Obra publicada com recursos da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - CAPES, processo n. 88881.118665/2016-01
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APRESENTAÇÃO
Este livro é o resultado teórico do Grupo de Trabalho nº 3 – Direitos
Humanos e Transnacionalidade –, ocorrido por ocasião do IV Seminário
Internacional de Direito, Democracia e Sustentabilidade, em 2016,
realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade
Meridional.
Dividido em dezessete capítulos, o livro busca abordar temas
importantes dos Direitos Humanos e da Transnacionalidade no cenário
jurídico, político e social da contemporaneidade, como o tema da dignidade,
das migrações e da apatridia, das vulnerabilidades, do genocídio, do
desenvolvimento sustentável e, ainda, das problemáticas ambientais e seus
efeitos. Em cada capítulo, os autores e autoras investigaram os temas de
maneira série e científica, sem deixar de se preocupar com a necessidade de
se pensar os Direitos Humanos de maneira imanente e concreta.
O primeiro capítulo, escrito por Yury Augusto dos Santos Queiroz e por
Priscila Portella Coutinho, tem por objetivo realizar considerações sobre o
direito do trabalho e a dimensão social da sustentabilidade. Buscando
realizar uma análise sobre os direitos e garantias trabalhistas dos refugiados,
a pesquisa concede ênfase à necessidade da real efetivação desses direitos e
garantias aos migrantes haitianos em território brasileiro.
O objeto do segundo capítulo é a problemática da apatridia no mundo
contemporâneo. Escrito por Caroline Bresolin Maia Cadore e por Leilane
Serratine Grubba, o capítulo objetiva analisar a situação das pessoas
apátridas à luz do desenvolvimento humano. Para tanto, as autoras
questionam o conceito de apatridia e problematizam, por meio da ideia de
desenvolvimento, as possibilidades que as pessoas apátridas têm de
acessarem aos direitos humanos e de satisfazerem as necessidades de vida
digna.
O terceiro capítulo, escrito por Amanda Muniz Oliveira e por Rodolpho
Alexandre Santos Melo Bastos, concede ênfase à análise do genocídio
armênio e busca analisá-lo de maneira interdisciplinar, isto é, pelo campo
do saber denominado Direito & Música. Por meio de um estudo da banda
System of a Down, os autores questionam a possibilidade de o rock ser
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capaz de visibilizar temáticas pouco debatidas no Direito, como a questão
do genocídio armênio, presente nas letras da banda de rock mencionada.
O quarto capítulo objetiva examinar o controle difuso da
convencionalidade na produção normativa infraconstitucional interna como
possível mecanismo processual para a efetivação dos Direitos Humanos.
Escrito por Leandro Caletti, o trabalho considera que, da necessidade de um
juízo vertical de compatibilidade entre os Tratados Internacionais de
Direitos Humanos ratificados e as leis internas brasileiras, deve haver um
modo de se extinguir com a produção interna contrária aos Direitos
Humanos.
O objeto do quinto capítulo é o empoderamento da mulher. Escrito por
Luana Paula Lucca e por Neuro José Zambam, o trabalho põe ênfase na
teoria de Amartya Sen e objetiva investigar se a teoria da justiça do
mencionado autor pode, a partir do direito à condição de agente, efetivar o
empoderamento feminino. Para os autores, a ideia de liberdade substantiva
possibilita empoderar as mulheres.
Com foco no multiculturalismo e nas migrações, o sexto capítulo, escrito
por Júlia Fragomeni Bicca, objetiva analisar a problemática dos refugiados
ambientais. A autora analisa a atual situação do meio ambiente e das
mudanças climáticas, para perceber o refúgio também como um efeito da
crise ambiental, bem como reclamar a necessidade do seu reconhecimento e
da sua proteção jurídica.
O sétimo capítulo tem por objeto a problemática indígena e busca
analisar a consolidação de um panorama para essa questão a partir da
Opinião Consultiva nº 22 da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Escrito por Rafaela da Cruz Mello, Márcio Morais Brum e por Tiéli
Zamperetti Donadel, o trabalho sugere que o reconhecimento de percepções
indígenas pela Comissão Internamericana possibilita o rompimento para
com a influência de estruturas do paradigma racionalista da América Latina,
bem como possibilita a consolidação de novas gramáticas para a região.
O oitavo capítulo, escrito por Márcio Morais Brum e por Rafaela da
Cruz Mello, objetiva analisar os avanços e os limites da jurisprudência do
Sistema Interamericano de Direitos Humanos no que se refere à proteção
socioambiental, a fim de averiguar se o mencionado Sistema consegue
dialogar com as teorias da ecologia política e com as reivindicações dos
movimentos sociais em prol da defesa socioambiental.
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O nono capítulo tem por objetivo uma análise crítica da proibição do uso
do véu muçulmano na França. Escrito por Franciane Hasse, Marilin Soares
Sperandio e por Amanda Simor, o trabalho busca discutir o confronto entre
a liberdade, no Estado laico francês, e a proibição do uso do véu
muçulmano nas vias públicas. Para as autoras, a mencionada proibição fere
o pressuposto e direito de liberdade religiosa, bem como fere a própria
Declaração onusiana sobre a eliminação de todas as formas de intolerância
e discriminação fundadas na religião ou na crença.
Tendo por objeto os Direitos Humanos no caso Garibaldi, o décimo
artigo, escrito por Karine Arnemann e por Eliete Vanessa Schneider,
objetiva analisar a possível omissão do Estado Brasileiro no caso Garibaldi.
Para tanto, as autoras irão realizar um estudo acerca da internacionalização
dos direitos humanos, bem como da formação dos Sistemas Global e
Regionais de proteção dos direitos humanos.
No décimo primeiro artigo, o autor Alan Felipe Provin busca analisar a
problemática da consolidação dos direitos das pessoas com deficiência, com
ênfase na Lei de Inclusão. O trabalho objetiva investigar as consequências
jurídicas e sociais da mencionada Lei no que se refere à tutela dos direitos
humanos das pessoas com deficiência.
Visando à problemática dos refugiados do Sudão do Sul, o décimo
segundo capítulo realiza um estudo de Direito & Cinema. Escrito por Andy
Portella Battezini, Danielli Cristine Segalin e por Lucas Jacques da Silva, o
trabalho tem por objeto os refugiados do Sudão do Sul, a partir do filme
Uma Boa Mentira, e busca evidenciar o papel humanitário do cinema, bem
como analisar a situação envolvendo a migração e a violação de direitos
humanos no caso dos refugiados.
O capítulo décimo terceiro também abordará os refugiados ambientais.
Escrito por Rodrigo Tonel, Guilherme Hammarstrom Dobler e por Daniel
Rubens Cenci, o trabalho irá refletir acerca dos efeitos das mudanças
climáticas para os direitos humanos, com ênfase nas migrações em
decorrência das problemáticas ambientais. Para os autores, é urgente a
necessidade da construção de uma legislação de proteção internacional às
pessoas que necessitam migrar por motivos climáticos e ambientais.
Na esteira do capítulo anterior, o capítulo décimo quarto também foca na
problemática das migrações ambientais, com ênfase no caso dos imigrantes
haitianos no norte do Estado do Rio Grande do Sul. Escrito por Thaís
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Janaina Wenczenovicz e por Rodrigo Espiúca dos Anjos Siqueira, o
trabalho objetiva analisar a possibilidade de integração e inclusão dos
imigrantes haitianos por meio da educação.
O capítulo décimo quinto, escrito por Luiz Carlos Segala, Mariana
Caroline Lemes e por Jivago Pizarro Schulte Ulguim, tem por objeto as
migrações no mundo contemporâneo e busca analisar o direito ao espaço
urbano ecologicamente equilibrado no contexto das migrações e da
xenofobia.
O objeto do capítulo décimo sexto é a educação em direitos humanos.
Escrito por Diogo Dal Magro, o trabalho objetiva investigar a importância
da sensibilidade para o ensino dos direitos humanos. Partindo da teoria
crítica, o autor sugere que a sensibilidade auxilia no desenvolvimento da
alteridade e no reconhecimento das demais pessoas como sujeito.
Por fim, o décimo sétimo e último capítulo, escrito por Gustavo Polis,
busca analisar os direitos humanos no paradigma do transnacionalismo e,
mais ainda, discorrer sobre o direito no mundo sem fronteiras.
Acreditamos que esse livro nos brinda a importância do estudo, debate e
ensino-aprendizagem dos Direitos Humanos, tanto em sua teoria e leis,
quanto na eficácia concreta de suas normas e na dignidade material. O livro
perpassa temas interessantes e urgentes no mundo contemporâneo, como a
problemática das migrações, o genocídio, as vulnerabilidades e o
Desenvolvimento Humano Sustentável.
Nesse sentido, o texto desenvolvido pelos autores do livro, muitas vezes
com temas que se entrecruzam e se completam, se torna essencial para os
pesquisadores e estudantes dos Direitos Humanos que buscam um contato
mais aprofundado com as problemáticas concretas que assaltam a dignidade
humana em sua acepção mais material: a da vida digna.
Passo Fundo, 21 de novembro de 2016.
Leilane Serratine Grubba
Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
– UFSC
Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado – em
Direito da Faculdade Meridional - IMED
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A DIMENSÃO SOCIAL DA SUSTENTABILIDADE NO
DIREITO DO TRABALHO COM ENFOQUE NOS
HAITIANOS
Yury Augusto dos Santos Queiroz1
Priscila Portella Coutinho2
RESUMO
Por causa do enorme fluxo de refugiados haitianos no Brasil, o presente
artigo traz considerações acerca da dimensão social da sustentabilidade no
direito do trabalho, em seguida elenca quais são os direitos e garantias
trabalhistas dos refugiados que o Brasil deve garantir, tratando
especialmente dos Haitianos, no último capítulo de modo não exaustivo,
expõe os principais problemas na efetivação dos direitos e garantias dos
refugiados haitianos em relação ao direito do trabalho no Brasil. Quanto à
metodologia foram utilizadas as Técnicas do Referente, da Categoria, do
Conceito Operacional e da Pesquisa Bibliográfica, incluindo doutrina e
jurisprudência, pelo método indutivo.
Palavras-chave: sustentabilidade; direito do trabalho; refugiados.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como pressuposto o estudo da dimensão social da
sustentabilidade aplicada ao direito do trabalho, principalmente com relação
aos trabalhadores Haitianos, os quais em uma grande maioria ingressam no
país na qualidade de refugiados buscando melhor qualidade de vida, por
vezes deixando toda família em seu país de origem.
Como dito, esses indivíduos saem do seu país de origem na busca de um
local mais seguro e com a expectativa de garantir o mínimo existencial, o
território brasileiro têm recebido um fluxo enorme dessas pessoas, esse
ingresso teve maior destaque principalmente a partir do ano de 2010 quando
o fluxo migratório significativo dessas pessoas para o Brasil teve início,
atualmente segundo dados apurados pelo site do Jornal Espanhol El País, a
população com nacionalidade haitiana no Brasil figura em torno de 50 mil,
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dos quais 17 mil chegaram com visto e somente 14 mil foram incorporados
ao mercado de trabalho, especialmente na construção civil e na indústria de
processamento de carne, segundo o escritório consular do Brasil em Quito,
no Peru, país que serve de rota migratória, pois faz fronteira com o Acre no
Norte do Brasil, estado que recebe o maior fluxo migratório de chegada da
população haitiana.
Considerando os dados acima, onde pelo menos 3 mil haitianos que
possuem visto não conseguiram emprego, e mais 33 mil sequer possuem
visto e consequentemente, caso empregados atuarão no mercado informal,
surgiu a ideia do presente trabalho, pois para que ocorra uma conexão com
a nova sociedade, ainda que de forma temporária, é necessário que o Estado
receptor supra a necessidade dessas pessoas, assegurando-lhes
oportunidades de trabalho em conformidade com a legislação trabalhista
vigente.
Nesse contexto iniciou-se o estudo de como a aplicação e a inserção
desses haitianos no mercado formal de trabalho contribuiria para o alcance
da sustentabilidade social, no Brasil, mas que também possivelmente reflete
no Haiti, uma vez que muitos dos haitianos que trabalham aqui no Brasil
enviam parte de seus rendimentos para familiares em sua terra natal. Para
essa análise foi colocado como princípio norteador da pesquisa o dever do
Estado em acolher tais indivíduos, buscando verificar quais são os direitos e
garantias inseridos na Constituição Federal e legislação trabalhista que vêm
sendo aplicados de maneira adequada aos trabalhadores “refugiados3”, na
medida em que um ambiente de trabalho equilibrado e saudável é fator
primordial para a qualidade de vida de qualquer trabalhador,
independentemente de sua origem, atuando no Brasil.
Dessa forma, tem-se como objetivo geral da pesquisa, a investigação do
conceito de sustentabilidade em sua dimensão social como paradigma das
relações de trabalho, considerando a inserção dos refugiados nesse meio. O
presente trabalho se justifica quando se fornece um meio ambiente seguro e
sadio aos trabalhadores, estaria sendo concretizada a valorização social da
dignidade do ser humano refletindo diretamente no desenvolvimento da
sociedade. Buscou-se também verificar quais são os principais problemas
enfrentados atualmente pela população haitiana nas relações de trabalho, e
se há efetivação de seus direitos e garantias enquanto “refugiados”,
considerando que muitas vezes acabam sendo discriminados pelos
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empregadores que também violam os seus direitos trabalhistas, sobretudo
com a ausência de registro ou com pagamento de salários abaixo do piso da
categoria ou do salário mínimo.
Para facilitar a exposição do tema o presente artigo restou divido em três
itens, o primeiro traz considerações acerca da dimensão social da
sustentabilidade no direito do trabalho, posteriormente se buscou elencar
quais são os direitos e garantias dos refugiados que o Brasil deve garantir,
tratando especialmente dos Haitianos e o direito do trabalho, no último item
foram elencados de modo não exaustivo, os principais problemas na
efetivação dos direitos e garantias dos refugiados haitianos em relação ao
direito do trabalho no Brasil. Quanto à metodologia empregada no artigo
científico, este se realizou pela base lógica indutiva, e foram utilizadas as
Técnicas do Referente, da Categoria, do Conceito Operacional e da
Pesquisa Bibliográfica, incluindo doutrina e jurisprudência.
2 DIMENSÃO SOCIAL DA SUSTENTABILIDADE NO
DIREITO DO TRABALHO
A sustentabilidade é definida como um processo mediante o qual se tenta
construir uma sociedade global capaz de se perpetuar indefinidamente no
tempo em condições que garantam a dignidade humana, logo, será
sustentável tudo aquilo que contribua com esse processo e insustentável
será aquilo que se afaste dele (CRUZ, FERRER, 2015, p.240).
Nos dizeres de Huntigton (apud CANOTILHO, 2002, p.25), a
sustentabilidade corresponde num dos fundamentos do que se chama de
princípio da responsabilidade de longa duração, consistindo na obrigação
dos Estados e de outras forças políticas em adotarem medidas de precaução
e proteção, em nível elevado, para garantir a sobrevivência da espécie
humana e da existência condicente com a dignidade das futuras gerações.
Por demandar esforços de todas as áreas e entidades, a sustentabilidade é
multidimensional, ou seja, não se opera em um único âmbito da sociedade.
Quando se iniciaram os primeiros passos em busca da sustentabilidade
foram definidas inicialmente três dimensões da sustentabilidade para
facilitar a implementação de seu ideal, são elas: a social, a ambiental e a
econômica. Essas dimensões são vistas como os pilares da sustentabilidade
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que ao mesmo tempo em que são interdependentes, também se sustentam
mutuamente.
Além das três dimensões citadas, outros autores como Gabriel Real
Ferrer e Juarez Freitas elencam pelo menos mais duas dimensões da
sustentabilidade. Para Freitas (2012, p.58) a sustentabilidade pode ser
estudada em pelo menos cinco dimensões: social, ética, ambiental,
econômica e jurídico-politica4, Ferrer (2015, p.253) por seu turno
acrescenta a dimensão tecnológica ao estudo da sustentabilidade5.
Porém como o presente artigo se fundamenta especificamente na
dimensão social da sustentabilidade, somente está dimensão será mais bem
definida a seguir.
No aspecto social a sustentabilidade parte do princípio de que não se
pode admitir um modelo de desenvolvimento onde se incluem alguns e se
excluem outros, seja por raça, gênero ou qualquer outra forma pré-definida.
Como dito anteriormente se deve sempre ir à busca da qualidade de vida
digna para todos, sobre este ponto Ferrer (2012, p.311) diz o seguinte:
[...] la calidade de vida se asocia y depende del entorno vital en que nos movamos. Entorno
físico-natural, etorno afectivo y entorno-social. Pois bien, como veremos, la humanidad tiene
ante sí el monumental reto de adecuar sus conductas individuales e celectivas para hacer
posible um futuro de esperanza que conserve um medio ambiente adecuado para nuestro
desenvolcimiento colectivo y sea capaz de crear una sociedad, más justa y solidaria, que
haga posible nuestra realización personal em um marco de dignidade colectiva. Ese es el reto
y ese el nuevo paradigma, la sostenibilidad.
Ou seja, o alcance da sustentabilidade demanda um esforço comum de
todas as áreas, de todas as pessoas, um modelo de governança que apresente
medidas universais com eficiência e eficácia (FREITAS, 2012, p.59), os
agentes devem pensar globalmente e atuar localmente (FERRER, 2013,
p.359). Em busca de melhor entendermos a dimensão social da
sustentabilidade, temos também a definição de Denise e Heloise Garcia
(2015, p.44), para quem a dimensão social:
[...] consiste no aspecto social relacionado às qualidades dos seres humanos, sendo também
conhecida como o capital humano. Ela está baseada num processo de melhoria na qualidade
de vida da sociedade através da redução das discrepâncias entre a opulência e a miséria com
o nivelamento do padrão de renda, o acesso à educação, à moradia, à alimentação. Estando,
então, intimamente ligada à garantia dos Direitos Sociais, previstos no art.6º da Carta
Política Nacional, e da Dignidade da Pessoa Humana, princípio basilar da República
Federativa do Brasil.
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Complementando o conceito acima, para Freitas (2012, p.60) a dimensão
social da sustentabilidade reclama incremento da equidade, na
potencialização e no fomento das qualidades humanas com educação de
qualidade, além do engajamento na causa do desenvolvimento que perdura
e faz a sociedade mais apta a viver a longo prazo, com dignidade e acima de
tudo respeito à dignidade dos demais seres vivos.
Nesse contexto, é possível verificar, por exemplo, que a preservação do
meio ambiente ou a obtenção de uma sociedade “sustentável”, será
manifestamente insustentável se obtida por meio de trabalho indecente,
escravo ou que possua qualquer outro aspecto análogo, que fira a dignidade
do ser humano.
Maia e Pires (2011, p.182) destacam que o desenvolvimento sustentável
significa prosperidade globalmente compartilhada e ambientalmente
sustentável. Indicam que, para o desenvolvimento sustentável, são
necessárias três mudanças fundamentais: sustentabilidade ambiental,
estabilização populacional e fim da miséria. Essas mudanças só poderão ser
alcançadas com uma mobilização global, fundamentada em um processo de
cooperação e interação entre povos, mas que exige negociação e
acomodação entre as visões de mundo criadas pelas pessoas, regiões e
nações sobre a sustentabilidade.
Dentro desse desenvolvimento sustentável e considerando a dimensão
social da sustentabilidade, o meio ambiente de trabalho também deve
guardar equilíbrio, Freitas (2012, p.59) diz que este não pode seguir
acidentado, tóxico e contaminado, física e psicologicamente, sob pena de
ser insustentável. É impossível dizer que existe uma sociedade sustentável
onde direitos básicos são tolhidos, Diniz e Maciel (2012, p.500), asseveram
que o meio ambiente de trabalho deve ser visto sob os seguintes aspectos: a)
fisiológico, que corresponde ao grau de adaptação do trabalhador ao meio
físico; b) moral, decorrente de aptidões humanas, motivação, grau de
satisfação, personalidade, etc; c) social, ou seja, a interdependência entre o
trabalho e a sociedade; d) econômico, relacionado com a produção de
riquezas, propriedade, os bens produzidos, organizações empresariais e
outros. E uma vez feridos qualquer um desses aspectos, inexiste a
sustentabilidade no ambiente de trabalho e impossível é o desenvolvimento
sustentável, bem como o alcance da sustentabilidade.
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A proteção do meio ambiente de trabalho fundamenta-se no princípio da
solidariedade, previsto no art. 3º, I, da Constituição Federal, pois, sendo
difusa a sua natureza, as consequências decorrentes de sua degradação,
como os acidentes de trabalho e as doenças ocupacionais, atingem toda a
sociedade (CIRINO, 2014, p.100).
Assim, é possível dizer que mais fundamental do que produzir vagas de
emprego, é indispensável manter um ambiente de trabalho digno e
sustentável, isso porque os problemas ambientais e sociais estão
necessariamente interligados e somente será possível tutelar adequadamente
o meio ambiente com a melhora das condições gerais da população (CRUZ;
FERRER, 2015, p.253), e somente proporcionando um ambiente de
trabalho digno bem como os direitos básicos do trabalhador é que se verá
satisfeita a dimensão social da sustentabilidade.
Em resumo, a sustentabilidade só pode ser alcançada se operada em
todos os setores da sociedade, logo, o ambiente de trabalho não está
excluído, uma vez que para maioria da população, pelo menos metade de
seu tempo útil é gasto nas atividades desempenhadas em seu local de
trabalho.
3 DIREITOS E GARANTIAS DOS REFUGIADOS NO
BRASIL: HAITIANOS
A Carta Magna brasileira traz entre seus artigos além dos princípios
básicos pelos quais se deve guiar o pais, um elenco de vários direitos
individuais e coletivos que devem ser garantidos à a todos aqueles que
estejam em nosso território, dentre eles: dignidade (art.1º, III), valores
sociais do trabalho e livre iniciativa (art.1º, IV), uma sociedade justa e
solidária, desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza e redução das
desigualdades sociais e regionais, promoção do bem de todos sem distinção,
sem preconceito ou qualquer outra forma de discriminação (art.3º, I, II, III,
IV), e estes são apenas os elencados nos três primeiros dispositivos da
CRFB/88. E o rol continua: assegura que ninguém deve ser submetido a
tratamento desumano ou degradante (art.5º, III), assegura a igualde entre
todos (art.5º, caput), assegura o livre exercício do trabalho (art.5º, XIII),
define como direitos sociais a educação, saúde, alimentação, o trabalho,
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moradia, lazer, segurança, a previdência social, proteção da maternidade
(art.6º).
Em relação ao Direito do Trabalho a Carta Magna também assegura
alguns direitos específicos, em sua maioria estão elencados no art.7º da
CRFB/88, e podemos colocar como principais, os seguintes: proteção
contra despedida arbitrária ou sem justa causa, concessão do segurodesemprego, fundo de garantia por tempo de serviço, o salário mínimo ou
piso salarial e irredutibilidade do mesmo, décimo terceiro salário, saláriofamília, repouso semanal, licença maternidade, aposentadoria, seguro contra
acidente de trabalho, proibição de diferença de salários, de exercício de
funções e de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado
civil.
Além dos exemplos acima constantes da CRFB/88, a própria CLT –
Consolidação das Leis de Trabalho traz outras várias garantias ao
trabalhador, buscando a em primeiro lugar proteger o “proletariado” em
relação ao “Capital”, através da manutenção dos direitos adquiridos pelo
trabalhador com muito custo ao longo dos anos.
Porém, questiona-se se esses direitos são garantidos também aos
refugiados que atualmente são residentes no pais? Ou melhor, será que
essas garantias ainda que disponíveis a eles, são efetivadas pelos
empregadores? Antes de responder estes questionamentos, é necessário
saber primeiro como são regulados os refugiados no Brasil, e se os
haitianos, objeto central do presente artigo, são considerados refugiados ou
possuem outra qualificação no direito internacional.
Araújo (2001, p.67) explica que:
[...] os direitos dos refugiados no Brasil transitam por duas etapas: a das declarações e a dos
tratados. O Brasil foi partícipe ativo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e
ainda assinou, ratificou e promulgou os principais documentos relativos aos refugiados:
Estatuto dos Refugiados, de 1951, e o Protocolo sobre o Estatuto, de 1967.
Assim, pode-se dizer que no plano interno a regulamentação de origem internacional e
cunho universal foi adotada plenamente pelo Brasil, que além disso, recentemente
estabeleceu esses direitos e deveres através de uma lei interna, a Lei n.9.474/97, que
implementou os mecanismos preconizados no Estatuto dos Refugiados.
A Lei n.9.474/97 que define mecanismos para a implementação do
Estatuto dos Refugiados de 1951 e dá outras providencias, ainda que nãos
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seja mais tão recente quanto citou Araújo acima, ainda é vigente e explica
que serão considerados refugiados todos os indivíduos que:
I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade,
grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa
ou não queira acolher-se à proteção de tal país;
II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual,
não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso
anterior;
III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país
de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.
Por outro lado segundo pesquisa levantada entre 2012 e 2013, e
denominada de “Estudos sobre a migração Haitiana ao Brasil e Diálogo
Bilateral” de fevereiro de 2014, produzida com o apoio da PUC Minas e
Ministério do Trabalho, a maior parte dos Haitianos que entram no pais
vêm por causa do terremoto que atingiu o Haiti em 12 de Janeiro de 2010,
ou seja, não deixam o pais por conta de perseguição política ou qualquer
outro fator elencado no Estatuto dos Refugiados ou na Lei n.9.474/97 que o
recepcionou em nosso pais, sendo assim, qual é o tipo de visto concedido a
estas pessoas que entram em nosso pais em busca de melhores condições de
vida “fugindo” da devastação causada por desastre natural?
Antes de adentrar na resposta, é importante consignar que atualmente
existem pelo menos dois órgãos principais que cuidam da situação dos
estrangeiros, refugiados ou não, residentes no Brasil e também daquelas
pessoas que desejam entrar no pais e nele permanecer por outras razões
além daquelas diretamente relacionadas ao visto de refugiado.
Com a criação mais recente temos o CONARE - Comitê Nacional para
os Refugiados, é um órgão de deliberação coletiva, no âmbito do Ministério
da Justiça, criado pela Lei n.9.474/97, suas atribuições e regulamento estão
relacionados na referida lei, mas em resumo ele é competente para: a)
analisar o pedido e declarar o reconhecimento, em primeira instância, da
condição de refugiado, b) decidir a cessação, em primeira instância, ex
officio ou mediante requerimento das autoridades competentes, da
condição de refugiado, c) determinar a perda, em primeira instância, da
condição de refugiado; d) orientar e coordenar as ações necessárias à
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eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados; e)
aprovar instruções normativas esclarecedoras à execução desta Lei.
Há também o CNIg - Conselho Nacional de Imigração criado pela Lei
n.6.815/80, esta que também define a situação dos estrangeiros no Brasil.
Ao CNIg compete: a) formular a política de imigração, b) coordenar e
orientar as atividades de imigração, c) efetuar o levantamento periódico
das necessidades de mão-de-obra estrangeira qualificada, para admissão
em caráter permanente ou temporário, d) definir as regiões de que trata o
art. 18 da Lei n° 6.815, de 19 de agosto de 1980, e elaborar os respectivos
planos de imigração, e) promover ou fornecer estudos de problemas
relativos à imigração, f) estabelecer normas de seleção de imigrantes,
visando proporcionar mão-de-obra especializada aos vários setores da
economia nacional e captar recursos para setores específicos, g) dirimir as
dúvidas e solucionar os casos omissos, no que diz respeito a imigrantes, h)
opinar sobre alteração da legislação relativa à imigração, quando proposta
por qualquer órgão do Poder Executivo.
Pois bem, considerando que o motivo que trouxe a maioria dos haitianos
ao Brasil é a ocorrência do terremoto que devastou o Haiti em 2010, e que
essas pessoas não podem e não devem ser consideradas refugiadas, pois
não se encaixam nos requisitos elencados pelo Estatuto dos Refugiados ou
da Lei n.9.474/97, mas que também não poderia o Brasil deixar de atuar
junto à essas pessoas, com a finalidade de não deixá-los a mercê da sorte, o
CNIg editou a resolução n.97 em 12/01/2012 que permite a concessão de
visto permanente ao nacional do Haiti conforme previsão do art. 16 da Lei
nº 6.815/80, por razões humanitárias6, condicionado ao prazo de 5 (cinco)
anos, nos termos do art. 18 da mesma Lei, circunstância que constará da
Cédula de Identidade do Estrangeiro, após este prazo o indivíduo deverá
comprovar a sua situação laboral para fins da convalidação da permanência
no Brasil e expedição de nova Cédula de Identidade de Estrangeiro. A
validade da resolução n.97 seria de apenas dois anos, mas restou prorrogada
até 30 de Outubro de 2016.
Complementando a resolução acima o Conselho Nacional de Justiça
através de Despacho publicado no D.O.U. em 12/11/2015, listou
nominalmente os 43.871 haitianos residente no País que devem
encaminhar-se aos departamentos da Polícia Federal para solicitar o visto
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permanente e regularizar sua situação no Brasil de acordo com a referida
resolução.
Até agora se verificou que são concedidos vistos humanitários pelo prazo
de cinco anos, e depois ou se preenchidos os requisitos antes, é concedido o
visto permanente aos estrangeiros que desejam permanecer no Brasil, entre
eles os Haitianos. Pois bem, mas é as garantias de trabalho? Só os
estrangeiros com visto permanente é que podem obter a carteira de trabalho
e gozar dos mesmos direitos de trabalhadores brasileiros? A resposta é não,
após o registro na Polícia Federal, o nacional haitiano estará apto a retirar
seu documento para trabalho nas agências credenciadas pelo Ministério do
Trabalho e Emprego (MTE), ainda que não lhe tenha sido concedido o visto
permanente ou esteja seu pedido sob análise do CNIg, o estrangeiro
também pode realizar o pedido do CPF após o registro junto a Polícia
Federal (MILESI, ALVES, 2012, p. 02).
Assim, em posse do documento necessário ao ingresso nas relações de
trabalho formais, Carteira de Trabalho (CLT, art.13), o estrangeiro e
especificamente para fins deste trabalho os Haitianos, gozam dos mesmos
direitos inerentes aos trabalhadores brasileiros, por força do art.5º da
CRFB/88 que determina a igualdade de direitos entre brasileiros e
estrangeiros. Porém, infelizmente os empregadores nem sempre garantem à
essas pessoas os direitos da CLT conforme será abordado no próximo
capítulo.
4 PRINCIPAIS PROBLEMAS NA EFETIVAÇÃO DAS
GARANTIAS E DIREITOS DOS REFUGIADOS
HAITIANOS EM RELAÇÃO AO DIREITO DO TRABALHO.
Conforme a abordagem trazida nos itens anteriores, verificou-se que o
principal motivo da chegada de Haitianos no Brasil é a busca por melhores
condições de vida, incluindo as condições de trabalho, comparadas ao que
tinham em seu país de origem. Principalmente considerando a ocorrência do
terremoto que abalou o país em 2010, causando a grande situação de
miserabilidade para a população.
Em relação ao ingresso desses indivíduos no mercado de trabalho, foi
visto que não há nenhum óbice na legislação, no sentido de impedir que os
16
imigrantes haitianos recebam o mesmo tratamento digno e tenham
garantido os mesmos direitos trabalhistas que são assegurados aos
brasileiros. Portanto, após a entrada no país com o cumprimento de todas as
exigências legais, tais como: retirada do visto, emissão da Cédula de
Identidade de Estrangeiro, CPF e CTPS, em tese, o imigrante haitiano
estará apto para buscar emprego, a fim de garantir o seu sustendo e de sua
família.
No sentido de facilitar o acesso dessas pessoas no país, além da iniciativa
e incentivos dados pelo governo, principalmente na emissão dos vistos para
entrada legal e regular no Brasil, algumas organizações não governamentais
criaram projetos que promovem a integração do imigrante haitiano na
sociedade brasileira.
Como exemplo disso, pode-se citar a ONG Viva Rio7 que conforme sua
própria descrição, atua na formação de comunidades seguras e sadias, tem
entre suas realizações o projeto denominado “Haiti Aqui”, o objetivo é de
facilitar a integração do imigrante haitiano8. No site da ONG disponível em
português, inglês, francês e crioulo haitiano, essas últimas, consideradas as
línguas oficiais do Haiti, estão presentes várias informações sobre os
procedimentos necessários para retiradas de documentos, telefones e
endereços úteis para a utilização do imigrante haitiano, além de
atendimentos e eventos elaborados para auxiliar em diversos temas, tais
como: saúde, educação, lazer e trabalho.
No que diz respeito às questões trabalhistas, além de informações básicas
presentes no próprio site e do atendimento realizado na sede da Viva Rio,
consta também um link que encaminha o leitor ao “Guia de Informação
Sobre Trabalho aos Haitianos” (2012), que foi elaborado pelo Ministério do
Trabalho e Emprego, e serve como explicativo aos imigrantes vindos do
Haiti, contendo informações essenciais sobre como solicitar a CTPS,
elaborar um currículo, de como se portar em uma entrevista de emprego, ou
ainda, em relação ao momento da contratação, quais são os direitos básicos
do trabalhador, como: salário mínimo, jornada de trabalho, descontos
salariais, FGTS, férias, rescisão contratual, e outros direitos e deveres
inseridos na legislação trabalhista brasileira, as quais também atingem e são
aplicáveis ao trabalhador haitiano.
Além disso, também estão disponíveis orientações sobre quais
procedimentos deverão ser tomados em caso de descumprimento dessas
17
obrigações e da legislação vigente por parte do empregador.
Entretanto, apesar de algumas ONGs como a citada anteriormente
prezarem pela efetivação e o cumprimento das normas trabalhistas aos
haitianos, bem como no acesso à informação de maneira simplificada, o que
se vê na prática é que ainda existe muita discriminação em face de esses
indivíduos, trazendo problemas como clandestinidade nas contratações,
irregularidades de registro, salários abaixo do piso ou do mínimo ou até
mesmo algumas situações de trabalho escravo.
Em pesquisa ao site Portal Brasil, com notícia publicada em janeiro de
2016, verificou-se que no ano de 2015 mais de 1000 (mil) pessoas foram
resgatadas do trabalho escravo, dentre estas, se encontravam
aproximadamente 65 imigrantes haitianos.
No mesmo sentido, a Universidade Federal de Minas Gerais, desenvolve
um projeto denominado “Clinica de Trabalho escravo e Tráfico de Pessoas”
que faz parte do curso de Direito da Universidade e, dentre outros objetivos
e estudos, realiza pesquisas em âmbito nacional e internacional a cerca
dessa problemática, verificou-se em notícia de junho deste ano que o
número de refugiados e imigrantes disparou no Brasil desde 2010 em
2.800%. Ou seja, trata-se de questão de grande dificuldade tanto para o
governo, quanto para a sociedade, no sentido de fornecer tratamento
adequado e em igualdade para essas pessoas.
Por esta razão, em virtude da ausência ou do pouco investimento em
políticas migratórias, é que surgem as principais dificuldades enfrentadas,
inclusive os abusos por parte de pessoas que aproveitam esta situação para
explorar e escravizar os imigrantes. Segundo estudo divulgado pela UFMG
(2016), no ano de 2013 mais de 120 haitianos foram resgatados de
condições análogas à escravidão em duas operações realizadas pelo
Ministério do Trabalho. No maior desses resgates, onde cerca de 100
imigrantes haitianos foram retirados de condições extremas de escravidão, o
auditor fiscal Marcelo Gonçalves Campos9, comparou a situação em que o
grupo se encontrava como uma verdadeira senzala: “Uma das casas parecia
uma senzala da época da colônia, era absolutamente precária. No fundo,
havia um espaço grande com fogões a lenha. A construção nem era de
alvenaria”.
Outro caso envolvendo escravidão de haitianos ocorreu em Cuiabá –
Mato Grosso, onde 21 vítimas foram resgatadas de um alojamento em
18
situação degradante, com falta de água constante, além de não haver cama
para todos os moradores, que haviam sido contratados para construção de
casas em um residencial financiado pelo programa de habitação Minha
Casa Minha Vida. Ou seja, nem o programa financiado pelo Governo
Federal estava sendo fiscalizado corretamente a fim de evitar esse tipo de
situação.
Em decorrência dessa situação que assola o país, já existem decisões
judiciais que discorrem sobre casos de irregularidades que vem sido
enfrentados por imigrantes. Em decisão do TRT da 1ª Região de Rondônia,
o Relator Gustavo Tadeu Alkmim mencionou em trecho do seu acordão o
seguinte10:
[...] não se pode negar ao estrangeiro, ainda que em situação irregular no Brasil, direitos
concedidos pela lei a qualquer trabalhador, uma vez constatado, como é o caso dos autos, a
existência de uma relação típica de emprego, nos moldes da CLT. Seria um incentivo à
precarização das relações laborais, um desprezo à dignidade da pessoa humana, que não se
restringe aos brasileiros, os quais, por muito tempo, já sofreram esse tipo de discriminação
no então chamado “Primeiro Mundo”. Nem se diga, como atualmente alguns defendem, em
razão do êxodo haitiano, que esse tipo de postura ameaça o mercado de trabalho para os
nativos aqui. Ao contrário. Negar a estrangeiros em situação irregular direitos trabalhistas,
isso sim, incentivará a contratação deles em detrimento dos brasileiros, já que esses últimos
podem recorrer à Justiça se forem lesados.
Para o relator, a situação irregular do trabalhador estrangeiro não é obste
para o reconhecimento de vínculo empregatício, bem como anotação da
CTPS e recolhimento previdenciário. Tampouco deve servir de desculpa
dos empregadores para sonegação dos direitos e garantias fundamentais que
devem ser aplicados tanto aos nacionais quanto aos imigrantes.
Ainda sobre o tema, segundo dados levantados pelo CNIg (Conselho
Nacional de Imigração), Paulo Sérgio de Almeida, presidente do Conselho,
informou que aproximadamente 30% dos haitianos que trabalham no país
possuem Carteira de Trabalho assinada, enquanto que este número chega à
60% para os trabalhadores brasileiros.11 Informa ainda, que as
recomendações do governo aos haitianos chegam no país, é de buscar
entidades como ONGs para que possam obter informações necessárias e
ajuda de como se manter no Brasil. Porém, ainda que existam essas
entidades e algumas políticas elaboradas pelo Ministério da Educação e do
Trabalho, ainda é pouco diante da imensidão de novos imigrantes que
19
chegam a cada dia, além da falta de fiscalização em decorrência da extensão
do território nacional.
Ressalta-se, que além da carência nas políticas públicas para imigrantes,
outras dificuldades também são enfrentadas pelos Haitianos na chegada ao
país, o que reflete em vários obstáculos para obtenção e manutenção de
empregos regulares.
De acordo com a pesquisa levantada pelo Ministério do Trabalho e
Emprego em 2012 e 2013, denominada “Estudos sobre a migração Haitiana
ao Brasil e Diálogo Bilateral” (2014), o próprio serviço público, em
questões de demora e burocracia para retirada de documentação e de vistos
permanentes, contribuem para este impacto negativo.
Além disso, no mesmo estudo foi questionado quais sugestões os
imigrantes haitianos poderiam dar ao governo brasileiro e também do Haiti,
para a melhoria dos problemas encontrados no processo migratório. Dentre
as sugestões, 24% estão relacionadas à melhora no acesso ao mercado de
trabalho e de salários, sendo que 14 % diz respeito ao atendimento do
governo com os imigrantes. Portanto, percebe-se que um dos principais
problemas, senão o principal a ser enfrentado, ainda está relacionado à
garantia de acesso a empregos regularizados.
Como dito no início do capítulo, algumas medidas vêm sendo tomadas
para amenizar essa questão. As principais ações a nível federal com relação
aos haitianos foram: a concessão dos vistos permanentes em caráter
humanitário a partir de 2012; o lançamento e distribuição de duas cartilhas
direcionadas a esses migrantes, as quais foram mencionadas anteriormente;
e por fim, medidas para reduzir o número de haitianos que permanecem por
mais tempo no abrigo de Brasileia, no Acre.
Entretanto, o processo ainda é lento, pois como visto, as medidas
adotadas pelo governo federal para regulamentação do estrangeiro haitiano
no país, ainda são muito pequenas em relação à demanda. Dessa forma, por
mais que a legislação brasileira permita que trabalhadores imigrantes
tenham os mesmos direitos e garantias fundamentais assegurados aos
nacionais, na prática a tendência é que a situação de irregularidade no
mercado de trabalho só aumente, ante a ausência de fiscalização e de
medidas governamentais para aplicação correta dessas leis.
20
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa realizou uma exposição acerca do estudo da
dimensão social da sustentabilidade no que tange aos “refugiados”
ambientais Haitianos e a efetividade da aplicação das normas trabalhistas a
esses indivíduos. Como visto no decorrer do trabalho, desde o terremoto
que atingiu o país em 2010, o Brasil vem recebendo enorme fluxo dessas
pessoas, as quais buscam principalmente melhores condições de vida para
seus familiares, tendo como objetivo a procura por condições de trabalho
adequadas para garantir a referida condição.
Constatou-se que a preservação do ambiente ou de uma sociedade
sustentável somente é possível a partir do momento em que é obtida por
meio de trabalho decente e que não afronte a dignidade da pessoa humana.
Dentro dessa perspectiva de desenvolvimento sustentável, foi possível
constatar que o meio de ambiente de trabalho deve ser equilibrado para
garantir o crescimento sadio e seguro da sociedade, a fim de que os direitos
básicos do trabalhador sejam assegurados.
Observou-se ainda que os haitianos na maioria das vezes se mudam para
o Brasil na tentativa de fugir dos desastres causados pelo terremoto que os
atingiu em 2010, logo esta motivação não lhes permite enquadrar-se no
conceito de refugiados propriamente ditos, por este motivo recebem visto
humanitário para permanecerem em território brasileiro legalmente.
Em relação às garantias trabalhistas, os haitianos assim como qualquer
outro estrangeiro residente no território brasileiro, goza dos mesmos
direitos adquiridos pelos nacionais. Porém, muito embora esses imigrantes
devam receber o mesmo tratamento e tenham os mesmos direitos dos
brasileiros, na prática a situação é diferente.
Como visto no último item, algumas iniciativas foram tomadas pelo
governo do Brasil, como por exemplo, a emissão de vistos permanentes aos
imigrantes e a criação de programas do Ministério do Trabalho e Emprego
em parceria com ONGs e Universidades, no sentido de informatizar e
prestar auxílio a essas pessoas, principalmente para direcioná-las na retirado
da documentação necessária para o ingresso e permanência no mercado de
trabalho.
21
Além disso, ao longo dos anos foram criadas cartilhas com informações
sobre os principais direitos trabalhistas assegurados aos brasileiros e
também aplicáveis aos haitianos, na tentativa de prepará-los melhor e
facilitar sua integração. Ocorre que apesar desses programas criados pelas
ONGs e também da facilitação dada pelos órgãos governamentais,
observou-se que o investimento nesse sentido ainda é baixo, o que leva a
questão da clandestinidade e da ausência de cumprimento das normas
trabalhistas pela falta de fiscalização. E que além desses fatores, há também
grande discriminação face a esses indivíduos.
Por conta desses problemas acima destacados e do estudo realizado,
podemos dizer que o principal problema que se pode notar está relacionado
ao trabalho sem a devida anotação da CTPS, pagamento de salário abaixo
do piso ou até mesmo do mínimo o que acarreta em situações piores, como
a de escravidão.
Por outro lado, esse problema não atinge somente os Haitianos, ele
atinge também brasileiros menos favorecidos e não conhecedores da
integralidade de seus direitos trabalhistas, ainda há falta de informação
adequada e fiscalização na aplicação das normas trabalhistas, esse é um
problema velho no Brasil, mas que ainda não foi solucionado, cabe aos
nossos governantes agir nesse sentido de forma mais atenta, mas cabe
também ao cidadão exigir o cumprimento da Lei e a efetividade de seus
direitos alcançados a duras penas.
6 REFERENCIAS
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22
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23
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24
A PROBLEMÁTICA DA APATRIDIA NO MUNDO
CONTEMPORÂNEO E A QUESTÃO DO
DESENVOLVIMENTO HUMANO
Caroline Bresolin Maia Cadore12
Leilane Serratine Grubba13
RESUMO
O presente artigo tem por objeto a problemática da apatridia no mundo
contemporâneo e busca, enquanto objetivo geral, analisar a situação das
pessoas apátridas à luz do desenvolvimento humano. Nesse sentido, o texto
questiona o conceito de apatridia e problematiza as possibilidades de acesso
aos direitos e satisfação das necessidades de pessoas apátridas por meio da
ideia de desenvolvimento humano. A pesquisa se desenvolverá a partir de
uma revisão bibliográfica e de dados disponíveis acerca do Índice de
Desenvolvimento Humano e sua evolução ou não em determinado espaço
de tempo. Nesse sentido, a pesquisa problematizou se é possível estabelecer
uma relação entre a situação das pessoas apátridas e os resultados
alcançados pelo Indexador de Desenvolvimento Humano (IDH),
considerando-se os dados relativos à saúde, à educação e ao rendimento. A
hipótese provisória apresentada sugere que, justamente a desigualdade de
acesso aos bens que perfazem a dignidade, como a saúde e a educação,
entre grupos de pessoas apátridas e pessoas cidadãs de determinado país,
implica em considerar que a situação de desenvolvimento humano
relacionada aos apátridas difere do resultado final apresentado pelo
mencionado indexador global. Certo é que a análise do indexador, que se
refere aos dados médios de um determinado país, não abarcando as
desigualdades ajustadas, não permite inferir dados relativos às pessoas
apátridas. Por outro lado, a aparente desigualdade de acesso aos bens por
parte dos apátridas possibilita inferir uma desigualdade no que tange aos
dados médios apresentados pelo IDH. Este trabalho compreende que há
relação direta entre a situação de apatridia e o aumento ou diminuição do
Índice de Desenvolvimento Humano.
25
Palavras-chave:
Apatridia.IDH.
Direitos
Humanos.
Desenvolvimento
Humano.
1 INTRODUÇÃO
Aproximadamente quinze milhões de pessoas não possuem vínculo de
nacionalidade com qualquer Estado. Pessoas que, por motivos de dissolução
de seu Estado originário, por motivos de migração, por motivos de
afiliação, dentre outros motivos, não são reconhecidas por nenhum Estado
como nacionais. Essas pessoas, denominadas apátridas pelo Direito
Internacional, vêm largamente aumentando em número nos últimos anos,
segundo as Nações Unidas. Essa situação de não vínculo-Estatal e não
pertencimento comunitário parece gerar graves consequências ao
desenvolvimento humano.
O problema da apatridia, em primeira análise, pode parecer simples. Ele
gera, contudo, impacto severo nas vidas das pessoas. A nacionalidade,
conforme o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
(ACNUR), é requisito essencial para a participação na sociedade, bem
como pré-requisito para o usufruto dos direitos humanos, em seus múltiplos
aspectos. Apesar de serem, os direitos humanos, universais e inerentes a
todos, alguns direitos, como direitos políticos, são limitados à
nacionalidade. Outros direitos, como direitos sociais, são veementemente
violados na prática. Os apátridas são frequentemente impossibilitados de
obterem documentos de identidade física, motivo pelo qual acessam a
educação e aos serviços de saúde em completa desigualdade para com os
nacionais14.
Frente à grave situação de desenvolvimento dos apátridas, a pesquisa
objetiva analisa-los, a nível mundial, bem como investigar as consequências
geradas pelo não vínculo de nacionalidade. Busca-se analisar a situação das
pessoas apátridas à luz do desenvolvimento humano. Diante disso, o artigo
problematiza a relação possível entre o desenvolvimento humano,
principalmente o indexador de desenvolvimento humano e a situação dos
apátridas. Considerando-se os indicadores medida do desenvolvimento
humano, é possível afirmar que existe uma equitatividade de
desenvolvimento entre as pessoas cidadãs e as apátridas?
26
Preliminarmente, a hipótese sugere que os apátridas, em razão do menor
acesso aos direitos inerentes, como direitos políticos e sociais, não
conseguem acessar equitativamente o mesmo nível de desenvolvimento que
alcançam as pessoas com cidadania. A hipótese apresentada parte do
pressuposto oferecido pelos dados de desigualdade de acesso aos direitos
por parte dos apátridas e a relação entre tal desigualdade e os dados médios
obtidos pelo IDH. Importante mencionar que nenhuma análise do IDH
possibilita uma inferência acerca dos índices de desigualdade relacionado às
pessoas sem nacionalidade dentro de um país, tampouco permite extrair
dados específicos relativos aos apátridas.
