. Entretanto, ainda que os princípios religiosos sejam bastante rígidos, não se pode negar que, a partir do momento em que as mulheres muçulmanas ingressam nas sociedades plurais, como ocorre na comunidade europeia, tais valores interagem com a pluralidade cultural e modificam-se ou ajustam-se às condições a que são submetidos. No contexto europeu, existem diversas mulheres que vestem burqas ou niqabs por exigência familiar ou da própria comunidade na qual estão inseridas, todavia, existem mulheres que livremente escolhem fazer uso destas vestimentas. Essas mulheres baseiam-se na herança dos princípios 145 culturais e das práticas religiosas, considerando o uso como forma conveniente de comunicar-se com o mundo, para além dos limites de sua própria família (MANCINI, 2013, p.197). Com efeito, estas mesmas mulheres, participam ativamente da comunidade política, na medida em que geralmente possuem algum tipo de formação acadêmica e estão inseridas no mercado de trabalho. Essa situação oferece condições de possibilidade de empoderamento, acarretando na transformação da percepção das mulheres em relação aos preceitos religiosos como fatores determinantes de comportamento (MANCINI, 2013, p.197). Ao integrarem-se nas sociedades liberais, as mulheres muçulmanas acabam por relativizar o sentido das tradições religiosas e culturais, em função de um processo de subjetivação das crenças. Dito de outro modo, quer dizer que as mulheres muçulmanas, mesmo que dentro de suas casas convivam com forte influência cultural e religiosa, de matriz islâmica, ao participarem de atividades sociais, fora dos limites de sua própria comunidade/família, acabam fazendo distinção entre preceitos religiosos e culturais. Assim, internalizam-se preceitos religiosos, enquanto que aqueles preceitos culturais se integram e desintegram com outros, que lhe são oferecidos no contexto da pluralidade social (MANCINI, 2013, p.197). Interessante notar que a disseminação do estereótipo “muçulmano fundamentalista” que se propaga pela mídia, principalmente em função de ataques terroristas, faz com que as comunidades islâmicas, como um recurso reativo, voltem-se cada vez mais à religião. Isso ocorre em razão de que se trata de uma tentativa de revigorar a identidade religiosa. Assim, na busca de conhecimento sobre a tradição muçulmana para refutar estereótipos, tomam postura crítica em relação ao que se têm disseminado equivocadamente (MARINUCCI, 2015, p.199). Então, se mulheres muçulmanas escolhem livremente fazer uso do véu, elas não estão visando um isolamento, ao contrário, trata-se de uma atitude que visa afirmar que a identidade da religião muçulmana não é aquilo que se reflete nas posturas fundamentalistas (MARINUCCI, 2015, p.199). Vestir o véu é um meio de auto afirmar-se, pois sentem-se como embaixadoras de sua própria religião, procuram sair do isolamento na busca de uma forma de interlocução com o mundo ocidental (MARINUCCI, 146 2015, p.199). Ocorre que não é desta forma que as autoridades europeias têm compreendido, como é o caso da França. No final do ano de 2010, a França tornou-se o primeiro país europeu a proibir trajes islâmicos como a burqa e o niqab. A Lei 2010-1192, é resultado de um projeto elaborado pelo Conselho de Ministros, em maio daquele ano. Posteriormente foi ratificada pelo então presidente francês, Nicolas Sarkozy, e submetida ao Conselho Constitucional da França. Pouco tempo depois, o colegiado emitiu a Decisão 2010-613 DC, aprovando a medida por maioria no Parlamento. A decisão tomada pelo Conselho Constitucional foi elaborada com base na tradição libertária da França, consolidada a partir da Revolução Francesa, e utilizou os artigos 4º, 5º e 10º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão70 e o artigo 3ª da Constituição Francesa (1946), o qual prevê igualdade entre homens e mulheres. Além disto, serviram como embasamento para a legislação, o princípio da laicidade estatal, bem como o cuidado por parte do Estado à segurança pública, em função dos crescentes ataques terroristas que assustam a comunidade europeia. De modo geral, o posicionamento do Parlamento francês deixa claro que o uso da burqa ou niqab são contrários aos valores republicanos, configurando-se práticas que atentam à dignidade e à igualdade entre homens e mulheres (ANGELETTI, 2016, p. 13). A lei que proíbe o uso do niqab e da burca em lugares públicos, prevê como sanção o pagamento de multa ou de pena alternativa de restrição de direitos e ainda um “estágio de cidadania” (art. 3º). A referida lei também alterou o código penal ao estipular a pena de 1 ano de prisão e/ou multa de 30 mil euros, para aquele que coagir o uso do véu. Observe-se que o véu muçulmano já havia sido banido das escolas públicas, no ano de 2004, quando foram proibidos o uso de símbolos religiosos por alunos, bem como nas dependências de qualquer instituição pública. Os funcionários públicos também estavam impedidos de manifestarem suas convicções religiosas, enquanto estivessem no exercício de suas respectivas funções. No entanto, a lei promulgada em 2010 assumiu maior abrangência. Tudo isso em função da laicidade estatal e da segurança pública (FERRARI, 2013, 130). Importa mencionar que nos debates sobre a justificação da lei que proíbe o uso véu muçulmano, que ocorreram no Parlamento francês, o ministro da justiça defendeu que a burqa e o niqab, por cobrirem o corpo inteiro da 147 mulher, são vestimentas que não respeitam a liberdade e a dignidade e, por esta razão, deveriam ser banidos dos espaços públicos. Além disto, o ministro defendeu que a legislação possui vínculo direto com a aplicação do princípio da laicidade, na medida em que o Estado não se atém a nenhum tipo de religião (MANCINI, 2013, 70). Assim, a partir da promulgação da lei em questão, a proibição da burqa e do niqab foram estendidos para lugares públicos como ruas e praças, compreendendo-se também aqueles lugares abertos ao público, como mercados e cafés, excetuando-se aqueles destinados às práticas religiosas. Uma sistemática que, sem exageros, foi mais do que a limitação, mas configurou-se como uma espécie de criminalização do uso do véu. Diversos países europeus têm enfrentado a mesma problemática, no entanto, cada um tem assumido posturas diferentes. Como é o caso da Bélgica que também proibiu uso do véu em locais públicos, prevendo sanções criminais para quem a descumprir. Entretanto, note-se que a forma de abordagem é bem deferente – e particularmente mais apropriada – do que aquela francesa. Na Bélgica, o uso do véu é proibido em “espaços acessíveis ao público”. Essa formulação passa a compreensão de que o uso do véu seria permitido para além dos limites da vida privada, podendo ser utilizado em espaços públicos, desde que não institucionalizados ou que as circunstâncias específicas não o exijam (FERRARI, 2013, p.80). Diante destas questões até aqui expostas eis que surge um problema de difícil solução, a saber, a restrição do direito de liberdade de religião e a expansão da institucionalização dos locais públicos, em nome da laicidade estatal e da segurança pública. Tais elementos implicam diretamente na liberdade de escolha das mulheres muçulmanas afetadas diariamente pela medida legislativa. Questões sobre as quais serão debatidas a seguir. 4 O CONFRONTO ENTRE LIBERDADE RELIGIOSA E LAICIDADE: NOTAS CRÍTICAS SOBRE A PROIBIÇÃO DO USO DO VÉU NA FRANÇA A lei que proibiu o uso do véu na França fez surgir uma série de debates sobre a complexidade do direito de liberdade religiosa, visualizado a partir da delicada relação estabelecida entre a sociedade francesa e a integração 148 islâmica, circunstância que acabou alimentando episódios que o Direito deveria resolver. Um caso que ganhou destaque mundial foi o de uma francesa, de origem marroquina, identificada apenas como S.A.S., que entrou com uma Reclamação (nº 43835/11.S)71 contra a República Francesa diante do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em Estrasburgo – TEDH. A requerente alegou que a medida estabelecida em lei implica na violação dos artigos 3, 8, 9, 10 e 11 da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (The Convention). O conteúdo de tais artigos assegura a proteção do indivíduo em relação a tratamento desumano e degradante, respeito à vida privada, liberdade de consciência de religião e liberdade de expressão. No processo, segundo a reclamante, o uso do niqab e da burqa fazem parte de sua cultura e religião, na qual muitas mulheres não são forçadas a utilizá-lo, mas podem fazer a escolha, sem imposição da família, tampouco a submeter-se às exigências machistas. Alegou ainda que as sanções impostas para reprimir o uso do véu são desproporcionais e que em uma sociedade realmente livre não se pode restringir a liberdade, pelo contrário, as diferenças religiosas deveriam ser equalizadas de modo a promover a convivência com a diferença. A requerente aponta que, mesmo que grande parte do argumento do Parlamento francês sustente que a lei visaria a proteção do direito das mulheres, na medida em que usariam o véu por imposição da religião islâmica, limitando seu direito de liberdade de escolha, as adeptas do islamismo não pensam assim. A requerente alega que mulheres muçulmanas que usam o véu, o fazem por livre e espontânea vontade, como forma de professar sua fé e sentir-se em paz consigo mesma. Os argumentos da francesa, de origem marroquina, objetam aqueles sustentados pelo governo francês, estes últimos baseiam-se na ideia de segurança pública e direitos liberdade e igualdade dos homens, em razão de que a permissão do uso do véu seria mais uma forma de legitimar a opressão imposta a mulheres, preservando as condições de vida comum. Com efeito, ao verificar o conteúdo da decisão do Tribunal Europeu, é possível identificar que o conselho de sentença elaborou uma pesquisa sobre os precedentes das demais legislações e decisões dos Estados da União Europeia que já haviam trabalhado com a possibilidade ou com a 149 efetiva proibição. Neste sentido, para o TEDH, é difícil resolver esse tipo de conflito, principalmente naquilo que se refere à liberdade religiosa, sendo que as autoridades estatais são mais apropriadas para resolverem este tipo de questão. Isso ocorre em razão do conhecimento que elas possuem em relação ao contexto em que se está inserido, de acordo com as problemáticas regionais. Deste modo, na apreciação sobre o caso, o Tribunal Europeu limitou-se a dizer que restringir o uso dos trajes religiosos para proteger a liberdades de terceiros é necessário para preservar a segurança pública. Para o TEDH, se por um lado a restrição legislativa possa ser, de certo modo, uma ameaça à identidade das mulheres muçulmanas, por outro lado, deve-se afirmar que não se trata de uma restrição religiosa, mas diz respeito à dissimulação do rosto de uma pessoa e, portanto, uma questão de segurança pública. A medida refere-se àquelas que cobrem o rosto todo, cuja identificação é comprometida, de modo que a lei tornou-se imposição necessária para convivência em uma sociedade democrática. Assim, pode-se dizer que o posicionamento do TEDH foi contido, na medida em que considera a legislação como ponto de equilíbrio encontrado pela França para resolver os problemas enfrentados no embate entre as liberdades religiosas e segurança pública. Para a decisão, o TEDH contou com o parecer de juristas e instituições protetivas de direitos humanos. A votação final chegou ao resultado de 15 a 2 pela manutenção da lei. Nos termos finais da decisão, Conclusion: 25. In view of this reasoning we find that the criminalisation of the wearing of a full-face veil is a measure which is disproportionate to the aim of protecting the idea of “living together” – an aim which cannot readily be reconciled with the Convention’s restrictive catalogue of grounds for interference with basic human rights. 26. In our view there has therefore been a violation of Articles 8 and 9 of the Convention.72 Em síntese, o parecer do Tribunal legitimou a proibição do uso do véu, pois se trata de questão de segurança pública, resolvendo-se de acordo com as políticas do próprio país, mas não deixou de considerar que a criminalização do seu uso (quando a lei especifica prisão àqueles que impuserem o uso do véu a terceiro), trata-se de medida desproporcional. Diante do caso exposto, é possível verificar que os Direitos Humanos entraram em rota de coalisão com questões de Segurança Pública e de laicidade. A partir da perspectiva dos Direitos Humanos, trata-se de um 150 problema bastante complexo e de difícil solução, pois se trata de um choque entre religião e culturas distintas. Enquanto uma é libertária, no caso da França, a outra, islâmica, é conservadora. Se por um lado a população de adeptos ao Islã tem ganhado fôlego por todo o Continente, em razão dos influxos imigratórios, trazendo consigo sua intrínseca ligação cultural, jurídica e religiosa; por outro, o país que os recepciona encontra problemas na tentativa de enquadrar tais comportamentos em sua tradição libertária. Então, diante deste contexto, partindo da perspectiva dos Direitos Humanos, em defesa do Direito de Liberdade de expressão e de religião, é possível efetuar uma reflexão crítica acerca da lei francesa que proíbe o uso do véu, com pelo menos duas objeções. A primeira objeção que se pode fazer é em relação ao argumento de que a lei requer coibir qualquer tipo de prática cultural ou religiosa que confronte o direito de liberdade e igualdade conquistado pela sociedade francesa. Na defesa deste argumento, considera-se que o uso do véu nas comunidades islâmicas trata-se de uma imposição “patriarcalista” sobre as mulheres. Isto é, uma forma de condicioná-las à exclusão em locais públicos, oprimindo-as com a imposição do uso de um traje. Entretanto, trata-se de uma leitura superficial e reducionista das práticas religiosas. Em verdade, como antes citado, a grande maioria das mulheres muçulmanas que vivem na comunidade europeia, escolhe livremente fazer uso do véu. Pois ele consubstancia-se como parte das práticas religiosas e até mesmo como meio de comunicação com o mundo ocidental. É claro que não se pode desconsiderar que muitas mulheres estão inseridas em um contexto em que a família e a própria comunidade infligem, cobram o uso do véu. Todavia, ter esse fato como referência genérica é um grave erro reducionista. E isso é tão forte, tão contundente que, como visto no tópico anterior, voltar-se para as práticas religiosas como forma de autoafirmação e de conscientização do fundamentalismo dentro do islamismo, não é regra. Então, o uso do véu é justificado como parte da identidade religiosa da mulher que, livremente, aceita os preceitos islâmicos e escolhe fazer uso deste símbolo (MARINUCCI, 2015, p.199). Por fim, é importante endossar que cobrir o corpo, para tais mulheres, é uma forma de acessar o mundo, para fora de seus limites familiares, pois como a própria S.A.S. afirmou na ação perante o TEDH, elas encontram refúgio e sensação de paz ao vestirem o véu em vias públicas. Justamente 151 por isso, deve-se considerar que muitas mulheres vestem por satisfação pessoal, então, como no caso em questão, privá-las do uso é tomar posição opressora, paradoxalmente limitando o exercício da liberdade que se quer conceder. Assim a imposição do estado francês sobre as mulheres islâmicas acaba forçando-as a deixar de praticar preceitos do alcorão. Esse condicionamento é inadmissível, pois toca diretamente o direito de liberdade religiosa das mulheres que não pode ser rechaçado por questões de segurança. É certo que os Direitos de um modo geral não são absolutos, podendo ser relativizados desde que devidamente justificados. No entanto, a postura extrema do governo francês, ao institucionalizar espaços públicos, chegando ao ponto de praticamente criminalizar o uso do véu contraria toda a ideia de Direitos de liberdade religiosa, estabelecida pela ONU, na Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções. Conforme a referida Declaração da ONU, professar qualquer tipo de religião ou convicção constitui um elemento fundamental da concepção de vida e que, portanto, tal liberdade de escolha deve ser integralmente respeitada e garantida. A mesma Declaração proclama que qualquer pessoa tem o direito de manifestar suas crenças publicamente, mediante culto ou observância de prática e ensino. Entende, ainda, que intolerância e discriminação baseada na religião ou convicção é toda a forma de distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na religião, cuja finalidade seja abolir o reconhecimento ou o limitar o exercício de tal direito em igualdade de direitos. Compreende-se então que o posicionamento do governo francês preenche justamente os pressupostos que se enquadram na forma de discriminação estabelecida pela ONU, por meio de legislação, consubstanciando-se violação direta ao Direito de liberdade, em seu amplo sentido, incluindo-se evidentemente, o direito de liberdade religiosa. Por fim, é possível fazer uma segunda objeção à lei francesa que proíbe o uso do véu. Neste ponto, a crítica é direcionada à noção de “espaço público” em função do princípio do Estado Laico. Como visto, a justificativa dessa legislação é de que, pelo fato de o Estado francês ser laico, estende-se essa noção aos espaços públicos. O Conselho Constitucional francês ofereceu uma distinção de espaço público, 152 assumindo a tese de que neste espaço é que deve ser aplicado o princípio da neutralidade e da laicidade, pois é neste que está inserido a representação estatal. O espaço civil é compreendido como aquele compartilhado, por exemplo, às empresas privadas que são abertas à circulação do público. Por fim, espaço privado é caracterizado como o próprio domicílio73. No entanto, para diretrizes adotadas pelo Parlamento francês, toma-se um outro viés, isto é, a noção de “espaço público” é tratada como aqueles ambientes nos quais são articuladas questões de interesse público, ou seja, instituições públicas. De outro modo, a expressão “espaços públicos”, no plural, denotam um sentido material, acessível, o ambiente compartilhado pela dinâmica das relações sociais74. Note-se a ambiguidade dessa noção de diferenciação de espaço público que, no fim das contas, serve para apagar as fronteiras dos diferentes espaços, oferecendo condições de ampliar a abrangência do princípio da laicidade estatal. Este último serve como argumento de arrimo para reduzir os espaços deixados para manifestação ou expressão religiosa (ANGELETTI, 2016, p.18). Neste sentido, a proibição do uso do véu estende-se às ruas e a qualquer outro tipo de local que possibilite acesso ao público, em função de que se o espaço é público, logo, é um espaço laico. O problema desse raciocínio é que a rua, os locais de acesso e de circulação civil são justamente os espaços mais apropriados para a manifestação da liberdade, seja ela qual for, neste caso, espaço para manifestação da liberdade religiosa. Afinal, as ruas e os locais de comum circulação são os mais adequados para o exercício da cidadania, este é o locus que pertence à sociedade e não ao Estado, enquanto instituição. Com efeito, o argumento de laicidade do Estado, para sustentar a proibição do uso do véu acaba por trair seu verdadeiro significado, na medida em que o traz, institucionaliza a esfera pública da sociedade civil. Diante desta perspectiva, o princípio da laicidade perpassa não somente o espaço institucional, mas a esfera política de compartilhamento da cidadania (MANCINI, 2013, 50). Assim, a proibição do uso do véu na França, endossada pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, entra em rota de coalisão direta com a noção de Direito de liberdade religiosa e acaba por trair o verdadeiro sentido dos argumentos que se quer sustentar. Porquanto, fecha o espaço do exercício 153 democrático dos direitos de liberdade, na medida em que institucionaliza o espaço público. Enfim, uma postura que utiliza o argumento retórico de uma liberdade parcial e, sem exageros, perversa, limitando o pleno exercício dos direitos de liberdade de religiosa e de crença em uma sociedade tradicionalmente democrática. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa teve por objetivo questionar se a proibição do uso do véu na França, endossada pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, contraria posicionamento da ONU em relação aos direitos humanos e, portanto, entra em conflito com o direito de liberdade religiosa. Para tanto, discutiu-se acerca da necessária proteção dos direitos de liberdade religiosa. Posteriormente refletiu-se sobre a condição das mulheres nas comunidades muçulmanas, apontando a problemática que se estabeleceu a partir do momento em que o governo francês decidiu proibir o uso do véu em locais públicos. Neste sentido, ficou evidente que a partir da perspectiva dos direitos de liberdade religiosa, as mulheres, por vontade própria, escolhem fazer uso do véu, sendo que tal prática consubstancia-se como parte da identidade cultural e religiosa. Além disto, o apego à religião é uma resposta das presentes gerações, para o mundo que dissemina ideias equivocadas ao dizerem que o islamismo se confunde com o fundamentalismo. Então não somente as mulheres, mas o público muçulmano em geral, volta-se à religião como forma de quebrar estereótipos. Além disto, como o significado do véu é de proteção da intimidade e preservação de castidade, para muitas mulheres torna-se uma forma de acessar o mundo, para além dos limites de sua própria família. Então, é possível dizer que o véu serve como meio para inclusão da mulher na esfera pública, como na esfera privada. Deste modo, ao proibir o uso do véu em locais públicos, o governo francês deliberadamente promoveu a exclusão de mulheres muçulmanas dos espaços públicos e limitou seu exercício de liberdades. Tomou uma postura que contrariou o posicionamento da ONU em relação aos Direitos Humanos, infringindo diretamente o direito de liberdade religiosa. Enfim, 154 adotou uma normativa que, paradoxalmente, na tentativa de promover liberdade para as mulheres, acabou limitando-a. 6 REFERÊNCIAS ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus. O fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. BOUHDIBA, Abdelwahab. Sexualidade No Islã. Tradução Alexandre de Oliveira Torres Carrasco.São Paulo: Editora Globo, 2006. CASSESE, Antonio. I diritti umani oggi. Laterza: Roma, 2012. Decisão do TEDH. Disponível em: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001145466# {“itemid”: [“001-145466”]}, acessado em 11/06/2016. Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. 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Disponível em http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-145466# {“itemid”: [“001-145466”]}, acessado em 11/06/2016. 156 O ESTADO BRASILEIRO E OS DIREITOS HUMANOS NO CASO GARIBALDI¹ Karine Arnemann ² Eliete Vanessa Schneider ³ RESUMO O presente artigo tem como objetivo estudar a internacionalização dos direitos humanos, analisar a formação dos sistemas global e regional de proteção e identificar se houve omissão do Estado Brasileiro no julgamento do Caso Garibaldi. A metodologia utilizada para atingir este objetivo foi a pesquisa do tipo exploratória, utilizando em sua confecção a coleta de dados em fontes bibliográficas disponíveis em meios físicos e na rede de computadores. O artigo foi estruturado de acordo com os objetivos, portanto, primeiramente serão estudados os marcos históricos, em seguida os sistemas de proteção e finalmente os Direitos Humanos no Brasil. Palavras-chave: Direitos Humanos; sistemas de proteção; caso Garibaldi. 1 INTRODUÇÃO A proposta deste estudo é analisar a formação histórica e evolução dos Direitos Humanos, apresentando os marcos decisivos para a sua internacionalização. O processo de universalização dos Direitos Humanos iniciou a sua fase legislativa com a elaboração de Pactos e Tratados que trouxeram caráter normativo aos direitos consagrados, refletindo na construção de um Direito Internacional dos Direitos Humanos, um complexo das normas que regulam a promoção e a proteção universais da dignidade da pessoa humana. Apesar dos primeiros passos rumo à construção de um Direito Internacional dos Direitos Humanos terem sido dados logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, com o surgimento da Liga das Nações e da Organização Internacional do Trabalho, a consolidação deste novo ramo do Direito ocorre apenas com o fim da Segunda Guerra Mundial. 157 O sistema internacional de proteção dos direitos humanos insere – se no lento e gradual processo de positivação das garantias dos direitos humanos iniciado nas Declarações Liberais de Direitos. Foram, porém, os perversos acontecimentos da Era Hitler e da Segunda Guerra Mundial que colocaram os direitos humanos na pauta de preocupações mais urgentes das nações, levando-as à necessidade de adoção de medidas realmente efetivas para sua proteção no âmbito internacional. Nesse contexto, surge o sistema global de proteção aos direitos humanos e paralelamente os sistemas regionais de proteção a esses direitos. O Estado Brasileiro integra o sistema Interamericano de Direitos Humanos, devendo, portanto, respeitar o estabelecido na Convenção Americana de Direitos Humanos, sua base normativa. Neste aspecto, será analisada a conduta do Estado Brasileiro no Caso Garibaldi, julgado no âmbito deste sistema. 2 TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS A ideia de direitos humanos ganhou demasiada importância ao longo da história, tendo em vista que seus pressupostos e princípios têm como finalidade a observância e proteção da dignidade da pessoa humana de maneira universal. Diante disso serão apresentados os principais marcos históricos que contribuíram para o reconhecimento e evolução destes direitos. A partir destes marcos, a maneira como cada Estado trata seus cidadãos não é mais competência sua, mas passa a ser de interesse internacional. 2.1 A Convenção de Genebra O primeiro grande marco na formação histórica da internacionalização dos direitos humanos foi a Convenção de Genebra. A partir deste momento nasce a proteção humanitária em caso de guerra, para proteger os militares e civis feridos na guerra. Em 1859, ocorreu a Batalha de Solferino, um combate decisivo no processo de independência italiana. Durante este período de guerra o comerciante Jean Henri Dunart, em uma de suas viagens presenciou os 158 horrores da guerra e comovido com o sofrimento e mortalidade dos civis reuniu um grupo de pessoas para estudar e discutir a insuficiência de serviços sanitários dos exércitos. Ainda, escreveu um livro “Lembranças de Solferino” narrando todos os horrores e as condições desumanas que presenciou na batalha. O livro ficou conhecido internacionalmente, e a partir daí alguns países aceitaram a intervenção na sua soberania, ou seja, começa a haver limites na liberdade e autonomia dos Estados. A Convenção de Genebra, ocorrida na cidade suíça com o mesmo nome, tinha o objetivo de garantir alguns direitos mínimos para os civis durante as guerras, portanto foram determinadas regras para proteger, em caso de guerra, os militares fora de combate, ou seja, os feridos, doentes, náufragos e prisioneiros. Neste mesmo contexto, surge a Cruz Vermelha, um órgão imparcial, criado para garantir a vida. Hospitais e ambulâncias passaram a receber o símbolo da Cruz Vermelha e tornaram-se imunes de ataques hostis, pois os militares feridos e os doentes deveriam ser tratados sem discriminação. A Cruz Vermelha tinha sua sede na Suíça, foi criada com uma estrutura de ONG, entretanto o Direito Internacional a reconhece como uma organização internacional que possui personalidade jurídica. Portanto, na sua área de atuação, podia firmar tratados. 2.2 A Liga das Nações A liga das Nações foi criada pelo Tratado de Versalhes em 1919, após a 1ª Guerra Mundial, com o objetivo de promover a paz e a ordem internacional através da mediação e arbitragem, condenando agressões externas contra a integridade territorial e independência política dos seus membros. Neste sentido, o preâmbulo da Convenção da Liga das Nações consagrava: As partes contratantes, no sentido de promover a cooperação internacional e alcançar a paz e a segurança internacionais, com a aceitação da obrigação de não recorrer à guerra, com o propósito de estabelecer relações amistosas entre as nações, pela manutenção da justiça e com extremo respeito para todas as obrigações decorrentes dos tratados, no que tange à relação ente povos organizados uns com os outros, concordam em firmar este Convênio da Liga das Nações. 159 Analisando este preâmbulo indaga-se: Depois de todos os horrores presenciados na 1ª Guerra Mundial, como a comunidade internacional, a Liga das Nações, conseguiu falhar em sua missão? Como não pensaram nas milhões de vidas perdidas? Como não se importaram com os Direitos Humanitários? Infelizmente, não há possibilidade de respostas convictas para tais questões, apenas a elaboração de teses que justifiquem o comportamento de uma parcela da população mundial da época. Sabe-se que havia muitas divergências ideológicas entre os Estados-parte e faltava força militar efetiva da Liga das Nações, pois no contexto da época, as sanções econômicas pouco adiantavam. Além disso, as tentativas de conciliação e sanções superficiais fizeram com que os países tomassem iniciativas agressoras, dando início à Segunda Guerra Mundial. A Liga das Nações falhou em sua missão, então não restou outra alternativa senão dissolvê-la. Porém, podemos dizer que está organização foi reformada e hoje a vemos como a ONU. 2.3 A Organização Internacional do Trabalho – OIT Após a assinatura do Tratado de Versalhes em 1919, que deu fim a 1ª Guerra Mundial, a Liga das Nações instituiu a OIT, uma organização com o objetivo de regular as condições de trabalho no âmbito mundial, formandose sobre a convicção de que a paz universal e permanente somente pode estar baseada na justiça social. Além disso, a OIT teve como base argumentos humanitários, políticos e econômicos. Pois, os trabalhadores viviam em condições injustas, difíceis e degradantes e por isso havia o risco de conflitos sociais. Os Estados passaram a ser encorajados a cumprir com as novas obrigações internacionais, assim pode-se dizer que esta organização foi um dos marcos que mais contribuiu para a formação do Direito Internacional de Direitos Humanos, pois foi a partir dela que começou a haver uma preocupação internacional com o bem-estar individual, sendo geradas várias convenções que estabeleceram padrões mínimos de condições de trabalho. 2.4 A Segunda Guerra Mundial 160 A Segunda Guerra Mundial teve início em 1939, quando a Alemanha invade a Polônia. Em 1941, os japoneses atacaram os Estados Unidos, fazendo com que este último declarasse guerra ao Eixo. Neste momento se formam dois grupos: os Aliados (Alemanha, Itália e Japão) e os Países do Eixo (Inglaterra, URSS, França e Estados Unidos). Neste período, os nazistas torturaram e mataram milhares de pessoas que não eram descendentes da raça ariana, pois eram considerados inferiores. A partir de 1942, os Países do Eixo começaram a sofrer sucessivas derrotas. Em 1944, ocorre o “Dia D”, dia em que os Estados Unidos desembarcam na Europa e começam a neutralizar as últimas forças nazistas que ainda permaneciam na Europa. Em 1945, Hitler suicida-se e logo após a Alemanha se rende, porém, o Japão não admite a derrota e resolve continuar sozinho na Guerra, levando os Estados Unidos a lançar duas bombas atômicas, uma sobre Hiroshima e outra sobre Nagasaki. Assim, teve fim a Segunda Guerra Mundial. Sem dúvidas, a Segunda Guerra Mundial foi o marco histórico mais desumano já visto até hoje, foi o ápice da desconsideração da dignidade humana, pessoas foram utilizadas como cobaias em experimentos com câmaras de pressão, enxertos de ossos, baixas temperaturas e muitos outros meios de tortura. Estima-se que foram mais de 45 milhões de mortos durante este período. Por isso, é considerado o fato histórico impulsionador decisivo do surgimento e consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Neste sentido, Piovesan (2004) leciona que a construção dos direitos humanos é um movimento extremamente recente na história, vez que surgiu somente no período pós-guerra. Este marco histórico na internacionalização dos Direitos Humanos mostrou o fracasso da humanidade em promover e proteger os seus direitos, mas, de uma maneira dolorosa, também fez surgir as bases desse novo Direito, que teve como impulso a urgência e a necessidade da promoção e proteção da dignidade da pessoa humana. 3 A FORMAÇÃO DOS SISTEMAS GLOBAL E REGIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS 161 Apesar de todas as situações desumanas ocorridas durante estes marcos, todos contribuíram para o processo de internacionalização dos direitos humanos. A Convenção de Genebra visava proteger direitos fundamentais em situação de conflito armado. A Liga das Nações tinha como objetivo a manutenção da paz e segurança internacional e a OIT, assegurou parâmetros globais mínimos para as condições de trabalho. Após a Segunda Guerra Mundial nasceu no continente europeu a esperança de se implantar um “standard” mínimo de proteção aos direitos humanos. Visava-se a salvaguarda dos direitos humanos e não das prerrogativas dos Estados e alterou-se o conceito de Direito Internacional, que antes era apenas o Direito que regulava as relações entre os Estado. Prenuncia-se o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, restrito ao domínio reservado do Estado, decorrência de sua soberania, autonomia e liberdade. Aos poucos emerge a ideia de que o indivíduo é não apenas objeto, mas também sujeito de direito internacional (PIOVESAN, 2004, p. 130). Portanto, esse momento Pós-Guerra foi o de reconstrução dos direitos humanos mediante a valorização da pessoa e da dignidade da pessoa humana, preocupação com o ser humano não na qualidade de minoria, mas de maneira geral. O movimento de internacionalização dos direitos humanos se deu de forma efetiva após a Segunda Guerra Mundial. As escandalosas e absurdas violações aos Direitos Humanos ocorridas fizeram com que a comunidade internacional pensasse que muito poderia ter sido evitado. Assim, dos escombros da Segunda Guerra Mundial, uma nova forma jurídica desponta para um Estado de Direito que precisava se renovar e o estímulo maior para tal renovação seria o compromisso em grau máximo com o respeito à dignidade humana. A barbárie do totalitarismo significou a ruptura do paradigma de direitos humanos, através da negação do valor da pessoa humana como valor fonte do Direito. Diante desta ruptura, emerge a necessidade de reconstrução dos direitos humanos, como referencial e paradigma ético que aproxime o direito da moral. Neste cenário, o maior direito passa a ser, adotando a terminologia de Hannah Arendt, o direito a ter direitos, ou seja, o direito a ser sujeito de direitos (PIOVESAN, 2004, p. 132). Com o término da Segunda Guerra Mundial começou a se pensar que a Alemanha deveria ser responsabilizada pelos atos bárbaros cometido durante o período, assim os países Aliados chegaram a um consenso e 162 criaram o Tribunal de Nuremberg para julgar os criminosos de guerra (PIOVESAN, 2004). Assim, começar a surgir os passos decisivos para a internacionalização dos direitos humanos e consequentemente a formação dos sistemas global e regionais de proteção aos Direitos Humanos. 3.1 A criação da ONU A ONU foi fundada oficialmente em 24 de outubro de 1945, após o final de 2ª Guerra Mundial. Representou importante mecanismo de cooperação internacional, a fim de construir a paz no pós-guerra, e prevenir guerras futuras. A ONU substituiu a Liga das Nações, e tinha como objetivo manter a paz e a segurança internacional, promover os direitos humanos, além de desenvolver as relações amistosas entre os Estados, promovendo assim a cooperação internacional nos meios econômico, político e cultural. Para conseguir alcançar seus objetivos, a ONU foi estruturada em diversos órgãos, sendo estes os principais: Assembleia Geral, Conselho de Segurança, Corte Internacional de Justiça, Conselho Econômico e Social, Conselho de Tutela e o Secretariado, todos estabelecido no seu artigo 7º. A Assembleia Geral possui competência para discutir e fazer recomendações relativas a qualquer matéria que for objeto da carta. O Conselho de Segurança é o principal responsável por manter a paz e a segurança internacionalmente, e para isso é composto por cinco membros permanentes (China, França, Reino Unido, Estado Unidos e a Rússia) e dez membros não permanentes. A Corte Internacional de Justiça é composta por quinze juízes, que podem ser reeleitos, as sentenças proferidas por ela são inapeláveis, porém podem ser revistas com a apresentação de um novo fato. O Secretariado é chefiado pelo Secretário Geral, principal funcionário administrativo da ONU. Por fim, o Conselho Econômico e Social, que tem competência para promover a cooperação nas questões econômicas, sociais e culturais. Este último órgão é o responsável por fazer recomendações destinadas a promover o respeito e a observância dos direitos humanos, além de elaborar projetos de convenções que são submetidos à Assembleia geral. A Carta das Nações Unidas de 1945 consolida, assim, o movimento de internacionalização dos direitos humanos, a partir do consenso de Estados que elevam a promoção desses 163 direitos a propósito e finalidade das Nações Unidas. Definitivamente, a relação de um Estado com seus nacionais passa a ser uma problemática internacional, objeto de instituições internacionais e do Direito internacional (PIOVESAN, 2004, p.142/143). A Carta das Nações Unidas deixa clara a importância de se defender, promover e respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, porém não há o significado da expressão “direitos humanos e liberdades fundamentais” no mencionado documento. Diante disso, o próximo passo foi dado em 1946, onde o Conselho Econômico e Social da ONU criou a Comissão de Direitos Humanos com o objetivo de elaborar uma Carta Internacional de Direitos Humanos. Assim, em 1948 veio a Declaração Universal dos Direitos Humanos, para definir a expressão “direitos humanos e liberdades fundamentais” (PIOVESAN, 2004). Portanto, com a assinatura da Carta das Nações Unidas, a comunidade internacional se comprometeu a promover e encorajar o respeito aos direitos humanos, para isso a Comissão de Direitos Humanos, principal órgão da ONU, foi incumbido de elaborar uma Carta Internacional de Direitos, e assim começou a elaboração de uma Declaração. 3.2 A Declaração Universal dos Direitos Humanos A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada em 1948, sob a forma de resolução, após aprovada pela Assembleia Geral, com o objetivo de delinear uma ordem pública mundial com base no respeito à dignidade humana, onde a condição de pessoa é o único requisito para a titularidade de direitos. Esta Declaração se caracteriza, primeiramente, por sua amplitude. Compreende um conjunto de direitos e faculdades sem as quais um ser humano não pode desenvolver sua personalidade física, moral e intelectual. Sua Segunda característica é a universalidade: é aplicável a todas as pessoas de todos os países, raças, religiões e sexos, seja qual for o regime político dos territórios nos quais incide (PIOVESAN, 2004, p. 145). A Declaração estabeleceu duas categorias de direitos: os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais. E neste aspecto foi inovadora, pois até então apenas os direitos civis e políticos eram consagrados, ou seja, a Declaração combinou o discurso liberal da cidadania com o discurso social, pois passou a elencar tanto os direitos civis e políticos, como direitos sociais, econômicos e culturais. Assim, a 164 Declaração demarca a concepção contemporânea de direitos humanos, classificando tais direitos em gerações, onde uma geração de direitos interage com outra, não havendo sucessão de direitos, pois estes se complementam e se fortalecem. A primeira geração desses direitos inclui os direitos cívicos e políticos, dirigidos, originalmente, à defesa dos cidadãos perante os possíveis abusos perpetrados pelo Estado. A segunda geração inclui os direitos sociais, econômicos e culturais que permitem aos cidadãos usufruir das condições materiais necessárias a uma vida digna, sem a qual não é possível o exercício efetivo dos direitos da primeira geração. E, por fim, a terceira geração de direitos humanos engloba os direitos relacionados ao acesso e usufruto de bens que pertencem em comum à humanidade, ou seja, direitos relacionados com o ambiente, bens culturais, a identidade, a solidariedade entre outros. A Declaração Universal foi adotada pela Assembleia Geral sob a forma de resolução, logo não possui força de lei. O seu propósito é o de promover o reconhecimento internacional dos direitos humanos e das liberdades fundamentais consolidando um parâmetro internacional para a proteção desses direitos, já os Estados membros da ONU têm a obrigação de promover o respeito e a observância universal dos direitos proclamados pela Declaração (PIOVESAN, 2004). Apesar de ter sido adotada como resolução, muitos defendem que a Declaração possui força jurídica vinculante por integrar o direito costumeiro internacional, e ainda que não assume a forma de tratado internacional, apresenta força jurídica obrigatória e vinculante, na medida em que constitui a interpretação autorizada da expressão “direitos humanos”. Neste contexto, partindo da corrente que defende a Declaração como uma resolução, sem força jurídica obrigatória e vinculante, instaurou-se uma discussão sobre qual a maneira mais eficaz para assegurar o reconhecimento e a observância universal dos direitos nela previstos. Houve o entendimento de que ela deveria ser recebida em forma de tratado internacional. Esse entendimento teve início com a elaboração de dois tratados internacionais, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que incorporaram os direitos contidos na Declaração (PIOVESAN, 2004). 165 A partir da elaboração desses tratados, forma-se a Carta Internacional de Direitos Humanos que inaugurou o Sistema Global de proteção aos Direitos Humanos. Paralelamente, também se formaram os sistemas regionais de proteção, nos âmbitos europeu, interamericano e africano. 3.3 Os sistemas regionais de proteção aos Direitos Humanos Todos os instrumentos analisados até aqui integram o Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos, na medida em que foram produzidos no âmbito das Nações Unidas, que representa os Estados participantes da comunidade internacional. Portanto, o campo de incidência do sistema global não se limita a uma determinada região, mas pode alcançar qualquer Estado integrante da ordem internacional. Ao lado do sistema global, surgem sistemas regionais de proteção, que buscam internacionalizar os direitos humanos no plano regional. Os sistemas global e regionais são complementares interagindo com o sistema internacional de proteção, para tornar mais eficaz a proteção de direitos fundamentais. Ambos os sistemas são inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal (PIOVESAN, 2004). A ONU estimulou a criação de sistemas regionais de proteção aos direitos humanos. O envolvimento de dois países, às vezes três, num conflito, não justifica o acionamento do sistema global de proteção aos direitos humanos, sendo um sistema regional mais ágil e eficaz no recebimento de denúncias, investigação e resolução de violações aos pactos. Também é vantajoso no sentido de que um sistema regional possui um aparato jurídico próprio, que reflete com maior autenticidade e proximidade as peculiaridades e características históricas dos países envolvidos. Cada sistema regional de proteção apresenta um aparato jurídico próprio. O Sistema europeu conta com a Convenção Europeia de Direitos Humanos, que estabelece a Comissão e a Corte Europeia de Direitos Humanos. Já o sistema africano apresenta como principal instrumento a Carta Africana de Direitos Humanos de 1981, que, por sua vez, estabelece a Comissão Africana de Direitos Humanos. O sistema interamericano tem como principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, que estabelece a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana. Por fim, como quarto sistema regional, embora de 166 forma insipiente, tem-se o Sistema Árabe de proteção aos direitos humanos, que conta com a Carta Árabe de proteção. 3.3.1 O Sistema Europeu de Proteção aos Direitos Humanos Após a Segunda Guerra Mundial nasce no continente europeu a esperança de se implantar um “standard” mínimo de proteção aos direitos humanos. Os países europeus buscaram união e cooperação entre si, principalmente em razão da situação política econômica pós-guerra que os deixou fragilizados para atuar individualmente no cenário internacional. Assim, começaram a nascer várias organizações internacionais na Europa Ocidental. Neste momento, alguns estados europeus (Bélgica, Luxemburgo, Dinamarca, França, Holanda, Irlanda, Itália, Reino Unido e Suécia) reuniram-se em Londres, em 05 de maio de 1949, para fundar o Conselho da Europa, uma organização representativa dos Estados da Europa Ocidental, com o objetivo de promover a unidade europeia, proteger os direitos humanos e fomentar o progresso econômico e social. Além do Conselho, foram criadas a União Europeia e a Organização para segurança e cooperação na Europa. Em 1950, foi fundada a Convenção Europeia de Direitos Humanos que visava estabelecer padrões mínimos de proteção. A Convenção Europeia, aberta à assinatura em 4 de novembro de 1950, é o Tratado Regente do Sistema Europeu de Proteção aos Direitos Humanos. Entrou em vigor internacional em 3 de setembro de 1953, quando dez Estados europeus a ratificaram. Na primeira parte da Convenção, são elencados direitos e liberdades fundamentais, essencialmente civis e políticos. Na Segunda Parte, a Convenção regulamenta o funcionamento da Corte Europeia de Direitos Humanos. E, por fim, na terceira parte, A Convenção estabelece algumas disposições diversas, como as Requisições do Secretário Geral do Conselho da Europa, poderes do Comitê de Ministros, reservas à Convenção, sua denúncia, entre outros. A Convenção Europeia, em seu texto original, instituiu três órgãos distintos: Um semijudicial, a Comissão Europeia de Direitos Humanos; um 167 judicial, a Corte Europeia de Direitos Humanos; um diplomático, o Comitê de Ministros (Conselho da Europa). A função de decidir se houve ou não violação da Convenção Europeia passou a ser uma função exclusiva da Corte Europeia de Direitos Humanos. A Corte foi instituída em 20 de abril de 1959 através do protocolo nº 11 da Convenção. A Corte possui competência consultiva (formular opiniões consultivas sobre questões jurídicas relativas à interpretação da Convenção e de seus protocolos) e contenciosa (as decisões da Corte são juridicamente vinculantes e têm natureza declaratória). O Sistema Europeu trouxe órgão de fiscalização em relação ao cumprimento da Convenção e elevou o indivíduo como sujeito de direito internacional, no que tange à proteção dos direitos humanos. 