O enfrentamento do problema e da hipótese ocorrerá por meio do
método da tentativa e erro. Metodologicamente, se busca averiguar se a
hipótese oferecida ao problema pode ser tida como provisoriamente
corroborada ou se deve ser ela refutada. Diante disso, em primeiro lugar,
será apresentado o problema do artigo: será analisado o conceito de
desenvolvimento e o seu indexador medida, o IDH (Índice de
Desenvolvimento Humano). Sequencialmente, será apresentada a hipótese
provisória, isto é, o conceito e consequências da apatridia. Finalmente, será
realizado um balanço a fim de investigar se a hipótese apresentada
consegue sustentar-se por meio dos dados concretos relacionados às
consequências da apatridia e, ainda, os objetivos do desenvolvimento
humano e suas características.
2 DESENVOLVIMENTO HUMANO E O SEU ÍNDICE DE
DESENVOLVIMENTO
A definição de desenvolvimento humano foi concebida a partir da ideia
de ampliação das possibilidades de escolhas das pessoas, com o objetivo
que elas desenvolvam capacidades e aptidões, bem como tenham
oportunidades que viabilizem se tornarem o que quiserem ser. Além disso,
baseia-se no preceito de que é necessário ultrapassar a visão estritamente
econômica para examinar a melhora na qualidade de vida de modo mais
efetivo, levando em consideração, entre outros, fatores sociais e culturais.
Não afasta, em absoluto, a importância da renda, mas analisa seu papel
27
apenas como um dos meios de obtenção do desenvolvimento, dentre outros
meios importantes (PNUD, 2016).
O desenvolvimento humano, visto sob esse viés, é uma tentativa de
proporcionar dignidade material às pessoas, isto é, de saber se os direitos
humanos, garantidos jurídica e politicamente, são efetivos na vida das
pessoas, considerando-se o acesso delas aos bens materiais e imateriais que
garantem a vida digna. Assim, o desenvolvimento, além de humano, deve
ser equânime e sustentável. Isso significa a possibilidade de acesso a uma
vida satisfatória equitativamente pela atual geração, bem como a reserva
dos recursos para as gerações futuras.
Para confrontar o Produto Interno Bruto per capita (PIB per capita), que
encara apenas a esfera econômica de desenvolvimento, foi criado o Índice
de Desenvolvimento Humano (IDH). Fica evidente o viés antagônico do
indexador ao se verificar que o PIB se refere apenas ao aspecto financeiro,
enquanto o IDH pretende ser um parâmetro que considera de forma geral o
desenvolvimento humano. Ainda que alargue a visão acerca dele, alguns
aspectos importantes não são alcançados por essa conta, que deixa de fora
questões como democracia e desigualdades nos seios sociais. Cabe salientar
que o objetivo do Índice de Desenvolvimento Humano em nada tem a ver
com mensurar o nível de alegria em números, mas sim substanciar e
incentivar o debate sobre o que realmente pesa na melhoria de vida das
pessoas.
Evidentemente, essa mudança de perspectiva na qual o ser humano passa
a ser o foco da avaliação do desenvolvimento humano resulta em uma
avaliação de dados subjetivos, mas que são baseados principalmente em três
pilares: educação, renda e saúde. Ao analisar o item educação, avalia-se a
média de anos de estudo dos adultos (a partir de 25 anos) e a perspectiva de
quantos anos de escolaridade uma criança com idade para ingressar na
escola pode esperar cursar se os indicadores por idade determinada de
matrículas continuarem os mesmos. A renda é calculada de forma bem
específica aonde a Renda Nacional Bruta (RNB) per capita traduz o poder
de paridade de compra (PPP) em dólar, com referência à cotação de 2005.
Por fim a saúde mede-se através da expectativa de vida longa e saudável
(PNUD, 2016).
Existem índices auxiliares de desenvolvimento humano que
complementam a avaliação de pontos ainda mais específicos. O Índice de
28
Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade (IDHAD) é um deles.
Surgido em 2010, o IDAHD contempla as desigualdades entre as três
dimensões calculadas no IDH e subtrai uma média de cada uma conforme o
nível de desigualdade. A diferença entre o valor apresentado pelo IDH e o
apresentado pelo IDHAD é considerada a perda no desenvolvimento
humano potencial. Pode-se dizer que o Índice de Desenvolvimento Humano
Ajustado à Desigualdade apresenta um desenvolvimento mais próximo do
real. (PNUD, 2016)
O Índice de Igualdade de Gênero (IDG), outro índice auxiliar, expõe
desigualdades baseadas no gênero ao elencar a perda no desenvolvimento
humano em virtude da desigualdade entre homens e mulheres, dentro de
três dimensões: a saúde reprodutiva, autonomia e atividade econômica. O
último índice auxiliar é o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM), que
observa as privações referentes à saúde, à educação e ao padrão de vida.
Esse índice tem como principal objetivo detectar a miséria que vai além da
falta básica econômica, ou seja, a pobreza além da renda. O IPM leva em
consideração as situações de privação multidimensionais, considerando-se
que uma pessoa pode sofrer privações pela pobreza, mas também pode
sofrer multidimensionalmente mais privações em razão de situações de
vulnerabilidade nas quais se encontra exposta, como a religião ou credo que
professa, a origem étnica ou cultural, a cor da pele, o gênero e também a
idade.
O levantamento do Índice de Desenvolvimento Humano é compilado
anualmente desde 1990 e é publicado pelo Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD) através do Relatório de Desenvolvimento
Humano (ONU, 1990). O IDH é fundamental para alcançar os Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio e objetivos do Desenvolvimento Sustentável,
lançados pela ONU e tem sido utilizado pelos governos federais, estaduais e
municipais através do IDH-M – Índice de Desenvolvimento Humano
Municipal.
Com a idealização do economista paquistanês Mahbub ul Haq (19341998) e com a colaboração do prêmio Nobel de Economia Amartya Sen, o
Relatório de Desenvolvimento Humano possui independência garantida
através de uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, que
assegura sua autonomia editorial e tem o objetivo de informar não apenas
os governos, mas principalmente as pessoas, para incentivar uma leitura
29
consciente das realidades e auxiliar na busca por informações que se tornem
viabilizadoras de soluções. (PNUD, 2016)
Sendo assim, parece possível dizer que o Índice de Desenvolvimento
Humano é um reflexo, ainda que desfocado, em virtude de sua qualidade
abstrata, de faces primordiais do desenvolvimento humano. A
complexidade e a multiplicidade das condições avaliadas e divulgadas pela
ONU através do Relatório anual demonstram a importância do
conhecimento acerca dos níveis de investimento dos governos em setores
que são diretamente atingidos pelas políticas públicas que influenciam na
qualidade de vida dos cidadãos.
3 A SITUAÇÃO DA APATRIDIA
No mundo contemporâneo, existem aproximadamente entre dez e quinze
milhões de pessoas sem vínculo de nacionalidade com qualquer Estado.
Essas pessoas, denominadas apátridas pelo Direito Internacional, vêm
largamente aumentando em número nos últimos anos, segundo as Nações
Unidas. Essa situação de não vínculo-Estatal e não pertencimento
comunitário parece gerar graves consequências ao desenvolvimento
humano. Assim, parece ser necessário questionar quais são essas graves
consequências e como podem elas ser minimizadas.
A Convenção de Haia de 1930, investida de nível internacional que
visava garantir que todas as pessoas adquirissem uma nacionalidade, no seu
Artigo 1º dispõe que:
Cabe a cada Estado determinar, segundo a sua própria legislação, quem são os seus cidadãos.
Essa legislação será reconhecida por outros Estados na medida em que seja compatível com
as convenções internacionais, o costume internacional e os princípios de direito geralmente
reconhecidos em matéria de nacionalidade (ONU, 1930 apud ONU, 2014).
De maneira parecida, o artigo 15 da Declaração Universal de Direitos
Humanos, de 1948, afirma que “todo o indivíduo tem direito a ter uma
nacionalidade”. A apatridia ocorre quando o indivíduo não possui
nacionalidade ou cidadania, ou seja, quando a ligação entre ele e o Estado
não existe (nunca existiu ou deixou de existir) (ONU, 1948). Segundo
Convenção para o Estatuto dos Apátridas, aprovada em Nova Iorque em
1954, em seu artigo 1º, o termo apátrida designa “toda a pessoa que não seja
30
considerada por qualquer Estado, segundo a sua legislação, como seu
nacional” (ONU, 1954).
O importante não é ter uma nacionalidade efetiva, mas de fato. Ainda
que seja complexo diferenciar o reconhecimento como nacional, mas não
ter tal tratamento e efetivamente não ser reconhecido como nacional, as
duas situações são substancialmente diferentes. O primeiro caso é
imediatamente relacionado aos direitos intrínsecos à nacionalidade ao passo
que no segundo caso, o impasse está ligado ao direito à nacionalidade em si.
Diante disso, convém esclarecer que existem dois tipos de apatridia: de jure
e de facto. Os apátridas de jure são aqueles que não são considerados
nacionais em nenhum país. Já os apátridas de fato são aqueles que possuem
uma nacionalidade, entretanto, sem nenhuma eficiência. Segundo os dados
da ONU, entre 10 e 15 milhões de pessoas encontram-se nesses limbos
jurídicos em todo o mundo.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR)
avalia que os casos de apatridia oscilaram muito no decorrer do tempo, com
diminuição em alguns países e aumento em outros. A elevada ocorrência de
apatridia condensada no início da década de 90 foi encolhendo conforme os
países da antiga União Soviética conferiram cidadania a milhares de
pessoas que haviam ficado desprotegidas da qualidade de nacional,
entretanto houve aumento significativo na África e no Leste Europeu por
exemplo (ACNUR, 2011a).
A apatridia pode se dar por diferentes causas, algumas de difícil
resolução, ao passo que outras poderiam ser resolvidas apenas com a
regularização de documentos, por exemplo. Não registrar uma criança ao
nascer não indica seguramente a falta de cidadania. Contudo, em alguns
países, devido à grande mobilidade migratória global, não possuir registro
de nascimento impossibilita comprovar aonde a criança nasceu e de onde
seus pais eram.
Dentre os principais fatores históricos, a secessão de Estados, já citada
anteriormente, é de suma relevância. Ocorrida no início da década de 1990,
com o desmembramento da União Soviética, Iugoslávia e Checoslováquia,
que causaram deslocamentos internos e externos, os quais resultaram em
um grande número de pessoas sem nacionalidade. Na esfera cultural, a
discriminação racial e étnica aparece de forma importante, uma vez que, em
grande parte dos países em que existe esse fator de apatridia, a vontade
31
governamental para uma possível solução é praticamente nula (ACNUR,
2011a).
Em virtude do direito soberano que os países possuem de definir quem é
considerado cidadão ou não, apresenta-se uma diversidade de leis que
podem causar dificuldades para alguns grupos em situações diferenciadas.
Existem países, por exemplo, em que o nacional perde a cidadania se residir
muito tempo no exterior. Além disso, em muitos países Norte-Africanos,
apenas os homens passam a nacionalidade para seus filhos. Dentro dessa
realidade, existem inúmeros casos de mulheres que ficam viúvas de seus
maridos estrangeiros e acabam deixando seus filhos descobertos de
nacionalidade.
Dentre as maiores barreiras enfrentadas pelos apátridas pode-se citar a
falta de acesso aos direitos básicos como saúde, educação, direito eleitoral,
de propriedade e de livre deslocamento. A condição de apatridia, além de
ter efeito direto sobre as pessoas incapacitadas de exercerem seu papel
como cidadãos, têm consequências muito mais significativas nas crianças,
mulheres e pessoas mais vulneráveis estruturalmente. Essa situação também
gera efeitos em cadeia, tais como grande instabilidade social, consequente
tensão na comunidade em que estejam inseridas e finalmente a
possibilidade de deslocamento forçado, tanto dentro do país quanto
extraterritorialmente. Em virtude disso, estão mais vulneráveis a tratamento
abusivo, muitas vezes até criminosos, como o tráfico de pessoas.
Ainda que a situação de apatridia force a fuga para outras localidades,
com as migrações e possível refúgio internacional, a grande maioria das
pessoas em situação de apatridia preferem permanecer nas suas regiões,
aonde nasceram, cresceram e viveram a vida toda. Torna-se necessário
avaliar o sofrimento dessas pessoas, visto que seus direitos humanos restam
profundamente feridos e, muitas vezes, sequer existem. Com a ausência de
nacionalidade, o registro para exercer o voto é impossível. Documentos
para viagem ou de qualquer outra natureza são negados, e indivíduos
apátridas que se encontrem fora de seu país de origem correm riscos reais
de detenção arbitrária e prolongada. De maneira geral, os direitos mais
básicos sofrem severas limitações e impossibilitam o acesso à educação,
saúde e ao trabalho, os pilares do Índice de Desenvolvimento Humano.
(ACNUR, 2011a).
32
Apesar dos Direitos Humanos alcançarem a todos os indivíduos
independentemente de sua nacionalidade, existem direitos que são
garantidos apenas através do reconhecimento de cidadania e a falta deles,
tais como a ausência de direitos políticos, ausência de direitos sociais,
ausência do sentimento de pertencimento ou de comunidade, além do efeito
causado pela ausência de identidade nacional, atinge a esfera jurídica da
pessoa apátrida diretamente no que concerne à garantia do
Desenvolvimento Humano adequado.
Para guardar o respeito aos direitos primordiais relativos à nacionalidade,
foi desenvolvido dois tratados que alcançam a situação dos apátridas: a
Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (ONU, 1951) e a
Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (ONU, 1954; ACNUR, 2011b).
Além dessas duas, a Convenção de 1961, para Reduzir os Casos de
Apatridia, orienta os Estados acerca da redução do número de apátridas
através da salvaguarda em suas leis nacionais (ONU, 1961; ACNUR, 2010).
A relevância do assunto fica clara quando se expõe que o direito à
nacionalidade, por ser um direito fundamental, garantido pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos, é inerente à pessoa humana. Mesmo que
exista essa regulamentação internacional acerca da nacionalidade, cumpre a
cada país sancionar o tema no âmbito do seu ordenamento jurídico. Tornase necessário, a partir da ideia de desenvolvimento humano, que as nações
passem a aderir e a cumprir, dentro da esfera jurídica as convenções sobre
apatridia propostas pela Organização das Nações Unidas, lançando um
tratamento especifico e diferenciado para as pessoas sem nacionalidade.
4 EXISTE RELAÇÃO ENTRE DESENVOLVIMENTO E
NACIONALIDADE?
Os casos de apatridia podem ser enfrentados como casos de violação dos
direitos humanos. A falta de nacionalidade é um produto do
descumprimento de outros direitos e pode-se citar como um claro exemplo
disso os casos de negação da condição de cidadão em função de
discriminação racial, étnica, religiosa ou de gênero.
A nacionalidade foi consagrada, no Direito Internacional, como direito
humano fundamental e inerente, considerando-se sua importância intrínseca
33
e relevância para a garantia do gozo de outros direitos humanos. Contudo,
conforme foi abordado na seção anterior, grande número de pessoas são
privadas da nacionalidade nos dias atuais, não sendo considerado nacional
por nenhum Estado.
A privação de nacionalidade causa uma situação de exclusão, abuso e
discriminação, que muitas vezes se torna de difícil solução. Ao terem
cerceados os direitos primários e necessários para uma vida digna, os
apátridas convertem-se em elementos de uma segregação jurídica que acaba
por rejeitá-los dentro de seu próprio território de origem. Dessa forma, em
virtude da diferença de acesso às ferramentas que legitimam a dignidade,
tais como saúde e educação, entre os apátridas e os cidadãos, é necessário
refletir que o Índice de Desenvolvimento Humano dos apátridas, ainda que
não calculado exclusivamente, diverge do resultado final do indexador
global.
Quer dizer, a análise do índice de desenvolvimento humano, o IDH,
realiza uma média de dados do país em análise, nos quesitos rendimento,
saúde e educação, mas não mede as desigualdades específicas existentes em
um determinado país, nem aponta para os grupos considerados vulneráveis
estruturalmente em uma dada sociedade. Assim, a análise dos dados do
IDH, conforme o problema e hipótese deste artigo, não possibilita crer que
abarca, em seu dado final, a situação concreta dos apátridas, que em saúde,
educação e rendimentos parecem estar muito abaixo dos índices do IDH.
O número contabilizado de pessoas sem nacionalidade, segundo as
estatísticas do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, gira
em torno de 3,5 milhões de pessoas. Contudo, estima-se que o número real
ultrapasse os 10 ou 12 milhões de pessoas. Alcançar a quantia exata de
apátridas no mundo é difícil, uma vez que a maioria dessas pessoas vive em
situação de extrema precariedade e à margem da sociedade. Entretanto, é de
suma importância a identificação, pois é um dos passos iniciais para se
detectar as dificuldades enfrentadas por eles, bem como de direcionar os
esforços governamentais, da ACNUR e de outros agentes, a fim de reduzir
os casos de apatridia (UNHCR, 2015).
Ainda que exista um empenho da ACNUR, com a ajuda dos governos e
de ONG’s para a coleta e elaboração mais precisa de dados, a Agência não
consegue ainda fornecer o número de apátridas exato em cada país. O
reflexo desse trabalho de coleta de dados pode ser visto quando, em 2004, a
34
quantidade de países com informações sobre o número de apátridas era 30,
enquanto em 11 países sabia-se da existência dessa situação embora sem
nenhum dado disponível e em 2014 eram 77 países com índices conhecidos
de apatridia e 16 ainda sem conhecimento de seus números (UNHCR,
2015).
Mesmo que as estatísticas coletadas pela ACNUR sejam as mais
completas e atualizadas fontes de dados sobre os apátridas no mundo, isso
não é uma responsabilidade exclusiva da Agência. Os Estados devem
identificar os apátridas que vivem em seu território para cumprir suas
obrigações com essa população. Esses compromissos derivam da
Convenção para o Estatuto dos Apátridas de 1954, da Convenção para
Redução dos Casos de Apatridia de 1961, além de leis internacionais de
Direitos Humanos, todavia importa salientar que não são apenas os Estados
que ratificaram as Convenções tem a responsabilidade de reportar esses
dados. Além disso, outras agências subordinadas à ONU, a sociedade civil,
inclusive a academia, devem auxiliar na identificação e contagem dos
apátridas (ISI, 2014).
Seguramente pode-se afirmar que mapear a apatridia é um desafio e
alguns fatores importantes colaboram para que isso se torne inda mais
difícil. Dentro do campo metodológico de mapeamento, a questão
semântica tem um peso grande, uma vez que a definição de apatridia não é
simples e pode englobar uma análise jurídica diversa – apatridia de jure ou
defacto. Aslacunas na coleta de dados, causadas pelo desinteresse dos
governos e até pela tentativa de negação desses dados, refletem também
uma imagem distorcida dos números, assim como a falta de coleta de dados
completa e adequada, considerações de proteção na identificação de
apatridia e, finalmente, um item que refere ao próprio apátrida, a falta de
vontade ou de consciência de se auto- identificar como tal (ISI, 2014).
Após apresentar estes breves dados, pode-se perceber um problema real
no cruzamento dos índices de apatridia com o Índice de Desenvolvimento
Humano. Ao constatar a falta de correspondência com o número real de
apátridas e os divulgados pela ACNUR, parece que o IDH não abrange essa
parcela de pessoas, que embora não figurem como cidadãos, têm seus
direitos relativos à saúde, educação e renda, dentre outros, abalados pela
falta de reconhecimento de nacionalidade.
35
Para contextualizar esse posicionamento pode-se analisar as tendências
do Índice de Desenvolvimento Humano no espaço de tempo em que foi
iniciada a divulgação do Relatório de Desenvolvimento Humano em 1990
(e dados anteriores) até o ano de 2014 e o número de apátridas em
determinados países (UNHCR, 2016).
Ao analisar o caso da Alemanha nota-se que até 2003 o índice de
apátridas não era computado ou era igual a zero e o IDH era de 0,921
(ONU, 2003), imediatamente em 2004 esse número saltou para 10.619
pessoas e o IDH 0,925 (ONU, 2004). Percebe-se assim um impacto ínfimo
no Índice de Desenvolvimento Humano em função do crescimento
significativo do número de apátridas. Claro que, o que se deve levar em
consideração é a ausência de dados sobre apátridas no primeiro momento, o
que pode significar que não houve alteração significativa sobre o número
real dos apátridas entre os anos de 2003 e 2004 na Alemanha.
Da mesma forma ao analisar a Suécia pode-se notar que no ano de 2004
o número de apátridas era igual a zero ou não computado e o IDH
correspondia a 0,946 (ONU, 2004), enquanto no ano de 2015 o número de
apátridas elevou-se para 31,062 e o IDH para 0,907 (ONU, 2015), o que
demonstra uma variação irrisória, dado o espaço temporal maior de 10 anos.
Uma vez que não havia um número declarado de apátridas por ocasião da
primeira medição, a pequena variação dos dados do IDH não permite crer
que ocorreu em razão do aumento do número real de apátridas, pois a
ausência de dados concretos não permite inferir que houve uma
manutenção, aumento ou diminuição das pessoas apátridas por ocasião
desse período de tempo.
De outra maneira, o caso da Síria é simbólico, uma vez que, no ano de
2004, o IDH computava o total de 0,710 (ONU, 2004) e o número de
apátridas correspondia a 300.000 e, após 11 anos, em 2015 o IDH sírio caiu
para 0,594 (ONU, 2015) enquanto o número de pessoas em situação de
apatridia caiu para 160.000. No mesmo sentido do que foi afirmado
anteriormente, o índice de desenvolvimento humano não permite crer sua
relação de dados com o número de apátridas. Mesmo na Síria, em que havia
um número de apátridas declarados no ano de 2004 e o número de apátridas
em 2015, considerando-se que o IDH leva em consideração dados de saúde,
educação e rendimento, não se pode inferir que o resultado final do
IDH/2015 possui relação com a diferença do número de pessoas apátridas
36
na região. A diferença do IDH registrado pode estar relacionada a vários
outros fatores, como guerras civis ou problemáticas econômicas.
O que parece certo afirmar é que não se pode extrair uma relação entre
os dados do IDH, independentemente do país, e os dados relativos à
apatridia. Isso porque, na ausência de dados específicos que relacionem os
índices do IDH à apatridia, nenhuma inferência pode ser tida como lógica
ou correta. Contudo, por outro lado, a impossibilidade de se extrair uma
relação entre os dados do IDH e os dados relativos à apatridia parece
possibilitar uma conclusão oposta: a de que os dados do IDH pouco se
referem às pessoas apátridas.
Isso significa que os dados finais do IDH, relativos à saúde, educação e
rendimento de um país, representam uma média nacional, não apontando
para as situações de desigualdade dentro das sociedades. Assim,
considerando que as pessoas apátridas são consideradas estruturalmente
vulneráveis, em razão das reiteradas violações de direitos e desigualdade no
acesso aos bens materiais e imateriais de dignidade, parece que os dados
finais e médios do IDH não conseguem abarcar essa população que sofre
reiteradamente a desigualdade social.
Sabe-se que os números isoladamente não refletem a realidade que cada
país vive, no entanto, e quiçá exatamente por isso, os dados não
demonstram uma relação concreta entre número de apátridas e índice de
desenvolvimento humano. Os dados e indexadores refletem diretamente no
mundo real. Entretanto, o levantamento desses indicadores exige uma
metodologia mais efetiva, que não nos cabe avaliar nesse artigo, porém é
necessário citar que essas falhas não abrangem a realidade, impossibilitando
a aplicação de políticas públicas efetivas e leis mais eficazes acerca
erradicação da apatridia.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo teve por objeto a problemática da apatridia no mundo
contemporâneo e buscou analisar a relação entre o Desenvolvimento
Humano, o Índice de Desenvolvimento e a situação da apatridia. Frente à
grave situação de desenvolvimento dos apátridas, a pesquisa objetivou
analisa-los, a nível mundial, bem como investigar as consequências geradas
pelo não vínculo de nacionalidade. Buscou-se analisar a situação das
37
pessoas apátridas à luz do desenvolvimento humano. O artigo problematiza
a relação possível entre o desenvolvimento humano, principalmente o
indexador de desenvolvimento humano e a situação dos apátridas.
Para cumprir com o objetivo proposto, em seu capítulo inicial, o artigo
analisou o conceito de Desenvolvimento Humano e sua perspectiva de
oportunidades de potencializar as aptidões das pessoas facilitando assim a
sua realização pessoal. Apresentou-se também uma breve elucidação sobre
a construção do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e quais seus
indexadores principais e acessórios, além de referir à construção do
Relatório de Desenvolvimento Humano realizado anualmente pelo PNUD.
O conceito de Desenvolvimento Humano mostrou-se essencial para
compreensão dos índices que pautam os Relatórios anuais. Ficou claro que
mesmo tendo certa abstração, em virtude de focar em “perspectiva” e
“realização pessoal”, dois fatores extremamente subjetivos, o IDH
demonstra de que maneira a vida de determinada população está evoluindo
com base na saúde, educação e renda.
Embora não se afasta de maneira alguma a importância do fator
econômico que vem medido pelo PIB per capita, o IDH leva em
consideração fatores cruciais para um desenvolvimento humano adequado
com o foco central no ser humano e não no valor monetário.
Sequencialmente o artigo analisou o conceito de apatridia e trouxe
documentos que fazem a devida contextualização. Diferenciou os tipos de
apatridia e realizou uma breve avaliação das principais causas dessa
situação, aonde pode-se destacar o direito soberano de cada país legislar
acerca da nacionalidade, o que causa um meandro complexo de leis que
muitas vezes se desencontram.
Diante disso, pode-se observar que a hipótese inicial foi confirmada pois
foi possível perceber que, em razão do menor acesso aos direitos inerentes,
como direitos políticos e sociais, os apátridas não conseguem atingir
igualmente o mesmo nível de desenvolvimento humano que alcançam as
pessoas com cidadania, uma vez que o indexador leva em conta o acesso à
saúde, educação e renda.
Pode se dizer por fim que, a apatridia é uma consequência da violação de
determinados direitos humanos e ao mesmo tempo é também a causa do
descumprimento de outros. Logo, a situação das pessoas apátridas deve ser
colocada em uma posição de destaque e não apenas simbólica dentro da
38
perspectiva humanitária de desenvolvimento. Uma vez que nos dias atuais
os índices de imigração e apatridia estão cada vez mais significativos, a
avaliação indexadora de desenvolvimento humano poderia dedicar uma
pesquisa direcionada a esses grupos que embora existentes, não estão
inseridos de forma igualitária na sociedade. Tal prática poderia proporcionar
uma visão mais realista do nível de desenvolvimento que essas pessoas
estão conseguindo galgar e abriria caminho para a aplicação de iniciativas
que quebrariam com o círculo vicioso no qual os apátridas encontram-se.
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Disponível
em:
40
VOCÊ CONSEGUE OUVIR AS MONTANHAS SAGRADAS?
: A QUESTÃO DO GENOCÍDIO ARMÊNIO NAS
15
MÚSICAS DO SYSTEM OF A DOWN
Amanda Muniz Oliveira16
Rodolpho Alexandre Santos Melo Bastos17
RESUMO
O trabalho questiona se uma mídia como o rock seria capaz de dar
visibilidade a temáticas pouco debatidas, auxiliando na busca pela
efetivação de direitos humanos. Assim, estudaremos o caso da banda
System of a Down, que por meio de suas canções procura trazer à tona a
questão do genocídio armênio. A partir de análise de fontes primárias, será
possível verificar se e como a banda contribui para a emergência de um
tema propositadamente silenciado e se suas ações possuem algum tipo de
efeito prático.
Palavras-Chave: rock, direitos humanos, genocídio armênio.
1INTRODUÇÃO
Apesar de ser frequentemente vista com desconfiança e repúdio,
especialmente pelos juristas, a cultura popular veiculada pela mídia pode
ser compreendida como uma valiosa fonte de estudos para diversas áreas.
Responsável por naturalizar comportamentos, dar visibilidade a assuntos até
então não abordados, contestar ou manter a ordem vigente, estas
manifestações artísticas podem não só auxiliar a compreender o nosso
tempo e espaço, mas também conscientizar e lançar as bases para mudanças
no plano real. Neste diapasão, o rock, como produto artístico e midiático,
não pode ser compreendido como um simples e inocente entretenimento.
Assim como novelas, filmes, seriados e literaturas diversas, o rock é um
artefato produtivo, capaz de criar, ratificar ou contestar sentidos que
circulam no meio social, negociando significados e estabelecendo
hierarquias.
41
Neste sentido, questiona-se se uma mídia tão popular e acessível como o
rock, fruto da chamada indústria cultural, seria capaz de dar visibilidade a
temáticas pouco debatidas pelos populares, auxiliando na busca pela
efetivação de direitos humanos. Para tanto, estudaremos o caso da banda
americana System of a Down, que por meio de suas canções e utilizando de
seu espaço midiático privilegiado, procura trazer à tona a polêmica questão
do genocídio armênio.
Considerado por muitos como o primeiro genocídio do séc. XX,
precursor do holocausto judeu e fonte de inspiração de Adolf Hitler, a
questão ainda é controversa. Governos como a Inglaterra, os Estados
Unidos e o Brasil se recusam a reconhecer os atos praticados pelo
antecessor da Turquia, o Império Otomano, como genocídio. Além disso, a
própria Turquia nega a existência deste crime, punindo os cidadãos que
ousam tocar no assunto dentro de suas fronteiras.
A questão armênia passa quase despercebida, negligenciada por uma
história escrita por vencedores e por leis promulgadas por e para grandes
nações. Neste contexto de silenciamento, nos chama a atenção os berros e
guitarras distorcidas dos quatro descendentes de armênios que formam a
banda System of a Down.
Desta forma, procuraremos verificar de que forma o assunto é abordado
nas canções da banda, e de que forma os ouvintes encaram o tema. A partir
de análise da letra e performance de uma de suas mais significativas
canções sobre o tema, além de depoimentos de fãs e ativistas que lutam pela
causa armênia, será possível verificar se e como a banda contribui para a
emergência de um tema propositadamente silenciado, e se suas ações
possuem algum tipo de efeito prático.
Em um primeiro momento, faremos alguns comentários sobre uma
possível teoria da musicalidade do direito; em seguida, resgataremos as
questões históricas e políticas que permeiam o acontecimento conhecido
como Genocídio Armênio; por fim, analisaremos a letra e performance de
uma das principais canções da banda System of a Down que se refere
explicitamente ao genocídio armênio, P.L.U.C.K., e a forma pela qual a
difusão dessa questão contribui (ou não) para uma maior conscientização
popular, gerando alguns efeitos práticos.
42
2 A TEORIA DA MUSICALIDADE DO DIREITO
Em 2011, os Professores Horácio Wanderlei Rodrigues e Leilane
Serratine Grubba escreveram interessante proposta para se pensar as
relações entre os direitos humanos e a música. Para os referidos Autores
(2011, p.71):
A relação entre o Direito e a Música não é recente. O que é recente e pouco explorado é a
busca de uma relação teórica entre os campos cognitivos do Direito e da Música, mais
propriamente da Teoria Jurídica e da Teoria Musical. Até porque, não existe uma teoria que
vincule ambas as esferas do conhecimento, mas permanecem apenas pontos de encontro e de
convergência.
Esses pontos de convergência seriam essencialmente dois: as legislações
relativas ao Direito Autoral, que regulamentam a exploração da atividade
musical, e a música como uma forma de se compreender os anseios e
críticas sociais relativos ao mundo jurídico. Para que uma abordagem
referente ao segundo ponto seja viável, porém, faz-se necessário definir o
que se entender por Direito, para só então compreender como e porque a
música pode ser encarada pelos juristas como uma fonte de pesquisa.
Segundo Rodrigues e Grubba (2011, p.73), o Direito não se limita ao
compilado de artigos, incisos e alíneas presentes em nossas legislações
positivadas. Além dessa perspectiva normativa, o Direito pode ser
compreendido como uma prática social constante, contextualizado histórica
e socialmente. Os embates sociais, econômicos e políticos, dentre outros,
seriam, assim, parte do fenômeno jurídico, motivo pelo qual não devem ser
ignorados. Neste sentido, segundo os referidos Autores (2011, p. 73):
A possibilidade de uma abordagem do Direito que esquematize os pontos de integração do
fenômeno jurídico na vida social e que verifique como transparecem os ângulos de
entrosamento dos diferentes aspectos, se dá por meio da aplicação de um modelo dialético.
Esse modelo ‘[...] há de ser aberto e com a preocupação constante de encarar os fatos, dentro
de uma perspectiva que enfatiza o devir (a transformação constante) e a totalidade (a ligação
de todos os segmentos da realidade, em função de conjunto)’. Somente dessa forma é que
podemos apreender o pluralismo no Direito.A análise dialética não é conclusiva, mas de
cunho social, uma vez que,ao refletir o real, não visa à superação ou anulação de suas
contradições intrínsecas, mas, antes, quer absorvê-las e reorganizá-las, pois as considera
tanto parte integrante quanto elementos fundidos e transfigurados
Desta forma, compreendendo o Direito como um processo constante, influenciado por
transformações e fenômenos sociais
diversos, pode-se vislumbrar a música e os
43
mais diversos gêneros musicais, como uma forma de se mediar anseios e
lutas por justiça e dignidade. Graças ao seu alcance e a sua fácil apreensão,
a música, assim, pode ser entendida como uma poderosa ferramenta de
diversos sujeitos relegados à margem do sistema jurídico e político.
Para Rodrigues e Grubba (2011, p. 74):
[...] a música é manifestação individual do corpo social, detendo o condão de traduzir as
aspirações populares, as críticas à sociedade, à ausência da eficácia dos direitos ou à
ausência da vida digna.
A música então, enquanto manifestação humana, não é considerada um fim em si mesma
quando utilizada como um meio para a luta por vida digna e por direitos, entendidos como o
resultado provisório das próprias lutas por dignidade (ou por bens materiais e imateriais
necessários a uma vida digna)
Assim, quando
falamos em música e direitos humanos, essa luta por vida
digna e direitos ganha destaque na medida em que delimitamos essa
categoria de direitos, frequentemente invocados de forma vaga.
Conforme Rodrigues e Grubba (2011, p. 78):
[...] os Direitos Humanos passaram a ser vistos como processos que possibilitam a abertura e
a consolidação de espaços de luta pela dignidade humana. Isso, em virtude de que o humano
não tem necessidade de direitos em si, mas de dignidade, ou seja, de uma vida digna na qual
possa satisfazer e lutar pela satisfação de seus desejos e necessidades, sejam elas materiais
ou imateriais.
Nessa perspectiva, tendo em vista os Direitos Humanos como um
processo de busca pela efetivação de uma dignidade humana, pode-se
compreender que as manifestações sociais mais diversas são capazes de
compor e influenciar este processo. Com a música, não seria diferente:
insatisfações, anseios populares e críticas sociais presentes nas letras de
diversas canções, dos mais diversos gêneros musicais, podem, assim, ser
vistas como parte de um processo de luta por dignidade e efetivação de
direitos.
Uma visão meramente normativa, portanto, seria incapaz de englobar as
demandas sociais que dão forma aos Direitos Humanos. É por isso que
concordamos com Rodrigues e Grubba (2011):
Os Direitos Humanos estão no mundo da prática cotidiana, tal como a expressão musical.
São os anseios das pessoas por uma vida digna e pela dignidade humana. São processos de
luta pelo acesso igualitário aos bens materiais e imateriais a uma vida digna de ser vivida,
44
sejam eles de expressão, convicção religiosa, educação, moradia, trabalho, meio ambiente,
cidadania, alimentação sadia, lazer, formação, patrimônio histórico, cultural, etc.
Nesse sentido, são sempre o resultado transitório pela vida digna. Portanto, direitos
positivados não criam direitos. Mas Direitos Humanos podem ser positivados, em que pese
nunca definitivamente, com o fim de obtenção de garantias jurídicas para facilitar sua
eficácia, efetividade e validade.
Tendo como ponto de partida esses dois conceitos chaves – o direito
como um fenômeno dialético e os direitos humanos como processos de luta
social por dignidade – Rodrigues e Grubba (2011, p. 81) cunham a
expressão teoria da musicalidade do direito:
Não existe uma Teoria da Musicalidade do Direito. Contudo, o Direito se aproxima da
Música, enquanto arte, de variadas maneiras. Em primeiro lugar, ambos, o Direito e a
Música, se desenvolvem no mesmo campo, o campo das relações humanas.Em segundo
lugar, as consequências sociais da aplicação do Direito geram influência nas letras das
músicas, que tanto podem elogiar os resultados sociais, quanto criticar as políticas públicas,
legislações e suas consequências no âmbito da sociedade. Desse modo, a música pode
influenciar a própria sociedade na busca de empoderamento, de liberdade, de igualdade, etc.,
enfim, a música grita dignidade; como tal, a música pode servir de termômetro para os
pesquisadores do Direito. Enfim, podemos afirmar que a relação entre ambos é dialética.
Essa possibilidade, portanto, de compreender a música como um
termômetro, ou sintoma social para os pesquisadores do Direito, abarca o
problema e o objetivo levantados neste artigo. Será possível que a crítica
presente nas canções sirva como porta-voz de demandas sociais
específicas? E em caso positivo, essa crítica acarreta algum efeito prático?
Para tentar lançar luz sobre essas questões, faremos um estudo da banda
americana System of a Down. Composta por estadunidenses descendentes
de armênios foragidos em razão do genocídio, a banda utiliza seu local de
destaque para gravar canções ácidas e realizar críticas vorazes nos palcos
em que se apresenta. A partir da análise da letra e performance de uma das
principais canções referentes ao genocídio armênio, P.L.U.C.K., bem como
de outras fontes primárias relacionadas à recepção da banda pelo público,
procuraremos esclarecer as questões lançadas.
Antes, porém, faz-se necessário algumas considerações sobre o
acontecimento histórico conhecido como Genocídio Armênio.
3 O GENOCÍDIO
45
Para melhor compreender a militância dos integrantes da banda
selecionada para o presente trabalho, System of a Down, faz-se necessário
entender o que de fato foi o evento posteriormente conhecido como
genocídio armênio. Após séculos de convivência nem sempre pacífica
dentro dos limites de um mesmo espaço geográfico, a ascensão do sultão
Abdul-Hamid II, ao trono do então Império Otomano, trará novos contornos
para as relações entre cristãos armênios e turcos muçulmanos. Para
Loureiro (2015, p. 4), será este déspota entusiasta da centralização Otomana
que irá desencadear os primeiros ataques aos povos armênios, com sua
política pan-islâmica. Após a construção de um cenário maniqueísta de nós
muçulmanos versuseles, infiéis responsáveis por todas as mazelas do país,
inicia-se uma onda de ataques aos não muçulmanos por parte do próprio
governo, sob o argumento de uma possível rebelião interna por parte dos
armênios.
Mas o pior ainda estava por vir. A situação econômica do Império
Otomano estava insustentável. Segundo Loureiro (2015, p. 5), a dívida
externa alcançava números alarmantes. É neste contexto que um grupo de
jovens, que haviam sido educados no ocidente e, assim, postos em contato
com ideais liberais e positivistas, passa a questionar a política do sultão.
Aliados a um grupo de também jovens membros do exército, formam então
o Comitê União e Progresso, mais conhecido pela alcunha de Jovens
Turcos. Entusiastas de uma política inclusiva, o Comitê ganhou a simpatia e
o apoio das minorias ameaçadas pelo sultanato, principalmente no que se
refere aos armênios. Após uma série de acontecimentos que irá culminar
com o exílio do então líder Abdul-Hamid II, os Jovens Turcos assumem o
controle do Império Otomano.
Conforme Loureiro (2015, p. 6), os armênios comemoraram essa vitória,
esperançosos com o discurso inclusivo proferido pelo Comitê. Mas na
prática, a situação armênia não sofreu alterações significativas. A falta de
fiscalização governamental contribuiu para que os ataques e violências
sofridos pelos armênios, habitantes de territórios distantes do centro,
persistissem. Em 1909, o assassinato de dois turcos por um armênio
desencadeia uma onda de violência, amparada por agentes estatais
otomanos. O discurso de inclusão otomana propagado pelo Comitê
rapidamente converte-se em um discurso de exclusão, anticristão e antiarmênio. De acordo com Loureiro (2015, p. 7):
46
1909 constitui o elo genocida entre os anos de 1890 e 1915, elo esse que nos permite
concluir que os planos de expurgo do elemento armênio de dentro do Império Otomano
nunca deixaram de existir na cúpula dos Jovens Turcos. A aniquilação dos armênios sempre
esteve em pauta, esperando apenas o momento ideal para tomar formas de solução final.
De acordo com Ternon (1996, p. 190-191), a política nacionalista ganha
força a partir de 1910, ano da derrota otomana na Guerra dos Balcãs. É
nesta época que o Império perderá 25% de seu território, ação apoiada pelo
Império Russo. Cumpre destacar que a Rússia gozava de certa influência
nos territórios habitados por armênios, o que só fazia aumentar os temores
do governo em relação à ocorrência de uma revolta armênia que esfacelasse
ainda mais o Império Otomano. Segundo Loureiro (2015, p. 8)
Como uma entidade paraestatal, o Comitê União e Progresso criou em sua estrutura grandes
objetivos a serem alcançados a qualquer preço. A pauta panturquista estava na ordem do dia.
Com esse discurso, a legitimação do genocídio armênio seria feita assim que os Jovens
Turcos elegessem os armênios como o mal a ser extirpado do império. A partir daí, coube ao
Comitê montar o aparelho genocida utilizando o controle do Estado. Nomeando secretários,
delegados, governadores e inspetores, os arquitetos do genocídio conseguiram ter
capilaridade em todo o império para atingir os seus fins.
Com o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, surge a
oportunidade perfeita para que os otomanos acertassem as contas com as
nações vencedoras da Guerra dos Balcãs. Para Balakian (2003, p. 166), o
estado de guerra também permitiu que todo o ódio otomano contra o
Império Russo viesse à tona, pois ambos tomaram lados opostos na
contenda; além disso, o sentimento de perigo iminente e aversão aos
estrangeiros, também permitirá que o genocídio armênio não apenas
aconteça, mas que posteriormente seja justificado como uma triste
consequência da guerra. Os dois principais motivos que embasaram os
massacres contra a população armênia são apontados por Loureiro (2015, p.
8): (a) uma possível revolta separatista; e (b) O suposto apoio que este povo
estaria oferecendo aos russos. Para o referido Autor, ambos os motivos são
infundados. Todavia, Almeida (2013, p. 73-75) cita trechos de documentos
que afirmam a relação entre armênios e russos, concluindo que “É fato que
muitos armênios desertaram das fileiras otomanas e fugiram para o front
russo. Com certeza o início da guerra foi uma excelente oportunidade, tanto
para revolucionários armênios como para os adeptos da turquificação
completa do país”.
47
É no dia 24 de abril de 1915, que se tem o início do genocídio armênio.
Conforme Loureiro (2015, p. 8) cerca de 250 armênios, habitantes da
capital Constantinopla, são presos. Eram intelectuais, líderes das
comunidades, e suas mortes serviriam como uma forma de silenciar os
armênios. O governo ordenou, ainda, o desarmamento de todo cidadão
armênio, e os realocou em campos de trabalho forçado, sendo que os que
não pereciam frente as condições do labor, eram assassinados. Loureiro
(2015, p. 9) complementa:
A chegada dos grupos armados nas cidades e vilas era apenas o primeiro passo. A partir daí,
os armênios eram destituídos de suas casas e posses, organizados em colunas que
marchariam até “colônias agrícolas”, afastadas das áreas que estavam ameaçadas por causa
da Guerra. Obviamente, tais colônias não existiam e eram apenas um eufemismo para
grandes campos de concentrações de deportados, como o da cidade de Aleppo. Depois de
reunidos na cidade, os armênios marchavam rumo ao deserto de Der-el-Zor, ou seja, rumo à
morte. O fato é que a maioria dos armênios deportados sequer chegava aos campos de
refugiados. As colunas de mulheres, crianças e idosos iam se desintegrando pelo caminho,
com muitos de seus componentes morrendo por inanição e maus-tratos. Muitas mulheres e
crianças eram raptadas e levadas para haréns, como parte do espólio conquistado. Outras
tantas eram estupradas e mortas. Em algumas regiões, a deportação dos armênios era feita
por ferrovias, inaugurando assim o uso das estradas de ferro para transportar a população
civil com propósitos genocidas.
Conforme Lara e Kahwage (2015, p. 61), “Entre 1918 e 1920, constituiuse a República Armênia, formalmente independente e incorporada à União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas, encerrando-se a questão armênia”.
Não concordamos com as autoras de que a questão armênia esteja, de forma
alguma, encerrada. Juridicamente nenhuma medida foi tomada contra a
Turquia, sucessora do Império Otomano, em virtude das particularidades
inerentes ao Direito Internacional: não há como impor pena a um Estado
nacional soberano, a menos que esta seja sua vontade. Ademais, a
comunidade internacional como um todo mantem-se inerte, não
demonstrando interesse na condenação da Turquia pelos graves crimes
cometidos contra a diversidade humana, sendo apontada por Casella (2015,
p. 581) como corresponsável pelo genocídio armênio:
Há também a responsabilidade indireta, esta decorrente de conivência e de omissão,
cometida pelas demais potências da época: falhou fragorosamente o sistema então vigente,
primeiro, em prevenir, e caso vencida esta barreira, depois, em coibir e pôr cobro ao crime
cometido em escala que supera mais de um milhão e meio de vítimas, de população que
vivia há séculos integrada em sociedade, majoritariamente turca e muçulmana, mas tinha a
sua identidade como povo, como cultura, como língua e como religião, e forma perseguidos
48
e mortos, enquanto tais: em decorrência de sua confissão cristã e sua condição de integrantes
do grupo étnico, cultural e linguístico armênio.
Tal fato, porém, não impede de caracterizarmos as ações do Império
Otomano como crime de genocídio, nos termos do artigo segundo da
Convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio. Neste
sentido, importante destacar a atuação do Tribunal Permanente dos Povos
que mesmo sem força coercitiva e atuando como um tribunal de opinião,
sem concentração de poderes políticos e/ou jurídicos, debruçou-se sobre a
causa armênia em 1984, reconhecendo a responsabilidade dos Jovens
Turcos e da Turquia pelo genocídio armênio. Conforme Lara e Kahwage
(2015, p. 62-63)
O veredito teve como base a Declaração Universal dos Direitos dos Povos (Argel, 4 de julho
de 1976), que entre outras coisas prevê que: Artigo 1 - Todo povo tem direito à existência.
Artigo 2 - Todo povo tem direito ao respeito por sua identidade nacional e cultural. Artigo 3
- Todo povo tem direito de conservar a posse pacífica do seu território e de retornar a ele em
caso de expulsão. Artigo 4 - Nenhuma pessoa pode ser submetida, por causa de sua
identidade nacional ou cultural, ao massacre, à tortura, à perseguição, à deportação, à
expulsão ou a condições de vida que possam comprometer a identidade ou à integridade do
povo ao qual pertence. No veredito do Tribunal Permanente dos Povos, consta que o crime
de genocídio pode ser reconhecido mesmo em relação a fatos anteriores à Convenção para a
Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948, uma vez que o massacre de um
grupo étnico não pode ser tolerado legalmente, ainda que inexistam leis escritas que o proíba
explicitamente. [...] Ainda, concluiu-se no veredito que os armênios constituem um grupo
nacional com direito à autodeterminação, tendo restado comprovada a sujeição deste grupo a
condições que irão conduzi-lo à morte. Desta forma, confirmou-se a intenção de destruir o
grupo, que é a principal característica do genocídio, e foram afastadas todas as alegações do
governo turco para justificar o massacre
Todavia, conforme salientado anteriormente, o Tribunal Permanente dos
Povos não possui poder coercitivo, tratando-se de um simples tribunal de
opinião, que, conforme Moita (2015, p. 39), são:
[...] iniciativas de cidadãos, sem qualquer mandato oficial, [que] têm assumido a forma de
processo judicial para enunciarem pronunciamentos relativos a questões onde estão em causa
direitos humanos fundamentais. Eles constituem assim uma espécie de jurisdições
internacionais informais, oriundas da sociedade civil e não dos poderes estabelecidos,
desprovidas de força coercitiva, mas ambicionando sensibilizar a opinião internacional e os
poderes públicos graças ao valor moral das suas sentenças, aliás fundadas elas próprias no
direito internacional vigente.