3.3.3 O sistema africano de proteção aos Direitos Humanos O sistema regional africano surgiu em momento posterior, quando comparado aos Sistemas Europeu e Interamericano. Tal Sistema teve origem no ano de 1963, durante a realização da sessão ordinária da Assembleia de Chefes de Estado e Governo, que criou a OUA, o alicerce do Sistema Regional Africano. Quando descoberta pelos Europeus, a África foi alvo de exploração, vista apenas como uma fonte de dinheiro pelos seus descobridores. O continente foi dividido e colonizado pelos europeus sem considerar as diferentes tribos, idiomas, religiões e culturas presentes. Os africanos eram vistos como inferiores pelos europeus e, devido a isto, muitos deles foram tomados como escravos, as riquezas naturais encontradas no continente eram extraídas e exportadas para as metrópoles não restando nada para os nativos. A origem deste sistema encontra-se nos debates ocorridos durante a sessão ordinária da Assembleia de Chefes de Estado e Governo da antiga Organização da Unidade Africana. Em junho de 1981, o projeto da Carta Africana foi votado, aprovado e assinado pelos membros da organização. Cinco anos mais tarde, em 21 de outubro de 1986, após atingir o número mínimo de ratificações necessárias, a Carta entrou em vigência. Em 2002, foi assinado protocolo à Carta Africana, que somente alcançou o número necessário de Estados aderentes (15), em 2006, somente então 168 entrando em vigor. O referido protocolo criou a Corte Africana de Direitos Humanos, nos moldes do Sistema Europeu e Interamericano, tendo função consultiva e contenciosa. Conhecida também como Carta de Banjul, a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos procura espelhar e preservar contornos característicos da cultura e da formação histórica africana. A Carta africana trouxe uma inovação em relação aos sistemas Europeu e Interamericano, qual seja, a obrigatoriedade de, a cada 2 anos, todos os Estados Membros enviarem um relatório à Comissão, com as medidas tomadas em relação à efetividade das garantias de Direitos Humanos. Após conquistada a independência, muitos Estados permaneceram com seus governos sob domínio militar. Assim, diante de tal situação política, a OUA defendia veementemente a não intervenção nos assuntos internos dos Estados e adotava formas não contenciosas para a resolução de divergências entre os seus Estados-membros. A Organização da Unidade Africana (OUA), importante órgão, que foi fundado em 25 de maio de 1963 na Etiópia, através da assinatura de sua constituição por representantes de 32 países africanos independentes, era composta por 53 membros, porém em 1985 o Marrocos se afastou da organização em protesto a entrada da “República Árabe Sarauí Democrática”, atual Saara Ocidental. Este órgão teve grande importância no processo de Descolonização da África, em 1966 foi criado o Comitê de Libertação ou de Descolonização que tinha como função apoiar os movimentos de libertação. Posteriormente, em 11 de julho de 2000, a OUA passou a ser denominada UA, cujas atividades iniciaram em 2001. A UA é composta pelos países do continente africano, com exceção do Marrocos pelo motivo anteriormente exposto. Após a análise do Sistema Africano, entende-se a necessidade de se destacar um fato histórico que marcou a história recente do continente africano, em especial, por ter sido uma atrocidade à questão central do presente artigo, a proteção aos direitos humanos. Tal evento histórico é o genocídio que ocorreu em 1994, em Ruanda, que, em menos de cem dias, deixou mais de 800 mil mortos em uma guerra interna decorrente de conflitos étnicos. 3.3.4 O sistema americano de proteção aos Direitos Humanos 169 O Sistema Interamericano foi instituído por meio da Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA). Essa carta, que leva o nome oficial de Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, foi aprovada em 1948. O principal instrumento do Sistema Interamericano é a Convenção Americana de Direitos Humanos, ela estabelece a estrutura do Sistema Interamericano, formado por dois órgãos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com sede em Washington, Estados Unidos da América, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada em San José, na Costa Rica. Órgão central da Organização dos Estados Americanos (OEA), a Comissão Interamericana atua na supervisão e no monitoramento do grau de cumprimento das obrigações internacionais pelos Estados-membros em matéria de direitos humanos no âmbito regional. A competência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos alcança todos os Estados-Partes da Convenção Americana, bem como os membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) em relação aos direitos humanos consagrados tanto na convenção quando na Declaração Americana de 1948. A principal função da Comissão é promover a observância e a proteção dos direitos humanos na América (PIOVESAN, 2004). A Corte Interamericana é um órgão jurisdicional que possui competência consultiva e contenciosa. No exercício da competência consultiva, qualquer membro da OEA pode solicitar o parecer da Corte. No plano contencioso, a competência da Corte para o julgamento de casos é limitada aos EstadosPartes da Convenção. Ainda, somente a Comissão e os estados-parte podem submeter um caso à Corte. As decisões da corte têm força jurídica vinculante e obrigatória, devendo os Estados cumprir de imediato. O Brasil possui condenação perante a Corte Interamericana por violação às garantias judiciais, no caso Garibaldi, conforme será verificado no próximo capítulo. 3.3.5 O Sistema árabe de proteção aos Direitos Humanos A liga dos Estados Árabes, ou Liga Árabe, é uma associação voluntária de países que são predominantemente de língua Árabe. A liga foi fundada 170 no Cairo em 1945 por Egito, Iraque, Arábia Saudita, Síria, Transjordania (Jordania a partir de 1950), e Yemen. Os principais objetivos da Liga são o de estabelecer relações mais estreitas entre os Estados membros e coordenar a relação entre estes, com o fim de proteger sua independência, soberania, defender de modo geral os assuntos e interesses dos países Árabes. A tomada de consciência dos Estados Árabes sobre a necessidade de adequar seus ordenamentos jurídicos, em conformidade com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, começa a partir dos anos 70. A partir desta data, o mundo Árabe-muçulmano começa as diversas declarações sobre Direitos Humanos. A Declaração Universal Islâmica sobre Direitos Humanos, de 19 de setembro de 1981, foi elaborada pelo Conselho da Organização da Conferência Islâmica e compilada por juristas Islâmicos e pelos representantes de diversas escolas de pensamento Islâmico, sobre a inspeção da Unesco. Em seu teor, trouxe características bastantes peculiares adaptativas em relação à Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas de 1948. Ainda, percebe-se que a Declaração Islâmica se trata de uma adaptação da declaração original voltada aos princípios da fé-islâmica, invocados constantemente ao longo do documento. Do mesmo modo, os Direitos Humanos se integram com o quadro do ordenamento jurídico islâmico, proclamando as liberdades tradicionais liberais como o direito a vida, a liberdade, a igualdade, a proibição contra a discriminação, o direito a justiça, e a um justo processo penal. Igualmente a carta Islâmica, reconhece os direitos sociais, económicos, e alguns direitos coletivos, como o direito as minorias religiosas, individualizando e expressamente o pluralismo religioso. A Declaração universal dos direitos humanos das Nações Unidas de 1948 foi muito criticada por muitos muçulmanos, qualificando-a de ter exclusivamente uma visão ocidental, sem ter em consideração a realidade cultural, religiosa e histórica, não só do islã senão de todos os países não ocidentais. Alguns muçulmanos opinam inclusive que esta declaração não é compatível com a Charia. Por isso, em 1990, todos os países da Organização para a Cooperação Islâmica (OCI) adotaram a Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos no islã. A Declaração do Cairo baseia-se 171 fundamentalmente na charia e no conceito de “O Islã, como representante de Alá na terra”. Com relação ao conteúdo desta declaração, se afirma o discurso teológico-jurídico iniciando na Declaração Islâmica Universal de 1981, no sentido de colocar os Direitos Humanos em um quadro complementar ao Islam. A Carta Árabe de Direitos Humanos foi adotada pelo Conselho da Liga dos Estados Árabes em 1994, e em março de 2008 entrou em vigor após a ratificação do sétimo Estado, Os Emirados Árabes Unidos. Este é um dos resultados das iniciativas dos países árabes de aderir ao movimento internacional de tutela dos Direitos Humanos. 4 O ESTADO BRASILEIRO E OS DIREITOS HUMANOS Embora o Brasil tenha aderido prontamente à formação da OEA, em 1952, com o decreto assinado por Getúlio Vargas, foi somente depois do período da redemocratização do país, em 1985, que a participação brasileira em organismos e instituições dedicadas aos direitos humanos passou a ser mais efetiva. O Brasil ratificou alguns instrumentos internacionais do Sistema Global, dentre estes, a Carta das Nações Unidas de 1945 ratificada pelo Brasil neste mesmo ano, assim como a Declaração Universal dos Direitos Humanos ratificada em 1948. Quanto ao Sistema Regional Interamericano o Brasil ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992. A Constituição Federal de 1988 foi a primeira Constituição brasileira a elencar o princípio da prevalência dos direitos humanos, como princípio fundamental a reger o Estado nas relações internacionais. Além disso, ela também recebe as determinações dos tratados internacionais como norma constitucional, ou seja, as normas contidas nos tratados internacionais integram e complementam os direitos constitucionais com a finalidade de ampliar os direitos e garantias fundamentais já previstos. Feitas essas breves considerações, analisa-se a decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Garibaldi versus Brasil, onde o Estado brasileiro foi responsabilizado pela não apuração da execução extrajudicial de um trabalhador sem-terra, tomando-se como 172 parâmetro normativo a Convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de San José da Costa Rica. 4.1 Análise do caso Garibaldi Diante de inúmeras desocupações de terra ocorridas todos os anos, em que os direitos humanos são frequentemente violados, o caso Garibaldi ganha relevo em razão de sua atualidade e das consequências gravosas ao Estado brasileiro, onde o mesmo foi responsabilizado pela não apuração da execução extrajudicial de um trabalhador sem-terra, tomando-se como parâmetro normativo a Convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de San José da Costa Rica (MONTEIRO, 2014). Na tramitação do processo perante a Corte, já acentuava a Comissão Interamericana de Direitos Humanos que o Brasil deveria adotar “medidas eficazes com o fim de evitar a proliferação de grupos armados que pratiquem desocupações clandestinas violentas”. Com a sentença proferida pela Corte, recupera-se, embora não tendo o propósito de se sobrepor à decisão nacional, o sentido para o qual o Poder Judiciário se justifica (MONTEIRO, 2014). Durante a desocupação extrajudicial de um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, Sétimo Garibaldi foi morto em Querência do Norte, noroeste do Paraná, em ação de cerca de 20 pistoleiros encapuzados. Com a conivência das autoridades locais, foi arquivado o Inquérito, apesar dos indícios e das inúmeras testemunhas. Diante dessa omissão, a Terra de Direitos, a Justiça Global, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e a Rede Nacional de Advogados Populares (RENAP) denunciaram o caso em 2003 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que foi informada também do posterior arquivamento não fundamentado do inquérito policial. Em 2007, a Comissão submeteu o caso à Corte, resultando na condenação do Estado brasileiro. Para a Corte o caso expõe a parcialidade do Poder Judiciário no tratamento da violência no campo e as falhas das autoridades brasileiras em combater milícias privadas formadas por latifundiários. A obrigação de investigar violações de direitos humanos está incluída nas medidas positivas que os Estados devem adotar para garantir os direitos reconhecidos na Convenção. No caso 173 de uma morte violenta, o Estado, ao tomar conhecimento do fato, deve iniciar ex oficio e sem demora, uma investigação séria, imparcial e efetiva, devendo ser realizada por todos os meios legais disponíveis e orientada à determinação da verdade (MONTEIRO, ٢٠١٤). Ainda, um inquérito deve ser conduzido de oficio pelo Estado, e como podemos observar não foi o que ocorreu no caso em estudo, pois o andamento do processo se deu por impulso dos familiares de Sétimo Garibaldi e não do Estado Brasileiro. A corte ainda entendeu que não foram convocadas testemunhas essenciais para esclarecer o ocorrido. Segundo a Corte, as falhas e omissões apontadas demonstram que as autoridades estatais não atuaram com a devida diligência nem em consonância com as obrigações derivadas dos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, assim declarou, por unanimidade, que o Estado brasileiro violou os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial reconhecidos em tais artigos (MONTEIRO, 2014). Diante disso foi condenado a: Dar ampla publicidade à decisão no Diário Oficial e em jornais de circulação nacional e estadual; Buscar identificar, julgar e, eventualmente, sancionar os autores da morte do Senhor Sétimo Garibaldi; Investigar as eventuais falhas funcionais nas quais possam ter incorrido os funcionários públicos a cargo do inquérito e, se for o caso, sancioná-los; Pagar indenização à Sra. Iracema Garibaldi e filhos, a título de danos material e imaterial, no prazo de um ano; e, restituir à Sra. Garibaldi as custas e gastos processuais. A sentença do caso Garibaldi demonstra a importância de um segundo nível de proteção dos Direitos Humanos, pois o Brasil foi responsabilizado por um órgão regional internacional, pela conduta das autoridades públicas ao violaram direitos humanos. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS I. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, foi necessária a adoção de um efetivo sistema de proteção internacional dos direitos humanos, capaz de responsabilizar os Estados pelas violações por eles cometidas, ou ocorridas em seus territórios. A comunidade internacional foi obrigada a tomar consciência de que o mundo não precisaria ter vivenciado os horrores perpetrados pelos nazistas, ao menos não em tão grande escala, se um sistema 174 efetivo tivesse sido adotado. II. Diante da urgente necessidade da reconstrução dos direitos humanos após a Segunda Guerra Mundial, pôde-se observar neste período o surgimento de diversas organizações internacionais com o objetivo de promover a cooperação internacional, que culminaram na formação do Sistema Global de proteção aos direitos humanos. III. A atuação de um Sistema Global eficiente e eficaz de promoção, proteção e reparação dos direitos humanos é uma exigência do processo de internacionalização construído na história recente da humanidade, para a salvaguarda da dignidade da pessoa humana. IV. Nesse contexto, a Carta das Nações Unidas abriu um grande leque de possibilidades para o contínuo desenvolvimento dos direitos humanos em nível mundial. Pois, após a adoção da Declaração Universal houve uma preocupação em formular tratados internacionais com força jurídica obrigatória e vinculante, que pudessem garantir de forma mais efetiva o exercício dos direitos e liberdades fundamentais. V. Paralelemente ao Sistema Global surgem os Sistemas regionais, tendo sua importância devida as peculiaridades culturais e históricas de cada continente, pois a implantação desses sistemas facilita a adoção de mecanismos de controle respeitando a cultura de todos os povos. VI. Sobre o caso Garibaldi ficou muito claro na sentença da Corte que na investigação de fatos que violem direitos humanos não pode um Estado-parte alegar a presença de obstáculos internos, tais como a falta de infraestrutura ou de pessoal. Carências de tal espécie não excluem a sua responsabilidade internacional. Ainda, é inegável que graves falhas e demoras relacionadas à apuração dos fatos, que afetem vítimas pertencentes a um grupo vulnerável, propiciam a repetição crônica das violações de direitos humanos. VII. Apesar de o fortalecimento da rede de proteção institucional internacional dos direitos humanos ser um processo lento e gradual, até mesmo na consciência crítica da comunidade jurídica atuante, a cada recomendação, ou decisão proferida pela Corte internacional, faz com que os Estados ao menos avaliem se é 175 recompensador permanecer na prática de violações, pois certamente a simples divulgação dos casos já representa constrangimento perante a comunidade internacional. VIII. O que resta evidente com o presente estudo, é a importância de um segundo nível de proteção aos direitos humanos, seja regional ou global. A certeza de que ainda existe uma esperança para as violações aos direitos humanos não julgadas, ignoradas ou julgadas acobertadas pela injustiça no plano doméstico dos estados. A certeza de que o indivíduo, enquanto sujeito de direito em âmbito internacional, tem ao seu alcance uma segunda opção para fazer valer seus direitos fundamentais, consagrados em Tratados internacionais, direitos estes garantidos a todos os humanos, pura e simplesmente pela condição de humanidade que lhes pertence. 6REFERÊNCIAS ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DE TERRA DE DIREITOS. Caso Sétimo Garibaldi: a seletividade penal brasileira em julgamento. Disponível em: <http://terradedireitos.org.br/2016/03/02/caso-setimogaribaldi-a-seletividade-penal-brasileira-em-julgamento/>. Acesso em: 07/05/2016. BICUDO, Hélio. Defesa dos direitos humanos: sistemas regionais. BORGES. Alci Marcus Ribeiro. Breve introdução do direito internacional dos direitos humanos. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/9228/breve-introducao-ao-direitointernacional-dos-direitos-humanos> Acesso em: agosto de 2016. Caso Sétimo Garibaldi: Estado brasileiro começa a cumprir sentença da OEA. Diponível em: <http://terradedireitos.org.br/2010/08/19/caso-setimo-garibaldi-estadobrasileiro-comeca-a-cumprir-sentenca-da-oea/> Acesso em: 07/05/2016 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 23 de setembro de 2009.Caso Garibaldi vs. Brasil. Disponível em: 176 < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_203_por.pdf> Acesso em: 07/05/2016 JUNIOR. Antonio Gasparetto. Convenção de Genebra. Disponível em: <http://www.infoescola.com/historia/convencoesde-genebra/>. Acesso em: 13/08/2016. MALHEIRO. Emerson. Os Direitos Humanos e a Segunda Grande Guerra Mundial. Disponível em: <http://emersonmalheiro.blogspot.com.br/2011/02/os-direitoshumanos-e-segunda-grande.html> Acesso em: agosto de 2016. MONTEIRO. Eduardo Martins Neiva. Caso Garibaldi vs Brasil: análise da decisão internacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos que responsabilizou o Estado brasileiro em caso de execução extrajudicial de trabalhador rural sem-terra. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,casogaribaldi-vs-brasil-analise-da-decisao-internacional-da-corteinteramericana-de-direitos-humanos-que-resp,50320.html> Acesso em: 07/05/2016. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 6ª ed. Max Limonad, 2004. SANTIAGO. Emerson. Liga das Nações. Disponível em: <http://www.infoescola.com/historia/liga-das-nacoes/> Acesso em: 13/08/2016. WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Sistemas Regionais de Direitos Humanos: perspectivas diversas. 1ª ed. Santa Cruz do Sul, Essere nel Mondo, 2015. 177 O FIM DO SILÊNCIO DOS INOCENTES: A CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA APÓS O ADVENTO DA LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO Alan Felipe Provin75 RESUMO O presente artigo explora a aplicação da Lei Brasileira de Inclusão, objetivando analisar as consequências jurídicas e sociais das suas disposições, apresentando como problema de pesquisa: as inovações apresentadas consolidam a tutela aos direitos humanos das pessoas com deficiência? Para solução, o trabalho estruturou-se em três capítulos: parte-se do estudo dos direitos humanos e sua ligação com a democracia; em seguida, foram analisadas as inovações apresentadas pela Lei 13.146/15, para, por fim, realizar uma análise da nova tutela aos direitos humanos para as pessoas com deficiência. A investigação ocorreu pela metodologia de lógica indutiva sob a pesquisa bibliográfica. Palavras chave: direitos humanos; estatuto da pessoa com deficiência; democracia. 1 INTRODUÇÃO As pessoas com deficiência sempre foram consideradas por um sistema milenar, influenciado pelo catolicismo, como incapazes. A teoria das incapacidades classificava as pessoas de acordo com suas aptidões físicas e mentais, para lhes atribuir direitos ou tutelas específicas de proteção. Assim, as pessoas que se enquadrassem em casos de incapacidade de acordo com a lei substantiva, não estavam aptas, igualmente, a terem participação civil e política plena. A vida de cada uma delas estava limitada aos ditames da lei. 178 Nesse contexto, surge a Lei nº 13.146/15, intitulada como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (ou Estatuto da Pessoa com Deficiência), que não teve uma recepção muito positiva por parte dos juristas brasileiros, dada a “preocupação” com a “proteção” das pessoas portadoras de deficiência face os novos regramentos jurídicos que lhes servem de apoio. O presente artigo, dessa forma, explora a aplicação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, ratificada e promulgada no Brasil com força de emenda constitucional, e da consequente edição da Lei nº 13.146/15, no ordenamento jurídico pátrio, tendo como pressuposto de pesquisa o ato de legislar sobre os direitos das minorias e a deficiência do próprio sistema quando estas não participam dos processos que lhes conferem direitos. Com base nisso, questiona-se se de fato as preocupações levantadas pelos juristas merecem prosperar. Em outras palavras, pergunta-se: as inovações apresentadas pelos regramentos normativos mencionados alhures realizam de fato a tutela aos direitos humanos das pessoas com deficiência? Dessa forma, os objetivos da pesquisa podem ser resumidos em analisar as alterações normativas, de forma a reconhecer a plenitude da dignidade da pessoa humana, e, além disso, o direito de viver dignamente, àqueles que sempre foram silenciados pela legislação, cujas escolhas e premissas baseavam-se em concepções familiares muitas vezes esculpidas no preconceito e desprezo, correlacionando a consecução e primazia dos direitos humanos, de forma a fortalecer a participação das pessoas com deficiência, colocando-as como sujeitos de direito que devem ser protegidos pelo Estado e instituições democráticas, sem, contudo, privar-lhes o direito à vida plena. Para contorno e solução da problemática proposta, no primeiro capítulo, será discorrido acerca do casamento entre a democracia e os direitos humanos, com base nos tratados internacionais, objetivando averiguar a aplicação do princípio da dignidade humana como bomba de impulso para que a inclusão de todas as pessoas na sociedade seja concretizada, as quais podem, assim, não somente ser, mas sentir-se pessoas. 179 A partir daí, no segundo capítulo, far-se-á uma análise das principais alterações no ordenamento jurídico brasileiro em decorrência da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e do Estatuto da Pessoa com Deficiência, destacando os pontos que foram objeto do caos institucional na comunidade jurídica, explicitando o lado humano e as justificativas para as mudanças, principalmente no âmbito da teoria das incapacidades, que teve como consequência a reformulação dos arts. 3º e 4º do Código Civil Brasileiro. Por fim, o terceiro capítulo abordará a busca da igualdade material das pessoas com deficiência, encerrando o silêncio que lhes era imposto, em virtude da tentativa de acessibilidade de direito que se consolida com os novos regramentos normativos, partindo-se do estudo dos direitos humanos como base para a concretização da democracia das pessoas que se encontram, por fatores físicos ou mentais, com dificuldades para alcançar a igualdade material almejada pela Constituição. Quanto à metodologia empregada no artigo científico, este se realizou pela base lógica indutiva76, e foram utilizadas as Técnicas do Referente77, da Categoria78, do Conceito Operacional79 e da Pesquisa Bibliográfica80. 2 O CASAMENTO ENTRE OS DIREITOS HUMANOS E A DEMOCRACIA Com o reconhecimento pela sociedade de que o homem (lato sensu) teria a capacidade de eliminar a própria existência da face da Terra, diversos tratados de direitos humanos vieram à baila desde o século passado, principalmente após a Segunda Guerra Mundial. As garantias e direitos internacionalmente reconhecidos por esses tratados transcendem às normas que até então eram assuntos internos de alguns dos Estados signatários apenas. A preocupação com a tutela da integridade física, moral e política das pessoas resulta, então, da concepção de que o descaso e desrespeito aos direitos humanos já foram capazes de atos bárbaros, e 180 que seria necessária a prática de determinadas posturas institucionais para a criação de um mundo de justiça, paz dignidade. O processo de democratização e inclusão social, dessa forma, parte do reconhecimento por essas convenções internacionais e dos organismos internos dos respectivos Estados-parte de que os seres humanos têm o direito de ser reconhecidos como tais, nas mais diversas dimensões da dignidade da pessoa humana. A Declaração Universal dos Direitos Humanos - DUDH (1948), em seus arts. VI e XXI, preconiza que “todo ser humano tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”, e “todo ser humano tem o direito de fazer parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos”, respectivamente. A Declaração Universal dos Direitos Humanos surge como uma representação da síntese do passado e uma inspiração para o futuro, em busca de mudanças. (OLIVEIRA, 2007, p. 364) Assim, os direitos humanos potencializam o enraizamento de concepções individuais e coletivas como padrão de relações sociais, transcendendo nas fontes do direito e nas formas de resolução de conflitos, buscando a transnacionalização de ações e agentes, a concepção de dignidade da pessoa humana e civilidade, bem como o alcance de uma democracia inclusiva. (KOERNER, 2003, p. 153) Nas Américas, a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica), em 1969, veio reafirmar a importância dos direitos humanos na sociedade americana. Em seu preâmbulo, já menciona que a Convenção tem como propósito “consolidar neste Continente, dentro do quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça pessoal, fundado no respeito dos direitos essenciais do homem”. Ainda, continua narrando que “só pode ser realizado o ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos”. No âmbito interno de qualquer Estado, só é possível falar em concretização dos direitos humanos, quando ele mesmo exerce, de fato, um papel democrático. 181 Como explana Oliveira (2007, p. 363), “não é possível enxergar a categoria de cidadão naquele que não dispõe da própria dignidade, de uma vida digna”. O direito de participação está no centro dos direitos humanos. [...] Na sua essência, a democracia está fortemente relacionada com os princípios de direitos humanos e não pode funcionar sem garantir o total respeito e proteção da dignidade humana. Para além da participação e representação, também está relacionada com a inclusão, entendida enquanto direito a ser totalmente incluído na vida cívica da comunidade, da região e do país de cada um. Embora o exercício do direito a ser incluído e a participar esteja à discrição do próprio cidadão, o direito não lhe pode ser negado. (GOMES; MOREIRA, 2012, p. 441-442) Segundo Dahal (2001, p-61-62), há de se ressaltar que que a democracia não é apenas um ato de governar, mas sim um sistema preponderantemente de direitos, uma vez que estes são elementos fundamentais nas instituições políticas democráticas. Os direitos são os tijolos essenciais para a construção de um processo de governo democrático. Ainda que seja possível considerar a democracia como um conjunto de regras que possibilitam estabelecer quem está autorizado a tomar decisões em nome da coletividade e quais os procedimentos para isso, não se pode olvidar do fato que, ainda assim, as decisões são tomadas por indivíduos, e não pelo grupo como tal. (BOBBIO, 1986, p. 18) Assim, no processo político, as decisões são tomadas com base em representantes do povo, que, por muitas vezes, não compreendem ou não possuem vivência com as minorias, que acabam sendo marginalizadas por falta de força ativa no debate. Dahal (2001, p. 64) ainda afirma que além de todos os direitos, liberdades e oportunidades necessários para um governo ser considerado democrático, os cidadãos devem gozar de uma série de liberdades ainda mais extensa, por contribuir para a autonomia moral, para o julgamento e para uma vida digna. Deve-se ter em consideração que a dignidade do ser humano enquanto membro de uma sociedade está inserida num contexto político com grandes injustiças sociais. Para que ele tenha direitos e possa exercê-los, é indispensável que seja reconhecido e tratado como 182 pessoa, respeitando a sua vida, e sua dignidade. (OLIVEIRA, 2007, p. 363) Essa participação, contudo, depende de um efetivo processo de inclusão. Um processo social que atribui a todos esses sujeitos o direito de voz, de ser ouvido, de ser cidadão. Vale lembrar que por mais que ainda existam preconceitos, até alguns anos atrás, os negros e mulheres não eram detentores de direitos plenos em comparação aos homens brancos. Farias, Cunha e Pinto (2016, p. 20) complementam acertadamente que os direitos humanos são caracterizados pela universalidade e indivisibilidade. Universais, pois atingem todos os seres humanos, bastando apenas o nascimento da pessoa para isso, independentemente de quaisquer outras classificações que possam lhe ser atribuídas. Indivisíveis, pois criam um vínculo entre os direitos civis e políticos aos culturais, econômicos e sociais. Para satisfazer as exigências da democracia, torna-se necessário que os direitos nela compreendidos realmente sejam cumpridos, e, na prática, devem estar à disposição dos cidadãos. Se não estiverem, por mais que se auto intitulem o contrário, os governos serão considerados não democráticos. (DAHAL, 2001, p. 62) O que acontece agora é que o processo de democratização, ou seja, o processo de expansão do poder ascendente, está se estendendo da esfera das relações políticas, das relações nas quais o indivíduo é considerado em seu papel de cidadão, para a esfera das relações sociais, onde o indivíduo é considerado na variedade de seus status e de seus papéis específicos [...] (BOBBIO, 1986, p. 54) Conforme explana Melim (2015, p. 63), há de se entender que o direito não está unicamente nos textos jurídicos, que são mera tinta em papel. O direito necessita de uma presença, de uma cura, para que então seja considerado um ser jurídico. A interpretação jurídica, assim, deve se dar a partir da compreensão do direito como uma cura. É possível dizer que todos ou quase todos querem determinadas coisas ou direitos, seja sobrevivência, alimento, saúde, amor, respeito, família, lazer, entre outras. Também é possível dizer que, provavelmente, muitas das pessoas anseiam coisas diferentes umas das outras. As pessoas, assim, buscam por oportunidades de moldar as suas vidas conforme os seus próprios objetivos, preferências, 183 compromissos, convicções, gostos ou valores. Nesse contexto, a democracia protege essa liberdade de escolha e essa oportunidade melhor que qualquer sistema político alternativo que já tenha sido criado. Apenas um governo democrático é capaz de proporcionar oportunidades máximas para as pessoas exercitarem a liberdade de autodeterminação, ou seja: de viverem sob as leis de sua própria escolha. (DAHL, ٢٠٠١, p. ٦٦-٦٥). A luta pelo reconhecimento de direitos resulta num processo de formulação pública de problemas para que haja, assim, uma resposta política. Os direitos reconhecidos, assim, acabam por validar conhecimentos determinados sobre a realidade da sociedade a que se aplicam, preconizando por instrumentos e procedimentos adequados para sua efetivação. Logo, a declaração de um direito acaba por reconhecer a carência de um bem ou serviço que deve ser suprido por alguém, em geral, por uma autoridade pública. (KOERNER, 2003, p. 151) Ao se elaborar normas ou se tratar de questões de igualdade e desigualdade, deve-se ter em mente que as pessoas são diferentes, singularmente, mas iguais em um geral. Iguais, pois todas merecem o direito de vida, amor, liberdade, felicidade e outros interesses fundamentais. Diferentes, pois a cada uma devem ser oportunizados meios para que alcancem esses direitos, de acordo com suas particularidades. É o reconhecimento da igualdade formal e a consolidação da igualdade material. Assim, os direitos humanos não são apenas um elemento instrumental e estratégico, mas são centrais ao debate político em uma sociedade democrática. As reações e as demandas dos setores marginalizados acabam encontrando amparo nos direitos humanos, propiciando a formulação de normas comuns e discussão pública das razões que justificam suas pretensões normativas. (KOERNER, 2003, p. 152) Cabe salientar que da forma que se trata a democracia neste trabalho não se pretende limitá-la ao direito ao voto, mas sim à participação pública e civil como um todo. A democracia depende do interesse e da ativa participação dos seus beneficiários. Ser informado e ter acesso ao conhecimento é requisito 184 para uma participação útil no sistema democrático. (GOMES; MOREIRA, 2012, p. 442) Logo, a partir do momento que minorias (que representam uma massiva parcela da população) alcançam o direito de participação, direito de serem ouvidas, parte-se para um estágio superior de democracia. Nessa seara, situam-se as pessoas com deficiência. A partir de agora, adentra-se nos novos direitos que lhes foram atribuídos pelas normas em debate, para melhor compreensão deste capítulo. 3 A LEI Nº 13.146/15 E A INSTAURAÇÃO DO CAOS Em 30 de março de 2007, na cidade de Nova Iorque, foi aprovada a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 186/2008, e promulgada pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. O Brasil a aprovou nos termos do art. 5º, §3º, da Constituição, que prevê que os “tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”, tornando-se o primeiro, e por enquanto o único, tratado internacional a integrar o ordenamento pátrio com status de emenda constitucional. Segundo o Ministro Edson Fachin (2015), estando a Convenção abraçada pelo art. 5º, § 3º, da Constituição, reforça-se o compromisso internacional da República com a defesa dos direitos humanos, compondo o bloco de constitucionalidade que funda o ordenamento jurídico pátrio. Dentre as motivações da Convenção, destaca-se que foi reconhecida “a dignidade e o valor inerentes e os direitos iguais e alienáveis de todos os membros da família humana como o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo”, reafirmada a “universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a inter-relação de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como a necessidade de garantir que todas as pessoas com deficiência os 185 exerçam plenamente, sem discriminação”, preocupados que “as pessoas com deficiência continuam a enfrentar barreiras contra sua participação como membros iguais da sociedade e violações de seus direitos humanos em todas as partes do mundo”, e considerado que essas mesmas pessoas “devem ter a oportunidade de participar ativamente das decisões relativas a programas e políticas, inclusive as que lhe dizem respeito diretamente”. Com base nisso, em 06 de julho de 2015, foi publicada a Lei nº 13.146, com vacatio legis de 180 (cento e oitenta) dias, estabelecendo em seu art. 1º que fica “instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”, reiterando, em seu parágrafo único, que a lei tem como fundamento a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelos instrumentos normativos internos mencionados alhures. Ou seja, carecem de fundamento as críticas levantadas por muitos juristas, que julgaram o Congresso Nacional pela elaboração de uma lei completamente incongruente, com consequências devastadoras, colocando em chamas um instituto de capacidades em vigor e que sempre funcionou sem maiores problemas. Frisa-se, novamente, que a lei em questão não é uma inovação ou invenção brasileira. A Lei 13.146/2015 reflete uma adequação nacional ao cumprimento da Convenção Internacional. Ainda, a Convenção já está em vigor no Brasil desde a sua promulgação pelo Decreto nº 6.949/2009, repetindo-se o seu status de Emenda à Constituição. Em miúdos, a Constituição estava sendo desrespeitada desde 2009. Desrespeitar as normas da Convenção, seria desrespeitar a própria Constituição. O Estatuto, então, vem regulamentar a aplicação dos instrumentos de inclusão presentes na Convenção, de forma a dissipar as diferenças de tratamento aos seus tutelados, que, preconceituosamente, foram preteridos em diversos direitos. 186 De acordo com o art. 1º da Convenção e art. 2º do Estatuto, considera-se pessoa com deficiência toda aquela que possua impedimento de longo prazo de qualquer natureza (física, sensorial, intelectual ou mental), que possa acarretar em obstrução na participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com outras pessoas. De qualquer sorte, não é possível afirmar que a Convenção ou o Estatuto sejam os primeiros regramentos vigentes no país que versem a proteção da pessoa com deficiência, uma vez que já era possível visualizar a Lei nº 7.853/1989 e seu Decreto Regulamentador nº 3.298/1999, dentre outros instrumentos normativos. Contudo, a Convenção, neste momento, surge como inovadora em diversos institutos do direito, em uma tentativa de tornar realmente eficaz a inclusão das pessoas portadoras de deficiência na sociedade. Para isso, a lei prevê, agora, diversas formas para refutar e punir a prática de qualquer preconceito contra seus tutelados. Dentre as mudanças, diversas delas se apresentaram no sentido de possibilitar acessibilidade e espaços adequados aos portadores de deficiência, como foi o caso do julgado mencionado. Sem reduzir-lhes a importância, destacar-se-ão, neste trabalho, alguns pontos relacionados às alterações das capacidades atinentes aos que possuem especial necessidade cognitiva, mental ou intelectual, uma vez que ensejaram as maiores polêmicas no seio jurídico. A teoria das incapacidades surge com uma nova roupagem. De acordo com o art. 12 da Convenção, os Estados membros deverão reconhecer “que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida”, tomando as “medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal”, o que é reproduzido, em termos muito semelhantes, no art. 84 do Estatuto. Com base nisso, o Estatuto modificou os arts. 3º e 4º do Código Civil Brasileiro, que possuíam a seguinte redação: Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os 187 ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; IV - os pródigos. (Grifei) E passaram a ter o seguinte teor: Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de ١٦ (dezesseis) anos. Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; IV - os pródigos. (Grifei) Primeiramente, vale lembrar, novamente, que a exigência para reconhecimento da capacidade plena das pessoas decorreu do próprio texto da Convenção, aprovado com status de Emenda à Constituição. Ou seja, caso a Lei Brasileira de Inclusão não procedesse dessa forma, incorreria em inconstitucionalidade e violação ao tratado internacional. Logo, descabidas neste momento as discussões acerca do posicionamento legislativo brasileiro quando da elaboração da Lei 13.146/15. Segundo, denota-se que a redação primitiva do Código Civil apresentava demasiada carga preconceituosa. Bastava uma pessoa ser portadora de deficiência, não possuir o desenvolvimento mental completo ou possuir o discernimento reduzido para que fosse considerada incapaz (absoluta ou relativamente, a depender do caso). Ou seja, o critério nunca se baseou de fato nas capacidades da pessoa, e sim no seu porte ou não de algum distúrbio genético mental ou intelectual, que lhe levasse ao conceito de “deficiente”. Com a nova redação que lhes foi conferida, a pessoa com deficiência deixa de ser incapaz por esse simples fato, alterando sobremaneira a teoria das incapacidades consagrada pelo Código Civil de 2002, divorciando os conceitos de incapacidade e de pessoa com deficiência. Assim, não há mais, efetivamente, uma relação umbilical e preconceituosa entre a deficiência e incapacidade para os atos da vida civil. Isso pois uma pessoa com deficiência pode não sofrer qualquer restrição à possibilidade de expressar as suas vontades e preferências. (FARIAS; CUNHA; PINTO, 2016, p. 308). Logo, com a atual redação, apenas as pessoas que não possam exprimir sua vontade, seja por deficiência ou não (frisa-se: independente da deficiência), serão consideradas relativamente 188 incapazes, mantendo a incapacidade absoluta como causa exclusivamente etária para os casos do Código Civil, e de condição étnica, para os silvícolas, na forma do Estatuto do Índio (Lei 6.001/73). É a possibilidade de integração dos relativamente incapazes aos atos que lhe dizem respeito. Das novas disposições implantadas pelo Estatuto, possivelmente a alteração da teoria das capacidades que tem gerado maior polêmica, dada a falta de compreensão, em um primeiro momento, do caráter social e inclusivo da medida. Atreladas às preocupações, está a redação do art. 83 da mencionada lei, que esculpe que “os serviços notariais e de registro não podem negar ou criar óbices ou condições diferenciadas à prestação de seus serviços em razão de deficiência do solicitante, devendo reconhecer sua capacidade legal plena, garantida a acessibilidade”, informando em seu parágrafo único que tal prática considerar-se-á discriminação em razão da deficiência. Os responsáveis pelas serventias extrajudiciais, quando da leitura do mencionado dispositivo, chegaram a acreditar na obrigação da lavratura de qualquer ato para qualquer pessoa, independentemente da sua capacidade, violando os requisitos básicos do ato notarial, de encontro ao art. 215, §1º, II, do Código Civil. Contudo, ressalta-se novamente que a intenção da norma é desatrelar o instituto da capacidade com a situação fática de deficiência do usuário do serviço. Logo, em razão da deficiência, não podem ser opostos óbices à lavratura dos atos, uma vez que deficiência não é sinônimo de incapacidade. Aos portadores dessas necessidades, deve-se reconhecer capacidade plena, conforme art. 83 do Estatuto, e 3º e 4º da lei substantiva civil. Contudo, a recusa é justificada se baseada na falta de capacidade de manifestação de vontade, independentemente de ser a pessoa portadora de deficiência ou não. Em prosseguimento, pelo art. 6º do Estatuto, a deficiência não pode afetar a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para constituir vínculos de família, seja pelo casamento ou união estável, direito de reprodução e escolha da melhor forma de planejamento familiar, podendo exercer guarda, curatela, tutela e proceder à adoção. Com isso, o art. 85 complementa afirmando que a curatela se tornou medida 189 extraordinária e afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial. Ou seja, as questões existenciais e que envolvam questões atinentes ao corpo, liberdade e família do curatelado, por exemplo, não podem ser reprimidas ou escolhidas pelo curador. Já que deficiência não afeta a capacidade civil da pessoa (art. 6º), não se justifica assim, por si, a curatela. (FREIRE; CUNHA, 2016, p. 791) Equivocam-se aqueles que afirmam que o instituto da interdição se esvaziou, vez que não mais presentes os incapazes do art. 3º, bem como dada a revogação dos artigos 1.768 a 1.773 do Código Civil, que previam regras gerais para o procedimento. Acontece que o Estatuto alterou a redação desses artigos, que, contudo, já estavam comprometidos à extinção, pois o Código de Processo Civil, publicado em 16 de março de 2015 e com vacatio legis de um ano, previu a sua revogação, reproduzindo-os em seus arts. 747 e seguintes. Assim, em uma tentativa infeliz de adequação do Código Civil ao Estatuto, passou despercebido ao legislador que a publicação e a entrada em vigor deste instrumento ocorreram entre as datas de publicação e a entrada em vigor do Novo CPC, que acabou revogando as novas normas, que vigoraram tão somente por três meses. Assim, a interdição existe no Novo Código de Processo Civil, de acordo com os sujeitos a esse procedimento, conforme art. 1.767 do Código Civil, que contém os mesmos sujeitos constantes no rol dos relativamente incapazes do art. 4º, com exceção dos maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. Ressalta-se, ainda assim, que conforme art. 755, II, do Novo CPC, o juiz deverá considerar as características pessoais do interdito, observando suas potencialidades, habilidades, vontades e preferências. Considerar as potencialidades significa dizer que o curador poderá agir de forma mais semelhante a um verdadeiro representante, nos casos em que o incapaz não tenha qualquer condição de participar do ato, bem como será mero assistente, com poderes maiores ou menores, conforme as potencialidades do incapaz. (ASSIS NETO; JESUS; MELO, 2016, p. 126). 190 Cada curatelado terá o direito de ter a sua curatela com parâmetros de acordo com suas particularidades, sem fórmulas genéricas e neutras, individualizando seu projeto terapêutico e regulamentando a extensão da intervenção sobre a sua autonomia privada. (FARIAS; CUNHA; PINTO, 2016, p. 244). Nesse sentido, surge o procedimento de Tomada de Decisão Apoiada (TDA), consoante art. 1.783-A do Código Civil, que visa assegurar às pessoas com deficiência que possuam poder de manifestação (ou seja, que não estejam enquadradas como relativamente incapazes) a possibilidade de solicitar ao Judiciário a nomeação de pessoas de sua confiança para o acompanhamento dos atos da sua vida civil. Conforme Chaves e Rosenvald (2016, p. 338), o procedimento é destinado às pessoas com deficiência que sejam consideradas plenamente capazes, podendo produzir atos jurídicos independentemente de representação ou de assistência, mas que reconhece em si limitações no exercício do autogoverno, sem perder a aptidão de manifestação de vontade e de se fazer compreender. É a possibilidade de não se tomar a medida extrema de interdição. É a relação intermediária entre as pessoas com deficiência e as que não podem se manifestar, buscando assegurar a sua própria dignidade e igualdade substancial. 4 O FIM DO SILÊNCIO DOS INOCENTES Por muitos anos, a legislação brasileira omitiu a possibilidade de manifestação de vontade das pessoas com deficiência, deixando que a família tomasse as decisões sobre a vida dos tutelados presentes em seu meio, chegando-se, às vezes, ao absurdo de promoverem esterilizações para impedir a continuidade do gene, esconderem esses membros da sociedade, trancando-os em quartos, calando seus desejos e sentimentos. Acaba sendo uma tarefa fácil ditar os direitos que lhe dizem respeito. Fácil opinar, criticar ou legislar sobre um meio do qual não se faz parte. Por muito tempo as pessoas portadoras de necessidades 191 especiais viram seus direitos sendo ditados e regrados por outras pessoas que não as compreendiam, não faziam parte do seu meio. Mas até que ponto realmente as pessoas consideradas como “deficientes” assim o eram? A partir do momento que as pessoas do meio não conseguem lhes compreender, talvez seja necessário averiguar a existência de uma deficiência do lado receptor da mensagem, dos sentimentos, das angústias, e não tão somente do lado emissor. Dessa forma, a proteção à pessoa com deficiência toma vulto como consequência do desdobramento dos direitos humanos, importando em verdadeira superação do modelo egoístico, em que predominava o indivíduo, colocando-se em favor do interesse da sociedade como um todo, incluindo aí a pessoa com deficiência, em face de sua notória hipossuficiência, de modo a cumprir um dos fundamentos do Estado Democrático previstos no art. 1º da CRFB/88: a dignidade da pessoa humana. (FARIAS; CUNHA; PINTO, 2016, p. 18). Nesse sentido, frisam-se fragmentos da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.357, do Distrito Federal, impetrada contra dispositivos da Lei 13.146/15 que obrigaram as instituições educacionais a adotarem procedimentos de adequação de seus estabelecimentos e preparação docente para o ingresso e inclusão de alunos portadores de alguma deficiência, conforme arts. 27 a 30, uma vez que, de acordo com a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEN (requerente da ação), tais obrigações elevariam demasiadamente os custos para as escolas, o que levaria ao encerramento das atividades em muitas delas. A decisão, merece um resumo quanto aos seguintes pontos: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR. LEI 13.146/2015. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. ENSINO INCLUSIVO. CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. INDEFERIMENTO. 1. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência concretiza o princípio da igualdade como fundamento de uma sociedade democrática que respeita a dignidade humana. 2. À luz da Convenção e, por consequência, da própria Constituição da República, o ensino inclusivo em todos os níveis de educação não é realidade estranha ao ordenamento jurídico pátrio, mas sim imperativo que se põe mediante regra explícita. 3. A Lei nº 13.146/2015 indica assumir o compromisso ético de acolhimento e pluralidade democrática adotados pela Constituição ao exigir que 192 não apenas as escolas públicas, mas também as particulares deverão pautar sua atuação educacional a partir de todas as facetas e potencialidades que o direito fundamental à educação possui e que são densificadas em seu Capítulo IV. 4. Medida cautelar indeferida. (Grifei) Assim, a Convenção e o consequente Estatuto trouxeram o direito de voz àqueles que por alguma violação genética foram oprimidos por tanto tempo. Por certo que o que é novo causa certa reação negativa ou resistência nos demais, mas essa quebra de paradigma nunca se fez tão necessária. O Estatuto possibilitou um leque de direitos e obrigações que tendem a reduzir o preconceito existente na sociedade, incluindo as pessoas com deficiência nos meios que até então as desprezavam: obrigou a inclusão de programas de acessibilidade nas cidades obrigadas a manter o plano diretor (art. 41, §3º, Estatuto da Cidade); possibilitou a oitiva das pessoas com deficiência como testemunhas, atendidas suas particularidades (art. 228, §2º, CC); a possibilidade e oportunidade de externarem seu direito de amar, por meio do casamento, união estável e outras formas de amor, uma vez que tratase de um contrato de natureza afetiva e existencial (art. 1.548 e 1.550, §2º, CC), impossibilitando a anulação do casamento em virtude de descoberta posterior de deficiência (art. 1.557, III, CC); a obrigatoriedade de atendimento prioritário nos estabelecimentos de saúde (art. 9º do Estatuto); a necessidade de oitiva do paciente portador de deficiência para intervenções cirúrgicas em seu corpo (art. 11 do Estatuto); a criminalização do preconceito, da apropriação indevida dos bens e documentos, bem como o abandono, quando praticados contra as pessoas a que diz respeito ao Estatuto (art. 88 e seguintes do Estatuto), entre outras importantes medidas de inclusão.. Além do mais, possibilitou-se a participação política, como verdadeira forma de inclusão democrática das pessoas com deficiência. Como a incapacidade civil e política estão intrinsecamente ligadas, a atual Carta Magna, em seu art. 15, II, dispõe que incapacidade civil absoluta é uma causa de suspensão dos direitos políticos. Assim, os menores de 16 anos (dezesseis anos) e os que, até então, padeciam de alguma doença mental com sentença de interdição declarada e não possuíam, para o legislador, o discernimento 193 necessário para a prática dos atos da vida política, não podiam votar ou ser votados, enquanto perdurasse os efeitos da incapacidade. (MENDES; BRANCO, 2015, p. 751-753) Sendo a incapacidade absoluta agora restrita ao quesito etário, a suspensão dos direitos políticos das pessoas com deficiência acabou, as quais podem livremente votar e ser votadas, como preconizava igualmente o art. 85, §1º do Estatuto. O novo modelo segue timidamente as diretrizes da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, da Organização Mundial da Saúde, por meio da qual a incapacidade é considerada como consequência da interação entre a disfunção orgânica e/ou da estrutura do corpo apresentada pelo indivíduo, a limitação de suas atividades e a restrição na participação social, e dos fatores ambientais que podem atuar como facilitadores ou barreiras para o desempenho dessas atividades e da participação. (FARIAS; BUCHALLA, 2005, p. 188). Assim, no âmbito internacional, é possível vislumbrar que o conceito de capacidade não tem relação direta com a pessoa e suas aptidões, e sim com as dificuldades que encontra para se aderir ao meio em que convive. A legislação brasileira, assim, avança nesse patamar. A própria Declaração dos Direitos da Pessoa com Deficiência, de 09/12/1975, já preconizava que: As pessoas deficientes têm o direito inerente de respeito por sua dignidade humana. As pessoas deficientes, qualquer que seja a origem, natureza e gravidade de suas deficiências, têm os mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos da mesma idade, o que implica, antes de tudo, o direito de desfrutar de uma vida decente, tão normal e plena quanto possível. Assim, acredita-se que muitas das críticas levantadas quanto às atualizações do instituto das incapacidades devem ser revistas para que possa haver a compreensão de que, agora, a legislação cumpriu com os objetivos dos direitos humanos inerentes a todos. Cumpriu o tratado internacional. Cumpriu a Constituição. Cumpriu com premissas básicas inerentes à situação de pessoa humana que não precisariam estar escritas em quaisquer documentos. 194 A visão conservadora deve ceder espaço à aceitação da participação dessas pessoas na comunidade. A dignidade da pessoa humana e o direito de viver dignamente não pode abranger tão somente aqueles que compreendem com exatidão o que essas palavras significam. Muito mais do que isso, as pessoas, inclusive as portadoras de necessidades especiais, anseiam por uma vida baseada no amor e felicidade, ainda que não saibam que nomenclatura dar isso. Assim, quando se refere à acessibilidade, não se deve ter como base tão somente o correto manejo dos estabelecimentos para recepção de pessoas que necessitem de atenção especial. Muito mais que isso, deve ser compreendida como acessibilidade aos direitos, à posição de igualdade material, ao status já desfrutado pelas outras pessoas. Acessibilidade a meios de integração na sociedade, que lhe assegurem o direito de ser pessoa. Há de se levantar, porém, que o Estatuto de fato restou impreciso quando da mudança do instituto das incapacidades, sem se ater às demais normas do códex civil. Além da modificação de artigos da curatela que já haviam sido ceifados, podem ser citados como exemplos de outros reflexos no Código Civil: a) a prescrição, de acordo com o art. 198, I, não corre contra os incapazes de que trata o artigo 3º do mesmo diploma, que, até então previa pessoas com deficiência e hoje tão somente os menores de dezesseis anos. Assim, a prescrição correrá normalmente para eles, o que pode, em alguns casos, demonstrar um certo perigo ao seu direito de defesa. b) Conforme art. 166, I, os atos praticados por absolutamente incapazes são nulos, enquanto pelo art. 171, I, os atos praticados por relativamente incapazes são anuláveis. Assim, da mesma forma que no exemplo da prescrição, por vezes, pela falta de anulação no prazo devido, atos “praticados” por pessoas em coma, por exemplo, permanecerão válidos. c) Por fim, conforme art. 543 do Código Civil, as doações para absolutamente incapazes independem de aceitação, desde que se enquadrem como puras. Antes, as pessoas com deficiência que fossem enquadradas como absolutamente incapazes também estariam beneficiadas por esse dispositivo. Hoje, as que não sejam consideradas incapazes, participarão do ato aceitando o bem que lhes é atribuído. As que não possuam poder de manifestação, antes 195 estariam beneficiadas por aquela norma, mas hoje, contudo, dependerão de procedimento judicial para obtenção de alvará para aceitar o simples ato de doação pura, na forma do art. 1.748, burocratizando o procedimento.81 Apesar desses caminhos sinuosos deixados como rastros pela elaboração do Estatuto, que ainda podem ser objeto de adaptação, prefere-se acreditar que, de uma forma geral, o diploma legal, seguindo os trilhos dos direitos humanos, passou a consolidar um papel de concretização desses direitos em um meio que até então eles não eram valorizados. Passou a acreditar no poder do amor e da capacidade de adequação dessas pessoas. Ou mais, passou a acreditar que as pessoas que se encontram fora desse meio podem igualmente amar e se adequar aos novos membros que agora farão parte do seu dia-a-dia de maneira mais democrática e ativa. Segundo o Ministro Edson Fachin (2015), ainda no julgamento da ADI nº 5357: É somente com o convívio com a diferença e com o seu necessário acolhimento que pode haver a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, em que o bem de todos seja promovido sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (Art. 3º, I e IV, CRFB). Esses instrumentos normativos carregam grande caráter social e inclusivo, em uma tentativa de concretizar ou ao menos possibilitar o exercício do status de pessoa, na plenitude da dignidade humana, àqueles que viveram por tantos anos na marginalidade do preconceito legislativo e exclusivo de uma sociedade ainda não adaptada à ideia de aceitação de igualdade material do que lhes difere. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em virtude da pesquisa realizada, pode-se afirmar que a democracia e os direitos humanos compõem um leque indissolúvel de oportunidades conferidas e protegidas às pessoas de uma sociedade, seja ela caracterizada como democrática ou não. Com base na experiência mundial cravada em livros de história manchados por sangue e sequelas das guerras, pode-se perceber que a humanidade tem a capacidade de se autodestruir, e, para isso, necessita 196 de uma tutela internacional dos direitos humanos. Após a II Guerra Mundial, principalmente, é possível visualizar o surgimento e aprovação de diversas movimentos internacionais de direitos humanos, como a Declaração Universal de Direitos Humanos/do Homem, Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Logo, os direitos humanos são o coração de uma sociedade democrática, servindo como amparo para as minorias normalmente marginalizadas da discussão política e participação civil. Assim, os direitos humanos relativos às pessoas com deficiência ingressam no âmbito internacional como desdobramentos da própria dignidade da pessoa humana, como forma de consolidar os direitos dos inocentes. Nessa tentativa, as pessoas com deficiência tiveram a oportunidade de receber, no âmbito nacional, a aprovação e promulgação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, desde 2009, vindo a ser complementada pela Lei 13.146/15, o Estatuto da Pessoa com Deficiência ou Lei Brasileira de Inclusão. Alvo de críticas por juristas dada a mudança na teoria das incapacidades, desvinculando o critério de capacidade com o porte de alguma deficiência, percebe-se que a intenção dos referidos mandamentos normativos é elogiável e merece uma atenção maior quando da sua análise. Em um primeiro momento, surgiram dúvidas quanto à efetividade da consolidação dos direitos humanos das pessoas com deficiência, colocando em pauta a desproteção gerada pela lei, discussão que foi objeto da problemática da pesquisa. Como resultado, há a confirmação parcial da hipótese apresentada, de forma que apesar de existirem falhas técnicas ou consequências não previstas quando da edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência, este se demonstrou fundamental para o direito de vez e voz atribuídos aos portadores de deficiência, dando-lhes maior liberdade de escolha nas questões existenciais da própria vida, restando como exceção a possibilidade de interdição de direitos até então tomados como regra no ordenamento jurídico vigente. 197 A proteção estatal desses indivíduos, que sempre partiu de um cunho minimalista e preconceituoso, com pilares no cristianismo e revolta familiar, cede espaço ao cunho positivo apresentado pela referida lei e tratado internacional, passando-se à necessidade de aplicação de políticas públicas eficientes para a concretização dos elementos de inclusão previstos no Estatuto. As pessoas temem o que difere delas. Temem os direitos que os outros possuirão. Teme as consequências das liberdades individuais alheias face às suas. A Constituição surge, assim, por meio do Tratado Internacional que é parte integrante das suas normas agora, obrigando a inclusão e a aceitação das pessoas com deficiência na sociedade, não mais como incapazes, mas como sujeitos de direito capazes de interagir e decidir sobre o amor e a vida. Os inocentes, sempre calados, tiveram o direito de voz, e agora possuem o direito, finalmente, de ser e se sentir humanos. 6 REFERÊNCIAS ASSIS NETO, Sebastião de. JESUS, Marcelo de. MELO, Maria Izabel. Manual de Direito Civil. 5a.ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2016. BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad: Marcos Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de 05 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. 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Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm>. Acesso em 06 ago. 2016. ______. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.357. Relator: Min. Edson Fachin. Diário Oficial da União. Brasília, Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em 10 mar. 2016. DAHAL, Robert A. Sobre a democracia. Trad: Beatriz Sidou. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. FARIAS, Cristiano Chaves de. CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Estatuto da Pessoa com Deficiência Comentado artigo por artigo. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. ______. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB. 14a.ed. rev., ampl. E atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. FARIAS, Norma. BUCHALLA, Cassia Maria. 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Florianópolis: Conceito editorial/Milleniuum, 2008. 199 A PROBLEMÁTICA DOS REFUGIADOS DO SUDÃO DO SUL EM UMA BOA MENTIRA: O CINEMA COMO FORMA DE SENSIBILIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS82 Andy Portella Battezini83 Danielli Cristine Segalin84 Lucas Jacques da Silva85 RESUMO O presente estudo tem como objetivo analisar a problemática dos refugiados do Sudão do Sul por meio do filme Uma Boa Mentira. Para tanto, busca-se (i) evidenciar o papel sensibilizador e humanitário do cinema, (ii) contrastar o contexto histórico que declinou a guerra no Sudão do Sul e (iii) retratar a situação envolvendo a migração e a violação dos direitos humanos com base na narrativa mecânica Uma boa Mentira. Dentro deste cenário, a escolha do tema justifica-se em razão da necessidade de um novo olhar para as situações concretas com as quais o Direito deve lidar. Uma dessas situações é o refúgio. Para realização deste ensaio trabalhar-se-á com o método dedutivo, e, como instrumento procedimental a investigação bibliográfica de textos doutrinários, meios eletrônicos e coleções particulares. Palavras-chave: Direitos Humanos; Cinema; Refugiados; Guerra Civil; Dignidade. 1 INTRODUÇÃO O artigo tem por objeto a categoria jurídica e política dos refugiados a nível de Direito Internacional, especificamente os refugiados do Sudão do Sul. Considerando a importância atual do tema dos refugiados, o artigo objetiva analisar os refugiados civis do Sudão do Sul, apresentando a temática de pesquisa por meio do filme Uma boa mentira, isto é, a partir da relação entre o Direito e o Cinema. 200 Parte-se do princípio que o Cinema, enquanto Arte, consegue alcançar o ser humano e humanizá-lo, apresentando-se como uma interesecção acadêmica e humanizadora com o Direito. Justifica-se a escolha do tema em razão da necessidade de um novo olhar para as situações concretas com as quais o Direito deve lidar. Uma dessas situações é o refúgio. Além das migrações voluntárias de pessoas que buscam acesso aos bens materiais e imateriais que perfazem uma vida digna, são aproximadamente 52 milhões de pessoas refugiadas por motivos de perseguição ou guerras civis. São pessoas que tiveram que abandonar seus lares, cidades e, muitas vezes, as bordas territoriais de seus Estados-nação para procurar dignidade. Os refugiados, deslocados internos e externos, implicam em uma responsabilidade do Direito e do ser humano. Uma das formas de se alcançar essa responsabilidade é pela análise das situações concretas de violação de Direitos Humanos. Este artigo busca analisar a situação concreta dos refugiados do Sudão do Sul, tomando como ponto de partida o Cinema. Nesse sentido, utiliza-se o filme Uma boa mentira, que narra a guerra civil no Sudão, em 1983, dividindo o país entre norte e sul. A guerra, motivada por recursos e por religião, destruiu diversas aldeias, por meio do governo e de milicias. Ela durou mais de 21 anos e deixou aproximadamente dois milhões de civis mortos no sul e mais de quatro milhões de refugiados e deslocados internos. O filme Uma Boa Mentira (2004) escrito por Margaret Nagle e dirigido por Philippe Falardeau, retrata a história de crianças do Sudão do Sul que são obrigadas a fugir das aldeias aonde moravam após perderem todos seus familiares. Elas se deslocam mais de 1000km até chegar a um campo de refugiados na Quênia. Durante esse trajeto, passam por inúmeras dificuldades, como a fome, a sede e as doenças. O filme também retrata a ida deles, 13 anos depois, para os Estados Unidos, em busca de emprego e de condições de vida melhor. Diante disso, o filme Uma Boa Mentira é o ponto de partida para a análise concreta das situações de refúgio, traçando uma investigação do direito com o cinema, trazendo pontos do mundo jurídico para o mundo artistico. 201 Por meio do método dedutivo, em primeiro lugar, será investigada a importância do cinema para a sensibilização do humano, bem como para a compreensão dos direitos humanos. Sequencialmente, será analisada a situação específica retratada pelo filme objeto deste artigo, abordando a problemática dos refugiados do Sudão do Sul. Finalmente, será analisada a problemática dos refugiados no mundo contemporâneo. 2 CINEMA E SENSIBILIZAÇÃO DO DIREITO Os vários modos de comunicação e expressão alcançados com o desenvolvimento das mídias tecnológicas proporcionaram uma nova dimensão não apenas no campo artístico e linguístico, mas, também, nas reais condições de sensibilizar os seres humanos. E o cinema, visto como a reprodução da arte através de sons, imagens, técnicas ficcionistas demonstra-se como importante aliado para a reflexão de assuntos jurídicos, principalmente se avaliado a partir de um viés humanístico, considerando que a própria história do cinema representa em seu ambiente a emotividade (SOUZA; NASCIMENTO, 2011). Historicamente, a imagem em movimento, definida como o cinema, foi desenvolvida pelos irmãos Auguste e Louis Lumière em uma apresentação pública no Salão Grand Café para uma plateia de aproximadamente trinta pessoas na cidade de Paris, na França. Todavia, apesar do cinematógrafo ter sido criado por Léon Bouly em 1892, pode-se dizer que foram os irmãos Lumière, dois anos mais tarde, em 1895, que elevaram a câmera para indústria de entretenimento (MODRO, 2009). Curiosamente, entre os filmes exibidos naquela ocasião pelos irmãos Lumière, destaca-se para a metragem “A chegada do trem à estação de Lyon”, que provocou uma reação inesperada no público, pois diante da novidade apresentada, muitos espectadores acreditaram que a imagem transmitida do trem estava realmente partindo para suas direções, fazendo com que a multidão se afasta de maneira assombrosa, já que estavam crentes que poderiam ser atropelados. A sequência de fotografias em movimento foi capaz de despertar o inimaginável nos telespectadores (ALMEIDA, 2009). 202 Numa visão disciplinar, o Direito e a arte do cinema correlacionamse, pois, ambos fenômenos são dinâmicos, e assim como o Direito, o cinema também busca alcançar determinados fins com o intuito de transmitir no agente uma mudança comportamental, e assim encontrar uma resposta para determinados fenômenos no campo jurídico-social. Isso além de repensar a forma de fazer Direito, também possui consequências na esfera de aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, conforme elucida Souza e Nascimento (2011). A justifica sustenta-se acerca da condição e humana e sua perplexidade, que muitas das vezes só pode ser levada ao conhecimento popular, por intermédio de narrativas audiovisuais. Ainda, em sentido semelhante, Lacerda (2007) preconiza que o” uso de cinema no ensino jurídico pode apresentar diferentes finalidades: promover a sensibilização, perceber o papel social da profissão, transmitir e fixar informações, capacitar a expressividade da argumentação, pensar e refletir”. Nesse sentido, denota-se que o cinema é um modo eficaz para sensibilizar o ser humano e próprio direito formal. Evidentemente, nem sempre as narrativas mecânicas irão proporcionar ensinamentos ou reflexões acerca das circunstâncias e exigências dos integrantes de uma comunidade, assim como prescreve o discurso jurídico, mas, existem vários caminhos que podem levar o cinema ao ideal previsto por Kant, ou seja, a necessidade de colocar-se no lugar do outro e ser coerente com si próprio, ou ainda, segundo de Nancy Pesky e Beverly West: Como bem sabem aqueles que buscam a verdade e as aspirações da alma, os filmes, mais do que uma forma de entretenimento, são importantes instrumentos que podem nos inspirar a crescer, nos motivar na busca de um sentido maior para a vida diária e melhorar nosso bem-estar espiritual – e tudo através do uso criativo do controle remoto (PESKY e WEST, 2005, p. 9). Por esse viés é necessário observar que a combinação entre ver o Direito como cinema não está apenas restrita a atuação do profissional como operador de Direito limitando-se a filmes que abordam o ambiente das tribunas, a investigação criminal ou a atuação do advogado perante a ordem a pública. A posição do cinema enquanto ferramenta capaz de sensibilizar o Direito e as emoções cotidianas 203 deve decorrer sob a perspectiva do indivíduo em colocar-se no lugar do outro, identificando-se muitas das vezes com o personagem ou reprovando a sua conduta na condição de um juízo ético-moral transmitido através dos sentidos, ou seja, da percepção do olhar com uma dose de emoção na alma. Para tanto, é importante conceber que a ligação do Direito com o cinema em sala de aula não está apenas condicionada ao espectro das emoções e sensações. Pode-se reconhecer o cinema no processo artístico e pedagógico, no âmago do intelecto para a formação de profissionais pensantes capazes de interpretar de acordo com suas experiências históricas, sociais ou culturais, fruto de uma realidade já vivida (ROESLER, 2005). Esse processo entre conhecer e criar é uma forma de conhecimento, muitas vezes não reparada pelo espectador (ORTIGOZA LOPES, 2012). Tanto que por esse referencial a condição linguística irá se manifestar mediante a expressão oral e escrita, relacionada a percepção visual, sonora e sinestésica, a qual irá dimensionar o conhecimento por meio do movimento. Tais habilidades tem como propósito aproximar da esfera da comunicação, da arte, do lúdico e da criatividade, conforme ensina de Roesler (2005). No ambiente jurídico, Lacerda (2007) elenca as principais finalidades que devem auxiliar na estratégia pedagógica a fim de alcançar os objetivos almejados no processo de formação utilizando-se do cinema em sala de aula, quais sejam: sensibilizar os alunos para uma atitude diante da realidade, ajudar os alunos a perceber qual o papel social da profissão que estão começando a aprender, transmitir, compreender e fixar uma certa dose de informação básica sobre temas jurídicos, exercitar a capacidade de expressão, poder de síntese e habilidade de argumentação, pensar, refletir. Na proposta do autor, busca-se desenvolver uma atitude intelectual e adequada as exigências atuais, sob o fundamento que o pensar e o agir tradicional perdeu a sua eficácia no aprendizado teórico. Este poder de expressar a linguagem e o comportamento humano reporta-se na potencialidade em conceber o Direito enquanto sistema de normas e condutas composto para regular as relações sociais,pois de acordo com Bourdieu (1989)“O direito tem um poder simbólico e um 204 poder de construção o de realidades”, e, ainda, nas palavras de Almeida: Para tanto, a ligação do cinema com o direito deve passar necessariamente pelo conhecimento da história do cinema, suas distintas fases de desenvolvimento e os principais movimentos ou fases que contribuíram para a construção de sua linguagem de modo a propiciar o desenvolvimento de uma visão crítica das obras cinematográficas e uma reflexão sobre as questões jurídicas que provocam. Para o jurista, a articulação da linguagem cinematográfica com a linguagem e com as práticas jurídicas deverá conferir-lhes condições para atuação na produção de decisões, cada vez mais inseridas na sua realidade histórica e social(ALMEIDA, 2009). A dimensão do cinema pelo saber jurídico palpado na emoção e na arte é um indicador dos movimentos da cultura popular. Isso importa reconhecer que sua análise não deve ser compreendida apenas pelo ideal estético, pois o cinema é muito mais do que a arte através da reprodução e arranjo dos son e imagens, como preconiza Turner(1993), mas também uma prática social presente nas mais diversas esferas do cotidiano real ou imaginário. Nesse contexto, verifica-se que o cinema pode servir ao estudo do Direito, e inclusive contribuir para uma abordagem linguística, artística e formadora de opinião para assuntos que envolvam questões jurídica pertinentes a realidade. O cinema pode e deve ser um concebido como um poderoso instrumento, que em conjunto com o Direito é capaz de ampliar o olhar humano, para que perceba, além das normas, a necessidade em repensar e solucionar os problemas que assolam o cotidiano. Assim, a partir da assimilação entre Direito e cinema objetiva-se ilustrar o filme Uma Boa Mentira (2004) escrito por Margaret Nagle e dirigido por Philippe Falardeau a fim de retratar que o cinema pode ser um importante instrumento pedagógico na tentativa de provocar uma reação crítica e sensibilizadora nos espectadores, como éa problemática dos refugiados em decorrência de guerras civis. 3 A HISTÓRIA E O CINEMA: A PROBLEMÁTICA DAS GUERRAS CIVIS SUDANESAS E O CONSEQUENTE FLUXO MIGRATÓRIO DE REFUGIADOS 205 Compreender a situação moderna do mais recente país na história mundial86 não se resume à simples análise dos fatos recentes e do violento contexto que constantemente assola sua população. O processo histórico perpassa pela ascensão, controle, derrocada e trocas de poder no controle de tal território, sob o jugo de potências diversas durante os séculos, imbricadas em conflitos étnicos, sociais, econômicos e religiosos, que ainda hoje culminam na imigração e deslocamento de povos em fuga da morte. Moellwald (2015) descreve o processo de configuração do Sudão do Sul num estado independente como longo e complexo, que não pode ser avaliado senão observando a própria historicidade do Sudão em sua totalidade e a posterior fragmentação. Os povos que formaram a maioria da população sul-sudanesa, maciçamente composta de africanos, de tribos denominadas Dinka, Nuern e Shilluk (nomenclaturas ainda mantidas), apresentam registros históricos do século XIV de ocupação das margens do Rio Nilo Branco, onde desenvolviam atividades pastoris e agrícolas sazonais (BREIDLID, 2014). Ao sul na porção “[...] chamada de Equatoria, supõe-se também que diversos povos já ali habitavam nos séculos XIV e XV, dentre eles os avukaya, azande, baka, moru, mundu e abare” (MOELLWALD, 2015) Atribui o autor que o contato destes povos nilóticos com o mundo afro-islâmico, ao norte, dá-se com a consolidação do poder do Império Turco-otomano na região do Egito, a partir de 1820, e com a superação da região alagadiça do Nilo Branco, chamada Sudd, que até então mantinha tal região relativamente isolada. Paulatinamente se estabelece uma relação de colonialismo, precedente ao imperialismo europeu, baseada no comércio escravagista, que passa a ser enfrentada, sem sucesso, pelos povos sulistas na década de 1830 (BREIDLID, 2014). Ao fim do século XIX tensões econômicas, políticas, além da expansão imperialista europeia conduzem à influência hegemônica inglesa na região. O Sudão passa a ser administrado por um condomínio anglo-egípcio, com sede em Cartum. Fronteiras são firmadas através de tratados diversos com belgas, franceses e etíopes. (MOELLWALD, 2015). 206 O condomínio empreende tentativas de controlar a porção sul da colônia, todavia passa a enfrentar forte oposição das populações há tempos arraigadas na localidade, com aspectos sociais e políticos diversos do norte. Tal resistência perduraria até 1930, quando se estabelece uma ordenança meridional de distrito fechado, “na prática dividindo o Sudão em duas regiões administrativas separadas” (MOELLWALD, 2015). Os sulistas passam sem maiores envolvimentos nos períodos das grandes guerras mundiais, haja vista o modelo de administração fechada, ao passo que os norte-sudaneses passam a exigir autodeterminação em relação ao Império Britânico, entre as décadas de 40 e 50 (MOELLWALD, 2015). Em 1947, é realizada em Juba, maior centro urbano do sul, uma reunião entre ingleses, norte e sul-sudaneses, no fito de discussão do processo de independência do Sudão. Contudo, os representantes do sul não são considerados, consoante se destaca dos escritos de Marwood, inglês, governador do estado da Equatoria no período: A política do governo sudanês em atenção ao Sudão do Sul deve estar de acordo com o fato de que os sulistas são distintamente africanos e negroides [...]” e seu desenvolvimento econômico-social somente poderia dar-se “[...] eventualmente unido ao Sudão do Norte, à África Oriental, ou em parte a ambos [...]. (MARWOOD, 1947, p. 2, tradução nossa). Após uma série de tratativas, se inicia o processo de independência do Sudão. De fato, foi em 1956 que o Sudão alcança sua emancipação, trazendo na completude de seu território a porção sul, sendo então o maior país africano em extensão territorial. Segundo Harir surge como uma representação do “microcosmo da África” que fica entre as fronteiras de diferentes mundos culturais – África árabe/ África africana, África muçulmana/ África cristã e África anglofônica /África francofônica” (HARIR, 1994, tradução nossa). Menciona, ainda, o autor supra que tal ambiente multifacetado pôs o país desde o momento de sua criação numa posição complicada, cuja elite árabe dominante do norte desejava reforçar sua identificação árabe-muçulmana, enquanto a elite sulista tencionava ser africana e não arabizada. Esta dicotomia culminou numa guerra civil já no primeiro ano de independência. Por meio de negociações realizadas 207 em Addis Abeba, capital da Etiópia, se encerrou em 1972 com o saldo de um milhão de mortos e desabrigados (HARIR, 1994). O conflito foi marcado pela presença de milícias, com atenção à formação do movimento guerrilheiro Anya-nya87, em 1963, atuante em conflitos, mormente na zona rural. (BREIDLID, 2014). Nos termos do acordo de paz ao sul foi atribuída autonomia, a língua inglesa como idioma oficial e a cidade de Juba como a capital da região. As políticas econômicas, monetárias, educacionais, sociais, de defesa e relações exteriores permaneceram aos auspícios de Cartum. Duas questões restaram controversas: a primeira quanto ao território fronteiriço de Abyei88 que seria destinado por meio de um plebiscito, até hoje não realizado, e a segunda foi incorporação do Anya-nya ao exército sudanês, o que foi em parte rejeitado pelos seus próprios integrantes e pelos partidos políticos do norte (MOELLWALD, 2015). A década seguinte ao acordo de paz foi marcada por relativa estabilidade, entretanto, nos dizeres de Holt e Daly apud MOELLWALD: A história do sul autônomo seria marcada por tensões étnico-políticas, corrupção desenfreada e parco investimento em obras públicas na região. A má administração, a ineficiência de uma crescente burocracia local e as consequências da alta corrupção podem ser constatadas ao considerarmos que, entre 1972 e 1977, apenas 20 por cento dos recursos alocados ao sul foram utilizados (HOLT e DALY apud MOELL WALD, 2015, p. 76). Ao norte, o presidente sudanês Nimeiri labutava em conciliar distintos interesses dos diferentes grupos componentes do país, sufocando tentativas de golpes e pendendo aos poucos à política de administração de caráter religioso muçulmano. Até quando em 1983, num “movimento político insensível, justificado apenas por conveniência [própria]” implantou a todo o país a lei islâmica Sharia, acirrando o conflito político (HARIR, 1994, tradução nossa). O descontentamento dos sul-sudaneses aumentava apoiado na discordância em fatores de exploração econômica do petróleo89 e da construção de um canal de drenagem do Sudd. Tal quadro encerra na formação do Movimento de Liberação do Povo Sudanês – MLPS90 e seu braço armado Exército de Liberação do Povo Sudanês – ELPS91, 208 liderados pelo dinka John Garang de Mabior. Seus objetivos específicos de luta consistiam na autodeterminação do Sudão do Sul (HARIR, 1994). De acordo com Badmus (2007) o sul rebelado, a crise socioeconômica atinente à guerra resulta na deposição de Niemeri. Um conselho militar transicional assume o governo, entre 1985 e 1986 e se encerra com a eleição de um governo civil. (BADMUS, 2007). Infere o autor que governo democrático durou apenas três anos. Infrutíferas negociações com ELPS, economia caótica e excessivos gastos bélicos, levaram a um novo golpe militar em 1989, capitaneado pelo General Omar Al-Bashir92. Durante o novo período de guerra no sul o governo fez ressurgir e armou milícias tribais, usando conflitos perenes entre grupos de pastores, armando grupos que se envolveram em guerras étnicas e roubo de gado. (HARIR, 1994). O resultado negativo direto afetou sobremaneira os civis em suas atividades rurais e agropastoris. Esbulho de posses, tomada de reféns, alastramento de doenças entre a população e rebanhos, surgiram como consequência da ruptura de serviços básicos. Insegurança alimentar, aliados aos excessos por partes dos envolvidos levaram ao deslocamento e migração da população para as cidades, agravando o quadro, e por derradeiro, eliminando as rotas de comércio no sul. (HARIR, 1994) De outro flanco Gerbase e Visentini (2014) ressaltam que o ELPS desde sua constituição apresenta rixas tribais internas. No decorrer do conflito aplicou sobre a população métodos coercitivos de guerrilha, no fito de forçar a união política e dominação territorial. O próprio movimento acabou por rachar em meados da década de 90, havendo conflito entre as facções das tribos Nuern e Dinka. No ínterim deste conflito civil a facção Nuern, encabeçada por Riek Machar, alinhou-se ao governo do norte, até o ano de 2002 quando Jhon Garang e o líder Nuern, celebraram um acordo de paz e reintegraram o ELPS (GERBASE; VISENTINI, 2014). O resultado do conflito civis foram: 209 Mortes e deslocamentos forçados foram causados em conflitos tanto entre nortistas e sulinos quanto entre sulinos, e também em várias das muitas regiões do Sudão, por motivos diferentes. E para que esse tipo peculiar de necropolítica existisse - tanto a do Estado opressor quanto a de pequenos grupos militarizados -, estiveram sempre ativos os complexos militares mundo afora. (MOELLWALD, 2015, p. 87). É no decorrer da segunda guerra fratricida sudanesa, no início da década de ١٩٩٠93 que se desdobra a história dos refugiados sudaneses abordados no filme Uma Boa Mentira. Trata-se de uma das inúmeras histórias de civis que por tortuosos caminhos, deixaram seus lares para salvarem suas vidas e buscarem novas oportunidades. Dados da ONU94 indicam que durante o conflito mais dois milhões de vidas foram perdidas, quatro milhões foram deslocados de duas terras e mais de seiscentos mil refugiaram-se em outros países. Os anos de 2000 chegam e a comunidade internacional, especialmente dos Estados Unidos95, exercem pressões diplomáticas recorrentes, que resultam num acordo de paz celebrado em 2005, entre ELPS e o governo do Sudão. O sul recobra a autonomia, a lei islâmica é limitada à comunidade respectiva, a divisão de rendimentos do petróleo e um referendo para o ano de 2011 sobre uma possível secessão são estabelecidos. (BADMUS, 2007). Nos termos do acordo “De modo curioso [...] Omar al-Bashir tornou-se o presidente enquanto a posição de primeiro vice-presidente foi concedida ao M/ELPS” (BADMUS, 2007, p. 319). A morte repentina de Jhon Garang numa queda de helicóptero96 esteve prestes a reconduzir o país à guerra “mas, felizmente, isso foi evitado graças à indicação de Salva Kiir como líder do M/ELPS” (BADMUS, 2007, p. 319). Em março de 2005, com a edição da resolução 1590 do o Conselho de Segurança, foi implementada de fato a Missão de Paz da ONU no Sudão97, a fim de prestar suporte na implementação do acordo compreensivo de paz entre sul e norte, facilitar a prestação de ajuda humanitária, serviços de desminagem, proteção e promoção de direitos humanos. Em janeiro de 2011 a população sul-sudanesa exerceu seu direito de autodeterminação e através de um referendo votou em maioria esmagadora pela separação do país, seis anos após o acordo de paz 210 celebrado. Formalmente alcançou a independência em 9 de julho de 2011, “embarcando num processo de construção de um novo Estado” (KOPPELMAN, 2012, p. 7). Para Oliveira e Silva, apesar de haver alcançado o resultado desejado por sua população, a longa história beligerante impôs ao novo Estado desafios hercúleos, tocantes à: [...]pobreza extrema e sérias deficiências de infraestrutura, até a efetivação do controle do território pelo novo governo, [...] demarcação das fronteiras. [...] sobretudo, ao fato de que Sul reivindica territórios que não estavam incluídos nos acordos de paz – o que sugere o envolvimento ainda mais direto do novo país nas disputas geopolíticas por petróleo. (OLIVEIRA; SILVA, 2011, p. 25). Estatísticas do ano de 2010 apontam que a taxa de mortalidade infantil de crianças abaixo de cinco anos é 108 mortes a cada 1000 nascimentos. No tocante às crianças de até 1 ano de idade é de 32 a grupo de cada 1000. Em 99 por cento das casas combustíveis sólidos (carvão, madeira, esterco, etc.) são utilizados para cozinhar. Apenas 2 por cento das casas possuem água encanada nos estados. Em aspectos educacionais apenas 13 por cento das mulheres sul-sudanesas são alfabetizadas. (SSHHS, 2010). Economicamente o Sudão meridional possui atividades potencialmente complementares ao norte. Entretanto a lacuna de infraestrutura, economia agrícola de produtos tropicais, inexistência de indústria, salvo a petrolífera, de saída para o mar, infere que a independência política não se espraiará ao campo econômico, restando o país ainda apoiado no norte. (OLIVEIRA E SILVA, 2011). Gerbase e Visentini apontam que clivagem do país em 2011 resultou num arranjo político em que o dinka Salva Kiir foi apontado como presidente e o Nuern Riek Machar como vice-presidente. Um balanço de poder entre as duas maiores tribos, que foi “fundamental para a estabilidade política do país [...]” até o ano de 2013. (GERBASE; VISENTINI, 2014). Sustentam, contudo, que baseado na gradual aproximação de eleições no ano de 2015 e dissonâncias acerca do petróleo, o presidente dissolveu tal aliança e em julho de 2013 depôs Machar, acusando-o de uma tentativa de golpe. Por seu turno o ex-vicepresidente reorganizou suas milícias, fundou o ELPS em oposição98, e 211 atacou os campos petrolíferos no estado do Alto Nilo. A escalada de violência resultou num conflito étnico, que se alastrou pelo país, polarizando, principalmente, as etnias dinka e nuern. Em janeiro de 2014 Missão de Paz das Nações Unidas para o Sudão do Sul99 publicou relatório afirmando que a escalada da violência após a disputa entre os líderes superou as 10.000 mortes. Entre 2014 e 2015 declarações de cessar fogo e tentativas de acordo são incentivadas, enquanto os combates persistiam pelo país. No mês de agosto de 2015 sob ameaças de sanções da ONU, o presidente Kiir assinou um acordo de paz retornando Machar às funções de vicepresidente. Em abril de 2016 Machar retornou a Juba, todavia, após desentendimento, em julho do corrente ano foi novamente demovido pelo presidente100. Em relatório divulgado em março deste ano o Escritório de Direitos Humanos do Alto Comissariado das Nações Unidas concluiu que: Desde de dezembro de 2013, brutais violações de direitos humanos, abusos, e sérias violações de leis humanitárias internacionais foram perpetradas no Sudão do Sul. Isto inclui mortes e ataques contra civis, estupros e outras formas de violência sexual, prisões e detenções arbitrárias, sequestros e violação de direitos infantis, incluindo o recrutamento e emprego de crianças nos confrontos. Por meio do conflito a violência sexual e de gênero têm se alastrado. Todas as partes do conflito são responsáveis [...]. (2016, p. 13, tradução nossa). A conjuntura atual mostra-se bastante desfavorável, cerca de 1,61 milhões de pessoas foram deslocadas internamente101, e encontram-se vivendo em campos da ONU de proteção de civis, ou nos seus arredores. Outros 855.166102 estão refugiados em campo em países vizinhos: Etiópia, Uganda, Quênia e no Sudão. 4 O PROBLEMA DOS REFUGIADOS O filme Uma Boa Mentira retrata a história de crianças que fogem da Guerra Civil sudanesa. O filme dá visibilidade as inúmeras dificuldades que enfrentam os refugiados, desde os problemas que enfrentam dentro do próprio país, a dificuldade para conseguirem embarcar para outro país em busca de condições dignas de vida, até o 212 preconceito e rejeição que enfrentam em diversos países para qual se refugiam. Uma Boa mentira é um filme escrito por Margaret Nagle e dirigido por Philippe Falardeau, foi lançado em ٣ de outubro de ٢٠١٤. Estrelado por Arnold Oceng, Ger Duany, Emmanuel Jal, Kuoth Wiel e Reese Witherspoon. O filme conta a história de quatro jovens que fogem do Sudão do Sul, e juntos, percorrem uma imensa jornada de 917km até o Sul do Quênia enfrentando inúmeras dificuldades e necessidades, caminhando até um campo de refugiados, ali, permanecem por mais de 10 anos, até conseguirem se refugiar nos Estados Unidos. Ao chegarem lá, Abital é separada dos seus irmãos, e mandada para Boston, enquanto Mamere, Jeremiah e Paul são mandados para o Kansas, onde são recebidos pela assistente social Carrie, que tem a missão de ajudar os garotos a encontrar um emprego e se adaptarem a nova vida. O choque de culturas fica muito visível no filme, exemplo com a inocência dos irmãos ao perguntarem a Carrie o que é o Mc Donald’s, o que para qualquer pessoa que vive lá é algo do cotidiano, normal, para eles é surpreendente. Também estranham o fato dela falar ao celular, e se perguntam se ela está falando sozinha, não sabem atender o telefone quando ela liga para eles. Tudo para eles é novo, diferente e desperta a curiosidade dos mesmos. Carrie leva os 3 irmãos para buscar emprego, ao fazer uma entrevista em um restaurante, não são aceitos por serem considerados “estranhos” e sem experiência. Mamere consegue entrar na faculdade de medicina, e se destaca entre os colegas, pois é muito dedicado. Mamere e Jeremiah conseguem emprego num supermercado, lá eles são ensinados a colocar as comidas que sobram e comidas vencidas no lixo, e eles se indagam, se ninguém precisaria dessa comida, e jogam a comida no lixo com muita relutância. Num certo episódio, Jeremiah entrega comida para uma moradora de rua, que estava procurando comida na lixeira, seu chefe o questiona sobre o que ele estaria fazendo, condenando a atitude do rapaz, então Jeremiah lhe diz que é pecado não ajudar quem precisa, pois ele sabe o quanto é difícil passar por necessidades, e sabe que existem pessoas que ficariam muito 213 gratas por receber aquela comida. E se demite, entregando seu uniforme ao gerente do mercado, porém, Carrie o orienta a voltar para o emprego, pois ele deve obedecer ao “chefe” e porque ele precisa de dinheiro para se sustentar. Paul começa a trabalhar em uma mecânica, lá seus colegas de trabalho lhe influenciam a usar maconha, o que acaba acontecendo diversas vezes, e acaba mudando seu comportamento, seus irmãos começam a perceber que ele está mais agressivo e menos motivado com a vida na América, e até briga fisicamente com Mamere. Carrie e Jeremiah fazem os dois se perdoarem e voltarem a ser “irmãos”. Então Carrie vai em busca de trazer Abidal para se juntar aos irmãos, que tanto sentem a falta dela. Busca o coordenador dos refugiados, que afirma que será difícil de traze-la, pois, o seu país de origem (Sudão) está patrocinando ações terroristas. Carrie afirma que ela é apenas uma criança refugiada de uma guerra civil, e se candidata a ser a família a receber Abidal no Kansas, e no durante Natal, ela consegue trazer Abital para reencontrar seus irmãos. Os quatro ficam conhecidos como os “Garotos Perdidos” do Sudão. Abidal relata a Mamere que recebeu uma carta vinda da Quênia e se sente confusa, pois a carta pode ser de Theo, irmão que eles acreditavam estar mortos. O coordenador dos refúgios orienta Mamere a ir para Quênia, pedir asilo e nas embaixadas contar sua história e do irmão, e procurar um país que esteja em “boas condições” com os Estados Unidos para conceder um visto para Theo. Então, nas embaixadas afirmam não haver ninguém com esse nome ali. Mamere vai até o campo de refugiados, aonde encontra Theo, mas não consegue os documentos para levá-lo com ele, então, orienta Theo a se passar por ele para ir para os Estados Unidos, Theo o questiona sobre isso ser uma mentira, e Mamere o diz que é uma boa mentira. Mamere vai para Kakuna trabalhar no hospital, enquanto Theo vai de encontro aos irmãos em Kansas. É importante ressaltar que Arnold Oceng, Ger Duany, Emmanuel Jal e Kuoth Wiel, os atores principais do filme, que é baseado em fatos reais, são de famílias de refugiados Sudaneses. O que torna o filme ainda mais envolvente. 