Desta forma, a intenção maior é pressionar e sensibilizar os agentes
internacionais para que medidas jurídicas efetivas sejam tomadas. Tal
49
atuação assemelha-se ao que a banda System of a Down tem feito nos
últimos anos: conquistar a atenção de cidadãos diversos para uma causa
cujo Direito por si só se mostra incapaz de resolver, principalmente por
razões políticas.
Neste sentido, importante ressaltar que essas violações jurídicas,
acessíveis a nós por meio das frias letras gravadas em livros e documentos,
foram contadas e recontadas diversas vezes aos integrantes da banda System
of a Down, por antepassados que vivenciaram na pele este massacre. Em
entrevista à revista Rolling Stone, o vocalista Serj Tankian afirma:
[Meus avós] tinham essas incríveis e assombráveis histórias de sua sobrevivência. Ambos
eram crianças, crianças pequenas. Minha avó e a avó dela foram salvos por um prefeito turco
em uma pequena cidade, quando eles estavam marchando pela Turquia em direção à Síria,
para Deir Ezzor, no deserto. Eles foram salvos dessa forma. Meu avô perdeu a maior parte de
sua família no massacre. Ele acabou indo para um orfanato diferente e foi para o Líbano, em
termos de encontrar uma casa lá e crescer por lá. Histórias realmente comoventes. Quando
meu avô ainda estava vivo, colocamos ele na frente das câmeras para este filme que nós
fizemos parte, chamado ‘Screamers’. Foi uma boa narração parcial de sua história, o que foi
muito gratificante para mim. Temos gravada uma fita de 16 horas dessas histórias
importantes que estão desaparecendo porque os sobreviventes foram quase todos embora18.
A militância do System of a Down assume um papel de suma importância
no sentido de que não apenas dissemina o assunto e o torna acessível às
massas, mas procura preservar a memória do ocorrido, que aos poucos se
esvai. Isso porque a Turquia, sucessora do antigo Império Otomano, nega o
ocorrido, tendo apoio significativo da comunidade internacional.
O fim da Guerra, em 1918, não trouxe fim às deportações de armênios,
que só irá cessar em 1923, quando da criação da República da Turquia.
Estima-se que entre 600 mil (segundo os turcos) e 1,5 milhões (segundo os
armênios) de armênios foram mortos. Apesar disso, a comunidade
internacional guardará um silêncio ensurdecedor sobre o caso. Conforme
Almeida (2013, p. 121), com o fim do império e a emergência de uma
república, a história turca foi recontada, de forma a eliminar vestígios não
louváveis de seu passado. Apesar da luta de armênios e ativistas para que
tais eventos sejam esclarecidos e responsáveis sejam culpados, nações
como os Estados Unidos19 e Inglaterra desconversam sobre o assunto. Na
Turquia, a simples menção ao genocídio armênio pode configurar crime20.
Assim, o não reconhecimento do genocídio não apenas contribui para
que o assunto caia no esquecimento, mas impossibilita a punição dos
50
possíveis responsáveis e também abre brechas para que extermínios desta
magnitude ocorram novamente – como de fato ocorreram e ocorrem.
Desta forma, procuraremos, no próximo tópico, demonstrar como solos
de guitarra e gritos exaltados em refrãos podem auxiliar na conscientização
e na visibilidade de vozes silenciadas e despidas de qualquer direito,
sobretudo humano, como no caso do massacre armênio pelo Império
Otomano.
4 O SYSTEM OF A DOWN E A QUESTÃO ARMÊNIA
Em um show de 2005, o guitarrista Daron Malakian diz as seguintes
palavras para um público enlouquecido: “Escutem! Essa banda não
começou a mudar o mundo, essa banda não começou a mudar sua
mentalidade. Essa banda só começou a fazer você questionar!21”. Sem
dúvidas concordamos com tais palavras. É preciso se ter em mente que o
rock não tem o mágico poder de alterar a realidade social em que vivemos,
ou de por si só tonar as pessoas mais críticas. Mas o que ele pode fazer é
lançar perguntas, descortinar assuntos intencionalmente encobertos ou
evitados e assim contribuir para uma conscientização e mobilização para
mudanças sociais.
Neste sentido, necessário destacar que desde a gravação de seus
primeiros álbuns a banda System of a Down apresenta em suas músicas
ferrenhas críticas sociais. Em seu primeiro disco de estúdio, lançado em
1998 e nomeado System of a Down, pode-se encontrar a música P.L.U.C.K.,
que conforme Neil (2016, p. 16) “is referring to the American government’s
refusal to officially acknowledge the Armenian Genocide of 191522”.
O título da canção é uma sigla das palavras em inglês politically lying
unholy cowardly killers23. O primeiro refrão da música diz:
Elimination, Elimination, Elimination
Die, Why, Walk Down, Walk Down
A whole race Genocide,
Taken away all of our pride,
A whole race Genocide,
Taken away, watch them all fall down24.
51
Trata-se de uma referência expressa ao genocídio armênio, e ao possível
sentimento desencadeado na nação armênia pelo evento: a perca do orgulho
de pertença a uma determinada etnia. Na segunda estrofe, a banda lança
possíveis forma de se reparar o ocorrido:
Revolution, the only solution,
The armed response of an entire nation,
Revolution, the only solution,
We’ve taken all your shit, now it’s time for restitution.
Recognition, Restoration, Reparation,
Recognition, Restoration, Reparation,
Watch them all fall down25.
Além de convocar a nação armênia para uma revolução armada, em
busca de algum tipo de reparação, a banda também elenca uma outra
possibilidade: o reconhecimento. Reconhecimento, restauração e reparação:
reconhecer o genocídio armênio como tal, seria uma importante maneira de
reparar os danos e perdas sofridos por este povo.
A última estrofe salienta as consequências das ações do Império
Otomano:
The plan was mastered and called Genocide
(Never want to see you around)
Took all the children and then we died,
(Never want to see you around)
The few that remained were never found,
(Never want to see you around)
All in a system of
Down Down Down Down Walk
Down...26
Como explicado anteriormente, os turcos já buscavam uma justificativa
para expulsar os armênios de suas fronteiras geográficas – por isso a
52
referência a um plano, foi uma ação premeditada e não uma simples
consequência da guerra. As crianças extraditadas e os adultos assassinatos
também estão presentes na estrofe, sendo que a repulsa do governo turco à
presença dos armênios é salientada na frase que se repete, nunca quero ver
você por perto.
No que se refere a performatividade desta canção, em um show
comemorativo dos noventa anos do genocídio em 2005 (terceira edição do
show beneficente denominado Souls) a canção é introduzida por uma breve
fala do vocalista Serj Tankian: “Essa noite não é apenas o aniversário de 90
anos do genocídio armênio. É também o momento de derrubar os muros de
hipocrisia no mundo com todos os genocídios, conhecidos e desconhecidos,
aceitos ou negados. É hora de fazer o governo turco pagar por seus
crimes!27”. Dez anos depois, em um show realizado na Armênia por ocasião
do centenário do genocídio (cuja turnê foi denominada Wake up the souls),
a mesma canção é precedida por um vídeo28 sobre a Segunda Guerra
Mundial veiculado nos telões, no qual é possível ver uma representação de
Hitler indagando “Quem agora se lembra dos armênios?”, disseminando a
ideia de que holocausto judeu foi inspirado no genocídio armênio e que a
falta de punição deste crime influencia os massacres ocorridos, por
exemplo, em Ruanda e no Camboja, até os dias atuais. Ambas as
introduções criadas para a música, reforçam seu caráter político de
conscientização, crítica e disseminação de informações até então
negligenciadas pelo grande público. A música P.L.U.C.K., assim, torna-se
uma verdadeira porta voz das angústias e anseios de um povo que até hoje
sente-se silenciado e injustiçado.
Em 2000, a banda irá realizar a primeira edição do show beneficente
Souls, dedicado às vítimas do genocídio armênio. Em um vídeo de
divulgação do evento, Tankian menciona o fato de que um grande número
de jovens americanos começa a escrever para a banda a respeito do
genocídio, o que o leva a crer que graças ao engajamento artístico, o
assunto passa a ganhar visibilidade29. O evento ganhará uma segunda versão
em 2004 e uma terceira em 2005. É possível ver a mobilização política
tanto da banda quanto de seus fãs nesta terceira edição, em trechos
reproduzidos no documentário Screamers. No início do show, são exibidas
imagens e narrações que explicam o que foi o genocídio armênio e é nesta
53
ocasião que Tankian discursa na introdução da música P.L.U.C.K., como
mencionado anteriormente.
Ainda no documentário, fora dos palcos (07:31) podemos ver alguém
assinando uma série de documentos, enquanto a voz de Tankian diz “São
cartas ao congresso para que reconheçam o genocídio”. Na sequência, uma
série de pessoas, ativistas e fãs não identificados, deixam seus depoimentos,
que merecem ser transcritos na íntegra:
[Ativista 1]: A música atrai. E uma vez que acontece, [os fãs] são introduzidos para temas e
questões políticas.
[Ativista 2]: Eles [System of a Down] nos ajudam de uma forma inimaginável. Eles atingem
um público que nunca poderíamos atingir.
[Fã 1]: Hoje se completam 90 anos do genocídio armênio. System of a Down tem uma
obrigação não apenas como seres humanos, mas também como armênios, de mostrar quem
são os armênios.
[Fã 2]: Nós não aprendemos essas coisas na escola. Precisamos de gente como o System of a
Down para mostrar isso ao mundo. Acho que fazem um bom trabalho. Sem eles, ninguém
saberia nada sobre isso.
[Fã 3]: Sou turco. System foi quem me informou, pois não está nos livros de história e eu
acho que deveria estar. Deveriam ensinar isso nas escolas e reconhecer isso como um
genocídio. Acham uma besteira. Mas eu não acho. O governo turco nega, diz que não
aconteceu. Não são melhores que Hitler.
[Fã 4]: Eu sou judeu e eu digo aos meus filhos o que aconteceu na segunda guerra mundial.
Hitler aprendeu com os turcos. Deveriam ensinar isso nas escolas. Ou vai voltar a acontecer
o que aconteceu 4 ou 5 anos atrás, mais genocídio.
[Fã 5]: Noventa anos passam num piscar de olhos. E não podemos nunca esquecer.
Três pontos merecem ser analisados com maior atenção. Primeiramente,
o fato de ativistas que lutam pela causa armênia ressaltarem a importância
da banda reforça a nossa hipótese de que o rock, como produto midiático
veiculado para as massas tem a capacidade de atingir um grande número de
pessoas com suas mensagens, discursos e ideologias. É preciso ter em
mente que o público alvo deste ritmo é a geração mais jovem, que segundo
relato do Ativista 2, dificilmente seria atingida de outra forma. Desta forma,
a banda contribui para que o tema genocídio armênio adquira certa
visibilidade entre jovens de todas as nacionalidades, não apenas armênios,
54
uma vez que suas músicas são veiculadas por todo o mundo, inclusive no
Brasil.
Em segundo lugar, três dos cinco fãs entrevistados afirmam que o tema
não é abordado nas escolas, o que explicaria o desconhecimento do assunto
por grande parte da população. Um deles é turco, o que explica sua fala, já
que a Turquia não apenas nega a ocorrência de um genocídio como também
pune quem fala sobre o assunto, como mencionado anteriormente. Outros
dois parecem ser estadunidenses, já que o show seria realizado nos EUA.
Todavia, verificar se e como o assunto é abordado no ensino americano,
extrapola em muito os objetivos deste trabalho.
Por fim, merece destaque o fato de que um dos entrevistados é um
cidadão turco, o que só corrobora a abrangência mundial da banda e de seus
discursos veiculados pelas mídias sonoras.
Ainda sobre o impacto político da banda na geração mais jovens,
ouvintes de suas músicas, podemos citar a fala de Aram Hamparian, o
diretor executivo do Comitê armênio dos EUA (Armenian National
Committee of America - ANCA) registrada no documentário Screamers
(13:58):
Mais pessoas sabem do genocídio por meio do System of a Down do que em qualquer outra
campanha. Eles vêm através da música, da arte, com uma mensagem persuasiva e isso é uma
questão importante, porque o genocídio não é uma coisa do passado, mas sim do futuro.
O depoimento de alguns fãs ingleses, entrevistados no aludido
documentário (22:52), também corroboram essa concepção:
[Fã 1]: Nós damos nossa opinião. A expressamos na política, mas eles fazem música e
mostram ao mundo. São uma fonte de inspiração para as pessoas, capaz de dizer que nós
queremos fazer alguma coisa.
[Fã 2]: Muitas pessoas da nossa idade não entendem sobre política, só gostam de se divertir.
Eu acho que é melhor.
[Fã 3]: Eu gosto do tema de B.Y.O.B. Causa uma grande impressão. Eu sou anti-Bush, antiBlair, genuinamente. Eu posso entender que eles são contra a guerra. É indiscutível que são
contrários à guerra.
Importante destacar aqui o comentário do Fã 2, que assume que as
pessoas de sua faixa etária são desinteressadas em política e preferem a
diversão, como ele próprio. Tal depoimento é crucial para compreendermos
que o simples fato de uma banda de rock utilizar suas músicas como
55
ferramentas de protesto não irá mudar o mundo ou a mentalidade das
pessoas, como concordamos com Malakian no início desta seção.
Obviamente não são todos os fãs que serão atingidos por estas mensagens e
que despertarão algum interesse sobre o tema, mas o simples fato de já
terem ouvido falar em genocídio armênio por meio do System of a Down
nos parece algo importante, já que se trata de um assunto raramente
abordado nas grandes mídias. Mesmo que não concorde com a militância da
banda ou que não ache o tema atraente, o Fã 2 já ouviu falar sobre tal
evento histórico, o que para nós parece melhor do que jamais ter contato
com a temática.
Sobre a questão do ensino, na fila deste mesmo show, um cidadão
identificado como Greg Topalian aparece, distribuindo alguns panfletos, e
explica:
São panfletos que as pessoas podem dar a seus professores. Os professores podem obter
materiais educativos sobre o genocídio. O governo britânico não o reconhece. Eles gostam
de usar a base aérea de Incirlik, se a grã-bretanha reconhecer, a Turquia não permitirá que
use a base.
É novamente levantada a questão do genocídio armênio estar fora dos
parâmetros curriculares de ensino, desta vez na Inglaterra. Trata-se uma
informação interessante, mas averiguar sua veracidade, assim como no caso
americano, ultrapassa nossos objetivos.
Podemos, a partir dos dados levantados e analisados, responder então às
nossas questões. A música, aqui representada pelo rock, não apenas é capaz
de servir como porta-voz a questões nem sempre presentes nas grandes
pautas do dia, como também é capaz de produzir alguns efeitos práticos. No
caso da banda System of a Down, esse efeito é a conscientização de toda
uma geração jovem sobre um evento histórico ocorrido há 101 anos e que
até os dias atuais encontra-se sem uma resposta jurídica.
Neste sentido, compreendemos que a música do System of a Down
compõe um processo significativo de reconhecimento e efetivação de
direitos humanos, pois por meio de uma dialética social é capaz de
transmitir mensagens e exigir posicionamentos. A empreitada em busca de
uma dignidade violada, no caso dos armênios, ganha mais adeptos e mais
peso à medida em que sua causa é veiculada por diversas mídias para
diversos ouvintes. Assim, ainda que não haja uma resposta jurídica
56
imediata, é preciso lembrar que os direitos humanos são um processo,
formado, também, pela dinâmica das relações sociais – incluindo aqui, as
críticas e protestos presentes na música.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme a fala de Samantha Power, acadêmica, jornalista e diplomata,
no documentário Screamers (1:15:10) “As únicas vezes que as questões
humanitárias captaram a atenção da política, foram quando houveram
grande pressão popular”. Desta forma, o fato da banda americana System of
a Down utilizar seu lugar de destaque para disseminar informações sobre o
genocídio armênio, pode ser compreendido como uma das formas de incitar
os populares a pressionar os governantes para a efetivação de uma justiça
até então negada aos armênios.
Por meio de suas canções, seus shows e seus discursos, o System of a
Down tem conscientizado um número cada vez maior de pessoas sobre a
questão armênia: eis o efeito prático de suas ações. Além disso, eles
dialogam constantemente com líderes políticos, como político Dennis
Hastert que prometeu apoiar a pauta, mudando subitamente de ideia
posteriormente30 e o presidente da Armênia Serzh Sargsyan31, chegando
inclusive a pedir ao presidente americano Barack Obama para que
reconhecesse o genocídio32.
Assim, ao superar a visão simplista de o direito e os direitos humanos
correspondem única e exclusivamente às leis positivadas, podemos perceber
como o elemento social pode influenciar e ser influenciado pelo mundo
jurídico. A recusa da comunidade internacional em tomar medidas jurídicas
contra o genocídio armênio desencadeia a crítica e a revolta por parte de
pessoas como os integrantes do System of a Down, que por meio de suas
músicas e ações procura exercer algum tipo de influência para que a
situação seja modificada – seja disseminando o ocorrido, seja exercendo
algum tipo de pressão sobre os governantes. O fato do assunto genocídio
armênio ganhar espaço e ser conhecidas e debatidas por mais pessoas pode
contribuir para a conscientização dos particulares que, se articulados,
podem exigir um tratamento justo por parte dos governos – especialmente
no que se refere ao genocídio armênio. O rock da banda System of a Down,
assim, mostra-se assim como um grito de protesto, barulhento e
57
ensurdecedor, que vem ecoando e ganhando força à medida que é
consumido. Se medidas jurídicas serão tomadas, só o tempo poderá dizer;
mas o assunto já circula, e romper mordaças, acreditamos, é o primeiro
passo para cobrar atitudes.
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Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
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BALAKIAN, Peter. The Burning Tigris: The Armenian Genocide and America´s Response. New
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TERNON, Yves. Les Arméniens: Histoire d’un génocide. Paris: Seuil, 1996.
58
O CONTROLE DIFUSO DA CONVENCIONALIDADE DAS
LEIS COMO MECANISMO PROCESSUAL DE PROTEÇÃO
E EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS
Leandro Caletti33*
RESUMO
o estudo que ora se apresenta tem por escopo examinar o controle difuso da
convencionalidade da produção normativa infraconstitucional interna
enquanto mecanismo processual para a otimização e a efetividade dos
Direitos Humanos de matriz internacional, notadamente no fomento da
aproximação destes últimos com novos atores. Como consequência da
porosidade que decorre do entrelaçamento entre ordenamento interno e
internacional, emerge a necessidade de um juízo de compatibilidade vertical
entre leis domésticas e normas de tratados ratificados pela República
brasileira, de modo a repelir a produção interna predatória de Direitos
Humanos de matriz internacional. Essa aferição concretiza os Direitos
Humanos e os interconecta com o processo, permitindo, para além disso, a
aproximação dos primeiros com novos atores. A pesquisa se vale do
método hipotético dedutivo e da pesquisa bibliográfica como técnica.
Palavras-chave: Controle de convencionalidade. Direitos Humanos.
Processo.
1 INTRODUÇÃO
Este ensaio tenciona qualificar o controle difuso da convencionalidade
da produção normativa infraconstitucional doméstica como mecanismo
processual para a otimização e a efetividade34 dos Direitos Humanos de
matriz internacional.
Para tanto, num primeiro momento, se examina a porosidade do
ordenamento constitucional brasileiro às normas de matriz internacional
que versam Direitos Humanos, notadamente tendo-se em mira os
dispositivos constitucionais de abertura. Pretende-se demonstrar, aqui, a
fertilidade do terreno para a admissão da eficácia de normas internacionais
59
de Direitos Humanos nas relações jurídicas domésticas concretas, através
do exame difuso da convencionalidade.
Por derradeiro, na segunda seção, esmiúça-se o controle difuso da
convencionalidade, demarcando seu histórico de nascimento e aparição na
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e afirmando a
aproximação desses últimos com atores até então impensados.
2 A POROSIDADE DO ORDENAMENTO INTERNO AO
INTERNACIONAL
Com o advento da Constituição Federal de 1988, abriu-se o ordenamento
interno ao respeito aos Direitos Humanos, notadamente através da adoção,
no inciso II do artigo 4º, do “princípio da prevalência dos direitos humanos”
como objetivo da República. Esse dispositivo constitucional representou o
ressurgimento do Brasil no cenário de direito internacional, do qual estivera
ausente pelos vinte e um anos de período ditatorial de exceção.
A par de uma premissa louvável, tal norma se consubstanciou em
verdadeira diretriz de atuação para o Estado brasileiro na ordem
internacional, todavia, não apenas na participação elaborativa e deliberativa
de normas convencionais protetivas dos Direitos Humanos (relações entre
Estados), mas também – e principalmente – na sujeição de seus
comportamentos ao regramento convencional a que se obrigou
voluntariamente.
Em paralelo, mas com imbricação clara, erigiu o legislador constituinte a
cláusula de abertura material do parágrafo 2º do artigo 5º, pela qual o
catálogo de direitos fundamentais não se esgota no texto constitucional,
sendo, ao revés, receptivo das normas de matriz internacional oriundas de
tratados ratificados pela República brasileira.
Abriu-se, assim, o direito constitucional positivo brasileiro a uma
fundamentalidade material assim retratada por Sarlet (2012, p. 78-79):
Inspirada na IX Emenda da Constituição dos EUA e tendo, por sua vez, posteriormente
influenciado outras ordens constitucionais (de modo especial a Constituição portuguesa de
1911 [art. 4º]), a citada norma traduz o entendimento de que, para além do conceito formal
de Constituição (e de direitos fundamentais), há um conceito material, no sentido de
existirem direitos que, por sua substância, pertencem ao corpo fundamental da Constituição
de um Estado, mesmo não constando no catálogo.
60
De efeito, essa porosidade do ordenamento interno ao internacional traz
consequências de duas ordens: uma, no âmbito da titularidade de novos
direitos fundamentais (de índole material), e, outra, na compatibilidade da
produção normativa doméstica com as normas de matriz internacional
ratificadas. No tocante à primeira, leciona Cançado Trindade (1993, p. 53):
Com a interação entre o Direito Internacional e o Direito interno, os grandes beneficiários
são as pessoas protegidas. [...] No presente contexto, o Direito Internacional e o Direito
interno interagem e se auxiliam mutuamente no processo de expansão e fortalecimento do
direito de proteção do ser humano.
Referentemente à segunda ordem de consequências, é preciso perquirir
por como se fixou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no tema
da hierarquia das normas de matriz internacional ratificadas, depois de anos
de discussões entre monismo e dualismo35.
No Supremo Tribunal Federal, desde o julgamento do recurso
extraordinário n. 80.004, em 1977, vigorou o entendimento da paridade
entre normas oriundas de tratados internacionais – de que natureza fossem –
e a legislação ordinária. Eventual dissenso, nesse cenário, era resolvido
pelos critérios ordinários de solução de antinomia de regras (cronológico,
especialidade e hierárquico), em se tratando de incompatibilidade com a
legislação ordinária, e a absoluta supremacia das normas constitucionais,
nas hipóteses de confrontos com o texto constitucional. A partir, todavia, do
julgamento do recurso extraordinário n. 466.343, ocorrido em 3 de
dezembro de 2008, o Supremo Tribunal Federal uniformizou interpretação
segundo a qual as normas de matriz internacional atinentes a Direitos
Humanos gozam de supralegalidade em face da legislação ordinária
nacional.
Embora se tenha perdido a oportunidade de atribuir nível materialmente
constitucional às normas de Direitos Humanos oriundas de tratados
internacionais – posição que defendo de longa data36 – a posição vencedora
no julgamento – supralegalidade –, malgrado progressiva, acabou
conduzindo a uma impropriedade de alta indagação. Ela fez nascer, no
ordenamento, uma duplicidade de regimes jurídicos impertinente para o
atual sistema de proteção dos Direitos Humanos, uma vez que erigiu
“categorias” de tratados que têm o mesmo fundamento jurídico (conforme
61
ingressados a partir dos mecanismos do parágrafo 3º [nível constitucional]
ou do parágrafo 2º [nível supralegal] do artigo 5º da Constituição Federal).
Tal “novidade” redundou num obliterado tratamento de instrumentos
iguais por meio de modos totalmente distintos. Mais: ao criar uma categoria
supralegal de normas, por via oblíqua, relega essas normas a um plano de
paralegalidade, dando a entender que os tratados de Direitos Humanos
insertos nessa condição encontram-se apartados do arcabouço jurídico
aplicável.
Ainda assim, a partir da conclusão do julgamento do recurso
extraordinário n. 466.343, se verifica uma nova divisão na pirâmide
normativa clássica, localizada entre a base (legislação ordinária) e o topo
(Constituição) e representada pelas normas oriundas de tratados
internacionais inerentes a Direitos Humanos. Importa referir que, no tocante
aos tratados de matéria ordinária ou comum, a supralegalidade emerge
diretamente do artigo 27 da Convenção de Viena, internalizada através do
Decreto n. 7.030/0937.
Essa porosidade do ordenamento interno ao internacional não é, todavia,
reflexo apenas da abertura material constitucional, que revela maturidade
democrática, mas também da irreversibilidade de fenômenos hodiernos
como como a Globalização e o Transnacionalismo.
A primeira, segundo Arnaud (2006, p. 18), é um processo considerado
inelutável, em marcha em direção à “sociedade aberta” ou à “Grande
Sociedade”, segundo se prefira a expressão de Popper ou a de Hayek, que
tende a invadir todos os espaços da vida social, econômica e política,
primeiramente, através dos modelos de produção que se modificam.
Depois, se observa um deslocamento da atividade econômica, que facilita
as transferências de uma parte das operações de trabalho de um país ao
outro, contribuindo para a emergência de uma nova divisão internacional do
trabalho. Os mercados de capitais desenvolvem-se, vinculados
transversalmente às nações. Um fluxo livre de investimentos se produz sem
levar em conta as fronteiras nacionais. Estas últimas revelam-se impotentes
para represar os fluxos transnacionais de informação, para permitir a
contenção dos riscos, para assegurar um controle absolutamente eficaz,
mesmo por meio do direito. Outrora qualificadas de multinacionais, as
empresas – hoje em dia transformadas em verdadeiras transnacionais –
tornaram-se capazes de fazer explodir a sua produção, tendo o seu poder de
62
negociação e de regateamento reforçados ao nível de uma economia que se
tornou planetária. Atores atualmente centrais das relações econômicas
globais escapam largamente à regulação tanto nacional como internacional.
Uma lex mercatoria instaura-se; regras que se reclamam internacional e
asseguram a promoção do livre comércio são criadas no dia a dia, impondose aos direitos nacionais e erigindo-se em direito internacional do comércio.
O Estado, que em princípio ainda detém o monopólio do direito, aparece
como uma estrutura cada vez mais ausente quando tratamos das relações
jurídicas de fato, que passam cada vez mais à margem do direito estatal.
Já o Transnacionalismo, decorrência clara do fenômeno globalizatório,
representa o novo contexto mundial, surgido a partir da intensificação das
operações de natureza econômica-comercial no período do pós-guerra,
caracterizado, especialmente, pela desterritorialização, pela expansão
capitalista, pelo enfraquecimento da soberania e emergência de
ordenamento jurídico gerado à margem do monopólio estatal.
(GONÇALVES e STELZER, 2009, p. 1048-1097).
Por essa razão, defende Staffen (2015, p. 39) estar em curso o momento
de
[...] mensurar a impotência do Estado com a alvorada de novas instituições transnacionais.
Momento em que o Estado deixa a centralidade que ocupou com a modernidade e, com ele,
o Direito moderno. Momento em que as grandes discussões jurídicas são travadas no anseio
de estabelecer-se diretrizes para a equação Law-Body-Space.
Demais disso, afigura-se oportuna a advertência de Varella (2012, p.
543), no sentido de que o Direito não é mais construção exclusiva do
Estado, por meio dos mecanismos tradicionais, constitucionalmente
estabelecidos; atores públicos e privados internos, com graus variáveis de
cogência, Estados (internacionais), direitos nacionais (transnacionais)
também produzem Direito no momento presente, disposições estas
oponíveis, inclusive, conforme sua força, aos próprios Estados (tornando-se
supranacional).
Essas conexões, combinadas com o grande fluxo migratório, resulta na superação
progressiva dos limites do Estado que, tornando porosa a Constituição do território
(Zagrebelsky), isto é, desterritorializando a soberania, resulta na ciência de que cada Estado
não dispõe mais daqueles instrumentos jurídicos que lhe permitiam, sozinho, atender as
necessidades de seus cidadãos, seu bem-estar e sua saúde, ameaçados por alimentos
transgênicos, vírus e radiação que vêm de longe. (REPOSO, 2009, p. 26, tradução livre).
63
Não é disparate observar, nesse contexto, o enfraquecimento dos
protagonistas de outrora na arena nacional (Estado constitucional soberano),
fraqueza essa aferível com mais clareza na consequente criação de vácuos
de poder e de legitimidade, os quais passaram a ser preenchidos por
instituições sui generis, híbridas, não raro privadas, que representam claros
interesses transnacionais. É precisamente nessa toada a conclusão de
Teubner (2004), no sentido de que a força motriz do Direito não se
circunscreve aos anseios de limitação jurídica dos poderes domésticos
absolutos, mas, sim, a regulação de relações policêntricas inerentes aos
movimentos da Globalização, como a circulação de modelos, capitais,
pessoas e instituições em espaços físicos e virtuais.
Seja como for, o controle da convencionalidade – delimitado, neste
ensaio, na forma difusa – se constitui em instrumento de anteparo e de
concretude das normas de Direitos Humanos, desiderato esse cumprido,
mormente, como escrito alhures, através do controle jurisdicional difuso,
numa importante imbricação entre processo (procedimento) e Direitos
Humanos.
3 O CONTROLE DIFUSO DE CONVENCIONALIDADE
COMO FORMA DE OTIMIZAÇÃO E EFETIVIDADE DOS
DIREITOS HUMANOS
Como alhures demarcado, os tratados de Direitos Humanos aprovados
pelo quorum do parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição38 se constituem
em paradigmas, inclusive, para o controle jurisdicional concentrado da
convencionalidade. A forma difusa já estava autorizada desde a
promulgação do texto constitucional de 1988 e, mesmo, a partir da
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, consolidada no julgamento do
já tão citado recurso extraordinário n. 466.343 (atribuição de
supralegalidade às normas oriundas de tratados de Direitos Humanos em
relação à legislação interna).
A Emenda Constitucional 45/2004, que acrescentou o § 3º ao art. 5º da Constituição, trouxe
a possibilidade de os tratados internacionais de direitos humanos serem aprovados com um
quorum qualificado, a fim de passarem (desde que ratificados e em vigor no plano
internacional) de um status materialmente constitucional para a condição (formal) de
tratados “equivalentes às emendas constitucionais”. E tal acréscimo constitucional trouxe ao
64
direito brasileiro um novo tipo de controle à normatividade interna, até hoje desconhecido
entre nós: o controle de convencionalidade das leis. Ora, à medida que os tratados de direitos
humanos ou são materialmente constitucionais (art. 5º, § 2º) ou material e formalmente
constitucionais (art. 5º, § 3º), é lícito entender que, para além do clássico “controle de
constitucionalidade”, deve ainda existir (doravante) um “controle de convencionalidade” das
leis, que é a compatibilização das normas de direito interno com os tratados de direitos
humanos ratificados pelo governo e em vigor no país. (MAZZUOLI, 2011, p. 73).
O controle da convencionalidade, entendido, na lavra de García Ramírez
(2011, p. 127), como “una expresión o vertiente de la recepción nacional,
sistemática y organizada del orden jurídico convencional internacional (o
supranacional)”, aparece pela primeira vez na jurisprudência contenciosa da
Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Almonacid Arellano vs.
Chile39, constituindo-se em ferramenta que permite aos Estados cumprir a
obrigação de garantia dos Direitos Humanos no âmbito interno.
Isso se concretiza na verificação da conformidade da produção
normativa e das práticas nacionais com a Convenção Americana de Direitos
Humanos (CADH)40, com outros instrumentos convencionais internacionais
e com a jurisprudência principalmente da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, obrigação essa que emerge diretamente do artigo 2º, combinado
com o artigo 74.2 (depósito dos instrumentos de ratificação), ambos da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos41. Demais disso, o predito
encargo sofre o reforço do artigo 27 da Convenção de Viena, que preconiza
a impossibilidade de determinado Estado se escudar em disposições do seu
direito interno para afastar o cumprimento de obrigações convencionais
internacionais.
Seja como for, o que interessa ao deslinde da questão atinente ao manejo
do controle difusa da convencionalidade como mecanismo processual de
otimização e efetividade aos Direitos Humanos é que tribunais e juízes
efetivamente realizem o cotejo de compatibilidade vertical do direito
doméstico com o corpo de tratados que versem Direitos Humanos, seja pela
via concentrada (Supremo Tribunal Federal e Tribunais de Justiça dos
Estados), seja pela difusa (Poder Judiciário), no exercício da competência
dos tratados, afastando a validade das normas internas incompatíveis.
Releva chamar a atenção, no ponto, para uma conclusão advinda com o
controle de convencionalidade: a compatibilidade da lei com o texto
constitucional não lhe garante mais o atributo da validade no âmbito do
ordenamento interno. Essa garantia só lhe é conferida depois do seu cotejo
65
com o corpo de tratados ratificados pelo país (controle de
convencionalidade e de supralegalidade42). A negativa de vigência das
normas de Direitos Humanos de matriz internacional ratificadas e
justapostas à produção normativa interna – não realização do controle da
convencionalidade – não apenas depõe a favor da inocuidade dos Direitos
Humanos, como também assinala um pernicioso proceder da República na
direção do cometimento de ilícitos internacionais.
Em reiteradas oportunidades, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos recomendou que o Estado-parte em que verificada a
incompatibilidade entre a norma de matriz internacional ratificada e a
legislação interna realizasse o efetivo controle de convencionalidade43.
Confira-se, no ponto, a título ilustrativo, o “Caso Almonacid Arellano y
otros Vs. Chile” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS, 2015), no qual restou consignado que, embora reconhecendo
que os juízes e tribunais estão obrigados a aplicar as disposições do
ordenamento interno, a partir da firmatura de um tratado internacional como
a Convenção Americana, os órgãos jurisdicionais, aparato do Estado que
são, também estão submetidos a ela, o que os obriga a velar para que os
efeitos da norma consensual não sejam atingidos predatoriamente pela
legislação interna. Há, portanto, nítido mandamento para o exercício do
controle de convencionalidade.44
Relativamente à República brasileira, colhe-se o seguinte julgado da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, retratado por Piovesan (2012,
p. 96):
Em 24 de novembro de 2010, no caso Gomes Lund e outros versus Brasil, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil em virtude do desaparecimento de
integrantes da guerrilha do Araguaia durante as operações militares ocorridas na década de
70. Realçou a corte que as disposições da lei de anistia de 1979 são manifestamente
incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem
seguir representando um obstáculo para a investigação de graves violações de direitos
humanos nem para a identificação e punição dos responsáveis. Enfatizou que leis de anistia
relativas a graves violações de direitos humanos são incompatíveis com o Direito
Internacional e as obrigações jurídicas internacionais contraídas pelos Estados. Respaldou a
sua argumentação em vasta e sólida jurisprudência produzida por órgãos das Nações Unidas
e do sistema interamericano, destacando também decisões judiciais emblemáticas
invalidando leis de anistia na Argentina, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Colômbia.
66
Antes de se prosseguir com o exame das medidas pontuais de controle
difuso de convencionalidade que vêm emergindo pelos tribunais do país, se
afigura pertinente uma pausa para lançar algumas linhas acerca do
julgamento do “Caso Guerrilha do Araguaia”, acima citado, e a
oportunidade que tivera, antes, o Supremo Tribunal Federal de controlar a
convencionalidade. Malgrado, na espécie, se esteja a pisar no terreno do
controle concentrado de convencionalidade, que não é objeto deste estudo,
as considerações doravante articuladas contextualizam o cenário brasileiro
do instituto, de inexorável olhar para a boa compreensão.
A sentença cujo excerto foi colacionado restou proferida, pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, em 24 de novembro de 2010. Sucede
que, em 29 de abril daquele ano, o Supremo Tribunal Federal julgara
improcedente a arguição de descumprimento de preceito fundamental n.
153, que perseguia a declaração de não receptividade, pela Constituição
Federal de 1988, do parágrafo 1º do artigo 1º da Lei n. 6.683, de 19 de
dezembro de 1979 (Lei de Anistia).
Equivale dizer que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, mesmo
ciente do julgamento de receptividade da Lei de Anistia pelo Pretório
Excelso, proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade,
acabou admoestando a Corte constitucional brasileira, ao condenar a
República no caso submetido à jurisdição interamericana.
E isso não é sem razão, porquanto o julgamento do Supremo Tribunal
Federal, excepcionada breve referência no voto do Ministro Celso de Mello,
ignorou solenemente a jurisprudência maciça da Corte Interamericana de
Direitos Humanos atinente à matéria (colacionada alhures). Mesmo os
votos vencidos não contêm uma linha sequer dos julgados da Corte
intercontinental.
O problema central dessa omissão, entretanto, em nosso sentir, não
repousa no fato de a Corte suprema de um país que aceitou se submeter à
jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos desconsiderar os
julgados dessa última; reside, isto, sim, em encaminhar o Estado brasileiro a
um sancionamento por ilícito internacional, circunstância que se verificou
meses depois. A par, é claro, de, enquanto instância máxima do Poder
Judiciário nacional, desencorajar as instâncias inferiores à prática – salutar e
otimizadora de direitos – do controle de convencionalidade. É exatamente
por essa razão que se afirmou, linhas atrás, que desconsiderar a negativa de
67
vigência das normas de Direitos Humanos de matriz internacional
ratificadas e justapostas à produção normativa interna – não realização do
controle de convencionalidade – não apenas depõe a favor da inocuidade
dos Direitos Humanos, como também assinala um pernicioso proceder da
República na direção do cometimento de ilícitos internacionais.
Seja como for, esse precedente interamericano parece ter sido,
internamente, a centelha de uma maior atenção, dos juízes e tribunais, para
a necessidade de se controlar, além da constitucionalidade das normas
internas, a sua compatibilidade vertical com os tratados de Direitos
Humanos ratificados pelo Brasil.
Atendendo, pois, a essa exigência do Sistema Interamericano de Direitos
Humanos – que, no defender deste estudo, otimiza e confere exigibilidade
aos Direitos Humanos em casos processuais práticos –, a atividade
pretoriana nacional tem se dedicado a controlar, na via difusa, a
convencionalidade da produção normativa doméstica com os tratados
internacionais ratificados pelo Brasil.
Em 17 de março de 2015, proferindo sentença nos Autos n. 006737064.2012.8.24.0023, o magistrado Alexandre Morais da Rosa controlou a
convencionalidade do artigo 331 do Código Penal em face da Declaração de
Princípios Sobre a Liberdade de Expressão (inscrita no artigo 13 da
Convenção Americana de Direitos Humanos), ponderando cumprir ao
julgador afastar a aplicação de normas internas que se justaponham a
tratados internacionais de Direitos Humanos, destacando, em especial, a
Convenção Americana e a jurisprudência das instâncias judiciárias
internacionais de âmbito americano e global.
De efeito, no caso concreto colacionado, afastou-se a incidência do
artigo 331 do Código Penal porque incompatível (norma existente, mas
inválida) com a norma do artigo 13 da Convenção Americana de Direitos
Humanos.
Igual modo, em 17 de junho de 2015, o Tribunal Superior do Trabalho,
no exame do recurso de revista n. TST-RR-804-12.2012.5.04.0292,
controlou a convencionalidade do artigo 146 da Consolidação das Leis do
Trabalho em face dos artigos 4º e 11 da Resolução n. 132 da Organização
Internacional do Trabalho, retratando com perfeição em que medida o
instrumento examinado neste artigo pode contribuir para a otimização e a
exigibilidade dos Direitos Humanos de matriz internacional. Vale dizer, a
68
norma internacional confere ao trabalhador nacional o benefício de
concessão de férias proporcionais, mesmo na hipótese de demissão por justa
causa, o que era vedado pela legislação interna, inclusive com a reafirmação
através de verbete sumular do tribunal superior.
Ora, se circunstâncias que tais, possibilitadas unicamente pelo controle
difuso de convencionalidade, não se constituem em mecanismo de
otimização e exigibilidade dos Direitos Humanos, nada se constitui, visto
que incidente norma de matriz internacional diretamente no afastamento da
validade de norma interna, no âmago de relação processual de nítido caráter
privado.
Prima facie, àqueles que torcem o nariz para a modificação que as fontes
do direito têm passado, pode ressoar até metafísica a aspiração de que
normas de Direitos Humanos de matriz internacional, convencionais e, não
raro, até oriundas mesmo de instituições que não possuem caráter de direito
público externo, tenham eficácia e sejam efetivas a ponto de suplantar
norma doméstica positiva e tida por recepcionada pela Constituição vigente.
Todavia, na esteira da nova arquitetura das fontes do direito – que não mais
se estratificam na forma piramidal, assemelhando-se, agora, a uma infinita
rede ou teia, com interligações e ramais –, o ordenamento interno, que,
outrora, se mostrava sólido, passou a ostentar uma descalcificação que dá
azo à entrada e à efetividade das normas de estatura internacional.
E tanto é assim, que o próprio Poder Executivo já se lança a, em
condutas proativas e administrativas, controlar previamente a
convencionalidade. A Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo, a
título ilustrativo, editou, em 23 de abril de 2015, a Recomendação Conjunta
Subdefensoria e CDH n. 02/2015, que orienta à sustentação da absolvição
do agente nas hipóteses de incriminação pelo crime de desacato.
E, convenha-se, não poderia ser de outra forma. Os tratados modernos
sobre Direitos Humanos têm um caráter peculiar, cujos objeto e fim
desaguam num ponto comum, a saber, a proteção dos direitos dos seres
humanos, com independência da sua nacionalidade, tanto frente ao próprio
Estado (consabidamente, o maior violador de Direitos Humanos), quanto
aos restantes estados contratantes. Significa compreender que não se está a
tratar de tratados multilaterais tradicionais, concluídos em função de uma
relação recíproca de troca de direitos, para o benefício mútuo dos estados
contratantes; ao contrário, quando os Estados aprovam um tratado sobre
69
Direitos Humanos, aceitam se submeter a um ordenamento sui generis,
dentro do qual assumem diversas obrigações, não com os demais estados
contratantes, mas, sim, com as pessoas internamente jurisdicionadas.
O controle difuso de convencionalidade, nessa medida – como também o
seria o concentrado, se admitido, por via das ações constitucionais –, afora
se consubstanciar em anteparo às normas de Direitos Humanos (de tratados
ratificados pelo Brasil e em vigor), se constitui em verdadeiro instrumento
endoprocessual de otimização e exigibilidade desses últimos. Essa
afirmação tem cabimento não apenas pela importância e pela pertinência
teórica do exame de compatibilidade vertical da produção doméstica com o
corpo de tratados, que desvela maturidade democrática institucional e
credibilidade internacional, mas também e mormente por seu efeito prático
e concreto na vida das pessoas.
Noutras palavras, trata-se mesmo de concretizar a Constituição, através
de sua interpretação no caso concreto, na lide posta, no bem da vida que é
objeto daquela relação jurídica em específico e na influência direta que esse
bem e o que o rodeia tem na vida das pessoas envolvidas.
[...] é impensável uma interpretação da Constituição sem o cidadão ativo e sem as potências
públicas mencionadas. Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive
com este contexto é, indireta, ou até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O
destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor
tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos
da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da
Constituição. (HÄBERLE, 1997, p. 14-15).
Significa consolidar, como lido, a ideia de uma sociedade aberta de
intérpretes da Constituição, como propugnado por Peter Häberle, pela qual
o círculo de intérpretes da Lei Fundamental deve ser alargado para abarcar
não apenas as autoridades públicas e as partes formais nos processos de
controle de constitucionalidade, mas todos os cidadãos e grupos sociais que,
de uma forma ou de outra, vivenciam a realidade constitucional num
cenário multinível de proteção dos Direitos Humanos que se espraia sistema
jurídico afora, inclusive com a circulação de modelos jurídicos no âmbito
de um direito global, que, embora ainda não totalmente conhecido,
entendido e explorado, se mostra um fato incontestável. Se, pois, a
Constituição é um documento misterioso, como atesta John Paul Stevens,
necessita-se abrir clareiras coerentes para sua interpretação e vivência.
70
Em complemento, faz-se necessário reconhecer a compulsoriedade de
vivência humanista e constitucional pelos indivíduos num todo e não
simplesmente como roteiro de práticas estatais. Não se duvida que os
Direitos Humanos, a Constituição, assim como todo o ordenamento
jurídico45, precisam ser incluídos nas práticas intersubjetivas dos indivíduos
com espontaneidade. Somente quando se está inserido neste processo
vigora o interesse na defesa das suas determinações. Em síntese, os Direitos
Humanos não podem estar divorciados das rotinas mais “simples” da vida
social.
A concretização conjugada, assim, da Constituição e dos Direitos
Humanos que a orientam e conformam (aberturas formal e material), numa
imbricação necessária e sistemática por ela própria instituída, redunda na
exigibilidade e na otimização de ambos. Satisfazem-se, assim, de forma
prática, os de bens da vida das pessoas, numa aproximação salutar e
necessária entre direito, processo (enquanto procedimento) e realidade. De
igual sorte, conforme adverte Häberle (2001, p. 33), do ponto de vista
jurídico, o povo (enquanto elemento humano do Estado) tem uma
Constituição, mas isto não pode ser exauriente. É necessário que se avance
para sendas mais abertas e se reconheça que a humanidade é parte da
Constituição, seguindo, aliás, pertinente recomendação de Hermann
Heller46.
4 NOVOS ATORES E NOVOS HORIZONTES PARA OS
DIREITOS HUMANOS
A concretização dos Direitos Humanos endoprocessualmente, na vida
prática das relações jurídicas (um comportamento eleito por Cassese (2012)
como embrionário dos Direitos Humanos no momento presente) acarreta, a
tiracolo, em salutares aproximações que, há duas décadas, eram irrefletidas
para os Direitos Humanos. Uma delas é a proximidade entre esses últimos e
a iniciativa privada (sem perder de vista o sucesso já antigo do
ombreamento com entidades da sociedade civil e organizações nãogovernamentais). Para Bloomer (2014, p. 120-121),
[...] as empresas são atualmente alguns dos atores mais poderosos do mundo. Nossa
economia em rápida globalização ao longo dos últimos trinta anos tem levado muitas
corporações transnacionais a se tornarem entidades econômicas maiores do que Estados-
71
nações inteiros. Seu poder e sua riqueza as trouxeram cada vez mais para o centro da arena
dos direitos humanos. Neste âmbito, essas empresas não conseguem escolher e selecionar, a
partir de uma variedade, apenas questões com as quais elas se sentem confortáveis. Em
muitos aspectos, o Estado permanece justamente como o portador do dever primário em
relação aos direitos humanos, mas um número crescente de empresas nacionais e
internacionais sabe que estão sendo cada vez mais responsabilizadas por seu desempenho em
direitos humanos. Infelizmente essa prestação de contas ainda é cada vez mais exercida pelo
tribunal da opinião pública, mais do que pelos tribunais de justiça.
E tanto é assim que, desde 2011, foram estabelecidos os Princípios
Orientadores das Nações Unidas para Empresas e Direitos Humanos
(UNITED NATIONS, 2011), congregando normas voluntárias que
envolvem deveres dos Estados e das empresas na proteção dos Direitos
Humanos e o encargo mútuo de assegurar a existência de mecanismos
judiciais e extrajudiciais de denúncia e de reparação.
Meyersfeld e Kinley (2015, p. 205) vão mais longe, propugnando um
interessante diálogo entre bancos e os Direitos Humanos:
Uma avaliação de direitos humanos requer uma análise não apenas sobre o impacto
financeiro de curto prazo do contrato, mas também sobre seu impacto ambiental, social e
cultural a longo prazo. Embora isto possa ser contrário à tendência histórica de olhar para os
lucros em curto prazo que serão obtidos por um projeto, esta abordagem dupla tem
vantagens comerciais claras.