214 Atualmente, são mais de 60 milhões de refugiados ao redor do mundo, o número nunca foi tão alto. Refugiado é definido segundo a ACNUR (agência da ONU para refugiados) como: [...] aquele que, por motivos de fundado temor de perseguição, por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social específico ou opiniões políticas, se encontre fora do seu país de nacionalidade, e não possa ou, em virtude daquele temor, não queira se valer da proteção daquele país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do seu país de residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não possa ou, devido ao referido temor, não queira a ele retornar. (ACNUR, 2013) É o caso dos refugiados sudaneses, que, segundo dados recentes da ONU de ٢٧ de julho de ٢٠١٦, chega a ٤ mil o número de refugiados por dia que saem do Sudão devido aos recentes combates que vem ocorrendo desde o final de ٢٠١٣103 Pessoas que são obrigadas a se submeterem as mais diversas maneiras para sair do país de origem, enfrentando longas jornadas, em situações geralmente precárias, em busca de um recomeço para uma vida melhor, em busca bens materiais e imateriais, para obter uma condição mínima para viver dignamente. E, provavelmente, se não vivessem em situações de vulnerabilidade nos seus países, não sairiam dali por vontade própria. Os direitos humanos perseguem a dignidade humana como um fim, consistindo na obtenção de um acesso justo e igualitários a todos os bens, que é obtido no processo de humanização do ser humano (FLORES, 2009)104. A internacionalização dos Direitos Humanos, se deu a partir do momento em que os mesmos passaram a ser garantidos pela ordem internacional, em 10 de dezembro de 1948, na Assembleia Geral das Nações Unidas, com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, fazendo que, os Estados assumissem o compromisso de cumpri-los. Os Estados que se tornam parte do tratado, possuem o dever de respeitar, proteger e cumprir os Direitos Humanos. Possui como objetivo que todos os países possam garantir direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais básicos. Para garantir que os direitos fossem alcançáveis aos refugiados em âmbito internacional foi criado o United Nations High Comissioner for 215 Refuges (UNHCR), no Brasil ACNUR, para garantir proteção e auxílio aos refugiados. As principais características e objetivos da ACNUR são: a. Proteger os refugiados através de convênios internacionais; b. Promover medidas que melhorem a situação dos refugiados e tentar reduzir o número dos mesmos; c. Fomentar o seu acolhimento em novas comunidades nacionais; d. Promover a aceitação dos mesmos no território que se encontra refugiado; e. Conhecer a situação dos refugiados, obtendo informações sobre o número dos mesmos, e também das leis que lhe digam respeito; f. Manter contato com os órgãos interessados (governos, organizações governamentais e não-governamentais) (ACNUR, 2013) O primeiro direito do refugiado é a não penalização do refugiado por sua entrada e permanência ilegal em um país, também tem o direito de não ser discriminado, motivo pelo qual os Estados aplicarão as disposições da Convenção sem discriminação de raça, religião ou país de origem (artigo 3º). Por fim, o Princípio da Não Devolução (Non-Refoulement), previsto na Convenção sobre os Refugiados, é garantia que os refugiados possuem de não serem devolvidos ao seu país de origem. Artigo 33 da Convenção de Refugiados: Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou rechaçará para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das opiniões políticas. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 216 O uso expressivo promovido pela arte cinematográfica, em que pese, nas relações entre cinema e o Direito demonstra-se como um importante aliado na salvaguarda dos direitos humanitários. Utilizando-se das narrativas mecânicas é possível conceber um senso de reflexão crítico, principalmente em face dos fenômenos jurídicos-sociais que assolam o cotidiano da sociedade. Deste modo, o movimento que se quer alcançar por meio da interdisciplinaridade entre Direito e cinema não está apenas atrelado ao processo imaginário e ideológico do homem, mas sim, no campo emocional, na necessidade de colocar-se no lugar do outro e interpretar a sociedade a partir de valores e princípios éticos e morais que duramente foram conquistados no campo das relações humanas. É nesse contexto que exsurge a necessidade em estudar e avaliar a metragem Uma Boa Mentira a fim de ressaltar que o elo entre cinema e Direito tem o condão de transformar as percepções da humanidade e sensibilizar para uma atitude além da realidade, assim como é o problema dos refugiados. O filme mostra um recorte das situações precárias que os refugiados se submetem para conseguir saírem do seu país de origem, desde a dificuldade de adaptação e de aceitação que enfrentam quando conseguem se alocar em país diverso. Nesse viés, é possível observar além das telas que o enfrentamento da problemática está longe de uma solução, pois envolve a violação de direitos básicos, como a vida, a segurança, a liberdade, vivendo em situações a margem de toda guerra, miséria e demais sofrimentos. “A história do Sudão do Sul como nação independente tem profundas raízes em movimentos belicosos, do domínio dos povos por diferentes impérios, de alianças voláteis no confronto de adversários comuns, das mais diversas formas violentas de dominação e imposição de vontades. Um Estado que hoje sofre com uma identidade nacional enfraquecia, sobrepujada pelo sentimento tribal em que povos, aos nossos olhos semelhantes, compreendem-se diferentes e com necessidade imposição de sua língua, costumes, e tentativa de controle dos recursos petrolíferos. Neste turbilhão marcado por aproximados 60 anos de diferentes guerras, os massacres de civis, destruição de vilarejos, recrutamento de crianças, estupros, pobreza, fome e miséria se demonstraram constantes, alterando-se as partes das contendas, mas não as vítimas. O movimento de refugiados e deslocados internos tem sido uma constante e uma problemática de difícil 217 solução enquanto as tratativas de paz se desenrolam em ritmo lento e desinteressado. Ainda que o tema esteja em voga na atualidade, inclusive com a participação de sul sudaneses nos eventos olímpicos do Rio de Janeiro, sob a bandeira da delegação de refugiados, que haja a discussão e em termos engajamento internacional na questão, atrocidades tais quais narrados em Uma boa mentira não serão apenas histórias cinematográficas, mas o cotidiano de diversos povos presos às áreas beligerantes. 6 REFERÊNCIAS ACNUR, Manual de procedimentos e critérios para a determinação da condição de refugiado; De acordo com a convenção de 1951 e o protocolo de 1967 relativos ao estatuto dos refugiados. Disponível em: http://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2013/Manual_de_procedimentos _e_criterios_para_a_determinacao_da_condicao_de_refugiado.pdf?view=1; ALMEIDA, José Rubens Demoro. Cinema, Direito e prática jurídica – uma introdução. Revista do curso de Direito da Faculdade de Campo Limpo Paulista, v. VII, pg. 38-47, Porto Alegre: IOB, 2009. ISSN 1980-1866. 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Advance unedited version. Juba, 2016. 219 OS REFUGIADOS AMBIENTAIS E O DESAFIO NA CONSTRUÇÃO DE UMA LEGISLAÇÃO DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL105 Rodrigo Tonel106 Guilherme Hammarstrom Dobler107 Daniel Rubens Cenci108 RESUMO As mudanças climáticas estão entre as maiores ameaças aos direitos humanos de nossa geração, colocando em risco os direitos fundamentais da vida, saúde, alimentação e dignidade dos indivíduos e comunidades em todo mundo. Neste contexto, temos como principais personagens os refugiados ambientais, isto é, pessoas obrigadas a migrarem devido às alterações climáticas, diante à inospitalidade causada por tais fenômenos, impossibilitando as condições mínimas de vivência e habitação. O desafio é a construção de uma legislação de proteção internacional a estes grupos, onde a comunidade internacional se disponha a garantir os direitos humanos fundamentais e a adoção de um modelo sustentável. Palavras Chave: Refugiados; meio ambiente; direitos humanos. 1 INTRODUÇÃO A migração é uma das mais antigas estratégias para lidar com as mudanças climáticas. Através de milênios as pessoas têm migrado de lugares, temporária ou permanentemente, devido a, por exemplo, extensas secas e/ou outros fenômenos e mudanças ambientais. Atualmente, todavia, muitas pessoas estão migrando devido ao tão debatido tema do aquecimento global, onde já se tem presenciado fenômenos e/ou mudanças em várias partes do mundo - em alguns casos, catástrofes – o que tem obrigado um grande número de pessoas a saírem de seus locais, devido à inospitalidade causada pelos fenômenos climáticos o que, de fato, impossibilita ter condições mínimas de habitação e, consequentemente, a migrarem para outros locais em busca de abrigo, fixação de residência, assistência médica, 220 educação, entre outras. Assim, temos como personagens os nominados “refugiados ambientais”, expressivamente referidos no debate das mudanças climáticas. A mudança climática é um forte contribuinte para a migração. Assim, podemos conceituar a expressão “refugiados climáticos” como pessoas que já não ganham uma vida segura em suas tradicionais terras devido a fatores ambientais de âmbito incomum (MYERS; KENT, 1995). Alguns fenômenos que contribuem para a migração se manifestam como, por exemplo, desastres naturais, gradual degradação ambiental, conflitos ambientais, mudanças climáticas, destruições ambientais devido ao uso de armas tecnologicamente potentes para destruições massivas utilizadas em conflitos, projetos de desenvolvimento (construções de barragens para geração de energia elétrica), acidentes de índole industrial (indústrias nucleares), áreas destinadas à proteção ambiental, pobreza, gênero, idade, etnicidade, escassez de recursos, carência de direitos fundamentais de determinada região, entre outros critérios que possam influenciar a habilidade das pessoas no acesso de recursos e oportunidades (KOLMANNSKOG, 2008). Todavia, importante salientar que migração é um termo utilizado em um sentido geral, significando, essencialmente, “[...] todas as formas de movimento acontecendo voluntariamente ou involuntariamente, através ou dentro de fronteiras nacionais [...]”. (KOLMANNSKOG, p. 11, 2008, tradução nossa).109 É evidente, no entanto, que a história das civilizações está recheada de eventos onde a migração era prática muito tradicional e de grande utilidade para a manutenção da vida destes povos, fazendo, muitas vezes, parte de suas culturas de subsistência. Temos, sob este contexto, a presença dos pastores nômades que percorriam um intercâmbio de longas distâncias, onde muitas destas migrações eram internas e temporárias, seguindo-se os ciclos climáticos (IOM, ٢٠٠٩). Observando, deste modo, pelo viés histórico, a migração parece legítima e legal pelos costumes e tradições praticados pelas civilizações, porém, este ponto merece ser destacado porque, nos dias que correm, o controle das fronteiras tem aumentado drasticamente entre as nações nas últimas décadas, como exemplo, basta mencionar as tentativas diárias de imigrantes 221 provenientes de diversos países que desejam atravessar as fronteiras entre os Estados Unidos da América e o México (KOLMANNSKOG, 2008). Nos últimos anos, fatores de índole ambiental tem se tornado mais reconhecidos entre os muitos que podem influenciar a migração. Presentemente, existem dois posicionamentos com perspectivas opostas em relação à ligação entre as questões ambientais e seus efeitos sobre a migração. Na primeira corrente – também chamada minimalista - os defensores afirmam que os desafios tangentes à problemática ambiental, como é o caso das mudanças climáticas, não seriam fatores precípuos para influenciar, substancialmente, a migração. Por outro lado, existe uma corrente oposta- ou também maximalistas – propondo que a degradação ambiental desenvolve fenômenos que são diretamente responsáveis pela migração de pessoas em várias partes do mundo (SUHRKE, s.d.). 2 MIGRAÇÃO E DESASTRES AMBIENTAIS O termo desastre pode ser definido como [...] situação ou evento, que supera a capacidade local, exigindo um pedido a nível nacional ou internacional para assistência externa [...]; um acontecimento imprevisto e, muitas vezes, repentino, que provoca grandes danos, destruição e sofrimento humano. Embora, frequentemente, causado pela natureza, desastres também podem ser originados por ações humanas. (EM-DAT, s.d., tradução nossa)110. Deste modo, quando colocamos o termo supracitado diante das anomalias climáticas que vem acontecendo - ou que podem vir a acontecer em nosso Planeta -, os resultados poderão ser catastróficos. Devemos, portanto, ter em mente, que: [...] indicações de mudanças climáticas do futuro do planeta Terra, devem ser tratadas com maior seriedade, e com o princípio da precaução em primeiro lugar em nossas mentes. Extensas mudanças climáticas podem alterar e ameaçar as condições de vida de grande parte da humanidade. Aquelas podem induzir a migração em grande escala e levar a uma maior competição para os recursos da Terra. Tais mudanças vão resultar, particularmente, pesados encargos para os países mais vulneráveis. Poderá aumentar o risco de violentos conflitos e guerras, dentro e entre os Estados. (NOBEL PEACE PRIZE, 2007, tradução nossa)111. Pesquisas revelam que, em termos estatísticos, em nosso Planeta já existem quatro vezes mais pessoas que são deslocadas e/ou removidas por desastres naturais do que pela guerra. Então, por este raciocínio, em todo o 222 mundo existem muitas pessoas que são tragicamente afetadas por guerras, multiplicando-se isto por quatro vezes, e calculam-se as estatísticas para obtermos o resultado do número de pessoas que existem hoje no mundo removidas somente por desastres naturais, ou seja, dezenas de milhões de pessoas (CLIMATE REFUGEES ROUNDTABLE, 2012). Se, a título de exemplo, acontecesse um acidente de automóvel em uma intersecção e, estivessem pessoas severamente machucadas e estiradas no chão em função do acidente, como seres humanos teríamos o sentimento de cuidar, ajudar ou mesmo auxiliar tais pessoas, e somente após prestarmos o devido cuidado é que buscaríamos respostas no sentido de tomar conhecimento a respeito de quem causou o acidente. Nas mudanças climáticas, frequentemente, fazemos o oposto, em outras palavras, nos focamos tanto no que está causando estes fenômenos que acabamos quase nunca observando os efeitos, isto é, numa perspectiva acerca das consequências que isto causa aos seres humanos. A discussão para o público em geral e com ampla aceitação é acerca da ideia de que a humanidade propulsionada com o atual consumo de energia está contribuindo para as mudanças climáticas e, particularmente, mudanças relacionadas à temperatura do planeta. O planeta está passando por diversas mudanças, ou seja, estamos mudando as condições naturais de nosso planeta em uma velocidade surpreendente. Os geologistas estão destacando o fato de que estamos vivendo em uma nova Era geológica, e que essa nova Era geológica – também conhecida como The Age of the Anthropocene - é definida essencialmente pelos seres humanos, quer dizer, os seres humanos detêm o poder de fundamentalmente mudar o planeta, significa que: [...] anthropocene define o período mais recente do planeta Terra como sendo influenciado por seres humanos ou antrópico, baseado em evidências globais avassaladoras de onde os processos dos sistemas terrestres atmosférico, geológico, hidrológico, biosférico e outros estão agora sendo alterados por seres humanos [...]. (ELLIS, 2013, tradução nossa).112 E, baseiam-se os geologistas por elevados e exigentes padrões de pesquisa científica. Uma das conclusões evidenciadas é a de que os seres humanos são seres que dispõem de habilidades especiais. Especiais, no sentido de como pensamos e refletimos nossas vidas a partir da intelecção de que detemos determinados sentimentos que nos fazem especiais e/ou 223 mesmo diferentes dos demais seres vivos. O fato é que, diante de tais circunstâncias e tais habilidades, somos capazes de mudar o mundo. Entretanto, há que se ressaltar que existem previsões de grandes catástrofes para o planeta em um futuro bem próximo e, que, portanto, devemos tomar decisões na tentativa de revertermos este cenário, impedindo as consequências desagradáveis – caso dos refugiados climáticos, a título de ilustração - que possam irromper de nossas ações. A superpopulação, o consumo excessivo, a falta de recursos e as mudanças climáticas, isto é, todos estes elementos colidem entre si. Como fora destacado anteriormente, as pessoas sempre migraram no decurso da história, todavia, o fato que aqui quer se focar diz respeito que já não existem Estados disponíveis onde se possam asilar todos aqueles indivíduos que estão passando por dificuldades naqueles aspectos. Neste seguimento, os refugiados ambientais dão a entender que algo de errado está acontecendo em nosso planeta, significando, portanto, que muitos precisam de ajuda imediatamente. Segundo Zetter (2015), uma estrutura coerente e sistemática que discuta todas as formas de migração internacional é essencial na luta contra a disjunção entre deslocamento forçado e proteção. A disponibilidade de canais legais para a migração internacional não tem mantido o ritmo com a expansiva demanda e alcance global para este processo. Apesar de todos os esforços, inexiste uma estrutura coerente em ambos os níveis, nacional e internacional. Ainda neste tocante, complementa Zetter (2015, p. 21, tradução nossa)113, afirmando que “nem todo indivíduo removido forçosamente é um refugiado, mas todas as pessoas removidas forçosamente necessitam de alguma forma de proteção [...]”. Com isso, a estrutura normativa já não se demonstra mais eficiente para nortear todos os desafios relacionados à proteção de imigração forçada no mundo. 2.1A proliferação de políticas e práticas de proteção O direito a uma vida digna e bem-estar, esculpido no art. 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) – Universal Declaration of Human Rights-, demonstra o quão importante e digno de respeito é a satisfação de se poder ter um padrão de vida onde sejam 224 respeitados tais elementos. Todavia, para se atingir tal objetivo ou mesmo manter este estandarte de vida, é, sem sombra de dúvida, imprescindível lançar mãos de meios que, efetivamente, possibilitem a realização deste direito básico e fundamental. Em outras palavras, não há como falar em vida digna e bem-estar quando não se dispõe de um ambiente limpo e saudável que assegure tais condições. Neste sentido, é indubitavelmente essencial um ambiente que permita a concretização deste direito humano. Sob este contexto, quando levamos em conta a ligação entre este direito humano fundamental e o caso dos refugiados ambientais, levantar-se-ão muitas questões para serem discutidas apontando-se para proteção deste direito. O maior desafio resume-se, devido à falta de clara definição acerca do conteúdo e escopo de tal direito humano, o que, consequentemente, constitui um severo problema. Algumas normas de caráter internacional surgiram na tentativa de, ao menos, amainar tal problema, porém, na maioria das vezes, demonstraram-se infrutíferas, não surtindo resultados compensatórios. Segundo a introdução dos Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos: [...] os deslocados internos são pessoas, ou grupos de pessoas, forçadas ou obrigadas a fugir ou abandonar as suas casas ou seus locais de residência habituais, particularmente em consequência de, ou com vista a evitar, os efeitos dos conflitos armados, situações de violência generalizada, violações dos direitos humanos ou calamidades humanas ou naturais, e que não tenham atravessado uma fronteira internacionalmente reconhecida de um Estado. (NATIONS, 2004, p.1, grifo nosso, tradução nossa).114 Na própria introdução para a aplicação destes princípios, resta claro saber que há a incorporação dos elementos relativos ao deslocamento quando feito por motivos de calamidades e/ou desastres naturais, deixando evidenciada a tendente preocupação das Nações Unidas em legislar o assunto. No entanto, deve-se constatar que a orientação dada pelos princípios não é suficiente para oferecer ampla proteção para aqueles deslocados por desastres naturais. Assim, o principal objetivo é delinear o potencial para mais amplo desenvolvimento destes princípios, incrementando e adaptando as normas e estruturas já existentes para, totalmente, abordar as diferentes modalidades de deslocamento ambiental. 225 Tal abordagem tem a vantagem de não propor que as pessoas deslocadas por força de fatores ambientais constituam uma nova categoria de pessoas sem proteção e reconhecimento internacional. O infortúnio é que existe pouco suporte internacional que proponha o pleno desenvolvimento para uma nova categoria normativa. Todavia, a progressiva adaptação das normas e instrumentos existentes possui a vantagem adicional de permitir a expansão das competências e capacidades institucionais sem necessariamente requerer a uma nova estrutura organizacional (IOM, 2009). As pessoas deslocadas em função das mudanças climáticas e sua relação com a uma lei de proteção internacional é, no momento, obscura. Quando colocada em frente de tais circunstâncias a lei internacional pode ser exercida sob diferentes ângulos, em outras palavras, considerando-se a hipótese de uma lei internacional que regule este tipo de situação dever ser aplicada como uma nova lei internacional ou se a aplicação de tal lei internacional deve ser adotada de forma mais paulatina, isto é, sob o contexto de um desenvolvimento legislativo constante de acordo surgem os problemas é o âmago da discussão jurisprudencial. Uma abordagem sob o ponto de vista do direito ambiental apresenta limitações e desafios no que diz respeito à imigração/deslocamento induzido pelas mudanças climáticas. Em um primeiro momento, a exigência por uma responsabilidade legal é obrigação primária entre os Estados. Em segundo lugar, existe considerável dificuldade em quantificar o prejuízo causado pelas emissões de gases carbonos em todos os Estados e, do mesmo modo, identificar a causa entre as emissões e seus respectivos efeitos negativos, quando todos os Estados têm contribuído pelas emissões em algum momento. E, em terceiro lugar, permanecem dificuldades em estabelecer a responsabilidade dos países principais emitentes de gases poluentes. Neste sentido, alguns estudiosos trouxeram argumentos criativos para a discussão. Sugerem-nos que, [...] as pessoas que vivem em áreas onde existem maiores riscos de habitação devido às mudanças climáticas deveriam ter a opção de migrarem para outros países, em números exatamente proporcionais aos países anfitriões mais responsáveis pela cumulação de emissões de gases efeito estufa [...]. (McADAM; SAUL, s.d., p.14, tradução nossa).115 226 Sob este viés, por exemplo, os Estados Unidos da América deveriam receber a maior quantidade de imigrantes, pois se sabe que é um dos maiores emitentes de gases poluentes. Esta abordagem tenta fazer uma reflexão acerca da responsabilidade das imigrações devido às mudanças climáticas analogicamente frente os Estados mais responsáveis pelas emissões de gases poluentes causadores do efeito estuda. Assim, aquelas comunidades consideradas as mais vulneráveis, são as que mais sofrem com os efeitos das alterações climáticas devidamente por estarem mais expostas às emanações das indústrias poluentes, onde, consequentemente, são afetadas de forma muito mais intensa e acelerada considerando estatísticas a nível global. Conforme salientam Acselrad, Mello e Bezerra (2009), tal fenômeno piora, quando se leva em conta populações como indígenas, agricultores e pescadores, os quais dependem fundamentalmente do que se extrai da natureza para sua respectiva subsistência, quando a alteração do clima provoca efeitos bastante negativos, desestabilizando os recursos naturais. Diante da irracionalidade ambiental e da desigualdade social que se apresenta no atual mundo globalizado, as alterações no clima produzem injustiças e efeitos sociais desiguais, reforçando ainda mais a ideia do relacionamento entre as discussões sociais e ambientais (RAMMÊ, 2012). As mudanças climáticas potencialmente impingem o gozo da completa gama dos direitos humanos internacionalmente protegidos. Entretanto, a lei dos direitos humanos oferece um ponto de fundação e traz, igualmente, possibilidades significativas para o desenvolvimento de princípios e orientações proativas para proteger as pessoas deslocadas por razões ambientais, funcionando como o principal instrumento definindo normas de proteção, legislando sobre a liberdade de movimento – o que se encaixa perfeitamente no contexto dos deslocados ambientais. De acordo com McAdam e Saul (s.d.), existem três razões pelas quais os direitos humanos são essenciais neste contexto. Primeiro, porque a lei dos direitos humanos é particularmente importante no que tange aos direitos daquelas pessoas suscetíveis ao deslocamento induzido devido a forças climáticas. Em outras palavras, a lei dos direitos humanos estabelece um estandarte mínimo de tratamento que os Estados devem proporcionar aos indivíduos, provendo, outrossim, quais direitos devem ser avaliados 227 dependendo da situação concreta e, quais as autoridades que tem a competência e responsabilidade para responder as necessidades em que se encontram aqueles por quais os direitos não estão observados ou se encontram em um grau de perigo e prejuízo devido a catástrofes climáticas, por exemplo. Em segundo lugar, os direitos humanos podem garantir proteção complementar, em outros termos, quando os direitos são ameaçados devido às mudanças climáticas, a lei dos direitos humanos pode promover um leque em termos de bases legais, considerando as hipóteses de solicitação de asilo, pelos atingidos, em outro Estado. E, a terceira razão, traz em seu bojo a hipótese de relocação, onde a lei dos direitos humanos coloca um padrão mínimo de tratamento a ser observado pelo Estado acolhedor, buscando-se através disso, evitar o desrespeito às condições mínimas e fundamentais de vivência, no que corresponde ao ser humano. 2.2 A perturbação das mudanças climáticas frente os direitos civis e políticos Existe uma significativa preocupação de que as mudanças climáticas possam trazer sérios problemas e perturbações à observância dos direitos civis e políticos, podendo provocar mudanças radicais nas instituições sociais de um país e, mesmo, no próprio governo. Neste sentido, é possível prever que catástrofes causadas pelas mudanças climáticas possam trazer resultados negativos sob o aspecto da preparação de um Estado para responder a emergência de um desastre, principalmente, em estados mais vulneráveis a estes eventos. Para McAdam e Saul apud IOM (2009, p. 409, tradução nossa)116, [...] não é que a mudança climática em si é responsável por violações de direitos; ao contrário, são os efeitos das alterações climáticas que enfraquecem as capacidades dos estados e os impedem de cumprir sua obrigação de proteger os direitos das pessoas [...]”. Todavia, há que se fazer uma ponderação acerca dos meios, estratégias e quais caracteres cada norma deve observar a fim de estatuir as especificidades de cada caso, esclarecendo-se, antes de tudo, os diferentes cenários e tipologias de deslocamentos, sabendo-se que tais características serão essenciais para determinar de maneira mais prudente, quais normas de 228 proteção devem ser adotadas para atender as necessidades de cada caso específico. 2.3 Os desabrigados ambientais na América Latina Na América Latina encontram-se exemplos dos mais variados acerca da temática dos desabrigados ambientais. Conforme revela Brown (2009), a cada dia, no México, expressivos números de mexicanos arriscam suas vidas tentando ultrapassar a fronteira com os Estados Unidos da América em busca de emprego e, por conseguinte, uma vida melhor, muitos dos quais são provenientes de áreas rurais assoladas pela erosão. Muitos destes imigrantes entram pelo deserto do Arizona, onde, frequentemente, muitos acabam morrendo devido à desidratação causada, especialmente, pelo sol abrasador do deserto. Um levantamento feito no ano de 2001 revela que, em média, são encontrados cerca de 200 cadáveres por ano. Além da erosão, outro fenômeno que afeta alguns países latino americanos é a desertificação, onde, em países como Brasil e México sofrem severamente. Segundo Brown (2009), no Brasil, calcula-se que este fenômeno afeta cerca de 66 milhões de hectares de terras e, no México, cerca de 59 milhões de hectares, o que, sem sombra de dúvida, faz com que muitas pessoas tenham que imigrar de suas terras em busca de melhores condições de vida. Já na Argentina, Uruguai, Paraguai e novamente no Brasil, as inundações são as principais responsáveis pelo deslocamento de pessoas de seus locais de origem para outros locais onde não existam estes fenômenos, ou a incidência e o risco são potencialmente menores. Especialistas afirmam que as fortes chuvas se devem devido ao já conhecido fenômeno meteorológico El Niño. Todavia, há que se ressaltar que o Brasil, o Paraguai e a Argentina estão entre os dez países que mais desmataram nos últimos 25 anos e, que, conforme o desmatamento aumentava, em contrapartida, as inundações, exponencialmente, cresciam (FRAYSSINET, 2016). É sabido que as florestas constituem um papel essencial na regulação climática e que sua respectiva destruição traz consequências gravíssimas. Sob este viés, frequentemente acontece o conhecido efeito dominó, em que movimentando uma estrutura, acaba-se por desequilibrar todo o resto do conjunto. 229 Desta forma, se verifica que é necessário se estabelecer uma ordem ambiental entre estas nações com a finalidade de buscar meios para resolver estes problemas, como por exemplo, a recuperação de áreas de florestas nativas para proporcionar a diminuição da ocorrência de inundações e, sucessivamente, os transtornos causados por estas. Na Colômbia o cenário não se manifesta diferente, ou seja, em 2010 as chuvas causaram cerca de 174 mortes e deixaram 1,5 milhão de pessoas desabrigadas. Além disso, grandes perdas econômicas em setores como o de transporte (EFE, 2010, grifo nosso). Constata-se, portanto, que existe uma miríade de adversidades causadas exclusivamente por fenômenos ambientais, muitos deles, especialmente, devido às alterações no clima. E isso retrata seriamente a responsabilidade que os Estados têm de combater a degradação ambiental causada em seus territórios, principalmente, devido à orexia econômica, onde se presencia imensas devastações da biodiversidade para prática de atividades econômicas o que, usualmente, resulta em negativos transtornos como é o caso discutido aqui, qual seja, os desabrigados ambientais. 2.4 A perspectiva brasileira no cenário das mudanças climáticas No Brasil, vários eventos foram realizados nos últimos anos, demonstrando, sobretudo, a crescente preocupação deste país com relação aos desafios ambientais presentes no planeta e sua responsabilidade como nação frente ao cenário internacional. Alguns dos eventos que merecem destaque são as Conferências das Nações Unidas sobre meio ambiente celebradas no estado do Rio de Janeiro. Em 1992, houve a chamada “Rio 92”, onde foram discutidos muitos temas, dentre eles, cabe aqui destacar, a discussão a respeito da temática das alterações climáticas, aonde a preocupação com o fenômeno do aquecimento global vem se intensificando desde meados dos anos 70, também se discutiu a qualidade do ar, poluição e, algumas discussões trouxerem contribuições para a criação do Protocolo de Kyoto em 1997 (MENEGHETTI, 2012). Já Rio+ 10, realizada em 2002, promovida pela ONU em Johanesburgo, na África do Sul, conhecida como “Cúpula Mundial sobre o 230 Desenvolvimento Sustentável”, teve como objetivo reforçar o compromisso de cada uma das nações envolvidas, como também, encorajar ainda mais o debate sobre descobertas em termos de novas tecnologias que venham a beneficiar o meio ambiente e, ao mesmo tempo, proporcionar o crescimento econômico (FRANCISCO, s.d.). A “Declaração das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável”, ocorrida em 2012, na cidade do Rio de Janeiro, tendo como principal finalidade a“ [...] renovação do compromisso político com o desenvolvimento sustentável, por meio da avaliação do progresso e das lacunas na implementação das decisões adotadas pelas principais cúpulas sobre o assunto e do tratamento de temas novos e emergentes. ” (RIO+20, 2012). Na referida conferência, as discussões “[...] focalizaram um ciclo sustentável de desenvolvimento, com a incorporação de bilhões de pessoas à economia, com o consumo de bens e serviços dentro de padrões sustentáveis”. (RIO+20, 2012). Iniciativas têm sido tomadas com o fito de confrontar o enleio ambiental no Brasil. Entretanto, não basta elaborar projetos dos mais variados e não colocar em prática tais ideias. É necessário, sobretudo, exigir a efetiva atuação daquilo que fora planejado. A adoção de políticas nesse sentido traz significativa colaboração. 2.5 A conferência do clima em Paris – COP 21 A Conferência do Clima em Paris – COP 21 – reuniu representantes de 195 países na discussão sobre medidas para frear o aquecimento global, tendo como principais objetivos tratar da responsabilidade de cada Estado envolvido em trabalhar para que o aquecimento global fique na média de 1,5ºC, não ultrapassando a ٢ºC, determinando, igualmente, que os países ricos sejam responsáveis por garantir financiamento de ١٠٠ bilhões de euros por ano no combate ao aumento de temperatura (GARCIA, ٢٠١٥). A Conferência reconhece a necessidade de efetiva resposta a urgente ameaça trazida pelas mudanças climáticas, as necessidades específicas dos países em desenvolvimento, ressaltando atenção àqueles países mais vulneráveis, também reconhece a importância dos compromissos de todos 231 os níveis de governos e outros atores neste contexto, de acordo com as respectivas legislações nacionais de cada uma das partes frente ao clima. Além disso, ficou estabelecido no artigo 4º do Acordo que cada parte fica obrigada a participar das convocações a cada ٥ anos servindo como um meio para informar as partes quais foram os resultados obtidos durante este lapso temporal (NATIONS, ٢٠١٦). 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os desafios no que tange aos deslocados ambientais dão-se em razão de uma sociedade global extremamente norteada pelo viés capitalista, onde impera um modelo de injustiça social e econômica. Deste modo, diversas são as consequências e efeitos, como ocorre com os deslocados ambientais. Um dos meios na tentativa de se reverter este paradigma capitalista avassalador, seria a implementação de um modelo de sociedade sustentável, ou seja, implicando a formação de cidadãos conscientes e participativos no que diz respeito aos processos de produção, formando uma racionalidade ambiental, deslocando a conduta de uma visivelmente sociedade consumista para uma sociedade orientada pelo respeito à natureza com foco voltado para produção sob um ideal sustentável, utilizando-se, por exemplo, de práticas que não gerem gases poluentes, mas que sejam compatíveis com um modelo de respeito às condições ambientais e naturais de nosso planeta (NUNES; TYBUSCH, 2015). 4 REFERÊNCIAS ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília Campello do Amaral; BEZERRA, Gustavo das Neves. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. BROWN, Lester. Mudança Climática: Aumenta a onde de refugiados ambientais. 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Acesso em: 08 abr. 2016. ZETTER, Roger. Protection in crisis: Forced migration and protection in a global era. Washington, DC: 2015. 234 O HAITI É AQUI: EDUCAÇÃO E INCLUSÃO DOS IMIGRANTES HAITIANOS NO NORTE DO RIO GRANDE DO SUL Thaís JanainaWenczenovicz117 Rodrigo Espiúca dos AnjosSiqueira118 RESUMO Desde os primórdios da Humanidade o homem tem migrado por razões diversas, impulsionado por motivos endógenos e exógenos. Migra-se por questões culturais, econômicas, políticas e sociorreligiosas ou desastres ambientais e climáticos a exemplo do grupo em estudo. A imigração haitiana ao Brasil é um fenômeno migratório que ganhou grande proporção após o terremoto que abalou o país caribenho em 12 de janeiro de 2010 e provocou a morte de mais de milhares de pessoas e deixou outras tantas na condição de refugiados. Nesse sentido, pretende-se demonstrar um dos fatores de integração e inclusão dos haitianos na sociedade brasileira: a Educação. Palavras-chave: Direitos Humanos. Educação. Imigrantes Haitianos. Inclusão. 1INTRODUÇÃO Pensar os fluxos migratórios na América Latina compreende desvelar as relações que se estabeleceram na construção do ideário social dos países. Diversos países da América Latina receberam contingentes humanos em decorrência de sua condição econômica, política e social. A modalidade de inserção no mercado internacional, aliado às conjunturas internas dos países, levaram ao desenvolvimento de políticas de incentivo à imigração. Entre 1870 e 1930 estima-se que entre 42 e 60 milhões de europeus deixaram o Velho Mundo, impulsionados por motivos endógenos e exógenos. A América Latina recebeu mais de 13 milhões de imigrantes, sendo que 90% desse total tiveram como destino a Argentina, o Brasil, Uruguai e Cuba. Muitos imigrantes deixavam seus países com o ideal de se 235 tornarem proprietários de terras na América; outros em busca de trabalho assalariado, fosse este permanente ou temporário; e muitos partiam fugidos de perseguições religiosas, das guerras ou dos desastres ambientais. A bibliografia pertinente em geral relaciona os imigrantes com a expansão da economia agroexportadora, o desenvolvimento do meio urbano e das cidades, a composição e o crescimento populacional. A questão imigracional condicionou também os debates sobre o ideal de nação que emergia diante dos processos de formação dos países recémindependentes. Nessa teia social, surgiram diversas análises que discutiam, de forma ampla e comparativa, as grandes migrações históricas do final do século XIX, XX e XXI na América Latina, englobando temas como fatores de expulsão, políticas de atração; questões relacionadas com os debates governamentais e às legislações pertinentes à imigração; deslocamentos dentro dos países e entre os países. Os temas voltados para as Migrações e Direitos Fundamentais, Cidadania, Gênero, Direitos Humanos, Educação, dentre outros estão presentes somente após 1990. O devido estudo trata da integração dos Imigrantes Haitianos junto à sociedade brasileira – mais especificamente na região norte do Rio Grande do Sul (Brasil) - tendo em vista sua relação junto às dimensões materiais e concepções das diretrizes inclusivas educacionais. Nesse sentido, pretendese indicar alguns fatores que impulsionaram o deslocamento desses imigrantes e o processo de adaptação no Sul do Brasil, bem como em que medida as políticas de imigração ameaçam a manutenção dos Direitos Humanos de indivíduos provenientes de países com histórico de dependência e intransigência aos Direitos Fundamentais Civis e Sociais em seu país de origem. Tal condição corrobora na análise entre as políticas de integração e negação aos Direitos Humanos. Ao longo dos últimos vinte anos, o Brasil adotou uma série de novas políticas voltadas à gestão dos movimentos transfronteiriços e aos imigrantes no Brasil, políticas estas que respondem não somente ao ativismo dos migrantes e seus aliados, mas também à estratégia da política externa brasileira. Como procedimento metodológico, o devido trabalho utiliza-se da pesquisa bibliográfica acompanhado da descrição e interpretação da realidade dos sujeitos na compreensão da temática abordada tendo utilizado a técnica de Grupo focal. Para representar os dados a partir de uma perspectiva mais próxima do sujeito, foram utilizados fragmentos das entrevistas e análise de discurso. 236 2 PROCESSO MIGRATÓRIO E OS HAITIANOS NO SUL DO BRASIL O Acre figura dentre os Estados que primeiramente receberam os imigrantes haitianos no Brasil. Segundo dados da Polícia Federal (2014), aportaram no Acre – desde dezembro de 2010, cerca de 130 mil haitianos utilizando-se da fronteira do Peru com o Estado e se instalaram de forma precária ainda nos estados do Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e do Pará. Calcula-se que entre janeiro e setembro do ano de 2011, foram 6 mil e, em 2012, foram 2.318 haitianos que entraram ilegalmente no Brasil. Posterior o fluxo migratório também inseriu os Estados do Sudeste e Sul do Brasil – Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Enquanto questão legal, sabe-se que a grande maioria dos haitianos que solicitou refúgio no Brasil, não se enquadra como refugiado nos termos da legislação específica. No entanto, o Governo Brasileiro, por meio do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), decidiu autorizar a permanência por razões humanitárias aos haitianos que ingressaram por via terrestre até 13/01/2012. Neste caso, após o CNIg conceder a residência no Brasil e de posse da publicação dessa decisão no Diário Oficial da União, os haitianos foram recomendados a se dirigir a uma unidade da Polícia Federal para registrarem-se e fazer o pedido de Carteira de Identidade de Estrangeiro. Após o registro na Polícia Federal, o imigrante está apto a prorrogar o prazo de sua Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), nas agências credenciadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Ressalta-se também que mesmo estando o imigrante com o protocolo de pedido de refúgio e aguardando a concessão de sua residência pelo CNIg, ele poderá retirar sua CTPS e trabalhar em qualquer entidade usufruindo da legislação trabalhista do país de acolhimento. De acordo com dados do Ministério do Trabalho (RAIS, 2014), é possível apontar que dentre os imigrantes haitianos – categoria – Estrangeiros com vínculo formal de trabalho, segundo o quesito principais nacionalidades de um total de 14.579 ingressos no Brasil em 2013, 12.518 eram do sexo masculino e 2.061 feminino. Observa-se que ao fazer a análise considerando a variável sexo, no período de três anos (2011, 2012 e 2013) e levando em conta todas as nacionalidades, se obtém uma média de 237 72% de homens estrangeiros e 28% de mulheres estrangeiras. (MTE/RAIS, 2014) Levando em conta os motivos que fizeram com que os imigrantes haitianos se deslocassem ao Brasil pode-se dizer que no Rio Grande do Sul os espaços de recepção foram inicialmente as cidades de Rio Grande e Porto Alegre. Contudo, impulsionados pelo seu objetivo maior – o trabalho – fixaram morada em cidades de outras regiões como: Bento Gonçalves, Caxias do Sul, Erechim, Lageado, Marau e Passo Fundo. Na cidade de Erechim (norte do Estado do Rio Grande do Sul), além dos haitianos é possível identificar senegaleses, um pequeno grupo de Gana e, alguns angolanos que se apresentam como opção de mão-de-obra a construção civil esporadicamente. A partir de 2012, o grupo de haitianos que residiam em Erechim totalizava em torno de 50 pessoas, sendo a maioria homens, na faixa etária de 18 a 45 anos, apresentando-se majoritariamente como mão-de-obra para a indústria metal-mecânica e construção civil. (SMED: Coordenação Pedagógica – NEJA, 2015) Segundo Tedesco (2012), em termos econômicos, os haitianos a modo dos senegaleses também apresentam um comportamento empreendedor, assumindo riscos, comercializando bijuterias e aceitando empregos temporários para formar fundos e realizar projetos de vida (“constituir meu próprio empreendimento no Senegal”, “sustentar família no Senegal”). O fluxo de remessas financeiras e o desenvolvimento de competências dos que passaram por Erechim e Passo Fundo (RS) confirmam essa perspectiva. Dentre suas inserções na comunidade local e regional já virou rotina vêlos circulando e interagindo com o coletivo local. Enquanto inserção social e cidadã há algumas ações já efetivadas no quesito Educação e Saúde com o respaldo de órgãos governamentais desde 2012 – momento da chegada do primeiro grupo. Aos poucos as instituições universitárias e sociais foram demandas para auxiliarem no processo de acolhimento e inclusão. Na região norte do Rio Grande do Sul pode-se citar ações provenientes da Universidade Federal da fronteira Sul, Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões e Faculdade Anglicana. Dentre uma das primeiras iniciativas foi à criação de uma modalidade de ensino – alfabetização, em uma parceria da Faculdade Anglicana e a Secretaria Municipal de Educação. Desde 2012 as instituições oferecem 238 aulas no período noturno aos haitianos junto ao Programa de Alfabetização Municipal como uma forma de garantir melhor integração a sociedade nacional e regional.119 A possibilidade de alfabetizar-se em língua portuguesa também se estende para outros benefícios, como a acessibilidade e permanência ao direito à Educação. Nesse espaço os haitianos também recebem alimentação no período entre aulas, vale-transporte e material didático. Essa ação, como apontado é o resultado de um protocolo de intenções assinado pela Faculdade Anglicana de Erechim e o Poder Público Municipal – Secretaria de Educação – o que possibilitou que outras demandas sociais fossem atendidas como o acesso a saúde e o acompanhamento junto ao processo de legalização-documental. Na cidade de Chapecó – distante a 90 quilômetros de Erechim, há uma ação pontual com relação à inclusão dos haitianos no ensino superior, tratase do projeto PROHAITI da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS. O PROHAITI tem a intensão de contribuir, por meio de vagas suplementares, para integrar os imigrantes haitianos à sociedade local e nacional, por meio do acesso aos cursos de graduação da UFFS. O programa teve início em 2013 e, no início, ofertou oportunidades de formação superior, exclusivamente, a cidadãos haitianos residentes no município de Chapecó e região. De acordo com o Programa, as vagas destinadas aos haitianos são ofertadas por meio de processo seletivo especial e o aluno que ingressar através do processo será matriculado como aluno regular. O primeiro processo seletivo foi realizado em março de 2014 por meio de um edital específico para este fim, prevendo acesso à educação superior da UFFS para estudantes haitianos – PROHAITI com o total de 35 inscrições. Após os trâmites normais do processo, inscrição, provas, resultado foram realizadas as matriculas de 27 alunos nos cursos de Administração, Ciências Sociais, Enfermagem, Engenharia Ambiental, História, Letras Português e Espanhol, Matemática e Pedagogia. Em julho de 2014 foi realizado outro processo seletivo, com 33 inscrições. Desse total de inscritos, 12 haitianos foram matriculados nos cursos de Administração, Agronomia, Ciência da Computação, História, Letras Português e Espanhol, Pedagogia e Geografia. Até novembro de 2014 havia 39 alunos haitianos matriculados na Universidade Federal da Fronteira Sul, 239 no âmbito do programa PROHAITI. (UFFS: banco de dados acadêmicos, 2015) Em análise aos processos seletivos das Universidades também é possível constatar que há algumas modalidades ou programas de inserção de estudantes haitianos no ambiente escolar do ensino superior brasileiro, como os convênios de algumas universidades para intercâmbio, que os estudantes vêm para o Brasil, estudam e devem, geralmente, ao final do curso, retornar ao Haiti. Dentre as universidades que aderiram a esse projeto, há estudantes haitianos frequentando aulas na Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, em Curitiba, na Universidade Federal do Paraná, UFPR e em Florianópolis, junto a Universidade Federal de Santa Catarina, a UFSC. No ano de 2014, a Universidade Federal da Integração LatinoAmericana, UNILA, lançou o Edital nº 004/2014 que, em seu resumo “Regulamenta o processo de seleção do Programa Especial de Acesso à Educação Superior da UNILA para estudantes haitianos – Pró- HAITI, para ingresso no primeiro semestre letivo de 2015, na Universidade Federal da Integração Latino-Americana” (p. 1). No total foram ofertadas 29 vagas, sendo 22 para o bacharelado e 7 para a licenciatura, contemplando diversas áreas, sendo apenas uma para cada curso. (UNILA, 2016) Em relação aos aspectos culturais, os haitianos conservam os hábitos religiosos,120 alimentares e de convivência compatíveis ao grupo e em constante estado de ressignificância. Entre eles, além da cordialidade e espontaneidade, é conservada a hierarquia familiar. Nesse aspecto, é possível sinalizar que os imigrantes aderem à integração junto à comunidade regional fora do âmbito pragmático do trabalho. Sentem, sim, o estranhamento mesclado com curiosidade pelos que os cercam e os veem. No aspecto cultural é possível perceber que, praticamente, se utilizam dos espaços vagos dos dias e ou dos finais de semana - em momentos que não estão trabalhando – para telefonarem para amigos e familiares no Haiti e no Brasil, assistirem televisão e escutarem música. Alguns declaram que já frequentam clubes que oferecem atividades de dança. Sabe-se que a ausência de contato com a comunidade produz distanciamento, indiferença e ausência de fatores integrativos e de sociabilidade. Beccegato (1995) e Sayad (2008) apontam que não basta simplesmente adquirir algumas informações sobre usos, costumes ou 240 aprender línguas estrangeiras para se fazer intercultura; deve-se adentrar, sim, para as problemáticas cognitivas, afetivas, sociais, desenvolver um pensamento aberto, flexível, inclusivo, que valorize os comportamentos reconhecidos no diálogo e no encontro. As identidades e identificações produzidas no interior das sociedades hospedeiras se (re)constroem pelos autóctones e estrangeiros também a partir de referenciais simbólicos (MEIHY; BELLINO, 2008). 