Se é bem verdade que, pela influência que as empresas multinacionais
possuem (a ponto, por exemplo, de direcionar decisões estatais), afastam
com facilidade a responsabilidade por violações aos Direitos Humanos
(porque a politização destes últimos também é uma realidade)47, noutro
plano, se consegue, em rara oportunidade e ainda que incipiente, de efetivar
os Direitos Humanos numa instância pré-violatória48.
São reflexo dessa nova proximidade, por exemplo, as normas de
compliance, que nasceram no âmbito corporativo como respeito a regras
éticas de conduta nos negócios e se alargaram também para a esfera
pública. Note-se, a tal título, o advento, em 2013, da Lei n. º 12.846/13,
chamada de “Lei Anticorrupção”, a representar claro avanço na previsão da
responsabilização objetiva, no âmbito civil e administrativo, de empresas
que praticam atos lesivos contra a administração pública nacional ou
estrangeira. Além de atender a compromissos internacionais assumidos pelo
Brasil, a nova lei finalmente fecha uma lacuna no ordenamento jurídico do
país ao tratar diretamente da conduta dos corruptores.
72
Noutro quadrante, se está ampliando os limites do dever de cuidado com
os Direitos Humanos nas empresas que possuem subsidiárias. O Tribunal de
Apelações da Inglaterra e do País de Gales tomou uma decisão
importantíssima, segundo a qual as matrizes podem ser responsabilizadas
pelas devidas implementação e observação dos parâmetros de
comportamento estabelecidos por elas para suas subsidiárias (algo comum
entre as multinacionais) nos casos das vítimas de sua negligência. Ainda
que isso não seja seguido por todas as cortes nacionais, enquanto decisão
paradigmática, terá uma influência considerável em outras instâncias. Em
certo sentido, se especula que estes sejam passos bastante técnicos, mas de
importância central. (LEADER, 2012, p. 42).
Com efeito, se a criação de um Tribunal Internacional de Direitos
Humanos49 ainda é utópica, cabe a esse mecanismo singelo – porém, não
menos importantes –, prático e processualmente legítimo do controle difuso
da convencionalidade das leis o encargo de, por ora, nas lides práticas do
cotidiano, dar concretude e fazer efetivas as normas de Direitos Humanos
de matriz internacional.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando se está a tratar de Direitos Humanos, se impõe reconhecer que
os tratados multilaterais que os conduzem não são tradicionais, concluídos
em função de uma relação recíproca de troca de direitos, para o benefício
mútuo dos estados contratantes. De forma contrária, quando os Estados
aprovam um tratado sobre Direitos Humanos, aceitam se submeter a um
ordenamento sui generis, dentro do qual assumem diversas obrigações, não
com os demais estados contratantes, mas, sim, com as pessoas internamente
jurisdicionadas.
O controle difuso da convencionalidade, nessa medida, afora se
consubstanciar em anteparo às normas de Direitos Humanos (de tratados
ratificados pelo Brasil e em vigor), se constitui em verdadeiro instrumento
de otimização e efetividade desses últimos, desvelando salutar maturidade
democrática institucional e credibilidade internacional. Ademais, faz
transparecer a perfeita concretização da Constituição, através de sua
interpretação na lide posta, no bem da vida que é objeto daquela relação
jurídica em específico.
73
Releva constatar, assim, o reconhecimento da compulsoriedade da
vivência humanista e constitucional pelos indivíduos num todo e não
simplesmente como roteiro de práticas estatais, porquanto os Direitos
Humanos, a Constituição, assim como todo o ordenamento jurídico
precisam ser incluídos nas práticas intersubjetivas dos indivíduos com
espontaneidade. Aliás, somente quando se está inserido neste processo,
vigora o interesse na defesa das suas determinações. A concretização
conjugada, assim, da Constituição e dos Direitos Humanos que a orientam e
conformam (aberturas formal e material), numa imbricação necessária e
sistemática por ela própria instituída, redunda na exigibilidade e na
otimização de ambos. Satisfazem-se, assim, de forma prática, os de bens da
vida das pessoas, numa aproximação salutar, afanosa e necessária entre
direito, processo (enquanto procedimento) e realidade.
Ademais, essa nova arquitetura, forjada nos signos da Globalização, do
Transnacionalismo e de um paradigma de Direito global, permite aproximar
os Direitos Humanos da iniciativa privada, de modo a desvelar também seu
caráter pré-violatório, historicamente tão requisitado.
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77
O EMPODERAMENTO E O DIREITO À CONDIÇÃO DE
AGENTE DAS MULHERES SEGUNDO AMARTYA SEM
Luana Paula Lucca50
Neuro José Zambam51
RESUMO
O objetivo deste artigo é investigar a possibilidade de a teoria da justiça de
Amartya Sen efetivar o empoderamento feminino a partir da garantia do
direito à condição de agente. A realidade social e das pessoas sofreu
profundas transformações no último período, especialmente a identidade e a
atuação da mulher. A contextualização e o desenvolvimento das
capacidades (capabilities) são necessárias em vista das condições de justiça
social. O método de abordagem adotado nesta pesquisa é investigativo
bibliográfico consultando obras de Amartya Sen e de comentadores. As
contradições sociais e o contexto das mudanças de forte repercussão serão
evidenciadas.
Palavras-chave: Capabilities. Empoderamento feminino. Democracia e
Direitos.
1 INTRODUÇÃO
O empoderamento feminino está cada vez mais presente em nosso dia-adia, por essa razão precisa ser incentivado, pois a sociedade toda ganha, por
trazer benefícios e realização profissional e pessoal em diversas áreas. O
que se pretende é que a mulher possa ter o poder de tomar decisão, decidir o
momento certo para cada coisa em sua vida, deve ter a condição de agente
para assumir suas capacidades e poder dar conta de suas responsabilidades.
A mulher conquistando uma condição de agente,numera suas prioridades
e tem a vida que julga melhor para si. A família é sem dúvidas muito
importante para uma mulher.
O objetivo deste trabalho é demonstrar que através da liberdade
substantiva pode-se optar pelo tempo certo para cada atividade da vida,
mostrando que a mulher tem capacidade de organizar suas tarefas em
78
ambos os setores que ela se compromete em exercer, com resultados
satisfatórios para a sociedade. Sendo assim, podendo usufruir da capacidade
de escolher o que quer para o momento através de decisões conjuntas com
sua família e tendo também o direito de opinar perante a sociedade. Esses
avanços são notáveis na sociedade, mas cada vez mais precisamos trazer
direitos e com os direitos, os deveres para a sociedade feminina.
É através das capabilities que as condições de justiça se efetivam na
sociedade, surgindo uma sociedade com equidade de gênero no sentido
amplo, defendendo os direitos e deveres de cada cidadão, pois as mulheres
precisam ter sua condição de escolha para ocupar os cargos que julgam
melhor para seu sucesso profissional e pessoal.
O trabalho divide-se em três partes: a primeira apresenta o
empoderamento da mulher e sua repercussão social; a segunda à condição
de agente da mulher; e a terceira as capabilities das mulheres. O método de
abordagem adotado é investigativo-bibliográfico nos escritos de Amartya
Sen, materiais doutrinários e comentadores, apresentando as contradições
sociais no contexto de aceleradas mudanças.
2 O EMPODERAMENTO DA MULHER E SUA
REPERCUSSÃO SOCIAL
Este artigo demonstra que com a constante evolução da sociedade, a
visão social foi se modificando e ganhando aperfeiçoamentos, e o
empoderamento feminino foi se tornando cada vez mais importante, onde
passou-se a ver a mulher de uma forma diversa como sujeito ativo de
mudança e não mais como sujeito passivo de ajuda, conquistando espaços
antes não visualizados para este gênero, como aperfeiçoamento em áreas
que antigamente só eram representadas pelo sexo masculino, e assim a
mulher rompeu as barreiras. Antigamente o papel imposto para a mulher era
o de dona de casa, hoje seu lugar é onde quiser, onde achar melhor, sendo
assim, adquiriu direitos como o de votar e ser votada, de escolher seu
trabalho, estudar, de ter liberdade, usufruir da sua condição de agente.
O empoderamento feminino é a capacidade que a mulher tem de ser vista
pela sociedade e por si mesma como parte importante, conquistando cada
vez mais a sua liberdade e igualdade. A equidade de gêneros é um direito
79
básico da sociedade, é uma peça de extrema relevância para atingir o
desenvolvimento sustentável.
Esses diversos aspectos da situação feminina (potencial para auferir rendimentos, papel
econômico fora da família, alfabetização e instrução, direitos de propriedade etc.) podem, à
primeira vista, parecer demasiadamente variados e díspares. Mas o que todos têm em comum
é sua contribuição positiva para fortalecer a voz ativa e a condição de agente da mulher – por
meio da independência e do ganho de poder. (SEN, 2010, p.249).
A mulher adquiriu muitos direitos, um deles é o direito de votar e ser
votada, através do Decreto nº 21.076 instituído no Código Eleitoral
Brasileiro de 24 de fevereiro de 1932 por Getúlio Vargas, e consolidado na
Constituição de 1934. Mas no Brasil a participação da mulher na política
continua pequena, sendo que a legislação estabelece um percentual mínimo
de 30% de candidaturas de cada sexo no artigo 10, § 3º, da Lei 9.504, de
1997.
Através dos movimentos feministas as mulheres começaram a pôr em
prática o artigo 5° da Constituição Federal, onde diz que “todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade”.
Mas somente no século XIX, a mulher passou a assumir cargos em
indústrias, mas ainda com algumas discriminações de gêneros, como
salários maiores para os homens. No momento que a mulher entra no
mercado de trabalho, se esforça e trabalha tanto quanto o homem e
apresenta grande êxito nas atividades exercidas, mas ainda hoje elas
recebem globalmente 24% menos do que homens (Relatório de
Desenvolvimento Humano de 2015).
Quando a mulher possui privações que a restringe da vida social e
política, são privadas de liberdades importantes para conduzir suas vidas.
Então quanto mais capacitações elas obtiverem, mais vão ocupar cargos
importantes, sendo exemplo para as próximas gerações, pois se suas filhas
observarem que a mãe está feliz, realizando seus objetivos, tendo sucesso
profissional, vão querer seguir seus exemplos, tornando a sociedade
feminina com mais liberdade de escolhas, influenciando a si mesmas e
outras mulheres e servindo de exemplo na sua família.
Outra dificuldade que a mulher se depara é em encontrar um equilíbrio
entre a vida pessoal (casa, filhos) e a profissional. Este acúmulo de funções
80
faz com que a mulher intensifique mais sua jornada de trabalho e muitas
vezes acabam por deixar um de lado, então se precisa de uma divisão de
funções com a colaboração do gênero masculino em ambientes familiares,
com divisão de funções, que antigamente era imposta somente ao gênero
feminino, uma igualdade de gêneros no sentido amplo sem distinção em
nenhuma esfera, para que a mulher possa realizar-se tanto na vida pessoal
quanto profissional.
O empoderamento feminino é sem dúvidas o meio pelo qual a mulher
toma para si o direito de existir na sociedade, é o momento em que ela
adquiriu a liberdade de ter sua condição de agente, ou seja, se ver como
independente, sendo respeitada, valorizada, tendo seus deveres e direitos
assegurados. O empoderamento ocorre quando todos da sociedade ajudam,
dão oportunidade para a mulher se estabelecer no mercado de trabalho,
ocorre quando ela nota que sua presença é importante para aquele cargo,
quando ela pega para si o direito de sua existência na sociedade.
[...] “Não é tanto uma questão de ter regras exatas sobre como
exatamente devemos agir, e sim de reconhecer a relevância de nossa
condição humana comum para fazer as escolhas que se nos apesentam”.
(SEN,2010, p.360)
Em 2010 a ONU Mulher e o Pacto Global criaram os princípios de
Empoderamento das Mulheres, para que, por meio destes, as empresas
incorporem a equidade de gênero.
1. Estabelecer liderança corporativa sensível à igualdade de gênero, no mais alto nível.
2. Tratar todas as mulheres e homens de forma justa no trabalho, respeitando e apoiando os
direitos humanos e a não discriminação.
3. Garantir a saúde, segurança e bem-estar de todas as mulheres e homens que trabalham na
empresa.
4. Promover educação, capacitação e desenvolvimento profissional para as mulheres.
5. Apoiar empreendedorismo de mulheres e promover políticas de empoderamento das
mulheres através das cadeias de suprimentos e marketing.
6. Promover a igualdade de gênero através de iniciativas voltadas à comunidade e ao
ativismo social.
7. Medir, documentar e publicar os progressos da empresa na promoção da igualdade de
gênero. (ONU MULHER, 2010).
81
Esses princípios têm como fundamento diminuir com qualquer barreira
que impeça a promoção profissional das mulheres, promover a igualdade no
mais amplo sentido, buscando o equilíbrio e excluindo qualquer tipo de
violência. Também tem por objetivo promover a capacitação pessoal e
profissional.
A mulher adquiriu muitas conquistas, como está cada vez mais entrando
no mercado de trabalho, conquistando cargos de liderança, um exemplo é a
primeira presidente mulher do Brasil Dilma Rousseff, cargos que antes não
ás visualizava. A mulher deve ser enxergada como um forte agente
econômico e sem dúvidas o primeiro passo é a própria mulher enxergar seu
potencial. Mas ainda possui muitos desafios, pois a desigualdade de gênero
ainda existe nos dias atuais em algumas áreas, por essa razão a mulher para
conquistar boa oportunidade no mercado de trabalho, precisa ser mais bem
qualificada, gastando muito dinheiro e tempo.
Não se quer que as mulheres tenham mais direitos que os homens e sim
conquistar uma equidade de gêneros, com os direitos acompanhando os
deveres. Pois os deveres acompanham as responsabilidades e os direitos são
essenciais para uma maior liberdade e uma sociedade mais justa e
igualitária.
A democracia deve ser vista como a criação de várias oportunidades, e o
uso dessas oportunidades dependem de práticas democráticas, para
expressar publicamente o que avaliamos ser o correto e exigir que se dê a
devida atenção a isso, devemos ter liberdade de expressão e decisões
democráticas.
3 A CONDIÇÃO DE AGENTE DA MULHER
A mulher passou a ser importante na sociedade, adquiriu sua liberdade
de escolha, podendo optar pelo que ela julga melhor para uma vida pessoal
e profissional, organizando a sua vida da maneira mais satisfatória,
abandonando aquele conceito imposto que esta seria submissa do homem e
conquistando cargos importantes, conquistando sua liberdade de escolha.
Sendo assim, a mulher começou a buscar cada vez mais pela realização de
seus objetivos e teve oportunidade de mostrar sua alta capacidade perante a
sociedade, ou seja, “[...] As vidas que as mulheres salvam por meio de uma
82
condição de agente mais poderosa certamente incluem as suas próprias”.
(SEN, 2010, p.251)
Quando a mulher conquista uma vaga no mercado de trabalho e
assumem cargos importantes, ela apresenta resultado satisfatório,
demonstrando que tem interesse em seu sucesso profissional, podendo
então assumir essa responsabilidade, conseguindo tomar iniciativas nos
cargos que lhe são dados com grande êxito.
As mulheres cada vez mais devem ocupar o cargo que elas quiserem,
devem optar não por uma profissão mais feminina e sim por aquela
profissão que elas planejam e almejam para seu futuro, podendo ser o que
quiserem. A condição de agente é o papel que essa condição pode ter na
remoção das inequidades que restringem o bem-estar feminino (SEN,
2010).
Temos então um empoderamento que engloba diferentes áreas, engloba o
acesso à informação, ao conhecimento e a capacitação, também abrange o
poder de voz ativa no plano político e não podendo esquecer da autoestima
e autoconfiança, a mulher deve confiar que pode e que consegue, para
desenvolver um bom desempenho, ou seja, ter controle de sua vida. Tudo
isso, para a conquista da cidadania e o direito a igualdade nos diversos
campos.
A responsabilidade do Mundo em que vivemos é nossa, precisamos fazer
a diferença, criar e ajudar no desenvolvimento da condição de agente a
mulher, pois indivíduos privados do bem-estar e de seu potencial para levar
a vida que desejam, são privados da liberdade. A liberdade substantiva é
algo indispensável para exercer nossos direitos e deveres.
É responsabilidade das mulheres decidirem o que querem fazer, cabem a
elas a escolha do seu próprio bem-estar, sendo assim a liberdade é de suma
relevância para termos responsabilidade e com isso termos uma sociedade
justa para todos, pois é através de oportunidades de emprego e educação
que as mulheres adquirem a liberdade. Assim, fazendo com que os outros
veja-a como sujeito ativo de opinião, ganhando mais poder de influenciar
em várias questões no âmbito familiar e empresarial. (SEN, ٢٠١٠).
O desenvolvimento social é sem dúvidas um meio para diminuir as taxas
de fecundidade, pois o aumento do poder da mulher faz com que as pessoas
optem por famílias menores, então não se precisa tirar o poder da liberdade
83
das famílias, como na China (SEN, 2010), mas sim apenas expandir os
programas que estimulam a autonomia da mulher.
No início da luta pela justiça com a mulher, o que se queria era o bemestar feminino, mas agora o que se procura é que a mulher deixe de ser vista
como agente passivo de ajuda, e sim agente ativo de mudança produzindo
transformações positivas para a sociedade, pois trazendo a voz ativa ás
mulheres, acaba gerando uma corrente que afeta as futuras gerações e a
sociedade como um todo. O resultado que se procura alcançar é que cada
vez mais as mulheres acabem com a desigualdade que ainda encontram na
sociedade.
A condição de agente da mulher é relevante para aumentar sua
autoestima, sua eficácia e sua educação, o que se pretende conquistar é a
liberdade substantiva para que a mulher possa escolher o que julga melhor
para si mesma e para sua família. É de extrema relevância para um melhor
desempenho a autoconfiança em sua capacidade, acreditar que é capaz e
que pode trazer transformações positivas para a sociedade.
O ganho de poder da mulher traz mudanças significativas, diminui os
índices de fecundidade e reduz a mortalidade infantil principalmente por
meio da importância que as mães dão ao bem-estar dos filhos e da
oportunidade de influenciar nas decisões familiares. Á partir do momento
que ela passa a assumir poder, ela mesmo passa a se ver como agente ativo,
como capaz de exercer suas potencialidades, capaz de tomar decisões
relevantes para sua vida e de sua família.
[...] Pode-se dizer que nada atualmente é tão importante na economia política do
desenvolvimento quanto um reconhecimento da participação e da liderança política,
econômica e social das mulheres. Esse é, de fato, um aspecto crucial do “desenvolvimento
como liberdade” (SEN, 2010, p.263).
Um aspecto central para o desenvolvimento é o ganho de poder das
mulheres, é elas poderem ocupar cargos diversos como agrícolas, onde a
presença feminina não era notada antigamente, pois estas devem ter a
oportunidade e a liberdade de exercem o cargo que gostariam, de se
organizar conforme suas prioridades na vida.
4 CAPABILITIES E A CONDIÇÃO DE AGENTE DAS
MULHERES
84
A perspectiva das potencialidades das mulheres está ligada à capacidade
de elas poderem escolher a vida que valorizam, terem poder de decidir o
que querem para si, dispor da liberdade de escolha. A ausência das
capabilities compromete diretamente a condição de justiça e o equilíbrio
das relações sociais, pois quando não tem o poder de exercê-las não tem
como decidir em utiliza-la ou não.
[...] Sem a liberdade substantiva e a capacidade para realizar alguma coisa, a pessoa não
pode ser responsável por fazê-la. Mas ter efetivamente a liberdade e a capacidade para fazer
alguma coisa impõe a pessoa o dever de refletir sobre fazê-la ou não, e isso envolve
responsabilidade individual. Neste sentido, a liberdade é necessária e suficiente para a
responsabilidade (SEN,2010, p.361).
Conforme a mulher adquire e desenvolve suas capabilities, conquistam
espaços, empregos remunerados para ajudar na renda familiar, prosperidade
e prestígio, temos uma diminuição nos índices de pobrezas, pois elas
ajudam nas despesas da casa, sendo que a pobreza é uma forma de privação
das capacidades de uma pessoa. Com uma renda baixa perde-se a liberdade
substantiva, perde o direito de optar pelo que julga melhor, e deve-se optar
pelo que está disponível no momento.
É com a expansão do aumento das capacidades que se ajuda a enriquecer
a vida humana para fins realmente valiosos como maior prosperidade nos
diversos campos, sem dúvidas a capacidade é um tipo de liberdade
substantiva.
A condição de agente representa analisar a pessoa segundo seus valores,
suas capacidades, seus ideais, suas características pessoais, ou seja, o ser
humano busca sua realização pessoal através daquilo que considera
importante, por essa razão que o conjunto de capacidades varia de uma
pessoa para outra, tudo depende do que cada um almeja para seu futuro.
As capabilidades representam a liberdade que a pessoa tem para, de acordo com suas
características individuais e as aspirações sociais, conduzir as suas escolhas diante de
cenários diversificados para, assim, construir a sua identidade e poder influenciar na
organização de uma boa estrutura. (ZAMBAM, 2012, p.107).
É a partir das capabilities que as mulheres fazem as escolhas que julgam
melhor para o seu bem-estar e para seu futuro, conquistando assim seus
direitos, uma organização social justa e as relações sociais equilibradas.
85
A capacidade reflete na liberdade substantiva de escolher o melhor modo
para viver, sendo assim, adquirindo a capacidade adquire-se o poder de
escolha, pois ter opções é essencial para o bem-estar, realização social e
também pessoal.
As capabilities têm como objetivo a valorização da pessoa como objeto
último, nunca apenas como meio para outro fim. Sen se propõe a promover
um novo conceito de desenvolvimento, baseando-se nas capabilities, ou
seja, as liberdades substantivas da pessoa humana.
A sociedade por meio de seus recursos tem como responsabilidade de
expandir o acesso a liberdade, para que chegue a todos os seus membros,
onde os mesmos possam desenvolver suas potencialidades e realizar as
escolhas que julgam adequadas para preencher suas expectativas. As
capabilities representam a liberdade que as pessoas têm de escolher diante
de um senário muito diversificado o que é mais adequado para suas vidas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisar o empoderamento feminino é relevante pelo fato desse tema
ainda, apresentar nos dias atuais muitas dificuldades. Se nota uma grande
desigualdade de gêneros. Por obvio que foi realizada muitas conquistas
equiparado com o século anterior, foram conquistados muitos direitos e
adquiridos deveres, mas ainda existem muitos obstáculos a vencer.
A mulher hoje luta cada vez mais para a conquista de sua condição de
agente, tem sua liberdade, pode escolher a vida que julga mais adequada
para seu sucesso e realização profissional, com isso vem trazendo grandes
avanços, pois é através desta que podemos visualizar um desenvolvimento
como liberdade.
O empoderamento feminino é promover a igualdade de gênero em todas
as atividades, para uma melhor qualidade de vida de todos que os cercam,
pois com a conquista da liberdade da mulher irá possibilitar o auxílio nas
despesas da casa, servirá como exemplo para sua família, vai ajudar nas
decisões dentro de sua casa, além de atuar nas mais diversas áreas.
A liberdade só se concretiza no momento em que as capabilities podem
ser utilizadas, no momento em que podemos, através destas, usufruir das
diversas possibilidades para escolher. A capacidade é uma liberdade interna
da pessoa.
86
Todos os direitos que as mulheres vêm conquistando ao longo dos anos,
são através de lutas. O empoderamento feminino não é um tema recente,
por isso devemos sempre ajudar no seu desenvolvimento, para uma maior
liberdade substantiva das mulheres e da sociedade toda que a cerca, pois
quando provocamos o empoderamento dando oportunidades de emprego a
uma mulher, podemos observar que esta apresenta grande êxito em suas
atividades, além de proporcionar uma renda dentro de sua casa e servir de
exemplo para as futuras gerações.
A condição da liberdade é essencial para escolhermos o que julgamos
mais adequado para cada momento, é podermos desenvolver as nossas
capabilities. Não se quer que os direitos femininos se sobressaiam aos
masculinos e sim que exista uma equidade nos mais diversos campos.
6 REFERÊNCIAS
BRASIL.
Mais
mulheres
na
política.
Disponível
em:
<https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/proc-publicacoes/2a-edicao-do-livretomais-mulheres-na-politica >. Acesso em: 10 ago.
BRASIL. Vade Mecum. 20° ed. São Paulo: Saraiva; 2015.
BRASIL. Voto da mulher. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/eleitor/glossario/termos/voto-damulher>. Acesso em: 02 ago.
ONU MULHERES. Princípios de empoderamento das mulheres. Disponível em: <
http://www.onumulheres.org.br/referencias/principios-de-empoderamento-das-mulheres/>.
Acesso
em: 28 jul.
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Desenvolvimento Humano de 2015. Disponível em: <Publicado pelo Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento>. Acesso em: 20 jul.
SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia de bolso; 2010. 460p.
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<https://books.google.com.br/books?
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e+capacidades&source=bl&ots=19Mf3Z0oLo&sig=rN7YizYwfpWIgDbsKFutl8ejDm8&hl=ptBR&sa=X&ved=0ahUKEwiHxZmd9jOAhXHhZAKHYefD60Q6AEIODAC#v=onepage&q=o%20desenvolvimento%20como%20expans
%C3%A3o%20de%20capacidades&f=false >. Acesso em: 23 jul.
SOUZA, M. F. N. de.; ZAMBAM, N. J. Democracia e Justiça para o Desenvolvimento
Sustentável. Disponível em: <https://www.imed.edu.br/Uploads/neurozambam(%C3%A1rea3).pdf>.
Acesso em: 07 ago.
ZAMBAM, N. J. Amartya Sen liberdade, justiça e desenvolvimento sustentável. Passo Fundo:
Imed; 2012. 335p.
87
DIREITOS HUMANOS, MULTICULTURALISMO E
MIGRAÇÕES
Júlia Fragomeni Bicca52
RESUMO
O meio ambiente está com problemas cada vez mais alarmantes, devido a
mudanças climáticas e outros efeitos, em que pessoas têm que sair de seu
lugar de origem e se refugiar. Como problema principal buscam-se
ferramentas importantes para auxiliar os atores internacionais no desafio da
construção de um sistema de proteção jurídica internacional aos “refugiados
ambientais”, a partir de uma visão crítica e multifacetada do problema,
contribuindo para o preenchimento importante lacuna normativa do Direito
Internacional na Atualidade. Avaliar-se-á ainda, se o multiculturalismo pode
agir como mediador entre as diferenças culturais. O método utilizado será o
Hipotético-Dedutivo.
Palavras-chave:
direitos
humanos,
globalização,
migrações,
multiculturalismo.
1 INTRODUÇÃO
Com o surgimento da nova classe, os denominados refugiados
ambientais, por mais que ainda não reconhecidos, visualiza-se que a não
limitação dos danos e de toda a atividade perigosa exercida no globo e os
desastres ambientais cada vez mais comuns criam a importância de se
dialogar, criar um diálogo entre nações, discutir a relação entre direito
humano ao meio ambiente, pois este é um mínimo comum entre todas as
culturas. Somente através desse diálogo multicultural é que o desafio
transnacional de um meio ambiente equilibrado a todos poderá ser vencido
trazendo uma sadia qualidade de vida, tanto para as presentes, quanto para
as futuras gerações, evitando tantos desastres ambientais e tantos
deslocados, refugiados ambientais.
Não se pode ignorar as discussões com relação aos direitos humanos e ao
meio ambiente, estes se destacam por força das constatações de crise e da
88
possibilidade de esgotamento dos recursos naturais, o que viria a ameaçar,
seriamente, o futuro da humanidade
Os direitos humanos são direitos fundamentais do ser humano. Sem eles,
o homem não conseguiria se incluir plenamente na vida em sociedade. E
neste artigo buscaremos meios de inserir o refugiado ambiental em uma
gama de direitos e garantias mínimas para sua sobrevivência.
2 DIREITOS HUMANOS E DECLARAÇÃO UNIVERSAL
No curso de sua existência a Declaração Universal de Direitos Humanos,
realmente cumpriu papel fundamental para humanidade. Assim, povos
oprimidos tiveram algumas de suas reivindicações atendidas. As lutas
políticas por direitos tiveram amparo e diversas constituições Estaduais
surgiram dela. Criou uma nova disciplina jurídica para direitos humanos e
direito internacional. Substitui-se a eficácia da força bruta pela força ética e
moral.
Seu principal objetivo foi promover entre os Estados-membros da ONU
a adoção de políticas públicas e legislações nacionais que tivessem como
parâmetros normativos os artigos contidos na DUDH.Os Direitos, para
Perez-Luño, (2002, p 23):
[...] São ingredientes básicos na formação histórica da idéia dos direitos humanos duas
direções doutrinárias que alcançam seu apogeu no clima da Ilustração: o jusnaturalismo
racionalista e o contratualismo. O primeiro, ao postular que todos os seres humanos desde
sua própria natureza possuem direitos naturais que emanam de sua racionalidade, como um
traço comum a todos os homens, e que esses direitos devem ser reconhecidos pelo poder
político através do direito positivo. Por sua vez, o contratualismo, tese cujos antecedentes
remotos podemos situar na sofística e que alcança ampla difusão no século XVIII, sustenta
que as normas jurídicas e as instituições políticas não podem conceber-se como o produto do
arbítrio dos governantes, senão como resultado do consenso da vontade popular. [Tradução
livre]
Assim, historicamente, o desenvolvimento laico do pensamento
jusnaturalista, nos séculos XVII e XVIII que as ideias acerca da dignidade
da pessoa humana começam a ganhar importância, especialmente pelos
pensamentos de Samuel Pufendorf e Immanuel Kant (FACHIN, 2009, p.
48). Para Ricardo Castilho (2011, p. 137), a dignidade humana:
Está fundada no conjunto de direitos inerentes à personalidade da pessoa (liberdade e
igualdade) e também no conjunto de direitos estabelecidos para a coletividade (sociais,
89
econômicos e culturais). Por isso mesmo, a dignidade da pessoa não admite discriminação,
seja de nascimento, sexo, idade, opiniões ou crenças, classe social e outras.
No artigo 22, da DUDH também se encontra uma definição dos direitos
de todo o ser humano:
Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à realização
pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e
recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua
dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.
Segundo Norberto BOBBIO, (2004, p. 30) “os direitos humanos nascem
como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos
particulares (quando cada Constituição incorpora Declaração de Direitos)
para finalmente encontrar a plena realização como direitos positivos
universais”.
O que se indica que com a DUDH, a construção do futuro tende a
transformar a cidadania nacional, surgida com os Estados territoriais
modernos, em forças sociais transnacionais, abrindo caminho para a criação
de uma sociedade civil global emergente. A ideia de que a cidadania global
teria apenas uma força moral é originária da Paz Perpétua de Kant, com o
seu apelo à solidariedade em relação aos estrangeiros. Segundo Kant (1992,
p. 127):
O processo pelo qual todos os povos da terra estabeleceram uma comunidade universal
chegou a um ponto em que a violação de direitos em uma parte do mundo ésentida em toda
parte, isto significa que a idéia de um direito cosmopolita, não é mais uma idéia fantástica ou
extravagante. É um complemento necessário ao direito civil e internacional, transformando-o
em direito público da humanidade (ou direitos humanos); apenas sob esta condição (a saber,
a existência de uma esfera pública em funcionamento) podemos nos gabar de estarmos
continuamente avançando em direção à paz perpétua.
Na visão de Kant (1992, p. 140), vislumbra-se uma espécie de prelúdio
criando uma perspectiva de cidadania global. Há preocupação com a
violação dos direitos humanos em qualquer parte do mundo: “[...]
Identificou o fenômeno de uma esfera pública mundial, que hoje está se
transformando em realidade pela primeira vez com as novas relações de
comunicação global”.
Mas é esta cidadania global que se discute, Santos (2004, p. 246) traz
que:
90
Enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão
a operar como localismo globalizado e, portanto, como uma forma de globalização
hegemónica. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização
contra-hegemôminca, os direitos humanos têm de ser reconceptualizados como
multiculturais. Concebidos como direitos universais, como tem sucedido, os direitos
humanos tenderão sempre a ser um instrumento de ‘choque de civilizações.
Observando o texto e o explanado até agora, temos que observar do que
realmente se tratam os direitos humanos universais, direitos estes que como
diz a etimologia da palavra universal, deveriam ser passíveis de aplicação
em qualquer lugar do mundo, independentemente de, localização, religião,
política e economia. A noção de direitos humanos é complexa e adversa nos
diversos cantos do mundo, sendo mais evidentes entre oriente e ocidente,
cada país possui em evidência a sua cultura.
3 INTEGRAÇÃO MULTICULTURALISMO E MIGRAÇÕES
Cada Estado possui a sua legislação e a sua cultura, seus rituais, que
servem para criação de uma identidade civil, dentro das convenções que a
Declaração Universal de Direitos Humanos trata, devemos buscar a
preservação das diferenças culturais através da integração e valorização da
diversidade por meio do multiculturalismo.
Hoje, não é descomedido ressaltar que devido a globalização o povo e a
população se confundem e a ideia de um Estado formado pelo povo e uma
população específica já não condiz, há tempos, com a realidade atual.
(HELLER, 1968, p. 183/195)
Canotilho (2003, p. 1350) enuncia que:“O velho ‘direito nas fronteiras’ é
dissolvido […]. As comunidades de Imigrantes e de refugiados criam um
‘quinto multicultural’ dentro das fronteiras dos estados de acolhimento”
Assim, cada um destes imigrantes traz consigo uma bagagem cultural
única composta por uma miscigenação de culturas. Essas culturas serão
mantidas na sociedade de destino que se adaptará na medida em que se
relacionar com a cultura da sociedade acolhedora.
O multiculturalismo vem aliado com a globalização facilitar essa
interação de culturas, facilitando a abertura e troca de novas experiências,
facilitadas pela tecnologia. E com essas novas interações é possível
perceber que há adaptações para todos os envolvidos, nacionais e recém-
91
chegados, cada um aceitando a condição do outro como ser humano. Assim,
forma-se o ciclo do multiculturalismo.
Para Bauman (2010, p. 199), esse processo de intensas inter-relações
estabelecidas partir das migrações transnacionais em um ambiente
multicultural que almeja uma forma harmônica de coexistência de um fator
humano multicultural. Para isso, se faz necessário defender a liberdade
como um valor fundamental; a liberdade de escolha cultural deve incluir o
direito de optar por uma cultura ou por várias.
Assim as migrações transnacionais são um importante exemplo de
ralações transnacionais induzidas pelas forças da globalização, mas também
se verifica que essa coexistência e troca de culturas muitas vezes não é
pacífica, e o ambiente multicultural não é alcançado, e algumas vezes os
transmigrantes acabam tornando-se seres em direitos.
Para garantir a proteção dos direitos humanos dos migrantes se faz
necessário “[…] converter os direitos humanos em tema de legítimo
interesse da comunidade internacional, o que implica em processos de
universalização e internacionalização destes mesmos direitos”.
(PIOVESAN, 1998, p. 49/50)
Resta salientar que a ideia de cada Estado proteger os direitos humanos
dentro de seu domínio não se sustenta, tendo em vista tratar-se de tema
legítimo de interesse internacional. (PIOVESAN, 2012, p 43.)
Mantendo a característica de universalidade Piovesan, (2012, p. 43)
demostra que:
“Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de
que a condição de pessoa é requisito único para a titularidade de direitos, considerando o Ser
Humano um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta
como valor intrínseco à condição humana”.
Nesse sentido, Boaventura de Souza Santos (2004, p. 250) entende que:
“Enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos
tenderão a operar como localismo globalizado e, portanto, como uma forma de globalização
hegemónica. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização
contra-hegemôminca, os direitos humanos têm de ser reconceptualizados como
multiculturais. Concebidos como direitos universais, como tem sucedido, os direitos
humanos tenderão sempre a ser um instrumento de ‘choque de civilizações”
Como localismo globalizado entende-se o processo onde um fato local é
globalizado com sucesso, ou seja, um fato endógeno de uma determinada
92
cultura que acaba por se exteriorizar. (BOAVENTURA, 2004, p. 146)
Já Boaventura (2004, p. 250) define a globalização hegemônica e a
globalização contra hegemônica são assim definidas:
“A globalização hegemônica é a nova fase do capitalismo global, constituída pela primazia
do princípio do mercado, liberalização do comércio, privatização da economia, desregulação
do capital financeiro, precariedade das relações de trabalho, degradação da proteção social,
exploração irresponsável dos recursos naturais, especulação com produtos alimentares,
mercantilização global da vida social e política. A globalização contra-hegemônica, ou
globalização a partir de baixo, é constituída pelos movimentos e organizações sociais que,
mediante articulações locais, nacionais e globais, lutam contra a opressão capitalista e
colonialista, a desigualdade e a discriminação racial e sexual, a destruição dos modos de vida
de populações empobrecidas, a catástrofe ecológica, a expulsão de camponeses e povos
indígenas dos seus territórios ancestrais por exigência dos megaprojetos mineiros ou
hidroelétricos, a violência urbana e rural, a imposição de normas culturais ocidentais e a
destruição das não ocidentais, o endividamento das famílias, dos pequenos empresários e dos
Estados como forma de controle social e político, a criminalização do protesto social.”
Ainda, cosmopolitismo, para o Autor, é:
[...] um conjunto muito vasto e heterogéneo de iniciativas, movimentos e organizações que
partilham a luta contra a exclusão e a discriminação sociais e a destruição ambiental
produzidas pelos localismos globalizados e pelos globalismos localizados, recorrendo a
articulações transnacionais tornadas possíveis pela revolução das tecnologias de informação
e de comunicação. [...] Não uso cosmopolitismo no sentido moderno convencional. Na
modernidade ocidental, cosmopolitismo está associado com as ideias de universalismo
desenraizado, individualismo, cidadania mundial e negação de fronteiras territoriais ou
culturais. [...] Para mim, cosmopolitismo é a solidariedade transnacional entre grupos
explorados, oprimidos ou excluídos pela globalização hegemónica. [...] O cosmopolitismo
que defendo é o cosmopolitismo do subalterno em luta contra a subalternização. (SANTOS,
2004, p. 248)
Daí o autor defende a multiculturalidade dos direitos humanos, eis que
“os direitos humanos não são universais em sua aplicação”
(BOAVENTURA, 2004, p. 250).
Em seguida tentaremos verificar a proteção dos refugiados ambientais no
Direito Internacional.
4 A PROTEÇÃO DOS REFUGIADOS AMBIENTAIS NO
REGIME INTERNACIONAL DE REFUGIADOS
Busca-se demonstrar a possibilidade de inserção do “refugiado
ambiental” na proteção internacional da pessoa humana por meio de
93
instrumentos jurídicos já existentes e pela análise de propostas de tratados
internacionais sobre a condição jurídica do refugiado ambiental, visto que,
apesar de estarem presentes na Convenção de Viena, ainda não são
categoria reconhecida juridicamente, e assim não são seres de direitos.
Para Comparato (2008, p. 96) todo ser humano conta com direitos e
deveres na ordem interna e internacional, a proteção jurídica diz respeito a
afirmação dos direitos humanos como tema global apenas a partir da
declaração ambiental de direitos humanos, firmada sobre a égide da então
criada ONU em 1948. Embora tenha apenas 30 artigos à declaração possui
grande importância histórica por relacionar direitos básicos dos indivíduos.
Trindade (1996, p. 28) relata que sob a perspectiva do direito
internacional, são aplicáveis aos refugiados ambientais as normas existentes
do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), bem como os
princípios de direito internacional que regem todo o espectro da proteção
internacional da pessoa humana, também conhecida como as três vertentes
da proteção internacional da pessoa humana – composta pelo DIDH, pelo
Direito Internacional Humanitário (DIH) e pelo Direito Internacional dos
Refugiados .
Para saber-se que norma genérica aplicar, ou para criar-se um sistema de
leis protetivas exclusivas ao refugiado ambiental, necessita-se de uma
diferenciação entre migrante refugiado e “refugiado ambiental”.
Oderth (2002, p. 58) ressalta que a migração humana consiste na
mudança, permanente ou temporária, de residência de uma pessoa ou de um
grupo de pessoas.
A migração é bastante complexa e geralmente envolve mais de um fator
que condiciona o fluxo migratório individual, familiar ou grupal. Por isso
fala-se na existência de fluxos migratórios mistos, fluxos que comportam
mais de uma causa motivadora do movimento migratório. A situação dos
“refugiados ambientais” acaba sendo esta, que, na maioria das vezes,
quando se consideram os refugiados ambientais advindos de rupturas
ambientais de aparecimento lento. (BROWN, 2009, p. 75)
A expressão refugiados ambientais já havia sido cunhada por Lester na
década de 70, quando o autor alertava para o crescente número de migrantes
advindos da desertificação, das enchentes, das tempestades intensas, da
escassez de recursos hídricos e do excesso de poluentes no meio ambiente.
(BROWN, 2011, p. 113)
94
Segal (2001, p. 48) afirma que os refugiados ambientais refletem a
profunda destruição do planeta; esses refugiados, ela aponta, não são
vítimas de perseguição política, religiosa, racial, de nacionalidade ou de
pertencimento a um grupo social: eles são vítimas de mudanças causadas no
meio ambiente e, por não conseguirem sustentar-se em locais
ambientalmente degradados, eventualmente têm que migrar internamente
ao seu país ou para o exterior.
O tema das migrações é bastante amplo e está relacionado a uma série de
questões, tais como: os direitos humanos, a proteção jurídica aos
trabalhadores migrantes, a vulnerabilidade dos migrantes, a igualdade de
gêneros, o tráfico de pessoas, as implicações da emigração qualificada, o
alcance da integração regional e as possibilidades de governabilidade futura
da migração, que demandam um lugar de destaque nas agendas políticas
dos países de origem, trânsito e destino. (SADER, 2006, 794.)
O ACNUR, no relatório Tendências Globais 2008, contabilizou: 42
milhões de pessoas forçadamente deslocadas, das quais 15,2 milhões são
refugiados, 827 mil solicitantes de asilo e 26 milhões deslocados internos,
sendo que aproximadamente 25 milhões receberam proteção ou assistência
pelo ACNUR, dos quais 10,5 milhões de refugiados e 14,4 milhões de
deslocados internos. Diante desses números, pode-se concluir que o número
de deslocados internos e a demanda humanitária daí decorrente é
significativamente maior que a dos refugiados.
Como os deslocados internos permanecem no território do próprio
Estado, a responsabilidade por sua proteção recai, em primeiro plano, sobre
os governos nacionais e as autoridades locais. No entanto, tal fato não
afasta a necessidade de uma disciplina internacional para a promoção
efetiva dos direitos dos deslocados internos, mesmo porque nem sempre
será possível ao Estado garantir sua segurança e seu bem-estar,
especialmente em situações de crise e conflito, que dificultam e podem
inviabilizar a prestação de assistência internamente pelo Estado.
Os imigrantes acabam sofrendo preconceitos, e muitas barreiras são
impostas a eles pelo simples fato de não serem “locais”. Desconsidera-se o
fato de que muitas vezes o que estas pessoas mais gostariam era permanecer
em seu Estado de origem, inserido em seu território e sua cultura. O
desrespeito com o refugiado, as vezes acaba em violência, em descaso,
95
devido a sua não inserção no meio social e sua ausência de direitos e
garantias.
Um exemplo disto, é o fato de que na Europa, existem trabalhos nos
quais os europeus não se interessam, não querem se submeter e os
imigrantes aproveitam estas vagas para garantir sua subsistência no país
desconhecido, e mesmo com o desinteresse dos europeus para com o
trabalho mais pesado, ainda a presença do imigrante é vista como ameaça,
eles continuam sendo ignorados, e muitas vezes invisíveis, seres sem
direitos e sem qualquer reconhecimento.
Paulo Ferrero (2014, p. 59) diz que é evidente que a imigração é um
fenômeno baseado no fato de que os países pobres produzem migrantes e os
países ricos tem a necessidade do trabalho destes migrantes. Fica evidente
que se os imigrantes não existissem, a Itália por exemplo, na opinião do
autor, não funcionaria.
Alessandro Dal Lago (2011, p, 44), complementa que:
A violência racista das minorias ideológicas, a indiferença vinda de hostilidade das maiorias
silenciosas, a discriminação judiciária, a exclusão social são formas diversas nas quais uma
Sociedade substancialmente unida e compactuadaquanto ao medo dos migrantes (a vergonha
das suas diferenças ideológicas e políticas) constrói uma barreira intransitável entre ‘eles’ e
‘nós’, mesmo se alguns deles se permite ficar temporariamente entre nos. ‘Eles’ são todos
aqueles que. Por qualquer motivo, pretendem viver entre nós mesmo não sendo como nós
somos. (Tradução livre)
Além disso, conforme se depreende da contribuição de Lopes (2002, p.
44), conclui-se que:
“ Os discursos da política e as práticas atuais (legislação, policialização) induzem a pensar
que imigrar é crime, pois a imigração é controlada pela polícia, e os imigrantesestão sujeitos
a serem presos (e confinados em centros de detenção, que é quase a mesma coisa) e
deportados para seus países de origem, mesmo quando mais que imigrante, são refugiados
por motivos de subsistência. A mídia já consagrou ao termo imigrante uma condição de
ilegalidade intrínseca”
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como os deslocados internos permanecem no território do próprio
Estado, a responsabilidade por sua proteção recai, em primeiro plano, sobre
os governos nacionais e as autoridades locais. No entanto, tal fato não
afasta a necessidade de uma disciplina internacional para a promoção
96
efetiva dos direitos dos deslocados internos, mesmo porque nem sempre
será possível ao Estado garantir sua segurança e seu bem-estar,
especialmente em situações de crise e conflito, que dificultam e podem
inviabilizar a prestação de assistência internamente pelo Estado.
Apesar disso, a proteção aos deslocados internos, no plano internacional,
ainda é bastante incipiente, carecendo de um instrumento internacional de
alcance geral com força vinculante, já que os princípios orientadores não
constituem um documento obrigatório, sendo insuficiente para garantir a
proteção e a assistência às pessoas e grupos nessa condição.
Por outro lado, também não parece suficiente pensar um sistema de
proteção específico para os migrantes ambientais tendo como base
exclusivamente a proteção e a assistência humanitária que, de fato, é
medida necessária e mais imediata, mas pode não representar a solução
mais adequada ou a mais duradoura para os casos concretos. É difícil
conceber um sistema de proteção aos “refugiados ambientais” sem levar em
conta a progressiva vinculação entre a proteção dos direitos humanos e do
meio ambiente.
Por tais razões, percebe-se que os avanços na busca de soluções originais
para o problema das migrações ambientais, de uma forma geral, ainda são
pouco significativos. Por um lado, há os que defendem a adaptação de
antigas fórmulas e institutos do Direito Internacional a essa realidade, bem
mais complexa e dinâmica. De outro lado, há os que reconhecem a
necessidade de um sistema de proteção específico, mas não
necessariamente vinculante, haja vista a dificuldade na obtenção de um
consenso mínimo por parte dos atores envolvidos, o que implica na
assunção de compromissos e responsabilidades, inclusive de natureza
financeira.
Entende-se ainda, que a globalização pode ajudar na inserção deste
imigrante, trazendo à tona o multiculturalismo, como alternativa possível e
adequada na inserção dos Direitos Humanos na sociedade que habitam,
atenuando os efeitos da globalização econômica, e possibilitando que os
envolvidos possam fazer valer o caráter multicultural da sociedade atual,
com vistas à manutenção dos traços culturais de cada pessoa, e
reivindicação de sua condição com ser de direitos.
97
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Vermelha/ Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, 1996
99
GRAMÁTICAS DE DIREITOS HUMANOS NA AMÉRICA
LATINA: OPINIÃO CONSULTIVA Nº 22 DA CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E A
CONSOLIDAÇÃO DE UM NOVO PANORAMA PARA A
QUESTÃO INDÍGENA
Rafaela da Cruz Mello53
Márcio Morais Brum54
Tiéli Zamperetti Donadel55
RESUMO
Em 2016 a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu a
Opinião Consultiva (OC) nº. 22 afirmando que comunidades indígenas
podem ser titulares de direitos protegidos pelo sistema interamericano.
Nesse contexto, indaga-se: Quais são as implicações desta OC? O
reconhecimento das comunidades indígenas como sujeitos de direitos
viabiliza uma nova gramática de direitos humanos na América Latina tendo
por base a multiculturalidade e a sociobiodiversidade? Com o método
dedutivo de abordagem, apresenta-se o modo como a CIDH compreende
questões indígenas, a fim de delinear bases de consolidação de uma nova
gramática de direitos humanos para a América Latina. Conclui-se que o
reconhecimento pela CIDH de percepções indígenas em relação a alguns
temas auxilia no rompimento com a influência de algumas estruturas do
paradigma racionalista na América Latina e na consolidação de novas
gramáticas para a região.
Palavras-chave: Opinião consultiva; Direitos Humanos; Indígenas.
1 INTRODUÇÃO
Uma das grandes mudanças apresentadas pelo século XX e radicalizada
pelo século XXI é a alteração de estruturas políticas e jurídicas em âmbito
global. Se no século XIX o único sujeito de direito internacional era o
Estado, o século XX vê a paisagem mundial ser alterada pela multiplicação
100
de atores das relações internacionais e de sujeitos de direito em âmbito
internacional. Nesse sentido, os Estados passam a conviver com
Organizações Internacionais, Empresas Transnacionais e até mesmo
indivíduos que separadamente ou em conjunto, passam a receber tutela de
normas internacionais.
Sob essa estrutura, as políticas e decisões internas e externas dos Estados
passam a sofrer influência de outros atores e sujeitos. Exemplifica-se isso
com a notícia de que, em 2016, o Banco Mundial realizará a revisão de suas
políticas socioambientais. Isso significa que os critérios dessa instituição
para garantir a concessão de empréstimos aos Estados serão alterados,
supostamente a fim de garantir maior sustentabilidade e garantia aos
direitos humanos.
Conforme relatos de organizações internacionais protetivas de Direitos
Humanos, como é o caso da organização Conectas, o que era para ser um
processo de fortalecimento de políticas visando à sustentabilidade e à
garantia aos direitos humanos pode, na prática, no contexto latino
americano, refletir enormes retrocessos em relação à questão indígena.
Nesse viés, nas últimas décadas, a América Latina foi e é palco de diversos
avanços em relação a questões indígenas e de comunidades tribais, como é
o caso, por exemplo, da Opinião Consultiva nº 22/2016 emitida pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que reconheceu a titularidade
de direitos contidos da Convenção Americana de Direitos Humanos
(CADH) para as comunidades indígenas e tribais latino-americanas e não
somente para os indivíduos pertencentes a essas comunidades.
Avanços como este ou como as próprias conquistas advindas de
estruturas do novo constitucionalismo latino-americano são periodicamente
colocados em risco em nome dos direitos humanos positivados e
reconhecidos em âmbito global. Nesse sentido, os problemas que emergem
e que pretendem ser respondidos nesse trabalho são os seguintes: Seria
aplicável, à América Latina, uma gramática universalista moderna dos
direitos humanos? Quais seriam as alternativas de novas gramáticas de
direitos humanos para a América Latina? O reconhecimento das
comunidades indígenas como sujeitos de direitos viabiliza uma gramática
multicultural tendo por base a cultura indígena e os direitos da
sociobiodiversidade? Qual é o papel da Corte Interamericana de Direitos
Humanos na construção de uma nova gramática de direitos humanos para a
101
América Latina, principalmente no que tange às questões indígenas? Quais
são as implicações da Opinião Consultiva nº 22/2016 no contexto latinoamericano?
Utilizando-se do método dedutivo de abordagem e da teoria da
colonialidade do poder para elucidar questões referentes aos direitos
humanos na América Latina, objetiva-se demonstrar que a visão moderna,
eurocêntrica e universalista de direitos humanos é incapaz de tutelar e
compreender os pluralismos identitários e culturais da região e que novas
alternativas vêm sendo encontradas, inclusive institucionalmente, como é o
caso da postura da CIDH, para romper com tal visão moderna.
Assim, o trabalho será dividido em duas grandes partes: na primeira
serão expostos os riscos de uma gramática universalista moderna de direitos
humanos para a América Latina (1.1) e as possibilidades de novas
gramáticas advindas do reconhecimento de questões da sociobiodiversidade
e de particularismos locais (1.2). Na sequência, como alternativa
institucional que corrobora com a construção e consolidação de novas
visões de direitos humanos no contexto latino americano, serão abordados
os particularismos do direito interamericano (2.1), bem como decisões da
Corte Interamericana no sentido de valorizar a postura dialógica em relação
aos conhecimentos das comunidades indígenas e as implicações da OC nº
22/2016 para a região (2.2).
2 RISCOS DE UMA GRAMÁTICA UNIVERSALISTA DE
DIREITOS HUMANOS PARA A AMÉRICA LATINA
Duas das grandes descobertas do segundo milênio, segundo Boaventura
de Sousa Santos (2010, p. 188) foram a natureza e o selvagem ameríndio.
Ambos são vistos, respectivamente, como lugar de exterioridade e de
inferioridade, sujeitos a estratégias de poder e dominação por um paradigma
epistemológico, político e econômico dominante. Apesar do fato de que o
meio ambiente global tenha emergido como importante questão na política
mundial nas últimas décadas é inegável que o paradigma da modernidade
clássica ainda rege as relações do homem tanto com outros homens como
com o meio ambiente.
102
As consequências, segundo Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 189),
da manutenção desse paradigma epistemológico de percepção e
interpretação de mundo são a crise ambiental e a questão da biodiversidade.
A primeira se justifica pelo fato de que o paradigma da modernidade trata a
natureza como um recurso a ser explorado com vistas ao desenvolvimento
econômico. A segunda, por sua vez, procura repor em um novo plano a
sobreposição matricial entre a descoberta do selvagem e a descoberta da
natureza, de modo que no início do terceiro milênio, grande parte da
biodiversidade do planeta encontra-se na posse de povos indígenas e no Sul
Social do planeta.
O terceiro milênio, desta forma, apresenta como propósito, em relação ao
Sul Social, uma ressignificação dos conceitos de natureza e dos povos
tradicionais. Todavia, para que tal ressignificação ocorra, é necessário que
se faça o rompimento com o paradigma da modernidade ocidental e a
superação da visão europeia e universalizante de direitos humanos (1.1),
com a valorização dos particularismos interamericanos e dos direitos da
sociobiodiversidade para que sejam bases para o fortalecimento de uma
gramática multicultural e própria dos direitos humanos para a América
Latina (1.2).
2.1 A inaplicabilidade do universalismo da concepção moderna
de direitos humanos no contexto latino americano.
Tomando como base o local em que se está, descolonizar é enxergar o
que está ao redor de um ponto de vista próprio e não com o que fora
importado de outros lugares. Essa premissa é de extrema relevância quando
se menciona a América Latina. Nesta apesar de as independências de
diversos países datarem de meados do século XIX e início do século XX, a
ruptura ocorrida foi meramente política e administrativa em relação aos
países do “lado de lá” do Atlântico, uma vez que o fim do colonialismo
político enquanto forma de dominação não significou o fim das relações
sociais desiguais geradas por ele (MELLO et VELHO, 2015).
Esse é o sentido da teoria da colonialidade do poder, desenvolvida por
Aníbal Quijano (2010). Segundo ele, embora o colonialismo político tenha
tido um fim com as independências dos diversos países da América, a
103
manutenção da relação colonial ainda se encontra presente na colonização
do imaginário dos dominados.
As relações de poder e dominação ultrapassam a esfera meramente
política, recaindo sobre os modos de conhecer, de produzir conhecimento,
imagens e símbolos, através da imposição de padrões utilizados pelos
dominadores, na forma de controle social e cultural (BALDE, 2014). Nesse
mesmo lapso em que a dominação colonial europeia se consolida, a
racionalidade moderna, também europeia, passa a ser o paradigma universal
de conhecimento e o exemplo de relação entre a humanidade e o resto do
globo.
A predominância da metafísica, do cartesianismo e dos propósitos
iluministas fazem com que na modernidade haja a abissal distinção entre
sujeito e objeto, sendo o sujeito visto como indivíduo isolado, constituído
em si e diante de si e o objeto, uma entidade diferente do sujeito e externo a
ele. Sob essa égide, o conhecimento foi concebido à semelhança de uma
propriedade, em que o sujeito congnoscente omite a existência de qualquer
outro ser ou o torna objeto (BALDE, 2014).
Sob o paradigma da modernidade produzem-se invisibilidades e
inexistências em relação aos sujeitos não europeus, visto como objetos.
Assim, o sujeito de direitos é homem, um único indivíduo – as
coletividades eram excluídas – e, terra, natureza e povos não europeus são
vistos como objetos de direitos. Nesse viés, Fernanda Frizzo Bragato (2014)
afirma que os direitos humanos são frutos do individualismo
antropocêntrico moderno em que o foco se encontrava na garantia de
direitos individuais. Assim, a positivação dos direitos humanos a partir do
século XVIII, com a Declaração de Independência Americana de 1776 e
com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 seguem
cânones liberais e individualistas como é o caso das percepções em relação
à vida, liberdade e propriedade. O grande ideal dessa percepção de direitos
humanos criada com a modernidade e estendida como paradigma ainda
atual é o de autonomia dos particulares contra o Estado, sendo tal
autonomia fruto da natureza racional do homem.
A construção moderna e universalista de direitos humanos, dessa forma,
corrobora com a perpetuação de invisibilidades e vulnerabilidades. O ideal
de igualdade trazido pelas declarações aludidas e ainda presente na
concepção epistemológica universal de direitos humanos é apenas formal,
104
ou seja, não objetiva a concessão de uma vida digna a todos
indistintamente, mas aos que tem liberdade para exercê-la (BRAGATO,
2014, p. 210).
Como bem explicita César Augusto Baldi (2014), a ideia de Europa e de
ocidente pressupõe a admissão de outras culturas e de diferenças com outras
culturas. Entretanto, essas são admitidas como desigualdades em um
sentido hierárquico, uma vez que somente a cultura europeia domina a
razão, é capaz de se desenvolver e pode conter “sujeitos”. As demais
culturas e sociedades são vistas como inferiores por natureza ou ainda
inexistentes, corroborando a teoria de pensamento abissal (SANTOS,
2010b) e de produção de invisibilidades, de modo que não podem ser
sujeitos, mas somente objetos.
Como refere Aníbal Quijano (2010) a colonialidade reflete eixos de um
padrão de poder que possui como um de seus tripés a identidade associada a
hierarquias. Na relação entre conquistadores e conquistados, a raça
constituía critério fundamental para o estabelecimento de relações de poder
e de dominação. Mesmo que enquanto estrutura política o colonialismo
tenha chegado ao fim no século XIX na América Latina, por meio de
estruturas de colonialidade do poder, a raça continuou sendo critério
fundamental para distribuir a população mundial em níveis, lugares e papeis
na estrutura social, em uma verdadeira classificação social universal.
Neste sentido é pertinente pensar os direitos humanos frente a esse
paradigma racionalista moderno que sustenta até hoje estruturas de
colonialidade do poder. A concepção dos direitos humanos, ainda que no
terceiro milênio, têm raízes profundas na matriz liberal e ocidental, a qual
os concebe como direitos individuais, privilegiando os direitos civis e
políticos. Segundo Boaventura de Sousa Santos (2014) o direito e os
direitos possuem uma genealogia dupla na modernidade ocidental: de um
lado uma genealogia abissal e de outro, revolucionária.
Sob a ótica abissal (SANTOS, 2010b, p. 31), que repartiu o mundo
através de um sistema de divisões visíveis e invisíveis - respectivamente
sociedades metropolitanas e sociedades coloniais – o discurso dos direitos
humanos, enquanto discurso de emancipação, foi apenas construído para
vigorar do lado da linha em que estavam as sociedades metropolitanas. O
lado colonial da linha abissal, por sua vez, carrega a genealogia
revolucionária, de rompimento com a percepção moderna (e ainda
105
reproduzida) de direitos humanos uma vez que estes possuem vinculação
com as revoluções francesa e americana, ambas feitas sob os pilares de uma
sociedade burguesa que, já possuindo a hegemonia econômica, buscava a
consolidação de uma hegemonia política (SANTOS, 2014).
Conforme Boaventura de Sousa Santos (2014, p.21), o discurso
dominante dos direitos humanos passou a ser o de dignidade humana
consonante com as políticas liberais, com o desenvolvimento capitalista e
suas metamorfoses e com o colonialismo e suas metamorfoses (racismo,
políticas migratórias repressivas, entre outros). Desta forma, a visão
hegemônica de direitos humanos possui as seguintes características:
universalidade independentemente do contexto social, político e cultural,
bem como dos diferentes regimes de direito existentes em diferentes regiões
do globo; na sua concepção atual, são vistos como a única gramática e
linguagem de oposição disponível; questionar os direitos humanos em suas
supostas limitações culturais e políticas contribui para perpetuar os males
que eles originalmente visam a combater; concepções predominantemente
individuais, sendo que o que conta como violação é o que está descrito em
declarações universais, instituições multilaterais e organizações nãogovernamentais (predominantemente do Norte Social).
A visão coletiva possui pouco espaço nessa concepção hegemônica
amplamente difundida de direitos humanos. A tensão entre direitos
individuais e coletivos resulta da luta histórica de grupos sociais, sendo que
alguns, discriminados ou excluídos somente podem ser adequadamente
protegidos enquanto grupo. É o caso de afrodescendentes, minorias
religiosas e, o que mais interessa a este trabalho, povos indígenas, os quais
observam muito lentamente os direitos coletivos estão ingressando na
agenda política (SANTOS, 2014).
Assim, parece evidente que a compreensão do mundo e dos direitos
humanos excede a concepção ocidental da universalidade destes. A visão
hegemônica reduz o mundo ao entendimento ocidental, ignorando,
invisibilizando ou trivializando experiências políticas e culturais decisivas
em países do Sul Social. No entanto, movimentos de resistência contra a
marginalização e a exclusão passaram a emergir nas últimas décadas e
possuem raízes em identidades históricas e culturais diversificadas e
multisseculares (SCHETTINI, 2012). Um desses movimentos é o dos
indígenas na América Latina.
106
Para uma compreensão total da questão indígena e para o
reconhecimento do direito desses povos, é necessária a superação do
paradigma racionalista moderno, de universalismo formal. Evidentemente
balizas de mínimo ético universal e irredutível humano reconhecido em
cartas internacionais não serão dispensados, mas é preciso observar a
realidade social da região. Nesse sentido, os movimentos indígenas pelo
reconhecimento de suas peculiaridades culturais e por seu direito de
autodeterminação fazem ecoar as vozes de um Sul Social que demanda por
uma ampliação na agenda de proteção de direitos e mesmo de concepção de
direitos humanos (GOMES, 2014).
É nesse aspecto que surge a necessidade de complementação da agenda
tradicional de direitos humanos, composta pela tutela de direitos civis e
políticos, por uma agenda mais ampla e com enfoque em direitos
econômicos, sociais e culturais e em direitos da sociobiodiversidade.
Modificações já foram presenciadas ultimamente na esfera legislativas56,
com a transformação de normas dos sistemas jurídicos a fim de introduzir
direitos sociais e elementos culturais próprios das comunidades tradicionais
locais no ordenamento jurídico dos países da América Latina. Isso permitiu
o fortalecimento de uma epistemologia própria e de uma tentativa contra
hegemônica de rompimento com a colonialidade do poder e de
consolidação de uma gramática multicultural de direitos humanos para a
região.
2.2 O reconhecimento de elementos da sociobiodiversidade
para elaboração de uma gramática multicultural de direitos
humanos na América Latina com base nos particularismos
locais.
Em termos de América Latina, além da diversidade de organismos vivos
de todas as origens, conjuntos de agrupamentos humanos tradicionais
encontram-se espalhados pelo continente, preservando culturas, tradições e
saberes relativos ao local em que habitam. Nesse sentido, um dos usos da
biodiversidade é o de geração e desenvolvimento de culturas diversas, cada
qual com sua interpretação e visão de mundo.
A diversidade, nesse sentido, é vista sob três pilares: o humano, o natural
e o cultural. Os povos tradicionais convivem com a biodiversidade e
107
interagem de modo harmônico com a natureza, percebendo-a como sujeito e
não como objeto pronto para ser dominado. É dessa relação que surge o
termo sociobiodiversidade.
O modelo desenvolvimentista calcado nos primados do racionalismo
moderno, seguido por uma lógica antidemocrática de exploração e
mercantilização da natureza, interpretando-a somente como objeto, foi
importado para a América Latina, sendo mais uma forma de demonstração
da colonialidade do poder (BALDI, 2014). Assim, a adoção do discurso
técnico-científico produtivista e depredador em relação ao meio ambiente
gerou afastamento da noção de sociobiodiversidade e do vislumbre da
natureza enquanto sujeito.
Esse discurso técnico-científico para o modelo de desenvolvimento
predatório importado passou a ser visto como o discurso de verdades no
interior da sociedade moderno-colonial, levando à desqualificação de outros
saberes. Utilizando-se da expressão de Boaventura de Sousa Santos (2010b)
tal discurso produz verdadeiros epistemicídios na América, de modo que os
saberes e os conhecimentos locais são vistos de modo inferior, como
subculturas que nada tem a contribuir para as estratégias econômicas
previstas para a região. Inclusive sob essa ótica, a questão ambiental
somente é assimilada dentro da lógica técnico-científica como recurso a ser
utilizado em busca de crescimento econômico e não enquanto questão
cultural e política (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 68).
Boaventura de Sousa Santos (2014) neste ínterim afirma que condições
ou entidades locais estenderam e estendem suas influências ao longo do
mundo, a fim de, de modo hegemônico, homogeneizar as práticas e
conhecimentos sob suas diretrizes balizadoras. Logo, aquilo que é dito
como global ou universal não deixa de ser uma projeção de um local ou de
determinado discurso. É, portanto, sobre os panos de fundo da colonialidade
do poder e do paradigma da modernidade ocidental (SCHETINNI, 2012)
que as questões indígena e do meio ambiente se constroem na América
Latina. Desta forma, a gramática de direitos humanos desenvolvida, com a
pretensão de universalidade, não abarca as questões peculiares e específicas
do continente, sendo necessária uma nova gramática de proteção dos
direitos humanos, valorizando a multiculturalidade (dentro da qual estão os
direitos dos indígenas) e os ideais da sociobiodiversidade.
108
Em meados do século XX, na América Latina, surgiram programas
governamentais para atenção aos povos indígenas, os quais trataram de
elevar as condições de vida dos indígenas, mas de modo mais
assistencialista do que empoderante, vez que pretendiam a integração dos
povos indígenas à cultura nacional dominante, com o abandono de
elementos essenciais à sua cultura. No fim do século XX e no despontar do
século XXI, tanto no plano internacional como internamente dentro de
alguns Estados latino-americanos, houve a emergência dos povos indígenas
como atores sociais com direito à autodeterminação e ao reconhecimento e
valorização de suas especificidades culturais.
Documentos internacionais como é o caso da Convenção 169 da OIT
sobre povos indígenas e tribais de 1989 e da Declaração das Nações Unidas
sobre o Direitos dos Povos Indígenas de 2007 apresentam prerrogativas
relativas ao direito de autodeterminação dos povos indígenas e tribais e,
embora não tenham efetivamente levado à ruptura com o paradigma
ocidental moderno, contribuíram para que a agenda internacional de direitos
humanos se enriquecesse e para que houvesse um fortalecimento na causa
de defesa desses povos (SCHETTINI, 2012).
Em conjunto com tais documentos, as vertentes mais atuais do novo
constitucionalismo latino-americano vislumbradas em constituições como a
da Bolívia e do Equador, demonstram a alteração de estruturas
institucionais e normativas em função do reconhecimento das
particularidades dos povos indígenas da região e os direitos da
sociobiodiversidade.
Urge, nesse contexto, pensar sobre um novo paradigma para a América
Latina, baseado na dicotomia das epistemologias do sul e na valorização
dos conhecimentos e dos direitos da sociobiodiversidade. Essas duas bases
para a construção de um novo ideário epistemológico para a América Latina
propõem-se a valorizar os saberes locais e os conhecimentos dos povos
tradicionais percebendo o continente como uma região rica em culturas e
diversidade e não como uma subcultura em relação aos modelos europeus.
Tais povos, apesar do genocídio e epistemicídio sofrido ao longo dos
séculos, possuem uma enorme capacidade de resistência, além de uma
identidade cultural capaz de resistir e sobreviver mesmo ao modelo
desenvolvimentista excludente (SCHETTINI, 2014). Assim sendo, na
batalha contra a modernidade colonial, duas são as frentes em que a luta
109
indígena se destaca: a primeira delas é assegurar a existência de disposições
normativas capazes de resguardar seus direitos dentro da lógica do próprio
sistema e a segunda é a resistência, com base nos direitos da
sociobiodiversidade e na busca de concepções mais amplas de direitos
humanos, que serve de base para a construção de uma racionalidade
alternativa.
O primeiro aspecto já fora demonstrado com a inclusão de questões
indígenas na agenda internacional por meio de Convênios e Convenções
específicas, tanto em âmbito global como regional. Entretanto, embora se
tenha a inclusão da questão em tratados e normas internacionais, a
construção de um sistema alternativo que quebre com aspectos do
paradigma moderno racionalista necessita de uma nova gramática de
interpretação dos direitos humanos para a questão indígena na América
Latina, que vai além da mera afirmação de igualdade formal entre os povos.
Isso porque, consoante fora explanado anteriormente, os direitos humanos,
como produtos da racionalidade moderna, historicamente foram
interpretados de modo a serem cúmplices da lógica colonizadora
(HERRERA FLORES, 2009).
Nesse aspecto que envolve os direitos humanos, a igualdade formal não
basta para que se tenha a tutela efetiva de determinado grupo minoritário ou
vulnerável. A visão de individual, abstrata, genérica e universalista dos
direitos humanos acaba por não abarcar as peculiaridades da questão
indígena. É preciso avaliar as especificidades culturais e os particularismos,
na compreensão de que a mera proteção de um mínimo ético universal e o
irredutível humano apresentado na noção abstrata e universalista dos
direitos humanos, não abarca a dignidade da pessoa humana em seu aspecto
cultural, não tutelando de fato os povos indígenas nas suas peculiaridades.
Somente com a definição de políticas específicas que os espaços são abertos
para a real descolonização das relações sociais e políticas (SCHETTINI,
2012).
A base, portanto, para a construção de uma nova racionalidade, com o
reconhecimento de diferentes identidades e culturas vistas em suas
peculiaridades, com a proteção de grupos vulneráveis e pretensão de um
modelo alternativo de desenvolvimento pode ser encontrada no
reconhecimento do direito da multiculturalidade e da sociobiodiversidade,
uma vez que estas rompem com a metafísica moderna de divisão entre
110
sujeito e objeto e, têm por base uma visão holística do mundo como um
todo integrado (CAPRA, 2006).
Imperiosa, portanto, a incorporação das bases da sociobiodiversidade
para a gramática multicultural de direitos humanos na América Latina, a
fim de reconhecer a diversidade cultural e natural da região como um dos
pontos de conflito para a superação do paradigma racionalista moderno.
Nesse aspecto, apesar de a luta pelo reconhecimento das epistemologias do
sul e pelos direitos dos povos tradicionais latino americanos – em especial
os povos indígenas – ser ampla, as esferas jurídica e legal podem ser
instrumentos interessante para estimular bases de uma ruptura
paradigmática com a colonialidade do poder e com o paradigma ocidental
moderno.
3 CONTRIBUIÇÕES DA CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS PARA A CONSTRUÇÃO DE NOVAS
GRAMÁTICAS DE DIREITOS HUMANOS POR MEIO DOS
PARTICULARISMOS: AS IMPLICAÇÕES DA OPINIÃO
CONSULTIVA NÚMERO 22/2016 E A QUESTÃO
INDÍGENA.
Herrera Flores (2009) ao trabalhar com direitos humanos e povos
tradicionais aborda questionamentos interessantes e extremamente
complexos. Um deles é: “podem confiar os coletivos tradicionalmente
oprimidos e subordinados pelo conjunto de relações capitalistas no Direito
Internacional dos Direitos Humanos como único instrumento de solução de
seus problemas?”. Evidentemente que as questões envolvendo esse tema
não podem somente ser resolvidas na seara jurídica, seja ela judicial ou
legislativa, através de normas ou jurisprudência.
Entretanto, embora seja importante a adoção de uma visão crítica acerca
de até que ponto o edifício normativo e jurisprudencial pode romper com a
estrutura de dominação e exploração das relações do capitalismo
(SCHETTINI, 2012), não se deve desconsiderar o direito enquanto um
possível instrumento de mudança, sendo um dos instrumentos disponíveis
para os povos indígenas contra o modelo moderno-colonial ainda vigente.
111
Apesar de a luta indígena ir muito além da esfera jurídica, este capítulo
analisará de que modo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a partir
dos particularismos latino-americanos, vem se posicionando acerca de
questões indígenas e contribuindo para a consolidação de gramáticas locais
relativas aos direitos humanos (2.1), bem como quais são as implicações da
decisão consultiva mais recente da CIDH, a Opinião Consultiva nº 22/2016
que reconheceu a comunidades indígenas e tribais a titularidade de direitos
tutelados pelo Pacto de São José da Costa Rica (2.2).
3.1 O particularismo interamericano e as questões indígenas.
No mundo existem três grandes sistemas regionais de proteção aos
direitos humanos: o sistema europeu de proteção aos direitos humanos, cujo
principal documento é a Convenção Europeia dos Direitos do Homem; o
sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, que possui como
baluarte a Convenção Americana de Direitos Humanos e, por último, o
sistema africano de direitos humanos, instrumentalizado pela Carta
Africana de Direitos Humanos e dos Povos. Tais instrumentos normativos
apresentam direitos humanos positivados conforme as estruturas modernas,
principalmente no que tange à proteção dos direitos vinculados ao indivíduo
e não a uma coletividade.
No entanto, os órgãos institucionais de cada um desses sistemas, tendo as
convenções e tratados como elementos norteadores, são capazes de,
consoante a realidade das regiões em que se inserem, interpretar de modo
diferenciado determinadas questões, assumindo postura ora conservadora,
ora vanguardista. Desta forma, costuma-se afirmar que cada um dos
sistemas regionais dos direitos humanos apresenta a dicotomia de seguir
premissas normativas universais em relação aos direitos do homem, porém,
apresentar particularismos em sua jurisprudência.
Como assevera Ludovic Hennebel (2009, p. 78) a jurisprudência do
órgão contencioso e consultivo do sistema interamericano de direitos
humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) é
frequentemente original, criativa ou vanguardista e, por vezes,
juridicamente não conformista, capaz então de reivindicar os
particularismos interamericanos. Hennebel divide em cinco os prismas em
que o particularismo interamericano se reflete: a) penalização; b)
112
constitucionalização; c) humanização, d) moralização e, e) subjetivização
do direito interamericano (HENNEBEL, 2009, p. 79).
Os aspectos que interessam a este trabalho se inserem no prisma da
subjetivização do direito interamericano, porém, é pertinente destacar as
características de cada um dos outros prismas. A penalização do direito
interamericano, por exemplo, reflete-se pelo cariz penal de grande parte das
demandas existentes junto à CIDH até hoje.
O órgão jurisdicional do sistema iniciou, que iniciou seus trabalhos em
1979, durante as primeiras décadas, teve o exercício de sua competência
contenciosa restrito, em grande parte, a casos envolvendo questões
vinculadas aos crimes ocorridos durante as ditaduras militares de diversos
países da América Latina. Desta maneira, Hennebel (2009, p. 84) destaca a
coloração penal da maioria dos processos julgados ou em julgamento pela
CIDH, agindo esta contra a impunidade de delitos perpetrados pelos
próprios Estados.
Outro particularismo exposto por Hennebel (2009, p. 91) é a
constitucionalização do direito interamericano. Isso significa que a CIDH
não se limita a interpretar a Convenção Americana de Direitos Humanos ou
apenas controlar seu respeito. Sua tarefa é mais abrangente, no sentido de
contribuir para instaurar uma verdadeira cultura de direitos humanos e
justiça na América Latina. Assim, além da inclusão de elementos da
Convenção Americana em constituições estatais, o direito interamericano
produzido pela jurisprudência da CIDH, bem como os pareceres consultivos
desta influenciam em políticas públicas estatais, legislações internas e
decisões judiciais.
Reflexo de tal postura se dá por meio do controle de convencionalidade.
Em breve histórico da CIDH, destaca-se que no caso Almonacid Arellano vs
Chile, de 2006 a Corte afirmou que o poder judiciário dos Estados deve
exercer o controle de convencionalidade entre as normas internas que
aplicam aos casos concretos e a Convenção Americana de Direitos
Humanos. Assim como devem observar a Convenção, os Estados também
têm o dever de observar a interpretação que a CIDH dá à Convenção tanto
em sua jurisprudência como em suas opiniões consultivas.
Desta maneira, não só juízes, mas todos os níveis da administração da
justiça têm a obrigação de exercer de ofício o controle de
convencionalidade. Logo, tanto o Poder Judiciário de cada Estado quanto
113
seus poderes Executivo e Legislativo possuem o dever de pautar suas
decisões não só em consonância com a Constituição, como também com o
Pacto de San José da Costa Rica e as manifestações da CIDH.
Na sequência, outro particularismo interamericano se reflete na chamada
humanização do sistema interamericano. Segundo Hennebel (2009, p. 97) o
eixo em torno do qual a Convenção Americana e as decisões da CIDH
giram é o ser humano. Este é beneficiário de direitos e vítima de violações.
Com essa dupla característica, a CIDH contribui, em sua jurisprudência,
para conceitualizar uma dimensão interamericana em matéria de direitos
humanos centrada na vítima. Como bem refere Hennebel (2009, p.104) a
humanização do direito interamericano será materializada pela concepção
muito extensiva da justiça, que deve proteger efetivamente e concretamente
os indivíduos ameaçados e lhes oferecer recursos úteis em caso de violação.
A moralização se constitui como um quarto particularismo do direito
interamericano pode ser brevemente resumida como a capacidade da Corte
Interamericana de adequar as medidas de reparação que pode ordenar aos
Estados. Desta forma, a maioria dos casos não envolve apenas a obrigação
de indenizar as vítimas por violações ocorridas, mas também outras ações e
medidas que tenham objetivos mais amplos como são os casos de realização
de cursos, de criação de monumentos ou memoriais de homenagem a atos
ou pessoas, de prestações de saúdes ou educativas, entre outros. A Corte,
portanto, se mostra paternalista e pedagógica ao atribuir ao Estado violador
medidas com vistas de educar em direitos humanos.
Por fim, o particularismo interamericano que interessa ao presente
trabalho e que reflete em questões indígenas é o da subjetivização do direito
interamericano. Indubitavelmente o ser humano é o centro da tutela e
proteção do sistema interamericano, sendo que a subjetivação aponta para a
tomada em consideração do critério da vulnerabilidade. Como explica
Hennebel (2009, p. 80) a Corte conforme seu método interpretativo
interessa-se mais pela percepção subjetiva do titular de direitos humanos do
que pela percepção objetiva.
Isso significa que, embora os elementos normativos do sistema
apresentem o ser humano de modo genérico enquanto figura principal a
obter tutela de seus direitos, a Corte possui liberdade de interpretação no
que tange à definição pormenorizada dos titulares de direitos.
Objetivamente, no texto da Convenção Americana, defende-se a tutela do
114
homem individual e concebido como tal pelo discurso hegemônico dos
direitos humanos. Todavia, é na interpretação da Corte que se encontra o
particularismo se sobrelevar aspectos específicos das situações ou dos
indivíduos que tiveram seus direitos violados.
Nesse ponto inserem-se as questões indígenas, a partir do momento em
que as crenças religiosas, filosóficas e espirituais dos grupos indígenas são
levadas em conta pela Corte no momento de estabelecer suas decisões.
Hennebel (2009, p. 82) no que tange às demandas envolvendo grupos
indígenas e comunidades tribais, afirma que a Corte realiza um processo de
interpretação sociológica da Convenção Americana, ao compreender as
disposições normativas desta à luz das crenças e compreensões dos povos
referidos.
Urge salientar, conforme se verá mais adiante que o esforço do direito
interamericano propagado nas decisões da Corte envolvendo questões
indígenas passa pela compreensão e promoção do pluralismo e não pela
mera tentativa de adequar as crenças desses povos à visão hegemônica de
direitos humanos. Há de fato reconhecimento das crenças, valores e
experiências indígenas e não mera tolerância, corroborando a existência de
um entrelaçamento pluridimensional e multiangular em torno dos direitos
humanos (2009, p. 266).
Tendo como base a necessidade de diálogo e de compreensão da
pluralidade, os particularismos interamericanos encontrados na
jurisprudência consultiva e contenciosa da CIDH são capazes de estabelecer
bases para a elaboração de novas gramáticas de direitos humanos na
América Latina. A seguir essa postura de reconhecimento do pluralismo
será abordada a partir da exposição de casos importantes em que a CIDH
valorizou direitos de comunidades locais, bem como será apresentada a
Opinião Consultiva nº 22/2016 que estabelece a titularidade dos direitos
tutelados pelo sistema interamericano para grupos indígenas e comunidades
tribais.
3.2 As implicações da Opinião Consultiva número 22/2016 da
Corte Interamericana de Direitos Humanos em relação a
comunidades indígenas.
115
O território latino-americano possui como particularidade a presença de
comunidades indígenas e populações autócnes distribuídas ao longo da
extensão geográfica. Jean Dhommeaux (2009, p. 184) destaca que a
situação social dos indivíduos pertencentes a esses grupos é caracterizada
pela inferioridade e desdém em relação a sua cultura. A vulnerabilidade
destes possui elementos históricos, desde o início da colonização da
América Latina, com as tentativas de genocídio físico e cultural, usurpação
de suas terras e, tratamento como indivíduos de segunda classe.
A gramática hegemônica moderna de direitos humanos invisibiliza esse
processo de vulnerabilidade e, consoante a matriz individualista de seu
cerne, é incapaz de compreender a condição dos indígenas enquanto grupo
e as especificidades de suas crenças. Nos últimos anos, no entanto, a
complexidade e a pluralidade da composição indígena do território da
América Latina estão sendo reconhecidas pela CIDH, que, em uma postura
de reconhecimento e valorização dos particularismos locais vem se abrindo
ao diálogo com vistas ao aprendizado recíproco.
Desta maneira, a grande maioria dos casos envolvendo comunidades
indígenas até hoje julgados pela CIDH abordam pontos sobre direito de
propriedade comunal das comunidades indígenas, questões sobre vida digna
e casos acerca do direito de consulta prévia das populações, de modo que
em alguns desses quesitos, a corte demonstra avanços em relação à
construção de um novo paradigma para a América Latina, em outros
demonstra ainda estar comprometida ou arraigada a noções do racionalismo
moderno, com pouca abertura para um diálogo multicultural.
Na temática que envolve o conceito de vida digna, a CIDH interpreta que
ter uma vida digna significa ter acesso condições necessárias para uma vida
digna, sendo que o Estado, nesse aspecto possui obrigações negativas de
não provar seus cidadãos e obrigações positivas de garantir elementos
básicos para uma vida digna (SCHETTINI, 2012). Todavia, ao analisar tal
questão, a CIDH em geral tem como base noções europeias e advindas da
modernidade ocidental a respeito de vida digna.
Para a Corte, nessa temática, o Estado enquanto garante, tem a obrigação
de adotar medidas mais concretas e orientadas a real proteção do direito à
vida digna, sobretudo em questões envolvendo grupos em estado de
vulnerabilidade. No caso de questões indígenas, o acesso à terra é um dos
pontos básico para a vida digna da comunidade e embora a Corte tenha
116
reconhecido isso, o conceito de vida digna num sentido amplo ainda segue
as concepções do paradigma da modernidade (SCHETTINI, 2012).
Prova disso é que os direitos econômicos, sociais e culturais, que se
ligam intrinsecamente ao direito à vida na CIDH, ainda não incluem a
riqueza das formas alternativas de vida das comunidades indígenas, que
valorizam mais as formas de vida coletivas do que as individuais. Prova
disso é o regime de Bem Viver, que ainda não é mencionado de forma
recorrente pela CIDH, ou seja, não há diálogo intercultural e as visões
indígenas não são postas em debate pela corte.
Três casos da jurisprudência da Corte abarcam a questão do direito à
vida enquanto direito à vida digna: o caso Comunidade Indígena Yakye Axa
vs. Paraguai, de 2005, o caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs.
Paraguai, de 2006 e o caso Comunidade Indígena Xákmok Kásek vs.
Paraguai, de 2010. Em todos os casos houve expulsão dos indígenas de
suas terras em razão de privatizações no Paraguai. Em razão desses
processos feitos em nome de uma noção exploratória de desenvolvimento,
desenvolveu-se um estado de vulnerabilidade alimentar, médica e sanitária
nessas comunidades, uma vez que elas, em razão da sua proximidade com a
terra dependiam de forma material e espiritual desta. Nesses três casos, o
Estado Paraguaio foi condenado e considerado responsável por violações ao
direito de vida digna e integridade dessas comunidades, vez que foram
privadas do direito à saúde, à educação, à alimentação e outras garantias
básicas que somente poderiam ser supridas com o acesso à terra.
Assim, pertinente análise de Andrea Schettini (2012) de que embora
afirmar que o direito à vida digna seja um passo fundamental que deve ser
reconhecido como uma conquista para a proteção internacional do direito
dos povos indígenas, a ausência de diálogo intercultural e de percepção
plena da concepção de vivência em comunidade, faz com que as
interpretações da CIDH nesta matéria não sejam suficientes para romper
com o paradigma moderno de exploração, opressão e exclusão dos povos
indígenas.
Em um segundo aspecto, a temática mais recorrente em demandas
indígenas julgadas pela Corte é o de proteção de propriedade comunal, que
envolve desapropriações, deslocamento, venda ou qualquer outra utilização
feita pelo Estado ou por entidades particulares. Sobre tal questão, a
117
integridade de julgados da Corte interpreta o conceito de propriedade para
além do conceito moderno e individualista de propriedade privada.
A Corte aborda a propriedade sob um viés coletivo57, introduzindo em
sua jurisprudência a noção de dimensão cultural, social e coletiva de
propriedade, cujo traço de ligação com os ancestrais por meio da terra e a
relação cultural e espiritual de ligação com a natureza faz com que a terra
não seja mero objeto de posse ou de propriedade destinado a um fim
exploratório, mas que seja um elemento transgeracional e transfronteiriço58
capaz de ser um referente espacial de uma identidade coletiva.
Além disso, um exemplo de que a jurisprudência da CIDH abarca
conhecimentos da sociobiodiversidade é o fato de considerar que o direito à
propriedade comunal não recai somente sobre o território físico, mas
também recai no direito de os povos gozarem livremente da propriedade e
dos recursos oferecidos pela natureza nesse território59. Ainda é preciso
destacar que a garantia desse direito independe de formalidades
burocráticas, ou seja, de escritura ou título de propriedade. Esse é o
entendimento, por exemplo, do caso Moiwana vs. Suriname, de 2005, no
qual a Corte asseverou que o direito de propriedade persiste mesmo sem
título e mesmo que a comunidade tenha sofrido perturbações na posse.
Em todos os casos julgados pela CIDH envolvendo propriedade
comunal, os Estados foram condenados a restituir, satisfazer, não repetir,
pagar indenizações por danos materiais e imateriais causados e devolver as
terras, ou, caso não fosse viável fazer isso, conceder o acesso a outra gleba
de mesma extensão e qualidade que deverá ser escolhida pelos indígenas
(SCHETTINI, 2012). Ainda outra questão interessante e que demonstra
certo avanço da Corte no sentido de ruptura com a aplicação de conceitos
da modernidade ocidental para as questões indígenas se dá nas questões das
reparações.
Até o julgamento do caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs.
Equador, julgado em 2012, a Corte vinha determinando reparações em
relação a cada um dos membros da comunidade que teve seu direito
violado, em sua individualidade. Todavia, neste caso mencionado, o órgão
jurisdicional do sistema interamericano declara que a comunidade é um
sujeito coletivo autônomo e, como tal, era coletivamente beneficiária das
reparações.
118
Por fim, a última temática que já fora julgada pela CIDH em relação a
comunidades indígenas: o direito dos povos à consulta prévia. Esse direito,
em sua forma normativa, encontra-se tutelado no sistema interamericano no
artigo 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Tal disposição
determina que é dever dos Estados promover o direito a consulta prévia,
uma vez que para os indígenas a consulta se configura em um meio
necessário para a expressão de autodeterminação, ou seja exercer controle
sobre seus próprios destinos e participar com igualdade na construção e
desenvolvimento da ordem institucional governamental, rechaçando ou
vetando eventuais ações do Estado que seja incompatível com suas formas
de vida. Nesse aspecto, três são os casos com aportes da CIDH sobre
consulta prévia: caso Saramaka vs. Suriname, julgado em 2005, caso
Comunidade Indígena Xákmok Kásek vs. Paraguai, de 2010, caso Povo
Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Equador, julgado em 2012.
Destaca-se o primeiro dos casos, no qual a Corte faz uma diferenciação
entre consulta e consentimento. O caso abarca a outorga de terras indígenas
a empresas privadas e nele a CIDH afirmou que consultas são sempre
necessárias e consentimento, por sua vez, só é exigido no caso de projetos
de grande dimensão que tenham maior impacto. Ainda determinou que as
consultas devem observar os métodos tradicionais de tomada de decisões
dos povos consultados.
A partir dessa base jurisprudencial, fevereiro de 2016, respondendo a
uma solicitação da República do Panamá, a CIDH emitiu a Opinião
Consultiva nº 22 posicionando-se acerca da titularidade das pessoas
jurídicas no sistema interamericano de direitos humanos. Nesta OC
estabeleceu-se que a Convenção Americana de Direitos Humanos não
atribui a pessoas jurídicas a titularidade de direitos reconhecidos no âmbito
da convenção. Assim, por considerar que pessoas jurídicas não são titulares
de direitos convencionais, estas não podem ser consideradas como possíveis
vítimas em processos contenciosos diante da CIDH.
No entanto, nessa mesma Opinião, a Corte considerou que comunidades
indígenas e tribais da América Latina podem ser consideradas titulares de
direitos protegidos pelo sistema interamericano, de modo que são capazes
de defender os direitos próprios da comunidade enquanto ente coletivo,
assim como interesses dos membros em particulares. O fundamento jurídico
e normativo para tal decisão foi estabelecido a partir, principalmente, da
119
observância da jurisprudência da CIDH nas questões envolvendo
comunidades indígenas e tribais.
A observância das motivações sociais e filosóficas, no entanto, é que são
capazes de apontar as inovações desse posicionamento. Reconhecer as
comunidades e grupos indígenas e tribais como titulares de direitos no
sistema interamericano significa reconhecer que a cultura desses povos
valoriza a coletividade, os indivíduos dentro de um grupo e não enquanto
indivíduos isolados. Ao reconhecer isso e ao abordar certas questões como
propriedade sob a ótica indígena, a Corte inicia o processo do que
Boaventura de Sousa Santos (2010) chama de hermenêutica diatópica, ou
seja, o elemento forte de uma cultura, seu topoi, pode dialogar com
elementos menos fortes de outras culturas, configurando um processo de
troca e de valorização da pluralidade.
Assim, o topoi dos grupos e comunidades indígenas é compreendido pela
CIDH e utilizado por ela em suas decisões e na opinião consultiva
destacada, mesmo que a estrutura normativa do sistema interamericano se
baseie em elementos clássicos e individuais dos direitos humanos. Há,
portanto, alguns direitos que membros das comunidades indígenas só são
capazes de gozar no momento em que estão dentro de um grupo, vez que o
exercício se dá de modo coletivo.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A teoria da colonialidade do poder demonstra que o paradigma
racionalista moderno ocidental ainda se demonstra como corolário em
relação a muitas regiões do globo e em relação a muitos assuntos e
conceitos. Por isso é possível afirmar que na América Latina, em questões
envolvendo direitos humanos, a gramática de interpretação que era vista
como predominante era a da racionalidade moderna, de concepção
universalista e abstrata de direitos humanos, com enfoque para os direitos
individuais.
Todavia uma nova gramática de direitos humanos é necessária para a
região, justamente para que os povos tradicionais da região passem a ser
sujeitos e não meros objetos do discurso dos direitos humanos. Para tanto, a
gramática necessária para os direitos humanos na região é a que envolva as
120
peculiaridades e particularidades dessas culturas dos povos tradicionais, ou
seja, é a que tenha por base os direitos da sociobiodiversidade.
Embora a questão de superação de um paradigma seja um problema
complexo, o direito, embora em alguns momentos tenha corroborado com a
lógica de exploração e opressão do capitalismo e do colonialismo, pode,
quando utilizado de forma contra hegemônica, ser um instrumento para a
criação de uma concepção intercultural de América Latina. Nesse aspecto
se insere a postura dialógica da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
que em conjunto considerável de decisões jurisprudenciais se abriu ao
diálogo com a cultura de comunidades indígenas e passou a reconhecer
especificidades culturais de suas tradições sendo tal postura um
particularismo da CIDH.
O auge dessa postura dialógica e de valorização do pluralismo se deu
com a Opinião Consultiva nº 22/2016, a qual reconheceu que comunidades
indígenas e tribais da América Latina possuem titularidade dos direitos
tutelados pelo sistema interamericano. Tal reconhecimento, sob o ponto de
vista sociológico corrobora com a abertura da Corte para o reconhecimento
de particularismos indígenas, na compreensão de que para a tradição desses
povos o exercício e gozo efetivo de certos direitos, como o de propriedade,
só podem ocorrer pelo viés coletivo. Assim, vislumbra-se um papel ativo da
CIDH na disposição de surpreender-se em um aprendizado recíproco com a
experiência com o outro, auxiliando no processo de ruptura com as
premissas da modernidade ocidental.
5 REFERÊNCIAS
BALDI, César Augusto. De/colonialidade, Direito e Quilombolas – Repensando a questão. In:
FILHO, Carlos Frederico Marés de Souza, FERREIRA, Heline Sivini; NOGUEIRA, Caroline
Barbosa Contente. Direito Socioambiental: uma questão para a América Latina. Curitiba: Letra da
Lei, 2014.
BRAGATO, Fernanda Frizzo. Para além do discurso eurocêntrico dos direitos humanos:
contribuições para além da descolonialidade. Novos Estudos Jurídicos. v.19, n. 1, p.5, 2014.
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122
AVANÇOS E LIMITES DA JURISPRUDÊNCIA DO
SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS
NA PROTEÇÃO SOCIOAMBIENTAL
Márcio Morais Brum60
Rafaela da Cruz Mello61
RESUMO
Este trabalho realiza um estudo da jurisprudência do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos, em matéria de proteção
socioambiental, para responder se o Sistema dialoga com os aportes
teóricos da ecologia política e reivindicações dos movimentos sociais de
defesa socioambiental. Utiliza o método dedutivo de abordagem, visto que
as conclusões se baseiam numa generalidade de casos analisados. O texto
está organizado em três partes: uma exposição da jurisprudência do Sistema
em matéria de proteção socioambiental; uma abordagem sobre a abertura do
Sistema ao diálogo com os aportes da ecologia política; e uma análise da
sua abertura ao diálogo com os movimentos sociais.
Palavras-chave: Sistema Interamericano de Direitos Humanos; Proteção
socioambiental; Diálogos.
1 INTRODUÇÃO
Na sociedade em rede são poucos os temas que podem ser abordados
exclusivamente desde uma perspectiva local, possibilidade que diminui
quando se está diante de um assunto cuja natureza do objeto principal é
incompatível com as fronteiras artificiais criadas pelo homem, sendo este o
caso da problemática sobre proteção socioambiental. Na medida em que os
problemas relacionados ao meio-ambiente se transnacionalizam, as
soluções já não podem ser encontradas localmente e passam a depender de
discussões e acordos realizados em fóruns e organismos internacionais,
dentre eles os tribunais de justiça.
Cada vez mais proliferam e se consolidam espaços transnacionais de
discussão, o que não significa, todavia, que se esteja a caminhar
123
necessariamente rumo a uma maior democratização da participação popular
nas discussões e decisões políticas. Para tanto, há que se dialogar com a
sociedade civil e movimentos sociais, inclusive no que diz respeito à
produção do direito e aplicação pelos tribunais. Em matéria socioambiental,
isso requer a abertura dos tribunais ao diálogo e aprendizagem com os
conhecimentos produzidos pela ecologia política e com as reivindicações
populares.