2. HAITIANOS NO NORTE DO RIO GRANDE DO SUL: ALGUMAS QUESTÕES METODOLÓGICAS Como já sinalizado, o devido estudo realizou contato direto com um grupo de 30 estudantes devidamente matriculados na rede municipal de ensino na região norte do Rio Grande do Sul, mais especificamente na cidade de Erechim. Do total de 30 alunos, 15 são haitianos e tiveram contato direto com os proponentes do estudo. Foram realizadas cinco visitas no turno da noite junto às dependências da Faculdade Anglicana de Erechim – parceira da atividade educacional junto com a Secretaria Municipal de Educação/Erechim. Dentre as atividades foram realizadas entrevistas, troca de ideias e saberes, bem como momentos de diálogos coletivos para discutir os fatores que impulsionaram a saída de seu país de origem, viagem, adaptação e visões iniciais da situação de imigrante. O estudo adotou abordagem qualitativa e o tipo de pesquisa utilizado foi a pesquisa-ação. O universo foi representado por 15 estudantes – nível de alfabetização e uma educadora. A técnica de coleta foi realizada através de Grupos Focais, tendo como função reunir informações detalhadas sobre o processo de deslocamento, recepção, negações e identidades construídas no país receptor. Os encontros foram realizados durante dez (10) dias com duas (02) horas de duração, acompanhados da professora titular. Após obter os dados coletados do roteiro de entrevista, foi realizada a transcrição e compilação dos dados. Já a análise e interpretação dos dados foram organizadas na forma tema x percentual. Feita a estruturação, os dados obtidos foram comparados entre si a fim de traçar minimamente características comuns entre eles. Dessa análise foi 241 possível concluir: 14 entrevistados são do sexo masculino e uma do sexo feminino; 75% possuía relação civil estável ao deixar o país de origem, sendo que a maioria mantém contato semanal com a família por meio das redes sociais. O uso da tecnologia foi assinalado por todos os entrevistados e esses apontaram que as redes mais usadas para efetivar a comunicação são o Badoo, Facebook, WhatsApp, e Viber – todos com acesso livre de encargos. Sobre o uso das tecnologias, observou-se que em 100% dos entrevistados houve afirmação de uso diário. Utilizam-se primeiramente para entretenimento e obter contato com os familiares. A aquisição de um aparelho de comunicação móvel está dentre os objetos mais cobiçados após o recebimento do primeiro salário. No tópico que solicitava informações acerca da viagem, 55% afirmou ter passado por países da América Central como Colômbia, Peru e Venezuela e um depoente afirmou ter tentado a vida na Espanha antes de se deslocar ao Brasil. Como meios de transporte apontaram automóvel (pequenos deslocamentos), transporte coletivo (ônibus e trem) e avião. A média de investimentos dispensados desde a saída do Haiti até o Brasil ficou em torno de 10.000,00 a 15.000,00. Este montante em muitas entrevistas foi sinalizado que se obteve por meio de empréstimos – com familiares ou agiotas. Segundo os dados são da Agência Brasileira de Inteligência (Abin, 2015) pelo menos 38 mil haitianos que já atravessaram, sem visto, a fronteira do Brasil pelo Acre, acrescida da informação que a rede de coiotes já faturou US$ 60 milhões – o equivalente a mais de R$ 185 milhões – nos últimos quatro anos. Sobre esse fato houve por parte dos depoentes uma certa resistência em se pronunciarem sobre o assunto. É importante assinalar que, pela resolução do CNIg (Conselho Nacional de Imigração), de ٢٠١٢, a vigência da concessão de vistos humanitários para os haitianos se encerra em outubro de ٢٠١٥, aumentando a pressão para o ingresso. Entretanto, há a possibilidade de o prazo ser adiado para até o final de ٢٠١٥, porém a movimentação de estrangeiros na fronteira não deverá diminuir ou se encerrar. Outra determinação do Conare (Conselho Nacional para Refugiados) do ano passado flexibiliza o acesso ao país de quem se declara nessa condição 242 perante a Polícia Federal. Isso também explica o grande número de imigrantes africanos e até asiáticos que estão entrando no país pelo Acre. Também foi analisado o ponto a qual questionava a relação estabelecida nos espaços de trabalho. Dentre as observações mais usadas estão a expressões: aqui trabalho muito, mas tenho salário; os patrões no Brasil não são ruins, mas trocam os funcionários de função com frequência, e as dificuldades de adaptarem-se as normas de segurança de trabalho. Muitos depoimentos afirmam que os treinamentos dados com vistas a proteção do trabalhador não são bem assimilados pela dificuldade imposta pela língua. 3 EDUCAÇÃO E INCLUSÃO: IMIGRANTES HAITIANOS NO SUL DO BRASIL Como já apontado, homens e mulheres de idade variada circulam nas mais diversas regiões do Brasil com o objetivo de integrarem-se a ‘Pátria Laboral’. Dentre as inúmeras dificuldades de adaptação e inclusão está o domínio da língua portuguesa. O aprendizado linguístico tem sido a maior dificuldade dos imigrantes e são observáveis algumas ações desenvolvidas por conta de organismos não governamentais. A Igreja Católica por meio de sua pastoral local teve a iniciativa de começar um curso de português básico em (Porto Velho/RO), ministrado por um haitiano que já aprendeu a língua portuguesa (Brasil). A partir deste aprendizado inicial, criou-se um projeto de extensão na Universidade Federal de Rondônia, denominado Migração haitiana na Amazônia brasileira: linguagem e inserção social de haitianos em Porto Velho, objetivando de imediato o ensino da língua portuguesa, noções de história e geografia do Brasil e da Amazônia, noções de direitos humanos e trabalhistas, visando sua inserção social. (COTINGUIBA; PIMENTEL. 2012. p. 101.) Em contrapartida por iniciativa independente do Governo e com o intuito de auxiliar e ensinar, foi elaborado o método de ensino de português para Haitianos, implantado pela Marília Pimentel e o Geraldo Cotinguiba, de Rondônia, no qual oportunizaram um curso em Santa Catarina e outro em Porto Alegre no ano de 2014. 243 Nessa assertiva, também pode-se citar a experiência desenvolvida no norte do Rio Grande do Sul, mas especificamente no município de Erechim junto a Congregação Anglicana. Essa valorização da cidadania e promoção da inserção social de um cidadão consciente e de atuação relevante se revela contínua ao longo da história da Igreja Anglicana no Brasil. Guedes (2010) assevera que a relevância da educação para a Igreja sempre se deu, também, no contexto do exercício da cidadania e na busca da democracia plenamente exercida na vida do país. Também nos dizeres de Drey, verifica-se uma imbrincada relação da atuação da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil para a construção de uma sociedade democrática e para a capacitação de indivíduos capazes de exercer cidadania plena pelo estabelecimento de entidades educacionais: Um ponto extremamente relevante para o empreendimento dessas missões no campo educativo, sobretudo de formação das instituições de ensino, era a preocupação com a inserção de novos sujeitos ativos na sociedade, que pudessem exercer plenamente sua cidadania e assim contribuir para a consolidação da República brasileira, que dava seus passos nas primeiras décadas do Século XX. (DREY, 2013, p. 38) A principal motivação da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil para a manutenção de escolas e missões é a emancipação do sujeito. Com a educação, a Igreja propagava seus ideais de fraternidade, justiça e igualdade. Essa atividade educacional proporcionava aos fiéis, e àqueles que noutra banda não encontrariam guarida, oportunidade de crescimento pessoal, e, consequentemente, social. Assim, a Igreja Anglicana manteve postura historicamente vinculada à propagação dos ideais da cidadania plena e prestação de serviços educacionais a parcelas vulneráveis da sociedade ou excluídos socialmente, conforme se verifica nas afirmações de Drey: A oferta de ensino das instituições anglicanas, ao que consta dos documentos, era destinada a dois públicos distintos: membros da elite não católica, que procurava uma alternativa de ensino frente às instituições católicas romanas; e alguns sujeitos históricos provenientes de camadas sociais menos favorecidas, que encontravam nas instituições anglicanas, a possibilidade do acesso às letras e ao conhecimento. (DREY, 2013, p. 84) E foi por meio dessas atividades que a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil revelou sua valorização da cidadania e da educação como ferramenta libertadora e emancipadora, conduta que perdura até hoje como postura de acolhida e garantia dos direitos dos migrantes, seja através do oferecimento 244 de oportunidades de formação e aprendizado da língua portuguesa – como forma de inserção social e exercício da cidadania – seja por intermédio da prestação de serviços básicos no seio das missões aos marinheiros mercantes, conforme se verificará mais adiante. Como meio de consecução de seus fins, a Igreja Anglicana, em várias localidades do globo terrestre, tem historicamente desenvolvido projetos no campo da educação, evidenciando sua preocupação com a difusão do conhecimento a todos quanto possíveis. Em 1907, já se revelava essa preocupação, conforme o 9º Concílio da Igreja Episcopal Brasileira (como era denominada a Igreja à época). As escolas do Governo são lamentavelmente ineficientes. A falta de disciplina intelectual e moral é tão evidente que nem o clero, nem o leigo pode apoiar as escolas ao seu redor. O problema se tornou urgente e as oportunidades proporcionam à Igreja a possibilidade de aprofundar sua influência na vida daqueles que lhes foram confiados (ACTAS DO 9º CONCÍLIO DA IGREJA EPISCOPAL BRASILEIRA, 1907, p. 25) Para Guedes (2010), a importância que a igreja atribuía à educação tinha também caráter político, ou seja, o exercício da cidadania para a plena consecução da democracia na vida nacional. Assim, verifica-se a grande relevância atribuída pela Igreja Anglicana à educação como ferramenta de inserção social e de desenvolvimento da cidadania que tem eco, ainda hoje, nas diversas ações desenvolvidas para a promoção da educação. A parceria entre Prefeitura Municipal de Erechim e Faculdade Anglicana de Erechim, tem como objetivo o ensino da língua portuguesa e é desenvolvida pelas duas entidades, estabelecendo-se a responsabilidade do ente político na concessão do vale-transporte, alimentação e profissional docente especializada na alfabetização de jovens e adultos; e da instituição de ensino superior no fornecimento da infraestrutura de sala de aula. Este convênio já gera novas oportunidades de inserção e integração aos haitianos, uma vez que alguns alunos que frequentam o curso de língua portuguesa há mais tempo, e dominam melhor o vernáculo, iniciaram os estudos no curso técnico em Segurança do Trabalho no Instituto Anglicano Barão do Rio Branco (escola de educação básica mantida pela Igreja Episcopal Anglicana do Brasil em Erechim), desta forma ampliando sua formação técnica e aumentando suas chances de inserção no mercado de trabalho. 245 Ainda no âmbito da acolhida e garantia de direitos aos migrantes, também a Igreja Anglicana tem envidado seus esforços. Cite-se como exemplo as iniciativas desenvolvidas pela The Episcopal Church por meio da missão aos marinheiros mercantes denominada The Seamen´s Church Institute of New York and New Jersey (Instituto Igreja dos Marinheiros), com sede em Nova Iorque e bases de atendimento em Port Newark, em Nova Jersey, e mesmo no Brasil (no Espírito Santo). Esta missão desenvolve atividades de garantia dos direitos dos marinheiros mercantes, com ações de conscientização e fiscalização das condições das embarcações por intermédio do seu Center for Seafarer´s Rights (Centro para os Direitos dos Marítimos) que conta com advogados e acadêmicos do curso de direito designados para fornecer aconselhamento jurídico aos marítimos e, em caso de necessidade, recorrer ao judiciário para garantia e proteção às normas laborais, de segurança do trabalho e de direito internacional marítimo. Uma das atividades mais desenvolvidas naquela missão é a intermediação com as autoridades portuárias norte-americanas para que seja concedida a chamada shore-leave, muito cobiçada pelos marítimos quando ancorados nos portos estadunidenses. Outra iniciativa que merece destaque, ainda na mesma seara da proteção aos direitos dos marítimos, é a The Mission to Seafarers (A Missão para os Marítimos) da Church of England, cuja missão é a garantia e proteção dos direitos dos marítimos nos portos ao redor do mundo. A Missão para os Marítimos tem instalações em vários portos, inclusive Belém, no Pará, e Pernambuco (mais especificamente, no Porto de Suape-PE). As atividades desenvolvidas pela missão vão desde o fornecimento de aconselhamento espiritual até o auxílio diante das dificuldades com acesso às instalações da missão ou facilidades instaladas no setor portuário. No Brasil, a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (nomenclatura oficial da Igreja Anglicana no país), tem desenvolvido, além das parcerias com a The Seamen´s Church Institute e com a The Mission to Seafarers acima mencionadas, o atendimento às necessidades dos migrantes por intermédio do mencionado convênio celebrado entre a Prefeitura Municipal de Erechim-RS e a Faculdade Anglicana de Erechim-RS onde são oferecidas aulas de português, gratuitamente, à comunidade de imigrantes da região. 246 4 INTEGRAÇÃO E SOCIABILIDADE: UMA EXPERIÊNCIA COLETIVA FAE E PODER PÚBLICO MUNICIPAL É possível perceber que a escola, para os imigrantes haitianos, atua como referência para um novo status, já que em sua maioria, os haitianos vestem as suas melhores roupas para frequentar as aulas e tem na figura do professor a representação da autoridade máxima. No contexto da observação ao grupo foi possível presenciar atitudes e gestos de amabilidade e cooperação com a educadora e gestão diretiva. Acrescente-se ainda que o espaço disponibilizado pela Igreja Anglicana para as aulas termina por ser um ponto de encontros. Concretamente, estes encontros passam a criar uma rede de sociabilidade que se fortalece, um local em que as informações são compartilhadas, reuniões para emprego são realizadas e também se assiste à construção de laços de amizade e à manifestação das relações de parentesco. Nesse processo de fortalecimento da cidadania, pela consolidação de ferramentas de interação social, integração cultural e inserção no mercado de trabalho, verifica-se que, para os imigrantes haitianos no norte do Rio Grande do Sul, as possibilidades de alcançar os objetivos pessoais e coletivos de uma vida melhor são maiores. A condição de expressar-se e ser entendido, assim como, entender com clareza o que lhe é dito, proporciona melhores condições de compreensão do mundo ao redor e também possibilidades de maior tempo de permanência no emprego. Essa compreensão potencializada também permite aos imigrantes um melhor entendimento nas normas e regras relativas à saúde e segurança do trabalhador e culmina por minimizar os riscos no ambiente de trabalho. Não somente permite ao trabalhador imigrante melhor compreensão das normas de segurança, bem como, uma maior apropriação dos direitos laborais garantidos ao operário no Brasil e a possibilidade de denunciar, com clareza, os abusos sofridos e eventual desrespeito infligido ao seu patrimônio jurídico-laboral. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 247 O presente trabalho apresentou elementos da relação existente entre a chegada dos imigrantes haitianos no Sul do Brasil e seu processo de integração, mais especificamente buscando a efetivação de direitos aos recém-chegados no quesito Educação. Em relação à ausência de condições mínimas de sobrevivência, atingindo em alguns casos a própria dignidade humana - como, por exemplo, tentar escapar dos desastres ambientais e, mais especificamente quando isso ocorre com o grupo de haitianos, observou-se que as centenas de homens provenientes dos países de economia periférica buscam refúgio nos países de economia central, mas na maioria das vezes não conseguem livrar-se do estigma da miséria. Trata-se de uma nova era de colonização, mas, dessa feita, uma colonização feita pelo (e em benefício do) capital. A revolução tecnológica acarretou consequências no mercado de trabalho, o que gerou reflexos nas massas migratórias de trabalhadores, que partiram em busca de colocação profissional. Essa transformação da tecnologia facilita o trânsito de informações e de pessoas no mundo, o que também influi nas migrações em geral. O contato com o grupo de haitianos permitiu concluir que quando o imigrante é identificado apenas por suas características étnicas e pelo nicho do mercado de trabalho em que consegue se inserir, o que ocorre com certa constância, é uma identificação negativa e, como consequência é negado ao indivíduo o reconhecimento como um ser humano completo. Sua identificação como trabalhador imigrante diante da sociedade acaba servindo de empecilho para que possa conseguir melhor colocação de trabalho, ainda que se trate de um trabalhador qualificado, frustrando suas esperanças de, ao atravessar fronteiras, obter acesso a um mundo melhor. Verificou-se, nas entrevistas, que algumas necessidades básicas de trabalho são desrespeitadas em virtude da condição de imigrantes dos trabalhadores haitianos como: dificuldade linguística, adjetivações histórico-culturais e dificuldade em adaptar-se as múltiplas tarefas exigidas pelo empregador. Sem sombra de dúvidas, o domínio da língua nacional e sua alfabetização e ampliação da escolaridade os torna cidadãos inclusos. Nesse aspecto, a busca e ampliação da escolaridade colabora com o processo de integração. Com vista a essa assertiva, a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil promoveu a aproximação dos haitianos a entidades educacionais. Esta postura revela a importância atribuída à educação como 248 ferramenta de transformação social e pessoal, na medida que fornece ao indivíduo condições de protagonismo pessoal e social, assim como, uma sólida e crítica inserção social. Entretanto, os desafios que os haitianos encontram no Brasil, no campo da educação, apresenta um quadro flagrante da ausência de uma política de imigração e, neste caso, de um despreparo quanto a esse fluxo migratório. 6 REFERÊNCIAS ACNUR; IMDH; CDHM. Políticas públicas para as migrações Internacionais. Migrantes e refugiados. 2. ed. revista e atualizada. Brasília: ACNUR; IMDH; CDHM, 2007. ACTAS DO CONCÍLIO DA IGREJA EPISCOPAL BRASILEIRA. Porto Alegre: Imprensa Episcopal, 1905-1954. BRASIL. Decreto n. 6.893/2009. Regulamenta a lei n. 11.961, de 2 de julho de 2009, que dispõe sobre a residência provisória para o estrangeiro em situação irregular no território nacional, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 jul. 2009. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas. Dados e notas explicativas. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/pesquisas/indicadores.php. Acesso em: 02 de maio de 2016. BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Estatísticas. Coordenação Geral de Imigração. Estatísticas, 2011. CMMI. Comissão Mundial sobre as Migrações Internacionais. As migrações num mundo interligado: novas linhas de ação. Relatório da Comissão Mundial Sobre as Migrações Internacionais. Trad. da Fundação Calouste Gulbenkian, out. 2005. CNIg. Conselho Nacional de Imigração. Dados e Estatísticas. Brasília, 2012. CONARE. 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O objetivo geral do artigo é discutir os mecanismos de efetivação do direito à luz de um estudo multidisciplinar. Optou-se pelo método de abordagem dialético. Utilizou-se a documentação indireta, abrangendo a pesquisa documental e a bibliográfica. Palavras-chave: Meio ambiente artificial; Meio ambiente ecologicamente equilibrado; Xenofobia. 1INTRODUÇÃO O estudo tem por tema o meio ambiente artificial, mais especificamente os espaços urbanos. Para a delimitação do tema restringiu-se o âmbito de investigação a considerações sobre o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, com especial atenção às colisões entre desenvolvimento sustentável das áreas urbanas e xenofobia. O tema é relevante e atual, justificando-se a sua escolha diante da escassez de textos científicos que explorem o prisma tal como delimitado, bem como pela contemporaneidade e essencialidade dos debates referentes aos aumentos de conflitos xenofóbicos. A pertinência do assunto se justifica, ainda, pelo recrudescimento do número de demandas 251 administrativas e judiciais que perseguem a garantia do direito humano à habitação, principalmente confrontando-o com o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A pesquisa tem como problema a realização do direito à vida com qualidade nos espaços urbanos e do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado nos casos que envolvem a convivência com migrantes, envolvendo questões xenofóbicas. O objetivo geral do artigo é discutir a aplicação do modelo duplo de regras e princípios às questões referentes ao direito à moradia e ao direito ao espaço urbano ecologicamente equilibrado no atual contexto de recrudescimento da xenofobia. Optou-se pelo método de abordagem dialético para o estudo do tema, através da percepção de uma lacuna nos conhecimentos acerca da qual formula hipóteses. No intuito de atingir os propósitos da pesquisa, coletando os dados necessários à sua realização, foi utilizada a documentação indireta, abrangendo a pesquisa documental e a bibliográfica. Para sua concretização, a pesquisa propõe um estudo multidisciplinar do equilíbrio ecológico necessário aos centros urbanos, com o objetivo de identificar os fatores determinantes para uma possível mudança de paradigma na produção e manutenção desses espaços, assegurando o direito à cidade e à arquitetura a todos; migrantes, ou não. No intuito de alcançar os objetivos, o desenvolvimento do texto foi organizado de modo a, num primeiro momento dedicar-se ao estudo do espaço urbano ecologicamente equilibrado, direito à moradia e do direito meio ambiente ecologicamente equilibrado e, posteriormente, à problematização do modelo duplo de regras e princípios, de Robert Alexy, refletindo sobre a justificação e a intensidade de eventuais restrições às normas de direito fundamental envolvidas (especialmente vida e moradia em espaços urbanos). Espera-se, ao final, oferecer colaboração à comunidade acadêmica, tecendo considerações sobre a harmonização dos direitos à vida e, especialmente à moradia, na sociedade de risco e o direito ao espaço urbano ecologicamente equilibrado, livre de xenofobia. 252 2 ESPAÇO URBANO ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO O artigo pretende ser ponto de partida no estudo do espaço urbano ecologicamente equilibrado através de diferentes ramos do conhecimento. O espaço urbano é aqui analisado como espécie do gênero meio ambiente artificial (SIRVINSKAS, 2015, p. 759), ao passo em que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é entendido como o direito à vida com qualidade nos centros urbanos. Tratar do espaço urbano é trazer à baila um tema abrangente e complexo (SPOSITO, 2011, p. 123), que, por isso mesmo, possibilita o tratamento transdisciplinar da questão. OLIVEIRA ([s.d.], p. 177) ensina que é nas cidades e nos seus lugares, mais especificamente, que os direitos, sob a forma de leis, aparecem de forma palpável e contraditória, decodificando-se em normas e posturas que regem a vida urbana. Pondere-se que no intuito de reger a vida urbana, a Lei nº 10.257/2001 regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 (CF), buscando estabelecer parâmetros para o uso da propriedade urbana em benefício da coletividade, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, além, é claro, de proporcionar o equilíbrio ambiental (ANTUNES, 2015, p. 649). Nesse sentido, o Estatuto da Cidade foi idealizado para propiciar a boa gestão da vida urbana, vez que “gerir cidades é produzir impactos sobre o meio ambiente – positivos ou negativos” (ANTUNES, 2015, p. 677). A cidadania é, sobretudo, uma questão de empoderamento de pessoas; as balizas de sua efetivação se delineiam sob a pressão de interesses diversos que procuram encontrar espaço de expressão e negociação, afigurando-se as cidades como um campo de observação privilegiado para a reflexão dos rumos que estão e que se pretende sejam tomados por determinada comunidade e a construção prática e teórica da cidadania, assim como seus efeitos. 1. 1 Meio ambiente ecologicamente equilibrado Os seres humanos estão todos – sem exceção – inseridos no meio ambiente, estando o meio ambiente protegido em diversos documentos internacionais. 253 No Brasil, a Constituição Federal de 1988 traz, em seu Título VIII, Capítulo VI, artigo 225, previsão sobre o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Em nível infraconstitucional, o inciso I do artigo 3º da Lei nº 6.938, de 1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente – PNMA) oferece o conceito de meio ambiente: Art 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I - Meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas; Já o artigo 4º da PNMA define, dentre outros objetivos, que a política nacional do meio ambiente visará a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico e, a definição de áreas prioritárias de ação governamental relativa à qualidade e ao equilíbrio ecológico, atendendo aos interesses da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios. As cidades devem visar, igualmente, a harmonização de seu desenvolvimento e crescimento com a preservação e qualidade dos espaços urbanos, de forma que estes sejam equilibrados. 1. 2 Cidades ecologicamente equilibradas Ao contrário da cidade sem vida, a cidade viva fervilha, denotando maior possibilidade de felicidade para todos. O conceito de cidade viva, porém, é relativo (GEHL, 2015, p. 63), não se limitando a uma aferição quantitativa. Ou seja, não é o número de pessoas que a torna efervescente, interessante, mas, sim, o espaço convidativo, popular, acolhedor. A qualidade de vida na cidade é uma preocupação destacada por seu caráter multifacetado (GEHL, 2015, p. 65). GEHL (2015, p. 63) assim destaca: Conquanto a cidade viva e convidativa seja um objetivo em si mesma, ela é também o ponto de partida para um planejamento urbano holístico, envolvendo as qualidades essenciais que tornam uma cidade segura, sustentável e saudável. 254 A partir daí pode-se verificar que as cidades deveriam ser o produto de um planejamento, holístico, ou seja, transdisciplinar, que pudesse promover um ambiente ecologicamente equilibrado. O potencial da vida da cidade, como processo de autorreforço, destaca a importância de um cuidadoso planejamento urbano que concentra e inspira a vida nas novas áreas urbanas. O planejamento urbano deve ser, pois, pensado para privilegiar o convívio harmônio dos cidadãos, inspirando e facilitando uma vida harmônica para todos. Quando o planejamento não existe ou não é adequado se iniciam conflitos, não se limitando estes apenas aos xenofóbicos. 1. 3 Xenofobia Como ressaltado por BAUMAN (2009, p. 20), Paradoxalmente, quanto mais persistem – num determinado lugar – as proteções “do berço ao túmulo”, hoje ameaçadas em toda parte pela sensação compartilhada de um perigo iminente, mais parecem atraentes as válvulas de escape xenófobas. O autor ressalta o fato de a xenofobia seria uma tentativa desesperada dos locais de salvar a solidariedade e o Estado Social de um determinado território, atacando os estrangeiros, sobretudo os migrantes, supostamente os responsáveis pelo declínio da proteção conquistada ao longo da história (idem, pp. 19-21). BAUMAN aponta para o fato de que, na atualidade, há uma preocupação não com todas as formas de reveses e com o “des-emprego”, não como uma condição temporária, mas, sim, como algo perene: o residente local ou nacional compreende que excluído da sociedade (e. g. tendo seu emprego ocupado por um imigrante), poderá ser definitivamente alijado das proteções oferecidos pelo “guarda-chuva” estatal (idem, p. 21-23). Segundo o autor, percebe-se que a sociedade abriria mão dos desempregados crônicos e dos criminosos “de bom grado”, por interpretar que teria tudo a ganhar se o fizesse (idem, p. 24); tais pessoas são vistas como não passíveis de serem “socialmente recicladas” (idem, p. 25). SOUZA (2002, p. 61), por seu turno, diz que O preconceito é, normalmente, uma forma pré-consciente de medo; alimenta-se do medo de sentir medo, ou seja, de objetivar o temor, e afasta do horizonte o perigo de um confronto 255 direito com o diferente por sua anulação violenta ou sublimada a priori. Os cidadãos temem o estrangeiro, o imigrante, pelo medo que este se apodere de sua cidade, de seu trabalho, de suas oportunidades. Trata-se de um discurso do ódio (hate speech) a exigir a atenção das autoridades e a elaboração de políticas públicas que o inibam, sob pena de, omitindo-se os administradores, verem as situações de xenofobia se ampliarem, com a eclosão de conflitos. 1. 4 Moradia Em âmbito internacional, o direito à moradia é reconhecido como direito humano desde 1948, tendo sido expressamente destacado pela Declaração universal dos direitos humanos, em seu artigo 25.1, o qual assim destaca: Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle (grifo nosso). A partir daí a moradia erigiu-se num direito humano reconhecido ao redor do mundo, passando a ser reconhecido por sua indispensabilidade à dignidade da pessoa humana. O Pacto internacional de direitos econômicos sociais e culturais (PIDESC), internalizado pelo Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992, em seu artigo 11.1 prevê que os Estados-partes reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. O Comitê de direitos econômicos, sociais e culturais (CESCR), ao interpretar o artigo 11.1 do PIDESC aponta aspectos do direito à moradia, bem como da questão atinente a remoções e despejos forçados (Comentário Geral nº 7 do CESCR). A Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, internalizada no Brasil pelo Decreto nº 65.810, de 8 de dezembro de 1969, em seu artigo V, “e”, “iii”, dispõe sobre o compromisso dos Estados-partes de proibir e a eliminar a discriminação racial em todas suas formas e a garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei sem 256 distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica, inclusive no gozo do direito à habitação. A Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, adotada e aberta à assinatura, ratificação e adesão pela Resolução 34/180, da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 18 de dezembro de 1979, no artigo 14. 2, traz que os Estados-partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher nas zonas rurais a fim de assegurar, em condições de igualdades entre homens e mulheres, que elas participem no desenvolvimento rural e dele se beneficiem, especialmente através de reforma agrária e reassentamento, assegurando às mulheres o gozo de condições de vida adequadas, inclusive no que pertine à habitação. A Convenção sobre os direitos das crianças, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990, por seu artigo 16.1 dispõe que nenhuma criança será objeto de interferências arbitrárias ou ilegais em sua vida particular, sua família, seu domicílio ou sua correspondência, nem de atentados ilegais a sua honra e a sua reputação, sendo ônus dos Estadospartes, de acordo com as condições nacionais e dentro de suas possibilidades, adotar medidas apropriadas a fim de ajudar os pais e outras pessoas responsáveis pela criança a tornar efetivo esse direito e, caso necessário, proporcionar assistência material e programas de apoio, especialmente no que diz respeito à nutrição, ao vestuário e à habitação. A Convenção sobre o status dos refugiados, em seu artigo 21, dita que os Estados Contratantes darão aos refugiados que residam regularmente no seu território, tratamento tão favorável quanto possível e, em todo caso, tratamento não menos favorável do que aquele que é dado, nas mesmas circunstâncias, aos estrangeiros em geral no que respeita ao alojamento. Finalmente, a Convenção internacional para a proteção dos direitos de todos os trabalhadores migrantes e membros de suas famílias, de ١٩٩٠, no artigo ٤٣.١ traz previsão de que os trabalhadores migrantes devem gozar de igualdade de tratamento em relação aos nacionais do Estado do emprego em relação ao acesso à moradia, incluindo projetos de moradia social, e proteção contra exploração em relação a aluguéis. Já no âmbito nacional, o direito à moradia possui status constitucional, assegurado como direito fundamental, no artigo 6º, caput, da Constituição 257 Federal de 1988, tendo sido inserido através da Emenda Constitucional nº 26, de 2000. Dita o mencionado dispositivo legal, em sua redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (grifo nosso). Como se vê, o direito à moradia foi reconhecido de forma expressa pelo constituinte mais de uma década após o termo inicial de vigência da Lei Fundamental de 1988. 1. 5 Modelo duplo Os direitos à moradia e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado estão inseridos, ambos, no rol de direitos fundamentais, tratando-se, portanto, de normas materialmente constitucionais. Para muitos, é grande a importância em reconhecer se as normas124 que tratam de direitos fundamentais devem ser reconhecidas como regras ou como princípios. Tal premissa está vazada no pensamento de Robert Alexy, para quem “a distinção entre regras e princípios é um dos pilares fundamentais do edifício da teoria dos direitos fundamentais” (ALEXY, 2011, p. 82). Alexy discute, em sua teoria, os modelos puros de princípios e de regras e propõe um modelo duplo, de regras e princípios. Ab initio, uma norma seria reputada ou como regra ou como princípio, mas, na prática, podem adquirir um caráter dúplice e, uma vez que nenhum direito fundamental é absoluto, poderá, em qualquer caso, sofrer restrições. As restrições que possam atingir as normas fundamentais estão autorizadas pela Constituição, de forma explícita ou implícita. Cada restrição a direitos fundamentais deve ser estabelecida apenas e tão-somente no caso de restarem preenchidas algumas condições (“estados de restrição”), de forma garantir que a redução dos direitos ou garantias é autorizada num nível menor (por exemplo, individual) para garantir a sua manutenção ou ampliação num nível maior (por exemplo, metaindividual). Nos processos de enfrentamento entre normas de direito fundamental, “[nenhuma] tem inteiramente o caráter de regra ou de princípio, senão um 258 caráter normativo de duplo nivelamento (nível das regras e nível dos princípios)”(BERNARDES; FERREIRA, 2016, p. 639). 1. 6 Direito à vida e à moradia (e)m espaço urbano ecologicamente equilibrado Ao falar em meio ambiente na ‘sociedade de risco’ - expressão atribuível a BECK (2006), que busca fazer referência no texto aos riscos aumentados presentes na sociedade de consumo -, necessária a compreensão, ao menos inicial, do que vem a ser a ‘justiça ambiental’, tema tratado com maestria pelo autor ACSELRAD (2010)125, através da doutrina de quem a expressão vem ganhando renome. A justiça ambiental trata de questões afetas ao tema meio ambiente como objeto de atenção na atualidade, pois falta reconhecer a centralidade dos princípios de justiça ambiental para a viabilização da proteção ecológica, atividade econômica e futuro da democracia. Segundo a doutrina da ‘justiça ambiental’, atualmente há uma crescente escassez de recursos naturais e desestabilização de ecossistemas, que atinge determinados grupos sociais e áreas geográficas de modo diferente e injusto. A relação entre a sociedade e a natureza reflete assimetrias políticas, sociais e econômicas, havendo um aumento da degradação ambiental em comunidades negras, grupos indígenas e populações de menor renda. Existiria um (des)balanço de poder que se torna origem e multiplicação de impactos ambientais, sem que existam análises a respeito. A ausência de comprovação científica das injustiças ambientais permite que os detentores do poder e as camadas produtoras pretendam a sua neutralidade política nos problemas de conservação do meio ambiente. Uma vez que inexiste comprovação da ‘culpa’ dos governos e dos produtores, o problema passa deve ser tratado a partir de métodos técnicoregulatórios ao invés de redistributivos, participativos e compensatórios. 2CONSIDERAÇÕES FINAIS Como cidadãos devemos empreender uma busca constante por cidadanias mais justas e estratégias mais inclusivas e democráticas, com a 259 expurgação da xenofobia nos espaços urbanos. Nesse sentido, torna-se necessário compreender que ‘justiça ambiental ‘é muito mais que uma doutrina, ou uma ideologia, representando um processo contra as injustiças tradicionalmente incrustadas no Estado de Direito convencional. A problemática ambiental incorpora desigualdades sociais, de raça, de sexo, de classe, bem como a lógica hegemônica de acumulação de capital e cerceamento de oportunidades, inclusive de obtenção de moradia digna e vida nas cidades. As pessoas mais ricas têm advogados, assistentes periciais e dinheiro para se defender, enquanto as mais pobres nada têm senão os problemas ambientais que legados pelas indústrias e governos, e a maior parte delas não possui uma propriedade, estando alijadas do âmbito de realização do direito à moradia. A verdade é que nosso planeta vem sendo apropriado por interesses cada vez mais excludentes. Prova disso seria o ‘Memorando Summers’ (1991), do Banco Mundial, caso em que se postulou a transferência das indústrias mais poluentes aos países menos desenvolvidos ao pensamento de que nesses países há menor controle, maior aceitação da degradação e menor expectativa de vida, o que autorizaria países ditos desenvolvidos a poluí-los e causar lesões à população, tratada como “refugo humano” (BAUMAN, 2005). Se forem consideradas as desigualdades sociais, podemos alcançar um maior nível de justiça ambiental, através de múltiplas estratégias de ação e maior capacidade criativa, ao passo que, se ignorarmos as desigualdades sociais, alcançaremos apenas soluções que não asseguram proteção ambiental para todos, consequentemente com um menor nível de justiça ambiental e estratégias limitadas. As injustiças ambientais não são uma abstração; elas são facilmente quantificadas e localizadas, sendo possível verificar que lutas para democratização de acesso a bens e serviços supostamente universais “ambientalizam” demandas. Os riscos ambientais devem ser percebidos como atos essencialmente políticos e, a população deve perceber e reagir de acordo com suas condições sociais, culturais e organizativas. 260 Migrantes e estrangeiros “aceitam” maiores riscos na falsa cognição de que serão beneficiadas por melhores oportunidades de emprego e moradia nos locais onde se estabelecem. De um lado temos o aumento da legislação (crescente em volume, complexidade e burocratização) e, de outro, um “Estado-anão” (com a contenção de seu papel quanto a políticas redistributivas sociais, regionais e ambientais). A globalização torna-se outro obstáculo às lutas por justiça ambiental em razão da mobilidade do capital, captura do Estado pelo neoliberalismo, neutralização das relações antagônicas e, riscos da política de desregulamentação. Emprego e renda sofrem forte pressão de parcelas importantes da população para submissão à exploração ambiental e social enquanto o movimento de justiça ambiental se digladia com o modelo monocultural exportador (produção de divisas/crescimento econômico), viabilizando mais injustiças ambientais e o aumento da desigualdade e da marginalização, com a proliferação da xenofobia. Vivemos uma necessidade de mobilização forte e centrada dos direitos universais, pois, enquanto os danos ambientais puderem ser transferidos para os mais pobres, especialmente se forem migrantes. A pressão geral sobre o meio ambiente não recrudescerá. É necessário proteger os espaços urbanos hoje, para a presente e as futuras gerações, ou não haverá quase nada o que se proteger. O desenvolvimento das cidades deve ser sustentável, com a busca continua por alternativas que permitam o aumento da proteção deferida ao ambiente para todos, sejam locais, migrantes ou estrangeiros. A coleta de dados sobre processos xenofóbicos e a elaboração de políticas públicas para a inibição a curto, médio e longo das situações de conflito deve ser incentivada, com o estudo multidisciplinar do problema como forma de melhoria das condições de vida nas cidades. 3REFERÊNCIAS ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais - o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos avançados. São Paulo, v. 24, n. 68, p. 103-119, 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340142010000100010&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 30 maio 2016. 261 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2011. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 17 ed. São Paulo: Atlas, 2015. BAUMAN, Zigmunt. Vidas desperdiçadas. São Paulo: Zahar, 2005. _____. Confiança e medo na cidade. São Paulo: Zahar, 2009. BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Espanha: Siglo XXI de España Editores, 2006. BERNARDES, Juliano Taveira; FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Direito Constitucional. Tomo I. 6 ed. Bahia: JusPodvm, 2016. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 22 maio 2016. _____. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981 (Política Nacional do Meio Ambiente – PNMA). 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Acesso em: 26 maio 2016. 263 EDUCAÇÃO PARA OS DIREITOS HUMANOS: TEORIA CRÍTICA E SENSIBILIDADE Diogo Dal Magro126 RESUMO O objetivo geral deste estudo é esclarecer a importância de categorias como a Sensibilidade para o desenvolvimento da Teoria Crítica e a Educação os Direitos Humanos. O problema de pesquisa é buscar a partir de quais categorias pode-se capacitar cidadãos comprometidos com os Direitos Humanos, reinventado também a própria ideia de Direitos Humanos, em face dos desafios deste início de século XXI. O método utilizado é o Dedutivo. Como parte das conclusões, observa-se que a Sensibilidade auxilia no desenvolvimento da alteridade e no reconhecimento do outro como um “sujeito de direitos”, enquanto a Teoria Crítica analisa a precariedade e o abismo entre teoria (normas) e prática de Direitos Humanos, evidenciando a necessária reinvenção de seu conceito, estruturado na dignidade da pessoa humana. Palavras-chave:Direitos Humanos, Cidadania, Sensibilidade, Educação. 1 INTRODUÇÃO Desde sua declaração até hoje, poucos são os avanços concretos e práticos, mas inúmeros os desafios que os Direitos Humanos encarram na sociedade pós-moderna do início do século XXI. Analisando-se por uma perspectiva histórica, alguns dos ideais propostos pela Revolução Francesa ocorrida em 1789 e também pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, do mesmo ano, bem como da Declaração de Independência dos Estados Unidos, os quais inspiraram e precederam a Declaração Universal dos Direito Humanos de 1948, ainda não foram efetivados de maneira satisfatória. É por meio do horizonte expandido pelo atual momento de trânsito, ruptura, reinvenção, denominado Pós-Modernidade127, que se pode analisar tais desafios. 264 Este novo horizonte constitui um novo modo de encarrar o mundo. Permite a reavaliação da Razão Instrumental e de seus limites, bem como o desenvolvimento de novas categorias, como é o caso da Sensibilidade, também denominada Razão Sensível. O problema de pesquisa deste trabalho fica assim apresentado: a partir de quais categorias pode-se capacitar cidadãos comprometidos (educados) para com os Direitos Humanos, bem como redefinir a própria ideia de Direitos Humanos, em face dos desafios da humanidade do início do século XXI? Como resposta para esta indagação, apresenta-se a hipótese de que se faz necessário uma Educação para os direitos Humanos. A Educação para os Direitos Humanos decorre ao passo que a Teoria Crítica analisa o abismo entre textos normativos (teoria) e prática, evidenciando a necessidade de reinvenção dos Direitos Humanos. Um meio vetor para tal é a Sensibilidade, visto que, enquanto força capaz de aguçar os sentidos, auxilia no desenvolvimento da alteridade e o reconhecimento do Outro como um “sujeito de direitos”, desenvolvendo o espaço de consolidação da dignidade. Propõe-se, como objetivo geral deste trabalho, esclarecer a importância de categorias como a Sensibilidade para o desenvolvimento da Teoria Crítica e a Educação para os Direitos Humanos. Para complementar esta pesquisa, elenca-se os seguintes objetivos específicos: a) entender a necessidade de reinvenção dos Direitos Humanos, como vetor para a Educação e efetivação; b) evidenciar, através da Teoria Crítica, as lacunas existentes entre os textos normativos dos Direitos Humanos e a realidade social; c) compreender a importância de desenvolver a Alteridade como eixo central à Educação aos Direitos Humanos. O método utilizado para o andamento desta pesquisa é o Dedutivo128. Parte-se da premissa maior de que a educação possibilita o desenvolvimento. Logo, a premissa menor é que a educação para os Direitos Humanos, baseada na Sensibilidade e na Teoria Crítica, oportunizará o desenvolvimento de uma cultura de Direitos Humanos, composta por indivíduos que pratiquem o Reconhecimento e a Alteridade. As técnicas que viabilizam o Método são a Pesquisa Bibliográfica e Documental129 e a Categoria130. 2 UMA NOVA IDEIA DE DIREITOS HUMANOS 265 Um dos avanços trazidos pela Modernidade, e, especialmente graças ao advento do Constitucionalismo, refere-se a constante ação de busca por positivação de direitos. No âmbito de Direitos Humanos, observa-se a inspiração destes, já com a Magna Charta de 1215, mas, especificamente, com a Petição de Direitos (1628), garantindo direitos patrimoniais, o Ato Habeas Corpus (1678), positivando direitos processuais, a Declaração de Direitos (1689), garantindo alguns direitos do “humano”, todas ocorridas na Inglaterra; com a Carta de Virgínia (1776), promovendo a positivação do direito à vida, liberdade, propriedade, segurança e felicidade; a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), ambas (re)positivando direitos semelhantes os da Carta de Virgínia (vida, liberdade, propriedade, segurança). Já no século XX, a positivação de direitos continua com a Constituição Mexicana (1917), garantindo direitos trabalhistas; a Constituição de Weimar (1919), positivando direitos sociais; a Declaração Internacional de Direitos do Homem (1929), e, em 1948, a atual Declaração Universal dos Direitos Humanos. É perceptível o esforço tomado tanto pelas nações, positivando os direitos e garantias fundamentais, quanto por órgãos e poderes internacionais, até chegar-se a uma declaração universal, que visa, de acordo com Herrera Flores, “formular juridicamente uma base mínima de direitos que alcance a todos os indivíduos e formas de vida que compõem a ideia abstrata de humanidade”. (2009, p. 29) Observa-se, portanto, uma preocupação em positivar direitos. A Modernidade, enquanto paradigma a realizar a Razão Instrumental, é vetor para o Positivismo, no que concerne ao direito como sendo puramente objetivo. Assim, a visão destes direitos, enquanto positivados, é uma concepção livre de influências de qualquer natureza. Deste modo, ignora-se a concepção de que os Direitos Humanos são resultados de um materialismo histórico que, em meados do século XX, são positivados. Outra característica referente a positivação de direitos, refere-se ao fato que, acreditou-se, na Modernidade, sendo resultado do positivismo normativista, que todos os direitos pudessem ser descritos de forma precisa, ou seja delimitados e, uma vez positivados tinham validade131 legal, e isto era sinônimo de eficácia. Para Bittar, dentre as principais questões que 266 influenciaram os juristas do século XX, está “a centralidade das reflexões jurídicas sobre o princípio da validade, questão que se torna foco de atenção de toda a esquemática de funcionamento do sistema jurídico” (2009, p. 75). Esta característica encontra-se presente na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, embora não tendo o papel do Estado, há a configuração da ONU. Passado mais de meio século desde a sua declaração, observa-se que os Direitos Humanos não cumpriram com todos os seus desafios iniciais e, ainda, novos surgem neste início de século XXI. Assim sendo, são necessárias algumas observações. As condições que levaram à declaração de 1948, segundo Herrera Flores, fizeram com que seus redatores priorizassem dois grandes objetivos: 1) a descolonização dos países e regiões submetidos ao poder e ao saqueio imperialista das grandes metrópoles; e 2) a consolidação de um regime internacional ajustado à nova configuração de poder surgida depois da terrível experiências das duas guerras mundiais, o qual culminou na Guerra Fria entre dois sistemas contrapostos. (2009, p. 71) Basta analisar a história para verificar que o Neocolonialismo não se configura como um desafio atual. Quanto a Guerra Fria, com a queda do Muro de Berlim e a recente abertura entre Estados Unidos da América e Cuba, observa-se que estes dois objetivos, que eram centralidade da declaração de 1948, não se constituem como preocupações na atual sociedade. O contexto social, econômico, político deste início do século XXI configura-se como totalmente outro132. Os novos desafios sociais são outros e, nesta mudança de contextos e desafios, o objetivo maior de nossos esforços é, de acordo com o autor Herrera Flores, “[...] armar-se de ideias e conceitos que nos permitam avançar na luta pela dignidade humana”. (2009, p. 71) O caráter universalista dos Diretos Humanos pode revestir-se, por vezes, de certas armadilhas. Se, durante a Modernidade, houve a dessubjetivação do homem e a busca por uma igualdade objetiva, a Pós-Modernidade oportuniza a vivência e importância do plural. Estabelecer os Direitos Humanos “universais” incute ignorar as diferentes realidades sociais mundiais, ignorando suas riquezas culturais e tradicionais, bem como sua formação histórica.133 267 O que deve constituir nos Direitos Humanos de forma universal é a luta pela dignidade da pessoa humana. Para Herrera Flores, [...] a luta pela dignidade constitui um caráter global, não parcelado. A luta pela dignidade é o componente “universal” que nós propomos. Se existe um elemento ético e político universal, ele se reduz, para nós, à luta pela dignidade, de que podem e devem se considerar, beneficiários todos os grupos e todas as pessoas que habitam nosso mundo. Desse modo, os direitos humanos não seriam, nem mais nem menos, um dos meios – talvez o mais importante – para se chegar à referida dignidade. A dignidade é, por conseguinte, o objetivo global pelo qual se luta utilizando, entre outros meios, o direito. (2009, p. 75) A dignidade da pessoa humana134 deve constituir-se, portanto, como pedra fundamental dos Direitos Humanos e este deve ser seu caráter universal.135 Para Bittar, a dignidade da pessoa humana também pode ser entendida como um “[...] minimum exigível socialmente, capaz, por seus recursos, meios e técnicas, de alcançar justiça social”. (2009, p. 305) Contudo, não basta apenas redefinir a ideia dos Direitos Humanos em concepção de dignidade da pessoa humana. É necessário que haja percepção para que estes sejam adaptados à cada realidade social, que se constitui pluralmente.136 Além disso, a realidade é dinâmica. Em virtude disso, é indispensável reinventar os Direitos Humanos cotidianamente, em face dos múltiplos desafios vividos a todo momento. 3 EDUCAÇÃO PARA OS DIREITOS HUMANOS Em meio aos atuais tempos de crise, são perceptíveis distintas formas em que a dignidade da pessoa humana é ferida, e, determinadas vezes subtraída de seu sujeito. Os Direitos Humanos acabam por tornarem-se vazios em essência, sendo apenas utilizado sua nomenclatura para considerações errôneas. Para Aquino, faz-se indispensável refletir a respeito dos Direitos Humanos: A ausência de uma reflexão crítica sobre o significado dos Direitos Humanos como preceito de compreensão sobre o que Ser humano, fundamentado pela filosofia, indica a grave carência e limitação de nossa capacidade para perceber os males – físicos e psíquicos – que se espalham no mundo. As pessoas estão perdendo suas essências para manter algo vazio como elemento de integração. (2014, p. 45) 268 Eis os novos desafios do contexto deste início do século XX. Repensar os Direitos Humanos em sua essência. A Teoria Crítica apresenta-se como vetor indispensável para esta reflexão. Em referência a Teoria Crítica, para Wolkmer, [...] pode-se conceituar teoria crítica como o instrumental pedagógico operante (teóricoprático) que permite a sujeitos inertes e mitificados uma tomada histórica de consciência, desencadeando processos que conduzem à formação de agentes sociais possuidores de uma concepção de mundo racionalizada, antidogmática, participativa e transformadora. Trata-se de proposta que não parte de abstrações, de um a priori dado, de elaboração mental pura e simples, mas da experiência histórico-concreta, da prática cotidiana insurgente, dos conflitos e das interações sociais e das necessidades humanas essenciais. (2002, p. 5) O potencial da Teoria Crítica137, enquanto instrumento teórico e prático, é que ela propicia a o desenvolvimento de uma consciência reflexiva baseada na realidade. Não se trata apenas de reflexões abstratas, mas sim uma nova forma de ver a realidade, considerando-se, a partir da reflexão, seus desafios, sua estrutura, sua constituição histórica. É uma reflexão crítica138 acerca das possibilidades de realizar o novo,139 visto que há uma significativa distorção entre norma e realidade É por meio da Teoria Crítica e, posteriormente, da Sensibilidade (Razão Sensível) que se pode investir contra a realidade que, segundo Bittar, encontra-se insensível, rude e fria: [...] A modernidade consolidada, como modernidade que realiza a razão instrumental, em muitos sentidos e dimensões, exercita rudeza e incute rudeza na dimensão da vida. Essa rudeza, que bloqueia os sentidos é a mesma que permite a trivialização do absurdo; ela constrói a dimensão da insensibilidade do cotidiano. A rudeza e a frieza também se tornam formas de expressão que marcam práticas sociais e determinam muito das próprias práticas do direito. (2011, p. 58) Enquanto o cotidiano (a realidade social) apresentar-se insensível, a prática de ações voltadas aos Direitos Humanos e, consequentemente, à dignidade da pessoa humana, encontrar-se-ão vazias, esquivas, com ausência de significados e sentidos. A Sensibilidade constitui-se em um novo modo de vivenciar a realidade. A partir de uma sensibilidade, as relações humanas dar-se-ão de forma fraterna e solidária. Para Bittar, “O termo “sensibilidade” (Sinnlichkeit)140, em sua amplitude semântica, revela que largos são os horizontes da 269 dimensão do sensível, do sensitivo, do intuitivo, do perceptivo”. (2011, p. 58) Ao realizar a Sensibilidade, o ambiente cotidiano torna-se palco de relações de respeito aos Direitos Humanos e a dignidade da pessoa humana. A respeito da Razão Sensível, esta deve ser encarada como um meiotermo entre a Razão Lógica e a dimensão sensível, presente em todos os indivíduos, porém, em determinados casos, encontra-se encoberta. Contudo, tanto a Teoria Crítica, bem como a Sensibilidade, não se desenvolvem automaticamente. Para que haja seu desenvolvimento no social, necessita-se de uma pedagogia em Direitos Humanos, que tenha por objetivo desenvolver estas duas categorias nos indivíduos por meio de uma Educação para os Direitos Humanos, propiciando a construção de um saber sensível.141 O papel de uma Educação para os Direitos Humanos é desenvolver, a partir da Teoria Crítica e da Sensibilidade, dos mais diversos meios e formas, uma consciência voltada para o Outro, onde haja atitude de alteridade e de reconhecimento. Para Bittar: Um dos grandes desafios da educação em direitos humanos é o de gerar sensibilização. Em que pesa o resgate da sensibilidade para a formação humana e humanista? Qual a tarefa da educação em direitos humanos nesse setor?[...]Não é somente o aparato cognitivo e o acesso ao conceito que definem a boa apreensão e percepção de uma realidade. Se a educação em direitos humanos pretende, como de fato assim se apresenta, realizar cidadania, empoderar em direitos e educar no contexto histórico, deve fazê-lo por meio de inúmeras linguagens, que afeta as percepções dos educandos. Pensando a educação em direitos humanos no ambiente escolar, deve-se ter presente que, se uma sala de aula é um ambiente complexo, do qual participam educandos com vocações, formações, percepções e experiências as mais diversas, inclusive dotados de formas de percepção da realidade as mais diversas, das sinestésicas às visuais e auditivas, fica claro que a diversidade dos canais de aprendizado/ensino deve ser explorada com habilidade no ambiente de formação intraescolar. (2011, p. 70) Os Direitos Humanos, enquanto direitos “do homem” e “para o homem”, somente são realizáveis com a prática da alteridade, enquanto capacidade que permite a saída do ego para adentrar na dimensão do Outro (alter). É desenvolver a compaixão.142 A Alteridade constitui-se como pedra fundamental para os Direitos Humanos. Para Warat, “[...] definitivamente a questão dos direitos humanos é uma questão de alteridade. Não podemos falar de Direitos humanos ignorando o componente da alteridade que o constitui em estrutura”. (2010, p. 116) 270 O reconhecimento também se constitui como pressuposto aos Direitos Humanos. Reconhecer o Outro como um sujeito de direitos é reconhecer a dimensão do Outro como totalmente distinta da dimensão do Eu. Sem o reconhecimento do outro como um sujeito de direitos, a estrutura dos Direitos Humanos perde sua significação e seu sentido, fazendo com que estes tornem-se apenas uma expressão vazia. A Educação para os Direitos Humanos possibilita desenvolver uma cultura em Direitos Humanos, a fim de que as relações sociais que marcam a capacidade civilizatória do homem, sejam capazes de conduzir a uma emancipação cidadã.143 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os desafios do novo contexto do início do século XXI evidenciam a necessidade de repensar as práticas voltadas aos Direitos Humanos. Reinventar os Direitos Humanos, como atitudes de prática cotidiana, que enalteçam o sentido da dignidade da pessoa humana, são os novos almejos da humanidade. A Educação aos Direitos Humanos, viabilizada e construída por meio de políticas públicas, é capaz de gerar o progresso de uma cultura em Direitos Humanos, tendo como eixo central, a Alteridade, bem como o reconhecimento. A partir disto, as relações humanas passarão a adquirir novos significados, novos sentidos, demonstrando a capacidade humana de relacionar-se civilizatória e harmoniosamente. A Pós-Modernidade caracteriza-se pela subjetivação dos indivíduos, considerando o dissenso, a diversidade e a vivência do plural. Somente com uma cultura de convívio com o Outro, respeitando suas diferenças e colocando-se constantemente em seu lugar é que a emancipação de uma cidadania surgirá. 5 REFERÊNCIAS AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. O direito em busca de sua humanidade: diálogos errantes.Curitiba: CRV, 2014. AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Raízes do direito na pós-modernidade. Itajaí, (SC): UNIVALI, 2016. 271 BASTIANI, Ana Cristina Bacega De; PELLENZ, Mayara; AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Guttacavat lapidem: reflexões axiológicas e práticas sobre direitos humanos e dignidade da pessoa humana. Erechim: Deviant, 2016. BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Democracia, justiça e direitos humanos: estudos de teoria crítica e filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2011. BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. 2. ed. rev., atual. e ampliada. 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WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 4. estão Paulo: Saraiva, 2002. 272 DIREITO E GLOBALIZAÇÃO: ENTRE CÉTICOS, TRANSNACIONALISTAS E GLOBALISTAS Gustavo Polis144 RESUMO O presente artigo busca discorrer sobre o Direito inserido nas relações do mundo “sem fronteiras”. Nesta senda, observa-se como problema de pesquisa a ser enfrentado, a conceituação de Transnacionalismo assim como as diferentes visões sobre o tema, no que diz respeito a produção do direito em cenários globalizados. Através do método indutivo, baseado em pesquisas e análises bibliográficas tem-se como objetivo discorrer como se dá a confecção do direito em cenários globalizados sob diferentes óticas quanto sua produção, validade e aplicabilidade. Palavras-chave: Globalização; Produção do Direito; Transnacionalismo. 1 INTRODUÇÃO O estudo que se apresenta objetiva analisar o processo de transnacionalismo, em especial, no que concerne a produção do Direito em cenários globalizados, assim como as respectivas divergências teóricas a respeito do tema. Parte-se da enunciação de o Direito ser um elemento maleável da sociedade, portanto, acompanhando diretamente toda e qualquer alteração nos mais diversos aspectos estruturantes do local onde desempenha sua função. A ciência jurídica, por muito tempo, classificou o fenômeno das leis tendo como base a ideia do Estado Soberano. Conceito este utilizado desde o momento em que se deu a transição da sociedade feudal, guiada pelos interesses de um Suserano, para a criação dos Estados Nacionais, os quais passaram a exercer uma jurisdição pautada pela soberania dentro dos limites de seus determinados territórios. Tendo, em um primeiro momento, um Rei Soberano como o único detentor do poder de dizer o direito para aqueles sob seu domínio, perpassando, com a evolução do ideário capitalista, pelo estado liberal e democrático onde a população, diretamente, 273 selecionaria representantes legitimados para a tarefa de confeccionar as normas que regem a sociedade. Porém, durante o século XX o modo como as diferentes nações se relacionavam entrou em um profundo processo de mutação, assim como as relações jurídicas. Após findada a Segunda Guerra Mundial o avanço econômico/tecnológico foi tamanho, que espaços virtuais se criaram, onde o Estado, por diferentes razões, não foi capaz de compreender, muito menos regulamentar, fazendo caminho para que agentes (privados), previamente desconhecidos e indiferentes ao processe legislativo, tomassem esses espaços para si em detrimento da soberania estatal, nessa conjuntura originou-se o fenômeno do Transnacionalismo. Outrossim, como em qualquer outro ramo científico, face a proliferação do Direito Transnacional no âmbito jurídico, diferentes teorizações e pensamentos acerca do tema foram produzidos, em especial sobre a confecção normativa em cenários globalizados. 2 A CRISE DO ESTADO NACIONAL E O SURGIMENTO DO DIREITO TRANSNACIONAL A Idade Média foi marcada pela descentralização territorial e política, em larga escala. Na pessoa do senhor feudal encontrava-se toda força política dentro de determinadas macro ou microrregiões, sistema este que perdurou por longos séculos. Entretanto, ao passo que o ser humano passou a desbravar os confins do planeta, não só os mapas e cartas cartográficas aumentaram, mas as relações entre os homens entraram em um grande processo de alteração, seja pelo crescente desenvolver econômico, como nunca antes visto na história da humanidade, seja pelo advento centralizador na figura da religião, em especial, a Igreja Católica. Inevitavelmente, com o exponencial crescimento dos mais variados ramos de uma inicial sociedade capitalista, tornou-se insustentável a manutenção do antigo modelo feudal vigente até então. Neste momento, uma certa desordem estabeleceu-se na sociedade, a qual encontrava-se em processo de transição do antigo modelo, para um novo, de cunho capitalista. E para o bem-estar da sociedade civil como um todo, em especial para a manutenção da paz e estabilidade regional, proporcionando, assim, um 274 campo aberto para a burguesia disposta a investir seu capital no comércio em pleno desenvolvimento, origina-se o chamado Estado Nacional. A partir disso a burguesia passa a confiar a centralização de todo poder político, e consequentemente legislativo, nas mãos de um ente absoluto. A figura da soberania é alterada, antes baseada na suserania, agora estava ligada a uma questão territorial, onde um Rei Soberano passou, pouco a pouco, a fazer valer as decisões do Estado perante aqueles que vivem dentro dos limites de suas divisas terrestres. Essas transformações fizeram-se acompanhar de uma descentralização administrativa, que também modificou os procedimentos pelos quais se formam e se cumprem as imposições do Estado, que passaram a ser regidos pelo ordenamento jurídico da própria administração pública (MELLO, 2003). Outrossim, a sociedade não cessou o processo de desenvolvimento inerente a condição humana. Ao passo que o Estado-nação se estabeleceu, primeiramente em seu caráter absolutista, caracterizado pela concentração de todo poder na figura de um rei soberano, novas correntes de pensamento acerca dos modelos de agrupamento social surgiram, culminando nas ideias liberais, e assim sucessivamente. Em função exatamente dessa busca insaciável por progresso, característica inerente ao ser humano, que o Estado Nacional como conhecemos até hoje, acha-se emaranhado em uma profunda crise. Tal fato decorre do aparecimento de novos agentes, no século XX, que promoveram grandes alterações na ordem estatal. Notadamente, após findado o período das Grandes Guerras, as fronteiras terrestres que dividiam os países não mais significavam um obstáculo para o intercâmbio cultural-jurídico entre estes. Em função do grande desenvolvimento das tecnologias e da própria economia, criaram-se espaços (Globalização) onde os Estados, rígidos da forma que os concebemos, não foram capazes de prestar a devida regulamentação necessária, fazendo chão para que outros agentes, através de interesses transnacionais constituídos por meio de instituições novas de difícil caracterização à luz do glossário político-jurídico moderno, tomem essas lacunas para si. Notadamente os processos de globalização, de maneira crescente, criaram um mercado mundial, uma nova ordem supra e transnacional que permite a livre circulação de capitais, mercadorias, bens e serviços (STAFFEN, 2015), por consequência, as estruturas estatais entraram em uma marcha de ruptura. 275 Procede-se, dessa forma, uma ordem global de pluralismo jurídico. Sendo que este não tem um caráter unitário, não possuindo uma estruturação específica, ou seja, um Direito entre o público e o privado, alocado entre a esfera nacional e a supranacional, denominado Direito Transnacional. O primeiro estudioso que buscou teorizar o fenômeno do transnacionalismo foi o advogado Philip Jessup, em meados dos anos 1950. Em um primeiro instante desconstruindo a ideia de um Direito Internacional, haja vista este apenas compreender as relações de um país com outro, situação não mais condizente com o novo panorama globalizado, passando a aduzir que a lei transnacional seria toda lei que regulamenta ações ou eventos que transcendem as fronteiras nacionais (JESSUP, 1956, p. 12-40), ao passo que até mesmo Tribunais nacionais poderiam basear suas decisões em direitos e precedentes internacionais ou transnacionais, sendo esta, ainda hoje, uma das definições mais difundidas do vocábulo. Apontou, de igual sorte, o processo de expansão das fontes do Direito, colocando-a como característica fundamental do processo de transnacionalidade A partir da eflorescência do Direito Transnacional no século XX, o debate político e acadêmico acerca deste não ficou inerte, haja vista as diferentes visões construídas sobre a questão ao longo do tempo, como será abordado em seguida. 3 CÉTICOS Ao trazer à baila o Transnacionalismo inúmeras “questões de ordem”, digamos assim, vêm à tona. Para elucidar as discussões mais assíduas acerca dessa problemática, duas questões emergem com maior relevância, quais sejam: A lei transnacional pode ser considerada, em seu todo, como, de fato, uma lei? Ou ainda, o Direito Transnacional pode ser considerado, em toda amplitude do termo, um Direito, propriamente dito? Para cada uma dessas questões encontra-se diversas respostas que destoam umas das outras. Por séculos a doutrina e filosofia do Direito concentraram-se em compreender o fenômeno das leis através do advento do Estado Soberano. Precisamente por esse motivo, comumente, os juristas vêm as leis como vontades ou até mesmo diretrizes provindas de um ente estatal. Aqueles que seguem essa clássica linha de pensamento jurídico, muito mais rígida no 276 que se refere a legitimidade do legislador, é tido como um Cético em relação ao Direito Transnacional. Os estudiosos filiados a essa teoria consideram impossível conceber leis elaboradas em âmbitos diversos ao nacional, haja vista ser o Estado o legítimo e único detentor do poder/legitimação para elaborar qualquer tipo de norma, e tudo que estiver fora de seu alcance é indiferente ao direito. Esta, evidentemente, é uma herança das ideias primeiras sobre nações e do próprio contrato social, onde o grande Estado, exercendo sua soberania com a anuência dos demais integrantes da sociedade, atuaria como responsável pela elaboração de normas que visam o bem viver daqueles sob sua tutela (ROUSSEAU, 1762, p. 25) e nada que esteja fora desse campo pode interessar ao Estado. Consideram que o Estado-Nação, por seu duplo conceito, relacionado a sua dimensão geopolítica, definida por suas fronteiras, assim como seus agrupamentos étnicos e culturais, referindo, assim, a noção de Estado através da territorialidade, significam uma jurisdição pautada e delimitada pelas fronteiras nacionais, onde este, pelo critério da soberania, tem autoridade para exercer controle exclusivo sobre os mecanismos de poder (LAW, 2015, p. 68-89), entre estes o poder de criar leis. Aduzem, ainda, ser o Direito um fenômeno estritamente originário dentro de uma comunidade em específico. De igual sorte, tal conceituação provem do pensamento clássico do “ius commune”, irrompido após o declínio do Império Romano, juntamente de seu Direito Canônico, dando grande ênfase para as normas construídas dentro de cada comunidade, de forma independente, conjuntura essa que levou ao fortalecimento da ideia da criação de um Estado Nacional forte, pautado pela soberania absoluta dentro de seu território. Os Céticos ainda vão além na crítica em relação a noção de um Direito em caráter Transnacional. Acreditam piamente que o problema central do Transnacionalismo é o seu caráter antidemocrático. Não se encontra como modo de formação centralizado do Direito por obra de autoridades com competência para tal (MIRANDA, 2006, p. 24), a julgar pela participação de atores estranhos à dogmática estatal no processo legislativo, acredita-se que há uma evidente violação ao processo democrático no momento em que a elaboração de qualquer tipo de normatividade acontece em qualquer 277 âmbito diverso do que o do Órgão legitimamente eleito, através da participação popular, para tal tarefa. De igual natureza, a desestruturação característica do Direito Transnacional parece problemática aos olhos daqueles que são mais suspeitos quando o assunto é legitimidade. Pela falta de um poder constituinte, a concepção do direito elaborado em esferas transcendentes às fronteiras nacionais, é tida como frágil, pois não indica um mecanismo de garantia dos mais variados direitos da forma como ocorre quando da utilização das ferramentas dos direitos internos (MIRANDA, 2006, p. 26), assim sendo necessário ter um grande cuidado com o alcance à ser dado a esse tipo de legislação, o que poderia acarretar em grandes malefícios a ordem jurídica já posta. 4 OS TRANSNACIONALISTAS Na contramão do pensamento cético, o leque de regulamentos elaborados supranacionalmente se expande rápida e exponencialmente, da mesma maneira que seus respectivos impactos na saciedade como um todo. Ao invocar o Transnacionalismo é necessário, para sua total e plena compreensão, entender que a lei possui novas fontes, locais e bases de autoridade, distanciando, em certa medida, o alcance estatal em certas questões anteriormente dominadas pelo poder soberano, a exemplo do processo legislativo. Aqueles que adotam essa visão, mais ampla em relação ao Direito, em especial acerca da expansão de suas fontes, são denominados Transnacionalistas. Os filiados a essa linha de pensamento, diferente do que habitualmente pensa-se, não negam, de forma alguma, a importância que deve ser dada à soberania estatal. Por outro lado, acreditam que no mundo moderno, globalizado da forma que é, novas fontes de Direito originaram-se e é justamente papel do Estado não ignorá-las, mas sim criar mecanismos eficientes pra promover a absorção desse corpo legislativo elaborado supranacionalmente, através da promoção de um forte intercâmbio com outros modelos e culturas jurídicas, no intuito de que o Estado, pessoalmente, na figura de seu sistema jurídico, possa prestar uma tutela jurisdicional adequada aos litígios provindos especialmente do 278 estabelecimento das novas relações do mundo onde as fronteiras terrestres, e a soberania, foram, como nunca antes, relativizadas. Em função da preocupação com as novas fontes de Direito que Philip Jessup, em meados de 1950, buscou, primeiramente, teorizar o Direito Transnacional. Tendo em vista que considerava o uso do termo “Direito Internacional” enganador, pois este sugere uma preocupação apenas com as relações de uma Nação com outras (JESSUP, 1956, p. 01), deixando de lado, assim, vários partícipes dos processos de produção normativa já existentes àquela época, refletindo diretamente nos diversos campos decisórios nacionais e transnacionais. Nesta senda, podemos afirmar que os partidários dessa corrente de pensamento creem na extensão da jurisdição através das fronteiras nacionais. Assim, abrindo espaço para que pessoas, corporações, agências públicas ou privadas ou até mesmo organizações se tornarem protagonistas sendo, de uma forma ou de outra, afetados por corpos regulamentais originários de fora da jurisdição territorial do Estado-Nação em que qualquer um destes estiver situado, ou de igual sorte se não propriamente criado, mas também validado ou interpretado por autoridades externas em relação ao país (COTTERELL, 2011, p. 512), sendo este um elemento crucial na perspectiva Transnacionalista em relação ao panorama atual. Outro aspecto de grande importância quando se fala em Transnacionalismo dentro do campo de estudo dos integrantes dessa corrente é o fato da grande importância transferida dos entes públicos para os entes e elementos privados. Aqui, há uma maior valorização da esfera privada, como Organizações Não Governamentais (ONG’s), Sociedades, Corporações, Empresas, Grupos e afins, em detrimento, precisamente, do poderio estatal posto na forma dos primórdios do Estado Soberano, pois terão a oportunidade de participar ativamente do processo de discussão e produção legislativa, da mesma forma que o próprio ente estatal. O privado sob a ótica Transnacionalista sugere que a dinâmica de produção, interpretação e desenvolvimento é primeiramente localizada junto dos atores da sociedade civil ao invés do que com da autoridade pública do Estado (COTTERELL, 2011, 513). Pontualmente por essa razão, as demandas da sociedade civil serão colocadas em primeiro lugar, inclusive em relação as demandas estatais, por isso a alegação de que qualquer regimento que pode ser reconhecido como lei, mesmo que 279 desenvolvido essencialmente por atores provindos da sociedade privada, gerará importantes reflexos na esfera pública. Os Transnacionalistas alegam que o Estado deveria “relativizar” sua soberania, assim, abraçando e reconhecendo esses regimes de regulamentação estabelecidos extraterritorialmente, sejam estes elaborados por Organizações, Corporações ou Associações, promovendo uma governança, e consequentemente, uma legislação em conformidade com este novo cenário. Destarte, o pensamento dos Transnacionalistas está diretamente ligado com a flexibilização estatal face as diversas relações globalizadas. Por conseguinte, acreditam que este cenário “sem fronteiras” deve ser visto como uma forma de promover alterações fundamentais na sociedade usando-se, para isso, do direito Transnacional. Alteração essa que passa pela reconceituação da ideia de lei estatal, que não pode mais ser vista como algo incapaz de ser desafiado, mas deve ser vista como um processo contínuo de construção que aceite suporte e auxílio de todas as fontes possíveis (GLENN, 2006, p. 468), configurando, dessa maneira, uma coexistência pacífica entre o que é nacional e o que é transnacional. 5 GLOBALISTAS Sem dúvida, de fato, os conceitos de Direito e Globalização não podem mais serem dissociados. Neste cenário, cada vez mais, a doutrina desenvolve novas perspectivas sobre esse fenômeno, estreitando em graus cada vez maiores a influência dos agentes da globalização na esfera jurídica. Não obstante, gradativamente as teorias sobre o próprio Direito Transnacional foram tomando formas e elaborando conceitos mais amplos em relação a produção de corpos regulamentais em espaços globalizados. Esses fatores podem ser observados na teoria que compreende o Direito Transnacional em seu viés mais abrangente. Aqui, este pretenderia difundir um direito global uniforme através das fronteiras. Aqueles que se associam a essa corrente, com base na construção de um direito em cima de um princípio global, são conhecidos como Globalistas. Para os adeptos dessa linha, o Transnacionalismo busca, paulatinamente, quebrar as barreiras entre as nações a fim de criar um sistema jurídico 280 universal a todos, ou seja, a difusão do ideário de uma sociedade essencialmente sem fronteiras, global. Trazem a ideia de que a legislação supranacional colocou os indivíduos, empresas, Organizações Não Governamentais e os próprios Estados sob um novo sistema de regulação, onde poderes e também restrições foram reconhecidas, assim como direitos e deveres, os quais transcendem as reivindicações do Estado Soberano, e mesmo que não sejam fiscalizados por instituições com capacidade coercitiva de execução, a quebra desses ordenamentos ocasiona severas consequências (HELD, 1995, p. 11), criando, deste modo, uma legitimidade além das delimitadas fronteiras terrestres da jurisdição estatal, em desacordo com aquilo que é posto pela clássica teoria da norma. Os Globalistas acreditam na total relativização da ideia de um Estado Nacional, afinal a economia globalizada emergiu como uma chave dinâmica na formação de um sistema transnacional de poder. Tal sistema é alicerçado em interesses superiores aos do próprio país como entidade soberana, tanto é que essa “onda global” já se espalha pelas próprias instituições estatais, como em algumas agências do próprio poder Executivo e mais especificamente, nos Tribunais nacionais onde se produzem os mecanismos necessários para acomodar direitos e deveres reconhecidamente advindos de espaços globalizados através do impulso e pressão do capital global (SASSEN, 2000, p. 111), nesse sentido, acreditam os partidários dessa linha de pensamento, que o Estado Nacional não suportou o grande avanço do poderio do capital econômico global, cedendo, em grande parte, lacunas legislativas para que outros elementos passassem a assumir um papel de maior evidência. O maior expoente do pensamento Globalista é o professor italiano Sabino Cassese. O catedrático busca elencar alguns princípios, por meio da análise dos quais pode-se exprimir suas características enquanto ordenamento, que norteiam a produção e aplicação do direito global em meio a uma evidenciada governança global sem governo (STAFFEN; OLIVIERO, 2012. p. 350). O constitucionalista elenca alguns princípios comprobatórios desta nova ordem posta: a) plurissubjetividade; b) normatização; c) administração; d) jurisdição; e) legitimação e f) justiça. Aduz, de igual maneira, a ocorrência de diversos fenômenos de caráter estrutural que podem ser observados no direto global, como a setorização dos sistemas jurídicos que operam além do Estado, concentrando em dar 281 respostas para cada caso, individualmente, assim como a inexistência de uma hierarquia dentre esses sistemas jurídicos, a escassa uniformidade, e consequente heterogeneidade, dos ordenamentos distintos que integram o ordenamento global, salienta, de igual sorte, a utilização das instituições administrativas nacionais em prol das instituições globais, a relação direta entre essas instituições e os cidadãos e a possibilidade de disputas multipolares que apresentam muitas controvérsias globais (CASSESE, 2010, p. 85-86). À medida que a comunidade internacional se desenvolveu, e se desenvolve, algumas categorias de regras ganham ênfase. A partir disso, alguns valores passaram a ser objeto de uma maior atenção por parte dos diversos agentes no cenário mundial, merecendo, assim, uma proteção especial (CASSESE, 2005, p. 16), valores esses referentes às condições mínimas de dignidade que deveriam ser garantidas a todas as pessoas, propagando, pela primeira vez a noção de direitos humanos. Esse fenômeno originou-se, em um primeiro momento após findada a Primeira Guerra Mundial, concentrando-se na proteção dos direitos dos trabalhadores, culminando na criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), similarmente, em um segundo momento, face o massacre ocorrido na Segunda Guerra Mundial, por motivos de intolerância étnica e religiosa, entre os demais abusos ocorridos no período, a comunidade internacional empenhou grande esforço na elaboração de mecanismos protetivos contra o genocídio e na manutenção dos direitos humanos mais básicos. Considerando esses e outros pontos, os Globalistas tem como sua principal bandeira a manutenção dos Direitos Humanos. Julgam que os problemas da sociedade moderna, globalizada ao extremo, não podem, de forma alguma, serem enfrentados, e muito menos prevenidos, fazendo uso exclusivo das limitadas ferramentas dos direitos nacionais internos, por isso defendem que um padrão civilizatório global deve ser buscado através do Direito Transnacional, sendo esta a única forma de garantir a aplicação dos Direitos Humanos em larga escala. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se, portanto, que restou comprovado que o Direito procura, gradualmente, expandir suas fontes de produção. O que, é claro, não 282 poderia ser diferente, pois como uma ciência social deve acompanhar o desenvolvimento da sociedade na qual ele está inserido. Com isso, da mesma forma como ocorreu no período de transição do modelo feudal para o Estado Soberano primitivo, pautado pelas ideias capitalistas, onde o direito passou a ser objeto de responsabilidade do ente estatal, com a incumbência de ditar as regras do que seria aceitável ou não para todos aqueles que habitavam seus limites terrestres, não mais se reduzindo a determinações postas por um Suserano, a ciência jurídica expandiu seus horizontes em função das novas perspectivas trazidas pelo advento da Globalização. A forma como as diferentes nações se relaciona passou por um profundo processo de alteração a partir do início do século XX. Principalmente após o final do período das guerras mundiais, em função da grande evolução das tecnologias e da economia, e consequentemente da globalização, as fronteiras terrestres já não mais significavam um obstáculo para o intercâmbio jurídico e cultural entre elas. Neste cenário, novos agentes, privados, estranhos ao clássico glossário político-jurídico, passaram a ocupar espaços onde os Estados não eram capazes de alcançar, relativizando, assim, suas respectivas soberanias e ocasionando uma quebra de paradigmas. Sob esse panorama surge um novo ramo do Direito, o Transnacionalismo. Como ocorre com todas as novas “descobertas” no ramo da ciência, seja ela humana ou natural, diferentes pensamentos acerca do tema surgiram ao passo que este se proliferou. Mais especificamente sobre o Transnacionalismo e a produção do Direito em cenários globalizados, três são as correntes mais difundidas: Céticos, Transnacionalistas e Globalistas. Sendo os céticos, como o próprio nome já traz, aqueles que desacreditam em qualquer postulado transnacional. Tal posicionamento é acarretado pelo reconhecimento do Estado como o único detentor do poder e da legitimidade para a tarefa de legislar. Por outro lado, os filiados ao pensamento Transnacionalista não negam, de forma alguma, a importância intrínseca do Estado-Nação, entretanto acreditam que na sociedade globalizada, característica do último século, novas fontes, locais e bases do Direito se originaram e é papel deste buscar absorver essa normatividade supranacional no intuito de prestar um melhor serviço jurisdicional para as demandas globais. Ainda, um tanto quanto mais radical, há a corrente dos 283 Globalistas, que entendem que o Direito Transnacional deve buscar, paulatinamente, o estabelecimento de um Direito global uniforma através das fronteiras, sendo esta a única forma de garantir a efetivação dos Direitos Humanos, haja vista que os problemas característicos da sociedade globalizada não podem ser resolvidos, muito menos previstos, com as limitas ferramentas e meios dos direitos internos. 7 REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Traduzido por Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. 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Hegemonia e Direito Transnacional?. Novos Estudos Jurídicos (Online), v. 20, 284 p. 1166, 2015 285 DIREITOS HUMANOS E RESPONSABILIDADE EMPRESARIAL: A QUEM COMPETE A PROTEÇÃO E O RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS? Regiane Nistler 145 Rubia Fiamoncini Bértoli 146 RESUMO O presente trabalho tem como objetivo geral analisar se a competência de proteger e respeitar os Direitos Humanos também recai sobre as empresas. Para tanto, traçou-se três objetivos específicos: explorar o conceito de Direitos Humanos e a crise ideológica existente na primeira parte, distinguir Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário em um segundo momento, bem como discorrer, na terceira parte do artigo, sobre a competência do Estado e de outros entes privados em efetivar os Direitos Humanos. Quanto à metodologia, utilizou-se: método de abordagem indutivo; método de procedimento monográfico; técnica de pesquisa bibliográfica. Palavras-chave: Direitos Humanos; Responsabilidade empresarial; Proteção; Respeito. ABSTRACT The present paper intends to analyze whether companies also have the duty of protecting and respecting the Human Rights. In order to discuss this topic, three specific goals were defined: exploring the definition of Human Rights and the existing ideological crisis, in the first part of the text; distinguishing Human Rights from International Humanitarian Law in a second moment; and in the third part discoursing upon the duty of the government and private entities to provide the accomplishment of Human Rights. The inductive approach, monographic proceedings and bibliographic research tecnique were used as methods in this paper. Key words: Human rights; Corporate responsibility; Protection; Respect. 