Os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos cumprem papel
importante na tutela da dignidade humana, não só em sua dimensão
individual, mas também coletiva naquilo que diz respeito ao direito de se ter
uma vida de qualidade em um meio ambiente saudável. Este trabalho
objetiva realizar um estudo da jurisprudência do Sistema Interamericano de
Direitos Humanos (SIDH), em matéria de proteção socioambiental, para
responder ao seguinte questionamento: a jurisprudência do SIDH dialoga
com os aportes teóricos da ecologia política e com as reivindicações dos
grupos e movimentos sociais de defesa socioambiental?
A pesquisa tem como base teórica a produção científica de autores da
ecologia política, do direito internacional dos direitos humanos e dos
críticos da globalização hegemônica. Utiliza o método dedutivo de
abordagem, visto que as conclusões específicas sobre os avanços e limites
da jurisprudência do SIDH são deduzidas a partir da generalidade dos casos
sobre proteção socioambiental analisados. O trabalho está organizado em
três partes: inicia com uma exposição da jurisprudência do Sistema
Interamericano em matéria de proteção socioambiental; passa à abordagem
sobre a necessidade de abertura do Sistema ao diálogo com os aportes
científicos da ecologia política; e termina com uma análise sobre sua
abertura ao diálogo com os movimentos sociais.
2 JURISPRUDÊNCIA DO SIDH SOBRE PROTEÇÃO
SOCIOAMBIENTAL
A conexão entre proteção ambiental e direitos do homem é reconhecida
desde a primeira Conferência das ONU sobre o meio ambiente humano,
realizada em Estocolmo, em 1972. O evento culminou na publicação da
Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano, que em seu parágrafo
124
1º refere que “os dois aspectos do meio ambiente humano, o natural e o
artificial, são essenciais para o bem-estar do homem e para o gozo dos
direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à vida mesma”.
Orellana (2007) percebe que, além do reconhecimento do vínculo entre
meio ambiente e direitos humanos pelos instrumentos do direito
internacional, os mecanismos regionais de proteção dos direitos humanos
têm estreitado esses vínculos, em duas vertentes: por uma via se tem
identificado o conteúdo ambiental de certos direitos protegidos, como o
direito à vida, à integridade pessoal, à vida privada e o acesso à informação;
e por outra via tem-se precisado as limitações permitidas ao exercício de
certos direitos por razões ambientais, incluindo uma análise de necessidade,
proporcionalidade e interesse público.
No SIDH, a base jurídica da proteção dos direitos humanos é a
Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, de 1969. Embora não
contenha previsão específica de qualquer direito ambiental, o dever de
proteção dos recursos naturais como forma de garantir a sadia qualidade de
vida se amolda ao disposto no art. 26 do Pacto, que trata do compromisso
dos Estados em adotar providências a fim de conseguir progressivamente a
plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais
e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da OEA. E, de fato,
a prática da Corte Interamericana e da Comissão Interamericana vem
demonstrando que é possível a proteção ambiental por meio de estratégias e
técnicas que vinculem temas ambientais aos dispositivos da Convenção
relacionados às garantias judiciais, ao direito à vida e à integridade pessoal,
dentre outros (MAZZUOLI & TEIXEIRA, 2013).
Ao lado do Pacto de San Jose da Costa Rica, o direito ao meio ambiente
sadio vem disciplinado no artigo 11 do Protocolo Adicional à Convenção
Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador): “Artigo 11. Direito a um
meio ambiente sadio. 1. Toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente
sadio e a contar com os serviços públicos básicos; 2. Os Estados - Partes
promoverão a proteção preservação e melhoramento do meio ambiente”.
Este dispositivo demonstra a preocupação do Sistema Interamericano em
garantir o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e ratifica
o entendimento de que esse direito é considerado um direito humano
fundamental.
125
Na prática, o aperfeiçoamento da jurisprudência regional interamericana
sobre o tema do meio ambiente vem sendo realizado desde 1985, quando a
Comissão Interamericana se debruçou sobre o caso Povo Yanomami x
Brasil. A controvérsia estava relacionada à construção de uma estrada que
passava pelo território Yanomami, e que havia trazido doenças e outros
malefícios para os integrantes da tribo. A Comissão Interamericana
constatou violações da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem com respeito ao direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal e
ao direito à preservação da saúde e do bem-estar. Em seu Relatório sobre a
Situação dos Direitos Humanos no Brasil de 1997, a Comissão atestou que
a integridade dos Yanomamis vinha sendo agredida por garimpeiros
invasores e pela poluição ambiental por estes gerada, o que os mantinha em
permanente situação de perigo em razão da contínua deterioração do seu
habitat (CIDH, 1997).
Posteriormente, a CIDH foi chamada a intervir na solução do caso da
Comunidade indígena AwasTingni Mayagna (Sumo) x Nicarágua, relativa a
disputa sobre demarcação de terras indígenas. A controvérsia acabou sendo
remetida à Corte Interamericana, diante do fracasso da demarcação do
território e da perspectiva do desmatamento sancionado pelo governo
naquelas terras, o que constituiria uma violação da Convenção Americana.
Em 2001, a Corte decidiu que o Estado violou os artigos 21 e 25 da CADH,
ordenando a demarcação das terras dos Awas Tingni. (CORTE IDH, 2001).
Além dos casos mencionados, vários outros relacionados ao meio ambiente
já foram apreciados pela CIDH, como caso Comunidade de San Mateo de
Huanchor v. Peru; caso Comunidade de La Oroya v. Peru; caso
Mayasdel Toledo vs. Belize; casoTangamandápio v. Eldorado; e caso
Victorio Spoltore vs. Argentina. Em todos eles, a Comissão constatou
violações de direitos humanos relacionados ao ambiente e solicitou a
tomada de providências pelos Estados para resolver tais situações.
No que tange à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
até o presente momento não houve a submissão de nenhum caso visando a
declaração da existência de uma violação direta ao direito humano ao meio
ambiente sadio. Contudo, a matéria ambiental já foi objeto de análise do
Tribunal, ocasiões em que violações ao direito ambiental foram
reconhecidas de forma subsidiária à violação de direitos civis e políticos.
126
A primeira decisão da Corte, que se refere indiretamente à questão
ambiental, foi exarada no caso Claude Reyes e outros vs. Chile, em 2006,
referente à negativa do Estado do Chile de prestar informações sobre
investimentos de uma empresa florestal no projeto de desflorestamento de
montes nativos, que seria executado na ١٢ª região do Chile, para a
instalação de uma serralheria e uma fábrica de chips, e que, segundo os
denunciantes, poderia ser prejudicial ao meio ambiente e impedir o
desenvolvimento sustentável da nação (CORTE IDH, ٢٠٠٦). A justificativa
do Estado para a negativa das informações foi que estas estariam
resguardadas pela confidencialidade relacionada ao direito de privacidade
dos titulares da propriedade intelectual e tecnologia industrial. Na decisão, a
Corte afirma que a informação sonegada era de interesse público, em razão
do impacto ambiental que o projeto poderia causar, e que ao negar o seu
fornecimento o Estado violou o artigo ١٣ da Convenção Americana dos
Direitos Humanos. Neste caso, portanto, embora a questão do acesso à
informação estivesse ligada ao assunto meio ambiente, não houve análise
específica referente à problemática ambiental.
Em 2007, a Corte julgou o caso Saramaka v. Suriname, cuja controvérsia
girava em torno das concessões outorgadas pelo Estado a empresas
madeireiras e de mineração para que explorassem suas atividades danosas
ao ambiente na zona do Rio Suriname Superior, atingindo o território do
povo Saramaka. Esta etnia compõe uma tribo com características culturais
específicas e uma identidade conformada por uma complexa rede de
relações com a terra e as estruturas familiares (CORTE IDH, 2007).
Na apreciação do caso, a Corte afirma que, diante das provas
apresentadas, o nível da consulta realizada pelo Estado ao povo Saramaka
não foi suficiente para garantir sua participação efetiva no processo de
tomada de decisões, além do que o Estado não levou a cabo nem
supervisionou os estudos de impacto ambiental e social antes de emitir as
concessões, as quais afetaram recursos naturais necessários para a
subsistência econômica e cultural do povo Saramaka. A exploração
ambiental na região, além de ter deixado um legado de destruição
ambiental, privação dos recursos de subsistência e problemas espirituais e
sociais, não gerou nenhum benefício aos povos do local.
Em sua decisão, a Corte estabelece que, antes da outorga de concessões à
projetos de desenvolvimento no território tradicional Saramaka, o Estado
127
deveria garantir a realização de estudos sobre impacto ambiental e social
por entidades independentes e tecnicamente competentes, além de
implementar medidas e mecanismos adequados para minimizar o prejuízo
que esses projetos podem ter sobre a capacidade de sobrevivência social,
econômica e cultural dos Saramakas. O Tribunal definiu que a consulta é
um requisito procedimental que deve ser cumprido necessariamente antes
da tomada de decisões. O seu não cumprimento determina a invalidez das
medidas tomadas em inobservância a essa exigência.
Recentemente, em junho de 2012, a Corte Interamericana apreciou o
Caso Pueblo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Ecuador. O caso esteve
relacionado à responsabilidade internacional pela violação dos direitos
à consulta, à propriedade comunitária indígena e à identidade cultural,
nos termos do artigo 21 da Convenção Americana, em conjunção com
os artigos 1.1 e 2 do mesmo artigo, em detrimento do povo indígena
Kichwa de Sarayaku (CORTE IDH, 2012). Na apreciação do caso, o
Tribunal reafirmou que a exploração de recursos naturais nos
territórios ancestrais, para que não signifique a negação dos meios de
subsistência dos povos indígenas, deve ser precedida da realização de
um processo participativo que garanta o direito à consulta; elaboração
de estudo de impacto ambiental; e repartição razoável dos benefícios
resultantes da exploração dos recursos naturais, segundo o que a
própria comunidade determine e resolva sobre quem serão os
beneficiários, de acordo com seus costumes e tradições.
No entanto, no conhecido caso Belo Monte, semelhante aos demais
no que diz respeito à não realização de adequada consulta prévia aos
povos atingidos e aos impactos ambientais negativos na região de
construção da usina hidrelétrica, o Sistema Interamericano de Direitos
Humanos adotou postura diversa. Embora, num primeiro momento, a
Comissão Interamericana tenha outorgado medida cautelar
recomendando ao Estado brasileiro a imediata suspensão das obras até
que fosse realizado processo de consulta às comunidades afetadas e
houvesse efetiva cessação das violações aos direitos humanos dos povos
atingidos, posteriormente o Órgão reavaliou a decisão retirando a
recomendação de suspensão das obras e realização da consulta prévia,
sob a justificativa de que “o debate entre as partes no que se refere a
consulta prévia e ao consentimento informado em relação ao projeto Belo
128
Monte se transformou em uma discussão sobre o mérito do assunto que
transcende o âmbito do procedimento de medidas cautelares”.
Neste caso, embora os peticionários62 tenham exposto a gravidade da
situação63, a resposta do SIDH não atendeu plenamente às
reivindicações, por ausência de efetivo diálogo entre os órgãos do
Sistema Interamericano e as entidades protetoras do meio ambiente e
dos direitos humanos envolvidas, o que permitiu a continuidade dos
danos ambientais e das violações aos direitos dos povos indígenas e
ribeirinhos da região, conforme relata a Procuradora da República,
Thais Santi, em entrevista ao jornal El País (EL PAÍS, 2014).
A observação das controvérsias envolvendo questões ambientais,
submetidas ao SIDH, demonstra que todos os casos apresentam alta
complexidade, porquanto envolvem questões jurídicas, políticas,
epistemológicas e diplomáticas do interesse de diversos atores. Nota-se que
o cerne das disputas diz respeito ao próprio modelo de desenvolvimento
social desejado, o que suscita a reflexão sobre as maneiras do homem se
relacionar com a natureza. Conforme observam Fleury e Almeida (2013),
na disputa pela redefinição dos critérios de interpretação do
desenvolvimento, a cultura e a natureza são mobilizadas pelas comunidades
locais para confrontar o uso de critérios como geração de energia e
crescimento.
3 ABERTURA AO DIÁLOGO COM AS LIÇÕES DA
ECOLOGIA POLÍTICA
François Ost (1995) leciona que a crise ecológica está relacionada, sem
dúvida, à deflorestação e destruição sistemática das espécies animais, mas,
antes de tudo, trata-se de uma crise da nossa representação da natureza e da
nossa relação com a natureza. Portanto, afirma Ost, enquanto não
repensarmos a relação homem-natureza e enquanto não formos capazes de
descobrir o que dela nos diferencia e o que a ela nos liga, os esforços de
preservação do equilíbrio ambiental serão insuficientes.
De fato, desde o momento em que a problemática ambiental veio à tona,
na década de 1950, se tem claro que se trata de uma questão
epistemológica, política e ideológica. Os impactos da sociedade industrial
129
no meio natural ou geográfico e a consciência humana da necessidade de
preservação e conservação do habitat natural forçaram ao questionamento
sobre a viabilidade ao longo prazo do próprio modelo de desenvolvimento
econômico neoliberal capitalista, o que envolve a reflexão sobre a maneira
de habitar o planeta e as consequências da civilização industrial e da
ideologia do progresso econômico sobre o meio ambiente. Porto-Gonçalves
(2006, p.66) lembra que a ideia de progresso e desenvolvimento tem sido,
rigorosamente, sinônimo de dominação da natureza, de modo que o desafio
ambiental é “a busca de alternativas ao e não de desenvolvimento”.
As críticas ao capitalismo neoliberal global revelam que esse modo de
produção e de estilo de vida impacta negativamente o equilíbrio ambiental
ao mesmo tempo em que dissolve a diversidade cultural por meio de uma
instrumentalização acelerada. Rifkin (2001) destaca que esta dinâmica
econômica resulta em erosão cultural e erosão biológica. Foi a partir dessas
percepções que houve o nascimento da ecologia política como uma nova
disciplina social, com o objetivo de construir a proposta de uma nova ordem
social e política necessária para que a humanidade não se destrua
ecologicamente. Para tanto, a ecologia política apresenta alternativas ao
sistema dominante, entendendo a crise ambiental como uma crise
civilizacional, razão pela qual será ineficaz qualquer política para superação
do problema que não aspire por uma mudança do sistema social como um
todo.
Neste viés, a crise ambiental apresenta-se como precursora da
necessidade de uma mudança paradigmática, já que o paradigma
racionalista da modernidade, de crescimento econômico não sustentável,
não se adapta às premissas do século XXI. Fritjof Capra, sob essa ótica,
afirma que a ruptura paradigmática deriva da necessidade de superação do
paradigma mecanicista, ou seja, da compreensão minuciosa das partes para
entendimento do todo, e passagem ao paradigma ecológico ou sistêmico,
segundo o qual “as propriedades essenciais de um organismo ou sistema
vivo são propriedades do todo, que nenhuma parte tem” (CAPRA, 2006,
p.36).
A ecologia política se liga, portanto, diretamente à noção de
racionalidade ambiental e de desconstrução de discursos (SANTOS, 2010).
Mais do que uma nova ciência das relações homem-natureza (OST, 1995), a
construção de uma racionalidade ambiental, sob a ótica da ecologia política,
130
implica a necessidade de desconstruir conceitos científicos sob os quais a
racionalidade econômica se funda e sob os quais repousam o progresso
produtivo insustentável, bem como dialogar com saberes não científicos,
subalternos, invisibilizados ou “desaparecidos” (SHIVA, 2003), que podem
contribuir para a construção de uma relação harmônica entre homem e
natureza. Nesse sentido, “à ecologia política concernem não apenas os
conflitos de distribuição ecológica; ela também assume a tarefa de explorar
sob nova luz as relações de poder no saber que se entretecem entre o mundo
globalizado e os mundos de vida das pessoas” (LEFF, 2006, p.301).
Assim, são suscitados movimentos discursivos contrários às
verticalidades hegemônicas Norte-Sul, que ampliam dialeticamente a pauta
da questão ambiental internacional, provocando o debate em torno de
questões como a justiça ambiental, o desenvolvimento, o acesso aos
recursos biológicos e genéticos, em uma perspectiva pós-colonial. Como
adverte François Ost, a injustiça das relações com a natureza é gerada pela
injustiça das relações sociais, e todo combate ecológico sério conduz ao
questionamento da ordem econômica injusta.
Boaventura de Sousa Santos cunhou a expressão “cosmopolitismo
subalterno” para nomear as iniciativas e movimentos que constituem a
globalização contra-hegemônica. Trata-se de um conjunto de redes,
iniciativas, organizações e movimentos que lutam contra a exclusão
econômica, social, política e cultural gerada pela mais recente encarnação
do capitalismo global, conhecido como globalização neoliberal (SANTOS,
2010). Segundo o autor, o cosmopolitismo subalterno requer uma “ecologia
de saberes” que possibilite a valorização de outras formas de intervenção no
real, diferentes das características da ciência moderna, que constitui uma
verdadeira “monocultura do saber”, em palavras de Shiva (2003).
Um exemplo de experiências invisibilizadas são as valiosas práticas de
preservação da biodiversidade originária das culturas camponesas e
indígenas que, paradoxalmente, hoje se encontram ameaçadas pela ciência
moderna. Antes mesmo do advento da era informacional, no período da
colonização, as populações tradicionais foram despojadas dos seus saberes
intelectuais e dos seus meios de expressão exteriorizantes ou objetivantes.
Foram reduzidas à condição de indivíduos rurais e iletrados. Em todo o
mundo eurocentrado foi-se impondo a hegemonia do modo eurocêntrico de
131
percepção e produção de conhecimento e em grande parte da população
mundial o próprio imaginário foi colonizado (QUIJANO, 2010).
Hoje, a racionalidade eurocêntrica cartesiana continua tão arraigada e
disseminada globalmente que o diálogo com a natureza ainda se dá em
termos de dominação e controle irrestrito. Hugh Lacey (1998) reconhece
como inato ao ser humano o ímpeto de controlar a natureza, mas nota que
na modernidade esse controle se tornou um valor superior e, em
contrapartida, o conhecimento tradicional não é reconhecido. Ao mesmo
tempo, a virada cibernética converte o acesso à informação digital e
genética em arma contra as culturas, à exceção da cultura tecnocientífica.
Ou seja, a cibernética desqualifica todas as culturas perante a cultura
tecnocientífica (SANTOS, 2003).
Neste cenário, a ecologia de saberes surge como estratégia
epistemológica contra-hegemônica que assume como injustificável a
determinação de que só é relevante o conhecimento que esteja em função
dos interesses dos países do Norte. Em síntese, o paradigma ecológico visa
superar a ideia moderna de autonomia solipsista, o ímpeto de conquista e
domínio da natureza pela ciência e pela técnica, bem como o uso e desfrute
desmedido e imprudente dos recursos naturais (JUNGES, 2010, p.75).
Ao mesmo tempo em que a problemática ambiental possui natureza
política e epistemológica também envolve aspectos jurídicos fundamentais.
François Ost refere-se à possível e necessária construção de um “meio
justo”, onde a limitação da atual vontade de poder humana seja a garantia
dos direitos das gerações futuras a um ambiente saudável, o que demanda
juristas mobilizados e intimados a imaginar as condições normativas do
meio justo, transcendendo o simples direito ambiental e produzindo uma
“ecologização do direito” (OST, 1995, pp.18-19).
Da mesma forma como os órgãos legislativos dos Estados e das
instituições internacionais se abrem ao debate com as entidades que
compõem o movimento ambiental, incorporando reivindicações à
legislação, os órgãos jurisdicionais estatais e internacionais também são
chamados à abertura ao diálogo com as entidades da sociedade civil e com
as produções científicas acadêmicas como condição para a democratização
da justiça, no sentido a que se refere Santos (2011).
A atuação do Sistema, para além da reparação de violações em curso ou
já ocorridas, deve buscar formas de prevenção dos danos socioambientais, o
132
que requer um maior diálogo com pesquisadores acadêmicos da área da
ecologia política, bem como com as reivindicações dos movimentos sociais
de proteção socioambiental, conforme abordado na sequência.
4 ABERTURA AO DIÁLOGO COM OS MOVIMENTOS
SOCIAIS
O que Boaventura denomina por “pensamento pós-abissal” pode ser
sumariado como um aprender com o Sul usando uma epistemologia do Sul,
o que significa confrontar a monocultura da ciência moderna com a
ecologia de saberes. Baseia-se no reconhecimento da pluralidade de
conhecimentos heterogêneos e em interações sustentáveis e dinâmicas entre
eles que não comprometam a sua autonomia (SANTOS, 2010, p.53).
No campo do direito, é tarefa das jurisdições nacionais e internacionais
de direitos humanos abrir-se ao diálogo com a pluralidade dos saberes nãohegemônicos sobre os significados da dignidade humana e da proteção
socioambiental, promovendo uma ecologia dos saberes jurídicos.
Chamando atenção para as ilusões, limites e insucesso de políticas públicas
e iniciativas de empresas em matéria socioambiental, François Ost (1995,
p.395) argumenta que o “meio justo” não irá derivar da planificação de
especialistas, por mais bem-intencionados e gabaritados que sejam, mas sim
do debate democrático, de onde irão proceder as decisões capazes de
transformar a nossa forma de habitar a Terra.
Na América Latina há uma fértil proliferação de fontes de produção de
saber contra hegemônico, que vai desde os conhecimentos dos povos
tradicionais até as investigações acadêmicas na área da ecologia política,
passando pelas contra epistemologias produzidas pelas organizações e
movimentos sociais de proteção socioambiental. Mais da metade das
organizações participantes do Fórum Social Mundial (FSM) são redes e
movimentos ambientalistas da América Latina que promovem um debate
horizontal e democrático sobre proteção do meio ambiente, sustentabilidade
e ecologia política, diferente da maneira como se dão as negociações
intergovernamentais no âmbito das instituições da ONU e das agências
econômicas internacionais (MILANI, 2008).
133
Dentre os grupos participantes do FSM, estão os movimentos indígenas,
que reivindicam uma reconstrução multicultural dos direitos humanos,
desafiadora do seu caráter unicamente individualista e liberal, e aberta à
incorporação de concepções alternativas de direitos, como titularidades
coletivas da terra e inclusão da natureza como titular de direitos. Os
movimentos camponeses lutam pela reforma agrária popular que, para além
da redistribuição das terras, defende a substituição do modelo agrícola
monocultural, transgênico e dependente do uso intensivo de agrotóxicos por
um modelo agroecológico, produtor de alimentos saudáveis e
ambientalmente sustentável. Por sua vez, o movimento feminista denuncia
o caráter patriarcal da tradição ocidental de direitos humanos e cria novos
instrumentos e concepções jurídicas de direitos que incorporam a justiça de
gênero (SANTOS, 2007).
Em grande medida, muitas das reinvindicações dos movimentos sociais
foram recepcionadas e positivadas por novas Constituições de países da
região, no contexto do chamado novo constitucionalismo latino-americano.
Em matéria ambiental, as constituições da Bolívia, Equador e Venezuela
incoporaram reinvindicações históricas dos movimentos populares,
inaugurando um novo paradigma de proteção ambiental, marcado pelo
conceito de “bem viver”. O chamado constitucionalismo ecológico (BOFF,
2015), superando a própria ideia de um direito humano ao meio ambiente
sadio, passa a considerar a natureza (“Gaia”, “Pachamama” ou “Mãe
Terra”) como sujeito de direitos, dentro de uma cosmovisão holista e não
antropocêntrica do mundo. O artigo 71 da Constituição do Equador afirma
que:
Art. 71. La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a
que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos
vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos. Toda persona, comunidad, pueblo o
nacionalidad podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la
naturaleza. Para aplicar e interpretar estos derechos se observarán los principios establecidos
en la Constitución, en lo que proceda. El Estado incentivará a las personas naturales y
jurídicas, y a los colectivos, para que protejan la naturaleza, y promoverá el respeto a todos
los elementos que forman un ecosistema.
Este novo modelo constitucional não contrapõem o paradigma
constitucionalista moderno, mas o aperfeiçoa e o ressignifica, sobretudo
pela ampliação dos mecanismos de democracia participativa, sofisticação
134
de instrumentos de efetivação de direitos sociais e integração das minorias
étnicas (BEDIN & CENCI, 2013). As novas construções epistemológicas,
que implicam um novo regime de desenvolvimento e desafiam o direito
internacional a incorporar conceitos provenientes de outras cosmovisões do
mundo, diferentes da europeia, caminham para uma reconfiguração dos
direitos humanos na direção da justiça ambiental, de gênero, étnica e
econômica (SANTOS, 2007).
Os festejados avanços conquistados no seio do novo constitucionalismo
latino-americano não desarticulam, todavia, a atuação dos movimentos
ambientalistas. Pelo contrário, lhes servem de estímulo na batalha por
avanços no mesmo sentido em outros Estados, para ampliar as garantias já
conquistadas e para resistir às ameaças de retrocesso por parte dos grupos
dominantes mundiais. Neste cenário, uma das críticas atuais dos
movimentos da América Latina diz respeito à ausência de debate, na esfera
institucional dos países e das organizações internacionais, sobre questões
centrais da ecologia política como o modelo de desenvolvimento e a
distribuição de riquezas.
Tais redes e movimentos consideram que até mesmo documentos
internacionais importantes, como o Relatório Brundtland, ao tratar apenas
do crescimento da riqueza para distribuição futura, deixam de estabelecer
distinção entre a sustentabilidade forte e a sustentabilidade fraca.
Argumentam que, por essa razão, as agências internacionais, incluindo os
organismos de proteção ambiental e dos direitos humanos, não radicalizam
o debate e optam por vias compatíveis com a regulação da crise ambiental
pelos mercados (MILANI, 2008).
Diferentemente, os movimentos populares contrários à globalização
hegemônica dão maior ênfase ao debate sobre a sustentabilidade forte,
propondo mudanças mais profundas nas relações sociedade-natureza. Tais
movimentos, compostos por organizações camponesas, indígenas, de
educação popular, religiosas (ligadas à teologia da libertação), feministas e
militantes de direitos humanos, “desafiam, no campo do ambientalismo, a
adesão exclusiva ao “culto da vida silvestre” e ao “evangelho da ecoeficiência”, uma vez que abraçam os princípios da justiça ambiental e do
ecologismo dos pobres”, demandando uma regulação internacional dos bens
comuns mundiais baseada em princípios éticos de solidariedade (MILANI,
2008, p.297).
135
Um exemplo de rede de movimentos sociais camponeses de abrangência
global é a Via Campesina, que trata a temática ecológica de modo
relacionado aos conflitos de distribuição de riquezas. Composta por 164
organizações locais – de pequenos e médios agricultores, trabalhadores
sem-terra, indígenas e migrantes – de 73 diferentes países da África, Ásia,
Europa e América, representando cerca de 200 milhões de campesinos, a
Via se intitula um movimento autônomo, pluralista e multicultural que se
opõe ao modelo do agronegócio e defende uma agricultura sustentável de
pequena escala como meio para promover a justiça social e a dignidade.
Posicionando-se contrariamente a projetos de grande impacto
socioambiental negativo como usinas nucleares, megaempreendimentos de
barragens e hidroelétricas, exploração excessiva de minérios e uso intensivo
de transgênicos e agrotóxicos na agricultura, os movimentos da Via
Campesina alertam para a necessidade de controle social democrático sobre
o meio ambiente, implantação do modelo agroecológico de produção de
alimentos, gestão sustentável e popular do território, bem como a
democratização do conhecimento científico para garantir a saúde, bem-estar
e a soberania alimentar dos povos.
Pautas e reivindicações semelhantes são compartilhadas por diversos
movimentos sociais urbanos da América Latina, como movimentos de
trabalhadores sem teto, movimentos de luta por moradia e outros, que
defendem um desenvolvimento ambientalmente saudável e voltado aos
interesses do povo, através de campanhas pela ampliação das áreas urbanas
verdes e contra modelos urbanísticos insustentáveis. Em síntese, para os
movimentos de defesa do meio ambiente, sejam eles do campo ou da
cidade, é preciso superar a oposição entre ambiente e desenvolvimento e
entre atenção social e proteção ambiental por meio de um outro modelo de
desenvolvimento, que priorize a harmonia entre o ser humano e a natureza.
Tais movimentos e atores sociais, constituintes do movimento ambiental
global, defendem valores e propostas que, como percebe Inoue (2007), se
disseminam pelas estruturas governamentais, empresariado, comunidade
científica e outros setores, tornando-se um movimento multissetorial. Este
trabalho defende que, assim como as políticas legislativas e executivas
dialogam com os movimentos de defesa ambiental, incorporando parte de
suas reivindicações, as jurisdições nacionais e internacionais devem estar
136
também abertas ao diálogo, para que sua jurisprudência acompanhe os
avanços políticos e impeça retrocessos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O SIDH é um importante mecanismo institucional de proteção
socioambiental. O Sistema reconhece o direito humano ao ambiente sadio e
ao desenvolvimento sustentável, assim como o dever dos Estados de
garantir a efetividade dos direitos dos povos originários, tais como a
demarcação de terras, a consulta prévia e o consentimento para exploração
de recursos em seus territórios, a preservação das suas culturas, a repartição
dos benefícios, etc.
Por outro lado, o SIDH ainda não adentrou diretamente na abordagem de
uma questão central ao tema da proteção do meio ambiente e dos direitos
humanos, relativa ao modelo de desenvolvimento social e econômico das
sociedades
capitalistas
neoliberais
contemporâneas
e
sua
(in)compatibilidade com a efetiva proteção dos direitos socioambientais. O
enfrentamento dessa questão pelo SIDH é fundamental para que possa
oferecer respostas satisfatórias às reivindicações dos grupos e movimentos
sociais e para que suas decisões gozem de eficácia concreta na proteção
socioambiental.
Para tanto, o SIDH deve ampliar o diálogo democrático com a
acadêmica, a sociedade civil e os movimentos sociais, reconhecendo as
diferentes concepções sobre dignidade humana, direitos humanos e direitos
da natureza partilhadas pela pluralidade dos povos latino-americanos. Esta
abertura ao diálogo implica em tratar os atingidos ambientais não apenas
como vítimas, mas como sujeitos e protagonistas de mudanças,
contribuindo ao seu empoderamento e capacidade de promover
transformações sociais mais profundas.
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140
A PROIBIÇÃO DO USO DO VÉU NA FRANÇA: UMA
ANÁLISE CRÍTICA
Franciane Hasse64
Marilin Soares Sperandio65
Amanda Simor66
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo discutir o confronto entre a liberdade
em um Estado laico, a partir do exemplo do caso da França, que proibiu o
uso do véu muçulmano em vias públicas. A questão assume maior
importância, na medida em que houve anuência do Tribunal Europeu de
Direitos Humanos (TEDH) sendo, portanto, cerceado o direito do exercício
da liberdade religiosa. Ambas as posturas, ferem diretamente as diretrizes
estabelecidas pela Organização das Nações Unidas, na Declaração sobre a
eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na
religião ou nas convicções, visto que referido direito constitui parte da
identidade sociocultural da mulher muçulmana. Para construção do presente
trabalho, o método utilizado foi o indutivo e a técnica de pesquisa foi a
bibliográfica.
Palavras-chave: Liberdade religiosa. Laicidade. Direitos Humanos. Véu.
1 INTRODUÇÃO
As gerações contemporâneas têm experienciado o surgimento de uma
série de mecanismos que se propõem de algum modo proteger os Direitos
Humanos. Essa sistemática contundente de promoção de proteção e até
mesmo conscientização dos direitos humanos e da própria dignidade da
pessoa, podem ser atribuídas, no nível mundial, à incansável atuação das
Nações Unidas, com a elaboração de diretrizes que tem por objetivo
estabelecer parâmetros para definir direitos e definir eventuais coibições.
No entanto, exsurgem direitos e formas de sua respectiva proteção, o
trabalho para tal realização é muito mais árduo do que parece. Em verdade,
um dos grandes desafios da sociedade contemporânea é compatibilizar
141
direitos individuais e coletivos em sociedades multiculturais. Esse também
é um desafio enfrentado por mulheres muçulmanas na França.
Diante deste contexto, a presente pesquisa propõe-se a discutir o
confronto entre a liberdade em seu sentido amplo, assegurada pela França, a
liberdade de manifestação religiosa e o princípio da laicidade estatal. Para
tanto, inicialmente serão expostas considerações gerais acerca do Direito de
Liberdade religiosa. Em um segundo momento será discutida a condição
das mulheres muçulmanas na França e o enfrentamento da proibição do uso
do véu em locais públicos. Deste modo será elaborada uma crítica reflexiva
sobre alguns pontos controvertidos acerca da decisão do Tribunal Europeu
dos Direitos Humanos que ratifica a referida lei.
De um modo geral, o objetivo do presente trabalho é discutir a seguinte
questão: a proibição do uso do véu na França, endossada pelo Tribunal de
Direitos Humanos contraria o posicionamento da ONU e entra em conflito
com o direito de liberdade religiosa?
2 EM DEFESA DA LIBERDADE: O POSICIONAMENTO
DA ONU EM RELAÇÃO À LIBERDADE DE RELIGIÃO
A II Guerra Mundial causou atrocidades e provocou a devastação de
dezenas de países, tomando a vida de milhões de pessoas. Neste contexto, a
comunidade internacional compartilhou um sentimento de que era
necessário encontrar uma forma de manter a paz entre os países. Foi então,
no ano de 1945, que surgiu a Organização Nações Unidas67, uma tentativa
de articular politicamente os países do mundo em função do
estabelecimento da paz.
É possível dizer que o maior comprometimento da ONU é,
principalmente com a elaboração e promoção de políticas que envolvam a
proteção dos Direitos Humanos, além de articular relações políticas que
promovam relações amistosas entre as nações, o progresso social e, ainda
proporcionar melhores condições de vida para as pessoas.
Foi no ano de 1948 que o mundo assistiu a Assembleia-Geral das Nações
Unidas, na qual foi promulgada a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, considerada como um ato histórico na luta contra a guerra, pela
manutenção da paz e da dignidade humana. A Declaração que foi adotada
142
em forma de Resolução, abarcou em seu conteúdo diretrizes gerais de
proteção aos direitos inerentes a todo e qualquer ser humano, isto é, direitos
civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, preceituando a fraternidade
como valor universal (GRUBBA, 2016, p. 81).
A partir daquele momento, foram proclamados diversos outros
instrumentos internacionais que aprofundaram a noção de direitos humanos,
bem como ampliaram-se suas formas de reconhecimento. Um, dos tantos
exemplos, é o caso da Declaração sobre a eliminação de todas as formas de
intolerância e discriminação baseadas na religião ou crença. Documento
promulgado em novembro de 1981, baseado no direito de liberdade da
pessoa, estabelece que professar religião ou crença é um elemento
fundamental para a concepção de vida. Portanto todas as pessoas são livres
pare crer e praticar sua fé, sendo sua prática fundamental para o
desenvolvimento humano.
Ao proclamar a Declaração sobre a eliminação de todas as formas de
intolerância e discriminação baseadas na religião ou crença, a ONU
resolveu adotar medidas necessárias para combater o avanço da eliminação
de intolerância em todas as suas formas e manifestações, além da prevenção
e combate à discriminação no que concerne à religião ou à crença
(GRUBBA, 2016, p. 85).
De acordo com a Declaração, professar a própria crença é uma liberdade
fundamental. Trata-se de um direito que, em sendo violado, constitui uma
ofensa à dignidade humana. A discriminação com base na crença ou
religião deve ser condenada como uma violação dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais proclamados na Declaração Universal de Direitos
Humanos, sendo como um obstáculo para as relações amistosas e pacíficas
entre as nações68.
O direito de liberdade religiosa, então, integraliza parcela dos Direitos de
Liberdade. No entanto, no mundo contemporâneo, surge o desafio: como
compatibilizar as liberdades na sociedade de massa? (LIMA E BRITO,
2013, p. 79). Como compatibilizar a o direito de liberdade em espaços
multiculturais? Nos últimos anos, em função dos processos imigratórios, a
Europa, especialmente a França, têm enfrentado o desafio de conciliar o
Direito de Liberdade Religiosa com o princípio do estado laico e questões
de segurança pública. Problemática sobre a qual se passará a refletir na
sequência desta pesquisa.
143
3 UM CHOQUE CULTURAL: A CONDIÇÃO DA MULHER
MUÇULMANA FRENTE À SOCIEDADE FRANCESA
As matrizes paradigmáticas da modernidade já não são mais suficientes
para resolver problemas contemporâneos. O fenômeno da globalização,
cujos movimentos efetivos tiveram início, principalmente, a partir do fim da
Guerra Fria, com a abertura de mercados nacionais, impulsionou, para além
das movimentações financeiras, um intenso fluxo de informações em escala
jamais vista pela humanidade. Como se sabe, a globalização não se
restringiu ao plano de movimentações financeiras, em verdade, acabou
causando, por via reflexa, uma globalização jurídica, política, social e
cultural (ROTH, 1996, p.16).
Em função de tais transformações, as sociedades tornaram-se complexas,
na medida em que apresentam em um mesmo contexto espacial a
manifestação das mais variadas culturas e religiões. Tome-se como exemplo
a Europa que, nas últimas décadas, têm sido o destino de muitos refugiados
e imigrantes, transformando-se em palco de grande efervescência cultural.
Neste contexto, a França adquire particular relevância ao assistir a
construção de identidades culturais com movimentações sociais que, de
algum modo, lutam pela afirmação e defesa de sua própria identidade. Um
bom exemplo disto, é a problemática suscitada especialmente a partir do
ano de 2010, com a lei que proíbe o uso do véu muçulmano em locais
públicos. Trata-se, pois de uma difícil discussão que coloca direitos de
liberdade de religião e convicção em confronto com medidas de segurança
para proteção do Estado e, ainda, confronta a ideia de laicidade estatal.
Com efeito, para questionar a problemática da referida lei francesa,
antes, é necessário considerar algumas questões referentes à condição da
mulher na comunidade muçulmana. Pois bem, em um primeiro momento é
imprescindível alertar que a religião muçulmana possui variadas
interpretações do Alcorão e, portanto, transforma-se conforme o tempo e o
espaço onde é praticada. Além disto, é necessário apontar que em diversos
países cuja população em sua maioria é muçulmana, a relação entre Estado
e religião não tão é intrincada, como é o caso da Turquia (HIST, 2012, p.60)
que se intitula como Estado laico. Por outro lado, existem países como o
144
Afeganistão e Arábia Saudita que aplicam os comandos normativos
religiosos provenientes do Sharia, que faz parte da tradição muçulmana.
Com efeito, dentre as práticas religiosas que o islamismo segue, está a
diretriz de que as mulheres deveriam fazer o uso do véu que, nas suas
variadas formas, isto é, a burqa (que cobre todo o corpo, inclusive os olhos
com uma pequena tela), o niqab (que cobre todo o corpo, mas deixa de fora
os olhos e as mão) e, ainda o hijab (esconde os cabelos e o colo, deixando o
rosto descoberto) fazem parte da identidade cultural e religiosa do
islamismo. Trata-se de uma vestimenta que, conforme determinações
religiosas servem para preservar a privacidade da mulher.
De acordo com a tradição islâmica, Allah determinou que as mulheres
vestissem o véu para proteger a sua própria beleza que, ele (Allah), como
criador havia posto nelas. Assim, sendo a mulher bela e atrativa, poderia
apresentar algum tipo de tentação para os homens, e, justamente por esta
razão, é que o uso do véu mantém a intimidade e santidade feminina
preservadas. Além disto, o véu islâmico ajudaria as mulheres a cumprir sua
função na sociedade, na medida em que seu valor não seria identificado por
aquilo que elas poderiam parecer, isto é, beleza física; os homens também
tratariam as mulheres com maior respeito e com um senso de igualdade.
Assim, ao vestir-se com o véu, a beleza física da mulher, bem como sua
dignidade e castidade seriam protegidas (BAHAMMAM, 2014, p.25).
Evidentemente este significado é apenas uma conceituação geral e,
potencialmente parcial, mas que apresenta um indicativo genérico do
símbolo que o uso do véu assume nas comunidades muçulmanas. Dito de
outro modo, o véu estabelece a relação entre a proteção da intimidade da
mulher diante da comunidade política da qual ela faz parte e, ainda,
constitui parte de sua identidade cultural, social e religiosa69.
Entretanto, ainda que os princípios religiosos sejam bastante rígidos, não
se pode negar que, a partir do momento em que as mulheres muçulmanas
ingressam nas sociedades plurais, como ocorre na comunidade europeia,
tais valores interagem com a pluralidade cultural e modificam-se ou
ajustam-se às condições a que são submetidos.
No contexto europeu, existem diversas mulheres que vestem burqas ou
niqabs por exigência familiar ou da própria comunidade na qual estão
inseridas, todavia, existem mulheres que livremente escolhem fazer uso
destas vestimentas. Essas mulheres baseiam-se na herança dos princípios
145
culturais e das práticas religiosas, considerando o uso como forma
conveniente de comunicar-se com o mundo, para além dos limites de sua
própria família (MANCINI, 2013, p.197).
Com efeito, estas mesmas mulheres, participam ativamente da
comunidade política, na medida em que geralmente possuem algum tipo de
formação acadêmica e estão inseridas no mercado de trabalho. Essa
situação oferece condições de possibilidade de empoderamento, acarretando
na transformação da percepção das mulheres em relação aos preceitos
religiosos como fatores determinantes de comportamento (MANCINI,
2013, p.197).
Ao integrarem-se nas sociedades liberais, as mulheres muçulmanas
acabam por relativizar o sentido das tradições religiosas e culturais, em
função de um processo de subjetivação das crenças. Dito de outro modo,
quer dizer que as mulheres muçulmanas, mesmo que dentro de suas casas
convivam com forte influência cultural e religiosa, de matriz islâmica, ao
participarem de atividades sociais, fora dos limites de sua própria
comunidade/família, acabam fazendo distinção entre preceitos religiosos e
culturais. Assim, internalizam-se preceitos religiosos, enquanto que aqueles
preceitos culturais se integram e desintegram com outros, que lhe são
oferecidos no contexto da pluralidade social (MANCINI, 2013, p.197).
Interessante notar que a disseminação do estereótipo “muçulmano
fundamentalista” que se propaga pela mídia, principalmente em função de
ataques terroristas, faz com que as comunidades islâmicas, como um
recurso reativo, voltem-se cada vez mais à religião. Isso ocorre em razão de
que se trata de uma tentativa de revigorar a identidade religiosa. Assim, na
busca de conhecimento sobre a tradição muçulmana para refutar
estereótipos, tomam postura crítica em relação ao que se têm disseminado
equivocadamente (MARINUCCI, 2015, p.199).
Então, se mulheres muçulmanas escolhem livremente fazer uso do véu,
elas não estão visando um isolamento, ao contrário, trata-se de uma atitude
que visa afirmar que a identidade da religião muçulmana não é aquilo que
se reflete nas posturas fundamentalistas (MARINUCCI, 2015, p.199).
Vestir o véu é um meio de auto afirmar-se, pois sentem-se como
embaixadoras de sua própria religião, procuram sair do isolamento na busca
de uma forma de interlocução com o mundo ocidental (MARINUCCI,
146
2015, p.199). Ocorre que não é desta forma que as autoridades europeias
têm compreendido, como é o caso da França.
No final do ano de 2010, a França tornou-se o primeiro país europeu a
proibir trajes islâmicos como a burqa e o niqab. A Lei 2010-1192, é
resultado de um projeto elaborado pelo Conselho de Ministros, em maio
daquele ano. Posteriormente foi ratificada pelo então presidente francês,
Nicolas Sarkozy, e submetida ao Conselho Constitucional da França. Pouco
tempo depois, o colegiado emitiu a Decisão 2010-613 DC, aprovando a
medida por maioria no Parlamento.
A decisão tomada pelo Conselho Constitucional foi elaborada com base
na tradição libertária da França, consolidada a partir da Revolução
Francesa, e utilizou os artigos 4º, 5º e 10º da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão70 e o artigo 3ª da Constituição Francesa (1946), o
qual prevê igualdade entre homens e mulheres. Além disto, serviram como
embasamento para a legislação, o princípio da laicidade estatal, bem como
o cuidado por parte do Estado à segurança pública, em função dos
crescentes ataques terroristas que assustam a comunidade europeia. De
modo geral, o posicionamento do Parlamento francês deixa claro que o uso
da burqa ou niqab são contrários aos valores republicanos, configurando-se
práticas que atentam à dignidade e à igualdade entre homens e mulheres
(ANGELETTI, 2016, p. 13).
A lei que proíbe o uso do niqab e da burca em lugares públicos, prevê
como sanção o pagamento de multa ou de pena alternativa de restrição de
direitos e ainda um “estágio de cidadania” (art. 3º). A referida lei também
alterou o código penal ao estipular a pena de 1 ano de prisão e/ou multa de
30 mil euros, para aquele que coagir o uso do véu. Observe-se que o véu
muçulmano já havia sido banido das escolas públicas, no ano de 2004,
quando foram proibidos o uso de símbolos religiosos por alunos, bem como
nas dependências de qualquer instituição pública. Os funcionários públicos
também estavam impedidos de manifestarem suas convicções religiosas,
enquanto estivessem no exercício de suas respectivas funções. No entanto, a
lei promulgada em 2010 assumiu maior abrangência. Tudo isso em função
da laicidade estatal e da segurança pública (FERRARI, 2013, 130).
Importa mencionar que nos debates sobre a justificação da lei que proíbe
o uso véu muçulmano, que ocorreram no Parlamento francês, o ministro da
justiça defendeu que a burqa e o niqab, por cobrirem o corpo inteiro da
147
mulher, são vestimentas que não respeitam a liberdade e a dignidade e, por
esta razão, deveriam ser banidos dos espaços públicos.
Além disto, o ministro defendeu que a legislação possui vínculo direto
com a aplicação do princípio da laicidade, na medida em que o Estado não
se atém a nenhum tipo de religião (MANCINI, 2013, 70). Assim, a partir da
promulgação da lei em questão, a proibição da burqa e do niqab foram
estendidos para lugares públicos como ruas e praças, compreendendo-se
também aqueles lugares abertos ao público, como mercados e cafés,
excetuando-se aqueles destinados às práticas religiosas. Uma sistemática
que, sem exageros, foi mais do que a limitação, mas configurou-se como
uma espécie de criminalização do uso do véu.
Diversos países europeus têm enfrentado a mesma problemática, no
entanto, cada um tem assumido posturas diferentes. Como é o caso da
Bélgica que também proibiu uso do véu em locais públicos, prevendo
sanções criminais para quem a descumprir. Entretanto, note-se que a forma
de abordagem é bem deferente – e particularmente mais apropriada – do
que aquela francesa. Na Bélgica, o uso do véu é proibido em “espaços
acessíveis ao público”. Essa formulação passa a compreensão de que o uso
do véu seria permitido para além dos limites da vida privada, podendo ser
utilizado em espaços públicos, desde que não institucionalizados ou que as
circunstâncias específicas não o exijam (FERRARI, 2013, p.80).
Diante destas questões até aqui expostas eis que surge um problema de
difícil solução, a saber, a restrição do direito de liberdade de religião e a
expansão da institucionalização dos locais públicos, em nome da laicidade
estatal e da segurança pública. Tais elementos implicam diretamente na
liberdade de escolha das mulheres muçulmanas afetadas diariamente pela
medida legislativa. Questões sobre as quais serão debatidas a seguir.
4 O CONFRONTO ENTRE LIBERDADE RELIGIOSA E
LAICIDADE: NOTAS CRÍTICAS SOBRE A PROIBIÇÃO
DO USO DO VÉU NA FRANÇA
A lei que proibiu o uso do véu na França fez surgir uma série de debates
sobre a complexidade do direito de liberdade religiosa, visualizado a partir
da delicada relação estabelecida entre a sociedade francesa e a integração
148
islâmica, circunstância que acabou alimentando episódios que o Direito
deveria resolver.
Um caso que ganhou destaque mundial foi o de uma francesa, de origem
marroquina, identificada apenas como S.A.S., que entrou com uma
Reclamação (nº 43835/11.S)71 contra a República Francesa diante do
Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em Estrasburgo – TEDH. A
requerente alegou que a medida estabelecida em lei implica na violação dos
artigos 3, 8, 9, 10 e 11 da Convenção para a Proteção dos Direitos do
Homem e das Liberdades Fundamentais (The Convention). O conteúdo de
tais artigos assegura a proteção do indivíduo em relação a tratamento
desumano e degradante, respeito à vida privada, liberdade de consciência de
religião e liberdade de expressão.