286 INTRODUÇÃO Quando um tema se torna universal e cai no domínio popular, tende a perder o verdadeiro sentido e seu significado se vulgariza. Os Direitos Humanos não fogem à regra: as pessoas leigas tandem a desvalorizar a importância da expressão Direitos Humanos, atribuindo-lhe conotações pejorativas. Tornou-se imperativo recuperar seu destaque e reconhecer –lhe a essência. Trata-se de uma parte importante do Direito, que se interliga aos ramos das ciências humanas em vista de suas características, das quais se destacam a universalidade e a inalienabilidade. Os Direitos Humanos não são exclusividade de uma raça ou classe: pertencem a todos porque a todos interessam. Há que encurtar a distância entre a teoria e a prática, porque o simples e enunciado de bons propósitos não impede o vácuo que se forma entre uma e outra. Muitas vezes direitos são ignorados e as pessoas - seres humanos que são - deles não desfrutam. Impõe-se compreender a razão de ser dos Direitos Humanos e as lutas travadas até a consecução de seu reconhecimento, com o que as pessoas assimilarão sua magnitude e sentirse-ão, também, detentoras de Direitos Humanos. O presente artigo procura fazer uma análise do conceito de Direitos Humanos com foco na dignidade da pessoa humana, parte indissociável da noção de Direitos Humanos. Far-se-á, outrossim, alusão à diferença entre Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário, visto ser este último mais específico por pressupor um conflito armado. O ponto principal deste artigo, todavia, é analisar a quem compete a proteção dos Direitos Humanos. Objetivando as atitudes necessárias para a efetivação destes – de vez que nem todos desfrutam da mesma proteção e segurança – torna-se imprescindível profunda reflexão sobre os eventuais responsáveis pela promoção e proteção dos Direitos Humanos. O fatos evidenciam que o Estado, de há muito, é incapaz de resolver sozinho os problemas relativos aos Direitos Humanos, por não suprir as necessidades da população nem dar resposta aos anseios básicos da sociedade. Diante da ineficiência do Estado, outros atores vão surgindo e preenchendo as lacunas criadas pela inoperância do setor público: são empresas privadas, fundações e ONGs, que estão mudando a vida de milhões de pessoas, proporcionandolhes saúde, educação, moradia e outros direitos básicos. Em consequência, a 287 dignidade do ser humano é restabelecida pelas ações desses entes privados. Empresários se conscientizam, cada vez mais, de que possuem responsabilidades na causa humanitária e que suas atitudes podem fazer oscilar o pêndulo da balança a favor da dignidade humana. É com o intuito de discorrer sobre responsabilidades comuns em relação aos Direitos Humanos que este artigo foi idealizado. CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS Na conceituação de Direitos Humanos há uma visão amplamente compartilhada sobre o tema. Isto é, muito embora a nomenclatura possa variar, em geral, há certo consenso doutrinário sobre o que significa a expressão Direitos Humanos. Vicente de Paulo Barretto (2013, p. 25), conceitua: “Direitos humanos” é uma expressão que combina lei e moralidade e expressam desde o século XVIII basicamente o respeito à dignidade da pessoa humana, o direito à vida, à liberdade, à igualdade de todos os homens perante a lei, à segurança, à liberdade de expressão, o acesso à educação e o direito à participação política. O referido autor (2013, p. 255) complementa que a expressão “Direitos Humanos”, se refere, antes de tudo, “a uma categoria de direitos que têm o caráter de abrigar e proteger a existência e o exercício das diferentes capacidades do ser humano, que irão encontrar na ideia de dignidade da pessoa humana, o seu ponto convergente.” Luiz Cláudio Gonçalves Junior (2014, p. 171), de maneira didática expõe: A ideia de direitos humanos se traduz num direito que pertence ao ser humano. Neste sentido, não estamos falando no cidadão americano, asiático, africano ou europeu, mas em qualquer ser humano. Assim, quando falamos em direitos humanos nos referimos a algo universal, ou seja, que pertence a todas as pessoas independentemente de sua condição particular na sociedade. Isso significa que, em relação aos Direitos Humanos, pelo menos em tese, considerando sua razão de ser, não há qualquer prevalência de um ou outro povo. Os africanos merecem a mesma proteção que os europeus e americanos. Paulo Hamilton Siqueira Junior e Miguel Augusto Machado de Oliveira (2007, p. 43) aduzem que: Os direitos humanos são aquelas cláusulas básicas, superiores e supremas que todo o indivíduo deve possuir em face da sociedade em que está inserido. São oriundos das 288 reivindicações morais e políticas que todo ser humano almeja perante a sociedade e o governo. Nesse prisma, esses direitos dão ensejo aos denominados direitos subjetivos públicos, sendo em especial o conjunto de direitos subjetivos que em cada momento histórico concretiza as exigências de dignidade, igualdade e liberdade humanas. Nessa linha de raciocínio, Luiz Cláudio Gonçalves Junior (2014, p. 171) completa: “São direitos de natureza globalizante e que pertencem a todos pela simples condição humana de “ser”. [...] Os direitos humanos trazem como valor supremo a dignidade da pessoa humana”. Portanto, há consenso doutrinário acerca do que significa a expressão Direitos Humanos e o valor que ela carrega consigo. Márcio Ricardo Staffen (2015, p. 81) didaticamente expõe: [...] o ideal de Direitos Humanos deve ser compreendido como uma pretensão moral justificada, enraizada nos valores da liberdade e da igualdade, preocupado com a potencialização da autonomia pessoal, por meio da racionalidade, da solidariedade e da segurança jurídica. A vasta doutrina que explora a matéria exprime a importância de se discutir o tema. Assim afirma Bobbio (2004, p. 229): “Os direitos do homem, apesar de terem sido considerados naturais desde o início, não foram dados de uma vez por todas.” Somente após muita luta, combate e persistência - e derramamento de sangue, por consequência –, é que houve um progresso no sentido de reconhecer esses direitos elementares e buscar, de algum modo, garanti-los. Neste sentido, aludem Alfredo Culleton, Fernanda Frizzo Bragato e Sinara Porto Fajardo (2009, p. 179): “A história dos direitos humanos é a história das lutas sociais para a sua realização. Ou, dito de trás para diante, as lutas sociais sempre existiram para a conquista do que, hoje em dia, se reconhece como direitos humanos.” Muito há por fazer e, por esse motivo, é imprescindível que haja a disseminação de conhecimentos e a troca de ideias. A CRISE IDEOLÓGICA DO CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS Apesar de a doutrina conceituar Direitos Humanos de maneira correlata, sempre pontuando as principais características, tal conceito nem sempre é visto dessa maneira pela população leiga, no cotidiano da vida em sociedade. A expressão “Direitos Humanos” é, por vezes, utilizada de 289 maneira desvirtuada, distorcida. Alfredo Culleton, Fernanda Frizzo Bragato e Sinara Porto Fajardo (2009, p. 15) discorrem: [...] o termo direitos humanos é dos mais usados no meio jurídico e político atual, tanto por cientistas, juristas, sociólogos e filósofos que se ocupam do ser humano, do Estado e do Direito como pelo cidadão normal. Por sua função reguladora da legitimidade dos sistemas políticos e dos ordenamentos jurídicos e pela convicção de muitos de que constituem uma garantia para a sua dignidade e são responsáveis por garantir a sua liberdade e igualdade, a compreensão adequada dos direitos humanos é uma tarefa teórica de alcance prático. Ao mesmo tempo, é um termo emotivo que suscita sentimentos entre seus destinatários e capaz de se prestar a manipulações de todo o tipo. Assim como outros conceitos como democracia, liberdade, fascismo e respeito, para referir alguns dos mais importantes, estão no núcleo da luta política, na urgência das necessidades do momento podem fazer com que a atenção seja centrada mais nas ações e menos nas preocupações teóricas envolvidas. Os autores continuam (2009, p. 15-16): Às vezes se tem a sensação de que militantes e ativistas dos direitos humanos não sabem muito bem o que querem dizer ao usar essa palavra ou a usam entre si com diferentes sentidos, ou supondo que o outro sabe do que está falando. Podemos até falar de uma retórica dos direitos humanos, uma instrumentalização ideológica dos mesmos. Por isso a função do pensamento filosófico-jurídico é tentar esclarecer essas improcedências e buscar uma fundamentação e uma conceituação o mais universalizáveis possível. Paulo Hamilton Siqueira Junior e Miguel Augusto Machado de Oliveira (2007, p. 40), retratam essa questão: A expressão “direitos humanos” talvez seja uma das locuções que mais traga uma carga negativa e até mesmo um sentido pejorativo e de injustiça. Essa proposição é identificada com a impunidade, adstrita àqueles que defendem os marginais. É comum, nos meios de comunicação, a crítica à “turma dos direitos humanos”, sempre identificada com o grupo de pessoas que só defendem os “direitos dos bandidos”. Esse conceito se afigura como errôneo, pois os referidos direitos são inerentes à toda sociedade. Confirmando tal acepção negativa, aduz Álvaro Lazzarini (2001, p. 1516): Os marginais, por exemplo, dizem que os “Direitos Humanos” são os “Direitos dos Manos”, ou seja, da marginalidade. O povo ordeiro tem dado também tal conotação, quando critica os defensores dos” Direitos Humanos”, dizendo que eles só se preocupam com os bandidos e não com as suas vítimas. Os Direitos Humanos transcendem essa perspectiva de “só proteger bandidos” ou grupos minoritários. Significam muito mais, não dizendo respeito somente a uma classe ou uma determinada camada social, embora estas sejam as que mais precisam de tutela, na maioria das vezes. Os 290 Direitos Humanos são de toda a humanidade. Interessante a resposta de Kenneth Roth, CEO da Human Rights Watch ao ser entrevistado pela repórter da revista Veja, Nathalia Watkins. A repórter perguntou (2016, p. 20): “Por que alguns cidadãos e grupos políticos, inclusive no Brasil, acusam ativistas dos direitos humanos de defender bandidos?” O entrevistado respondeu (2016, p.20): É importante tratar todos, até terroristas, de forma humana. A razão pela qual é fundamental ter um julgamento criterioso e sem tortura é que isso protege qualquer pessoa de ser acusada injustamente de criminosa. Caso contrário, teríamos de deixar a polícia decidir quem é criminoso ou não. O papel da polícia não é punir, é investigar crimes e prender suspeitos para que eles sejam levados a julgamento. O que mais preocupa, no Brasil, é que 40% dos detentos estejam esperando julgamento. Isso gera superlotação e condições subumanas nas prisões. Além disso, o que agrava ainda mais a situação no Brasil é o fato de que, ao sair das prisões, são raros os casos de reeducação ou ressocialização. Tais condições subumanas, aliadas, muitas vezes, à impunidade e à percepção errônea do verdadeiro problema relativo aos Direitos Humanos por parte da população e daqueles que estão no comando e que são, portanto, responsáveis pelos seus atos, faz com que as violações de hoje sejam sentidas amanhã, porém, com mais força e maior poder de destruição. O caos aumenta. Há que se superar tal visão deturpada, e por vezes, preconceituosa. Importante é discutir, debater, propagar ideias e experiências. Ainda não houve a conscientização geral de que o tema Direitos Humanos deve ser preocupação de todos, não só pelos princípios morais que giram em torno dessa temática, mas porque o impacto que sua proteção ou violação gera, é sentido por todos, de uma maneira ou de outra. É um assunto que possui repercussão global. O que acontece na África não é problema tão somente da África, e a situação dos imigrantes não é problema apenas da Europa. Não se trata de um problema isolado. A curto ou a longo prazo, seja pelo altruísmo ou pelo humanitarismo, seja pela questão econômica, os efeitos de tais violações serão sentidos por todos. Somente a conscientização global da necessidade de discutir os Direitos Humanos (em outros ambientes que não apenas o acadêmico), evidenciará os efeitos prejudiciais da omissão. 291 DIREITOS HUMANOS E DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO Outro detalhe importante a respeito de Direitos Humanos é que estes não se confundem com Direito Internacional Humanitário, que, nos dizeres de Sidney Guerra (2015, p. 45): É, definitivamente, um corpo de normas internacionais, de origem convencional ou consuetudinária, destinado especificamente a ser aplicado nos conflitos armados, internacionais ou não internacionais, que limita o direito das partes em conflito de escolher livremente os métodos e os meios utilizados na guerra, ou que protege s pessoas e os bens atingidos, ou que possam ser atingidos por esse conflito. Esse Direito não tem a pretensão de proibir a guerra, nem a ambição de definir sua legalidade ou legitimidade, mas de ser aplicado quando o recurso à força foi infelizmente imposto e o que resta é reduzir o sofrimento das pessoas que não participam ou que deixaram de participar das hostilidades. Isto é, diferentemente dos Direitos Humanos que devem ser protegidos em todos os Estados e a qualquer tempo independentemente de haver guerra ou não, o Direito Internacional Humanitário, para ter atuação, pressupõe um conflito armado. Neste sentido, Leonardo Nemer Caldeira Brant e Larissa Campos de Oliveira Soares (2009, p. 607) expõem: Tem a finalidade de reger as normas referentes à condução das hostilidades e as normas de proteção e distinção entre combatentes e civis em casos de conflito armado. A relação jurídica que esse ramo do Direito abrange é entre as partes que estão em conflito armado, sejam elas Estados, grupos insurgentes ou outros grupos armados organizados. Ou seja, a nomenclatura é diferente e o objetivo do Direito Internacional Humanitário é mais específico, embora haja também, através dele, a preservação dos Direitos Humanos. Afinal de contas, fala-se de um ambiente hostil e belicoso que necessita de assistência imediata e eficiente para minimizar os resultados das selvagerias cometidas e extermínio de direitos, sendo esta a razão de ser do Direito Internacional Humanitário. Ao preservar e proteger Direitos Humanos de pessoas que estão em um conflito armado ou em outra situação calamitosa, respeita-se Direitos Humanos. A NECESSIDADE DE ATUAÇÃO EM PROL DOS DIREITOS HUMANOS. 292 Mesmo que a luta pela proteção e efetivação dos Direitos Humanos seja antiga, cada vez mais ela é atual e precisa se fortalecer. Apesar dos avanços duramente conquistados e da frequente troca de informações e experiências, em muitos aspectos, parece haver uma regressão. É o caso da situação dos imigrantes que chegam todos os dias à Europa em busca de melhores condições de vida e são mal recebidos. Outros nem conseguem chegar, perecendo pelo caminho, incluindo-se aí pessoas de todas as idades: de bebês de colo a idosos, todos aspirando uma melhor condição de vida e, consequentemente, um modo de preservar sua dignidade. Conforme visto, a DUDH trata da dignidade e da igualdade dos seres humanos, estabelecendo que todos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Na prática, a Declaração, por si só, não surte os efeitos pretendidos. Diferentemente do que preconiza o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, há quem defenda não se tratar de direitos inatos, dependendo de uma pluralidade de ações para produzir efeitos. Vicente de Paulo Barreto (2013, p. 29-30) afirma: A igualdade não é natural, ela deve ser conquistada Dessa forma, os direitos humanos têm força de declarações morais ao afirmar em sua essência que os indivíduos não são livres e iguais, mas devem ser. [...] Os direitos humanos são uma utopia na qual as pessoas mantêm uma expectativa de desejo do Outro. Estas considerações tocam em um ponto central: não é por existir uma Declaração Universal dos Direitos Humanos que estes estarão seguros, protegidos, invioláveis. Aliás, para alguns Estados, isso pouco significa. Sidney Guerra (2015, p. 40) comenta: Hoje não há povo que negue uma Carta de direitos e o respectivo mecanismo de efetivação, o que, todavia, ainda não significa uma garantia de justiça concreta, porquanto esses direitos podem variar ao sabor do pensamento político ou filosófico informador de determinado Estado. Ou seja, não basta que os Direitos Humanos estejam postos em uma Declaração Universal. A atitude humana em prol da sua proteção não só é importante como é indispensável. Sem ela, não há convenção ou declaração capaz de garantir a proteção desses direitos básicos. Bobbio elucida a questão (2004, p. 43): Quando se trata de enunciá-los, o acordo é obtido com relativa facilidade, independentemente do maior ou menor poder de convicção de seu fundamento absoluto; 293 quando se trata de passar à ação, ainda que o fundamento seja inquestionável, começam as reservas e as oposições. O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político. Portanto, considerando que para a proteção dos Direitos Humanos se exigem condutas efetivas, as perguntas cabíveis são: condutas De Quem? De Quem é a responsabilidade pela proteção e respeito aos Direitos Humanos? Seria (ainda) dos Estados, ou, com o fenômeno da globalização, ultrapassou-se essa visão? Cabe uma análise mais profunda. O ESTADO COMO PROTETOR DOS DIREITOS HUMANOS: AS DIFICULDADES. O fenômeno da globalização mudou o mundo fazendo com que as fronteiras dos Estados (tão importantes outrora), fossem um mero detalhe. Roberto Epifanio Tomaz (2013, p. 214) esclarece: [...] a globalização tem alterado drasticamente o modo de vida humano, intensificando as relações de troca, de comunicação, e de trânsito, para além das fronteiras nacionais, a expansão massificada das telecomunicações, turismo, cultura, com reflexos no ecossistema e nas relações das organizações governamentais e não governamentais [...] O mundo é encarado sob outra perspectiva. Hoje existem muito mais atores dirigentes dos negócios e das políticas do que Estados. Evidente que os Estados tiveram participação fundamental nas conquistas referentes aos Direitos Humanos, porém, tão somente eles não são capazes de garantir estes direitos. Com efeito, alude Doglas Cesar Lucas (2009, p. 51): Apesar de os Estados nacionais serem identificados como agentes importantes na instituição dos direitos humanos em cada país, de acordo com as suas necessidades específicas, é forçoso reconhecer que um certo esgotamento tomou conta da capacidade de esses Estados atenderem às demandas de ordem global. Não dá para esperar que o Estado promova a proteção dos Direitos Humanos sozinho. Mesmo porque, conforme ensina Márcio Ricardo Staffen (2015, p. 82-83): “Como é possível crer na condição de derivação dos Direitos Humanos a partir do Estado se, por outro lado, os Estados são os principais responsáveis por frequentes violações dos Direitos Humanos?” Muitos Estados não conseguem sequer prover os mais básicos direitos de maneira efetiva, em que pese terem ratificado a DUDH. O que é pior: não 294 só não conseguem prover tais direitos, como suas ações acabam por destruir qualquer esperança da população no sentido de possuir uma vida mais digna. Despontam aí, os efeitos prejudiciais que a corrupção deixa nos países em que sua prática parece ser a regra e não a exceção. Pessoas morrem pela falta de saúde, pela falta de segurança, e pela falta de oportunidade por não terem educação de qualidade. Os crimes, consequentemente, aumentam, e o que se vê é uma bola de neve que cresce a cada ato de incompetência, a cada ação de corruptos, e a cada conivência ou omissão. Nesses casos, em vez de tutelar os Direitos Humanos, o Estado inoperante os extingue (apesar dos discursos demagógicos e populistas). Parag Khanna (2011, p. 25), bastante direto, expõe o problema, afirmando que muitos governos: São mais reguladores do que provedores: os melhores entre eles cobram impostos ampla e justamente, garantem tribunais eficientes, protegem direitos de propriedade, defendem fronteiras nacionais, policiam com justiça e honestidade, mantêm a estabilidade econômica e oferecem alguma rede de seguridade social. Quantos governos poderíamos citar que fazem isso? Em muitas partes do mundo, cada vez mais grupos cívicos, instituições religiosas de caridade e empresas que oferecem esses bens básicos. Poucos cidadãos ainda dizem “isso é obrigação do governo” e esperam que o serviço seja executado. Ou seja, por mais que o Estado tenha um papel relevante, é ingenuidade confiar tão somente ao Estado a função de proteger, respeitar e garantir os Direitos Humanos, como se o poder público tivesse efetivo poder (e boa vontade) para tanto. Até mesmo porque, com a globalização e a frequente troca de informações (muitas em tempo real), os problemas que dizem respeito aos Direitos Humanos possuem relevância global. Aduz Doglas Cesar Lucas (2009, p. 43-44): “Nada é tão longe que não possa mais interessar ao local e nem tão localizado que não possa influenciar outros lugares.” Neste sentido, então, a visão de que os Direitos Humanos são competência somente dos Estados soberanos fica ultrapassada. O referido autor (2009, p. 44) afirma que os Estados possuem dois desafios: Já não são mais capazes de garantir, de forma autônoma e soberana a prevalência dos projetos nacionais ou comunitários de emancipação sobre a ordem internacional dos acontecimentos econômicos, políticos, culturais, religiosos, etc.; por outro lado, sua soberania não é suficiente para enfrentar de maneira mais apropriada os problemas que afetam a humanidade como um todo e, especialmente, para fomentar uma cultura políticojurídica transnacional de direitos humanos, defendida mais objetivamente a partir do segundo pós-Guerra Mundial. 295 Infelizmente, o Estado não supre as necessidades dos indivíduos. Aliás, o Estado nunca conseguiu cumprir sequer as mais básicas das carências humanas. Tanto é que, ainda hoje, em pleno século XXI, há pessoas morrendo pela falta de comida, água, remédios e por doenças que, em outras partes do mundo, são facilmente tratadas e curáveis. Neste sentido, aduzem Maurizio Oliviero e Paulo Márcio Cruz (2013, p. 39): Atualmente, o Estado não consegue mais dar respostas consistentes à Sociedade diante da complexidade das demandas transnacionais que se avolumam continuamente. Os problemas sociais aumentam em proporções preocupantes. Tudo leva a crer que o principal fator dessas crises cíclicas esteja localizado exatamente no próprio Estado Constitucional Moderno. Esses problemas sociais, dentre os quais se encontram violações aos Direitos Humanos, são implicações que, segundo Doglas Cesar Lucas (2009, p. 37): [...] afetam toda a humanidade, não podendo ser enfrentadas de forma local e nem ser balizadas por uma cultura de direitos humanos que deposita sua validade apenas no reconhecimento positivo de cada país ou nas práticas culturais que pontuam a tradição de uma comunidade. De fato, a nova conformação do mundo atual reivindica uma nova abrangência do direitos humanos e um conjunto comum de reciprocidades e de responsabilidades de alcance global. O Estado falhou e continua a falhar. Abusos são cometidos diariamente e pouco se consegue. Após o 11 de Setembro, muitas atitudes violentas foram tomadas, principalmente pelos Estados Unidos da América, em nome da segurança da população. É evidente que o combate ao terrorismo deve ocorrer e deve surtir efeitos, mas, inocentes morrem por excessos cometidos nesta guerra entre ocidente e muçulmanos extremistas. Essa batalha parece não ter fim. Gisella Martignago e Patricia Marques Freitas (2012, p. 273) discorrem que: Tais situações apenas demonstram o abandono tanto pelos EUA quanto por outros países, do multilateralismo nas ações militares e pelos abusos dos direitos humanos em nome da luta contra o terrorismo. A pauta do dia de todos os governantes deve dirigir-se para a existência de um sistema mundial que funcione, e por meio do qual os povos do mundo possam enfrentar juntos todos os desafios, para que assim produza efeitos os direitos internacionais elaborados e ratificados por vários Estados. Ainda que um país não esteja em guerra, sua omissão para com a população civil é um claro desrespeito aos Direitos Humanos. Com exceção de radicais religiosos, a grande parte da população só quer paz e seus 296 direitos respeitados. Sem o apoio de organismos internacionais fornecendo abrigo, comida e medicamentos, as pessoas (crianças, jovens e idosos) ficam, eventualmente, abandonados à própria sorte. Para muitos, inclusive governantes, as Convenções, Pactos e Declarações de Direitos Humanos pouco significam. Não se pode permitir, através da ação ou da omissão, que os avanços até aqui conquistados, sejam reduzidos ou até mesmo, ignorados. Mesmo que haja falhas, persiste a responsabilidade estatal em preservar os Direitos Humanos, uma vez que, conforme destaca Doglas Cesar Lucas (2009, p. 52): “[...] a razão do Estado não pode ser mais forte que o direito da humanidade, sob pena de uma visão míope da soberania ser a causa de uma paralisia brutal a afetar a universalidade dos direitos humanos”. As pessoas que detêm o poder de tomar decisões importantes, de reflexo nacional e internacional, devem fazê-lo sob a ótica dos Direitos Humanos. Neste sentido o referido autor (2009, p. 51) afirma que os Direitos Humanos: “devem exercer um protagonismo e uma prevalência sobre as soberanias nacionais, servindo de referência jurídico-moral para as relações internacionais, independentemente dos critérios nacionais de validade”. Assim, devido à omissão governamental, outros atores surgem e assumem o lugar do Estado com o papel de respeitar, garantir e proteger os Direitos Humanos onde quer que seja. A GLOBALIZAÇÃO E A RESPONSABILIDADE EMPRESARIAL EM RELAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS. A globalização mudou até mesmo a forma de encarar os Direitos Humanos. Novos protagonistas surgiram e estão agindo cada vez mais. Os destacados papéis assumidos por esses novos organismos independem de Estados ou Governos. Consoante afirma Márcio Ricardo Staffen (2015, p. 78): “[...] não há sentido a manutenção espacial do ideal de Direitos Humanos apenas nos territórios estatais ou, dos tratados internacionais vinculados originalmente aos Estados”. É devido a essa espécie de “limbo” que surgem as instituições privadas transnacionais que possuem responsabilidades para com a proteção dos Direitos Humanos. A 297 Globalização é que faz possível tal mudança. Conforme pontua Doglas Cesar Lucas (2009, p. 69): A ordem mundial emergente suscita novas formas de consciência espaço-tempo e constituise pela interdependência cada vez mais contundente entre os sujeitos clássicos do Direito Internacional (principalmente os Estados isolados) e os novos atores que povoam o universo dos acontecimentos políticos, econômicos, culturais, etc., em escala mundial, entre os quais podem ser citados os novos blocos regionais, as empresas transnacionais, as organizações não-governamentais com alcance praticamente mundial, os organismos internacionais, enfim, o embrionário aparecimento de uma sociedade internacional contemporânea. Tanto Estados como esses outros atores internacionais possuem responsabilidades. Somente com essas responsabilidades comuns e ações direcionadas à proteção dos Direitos Humanos é que se superará alguns obstáculos hoje tão evidentes. Doglas Cesar Lucas (2009, p. 65) continua: Uma cultura de responsabilidades comuns, uma ética para além das nações e das soberanias, representa uma reação à singularidades do mundo moderno, que parece erodir-se aos poucos diante das novas tendências globais, uma reação centrada em bens, valores e interesses humanos universais capazes de obrigar o homem a respeitar e a se responsabilizar pela preservação da vida, do planeta e de seus semelhantes, independentemente de sua nacionalidade, etnia, religião, etc. Num cenário em que o mundo se constitui como um mosaico de problemas, que os Estados não protagonizam quase nada isoladamente, que aumentam os níveis de interdependência global em praticamente todos os campos de sociabilidade, que os objetivos da humanidade caminham para uma convergência cada vez mais indivisível, comunidades separadas e isoladas, soberanas a todo custo, diminuem as possibilidades de diálogo, restringem o poder da ação política em escala global e impedem que a responsabilidade se dê em razão de temas que interessam à humanidade do homem como tal. As necessidades do mundo moderno ultrapassam a noção de soberania estatal. O autor Parag Khanna (2011, p. 35-36), de maneira mais direta enfatiza o papel desses novos atores e das responsabilidades comuns: Agências especializadas, como o Programa Alimentar Mundial (PAM), o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) não apenas salvam vidas em lugares aos quais as grandes potências não dão a menor importância, mas durante o processo mudam a forma de o mundo lidar com questões como segurança alimentar e saúde pública – questões de grande impacto na estabilidade política. Como não são instáveis por excesso de carga nem centralizadas, seu trabalho é executado exatamente no local onde estão os problemas, e elas entusiasticamente fazem parcerias com empresas e ONGs para desempenhar suas tarefas. Essas organizações merecem o Prêmio Nobel que ganharam. Quanto ao resto, o frouxo consenso que permitiu ao Conselho de Segurança da ONU, ao Banco Mundial e as outras entidades se arrestarem por tanto tempo, funcionando à maneira medíocre de sempre, não existe mais. Vivem um bizarro paradoxo: espera-se que elas estimulem a eficiência, mas é muito mais eficiente 298 contorná-las. [...] A noção de responsabilidade vem, fundamentalmente, do uso estratégico da vergonha. Com tanta sofisticação tecnológica no mundo, parece que só o nosso desenvolvimento pessoal íntimo ficou para trás – e a vergonha acelera nossa curva de aprendizado. Esses outros atores, mesmo as empresas transnacionais possuem responsabilidades. Alguns cumprem seu papel fazendo muito mais do que os Estados. É o caso das Fundações filantrópicas espalhadas pelo mundo e das ONGs que levam comida e remédio para ambientes esquecidos. Se não fosse a ação dessas instituições, essas pessoas não teriam a quem recorrer. Parag Khanna (2011, p. 52-53) destaca o resultado de tais ações: Bill e Melinda Gates inicialmente aproveitaram a deixa de Ted Turner, fundador da CNN, que doou 1 bilhão de dólares para criar a UN Foundation e ajudar o Unicef e o Fundo de População das Nações Unidas, e fizeram parcerias com empresas como a Vodafone para combater o sarampo e a Aids. A UN Foundation gastou mais de 1 bilhão de dólares, e fez parcerias com mais de cem ONGs para distribuir 10 bilhões de doses de vacina contra a pólio para dois bilhões de crianças. Agora essas parcerias são a norma, e o time de futebol Barcelona contribui com 2 milhões de dólares para projetos do Unicef, além de usar seu logo nas camisas. [...] O financiamento empresarial no combate à Aids tem aumentado de ano para ano. O autor continua a enfatizar o que essas instituições estão fazendo pela população mundial, promovendo saúde, educação e fornecendo o mínimo básico necessário para uma vida mais digna (2011, p. 56): A Oxfam usa seu orçamento de 500 milhões de dólares para fornecer rádios aos mantenedores da paz da ONU em Ruanda (que não têm rádio), comprar ações de gigantes da indústria farmacêutica, como a GlaxoSmithKline, a fim de pressionar sua política de vacinas e publicar importantes relatórios sobre clima para subsidiar tecnologia limpa em países pobres. Críticos do crescente poder das ONGs perguntam, com malícia, em nome de quem elas realmente falam. A resposta é que sua legitimidade vem da autoridade de sua expertise, imparcialidade e representatividade, bem como da transparência de suas operações. Em muitos sentidos, é mais fácil cobrar-lhes responsabilidades do que aos governos: quanto mais expostas, mais prestam contas aos doadores, às instituições de caridade, aos clientes e à própria concorrência. Seu financiamento certamente é mais eficaz do que o de fontes oficiais: quase todo o dinheiro vai para operações e parceiros na linha de frente, o que as torna menos suscetíveis de desperdícios e intrusões governamentais, ao mesmo tempo que treinam a sociedade civil. Muitas ONGs e empresas conseguem fazer um trabalho magnífico através de recursos financeiros despendidos em prol de ações humanitárias. Com esse dinheiro, muito se consegue fazer pelos mais necessitados. É, sem dúvida, uma iniciativa que demonstra como o mundo poderia ser 299 melhor se todos tivessem objetivos comuns e se engajassem na causa que é, antes de tudo, - porém não apenas- uma questão moral que reflete na consciência de cada um. Parag Khanna (2011, p. 56) elenca outros exemplos de organizações que estão empenhadas na causa humanitária: Outras superONGs, incluindo CAR, Save the Children e Mercy Corps, também se impuseram como participantes mundiais independentes. A capacidade de usar a influência e o poder da tecnologia e do capital lhe permite passar por cima de governos. Elas já não se referem aos seus contribuintes como doadores, mas como investidores. As principais ONGs de assistência humanitária (cujas doações anuais ultrapassam 20 bilhões de dólares) juntaram-se à Microsoft numa plataforma de “Conexão ONG” para que esta os assista nas melhores formas de compilar e compartilhar. Esse tipo de planejamento interoperacional é o que se espera de países-membros da Otan – e agora qualquer um pode fazer isso. Aqueles que deveriam tomar atitudes, muitas vezes não tomam. Por outro lado, instituições e organizações surgem e se propõem a fazer o trabalho, levando, conforme já dito, além de comida e medicamento, um pouco de esperança àqueles mais necessitados. O fato de prestarem atenção ao que acontece ao redor do mundo (violações e supressões de Direitos Humanos), e de fornecer uma rápida resposta a esses acontecimentos, já demonstra uma maior preocupação. A responsabilidade passa a ser de um número maior de organismos e instituições. As parcerias costumam produzir mais efeitos e vantagens do que a ação isolada. É o caso, por exemplo, do Fundo Global para combate à AIDS, tuberculose e malária, criado em ٢٠٠٢, com o objetivo de, conforme relata Philip Kotler e Nancy R. Lee (٢٠١٠, p. ٥٤): “aumentar substancialmente o financiamento global para intervir em três doenças espalhadas por todo o planeta; essas doenças matam mais de ٦ milhões de pessoas a cada ano”. Ainda sobre essa instituição, continuam os referidos autores (٢٠١٠, p. ٥٤): O Fundo Global foi criado como uma fundação que funciona como uma instituição beneficente ao mesmo tempo pública e provada. Ele não faz parte da Organização Mundial da Saúde das Nações Unidas nem do Banco Mundial, embora ambas contribuam com recursos para lutar contra essas doenças. O Fundo Global funciona como um mecanismo de financiamento mais do que como um órgão implementador. Ele tem um painel de revisão técnica que revê e concede recursos às aplicações que mereçam concessões. As concessões só são renovadas depois de uma revisão rigorosa dos resultados atingidos. O Fundo Global já concedeu US$ 10 bilhões em 136 países para combater essas doenças. Em agosto de 2006, a Fundação Gates contribuiu com US$ 500 milhões para o Fundo Global, dizendo que o fundo era “uma das iniciativas de saúde mais importantes do mundo”. 300 Existem pessoas e instituições engajadas e predispostas a mudar a realidade mundial em diversos aspectos. Muitos agem localmente, outros, todavia, conseguem fazer a diferença em âmbito global. Philip Kotler e Nancy Lee (2010, p. 56) também destacam o papel da Fundação Bill & Melinda Gates: A Fundação já desembolsou US$ 14,4 bilhões. Bill e Melinda Gates decidiram concentrar suas concessões em algumas áreas em vez de contribuir para todas as causas. [...] Decidiram então concentrar-se em cinco áreas principais: Reduzir as doenças que mais matam no mundo – AIDS, malária e tuberculose Financiar vacinações e imunizações Oferecer microfinanciamento para os pobres Melhorar a produtividade agrícola por meio de uma revolução verde na África Melhorar o ensino médio público nos Estados Unidos. Sem dúvidas, a Fundação Bill & Melinda Gates exerce um papel nobre. O mais interessante é que, conforme Philip Kotler e Nancy Lee (2010, p. 56) relatam: A Fundação Gates não trabalha sozinha, e tem como aliadas outras fundações beneficentes como Rockefeller, Michael and Susan Dell, Hewlett, etc. A Fundação Gates ajudou a dar início à GAVI Alliance [...] com uma contribuição de US$ 1,5 bilhão. GAVI é sustentada por 17 governos doadores também pela União Europeia. A aliança distribuiu vacinas (tétano, hepatite B e febre amarela) a 138 milhões de crianças em 70 dos países mais pobres do mundo, salvando vidas ao evitar mais de dois milhões de mortes prematuras. Trata-se de garantir os mais básicos dos direitos humanos: o direito à vida e à saúde. O trabalho conjunto é uma necessidade atual. Philip Kotler e Nancy Lee (2010, p. 64-65), tratando especificamente da questão da pobreza (inúmeras vezes interligada com as violações dos Direitos Humanos, uma vez que nos ambientes mais pobres não há saúde, alimentos e educação) explicam: Ajudar os pobres a escapar da pobreza não é apenas responsabilidade do governo. A redução eficaz e sustentável da pobreza depende da ação de uma parceria entre governo, organizações sem fins lucrativos e empresas. A sinergia surge quando os três trabalham em conjunto. Em qualquer setor ou segmento, a sinergia de resultados também ocorre quando a força de um compensa a fraqueza do outro ou dos dois outros. Sobre a responsabilidade empresarial na redução da pobreza, os autores continuam (2010, p. 278): 301 A responsabilidade social corporativa é algo relativamente recente na vida de qualquer empresa. No século passado, as empresas pediram e exigiram mais direitos sem admitir as responsabilidades proporcionais vinculadas a esses direitos. [...] O compromisso sério com a responsabilidade social corporativa começou quando o governo e os grupos de cidadãos exigiram reformas e solicitaram que as corporações corrigissem os casos de abuso de poder corporativo conhecidos. Nem todas as empresas e nem todos os organismos que se propõem a ajudar conseguem, de fato, preencher o mínimo exigido. Existe, ainda, muita violação e desrespeito também por parte dos órgãos não estatais, assim como por ações e omissões dos governantes. Deve haver um meio de coibir tais práticas e enaltecer as condutas exemplares, como, aliás, já se está fazendo. Márcio Ricardo Staffen (2015, p. 31) relata: Outro expediente novo que se observa é o surgimento de instrumentos para respeito à norma manejados na contramão dos métodos estatais clássicos, ou seja, ao invés da sanção pelo descumprimento, o rumo é alterado pela promoção direta dos sujeitos que voluntariamente adimpliram suas obrigações de modo que os reticentes se inserem em uma posição de ampla exclusão. Neste quadro, bons exemplos podem ser extraídos da articulação encabeçado pela IATA – Associação Internacional de Transportes Aéreos, com entes governamentais, empresas privadas e companhias aéreas; no caso do direito à alimentação, como Direito Humano elementar, entre FAO, GATT, importadores e exportadores de matérias agropecuárias, arquitetando verdadeiras cláusulas sociais em relações transnacionais, ou ainda, o papel da rede hoteleira Sabena durante o genocídio em Ruanda. Ou seja, as empresas que protegem e respeitam os Direitos Humanos, devem ser reconhecidas, a fim de que continuem com essas práticas, que beneficiam muitos mais além dos seus chefes (ou sócios). Philip Kotler e Nancy R. Lee (2010, p. 280) discorrem sobre o papel das empresas: “As grandes corporações globais estão aqui para ficar porque o mundo precisa delas. Apesar de sua parcela de transgressões, elas têm muitos pontos positivos. A questão é como recanalizá-las em direções mais construtivas e responsáveis”. Não dá para ignorar o trabalho feito por algumas corporações. Os investimentos do setor privado em causas humanitárias, em inúmeros casos, é superior ao investimento dos Estados (que existem para, entre outras coisas, proporcionar bem-estar e assegurar uma vida digna à população). Philip Kotler e Nancy R. Lee (2010, p. 281) exemplificam: Em termos de apoio direto para a redução da pobreza, sabe-se que muitas corporações são filantrópicas. Algumas criam sua própria fundação que assume projetos de alívio da pobreza, como a Fundação Coca-Cola. Outras contribuem com regularidade para uma ONG dedicada 302 a ajudar os pobres, como as 118 grandes empresas nas Filipinas que formaram e apoiaram a Philippine Business for Social Progress (PBSP). E os autores continuam demonstrando os resultados dos investimentos do setor privado nessas causas (2010, p. 282): A Global Business Coalition é uma aliança de cerca de ١٧٠ corporações internacionais que se comprometeram a combater a epidemia de AIDS por meio do conhecimento especializado das empresas-membros em medicamentos e produtos antiaids, em prestação de serviços e distribuição, em comunicação de massa e publicidade e em planejamento e implementação de gestão de programas. A ONU tem elogiado as empresas farmacêuticas que concordaram com um desconto substancial nos preços de remédios essenciais contra AIDS nos países africanos afetados. Ainda sobre as atribuições do setor privado, os autores supra referidos (2010, p. 282) destacam as ações da Philippine Business for Social Progress (PBSP), uma ONG criada em 1970, na qual: As empresas-membros da PBSP comprometeram-se a contribuir anualmente com 0,6% de sua receita líquida. O papel da PBSP no alívio da pobreza é ser um “financiador direto” e “intermediário” para o mercado de microempreendedores pobres que precisam de microfinanciamento. Como financiador, a PBSP usou as contribuições anuais das empresasmembros para fornecer fundos que as organizações comunitárias locais, como cooperativas e ONGs a nível das aldeias, pudessem emprestar a seus membros microempreendedores. Em seu papel de intermediário, a PBSP uniu-se a órgãos nacionais e estrangeiros na economia formal cujos recursos eram negados aos pobres por algum motivo”. Cada qual (Estados e demais instituições, inclusive empresas transnacionais) precisa fazer sua parte (através de ações com repercussão local e/ou global). Trata-se de uma necessidade do mundo moderno e globalizado. Márcio Ricardo Staffen (2015, p. 24) leciona: [...] o problema de governar o mundo se funde em contextos que perpassam por alianças militares (OTAN); instituições intergovernamentais (ONU, UNESCO, UNICEF, OMS e afins); organismos regionais (Conselho Europeu); agremiações pós-imperialistas (Commonwealth, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa); ordenamentos quase políticos (União Europeia, Mercosul, UNASUL); summit (G-20, G-8, BRICS) e outras milhares de ONGs. Somam-se a esse conjunto de atores, ainda, as empresas, que, conforme discorrido, exercem um papel importante em várias partes do mundo (partes, aliás, ignoradas por outros atores). É por meio das ações conjuntas de todos esses organismos e instituições que haverá maior avanço no 303 combate às violações dos Direitos Humanos em âmbito global. Márcio Ricardo Staffen (2015, p. 25) reitera: As vertentes do Direito Global articulam-se em múltiplos níveis, governos, administrações locais, instituições intergovernamentais, cortes ultra-estatais e nacionais, networks, organismos híbridos (público-privado), organizações não governamentais e dos próprios indivíduos. Diante dos dados que demonstram os resultados dos investimentos do setor privado em causas humanitárias, é inegável que as Empresas contribuem e poderão contribuir ainda mais para que os Direitos Humanos sejam protegidos. As grandes empresas já perceberam que suas ações podem salvar vidas (literalmente). Philip Kotler e Nancy R. Lee (2010, p. 287) arrematam: As empresas podem desempenhar um papel cada vez maior na luta contra a pobreza. Depois de muitos anos concentrando-se apenas em obter lucros, elas estão começando a assumir responsabilidades sociais, em parte como resultado da pressão de ativistas [...] e das novas leis, bem como por sua conscientização. As empresas têm atuado individual e coletivamente para enfrentar problemas como HIV, a malária e outras doenças, além de baixar os custos de alimentos e outros produtos e serviços a fim de torná-los mais acessíveis aos pobres. Com essa importante posição, as empresas (algumas delas) perceberam que são responsáveis e que muitas pessoas delas dependem. Mais do que uma questão de imagem, é uma questão moral, que afeta a cada um de maneira diferente. Se quem deveria fornecer ajuda, não fornece, e quem, por outro lado, poderia mesmo sem a obrigação de fornecer, mas que também não fornece, como as pessoas necessitadas podem sobreviver? É evidente que, para a proteção dos Direitos Humanos e sua efetiva garantia, são necessários, além de boa vontade e altruísmo, recursos financeiros. Para superar alguns problemas que afetam os seres humanos, precisa-se de verbas bem administradas e destinadas ao fim a que se propõem. Por esses motivos, as empresas têm papel de destaque, mas não somente elas. As alianças são o caminho para a paz e a tolerância. Problemas sempre existirão. São inevitáveis. A solução para diminuir a quantidade e a dimensão dos problemas globais e que exigem uma resposta é a participação conjunta de todos esses órgãos para a efetivação dos Direitos expostos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Quando se diz que os problemas são globais, não se está dizendo que o governo deve ser global (STAFFEN, 2015). Os problemas são globais porque se espraiam 304 mundo a fora, em maior ou menor frequência, conforme já dito. Evidente que essas alianças entre os entes referidos não se dará o tempo todo para combater todos os tipos de violações aos Direitos Humanos e/ou promoção de tais Direitos. Mas, o que permitirá um avanço em termos de proteção de Direitos Humanos é a conscientização dos entes, das instituições, das pessoas físicas, além, é claro, dos governantes, de que as violações que acontecem pelo mundo (doenças, terrorismo, guerras civis, falta de comida e remédio, corrupção e intolerância religiosa) são responsabilidade de todos, e não somente do Estado, ou das empresas ou ONG’s. Não se pode isentar o Estado e nem deixar de incluir as empresas nessa missão de proporcionar melhores condições de vida às pessoas. Mesmo que os Direitos Humanos sejam universais, eles dependem de ações para sua proteção e promoção. Quanto mais atores trabalharem conjuntamente, menos difícil será a tarefa. CONCLUSÃO Através deste trabalho pode-se perceber que há certo desvirtuamento do conceito e dos objetivos dos Direitos Humanos por boa parte da população, que não compreende a importância destes. Por isso, faz-se necessário esclarecer a razão de ser dos Direitos Humanos e disseminar seu conceito (real) para além da Academia. Distinguiu-se Direitos Humanos de Direito Internacional Humanitário, que, muito embora possam parecer expressões sinônimas, possuem diferenças. Deu-se maior destaque, porém, à análise da responsabilidade na proteção e respeito aos Direitos Humanos, com o objetivo de analisar se as empresas possuem compromisso com as causas humanitárias. Sabe-se que, para os ideais embutidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos se concretizarem, fazem-se necessárias ações efetivas, local e globalmente, que proporcionem segurança, alimentação, saúde e bem-estar para pessoas que vivem em situações precárias e subumanas. Muitos entes privados estão se conscientizando e ajudando as causas humanitárias. São bilhões investidos no combate às doenças, no fornecimento de alimentação e educação de melhor qualidade, na melhora da moradia e assim por diante. Se não fossem esses entes engajados, essas crianças e toda a população carente não teriam a quem recorrer. Além de recursos financeiros, para que 305 haja a proteção aos Direitos Humanos, requer-se boa vontade, uma dose de altruísmo e um mínimo de ética. Através deste artigo, pode-se perceber que existe a responsabilidade empresarial na proteção e respeito aos Direitos Humanos uma vez que o Estado não supre todas as necessidades e não consegue dar uma efetiva resposta aos problemas que assolam os povos. Diante dessa situação, as empresas ocupam lugar de destaque porque conseguem não só resolver os problemas mais rapidamente, mas preveni-los. Sem tanta burocracia e com recursos disponíveis para serem investidos em áreas estratégicas as empresas dispostas a mitigar as chagas sociais conseguem efetivar ações concretas em prol dos Direitos Humanos. Os resultados serão mais promissores quando todos os entes envolvidos trabalharem em conjunto, cada qual desempenhando um papel fundamental. Nem por isso se deverá retirar a responsabilidade dos ombros do Estado e coloca-la sobre as empresas, assim como não se pode isentar as empresas onerando somente o Estado. O trabalho conjunto se mostra mais eficaz, ameniza dificuldades e otimiza resultados. A globalização pode ser um fator muito importante em todo esse processo. Para positivar o efeito da ausência de fronteiras e da rápida troca de informações, a noção de universalidade e responsabilidade comuns acabará beneficiando a todos, e, onde há benefício coletivo, há respeito pelos Direitos Humanos REFERÊNCIAS BARRETO, Vicente de Paulo. O fetiche dos direitos humanos e outros temas. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013. BÔAS, Regina Vera Villas; VERGAL, Sandro Carhel Pinto. O direito social à segurança pública e o imperativo da proteção eficiente em sociedade globalizada: interesse social e jurídico que protege o direito humano fundamental da dignidade da pessoa humana. In: BÔAS, Regina Vera Villas; FILIPPO, José Augusto Corrêa (coord.). Sociedade contemporânea, globalização e direitos humanos. 1. ed. São Paulo: Baraúna, 2014. p. 239-293. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Nova ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BRANT, Leonardo Nemer Caldeira; SOARES, Larissa Campos de Oliveira. A inter-relação entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito internacional humanitário na perspectiva universal e interamericana. Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano. Año XV, Montevideo, 2009, pp. 603-619, ISSN 1510-4974. 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Membro da Comissão do Direito dos Animais da Subsecção da OAB/SC de Balneário Camboriú – SC. Email: portellaadvogada@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/ ٧٧٧٤٤١٢٩٩٣٩١٩٣٨٧ Essa qualificação dos haitianos como refugiados será discutida a diante, com a finalidade de confirmar se contemplam os requisitos para aquisição desse status. O autor não descarta a existência de outras dimensões da sustentabilidade, porém, assevera que as cinco apresentadas são suficientes para sublinhar a complexidade com que se precisa tratar o tema da sustentabilidade. Sobre a dimensão tecnológica da sustentabilidade se recomenda a leitura do texto: CRUZ, Paulo Márcio; REAL FERRER, Gabriel. Direito, Sustentabilidade e a Premissa Tecnológica como Ampliação de seus Fundamentos. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, v. 36, n. 71, p. 239, dez. 2015. ISSN 2177-7055. Para a resolução n.97 do CNIg, consideram-se razões humanitárias, aquelas resultantes do agravamento das condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em 12 de janeiro de 2010. “O Viva Rio é uma organização sem fins lucrativos, fundada em 1993, no Rio de Janeiro, que atua na formação de comunidades seguras e sadias em territórios vulneráveis. Em 2004, chegou ao Haiti a convite da ONU. Em 2014, instalou-se nos Estados Unidos como Viva Rio Inc”. Disponível em: <http://vivario.org.br/quem-somos-2/>. Acesso em: 31 jul. 2016. HAITI AQUI. Disponível em: <http://haitiaqui.com/br/quem-somos>. Acesso em: 31 jul. 2016. REPÓRTER BRASIL. Imigrantes haitianos são escravizados no Brasil. (2014). Disponível em: <http://reporterbrasil.org.br/2014/01/imigranteshaitianos-sao-escravizados-no-brasil/>. Acesso em: 07/08/2016 às 15h29min. 308 Ementa: VÍNCULO EMPREGATÍCIO. ESTRANGEIRO EM SITUAÇÃO IRREGULAR. A situação irregular do estrangeiro não pode servir de argumento para sonegar direitos do trabalhador, quando se constata a existência de uma relação típica de emprego. Seria um avilte às garantias e aos princípios constitucionais e dos que regem o Direito Laboral, como o da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho. (TRT-1. RO 5831520115010432 RJ, Relator: Gustavo Tadeu Alkmim, 1ª Turma, julgado em 29/05/2012). TRT 1º REGIÃO. Acórdão n. RO 5831520115010432. Disponível em: http://trt1.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24563744/recurso-ordinario-ro5831520115010432-rj-trt-1. Acesso em: 07/08/2016 às 16h37min. REPORTER BRASIL. “Sem acesso a políticas públicas, haitianos são explorados” (2014). Disponível em: http://reporterbrasil.org.br/2014/01/sem-acesso-a-politicas-publicashaitianos-sao-explorados/. Acesso em: 07/08/2016 às 16h13min. Mestranda IMED 2016, carolbresolinm@gmail.com Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Faculdade Meridional. Professora dos Cursos de Direito da Faculdade Meridional e Faculdade CESUSC. Pesquisadora da Fundação Meridional. Coordenadora do grupo de pesquisa MAR – Migração, Asilo e Refúgio. Para saber mais sobre as informações contidas no parágrafo, visitar o sitio eletrônico do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, disponível em: <http://www.acnur.org/portugues/quemajudamos/apatridas/>. Referência a música Holy Mountains, da banda System of a Down, que menciona as montanhas armênias. Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestra em Direito pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos Conhecer Direito – NECODI/UFSC, do Grupo de Pesquisa Modelagem e Compreensão de Sistemas Sociais: Direito, Estado, Sociedade e Política/UFSC, e do Núcleo de Estudos de História e Rock – NEHROCK/UFSC. Pesquisadora do Grupo Direito das Mulheres/UFSC. Bolsista CAPES. E-mail: amandai040@gmail.com Doutorando em História pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestre em História pela Universidade Estadual de Montes Claros – 309 UNIMONTES. Pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Medievais – MERIDIANUM/UFSC. E-mail: rodoxbastos@gmail.com. Disponível em: < http://migre.me/uPbxh >. Acesso em 30/08/16. Ocorre que a Turquia é uma aliada importante para a Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN, pois possui a base aérea de Incirlik, localizada perto de países conflituosos, como por exemplo o Iraque. Almeida (2013, p. 137) transcreve o dispositivo legal: “1. Uma pessoa que publicamente denigra a Turquicidade, a República ou a Grande Assembleia Nacional da Turquia, deve ser sentenciada a pena de prisão de 6 meses a 3 anos. 2.Uma pessoa que publicamente denigra o Governo da República da Turquia, o corpo judiciário do Estado, as organizações militares ou de segurança, deve ser sentenciada a pena de prisão de 6 meses a 2 anos. 3. Se a ofensa à Turquicidade for cometida por um cidadão turco em outro país, a pena imposta deve ser aumentada em um terço. 4. Expressões de pensamento com a intenção de crítica não constituem crime”. Vídeo disponível em: <http://migre.me/u٤l٣C>. Acesso ٠٧/٠٦/٢٠١٦. “Está se referindo à recusa do governo americano em reconhecer o genocídio armênio em 1915. ” (Tradução nossa). Uma tradução aproximada poderia ser “Mentindo de forma profana politicamente assassinos covardes” (Tradução nossa). “Eliminação, eliminação, eliminação / Por que?, Morra, Afunde / O Genocídio de uma raça inteira / Levou embora todo o nosso orgulho / O Genocídio de uma raça inteiro / Levou embora, assista tudo se arruinar”. (Tradução nossa). “Revolução, a única solução / A resposta armada de uma nação inteira / Revolução, a única solução / Nós levamos toda sua merda, agora está na hora de restituição / Reconhecimento, Restauração, Reparação / Reconhecimento, Restauração, Reparação / Os assista se arruinar”. (Tradução nossa). “O plano foi dominado e chamado de Genocídio / (Nunca quero ver você por perto) / Levaram todas as nossas crianças e então nós morremos / (Nunca quero ver você por perto) / Os poucos que ficaram nunca foram achados / (Nunca quero ver você por perto) / Tudo em um sistema se arruinou... Arruinado... Arruinado... / Arruinado... Afunde.../ Assista tudo se arruinar”. (Tradução nossa). Disponível em: <http://migre.me/u4l4p> em 08/06/2016 Disponível em: <http://migre.me/u4l7i>. Acesso em 10/06/2016. Disponível em: < http://migre.me/u4l9F>. Acesso em 10/06/2016. Para mais informações, checar: < http://migre.me/u4lfd>. Acesso em 10/06/2016. Para mais informações, checar: < http://migre.me/u4lg1>. Acesso em 10/06/2016. Para mais informações, checar: < http://migre.me/u4lgU >. Acesso em 310 10/06/2016. * Mestrando no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito (Mestrado) da Faculdade Meridional (IMED). Membro do Grupo de Pesquisa “Transnacionalismo e Circulação de Modelos Jurídicos”. Bolsista PROSUP/CAPES vinculado ao PPGD-IMED. Advogado (OAB/RS). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3650515438834580. E-mail: cttlers@gmail.com. “Assim sendo, para efeitos deste estudo, podemos definir a eficácia jurídica como a possibilidade (no sentido de aptidão) de a norma vigente (juridicamente existente) ser aplicada aos casos concretos e de – na medida de sua aplicabilidade – gerar efeitos jurídicos, ao passo que a eficácia social (ou efetividade) pode ser considerada como englobando tanto a decisão pela efetiva aplicação da norma (juridicamente eficaz), quanto o resultado concreto decorrente – ou não – desta aplicação”. (SARLET, 2012, p. 13321333). Conferir, a propósito, Piovesan (2002, p. 75-98). Confira-se: Caletti (2007, p. 153-176) e Caletti e Staffen (2015, p. 133156). Artigo 27. Direito Interno e Observância de Tratados. Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado. Esta regra não prejudica o artigo 46. Até o presente momento, apenas a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007 e aprovados pelo Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009. Adota-se o ponto de partida do surgimento do instituto na Comissão Interamericana de Direitos Humanos devido ao reconhecimento, pelo Estado brasileiro, de sua jurisdição obrigatória. Acerca dos antecedentes históricos do instituto, consulte-se Mazzuoli (2011, p. 81-82). O Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992, promulgou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), e, mediante o Decreto n. 4.463, de 8 de novembro de 2002, reconheceu, o Brasil, a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Artigo 2. Dever de adotar disposições de direito interno. Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido 311 por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades. Cunhou-se a expressão “controle de supralegalidade” para designar o juízo de compatibilidade das normas domésticas com o corpo de tratados que versa matéria comum ordinária, não atinente a direitos humanos. O fundamento convencional da natureza obrigatória das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos repousa no artigo 68, parágrafo 1º, da Convenção Americana de Direitos Humanos. No mesmo sentido desse julgado, podem ser arroladas as seguintes decisões, constantes do mesmo Cuadernillo de Jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos: (1) Caso Trabajadores Cesados del Congreso (Aguado Alfaro y otros) Vs. Perú. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de Noviembre de 2006; e (2) Caso Cabrera García y Montiel Flores Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 26 de noviembre de 2010. Aqui, duas ressalvas são pertinentes. Primeiro, a transcendência da simplória e minimalista compreensão da lei como instrumento de coação. Segundo, a necessidade de se manter atento à produção legislativa infraconstitucional. O avanço de teorias constitucionais não pode significar um preterimento da legislação, sob pena de se viver em duas realidades paradoxais. Conferir Zagrebelsky (2009) e LEAL (2010). “No atual estágio da nossa evolução social é justamente a Teoria do Estado que há de responder à questão de como, dentro da realidade social, é oportuno que tenha praticamente sentido e seja, além disso, possível tornar a Constituição relativamente separada desta realidade social, objeto de um método dogmático especial”. (HELLER, 1968, p. 307). “A companhia petrolífera British Petroleum, responsável por uma das maiores degradações da vida marinha no Golfo do México, continuou suas campanhas publicitárias sobre suas boas práticas empresariais. Qualquer tentativa de regulá-las é recebida com muita indignação e ameaças financeiras, uma vez que o lucro parece ser sacrossanto e valorizado acima dos direitos humanos. O Primeiro-ministro britânico apontou o fato de que 312 qualquer compensação que a British Petroleum tivesse que pagar, possivelmente $ 4,4 bilhões, corroeria o lucro dos acionistas. Outro exemplo foi o caos que as transações bancárias não regulamentadas criaram no Hemisfério Norte, e toda a reação planejada na época foi lentamente retirada dos projetos legislativos da União Europeia e dos Estados Unidos. Em vez de estabelecer normas obrigatórias para as empresas multinacionais, que não são sujeitos do direito internacional público, elas são estimuladas a se comportar melhor”. (JAICHAND, 2014, p. 42, grifos originais). Essa, aliás, foi uma pecha que, histórica e recorrentemente, se atrelou aos Direitos Humanos: a de se tratar de um ramo do Direito incidente ou efetivo unicamente no plano pós-violatório. Um dos maiores defensores da criação desse tribunal é o professor Manfred Nowak, que o reputa uma instituição fundamental para garantir que os Estados-partes cumprissem suas obrigações referentes aos tratados de Direitos Humanos. As principais características deste sistema preveem um tribunal permanente a ser criado através de um tratado. Estados-Partes no presente tratado estabeleceriam sistemas nacionais para aplicar todos os tratados de Direitos Humanos com base na complementaridade, conforme estabelecido no Estatuto de Roma para a justiça penal internacional. O Tribunal se tornaria parte da estrutura da Organização das Nações Unidas seria financiado por esse organismo. Esse tribunal teria jurisdição inclusive sobre atores não estatais, tais como corporações multinacionais, sendo que o Escritório do Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU supervisionaria os acórdãos do Tribunal. (NOWAK e KOSMA, 2009). Acadêmica de Direito da Faculdade Meridional – IMED, onde é bolsista Fapergs/Cnpq/Imed, vinculada ao Centro Brasileiro de Pesquisa sobre a Teoria da Justiça de Amartya Sen: interfaces com direito, políticas de desenvolvimento e democracia. E-mail:<luanalucca@live.com>. Lattes: <http://lattes.cnpq.br/3534943362215343> Pós- doutor em Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor do programa da Pós-Graduação em direito da Faculdade Meridional – IMEDMestrado. Professor do curso de Direito (Graduação e especialização) da Faculdade Meridional – IMED de Passo Fundo. Membro do Grupo de Trabalho, Ética e Cidadania da ANPOF (Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Filosofia). Pesquisador da Faculdade Meridional. Coordenador do Grupo de Pesquisa: Multiculturalismo, Minorias, Espaço Público e Sustentabilidade. Líder do Grupo de Estudo: Multiculturalismo e Pluralismo Jurídico. Líder do Centro Brasileiro de 313 pesquisa sobre Amartya Sem: interface com direito. Políticas de desenvolvimento e democracia. Email: <neurojose@hotmail.com><nzambam@imed.edu.br>. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Passo Fundo – RS. Advogada. Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Maria. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: rafaelacruzmello@gmail.com. Advogado. Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Maria. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: marciombrum@gmail.com. Advogada. Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Maria. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: tieli.zd@hotmail.com. A grande modificação é vista no novo constitucionalismo latino americano, sobretudo com as vanguardistas constituições da Bolívia e do Equador e nestas, uma das bases para o reconhecimento das diferentes identidades e para criação de especificidades e peculiaridades das condições sociais dos povos tradicionais é o reconhecimento de direitos da sociobiodiversidade. Nos seguintes casos houve a concepção da CIDH da propriedade sob um viés coletivo: Caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Equador, 2012; Comunidade Indígena Sawhayamaxa vs. Paraguai, 2001, Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs, Nicarágua, 2001. Nos seguintes casos houve a concepção da CIDH da propriedade sob um elemento tramsgeracional e transfronteiriço: Casos Comunidade Mayagna (Suma) Awas Tingini vs. Nicarágua, 2001; Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai, 2006 e Caso Comunidade Indígena Xákmok Kásek vs. Paraguai, 2010. Nos seguintes casos houve a concepção da CIDH de gozo livre dos direitos de propriedade: Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Equador, 2012. Povo Saramaka vs. Suriname, 2007. Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista CAPES. E-mail: marciombrum@gmail.com. Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: rafaelacruzmello@gmail.com. A petição ao SIDH foi assinada por: Comunidades Arara da Volta Grande, Juruna do Km 17, Arroz Cru e Ramal das Penas, representadas, por Movimento Xingu Vivo Para Sempre (MXVPS), Coordenação das 314 Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) Prelazia do Xingu, Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Sociedade Paraense de Direitos Humanos (SDDH), Justiça Global e Asociación Interamericana para la Defensa del Ambiente (AIDA). Os peticionários esclarecem que se trata de uma situação de urgência e gravidade, tendo em vista que a obra ameaça impactar irremediavelmente a vida e a integridade dos indígenas e ribeirinhos que vivem na região, que serão submetidos ao deslocamento forçado, à insegurança alimentar e hidrológica, com a perda de água potável, ao aumento de doenças, ameaças de invasões às terras indígenas e ao aproveitamento ilegal de recursos naturais, ao aumento da pobreza e à migração desordenada, que sobrecarregará os sistemas de saúde, educação e segurança pública. Explicam, ainda, que apesar da gravidade e irreversibilidade dos impactos da obra para as comunidades locais, não foram realizadas as medidas adequadas para garantir a proteção dos direitos das mesmas nem do meio ambiente. Mestranda em Direito pela Faculdade Meridional – IMED (Passo Fundo/RS). Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto Catarinense de Pós-Graduação – ICPG (2009). Especialista em Direito Empresarial e dos Negócios, pela UNIVALI (2013). Graduada em Direito pela Universidade para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí (2008) e graduada em Sistemas de Informação pela mesma universidade (2003). Professora titular da disciplina de Direito Processual Civil V Procedimentos Especiais e professora substituta das disciplinas de Direito Processual Civil II - Processo de Conhecimento e Direito Processual Civil IV - Processo de Execução, do curso de Direito da UNIDAVI e da disciplina de Legislação e Ética, do curso de Sistemas de Informação, da UNIDAVI. Coordenadora da Escola Superior de Advocacia (ESA) Subseção de Rio do Sul, da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Santa Catarina. Conselheira Suplente da Subseção de Rio do Sul, da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Santa Catarina. Advogada OAB/SC. Email: francianehasse@gmail.com Mestranda em Direito pela Faculdade Meridional – IMED (Passo Fundo/RS). Bolsista CAPES/PROSUP. Membro do grupo de estudos Fundamentos e Dimensões dos Direitos Humanos. Membro Efetivo da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL). E- 315 mail: mss.marilin@gmail.com Graduada em Direito pela Anhanguera. Advogada. Membro do grupo de estudos Fundamentos e Dimensões dos Direitos Humanos, vinculado ao PPGD - IMED. E-mail: amandasimor@hotmail.com. Para saber mais sobre a história da ONU, ver necessariamente o sítio eletrônico da ONU, disponível em: https://nacoesunidas.org/conheca/historia/. Acesso em 11/06/2016. A Declaração sobre a eliminação de toas as formas de intolerância e discriminação baseadas na religião ou crença art. III. Disponível em https://www.oas.org/dil/port/1981Declara%C3%A7%C3%A3o%20sobre% 20a%20Elimina%C3%A7%C3%A3o%20de%20Todas%20as%20Formas% 20de%20Intoler%C3%A2ncia%20e%20Discrimina%C3%A7%C3%A3o% 20Baseadas%20em%20Religi%C3%A3o%20ou%20Cren%C3%A7a.pdf. Acesso em 12/06/16. À primeira vista o uso do véu feminino, àquelas mulheres que são adeptas ao islamismo, pode ter uma má conotação, sendo estereotipado como elemento de uma cultura sexista, que se preocupa em manter a mulher subjugada em condições de submissão. É inegável que em algumas comunidades islâmicas ocorre muito mais que imposição do uso do véu, mas o trato com as mulheres, de um modo geral é destinado a mantê-las submissas aos homens, retirando-se delas a possibilidade do exercício da liberdade (como é o caso da Arábia Saudita, em que as mulheres não podem dirigir). Entretanto, deve-se considerar que existem diversas interpretações do Alcorão, logo, não são todas elas que disseminam uma sistemática de dominação extrema das mulheres. A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão é datada em 1789, os artigos a que se referem a “lei do véu” trazem o seguinte texto Art. 4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei. Art. 5º. A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene. Art. 10º. Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei. Disponível em 316 <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-dasNa%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-dohomem-e-do-cidadao-1789.html> Acesso em 11/06/2016. O conteúdo da Reclamação pode ser acessado na íntegra através do Tribunal Europeu de Direitos humanos pelo link: <http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-145466#{“itemid”:[“001-145466”]}>. Acesso em 21/11/15. Trata-se do trecho extraído da decisão final do TEDH. O conteúdo pode ser acessado através do link: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-145466# {“itemid”: [“001-145466”]} acesso em 12/06/2016. Avis relatif à l’expression des religions dans les espaces publics. Recommandations du Haut Conseil à L’integration relatives à l’expression religiuse dans les espaces publics de la Republique, marzo 2010. http://archives.hci.gouv.fr/Avis-relatif-a-l-expression-des.html. Acesso em 12/06/16. ANGELETTI, Silvia. Il divieto francese al velo integrale, tra valori, diritti, laicité e fraternité. Rivista di Diritto pubbli italiano, comparato, europeo.Itália. N.1 – 22/01/2016, p.10. Mestrando do curso de Ciência Jurídica no programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Bolsista do Fundo de Apoio à Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior – FUMDES. Pósgraduando lato sensu em Direito Empresarial e Advocacia Empresarial pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Especialista lato sensu em Direito Civil e Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera – Uniderp. Bacharel em Direito pela UNIVALI. Professor na Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC) e Tabelião de Notas e Protestos da Comarca de Modelo/SC.E-mail: alanprovin@hotmail.com “[...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral [...]”. PASOLD, Cesar Luis. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 11. ed. Florianópolis: Conceito editorial/Milleniuum, 2008. p. 86. “[...] explicitação prévia do(s) motivo(s), do(s) objetivo(s) e do produto desejado, delimitando o alcance temático e de abordagem para a atividade intelectual, especialmente para uma pesquisa.” PASOLD, Cesar Luis. Metodologia da pesquisa jurídica: Teoria e prática. p. 53. 317 “[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma idéia.” PASOLD, Cesar Luis. Metodologia da pesquisa jurídica: Teoria e prática. p. 25. “[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos [...]”. PASOLD, Cesar Luis. Metodologia da pesquisa jurídica: Teoria e prática. p. 37. “Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais. PASOLD, Cesar Luis. Metodologia da pesquisa jurídica: Teoria e prática. p. 209. Art. 1.748. Compete também ao tutor, com autorização do juiz: [...] II - aceitar por ele heranças, legados ou doações, ainda que com encargos; [...] O artigo foi escrito sob a orientação da Professora Doutora da Faculdade Meridional, Leilane Serratine Grubba, coordenadora do Grupo de Pesquisa MAR – Migrações, Asilo e Refúgio e do Grupo de Pesquisa FUNDIH – Fundamentos e Dimensões dos Direitos Humanos. Advogada, especialista em Direito Tributário e Gestão de Pessoas pela Universidade Anhanguera – Uniderp. Mestranda em Direito Democracia e Sustentabilidade pela Faculdade Meridional. E-mail: andy_battezini@hotmail.com Acadêmica de Direito da Faculdade Meridional IMED, bolsista FAPERGS, e participante do grupo de pesquisa MAR – Migração, Asilo e Refúgio Graduando em Direito pela UFSC, bacharel em Segurança Pública, especialista em Políticas de Gestão em Segurança Pública, capitão da polícia militar de Santa Catarina, consultor policial das Nações Unidas para a missão de paz no Sudão do Sul no período de 2015 a 2016. Reconhecido e membro componente da Organização das Nações Unidas, em 14 de julho de 2011, (disponível em https://nacoesunidas.org/conheca/paises-membros/#paisesMembros9) é comumente referenciado como país mais recente do mundo pela mídia jornalística, a exemplo das empresas de comunicação inglesas BBC (disponível em www.bbc.com/news/world-africa-140690820) e Independent. Disponível em http://www.independent.co.uk/news/world/africa/south-sudan-worldsnewest-country-poor-independence-day-celebrate-a7113126.html). Acessados em 1 de agosto de 2016. Tradução livre do termo oriundo do dialeto sul-sudanês madi significa 318 veneno de cobra. A região de Abyei localizada na fronteira entre Sudão e Sudão do Sul possui grande concentração de recursos petrolíferos. O território ainda hoje é reivindicado por ambos os países. Em 2011 o Conselho de Segurança da ONU adotou a esolução 1990 que estabeleceu a Força de Segurança Interina da ONU para Abyei, com vistas à proteção da população civil e dos prestadores de ajuda humanitária. Disponível em: http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/unisfa/background.shtml. Acesso em 8 de agosto de 2016 Em 1979 a empresa estadunidense Chevron descobriu imensas reservas de petróleo na porção centro-sul do Sudão. (MOELLWALD, 2015). Cerca de 75% destas reservas destas estão atualmente localizadas no atual Sudão do Sul, ou em áreas disputadas, enquanto a estrutura de logística de escoamento de produção (oleodutos e portos) concentra-se quase que em totalidade em território sudanês. (SALMAN, 2011, tradução nossa). Em inglês Sudanese People Liberation Movement, mais conhecido pela sigla SPLM; Em inglês Sudanese People Liberation Army, mais conhecido pela sigla SPLA; Omar Al-Bashir continua no poder desde o golpe militar mencionado. Informação disponível em http://www.bbc.com/news/world-africa16010445. Acesso em 31 de julho de 2016; Em entrevista para o website People nominada Encontre na vida real os “Garotos Perdidos” do Sudão em a A Boa Mentira (tradução nossa), Ger Duany e Emmanuel Jal, cuja história inspirou o filme, afirmam ter fugido para o campo de refugiados no Quênia ano de 1993. Disponível em http://www.people.com/article/the-good-lie-movie-real-life-lost-boys-of-sudan-ger-duany-emmanueljal-reese-witherspoon. Acesso em 1º de agosto de 2016; Disponível em http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unmis/background.shtml. Acesso em 2 de agosto de 2016; O reforço à influência estadunidense na região se dá no período pós-guerra fria, almejando mitigar o controle dos poços de petróleo sudaneses por parte dos chineses, estabelecidos nos anos, 1990. A secessão do Sudão do Sul colocou “nas mãos de um país com graves problemas políticos, econômicos e de infraestrutura 75% das reservas de petróleo que anteriormente pertenciam ao Sudão.” (GERBASE e VISENTINI, 2004, p. 2). O acidente aéreo ocorrido próximo entre a fronteira do Sudão do Sul e Uganda causou a morte de 13 pessoas, incluindo Jhon Garang. Violentos 319 protestos foram registados na capital sudanesa Cartum. Disponível em http://www.sudantribune.com/spip.php?article10893. Acesso em 1º de agosto de 2016. Em inglês chamada United Nations Mission in the Sudan – UNMIS. Após a independência em 2011, a resolução do Conselho de Segurança nº 1996 encerrou a antiga missão e iniciou a United Nation Mission in South Sudan – UNMISS, que segue atuando no país em conflito. Disponível em http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unmis/background.shtml e http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/unmiss/background.shtml. Acesso em 1º de agosto de 2016. Em inglês Sudanese People Liberation Army in Opposition – SPLA-IO. Disponível em http://www.un.org/apps/news/story.asp? NewsID=46912#.V6o0nJgrK01. Acesso em 9 de agosto de 2016. Cronologia elaborada pela BBC. Disponível em http://www.bbc.com/news/world-africa-14019202. Acesso em 9 de agosto de 2016. Dados do Escritório das Nações Unidas para Assuntos Humanitários. Disponível em http://www.unocha.org/south-sudan. Acesso em 9 de agosto de 2016. Dados do Escritório das Nações Unidas para Refugiados. Disponível em http://data.unhcr.org/SouthSudan/regional.php. Acesso em 9 de agosto de 2016. “O conflito do Sudão do Sul, que teve início em dezembro de 2013, produziu uma das piores situações de deslocamento do mundo, com imenso sofrimento. Cerca de 1,69 milhão de pessoas estão deslocadas no interior do país, enquanto há atualmente pouco mais de 831 mil refugiados sulsudaneses, principalmente na Etiópia, Sudão e Uganda. ” Disponível em: https://nacoesunidas.org/quatro-mil-pessoas-fogem-diariamente-do-sudaodo-sul-para-uganda-alerta-onu/ Acesso em 02 de ago. 2016. Em seu livro, Joaquín tenta evidenciar mostrar que os Direitos Humanos precisam ser reinventados no século XXI. A ideia de reinvenção dos Direitos Humanos é, nos reinventa, inseridos nas lutas sociais, por um desenvolvimento digno das pessoas e dos mais diversos povos. Para assim, garantir um mundo mais justo, igualitário e solidário. Deve-se entender o mundo para elaborar políticas públicas que efetivem os Direitos Humanos. FLORES, Joaquín Herrera. A reinvenção dos Direitos Humanos. 320 Florianópolis: Fundação Boiteux,2009 Projeto de Pesquisa: Perspectivas Latinoamericanas en el Debate Ambiental Mundial entre 1992 y 2012. Los casos de Chile, Ecuador y Brasil. Un estudio de historia de las ideas políticas del tiempo presente en el espacio de la política mundial e internacional. Aluno da graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijui; Bolsista Cnpq, tonelr@yahoo.com Aluno da graduação em Ciências Biológicas e Medicina Veterinária pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijui; Bolsista PET/CAPES, ghammars@asu.edu Professor Doutor, do Universidade Regional, do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul [...] forms of movement taking place voluntarily or involuntarily and across or within national borders […]. situation or event, which overwhelms local capacity, necessitating a request to national or international level for external assistance […]; An unforeseen and often sudden event that causes great damage, destruction and human suffering. Though often caused by nature, disasters can have human origins. Indications of changes in the earth’s future climate must be treated with the utmost seriousness, and with the precautionary principle uppermost in our minds. Extensive climate changes may alter and threaten the living conditions of much of mankind. They may induce large-scale migration and lead to greater competition for the earth’s resources. Such changes will place particularly heavy burdens on the world’s most vulnerable countries. There may be increased danger of violent conflicts and wars, within and between states. […] anthropocene defines Earth’s most recent geologic time period as being human-influenced, or anthropogenic, based on overwhelming global evidence that atmospheric, geologic, hydrologic, biospheric and other earth system processes are now altered by humans […]. not every forcibly displaced person is a refugee, but all forcibly displaced people need some form of protection […]. [...] internally displaced persons are persons or groups of persons who have been forced or obliged to flee or to leave their homes or places of habitual residence, in particular as a result of or in order to avoid the effects of armed conflicts, situations of generalized violence, violations of human 321 rights or natural or human-made disasters, and who have not crossed an internationally recognized State border. […] people living in areas which are likely to be rendered uninhabitable due to climate change should have the early option of migrating to other countries, in numbers roughly proportionate to the host countries’ cumulative greenhouse gas emissions […]. […] it is not that climate change itself is responsible for rights violations; rather, it is the effects of climate change that weaken states’ capacities and hinder them from fulfilling their obligation to protect people’s rights […]. Docente Adjunta na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Professora Colaboradora do Programa de Pesquisa e Extensão e Pós-Graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina UNOESC/ Brasil. E-mail: t.wencze@terra.com.br Advogado, Mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade do Oeste de Santa Catarina, Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Brasília, professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação das Faculdades Anglicanas de Erechim e de Tapejara/Brasil. E-mail: espiuca@yahoo.com Nesse aspecto existem diversas ações localizadas nos Estados do Sul do Brasil. A exemplo pode-se citar a iniciativa da Universidade de Lajeado – Univates que busca proporcionar formação de professores de Língua Portuguesa como Língua Adicional e tenha como base a interação com a cultura de estrangeiros que escolhem o Brasil para viver, temporária ou definitivamente, através do projeto de extensão “Ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa como língua adicional: investigação, formação e ensino”, vinculado ao curso de Letras da Univates. Além de oferecer aos acadêmicos um conhecimento aplicado sobre o ensino do idioma, a prática atende a uma importante demanda do Vale do Taquari: ensinar Língua Portuguesa aos imigrantes haitianos que vivem na região. Também é possível constatar que alguns adentraram ao ecletismo religioso tão bem propalado no Brasil: tornaram-se adeptos de Igrejas neopentecostais. Em nossa pesquisa, os depoentes declararam que frequentam as seguintes Igrejas: Assembleia de Deus – do ramo do pentecostalismo histórico – e as neopentecostais Igreja Universal do Reino de Deus e Igreja Internacional da Graça de Deus. Graduando do Curso de Direito da Faculdade Concórdia (FACC). Mestre em Direitos Sociais, Difusos e Coletivos pela UNISAL. Professora 322 do Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Concórdia (FACC). Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica e Professor do Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Concórdia (FACC). Diferenciam-se as disposições normativas das normas. Aquelas são o objeto da interpretação; a fórmula lingüística reconhecida como ato ou fato de produção de direito, ou seja, a parte de um texto ainda a interpretar. Essas são o resultado da interpretação; conteúdo de sentido resultante da interpretação da disposição normativa, ou seja, a patê de um texto já interpretado (BERNARDES; FERREIRA, 2016, p. 225). Ao tratar do tema, ACSELRAD (2010) trata da “tragédia dos comuns”, uma situação onde indivíduos agindo de forma independente e racionalmente de acordo com seus próprios interesses se comportam em contrariedade aos melhores interesses de uma comunidade, esgotando algum recurso comum. Poder-se-ia dizer, assim, que a injustiça ambiental é fruto de consensos artificiais entre grupos afetados e aqueles que se beneficiam da degradação ambiental, com o sistemático encobrimento das causas políticas da degradação ambiental. Graduando do Curso de Direito da Faculdade Meridional - Imed. Membro do Grupo de Pesquisa Ética, Cidadania e Sustentabilidade. E-mail: diogo.dalmagro@yahoo.com.br. Artigo escrito sob orientação do Professor doutor Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino. Para Bittar, “A pós-modernidade chega para se instalar definitivamente, mas a modernidade ainda não deixou de estar presente entre nós, e isto fato. Suas verdades, seus preceitos, seus princípios, suas instituições, seus valores (impregnados do ideário burguês, capitalista e liberal) ainda permeiam grande parte das práticas institucionais e sociais, de modo que a simples superação imediata da modernidade é ilusão. Obviamente, nenhum processo histórico instaura uma nova ordem, uma nova fonte de inspiração de valores sociais, do dia para a noite, e o viver transitivo é exatamente um viver intemporal, ou seja, entre dois tempos, entre dois universos de valores, enfim, entre passado erodido e presente multifário.” BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. 2. ed. rev., atual. e ampliada. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 108. “[...] base lógica da dinâmica da Pesquisa Científica que consiste em estabelecer uma formulação geral e, em seguida, buscar as partes do fenômeno de modo a sustentar a formulação geral”. PASOLD, Cesar Luiz. 323 Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 205. “[...] Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais.” PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 207. “[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou expressão de uma ideia”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 25, grifos originais da obra em estudo. Para Bittar, “Toda concepção teórica de Kelsen a respeito do direito gira em torno da idéia de validade, na medida em que validade é a chave para a concepção de um direito que se resume a ser norma jurídica, e que se fundamenta (com fundamento de validade), também numa outra norma, a chamada Grundnorm. Hans Kelsen deverá significar apenas a máxima idealização sistêmica do direito, organizado a partir de parâmetros contidos na idéia de validade, pois, enfim, norma válida será aquela definida como expedida pela autoridade competente, dentro da forma procedimental prevista e publicada de acordo com os parâmetros legais superiores a ela.” BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. p. 184/185.Destaques originais da obra estudada. Para Warat, “O direito, a cultura e a democracia precisam ser vividas permanentemente como territórios de conquista e não como resultados. Os resultados são as formas legíveis desse trinômio. São as formas pelas quais ficam enclausurados pelas máscaras de um poder que vê subversão nas emergências do diverso e do novo.” WARAT, Luis Alberto. A Ciência Jurídica e seus dois maridos. 2. ed. Santa Cruz do Sul, (RS): EDUNISC, 2000. p. 134. “Não se reconhece nenhum direito fundamental, tampouco a Dignidade da Pessoa Humana, como categorias absolutas, imutáveis. Essas retratam as lutas e conquistas humanas no decorrer do tempo na busca de maior emancipação civilizatória ao se garantir critérios mínimos de preservação da vida, no sentido mais amplo da expressão. Por esse motivo, e segundo Sarlet, a Dignidade da Pessoa Humana é unidade axiológica aberta.” BASTIANI, Ana Cristina Bacega de; PELLENZ, Mayara; AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Guttacavat lapidem: reflexões axiológicas e práticas sobre direitos humanos e dignidade da pessoa humana. Erechim: 324 Deviant, 2016. p. 66. “A expressão “dignidade da pessoa humana”, [...], deixa de representar mero conceito aberto na Constituição e ganha um sentido como tilosas políticas sociais, limite mesmo que permita diferir o justo do injusto, o aceitável do inaceitável, o legítimo do ilegítimo. [...] Ademais, a expressão serve como: diretriz básica das políticas públicas; orientação teleológica para ações sociais e intervenções públicas na economia; núcleo de sentido hermenêutico para a interpretação dos demais dispositivos constitucionais; sede básica dos direitos humanos; guia para a legislação infraconstitucional, determinando o sentido da cultura jurídica legislada; fundamento para a criação de instrumentos de proteção da pessoa humana; palavra-chave para a criação da ordem conceptual e deontológica dos direitos constitucionais; princípio primeiro de todos os demais princípios da Constituição.” BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. p. 304.Destaques originais da obra estudada. Para Herrera Flores, “Nada é mais universal que garantir a todos a possibilidade de lutar, plural e diferenciadamente, pela dignidade humana. A maior violação aos direitos humanos consiste em impedir que algum indivíduo, grupo ou cultura possa lutar por seus objetivos éticos e políticos mais gerais; entre os quais, se destaca o acesso igualitário aos bens necessários ou exigíveis para se viver dignamente.” HERRERA FLORES, Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, ٢٠٠٩. p. ١١٩/١٢٠. “Uma concepção de dignidade cultural da pessoa humana (versão pósmoderna da idéia de dignidade) está em fermentação em pleno bojo dos conflitos mais cruentos para a afirmação da lógica da dignidade universal da pessoa humana (versão moderna de idéia de dignidade). Se a noção de dignidade sobrevive, altualmente, apesar das dificuldades, fica claro que ela transfere sua significação para a defesa da diversidade humana.” BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. 305. “Em meu ensaio “Teoria Tradicional e Teoria Crítica” apontei a diferença entre dois métodos gnosiológicos. Um foi fundamentado no Discours de laMéthode [Discurso sobre o Método], cujo jubileu de publicação se comemorou neste ano, e o outro, na crítica da economia política. A teoria em sentido tradicional, cartesiano, como a que se encontra em vigor em todas as ciências especializadas, organiza a experiência à base da 325 formulação de questões que surgem em conexão com a reprodução da vida dentro da sociedade atual. Os sistemas das disciplinas contêm os conhecimentos de tal forma que, sob circunstâncias dadas, são aplicáveis ao maior número possível de ocasiões. A gênese social dos problemas, as situações reais nas quais a ciência é empregada e os fins perseguidos em sua aplicação, são por ela mesma consideradas exteriores. – A teoria crítica da sociedade, ao contrário, tem como objeto os homens como produtores de todas as suas formas históricas de vida. As situações efetivas, nas quais a ciência se baseia, não são para ela uma coisa dada, cujo único problema estaria na mera constatação e previsão segundo as leis da probabilidade. O que é dado não depende apenas da natureza, mas também do poder do homem sobre ele. Os objetos e a espécie de percepção, a formulação de questões e o sentido da resposta dão provas da atividade humana e do grau de seu poder.” HORKHEIMER, Max. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In: Horkheimer/Adorno. 5 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 69. “A crítica tem, por vocação, incluir-se no mundo, construindo uma zona intermediária entre as instituições e a fantasia. Ela é sempre uma construção utópica da realidade. Nunca é uma explicação sistêmica.” WARAT, Luis Alberto. A Ciência Jurídica e seus dois maridos. p. 165. “[...] a “crítica” pode compreender “aquele conhecimento que não é dogmático, nem permanente, (mas) que existe num contínuo processo de fazer-se a si próprio. E, seguindo a posição de que não existe conhecimento sem práxis, o conhecimento ‘crítico’ seria aquele relacionado com um certo tipo de ação que resulta na transformação da realidade. Somente uma teoria ‘crítica’ pode resultar na libertação do ser humano, pois não existe transformação da realidade sem a libertação do ser humano”. [...] “A “crítica”, enquanto processo histórico identificado ao utópico, ao radical e ao desmistificador, assume a “função de abrir alternativas de ação e margens de possibilidades que se projetam sobre as continuidades históricas.” Uma posição “crítica” há que ser vista, portanto, não só como uma avaliação crítica “de nossa condição presente, mas crítica em trabalhar em direção a uma nova existência”. WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 4. ed.São Paulo: Saraiva, 2002. p. 4/5. “Essa racionalidade científica, que se faz passar pela única forma de racionalidade, recalca aspectos importantes da razão: a sensualidade, a sensibilidade, a sensação. O termo alemão Sinnlichkeit(sensibilidade) 326 conserva os três sentidos. Marcuse chama a atenção par o fato de a palavra ter deslizado do campo sensorial, corporal, para o terreno da estética e da filosofia da arte. Sensação, sensualidade e sensibilidade foram tornadas antagônicas pela civilização repressiva, foram preteridas pela hipertrofia da racionalidade analítica, pragmática e calculadora, vale dizer, matemtizante. Malgrado os desenvolvimentos técnicos e científicos, há uma regressão da sociedade, o que se atesta pelas periódicas recaídas na barbárie, no auge da civilização – os fascismos, os nazismos, o totalitarismo.” MATOS, Olgária Chain Feres. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2005. p. 56. Nas palavras de Aquino, “O saber sensível, impregnado pelo prazer dos sentidos, cumpre sua função de efetivar a união social porque engendra uma sabedoria comedida, um saber dionisíaco. Para Maffesoli, a sinergia dos sentidos e a sua harmonia contida na vida de todos os dias concretizam o sensível como princípio de civilização porque nele reside uma fonte de riqueza espiritual, que fortalece o corpo e também a plenitude do coração. “AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Raízes do direito na pósmodernidade. Itajaí, (SC): UNIVALI, 2016, p. 38. Destaques originais da obra estudada. Nas palavras de Warat, “Essa compaixão não envolve nenhum sentimento de pena ou piedade. Falo de uma compaixão entendida como simpatia, como alteridade. Refiro-me à possibilidade de entrar no sentimento do outro, entendendo assim a diferença dos seus pontos de vista. A compaixão que estou falando permite a produção com o outro da diferença. A produção da diferença com o outro, que é uma forma de inscrever com o outro o novo na temporalidade, permite dar os primeiros passo na produção do amor, ou seja, na produção de um relacionamento sadio.” WARAT, Luis Alberto. A Ciência Jurídica e seus dois maridos. p. 114. “[...] a educação e a metodologia em (e para) os direitos humanos deve preparar para o convívio com a diversidade, na base do diálogo e do respeito, voltado para a alteridade, como forma pragmática de solidariedade social, na base da tolerância.” BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. p. 430. Acadêmico do 6º semestre do curso de Direito (IMED), bolsista de iniciação científica PROBIC/FAPERGS e membro do grupo de pesquisa “Transnacionalismo e Circulação de Modelos Jurídicos” coordenado pelo Prof. Dr. Márcio Ricardo Staffen. 327 Mestranda em Direito pelo PPGD da Faculdade Meridional - IMED. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior – PROSUP/CAPES. Professora substituta dos cursos de Direito e Administração do Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí – UNIDAVI. Endereço eletrônico: regianenistler@outlook.com. Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí- UNIDAVI. Assistente de Pesquisa do Grupo Direito, Constituição e Sociedade de Risco (GPDC-UNIDAVI). Endereço eletrônico: rubiabertoli@gmail.com. 328 Sobre Editora Deviant LTDA Erechim-RS Brasil 2016 ISBN 978-85-69114-61-1 Conselho Editorial Dra. Janaína Rigo Santin Dr. Edison Alencar Casagranda Dr. Sérgio Fernandes Aquino Dra. Cecília Maria Pinto Pires Dra. Ironita Policarpo Machado Dra. Gizele Zanotto Dr. Victor Machado Reis Dr. Wilson Engelmann Dr. Antonio Manuel de Almeida Pereira Dr. Eduardo Borba Neves 329