No processo, segundo a reclamante, o uso do niqab e da burqa fazem
parte de sua cultura e religião, na qual muitas mulheres não são forçadas a
utilizá-lo, mas podem fazer a escolha, sem imposição da família, tampouco
a submeter-se às exigências machistas. Alegou ainda que as sanções
impostas para reprimir o uso do véu são desproporcionais e que em uma
sociedade realmente livre não se pode restringir a liberdade, pelo contrário,
as diferenças religiosas deveriam ser equalizadas de modo a promover a
convivência com a diferença.
A requerente aponta que, mesmo que grande parte do argumento do
Parlamento francês sustente que a lei visaria a proteção do direito das
mulheres, na medida em que usariam o véu por imposição da religião
islâmica, limitando seu direito de liberdade de escolha, as adeptas do
islamismo não pensam assim. A requerente alega que mulheres
muçulmanas que usam o véu, o fazem por livre e espontânea vontade, como
forma de professar sua fé e sentir-se em paz consigo mesma.
Os argumentos da francesa, de origem marroquina, objetam aqueles
sustentados pelo governo francês, estes últimos baseiam-se na ideia de
segurança pública e direitos liberdade e igualdade dos homens, em razão de
que a permissão do uso do véu seria mais uma forma de legitimar a
opressão imposta a mulheres, preservando as condições de vida comum.
Com efeito, ao verificar o conteúdo da decisão do Tribunal Europeu, é
possível identificar que o conselho de sentença elaborou uma pesquisa
sobre os precedentes das demais legislações e decisões dos Estados da
União Europeia que já haviam trabalhado com a possibilidade ou com a
149
efetiva proibição. Neste sentido, para o TEDH, é difícil resolver esse tipo de
conflito, principalmente naquilo que se refere à liberdade religiosa, sendo
que as autoridades estatais são mais apropriadas para resolverem este tipo
de questão. Isso ocorre em razão do conhecimento que elas possuem em
relação ao contexto em que se está inserido, de acordo com as
problemáticas regionais.
Deste modo, na apreciação sobre o caso, o Tribunal Europeu limitou-se a
dizer que restringir o uso dos trajes religiosos para proteger a liberdades de
terceiros é necessário para preservar a segurança pública. Para o TEDH, se
por um lado a restrição legislativa possa ser, de certo modo, uma ameaça à
identidade das mulheres muçulmanas, por outro lado, deve-se afirmar que
não se trata de uma restrição religiosa, mas diz respeito à dissimulação do
rosto de uma pessoa e, portanto, uma questão de segurança pública.
A medida refere-se àquelas que cobrem o rosto todo, cuja identificação é
comprometida, de modo que a lei tornou-se imposição necessária para
convivência em uma sociedade democrática. Assim, pode-se dizer que o
posicionamento do TEDH foi contido, na medida em que considera a
legislação como ponto de equilíbrio encontrado pela França para resolver os
problemas enfrentados no embate entre as liberdades religiosas e segurança
pública. Para a decisão, o TEDH contou com o parecer de juristas e
instituições protetivas de direitos humanos. A votação final chegou ao
resultado de 15 a 2 pela manutenção da lei.
Nos termos finais da decisão,
Conclusion: 25. In view of this reasoning we find that the criminalisation of the wearing of a
full-face veil is a measure which is disproportionate to the aim of protecting the idea of
“living together” – an aim which cannot readily be reconciled with the Convention’s
restrictive catalogue of grounds for interference with basic human rights. 26. In our view
there has therefore been a violation of Articles 8 and 9 of the Convention.72
Em síntese, o parecer do Tribunal legitimou a proibição do uso do véu,
pois se trata de questão de segurança pública, resolvendo-se de acordo com
as políticas do próprio país, mas não deixou de considerar que a
criminalização do seu uso (quando a lei especifica prisão àqueles que
impuserem o uso do véu a terceiro), trata-se de medida desproporcional.
Diante do caso exposto, é possível verificar que os Direitos Humanos
entraram em rota de coalisão com questões de Segurança Pública e de
laicidade. A partir da perspectiva dos Direitos Humanos, trata-se de um
150
problema bastante complexo e de difícil solução, pois se trata de um choque
entre religião e culturas distintas. Enquanto uma é libertária, no caso da
França, a outra, islâmica, é conservadora. Se por um lado a população de
adeptos ao Islã tem ganhado fôlego por todo o Continente, em razão dos
influxos imigratórios, trazendo consigo sua intrínseca ligação cultural,
jurídica e religiosa; por outro, o país que os recepciona encontra problemas
na tentativa de enquadrar tais comportamentos em sua tradição libertária.
Então, diante deste contexto, partindo da perspectiva dos Direitos
Humanos, em defesa do Direito de Liberdade de expressão e de religião, é
possível efetuar uma reflexão crítica acerca da lei francesa que proíbe o uso
do véu, com pelo menos duas objeções.
A primeira objeção que se pode fazer é em relação ao argumento de que
a lei requer coibir qualquer tipo de prática cultural ou religiosa que
confronte o direito de liberdade e igualdade conquistado pela sociedade
francesa. Na defesa deste argumento, considera-se que o uso do véu nas
comunidades islâmicas trata-se de uma imposição “patriarcalista” sobre as
mulheres. Isto é, uma forma de condicioná-las à exclusão em locais
públicos, oprimindo-as com a imposição do uso de um traje.
Entretanto, trata-se de uma leitura superficial e reducionista das práticas
religiosas. Em verdade, como antes citado, a grande maioria das mulheres
muçulmanas que vivem na comunidade europeia, escolhe livremente fazer
uso do véu. Pois ele consubstancia-se como parte das práticas religiosas e
até mesmo como meio de comunicação com o mundo ocidental.
É claro que não se pode desconsiderar que muitas mulheres estão
inseridas em um contexto em que a família e a própria comunidade
infligem, cobram o uso do véu. Todavia, ter esse fato como referência
genérica é um grave erro reducionista. E isso é tão forte, tão contundente
que, como visto no tópico anterior, voltar-se para as práticas religiosas
como forma de autoafirmação e de conscientização do fundamentalismo
dentro do islamismo, não é regra. Então, o uso do véu é justificado como
parte da identidade religiosa da mulher que, livremente, aceita os preceitos
islâmicos e escolhe fazer uso deste símbolo (MARINUCCI, 2015, p.199).
Por fim, é importante endossar que cobrir o corpo, para tais mulheres, é
uma forma de acessar o mundo, para fora de seus limites familiares, pois
como a própria S.A.S. afirmou na ação perante o TEDH, elas encontram
refúgio e sensação de paz ao vestirem o véu em vias públicas. Justamente
151
por isso, deve-se considerar que muitas mulheres vestem por satisfação
pessoal, então, como no caso em questão, privá-las do uso é tomar posição
opressora, paradoxalmente limitando o exercício da liberdade que se quer
conceder.
Assim a imposição do estado francês sobre as mulheres islâmicas acaba
forçando-as a deixar de praticar preceitos do alcorão. Esse condicionamento
é inadmissível, pois toca diretamente o direito de liberdade religiosa das
mulheres que não pode ser rechaçado por questões de segurança. É certo
que os Direitos de um modo geral não são absolutos, podendo ser
relativizados desde que devidamente justificados.
No entanto, a postura extrema do governo francês, ao institucionalizar
espaços públicos, chegando ao ponto de praticamente criminalizar o uso do
véu contraria toda a ideia de Direitos de liberdade religiosa, estabelecida
pela ONU, na Declaração sobre a eliminação de todas as formas de
intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções.
Conforme a referida Declaração da ONU, professar qualquer tipo de
religião ou convicção constitui um elemento fundamental da concepção de
vida e que, portanto, tal liberdade de escolha deve ser integralmente
respeitada e garantida. A mesma Declaração proclama que qualquer pessoa
tem o direito de manifestar suas crenças publicamente, mediante culto ou
observância de prática e ensino. Entende, ainda, que intolerância e
discriminação baseada na religião ou convicção é toda a forma de distinção,
exclusão, restrição ou preferência fundada na religião, cuja finalidade seja
abolir o reconhecimento ou o limitar o exercício de tal direito em igualdade
de direitos.
Compreende-se então que o posicionamento do governo francês
preenche justamente os pressupostos que se enquadram na forma de
discriminação estabelecida pela ONU, por meio de legislação,
consubstanciando-se violação direta ao Direito de liberdade, em seu amplo
sentido, incluindo-se evidentemente, o direito de liberdade religiosa.
Por fim, é possível fazer uma segunda objeção à lei francesa que proíbe o
uso do véu. Neste ponto, a crítica é direcionada à noção de “espaço
público” em função do princípio do Estado Laico. Como visto, a
justificativa dessa legislação é de que, pelo fato de o Estado francês ser
laico, estende-se essa noção aos espaços públicos. O Conselho
Constitucional francês ofereceu uma distinção de espaço público,
152
assumindo a tese de que neste espaço é que deve ser aplicado o princípio da
neutralidade e da laicidade, pois é neste que está inserido a representação
estatal. O espaço civil é compreendido como aquele compartilhado, por
exemplo, às empresas privadas que são abertas à circulação do público. Por
fim, espaço privado é caracterizado como o próprio domicílio73.
No entanto, para diretrizes adotadas pelo Parlamento francês, toma-se
um outro viés, isto é, a noção de “espaço público” é tratada como aqueles
ambientes nos quais são articuladas questões de interesse público, ou seja,
instituições públicas. De outro modo, a expressão “espaços públicos”, no
plural, denotam um sentido material, acessível, o ambiente compartilhado
pela dinâmica das relações sociais74.
Note-se a ambiguidade dessa noção de diferenciação de espaço público
que, no fim das contas, serve para apagar as fronteiras dos diferentes
espaços, oferecendo condições de ampliar a abrangência do princípio da
laicidade estatal. Este último serve como argumento de arrimo para reduzir
os espaços deixados para manifestação ou expressão religiosa
(ANGELETTI, 2016, p.18).
Neste sentido, a proibição do uso do véu estende-se às ruas e a qualquer
outro tipo de local que possibilite acesso ao público, em função de que se o
espaço é público, logo, é um espaço laico. O problema desse raciocínio é
que a rua, os locais de acesso e de circulação civil são justamente os
espaços mais apropriados para a manifestação da liberdade, seja ela qual
for, neste caso, espaço para manifestação da liberdade religiosa. Afinal, as
ruas e os locais de comum circulação são os mais adequados para o
exercício da cidadania, este é o locus que pertence à sociedade e não ao
Estado, enquanto instituição.
Com efeito, o argumento de laicidade do Estado, para sustentar a
proibição do uso do véu acaba por trair seu verdadeiro significado, na
medida em que o traz, institucionaliza a esfera pública da sociedade civil.
Diante desta perspectiva, o princípio da laicidade perpassa não somente o
espaço institucional, mas a esfera política de compartilhamento da
cidadania (MANCINI, 2013, 50).
Assim, a proibição do uso do véu na França, endossada pelo Tribunal
Europeu de Direitos Humanos, entra em rota de coalisão direta com a noção
de Direito de liberdade religiosa e acaba por trair o verdadeiro sentido dos
argumentos que se quer sustentar. Porquanto, fecha o espaço do exercício
153
democrático dos direitos de liberdade, na medida em que institucionaliza o
espaço público. Enfim, uma postura que utiliza o argumento retórico de
uma liberdade parcial e, sem exageros, perversa, limitando o pleno
exercício dos direitos de liberdade de religiosa e de crença em uma
sociedade tradicionalmente democrática.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa teve por objetivo questionar se a proibição do uso do véu
na França, endossada pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos,
contraria posicionamento da ONU em relação aos direitos humanos e,
portanto, entra em conflito com o direito de liberdade religiosa. Para tanto,
discutiu-se acerca da necessária proteção dos direitos de liberdade religiosa.
Posteriormente refletiu-se sobre a condição das mulheres nas comunidades
muçulmanas, apontando a problemática que se estabeleceu a partir do
momento em que o governo francês decidiu proibir o uso do véu em locais
públicos.
Neste sentido, ficou evidente que a partir da perspectiva dos direitos de
liberdade religiosa, as mulheres, por vontade própria, escolhem fazer uso do
véu, sendo que tal prática consubstancia-se como parte da identidade
cultural e religiosa. Além disto, o apego à religião é uma resposta das
presentes gerações, para o mundo que dissemina ideias equivocadas ao
dizerem que o islamismo se confunde com o fundamentalismo. Então não
somente as mulheres, mas o público muçulmano em geral, volta-se à
religião como forma de quebrar estereótipos.
Além disto, como o significado do véu é de proteção da intimidade e
preservação de castidade, para muitas mulheres torna-se uma forma de
acessar o mundo, para além dos limites de sua própria família. Então, é
possível dizer que o véu serve como meio para inclusão da mulher na esfera
pública, como na esfera privada.
Deste modo, ao proibir o uso do véu em locais públicos, o governo
francês deliberadamente promoveu a exclusão de mulheres muçulmanas
dos espaços públicos e limitou seu exercício de liberdades. Tomou uma
postura que contrariou o posicionamento da ONU em relação aos Direitos
Humanos, infringindo diretamente o direito de liberdade religiosa. Enfim,
154
adotou uma normativa que, paradoxalmente, na tentativa de promover
liberdade para as mulheres, acabou limitando-a.
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156
O ESTADO BRASILEIRO E OS DIREITOS HUMANOS NO
CASO GARIBALDI¹
Karine Arnemann ²
Eliete Vanessa Schneider ³
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo estudar a internacionalização dos
direitos humanos, analisar a formação dos sistemas global e regional de
proteção e identificar se houve omissão do Estado Brasileiro no julgamento
do Caso Garibaldi. A metodologia utilizada para atingir este objetivo foi a
pesquisa do tipo exploratória, utilizando em sua confecção a coleta de
dados em fontes bibliográficas disponíveis em meios físicos e na rede de
computadores. O artigo foi estruturado de acordo com os objetivos,
portanto, primeiramente serão estudados os marcos históricos, em seguida
os sistemas de proteção e finalmente os Direitos Humanos no Brasil.
Palavras-chave: Direitos Humanos; sistemas de proteção; caso Garibaldi.
1 INTRODUÇÃO
A proposta deste estudo é analisar a formação histórica e evolução dos
Direitos Humanos, apresentando os marcos decisivos para a sua
internacionalização. O processo de universalização dos Direitos Humanos
iniciou a sua fase legislativa com a elaboração de Pactos e Tratados que
trouxeram caráter normativo aos direitos consagrados, refletindo na
construção de um Direito Internacional dos Direitos Humanos,
um complexo das normas que regulam a promoção e a proteção universais
da dignidade da pessoa humana.
Apesar dos primeiros passos rumo à construção de um Direito
Internacional dos Direitos Humanos terem sido dados logo após o fim da
Primeira Guerra Mundial, com o surgimento da Liga das Nações e da
Organização Internacional do Trabalho, a consolidação deste novo ramo do
Direito ocorre apenas com o fim da Segunda Guerra Mundial.
157
O sistema internacional de proteção dos direitos humanos insere – se no
lento e gradual processo de positivação das garantias dos direitos humanos
iniciado nas Declarações Liberais de Direitos. Foram, porém, os perversos
acontecimentos da Era Hitler e da Segunda Guerra Mundial que colocaram
os direitos humanos na pauta de preocupações mais urgentes das nações,
levando-as à necessidade de adoção de medidas realmente efetivas para sua
proteção no âmbito internacional. Nesse contexto, surge o sistema global de
proteção aos direitos humanos e paralelamente os sistemas regionais de
proteção a esses direitos.
O Estado Brasileiro integra o sistema Interamericano de Direitos
Humanos, devendo, portanto, respeitar o estabelecido na Convenção
Americana de Direitos Humanos, sua base normativa. Neste aspecto, será
analisada a conduta do Estado Brasileiro no Caso Garibaldi, julgado no
âmbito deste sistema.
2 TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA
INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
A ideia de direitos humanos ganhou demasiada importância ao longo da
história, tendo em vista que seus pressupostos e princípios têm como
finalidade a observância e proteção da dignidade da pessoa humana de
maneira universal. Diante disso serão apresentados os principais marcos
históricos que contribuíram para o reconhecimento e evolução destes
direitos.
A partir destes marcos, a maneira como cada Estado trata seus cidadãos
não é mais competência sua, mas passa a ser de interesse internacional.
2.1 A Convenção de Genebra
O primeiro grande marco na formação histórica da internacionalização
dos direitos humanos foi a Convenção de Genebra. A partir deste momento
nasce a proteção humanitária em caso de guerra, para proteger os militares e
civis feridos na guerra.
Em 1859, ocorreu a Batalha de Solferino, um combate decisivo no
processo de independência italiana. Durante este período de guerra o
comerciante Jean Henri Dunart, em uma de suas viagens presenciou os
158
horrores da guerra e comovido com o sofrimento e mortalidade dos civis
reuniu um grupo de pessoas para estudar e discutir a insuficiência de
serviços sanitários dos exércitos. Ainda, escreveu um livro “Lembranças de
Solferino” narrando todos os horrores e as condições desumanas que
presenciou na batalha. O livro ficou conhecido internacionalmente, e a
partir daí alguns países aceitaram a intervenção na sua soberania, ou seja,
começa a haver limites na liberdade e autonomia dos Estados.
A Convenção de Genebra, ocorrida na cidade suíça com o mesmo nome,
tinha o objetivo de garantir alguns direitos mínimos para os civis durante as
guerras, portanto foram determinadas regras para proteger, em caso de
guerra, os militares fora de combate, ou seja, os feridos, doentes, náufragos
e prisioneiros.
Neste mesmo contexto, surge a Cruz Vermelha, um órgão imparcial,
criado para garantir a vida. Hospitais e ambulâncias passaram a receber o
símbolo da Cruz Vermelha e tornaram-se imunes de ataques hostis, pois os
militares feridos e os doentes deveriam ser tratados sem discriminação. A
Cruz Vermelha tinha sua sede na Suíça, foi criada com uma estrutura de
ONG, entretanto o Direito Internacional a reconhece como uma organização
internacional que possui personalidade jurídica. Portanto, na sua área de
atuação, podia firmar tratados.
2.2 A Liga das Nações
A liga das Nações foi criada pelo Tratado de Versalhes em 1919, após a
1ª Guerra Mundial, com o objetivo de promover a paz e a ordem
internacional através da mediação e arbitragem, condenando agressões
externas contra a integridade territorial e independência política dos seus
membros. Neste sentido, o preâmbulo da Convenção da Liga das Nações
consagrava:
As partes contratantes, no sentido de promover a cooperação internacional e alcançar a paz e
a segurança internacionais, com a aceitação da obrigação de não recorrer à guerra, com o
propósito de estabelecer relações amistosas entre as nações, pela manutenção da justiça e
com extremo respeito para todas as obrigações decorrentes dos tratados, no que tange à
relação ente povos organizados uns com os outros, concordam em firmar este Convênio da
Liga das Nações.
159
Analisando este preâmbulo indaga-se: Depois de todos os horrores
presenciados na 1ª Guerra Mundial, como a comunidade internacional, a
Liga das Nações, conseguiu falhar em sua missão? Como não pensaram nas
milhões de vidas perdidas? Como não se importaram com os Direitos
Humanitários?
Infelizmente, não há possibilidade de respostas convictas para tais
questões, apenas a elaboração de teses que justifiquem o comportamento de
uma parcela da população mundial da época. Sabe-se que havia muitas
divergências ideológicas entre os Estados-parte e faltava força militar
efetiva da Liga das Nações, pois no contexto da época, as sanções
econômicas pouco adiantavam. Além disso, as tentativas de conciliação e
sanções superficiais fizeram com que os países tomassem iniciativas
agressoras, dando início à Segunda Guerra Mundial.
A Liga das Nações falhou em sua missão, então não restou outra
alternativa senão dissolvê-la. Porém, podemos dizer que está organização
foi reformada e hoje a vemos como a ONU.
2.3 A Organização Internacional do Trabalho – OIT
Após a assinatura do Tratado de Versalhes em 1919, que deu fim a 1ª
Guerra Mundial, a Liga das Nações instituiu a OIT, uma organização com o
objetivo de regular as condições de trabalho no âmbito mundial, formandose sobre a convicção de que a paz universal e permanente somente pode
estar baseada na justiça social.
Além disso, a OIT teve como base argumentos humanitários, políticos e
econômicos. Pois, os trabalhadores viviam em condições injustas, difíceis e
degradantes e por isso havia o risco de conflitos sociais.
Os Estados passaram a ser encorajados a cumprir com as novas
obrigações internacionais, assim pode-se dizer que esta organização foi um
dos marcos que mais contribuiu para a formação do Direito Internacional de
Direitos Humanos, pois foi a partir dela que começou a haver uma
preocupação internacional com o bem-estar individual, sendo geradas várias
convenções que estabeleceram padrões mínimos de condições de trabalho.
2.4 A Segunda Guerra Mundial
160
A Segunda Guerra Mundial teve início em 1939, quando a Alemanha
invade a Polônia. Em 1941, os japoneses atacaram os Estados Unidos,
fazendo com que este último declarasse guerra ao Eixo. Neste momento se
formam dois grupos: os Aliados (Alemanha, Itália e Japão) e os Países do
Eixo (Inglaterra, URSS, França e Estados Unidos). Neste período, os
nazistas torturaram e mataram milhares de pessoas que não eram
descendentes da raça ariana, pois eram considerados inferiores. A partir de
1942, os Países do Eixo começaram a sofrer sucessivas derrotas. Em 1944,
ocorre o “Dia D”, dia em que os Estados Unidos desembarcam na Europa e
começam a neutralizar as últimas forças nazistas que ainda permaneciam na
Europa. Em 1945, Hitler suicida-se e logo após a Alemanha se rende,
porém, o Japão não admite a derrota e resolve continuar sozinho na Guerra,
levando os Estados Unidos a lançar duas bombas atômicas, uma sobre
Hiroshima e outra sobre Nagasaki. Assim, teve fim a Segunda Guerra
Mundial.
Sem dúvidas, a Segunda Guerra Mundial foi o marco histórico mais
desumano já visto até hoje, foi o ápice da desconsideração da dignidade
humana, pessoas foram utilizadas como cobaias em experimentos com
câmaras de pressão, enxertos de ossos, baixas temperaturas e muitos outros
meios de tortura. Estima-se que foram mais de 45 milhões de mortos
durante este período. Por isso, é considerado o fato histórico impulsionador
decisivo do surgimento e consolidação do Direito Internacional dos Direitos
Humanos. Neste sentido, Piovesan (2004) leciona que a construção dos
direitos humanos é um movimento extremamente recente na história, vez
que surgiu somente no período pós-guerra.
Este marco histórico na internacionalização dos Direitos Humanos
mostrou o fracasso da humanidade em promover e proteger os seus direitos,
mas, de uma maneira dolorosa, também fez surgir as bases desse novo
Direito, que teve como impulso a urgência e a necessidade da promoção e
proteção da dignidade da pessoa humana.
3 A FORMAÇÃO DOS SISTEMAS GLOBAL E REGIONAIS
DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS
161
Apesar de todas as situações desumanas ocorridas durante estes marcos,
todos contribuíram para o processo de internacionalização dos direitos
humanos. A Convenção de Genebra visava proteger direitos fundamentais
em situação de conflito armado. A Liga das Nações tinha como objetivo a
manutenção da paz e segurança internacional e a OIT, assegurou parâmetros
globais mínimos para as condições de trabalho.
Após a Segunda Guerra Mundial nasceu no continente europeu a
esperança de se implantar um “standard” mínimo de proteção aos direitos
humanos. Visava-se a salvaguarda dos direitos humanos e não das
prerrogativas dos Estados e alterou-se o conceito de Direito Internacional,
que antes era apenas o Direito que regulava as relações entre os Estado.
Prenuncia-se o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era
concebida como um problema de jurisdição doméstica, restrito ao domínio reservado do
Estado, decorrência de sua soberania, autonomia e liberdade. Aos poucos emerge a ideia de
que o indivíduo é não apenas objeto, mas também sujeito de direito internacional
(PIOVESAN, 2004, p. 130).
Portanto, esse momento Pós-Guerra foi o de reconstrução dos direitos
humanos mediante a valorização da pessoa e da dignidade da pessoa
humana, preocupação com o ser humano não na qualidade de minoria, mas
de maneira geral. O movimento de internacionalização dos direitos
humanos se deu de forma efetiva após a Segunda Guerra Mundial. As
escandalosas e absurdas violações aos Direitos Humanos ocorridas fizeram
com que a comunidade internacional pensasse que muito poderia ter sido
evitado. Assim, dos escombros da Segunda Guerra Mundial, uma nova
forma jurídica desponta para um Estado de Direito que precisava se renovar
e o estímulo maior para tal renovação seria o compromisso em grau
máximo com o respeito à dignidade humana.
A barbárie do totalitarismo significou a ruptura do paradigma de direitos humanos, através
da negação do valor da pessoa humana como valor fonte do Direito. Diante desta ruptura,
emerge a necessidade de reconstrução dos direitos humanos, como referencial e paradigma
ético que aproxime o direito da moral. Neste cenário, o maior direito passa a ser, adotando a
terminologia de Hannah Arendt, o direito a ter direitos, ou seja, o direito a ser sujeito de
direitos (PIOVESAN, 2004, p. 132).
Com o término da Segunda Guerra Mundial começou a se pensar que a
Alemanha deveria ser responsabilizada pelos atos bárbaros cometido
durante o período, assim os países Aliados chegaram a um consenso e
162
criaram o Tribunal de Nuremberg para julgar os criminosos de guerra
(PIOVESAN, 2004).
Assim, começar a surgir os passos decisivos para a internacionalização
dos direitos humanos e consequentemente a formação dos sistemas global e
regionais de proteção aos Direitos Humanos.
3.1 A criação da ONU
A ONU foi fundada oficialmente em 24 de outubro de 1945, após o final
de 2ª Guerra Mundial. Representou importante mecanismo de cooperação
internacional, a fim de construir a paz no pós-guerra, e prevenir guerras
futuras. A ONU substituiu a Liga das Nações, e tinha como objetivo manter
a paz e a segurança internacional, promover os direitos humanos, além de
desenvolver as relações amistosas entre os Estados, promovendo assim a
cooperação internacional nos meios econômico, político e cultural.
Para conseguir alcançar seus objetivos, a ONU foi estruturada em
diversos órgãos, sendo estes os principais: Assembleia Geral, Conselho de
Segurança, Corte Internacional de Justiça, Conselho Econômico e Social,
Conselho de Tutela e o Secretariado, todos estabelecido no seu artigo 7º.
A Assembleia Geral possui competência para discutir e fazer
recomendações relativas a qualquer matéria que for objeto da carta. O
Conselho de Segurança é o principal responsável por manter a paz e a
segurança internacionalmente, e para isso é composto por cinco membros
permanentes (China, França, Reino Unido, Estado Unidos e a Rússia) e dez
membros não permanentes. A Corte Internacional de Justiça é composta por
quinze juízes, que podem ser reeleitos, as sentenças proferidas por ela são
inapeláveis, porém podem ser revistas com a apresentação de um novo fato.
O Secretariado é chefiado pelo Secretário Geral, principal funcionário
administrativo da ONU. Por fim, o Conselho Econômico e Social, que tem
competência para promover a cooperação nas questões econômicas, sociais
e culturais. Este último órgão é o responsável por fazer recomendações
destinadas a promover o respeito e a observância dos direitos humanos,
além de elaborar projetos de convenções que são submetidos à Assembleia
geral.
A Carta das Nações Unidas de 1945 consolida, assim, o movimento de internacionalização
dos direitos humanos, a partir do consenso de Estados que elevam a promoção desses
163
direitos a propósito e finalidade das Nações Unidas. Definitivamente, a relação de um Estado
com seus nacionais passa a ser uma problemática internacional, objeto de instituições
internacionais e do Direito internacional (PIOVESAN, 2004, p.142/143).
A Carta das Nações Unidas deixa clara a importância de se defender,
promover e respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais,
porém não há o significado da expressão “direitos humanos e liberdades
fundamentais” no mencionado documento. Diante disso, o próximo passo
foi dado em 1946, onde o Conselho Econômico e Social da ONU criou a
Comissão de Direitos Humanos com o objetivo de elaborar uma Carta
Internacional de Direitos Humanos. Assim, em 1948 veio a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, para definir a expressão “direitos
humanos e liberdades fundamentais” (PIOVESAN, 2004).
Portanto, com a assinatura da Carta das Nações Unidas, a comunidade
internacional se comprometeu a promover e encorajar o respeito aos
direitos humanos, para isso a Comissão de Direitos Humanos, principal
órgão da ONU, foi incumbido de elaborar uma Carta Internacional de
Direitos, e assim começou a elaboração de uma Declaração.
3.2 A Declaração Universal dos Direitos Humanos
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada em 1948, sob
a forma de resolução, após aprovada pela Assembleia Geral, com o objetivo
de delinear uma ordem pública mundial com base no respeito à dignidade
humana, onde a condição de pessoa é o único requisito para a titularidade
de direitos.
Esta Declaração se caracteriza, primeiramente, por sua amplitude. Compreende um conjunto
de direitos e faculdades sem as quais um ser humano não pode desenvolver sua
personalidade física, moral e intelectual. Sua Segunda característica é a universalidade: é
aplicável a todas as pessoas de todos os países, raças, religiões e sexos, seja qual for o
regime político dos territórios nos quais incide (PIOVESAN, 2004, p. 145).
A Declaração estabeleceu duas categorias de direitos: os direitos civis e
políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais. E neste aspecto foi
inovadora, pois até então apenas os direitos civis e políticos eram
consagrados, ou seja, a Declaração combinou o discurso liberal da
cidadania com o discurso social, pois passou a elencar tanto os direitos civis
e políticos, como direitos sociais, econômicos e culturais. Assim, a
164
Declaração demarca a concepção contemporânea de direitos humanos,
classificando tais direitos em gerações, onde uma geração de direitos
interage com outra, não havendo sucessão de direitos, pois estes se
complementam e se fortalecem.
A primeira geração desses direitos inclui os direitos cívicos e políticos,
dirigidos, originalmente, à defesa dos cidadãos perante os possíveis abusos
perpetrados pelo Estado. A segunda geração inclui os direitos sociais,
econômicos e culturais que permitem aos cidadãos usufruir das condições
materiais necessárias a uma vida digna, sem a qual não é possível o
exercício efetivo dos direitos da primeira geração. E, por fim, a terceira
geração de direitos humanos engloba os direitos relacionados ao acesso e
usufruto de bens que pertencem em comum à humanidade, ou seja, direitos
relacionados com o ambiente, bens culturais, a identidade, a solidariedade
entre outros.
A Declaração Universal foi adotada pela Assembleia Geral sob a forma
de resolução, logo não possui força de lei. O seu propósito é o de promover
o reconhecimento internacional dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais consolidando um parâmetro internacional para a proteção
desses direitos, já os Estados membros da ONU têm a obrigação de
promover o respeito e a observância universal dos direitos proclamados
pela Declaração (PIOVESAN, 2004).
Apesar de ter sido adotada como resolução, muitos defendem que a
Declaração possui força jurídica vinculante por integrar o direito
costumeiro internacional, e ainda que não assume a forma de tratado
internacional, apresenta força jurídica obrigatória e vinculante, na medida
em que constitui a interpretação autorizada da expressão “direitos
humanos”.
Neste contexto, partindo da corrente que defende a Declaração como
uma resolução, sem força jurídica obrigatória e vinculante, instaurou-se
uma discussão sobre qual a maneira mais eficaz para assegurar o
reconhecimento e a observância universal dos direitos nela previstos.
Houve o entendimento de que ela deveria ser recebida em forma de tratado
internacional. Esse entendimento teve início com a elaboração de dois
tratados internacionais, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que
incorporaram os direitos contidos na Declaração (PIOVESAN, 2004).
165
A partir da elaboração desses tratados, forma-se a Carta Internacional de
Direitos Humanos que inaugurou o Sistema Global de proteção aos Direitos
Humanos. Paralelamente, também se formaram os sistemas regionais de
proteção, nos âmbitos europeu, interamericano e africano.
3.3 Os sistemas regionais de proteção aos Direitos Humanos
Todos os instrumentos analisados até aqui integram o Sistema Global de
Proteção aos Direitos Humanos, na medida em que foram produzidos no
âmbito das Nações Unidas, que representa os Estados participantes da
comunidade internacional. Portanto, o campo de incidência do sistema
global não se limita a uma determinada região, mas pode alcançar qualquer
Estado integrante da ordem internacional.
Ao lado do sistema global, surgem sistemas regionais de proteção, que
buscam internacionalizar os direitos humanos no plano regional. Os
sistemas global e regionais são complementares interagindo com o sistema
internacional de proteção, para tornar mais eficaz a proteção de direitos
fundamentais. Ambos os sistemas são inspirados pelos valores e princípios
da Declaração Universal (PIOVESAN, 2004).
A ONU estimulou a criação de sistemas regionais de proteção aos
direitos humanos. O envolvimento de dois países, às vezes três, num
conflito, não justifica o acionamento do sistema global de proteção aos
direitos humanos, sendo um sistema regional mais ágil e eficaz no
recebimento de denúncias, investigação e resolução de violações aos pactos.
Também é vantajoso no sentido de que um sistema regional possui um
aparato jurídico próprio, que reflete com maior autenticidade e proximidade
as peculiaridades e características históricas dos países envolvidos.
Cada sistema regional de proteção apresenta um aparato jurídico próprio.
O Sistema europeu conta com a Convenção Europeia de Direitos Humanos,
que estabelece a Comissão e a Corte Europeia de Direitos Humanos. Já o
sistema africano apresenta como principal instrumento a Carta Africana de
Direitos Humanos de 1981, que, por sua vez, estabelece a Comissão
Africana de Direitos Humanos. O sistema interamericano tem como
principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos de
1969, que estabelece a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a
Corte Interamericana. Por fim, como quarto sistema regional, embora de
166
forma insipiente, tem-se o Sistema Árabe de proteção aos direitos humanos,
que conta com a Carta Árabe de proteção.
3.3.1 O Sistema Europeu de Proteção aos Direitos Humanos
Após a Segunda Guerra Mundial nasce no continente europeu a
esperança de se implantar um “standard” mínimo de proteção aos direitos
humanos. Os países europeus buscaram união e cooperação entre si,
principalmente em razão da situação política econômica pós-guerra que os
deixou fragilizados para atuar individualmente no cenário internacional.
Assim, começaram a nascer várias organizações internacionais na Europa
Ocidental.
Neste momento, alguns estados europeus (Bélgica, Luxemburgo,
Dinamarca, França, Holanda, Irlanda, Itália, Reino Unido e Suécia)
reuniram-se em Londres, em 05 de maio de 1949, para fundar o Conselho
da Europa, uma organização representativa dos Estados da Europa
Ocidental, com o objetivo de promover a unidade europeia, proteger os
direitos humanos e fomentar o progresso econômico e social. Além do
Conselho, foram criadas a União Europeia e a Organização para segurança
e cooperação na Europa.
Em 1950, foi fundada a Convenção Europeia de Direitos Humanos que
visava estabelecer padrões mínimos de proteção. A Convenção Europeia,
aberta à assinatura em 4 de novembro de 1950, é o Tratado Regente do
Sistema Europeu de Proteção aos Direitos Humanos. Entrou em vigor
internacional em 3 de setembro de 1953, quando dez Estados europeus a
ratificaram.
Na primeira parte da Convenção, são elencados direitos e liberdades
fundamentais, essencialmente civis e políticos. Na Segunda Parte, a
Convenção regulamenta o funcionamento da Corte Europeia de Direitos
Humanos. E, por fim, na terceira parte, A Convenção estabelece algumas
disposições diversas, como as Requisições do Secretário Geral do Conselho
da Europa, poderes do Comitê de Ministros, reservas à Convenção, sua
denúncia, entre outros.
A Convenção Europeia, em seu texto original, instituiu três órgãos
distintos: Um semijudicial, a Comissão Europeia de Direitos Humanos; um
167
judicial, a Corte Europeia de Direitos Humanos; um diplomático, o Comitê
de Ministros (Conselho da Europa).
A função de decidir se houve ou não violação da Convenção Europeia
passou a ser uma função exclusiva da Corte Europeia de Direitos Humanos.
A Corte foi instituída em 20 de abril de 1959 através do protocolo nº 11 da
Convenção. A Corte possui competência consultiva (formular opiniões
consultivas sobre questões jurídicas relativas à interpretação da Convenção
e de seus protocolos) e contenciosa (as decisões da Corte são juridicamente
vinculantes e têm natureza declaratória).
O Sistema Europeu trouxe órgão de fiscalização em relação ao
cumprimento da Convenção e elevou o indivíduo como sujeito de direito
internacional, no que tange à proteção dos direitos humanos.
3.3.3 O sistema africano de proteção aos Direitos Humanos
O sistema regional africano surgiu em momento posterior, quando
comparado aos Sistemas Europeu e Interamericano. Tal Sistema teve
origem no ano de 1963, durante a realização da sessão ordinária da
Assembleia de Chefes de Estado e Governo, que criou a OUA, o alicerce do
Sistema Regional Africano.
Quando descoberta pelos Europeus, a África foi alvo de exploração, vista
apenas como uma fonte de dinheiro pelos seus descobridores. O continente
foi dividido e colonizado pelos europeus sem considerar as diferentes
tribos, idiomas, religiões e culturas presentes. Os africanos eram vistos
como inferiores pelos europeus e, devido a isto, muitos deles foram
tomados como escravos, as riquezas naturais encontradas no continente
eram extraídas e exportadas para as metrópoles não restando nada para os
nativos.
A origem deste sistema encontra-se nos debates ocorridos durante a
sessão ordinária da Assembleia de Chefes de Estado e Governo da antiga
Organização da Unidade Africana. Em junho de 1981, o projeto da Carta
Africana foi votado, aprovado e assinado pelos membros da organização.
Cinco anos mais tarde, em 21 de outubro de 1986, após atingir o número
mínimo de ratificações necessárias, a Carta entrou em vigência.
Em 2002, foi assinado protocolo à Carta Africana, que somente alcançou
o número necessário de Estados aderentes (15), em 2006, somente então
168
entrando em vigor. O referido protocolo criou a Corte Africana de Direitos
Humanos, nos moldes do Sistema Europeu e Interamericano, tendo função
consultiva e contenciosa.
Conhecida também como Carta de Banjul, a Carta Africana de Direitos
Humanos e dos Povos procura espelhar e preservar contornos
característicos da cultura e da formação histórica africana. A Carta africana
trouxe uma inovação em relação aos sistemas Europeu e Interamericano,
qual seja, a obrigatoriedade de, a cada 2 anos, todos os Estados Membros
enviarem um relatório à Comissão, com as medidas tomadas em relação à
efetividade das garantias de Direitos Humanos.
Após conquistada a independência, muitos Estados permaneceram com
seus governos sob domínio militar. Assim, diante de tal situação política, a
OUA defendia veementemente a não intervenção nos assuntos internos dos
Estados e adotava formas não contenciosas para a resolução de divergências
entre os seus Estados-membros.
A Organização da Unidade Africana (OUA), importante órgão, que foi
fundado em 25 de maio de 1963 na Etiópia, através da assinatura de sua
constituição por representantes de 32 países africanos independentes, era
composta por 53 membros, porém em 1985 o Marrocos se afastou da
organização em protesto a entrada da “República Árabe Sarauí
Democrática”, atual Saara Ocidental.
Este órgão teve grande importância no processo de Descolonização da
África, em 1966 foi criado o Comitê de Libertação ou de Descolonização
que tinha como função apoiar os movimentos de libertação. Posteriormente,
em 11 de julho de 2000, a OUA passou a ser denominada UA, cujas
atividades iniciaram em 2001. A UA é composta pelos países do continente
africano, com exceção do Marrocos pelo motivo anteriormente exposto.
Após a análise do Sistema Africano, entende-se a necessidade de se
destacar um fato histórico que marcou a história recente do continente
africano, em especial, por ter sido uma atrocidade à questão central do
presente artigo, a proteção aos direitos humanos. Tal evento histórico é o
genocídio que ocorreu em 1994, em Ruanda, que, em menos de cem dias,
deixou mais de 800 mil mortos em uma guerra interna decorrente de
conflitos étnicos.
3.3.4 O sistema americano de proteção aos Direitos Humanos
169
O Sistema Interamericano foi instituído por meio da Carta da
Organização dos Estados Americanos (OEA). Essa carta, que leva o nome
oficial de Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, foi
aprovada em 1948.
O principal instrumento do Sistema Interamericano é a Convenção
Americana de Direitos Humanos, ela estabelece a estrutura do Sistema
Interamericano, formado por dois órgãos: a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, com sede em Washington, Estados Unidos da América,
e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada em San José, na
Costa Rica.
Órgão central da Organização dos Estados Americanos (OEA), a
Comissão Interamericana atua na supervisão e no monitoramento do grau
de cumprimento das obrigações internacionais pelos Estados-membros em
matéria de direitos humanos no âmbito regional.
A competência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
alcança todos os Estados-Partes da Convenção Americana, bem como os
membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) em relação aos
direitos humanos consagrados tanto na convenção quando na Declaração
Americana de 1948. A principal função da Comissão é promover a
observância e a proteção dos direitos humanos na América (PIOVESAN,
2004).
A Corte Interamericana é um órgão jurisdicional que possui competência
consultiva e contenciosa. No exercício da competência consultiva, qualquer
membro da OEA pode solicitar o parecer da Corte. No plano contencioso, a
competência da Corte para o julgamento de casos é limitada aos EstadosPartes da Convenção. Ainda, somente a Comissão e os estados-parte podem
submeter um caso à Corte.
As decisões da corte têm força jurídica vinculante e obrigatória, devendo
os Estados cumprir de imediato. O Brasil possui condenação perante a
Corte Interamericana por violação às garantias judiciais, no caso Garibaldi,
conforme será verificado no próximo capítulo.
3.3.5 O Sistema árabe de proteção aos Direitos Humanos
A liga dos Estados Árabes, ou Liga Árabe, é uma associação voluntária
de países que são predominantemente de língua Árabe. A liga foi fundada
170
no Cairo em 1945 por Egito, Iraque, Arábia Saudita, Síria, Transjordania
(Jordania a partir de 1950), e Yemen. Os principais objetivos da Liga são o
de estabelecer relações mais estreitas entre os Estados membros e coordenar
a relação entre estes, com o fim de proteger sua independência, soberania,
defender de modo geral os assuntos e interesses dos países Árabes.
A tomada de consciência dos Estados Árabes sobre a necessidade de
adequar seus ordenamentos jurídicos, em conformidade com o Direito
Internacional dos Direitos Humanos, começa a partir dos anos 70. A partir
desta data, o mundo Árabe-muçulmano começa as diversas declarações
sobre Direitos Humanos.
A Declaração Universal Islâmica sobre Direitos Humanos, de 19 de
setembro de 1981, foi elaborada pelo Conselho da Organização da
Conferência Islâmica e compilada por juristas Islâmicos e pelos
representantes de diversas escolas de pensamento Islâmico, sobre a
inspeção da Unesco. Em seu teor, trouxe características bastantes peculiares
adaptativas em relação à Declaração Universal dos Direitos Humanos da
Organização das Nações Unidas de 1948. Ainda, percebe-se que a
Declaração Islâmica se trata de uma adaptação da declaração original
voltada aos princípios da fé-islâmica, invocados constantemente ao longo
do documento.
Do mesmo modo, os Direitos Humanos se integram com o quadro do
ordenamento jurídico islâmico, proclamando as liberdades tradicionais
liberais como o direito a vida, a liberdade, a igualdade, a proibição contra a
discriminação, o direito a justiça, e a um justo processo penal. Igualmente a
carta Islâmica, reconhece os direitos sociais, económicos, e alguns direitos
coletivos, como o direito as minorias religiosas, individualizando e
expressamente o pluralismo religioso.
A Declaração universal dos direitos humanos das Nações Unidas de
1948 foi muito criticada por muitos muçulmanos, qualificando-a de ter
exclusivamente uma visão ocidental, sem ter em consideração a realidade
cultural, religiosa e histórica, não só do islã senão de todos os países não
ocidentais. Alguns muçulmanos opinam inclusive que esta declaração não é
compatível com a Charia. Por isso, em 1990, todos os países
da Organização para a Cooperação Islâmica (OCI) adotaram a Declaração
do Cairo sobre Direitos Humanos no islã. A Declaração do Cairo baseia-se
171
fundamentalmente na charia e no conceito de “O Islã, como representante
de Alá na terra”.
Com relação ao conteúdo desta declaração, se afirma o discurso
teológico-jurídico iniciando na Declaração Islâmica Universal de 1981, no
sentido de colocar os Direitos Humanos em um quadro complementar ao
Islam.
A Carta Árabe de Direitos Humanos foi adotada pelo Conselho da Liga
dos Estados Árabes em 1994, e em março de 2008 entrou em vigor após a
ratificação do sétimo Estado, Os Emirados Árabes Unidos. Este é um dos
resultados das iniciativas dos países árabes de aderir ao movimento
internacional de tutela dos Direitos Humanos.
4 O ESTADO BRASILEIRO E OS DIREITOS HUMANOS
Embora o Brasil tenha aderido prontamente à formação da OEA, em
1952, com o decreto assinado por Getúlio Vargas, foi somente depois do
período da redemocratização do país, em 1985, que a participação brasileira
em organismos e instituições dedicadas aos direitos humanos passou a ser
mais efetiva.
O Brasil ratificou alguns instrumentos internacionais do Sistema Global,
dentre estes, a Carta das Nações Unidas de 1945 ratificada pelo Brasil neste
mesmo ano, assim como a Declaração Universal dos Direitos Humanos
ratificada em 1948. Quanto ao Sistema Regional Interamericano o Brasil
ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992.
A Constituição Federal de 1988 foi a primeira Constituição brasileira a
elencar o princípio da prevalência dos direitos humanos, como princípio
fundamental a reger o Estado nas relações internacionais. Além disso, ela
também recebe as determinações dos tratados internacionais como norma
constitucional, ou seja, as normas contidas nos tratados internacionais
integram e complementam os direitos constitucionais com a finalidade de
ampliar os direitos e garantias fundamentais já previstos.
Feitas essas breves considerações, analisa-se a decisão proferida pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Garibaldi versus Brasil,
onde o Estado brasileiro foi responsabilizado pela não apuração da
execução extrajudicial de um trabalhador sem-terra, tomando-se como
172
parâmetro normativo a Convenção Americana de Direitos Humanos, mais
conhecida como Pacto de San José da Costa Rica.
4.1 Análise do caso Garibaldi
Diante de inúmeras desocupações de terra ocorridas todos os anos, em
que os direitos humanos são frequentemente violados, o caso Garibaldi
ganha relevo em razão de sua atualidade e das consequências gravosas ao
Estado brasileiro, onde o mesmo foi responsabilizado pela não apuração da
execução extrajudicial de um trabalhador sem-terra, tomando-se como
parâmetro normativo a Convenção Americana de Direitos Humanos, mais
conhecida como Pacto de San José da Costa Rica (MONTEIRO, 2014).
Na tramitação do processo perante a Corte, já acentuava a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos que o Brasil deveria adotar “medidas
eficazes com o fim de evitar a proliferação de grupos armados que
pratiquem desocupações clandestinas violentas”. Com a sentença proferida
pela Corte, recupera-se, embora não tendo o propósito de se sobrepor à
decisão nacional, o sentido para o qual o Poder Judiciário se justifica
(MONTEIRO, 2014).
Durante a desocupação extrajudicial de um acampamento do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, Sétimo Garibaldi foi morto em
Querência do Norte, noroeste do Paraná, em ação de cerca de 20 pistoleiros
encapuzados. Com a conivência das autoridades locais, foi arquivado o
Inquérito, apesar dos indícios e das inúmeras testemunhas.
Diante dessa omissão, a Terra de Direitos, a Justiça Global, a Comissão
Pastoral da Terra (CPT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra
(MST) e a Rede Nacional de Advogados Populares (RENAP) denunciaram
o caso em 2003 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH),
que foi informada também do posterior arquivamento não fundamentado do
inquérito policial. Em 2007, a Comissão submeteu o caso à Corte,
resultando na condenação do Estado brasileiro.
Para a Corte o caso expõe a parcialidade do Poder Judiciário no
tratamento da violência no campo e as falhas das autoridades brasileiras em
combater milícias privadas formadas por latifundiários.
A obrigação de investigar violações de direitos humanos está incluída nas medidas positivas
que os Estados devem adotar para garantir os direitos reconhecidos na Convenção. No caso
173
de uma morte violenta, o Estado, ao tomar conhecimento do fato, deve iniciar ex oficio e sem
demora, uma investigação séria, imparcial e efetiva, devendo ser realizada por todos os
meios legais disponíveis e orientada à determinação da verdade (MONTEIRO, ٢٠١٤).
Ainda, um inquérito deve ser conduzido de oficio pelo Estado, e como
podemos observar não foi o que ocorreu no caso em estudo, pois o
andamento do processo se deu por impulso dos familiares de Sétimo
Garibaldi e não do Estado Brasileiro. A corte ainda entendeu que não foram
convocadas testemunhas essenciais para esclarecer o ocorrido.
Segundo a Corte, as falhas e omissões apontadas demonstram que as
autoridades estatais não atuaram com a devida diligência nem em
consonância com as obrigações derivadas dos artigos 8.1 e 25.1 da
Convenção Americana, assim declarou, por unanimidade, que o Estado
brasileiro violou os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial
reconhecidos em tais artigos (MONTEIRO, 2014).
Diante disso foi condenado a: Dar ampla publicidade à decisão no Diário
Oficial e em jornais de circulação nacional e estadual; Buscar identificar,
julgar e, eventualmente, sancionar os autores da morte do Senhor Sétimo
Garibaldi; Investigar as eventuais falhas funcionais nas quais possam ter
incorrido os funcionários públicos a cargo do inquérito e, se for o caso,
sancioná-los; Pagar indenização à Sra. Iracema Garibaldi e filhos, a título
de danos material e imaterial, no prazo de um ano; e, restituir à Sra.
Garibaldi as custas e gastos processuais.
A sentença do caso Garibaldi demonstra a importância de um segundo
nível de proteção dos Direitos Humanos, pois o Brasil foi responsabilizado
por um órgão regional internacional, pela conduta das autoridades públicas
ao violaram direitos humanos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
I. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, foi necessária a adoção
de um efetivo sistema de proteção internacional dos direitos
humanos, capaz de responsabilizar os Estados pelas violações por
eles cometidas, ou ocorridas em seus territórios. A comunidade
internacional foi obrigada a tomar consciência de que o mundo
não precisaria ter vivenciado os horrores perpetrados pelos
nazistas, ao menos não em tão grande escala, se um sistema
174
efetivo tivesse sido adotado.
II. Diante da urgente necessidade da reconstrução dos direitos
humanos após a Segunda Guerra Mundial, pôde-se observar neste
período o surgimento de diversas organizações internacionais com
o objetivo de promover a cooperação internacional, que
culminaram na formação do Sistema Global de proteção aos
direitos humanos.
III. A atuação de um Sistema Global eficiente e eficaz de promoção,
proteção e reparação dos direitos humanos é uma exigência do
processo de internacionalização construído na história recente da
humanidade, para a salvaguarda da dignidade da pessoa humana.
IV. Nesse contexto, a Carta das Nações Unidas abriu um grande leque
de possibilidades para o contínuo desenvolvimento dos direitos
humanos em nível mundial. Pois, após a adoção da Declaração
Universal houve uma preocupação em formular tratados
internacionais com força jurídica obrigatória e vinculante, que
pudessem garantir de forma mais efetiva o exercício dos direitos e
liberdades fundamentais.
V. Paralelemente ao Sistema Global surgem os Sistemas regionais,
tendo sua importância devida as peculiaridades culturais e
históricas de cada continente, pois a implantação desses sistemas
facilita a adoção de mecanismos de controle respeitando a cultura
de todos os povos.
VI. Sobre o caso Garibaldi ficou muito claro na sentença da Corte que
na investigação de fatos que violem direitos humanos não pode
um Estado-parte alegar a presença de obstáculos internos, tais
como a falta de infraestrutura ou de pessoal. Carências de tal
espécie não excluem a sua responsabilidade internacional. Ainda,
é inegável que graves falhas e demoras relacionadas à apuração
dos fatos, que afetem vítimas pertencentes a um grupo vulnerável,
propiciam a repetição crônica das violações de direitos humanos.
VII. Apesar de o fortalecimento da rede de proteção institucional
internacional dos direitos humanos ser um processo lento e
gradual, até mesmo na consciência crítica da comunidade jurídica
atuante, a cada recomendação, ou decisão proferida pela Corte
internacional, faz com que os Estados ao menos avaliem se é
175
recompensador permanecer na prática de violações, pois
certamente a simples divulgação dos casos já representa
constrangimento perante a comunidade internacional.
VIII. O que resta evidente com o presente estudo, é a importância de
um segundo nível de proteção aos direitos humanos, seja regional
ou global. A certeza de que ainda existe uma esperança para as
violações aos direitos humanos não julgadas, ignoradas ou
julgadas acobertadas pela injustiça no plano doméstico dos
estados. A certeza de que o indivíduo, enquanto sujeito de direito
em âmbito internacional, tem ao seu alcance uma segunda opção
para fazer valer seus direitos fundamentais, consagrados em
Tratados internacionais, direitos estes garantidos a todos os
humanos, pura e simplesmente pela condição de humanidade que
lhes pertence.
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<http://www.infoescola.com/historia/liga-das-nacoes/> Acesso em:
13/08/2016.
WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Sistemas Regionais de
Direitos Humanos: perspectivas diversas. 1ª ed. Santa Cruz do Sul,
Essere nel Mondo, 2015.
177
O FIM DO SILÊNCIO DOS INOCENTES: A
CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DA
PESSOA COM DEFICIÊNCIA APÓS O ADVENTO DA
LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO
Alan Felipe Provin75
RESUMO
O presente artigo explora a aplicação da Lei Brasileira de Inclusão,
objetivando analisar as consequências jurídicas e sociais das suas
disposições, apresentando como problema de pesquisa: as inovações
apresentadas consolidam a tutela aos direitos humanos das pessoas
com deficiência? Para solução, o trabalho estruturou-se em três
capítulos: parte-se do estudo dos direitos humanos e sua ligação com a
democracia; em seguida, foram analisadas as inovações apresentadas
pela Lei 13.146/15, para, por fim, realizar uma análise da nova tutela
aos direitos humanos para as pessoas com deficiência. A investigação
ocorreu pela metodologia de lógica indutiva sob a pesquisa
bibliográfica.
Palavras chave: direitos humanos; estatuto da pessoa com deficiência;
democracia.
1 INTRODUÇÃO
As pessoas com deficiência sempre foram consideradas por um
sistema milenar, influenciado pelo catolicismo, como incapazes. A
teoria das incapacidades classificava as pessoas de acordo com suas
aptidões físicas e mentais, para lhes atribuir direitos ou tutelas
específicas de proteção. Assim, as pessoas que se enquadrassem em
casos de incapacidade de acordo com a lei substantiva, não estavam
aptas, igualmente, a terem participação civil e política plena. A vida de
cada uma delas estava limitada aos ditames da lei.
178
Nesse contexto, surge a Lei nº 13.146/15, intitulada como Lei
Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (ou Estatuto da
Pessoa com Deficiência), que não teve uma recepção muito positiva
por parte dos juristas brasileiros, dada a “preocupação” com a
“proteção” das pessoas portadoras de deficiência face os novos
regramentos jurídicos que lhes servem de apoio.
O presente artigo, dessa forma, explora a aplicação da Convenção
Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, ratificada e
promulgada no Brasil com força de emenda constitucional, e da
consequente edição da Lei nº 13.146/15, no ordenamento jurídico
pátrio, tendo como pressuposto de pesquisa o ato de legislar sobre os
direitos das minorias e a deficiência do próprio sistema quando estas
não participam dos processos que lhes conferem direitos.
Com base nisso, questiona-se se de fato as preocupações levantadas
pelos juristas merecem prosperar. Em outras palavras, pergunta-se: as
inovações apresentadas pelos regramentos normativos mencionados
alhures realizam de fato a tutela aos direitos humanos das pessoas com
deficiência?
Dessa forma, os objetivos da pesquisa podem ser resumidos em
analisar as alterações normativas, de forma a reconhecer a plenitude da
dignidade da pessoa humana, e, além disso, o direito de viver
dignamente, àqueles que sempre foram silenciados pela legislação,
cujas escolhas e premissas baseavam-se em concepções familiares
muitas vezes esculpidas no preconceito e desprezo, correlacionando a
consecução e primazia dos direitos humanos, de forma a fortalecer a
participação das pessoas com deficiência, colocando-as como sujeitos
de direito que devem ser protegidos pelo Estado e instituições
democráticas, sem, contudo, privar-lhes o direito à vida plena.
Para contorno e solução da problemática proposta, no primeiro
capítulo, será discorrido acerca do casamento entre a democracia e os
direitos humanos, com base nos tratados internacionais, objetivando
averiguar a aplicação do princípio da dignidade humana como bomba
de impulso para que a inclusão de todas as pessoas na sociedade seja
concretizada, as quais podem, assim, não somente ser, mas sentir-se
pessoas.
179
A partir daí, no segundo capítulo, far-se-á uma análise das
principais alterações no ordenamento jurídico brasileiro em
decorrência da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa
com Deficiência e do Estatuto da Pessoa com Deficiência, destacando
os pontos que foram objeto do caos institucional na comunidade
jurídica, explicitando o lado humano e as justificativas para as
mudanças, principalmente no âmbito da teoria das incapacidades, que
teve como consequência a reformulação dos arts. 3º e 4º do Código
Civil Brasileiro.
Por fim, o terceiro capítulo abordará a busca da igualdade material
das pessoas com deficiência, encerrando o silêncio que lhes era
imposto, em virtude da tentativa de acessibilidade de direito que se
consolida com os novos regramentos normativos, partindo-se do
estudo dos direitos humanos como base para a concretização da
democracia das pessoas que se encontram, por fatores físicos ou
mentais, com dificuldades para alcançar a igualdade material almejada
pela Constituição.
Quanto à metodologia empregada no artigo científico, este se
realizou pela base lógica indutiva76, e foram utilizadas as Técnicas do
Referente77, da Categoria78, do Conceito Operacional79 e da Pesquisa
Bibliográfica80.
2 O CASAMENTO ENTRE OS DIREITOS HUMANOS E
A DEMOCRACIA
Com o reconhecimento pela sociedade de que o homem (lato sensu)
teria a capacidade de eliminar a própria existência da face da Terra,
diversos tratados de direitos humanos vieram à baila desde o século
passado, principalmente após a Segunda Guerra Mundial.
As garantias e direitos internacionalmente reconhecidos por esses
tratados transcendem às normas que até então eram assuntos internos
de alguns dos Estados signatários apenas.
A preocupação com a tutela da integridade física, moral e política
das pessoas resulta, então, da concepção de que o descaso e
desrespeito aos direitos humanos já foram capazes de atos bárbaros, e
180
que seria necessária a prática de determinadas posturas institucionais
para a criação de um mundo de justiça, paz dignidade.
O processo de democratização e inclusão social, dessa forma, parte
do reconhecimento por essas convenções internacionais e dos
organismos internos dos respectivos Estados-parte de que os seres
humanos têm o direito de ser reconhecidos como tais, nas mais
diversas dimensões da dignidade da pessoa humana.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos - DUDH (1948), em
seus arts. VI e XXI, preconiza que “todo ser humano tem direito de
ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”, e
“todo ser humano tem o direito de fazer parte no governo de seu país
diretamente ou por intermédio de representantes livremente
escolhidos”, respectivamente.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos surge como uma
representação da síntese do passado e uma inspiração para o futuro, em
busca de mudanças. (OLIVEIRA, 2007, p. 364)
Assim, os direitos humanos potencializam o enraizamento de
concepções individuais e coletivas como padrão de relações sociais,
transcendendo nas fontes do direito e nas formas de resolução de
conflitos, buscando a transnacionalização de ações e agentes, a
concepção de dignidade da pessoa humana e civilidade, bem como o
alcance de uma democracia inclusiva. (KOERNER, 2003, p. 153)
Nas Américas, a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos
(também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica), em 1969,
veio reafirmar a importância dos direitos humanos na sociedade
americana. Em seu preâmbulo, já menciona que a Convenção tem
como propósito “consolidar neste Continente, dentro do quadro das
instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça
pessoal, fundado no respeito dos direitos essenciais do homem”.
Ainda, continua narrando que “só pode ser realizado o ideal do ser
humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas condições
que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos,
sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos”.
No âmbito interno de qualquer Estado, só é possível falar em
concretização dos direitos humanos, quando ele mesmo exerce, de
fato, um papel democrático.
181
Como explana Oliveira (2007, p. 363), “não é possível enxergar a
categoria de cidadão naquele que não dispõe da própria dignidade, de
uma vida digna”.
O direito de participação está no centro dos direitos humanos.
[...] Na sua essência, a democracia está fortemente relacionada com os princípios de
direitos humanos e não pode funcionar sem garantir o total respeito e proteção da
dignidade humana. Para além da participação e representação, também está
relacionada com a inclusão, entendida enquanto direito a ser totalmente incluído na
vida cívica da comunidade, da região e do país de cada um. Embora o exercício do
direito a ser incluído e a participar esteja à discrição do próprio cidadão, o direito não
lhe pode ser negado. (GOMES; MOREIRA, 2012, p. 441-442)
Segundo Dahal (2001, p-61-62), há de se ressaltar que que a
democracia não é apenas um ato de governar, mas sim um sistema
preponderantemente de direitos, uma vez que estes são elementos
fundamentais nas instituições políticas democráticas. Os direitos são os
tijolos essenciais para a construção de um processo de governo
democrático.
Ainda que seja possível considerar a democracia como um conjunto
de regras que possibilitam estabelecer quem está autorizado a tomar
decisões em nome da coletividade e quais os procedimentos para isso,
não se pode olvidar do fato que, ainda assim, as decisões são tomadas
por indivíduos, e não pelo grupo como tal. (BOBBIO, 1986, p. 18)
Assim, no processo político, as decisões são tomadas com base em
representantes do povo, que, por muitas vezes, não compreendem ou
não possuem vivência com as minorias, que acabam sendo
marginalizadas por falta de força ativa no debate.
Dahal (2001, p. 64) ainda afirma que além de todos os direitos,
liberdades e oportunidades necessários para um governo ser
considerado democrático, os cidadãos devem gozar de uma série de
liberdades ainda mais extensa, por contribuir para a autonomia moral,
para o julgamento e para uma vida digna.
Deve-se ter em consideração que a dignidade do ser humano
enquanto membro de uma sociedade está inserida num contexto
político com grandes injustiças sociais. Para que ele tenha direitos e
possa exercê-los, é indispensável que seja reconhecido e tratado como
182
pessoa, respeitando a sua vida, e sua dignidade. (OLIVEIRA, 2007, p.
363)
Essa participação, contudo, depende de um efetivo processo de
inclusão. Um processo social que atribui a todos esses sujeitos o
direito de voz, de ser ouvido, de ser cidadão. Vale lembrar que por
mais que ainda existam preconceitos, até alguns anos atrás, os negros e
mulheres não eram detentores de direitos plenos em comparação aos
homens brancos.
Farias, Cunha e Pinto (2016, p. 20) complementam acertadamente
que os direitos humanos são caracterizados pela universalidade e
indivisibilidade. Universais, pois atingem todos os seres humanos,
bastando apenas o nascimento da pessoa para isso, independentemente
de quaisquer outras classificações que possam lhe ser atribuídas.
Indivisíveis, pois criam um vínculo entre os direitos civis e políticos
aos culturais, econômicos e sociais.
Para satisfazer as exigências da democracia, torna-se necessário que
os direitos nela compreendidos realmente sejam cumpridos, e, na
prática, devem estar à disposição dos cidadãos. Se não estiverem, por
mais que se auto intitulem o contrário, os governos serão considerados
não democráticos. (DAHAL, 2001, p. 62)
O que acontece agora é que o processo de democratização, ou seja, o processo de
expansão do poder ascendente, está se estendendo da esfera das relações políticas, das
relações nas quais o indivíduo é considerado em seu papel de cidadão, para a esfera
das relações sociais, onde o indivíduo é considerado na variedade de seus status e de
seus papéis específicos [...] (BOBBIO, 1986, p. 54)
Conforme explana Melim (2015, p. 63), há de se entender que o
direito não está unicamente nos textos jurídicos, que são mera tinta em
papel. O direito necessita de uma presença, de uma cura, para que
então seja considerado um ser jurídico. A interpretação jurídica, assim,
deve se dar a partir da compreensão do direito como uma cura.
É possível dizer que todos ou quase todos querem determinadas
coisas ou direitos, seja sobrevivência, alimento, saúde, amor, respeito,
família, lazer, entre outras. Também é possível dizer que,
provavelmente, muitas das pessoas anseiam coisas diferentes umas das
outras. As pessoas, assim, buscam por oportunidades de moldar as suas
vidas conforme os seus próprios objetivos, preferências,
183
compromissos, convicções, gostos ou valores. Nesse contexto, a
democracia protege essa liberdade de escolha e essa oportunidade
melhor que qualquer sistema político alternativo que já tenha sido
criado. Apenas um governo democrático é capaz de proporcionar
oportunidades máximas para as pessoas exercitarem a liberdade de
autodeterminação, ou seja: de viverem sob as leis de sua própria
escolha. (DAHL, ٢٠٠١, p. ٦٦-٦٥).
A luta pelo reconhecimento de direitos resulta num processo de
formulação pública de problemas para que haja, assim, uma resposta
política. Os direitos reconhecidos, assim, acabam por validar
conhecimentos determinados sobre a realidade da sociedade a que se
aplicam, preconizando por instrumentos e procedimentos adequados
para sua efetivação. Logo, a declaração de um direito acaba por
reconhecer a carência de um bem ou serviço que deve ser suprido por
alguém, em geral, por uma autoridade pública. (KOERNER, 2003, p.
151)
Ao se elaborar normas ou se tratar de questões de igualdade e
desigualdade, deve-se ter em mente que as pessoas são diferentes,
singularmente, mas iguais em um geral. Iguais, pois todas merecem o
direito de vida, amor, liberdade, felicidade e outros interesses
fundamentais. Diferentes, pois a cada uma devem ser oportunizados
meios para que alcancem esses direitos, de acordo com suas
particularidades. É o reconhecimento da igualdade formal e a
consolidação da igualdade material.
Assim, os direitos humanos não são apenas um elemento
instrumental e estratégico, mas são centrais ao debate político em uma
sociedade democrática. As reações e as demandas dos setores
marginalizados acabam encontrando amparo nos direitos humanos,
propiciando a formulação de normas comuns e discussão pública das
razões que justificam suas pretensões normativas. (KOERNER, 2003,
p. 152)
Cabe salientar que da forma que se trata a democracia neste
trabalho não se pretende limitá-la ao direito ao voto, mas sim à
participação pública e civil como um todo.
A democracia depende do interesse e da ativa participação dos seus
beneficiários. Ser informado e ter acesso ao conhecimento é requisito
184
para uma participação útil no sistema democrático. (GOMES;
MOREIRA, 2012, p. 442)
Logo, a partir do momento que minorias (que representam uma
massiva parcela da população) alcançam o direito de participação,
direito de serem ouvidas, parte-se para um estágio superior de
democracia.
Nessa seara, situam-se as pessoas com deficiência. A partir de
agora, adentra-se nos novos direitos que lhes foram atribuídos pelas
normas em debate, para melhor compreensão deste capítulo.
3 A LEI Nº 13.146/15 E A INSTAURAÇÃO DO CAOS
Em 30 de março de 2007, na cidade de Nova Iorque, foi aprovada a
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº
186/2008, e promulgada pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de
2009.
O Brasil a aprovou nos termos do art. 5º, §3º, da Constituição, que
prevê que os “tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional,
em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros,
serão equivalentes às emendas constitucionais”, tornando-se o
primeiro, e por enquanto o único, tratado internacional a integrar o
ordenamento pátrio com status de emenda constitucional.
Segundo o Ministro Edson Fachin (2015), estando a Convenção
abraçada pelo art. 5º, § 3º, da Constituição, reforça-se o compromisso
internacional da República com a defesa dos direitos humanos,
compondo o bloco de constitucionalidade que funda o ordenamento
jurídico pátrio.
Dentre as motivações da Convenção, destaca-se que foi reconhecida
“a dignidade e o valor inerentes e os direitos iguais e alienáveis de
todos os membros da família humana como o fundamento da
liberdade, da justiça e da paz do mundo”, reafirmada a
“universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a inter-relação
de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como a
necessidade de garantir que todas as pessoas com deficiência os
185
exerçam plenamente, sem discriminação”, preocupados que “as
pessoas com deficiência continuam a enfrentar barreiras contra sua
participação como membros iguais da sociedade e violações de seus
direitos humanos em todas as partes do mundo”, e considerado que
essas mesmas pessoas “devem ter a oportunidade de participar
ativamente das decisões relativas a programas e políticas, inclusive as
que lhe dizem respeito diretamente”.
Com base nisso, em 06 de julho de 2015, foi publicada a Lei nº
13.146, com vacatio legis de 180 (cento e oitenta) dias, estabelecendo
em seu art. 1º que fica “instituída a Lei Brasileira de Inclusão da
Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência),
destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o
exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com
deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”, reiterando, em
seu parágrafo único, que a lei tem como fundamento a Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
Facultativo, ratificados pelos instrumentos normativos internos
mencionados alhures.
Ou seja, carecem de fundamento as críticas levantadas por muitos
juristas, que julgaram o Congresso Nacional pela elaboração de uma
lei completamente incongruente, com consequências devastadoras,
colocando em chamas um instituto de capacidades em vigor e que
sempre funcionou sem maiores problemas.
Frisa-se, novamente, que a lei em questão não é uma inovação ou
invenção brasileira. A Lei 13.146/2015 reflete uma adequação
nacional ao cumprimento da Convenção Internacional. Ainda, a
Convenção já está em vigor no Brasil desde a sua promulgação pelo
Decreto nº 6.949/2009, repetindo-se o seu status de Emenda à
Constituição. Em miúdos, a Constituição estava sendo desrespeitada
desde 2009. Desrespeitar as normas da Convenção, seria desrespeitar a
própria Constituição.
O Estatuto, então, vem regulamentar a aplicação dos instrumentos
de inclusão presentes na Convenção, de forma a dissipar as diferenças
de tratamento aos seus tutelados, que, preconceituosamente, foram
preteridos em diversos direitos.
186
De acordo com o art. 1º da Convenção e art. 2º do Estatuto,
considera-se pessoa com deficiência toda aquela que possua
impedimento de longo prazo de qualquer natureza (física, sensorial,
intelectual ou mental), que possa acarretar em obstrução na
participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições
com outras pessoas.
De qualquer sorte, não é possível afirmar que a Convenção ou o
Estatuto sejam os primeiros regramentos vigentes no país que versem a
proteção da pessoa com deficiência, uma vez que já era possível
visualizar a Lei nº 7.853/1989 e seu Decreto Regulamentador nº
3.298/1999, dentre outros instrumentos normativos. Contudo, a
Convenção, neste momento, surge como inovadora em diversos
institutos do direito, em uma tentativa de tornar realmente eficaz a
inclusão das pessoas portadoras de deficiência na sociedade.
Para isso, a lei prevê, agora, diversas formas para refutar e punir a
prática de qualquer preconceito contra seus tutelados.
Dentre as mudanças, diversas delas se apresentaram no sentido de
possibilitar acessibilidade e espaços adequados aos portadores de
deficiência, como foi o caso do julgado mencionado. Sem reduzir-lhes
a importância, destacar-se-ão, neste trabalho, alguns pontos
relacionados às alterações das capacidades atinentes aos que possuem
especial necessidade cognitiva, mental ou intelectual, uma vez que
ensejaram as maiores polêmicas no seio jurídico.
A teoria das incapacidades surge com uma nova roupagem. De
acordo com o art. 12 da Convenção, os Estados membros deverão
reconhecer “que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal
em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os
aspectos da vida”, tomando as “medidas apropriadas para prover o
acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no
exercício de sua capacidade legal”, o que é reproduzido, em termos
muito semelhantes, no art. 84 do Estatuto.
Com base nisso, o Estatuto modificou os arts. 3º e 4º do Código
Civil Brasileiro, que possuíam a seguinte redação:
Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou
deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir
sua vontade. Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os
187
ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem
desenvolvimento mental completo; II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem
exprimir sua vontade; IV - os pródigos. (Grifei)
E passaram a ter o seguinte teor:
Art. 3o
São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de ١٦ (dezesseis) anos. Art. 4o São incapazes,
relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais e os viciados em
tóxico; III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; IV - os pródigos. (Grifei)
Primeiramente, vale lembrar, novamente, que a exigência para
reconhecimento da capacidade plena das pessoas decorreu do próprio
texto da Convenção, aprovado com status de Emenda à Constituição.
Ou seja, caso a Lei Brasileira de Inclusão não procedesse dessa forma,
incorreria em inconstitucionalidade e violação ao tratado internacional.
Logo, descabidas neste momento as discussões acerca do
posicionamento legislativo brasileiro quando da elaboração da Lei
13.146/15.
Segundo, denota-se que a redação primitiva do Código Civil
apresentava demasiada carga preconceituosa. Bastava uma pessoa ser
portadora de deficiência, não possuir o desenvolvimento mental
completo ou possuir o discernimento reduzido para que fosse
considerada incapaz (absoluta ou relativamente, a depender do caso).
Ou seja, o critério nunca se baseou de fato nas capacidades da
pessoa, e sim no seu porte ou não de algum distúrbio genético mental
ou intelectual, que lhe levasse ao conceito de “deficiente”.
Com a nova redação que lhes foi conferida, a pessoa com
deficiência deixa de ser incapaz por esse simples fato, alterando
sobremaneira a teoria das incapacidades consagrada pelo Código Civil
de 2002, divorciando os conceitos de incapacidade e de pessoa com
deficiência. Assim, não há mais, efetivamente, uma relação umbilical e
preconceituosa entre a deficiência e incapacidade para os atos da vida
civil. Isso pois uma pessoa com deficiência pode não sofrer qualquer
restrição à possibilidade de expressar as suas vontades e preferências.
(FARIAS; CUNHA; PINTO, 2016, p. 308).
Logo, com a atual redação, apenas as pessoas que não possam
exprimir sua vontade, seja por deficiência ou não (frisa-se:
independente da deficiência), serão consideradas relativamente
188
incapazes, mantendo a incapacidade absoluta como causa
exclusivamente etária para os casos do Código Civil, e de condição
étnica, para os silvícolas, na forma do Estatuto do Índio (Lei 6.001/73).
É a possibilidade de integração dos relativamente incapazes aos atos
que lhe dizem respeito.
Das novas disposições implantadas pelo Estatuto, possivelmente a
alteração da teoria das capacidades que tem gerado maior polêmica,
dada a falta de compreensão, em um primeiro momento, do caráter
social e inclusivo da medida.
Atreladas às preocupações, está a redação do art. 83 da mencionada
lei, que esculpe que “os serviços notariais e de registro não podem
negar ou criar óbices ou condições diferenciadas à prestação de seus
serviços em razão de deficiência do solicitante, devendo reconhecer
sua capacidade legal plena, garantida a acessibilidade”, informando em
seu parágrafo único que tal prática considerar-se-á discriminação em
razão da deficiência.
Os responsáveis pelas serventias extrajudiciais, quando da leitura do
mencionado dispositivo, chegaram a acreditar na obrigação da
lavratura de qualquer ato para qualquer pessoa, independentemente da
sua capacidade, violando os requisitos básicos do ato notarial, de
encontro ao art. 215, §1º, II, do Código Civil.
Contudo, ressalta-se novamente que a intenção da norma é
desatrelar o instituto da capacidade com a situação fática de
deficiência do usuário do serviço. Logo, em razão da deficiência, não
podem ser opostos óbices à lavratura dos atos, uma vez que deficiência
não é sinônimo de incapacidade. Aos portadores dessas necessidades,
deve-se reconhecer capacidade plena, conforme art. 83 do Estatuto, e
3º e 4º da lei substantiva civil. Contudo, a recusa é justificada se
baseada na falta de capacidade de manifestação de vontade,
independentemente de ser a pessoa portadora de deficiência ou não.
Em prosseguimento, pelo art. 6º do Estatuto, a deficiência não pode
afetar a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para constituir
vínculos de família, seja pelo casamento ou união estável, direito de
reprodução e escolha da melhor forma de planejamento familiar,
podendo exercer guarda, curatela, tutela e proceder à adoção. Com
isso, o art. 85 complementa afirmando que a curatela se tornou medida
189
extraordinária e afetará tão somente os atos relacionados aos direitos
de natureza patrimonial. Ou seja, as questões existenciais e que
envolvam questões atinentes ao corpo, liberdade e família do
curatelado, por exemplo, não podem ser reprimidas ou escolhidas pelo
curador.
Já que deficiência não afeta a capacidade civil da pessoa (art. 6º),
não se justifica assim, por si, a curatela. (FREIRE; CUNHA, 2016, p.
791)
Equivocam-se aqueles que afirmam que o instituto da interdição se
esvaziou, vez que não mais presentes os incapazes do art. 3º, bem
como dada a revogação dos artigos 1.768 a 1.773 do Código Civil, que
previam regras gerais para o procedimento. Acontece que o Estatuto
alterou a redação desses artigos, que, contudo, já estavam
comprometidos à extinção, pois o Código de Processo Civil, publicado
em 16 de março de 2015 e com vacatio legis de um ano, previu a sua
revogação, reproduzindo-os em seus arts. 747 e seguintes. Assim, em
uma tentativa infeliz de adequação do Código Civil ao Estatuto, passou
despercebido ao legislador que a publicação e a entrada em vigor deste
instrumento ocorreram entre as datas de publicação e a entrada em
vigor do Novo CPC, que acabou revogando as novas normas, que
vigoraram tão somente por três meses.
Assim, a interdição existe no Novo Código de Processo Civil, de
acordo com os sujeitos a esse procedimento, conforme art. 1.767 do
Código Civil, que contém os mesmos sujeitos constantes no rol dos
relativamente incapazes do art. 4º, com exceção dos maiores de
dezesseis e menores de dezoito anos.
Ressalta-se, ainda assim, que conforme art. 755, II, do Novo CPC, o
juiz deverá considerar as características pessoais do interdito,
observando suas potencialidades, habilidades, vontades e preferências.
Considerar as potencialidades significa dizer que o curador poderá
agir de forma mais semelhante a um verdadeiro representante, nos
casos em que o incapaz não tenha qualquer condição de participar do
ato, bem como será mero assistente, com poderes maiores ou menores,
conforme as potencialidades do incapaz. (ASSIS NETO; JESUS;
MELO, 2016, p. 126).
190
Cada curatelado terá o direito de ter a sua curatela com parâmetros
de acordo com suas particularidades, sem fórmulas genéricas e neutras,
individualizando seu projeto terapêutico e regulamentando a extensão
da intervenção sobre a sua autonomia privada. (FARIAS; CUNHA;
PINTO, 2016, p. 244).
Nesse sentido, surge o procedimento de Tomada de Decisão
Apoiada (TDA), consoante art. 1.783-A do Código Civil, que visa
assegurar às pessoas com deficiência que possuam poder de
manifestação (ou seja, que não estejam enquadradas como
relativamente incapazes) a possibilidade de solicitar ao Judiciário a
nomeação de pessoas de sua confiança para o acompanhamento dos
atos da sua vida civil.
Conforme Chaves e Rosenvald (2016, p. 338), o procedimento é
destinado às pessoas com deficiência que sejam consideradas
plenamente
capazes,
podendo
produzir
atos
jurídicos
independentemente de representação ou de assistência, mas que
reconhece em si limitações no exercício do autogoverno, sem perder a
aptidão de manifestação de vontade e de se fazer compreender.
É a possibilidade de não se tomar a medida extrema de interdição. É
a relação intermediária entre as pessoas com deficiência e as que não
podem se manifestar, buscando assegurar a sua própria dignidade e
igualdade substancial.
4 O FIM DO SILÊNCIO DOS INOCENTES
Por muitos anos, a legislação brasileira omitiu a possibilidade de
manifestação de vontade das pessoas com deficiência, deixando que a
família tomasse as decisões sobre a vida dos tutelados presentes em
seu meio, chegando-se, às vezes, ao absurdo de promoverem
esterilizações para impedir a continuidade do gene, esconderem esses
membros da sociedade, trancando-os em quartos, calando seus desejos
e sentimentos.
Acaba sendo uma tarefa fácil ditar os direitos que lhe dizem
respeito. Fácil opinar, criticar ou legislar sobre um meio do qual não se
faz parte. Por muito tempo as pessoas portadoras de necessidades
191
especiais viram seus direitos sendo ditados e regrados por outras
pessoas que não as compreendiam, não faziam parte do seu meio.
Mas até que ponto realmente as pessoas consideradas como
“deficientes” assim o eram? A partir do momento que as pessoas do
meio não conseguem lhes compreender, talvez seja necessário
averiguar a existência de uma deficiência do lado receptor da
mensagem, dos sentimentos, das angústias, e não tão somente do lado
emissor.
Dessa forma, a proteção à pessoa com deficiência toma vulto como
consequência do desdobramento dos direitos humanos, importando em
verdadeira superação do modelo egoístico, em que predominava o
indivíduo, colocando-se em favor do interesse da sociedade como um
todo, incluindo aí a pessoa com deficiência, em face de sua notória
hipossuficiência, de modo a cumprir um dos fundamentos do Estado
Democrático previstos no art. 1º da CRFB/88: a dignidade da pessoa
humana. (FARIAS; CUNHA; PINTO, 2016, p. 18).
Nesse sentido, frisam-se fragmentos da Medida Cautelar na Ação
Direta de Inconstitucionalidade 5.357, do Distrito Federal, impetrada
contra dispositivos da Lei 13.146/15 que obrigaram as instituições
educacionais a adotarem procedimentos de adequação de seus
estabelecimentos e preparação docente para o ingresso e inclusão de
alunos portadores de alguma deficiência, conforme arts. 27 a 30, uma
vez que, de acordo com a Confederação Nacional dos
Estabelecimentos de Ensino – CONFENEN (requerente da ação), tais
obrigações elevariam demasiadamente os custos para as escolas, o que
levaria ao encerramento das atividades em muitas delas. A decisão,
merece um resumo quanto aos seguintes pontos:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR. LEI
13.146/2015. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. ENSINO
INCLUSIVO. CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DA
PESSOA COM DEFICIÊNCIA. INDEFERIMENTO. 1. A Convenção Internacional
sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência concretiza o princípio da igualdade
como fundamento de uma sociedade democrática que respeita a dignidade
humana. 2. À luz da Convenção e, por consequência, da própria Constituição da
República, o ensino inclusivo em todos os níveis de educação não é realidade estranha
ao ordenamento jurídico pátrio, mas sim imperativo que se põe mediante regra
explícita. 3. A Lei nº 13.146/2015 indica assumir o compromisso ético de
acolhimento e pluralidade democrática adotados pela Constituição ao exigir que
192
não apenas as escolas públicas, mas também as particulares deverão pautar sua
atuação educacional a partir de todas as facetas e potencialidades que o direito
fundamental à educação possui e que são densificadas em seu Capítulo IV. 4. Medida
cautelar indeferida. (Grifei)
Assim, a Convenção e o consequente Estatuto trouxeram o direito
de voz àqueles que por alguma violação genética foram oprimidos por
tanto tempo. Por certo que o que é novo causa certa reação negativa ou
resistência nos demais, mas essa quebra de paradigma nunca se fez tão
necessária.
O Estatuto possibilitou um leque de direitos e obrigações que
tendem a reduzir o preconceito existente na sociedade, incluindo as
pessoas com deficiência nos meios que até então as desprezavam:
obrigou a inclusão de programas de acessibilidade nas cidades
obrigadas a manter o plano diretor (art. 41, §3º, Estatuto da Cidade);
possibilitou a oitiva das pessoas com deficiência como testemunhas,
atendidas suas particularidades (art. 228, §2º, CC); a possibilidade e
oportunidade de externarem seu direito de amar, por meio do
casamento, união estável e outras formas de amor, uma vez que tratase de um contrato de natureza afetiva e existencial (art. 1.548 e 1.550,
§2º, CC), impossibilitando a anulação do casamento em virtude de
descoberta posterior de deficiência (art. 1.557, III, CC); a
obrigatoriedade de atendimento prioritário nos estabelecimentos de
saúde (art. 9º do Estatuto); a necessidade de oitiva do paciente portador
de deficiência para intervenções cirúrgicas em seu corpo (art. 11 do
Estatuto); a criminalização do preconceito, da apropriação indevida
dos bens e documentos, bem como o abandono, quando praticados
contra as pessoas a que diz respeito ao Estatuto (art. 88 e seguintes do
Estatuto), entre outras importantes medidas de inclusão..
Além do mais, possibilitou-se a participação política, como
verdadeira forma de inclusão democrática das pessoas com deficiência.
Como a incapacidade civil e política estão intrinsecamente ligadas,
a atual Carta Magna, em seu art. 15, II, dispõe que incapacidade civil
absoluta é uma causa de suspensão dos direitos políticos.
Assim, os menores de 16 anos (dezesseis anos) e os que, até então,
padeciam de alguma doença mental com sentença de interdição
declarada e não possuíam, para o legislador, o discernimento
193
necessário para a prática dos atos da vida política, não podiam votar ou
ser votados, enquanto perdurasse os efeitos da incapacidade.
(MENDES; BRANCO, 2015, p. 751-753)
Sendo a incapacidade absoluta agora restrita ao quesito etário, a
suspensão dos direitos políticos das pessoas com deficiência acabou,
as quais podem livremente votar e ser votadas, como preconizava
igualmente o art. 85, §1º do Estatuto.
O novo modelo segue timidamente as diretrizes da Classificação
Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, da
Organização Mundial da Saúde, por meio da qual a incapacidade é
considerada como consequência da interação entre a disfunção
orgânica e/ou da estrutura do corpo apresentada pelo indivíduo, a
limitação de suas atividades e a restrição na participação social, e dos
fatores ambientais que podem atuar como facilitadores ou barreiras
para o desempenho dessas atividades e da participação. (FARIAS;
BUCHALLA, 2005, p. 188).
Assim, no âmbito internacional, é possível vislumbrar que o
conceito de capacidade não tem relação direta com a pessoa e suas
aptidões, e sim com as dificuldades que encontra para se aderir ao
meio em que convive. A legislação brasileira, assim, avança nesse
patamar.
A própria Declaração dos Direitos da Pessoa com Deficiência, de
09/12/1975, já preconizava que:
As pessoas deficientes têm o direito inerente de respeito por sua dignidade humana.
As pessoas deficientes, qualquer que seja a origem, natureza e gravidade de suas
deficiências, têm os mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos da mesma
idade, o que implica, antes de tudo, o direito de desfrutar de uma vida decente, tão
normal e plena quanto possível.
Assim, acredita-se que muitas das críticas levantadas quanto às
atualizações do instituto das incapacidades devem ser revistas para que
possa haver a compreensão de que, agora, a legislação cumpriu com os
objetivos dos direitos humanos inerentes a todos. Cumpriu o tratado
internacional. Cumpriu a Constituição. Cumpriu com premissas
básicas inerentes à situação de pessoa humana que não precisariam
estar escritas em quaisquer documentos.
194
A visão conservadora deve ceder espaço à aceitação da participação
dessas pessoas na comunidade. A dignidade da pessoa humana e o
direito de viver dignamente não pode abranger tão somente aqueles
que compreendem com exatidão o que essas palavras significam.
Muito mais do que isso, as pessoas, inclusive as portadoras de
necessidades especiais, anseiam por uma vida baseada no amor e
felicidade, ainda que não saibam que nomenclatura dar isso.
Assim, quando se refere à acessibilidade, não se deve ter como base
tão somente o correto manejo dos estabelecimentos para recepção de
pessoas que necessitem de atenção especial. Muito mais que isso, deve
ser compreendida como acessibilidade aos direitos, à posição de
igualdade material, ao status já desfrutado pelas outras pessoas.
Acessibilidade a meios de integração na sociedade, que lhe assegurem
o direito de ser pessoa.
Há de se levantar, porém, que o Estatuto de fato restou impreciso
quando da mudança do instituto das incapacidades, sem se ater às
demais normas do códex civil. Além da modificação de artigos da
curatela que já haviam sido ceifados, podem ser citados como
exemplos de outros reflexos no Código Civil: a) a prescrição, de
acordo com o art. 198, I, não corre contra os incapazes de que trata o
artigo 3º do mesmo diploma, que, até então previa pessoas com
deficiência e hoje tão somente os menores de dezesseis anos. Assim, a
prescrição correrá normalmente para eles, o que pode, em alguns
casos, demonstrar um certo perigo ao seu direito de defesa. b)
Conforme art. 166, I, os atos praticados por absolutamente incapazes
são nulos, enquanto pelo art. 171, I, os atos praticados por
relativamente incapazes são anuláveis. Assim, da mesma forma que no
exemplo da prescrição, por vezes, pela falta de anulação no prazo
devido, atos “praticados” por pessoas em coma, por exemplo,
permanecerão válidos. c) Por fim, conforme art. 543 do Código Civil,
as doações para absolutamente incapazes independem de aceitação,
desde que se enquadrem como puras. Antes, as pessoas com
deficiência que fossem enquadradas como absolutamente incapazes
também estariam beneficiadas por esse dispositivo. Hoje, as que não
sejam consideradas incapazes, participarão do ato aceitando o bem que
lhes é atribuído. As que não possuam poder de manifestação, antes
195
estariam beneficiadas por aquela norma, mas hoje, contudo,
dependerão de procedimento judicial para obtenção de alvará para
aceitar o simples ato de doação pura, na forma do art. 1.748,
burocratizando o procedimento.81
Apesar desses caminhos sinuosos deixados como rastros pela
elaboração do Estatuto, que ainda podem ser objeto de adaptação,
prefere-se acreditar que, de uma forma geral, o diploma legal,
seguindo os trilhos dos direitos humanos, passou a consolidar um
papel de concretização desses direitos em um meio que até então eles
não eram valorizados. Passou a acreditar no poder do amor e da
capacidade de adequação dessas pessoas. Ou mais, passou a acreditar
que as pessoas que se encontram fora desse meio podem igualmente
amar e se adequar aos novos membros que agora farão parte do seu
dia-a-dia de maneira mais democrática e ativa.
Segundo o Ministro Edson Fachin (2015), ainda no julgamento da
ADI nº 5357:
É somente com o convívio com a diferença e com o seu necessário acolhimento que
pode haver a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, em que o bem de
todos seja promovido sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação (Art. 3º, I e IV, CRFB).
Esses instrumentos normativos carregam grande caráter social e
inclusivo, em uma tentativa de concretizar ou ao menos possibilitar o
exercício do status de pessoa, na plenitude da dignidade humana,
àqueles que viveram por tantos anos na marginalidade do preconceito
legislativo e exclusivo de uma sociedade ainda não adaptada à ideia de
aceitação de igualdade material do que lhes difere.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em virtude da pesquisa realizada, pode-se afirmar que a democracia
e os direitos humanos compõem um leque indissolúvel de
oportunidades conferidas e protegidas às pessoas de uma sociedade,
seja ela caracterizada como democrática ou não.
Com base na experiência mundial cravada em livros de história
manchados por sangue e sequelas das guerras, pode-se perceber que a
humanidade tem a capacidade de se autodestruir, e, para isso, necessita
196
de uma tutela internacional dos direitos humanos. Após a II Guerra
Mundial, principalmente, é possível visualizar o surgimento e
aprovação de diversas movimentos internacionais de direitos humanos,
como a Declaração Universal de Direitos Humanos/do Homem,
Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção
Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência.
Logo, os direitos humanos são o coração de uma sociedade
democrática, servindo como amparo para as minorias normalmente
marginalizadas da discussão política e participação civil.
Assim, os direitos humanos relativos às pessoas com deficiência
ingressam no âmbito internacional como desdobramentos da própria
dignidade da pessoa humana, como forma de consolidar os direitos dos
inocentes.
Nessa tentativa, as pessoas com deficiência tiveram a oportunidade
de receber, no âmbito nacional, a aprovação e promulgação da
Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência,
desde 2009, vindo a ser complementada pela Lei 13.146/15, o Estatuto
da Pessoa com Deficiência ou Lei Brasileira de Inclusão.
Alvo de críticas por juristas dada a mudança na teoria das
incapacidades, desvinculando o critério de capacidade com o porte de
alguma deficiência, percebe-se que a intenção dos referidos
mandamentos normativos é elogiável e merece uma atenção maior
quando da sua análise.
Em um primeiro momento, surgiram dúvidas quanto à efetividade
da consolidação dos direitos humanos das pessoas com deficiência,
colocando em pauta a desproteção gerada pela lei, discussão que foi
objeto da problemática da pesquisa.
Como resultado, há a confirmação parcial da hipótese apresentada,
de forma que apesar de existirem falhas técnicas ou consequências não
previstas quando da edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência,
este se demonstrou fundamental para o direito de vez e voz atribuídos
aos portadores de deficiência, dando-lhes maior liberdade de escolha
nas questões existenciais da própria vida, restando como exceção a
possibilidade de interdição de direitos até então tomados como regra
no ordenamento jurídico vigente.
197
A proteção estatal desses indivíduos, que sempre partiu de um
cunho minimalista e preconceituoso, com pilares no cristianismo e
revolta familiar, cede espaço ao cunho positivo apresentado pela
referida lei e tratado internacional, passando-se à necessidade de
aplicação de políticas públicas eficientes para a concretização dos
elementos de inclusão previstos no Estatuto.
As pessoas temem o que difere delas. Temem os direitos que os
outros possuirão. Teme as consequências das liberdades individuais
alheias face às suas. A Constituição surge, assim, por meio do Tratado
Internacional que é parte integrante das suas normas agora, obrigando
a inclusão e a aceitação das pessoas com deficiência na sociedade, não
mais como incapazes, mas como sujeitos de direito capazes de
interagir e decidir sobre o amor e a vida.
Os inocentes, sempre calados, tiveram o direito de voz, e agora
possuem o direito, finalmente, de ser e se sentir humanos.
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199
A PROBLEMÁTICA DOS REFUGIADOS DO SUDÃO
DO SUL EM UMA BOA MENTIRA: O CINEMA COMO
FORMA DE SENSIBILIZAÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS82
Andy Portella Battezini83
Danielli Cristine Segalin84
Lucas Jacques da Silva85
RESUMO
O presente estudo tem como objetivo analisar a problemática dos
refugiados do Sudão do Sul por meio do filme Uma Boa Mentira. Para
tanto, busca-se (i) evidenciar o papel sensibilizador e humanitário do
cinema, (ii) contrastar o contexto histórico que declinou a guerra no
Sudão do Sul e (iii) retratar a situação envolvendo a migração e a
violação dos direitos humanos com base na narrativa mecânica Uma
boa Mentira. Dentro deste cenário, a escolha do tema justifica-se em
razão da necessidade de um novo olhar para as situações concretas
com as quais o Direito deve lidar. Uma dessas situações é o refúgio.
Para realização deste ensaio trabalhar-se-á com o método dedutivo, e,
como instrumento procedimental a investigação bibliográfica de textos
doutrinários, meios eletrônicos e coleções particulares.
Palavras-chave: Direitos Humanos; Cinema; Refugiados; Guerra Civil;
Dignidade.
1 INTRODUÇÃO
O artigo tem por objeto a categoria jurídica e política dos refugiados
a nível de Direito Internacional, especificamente os refugiados do
Sudão do Sul. Considerando a importância atual do tema dos
refugiados, o artigo objetiva analisar os refugiados civis do Sudão do
Sul, apresentando a temática de pesquisa por meio do filme Uma boa
mentira, isto é, a partir da relação entre o Direito e o Cinema.
200
Parte-se do princípio que o Cinema, enquanto Arte, consegue
alcançar o ser humano e humanizá-lo, apresentando-se como uma
interesecção acadêmica e humanizadora com o Direito. Justifica-se a
escolha do tema em razão da necessidade de um novo olhar para as
situações concretas com as quais o Direito deve lidar. Uma dessas
situações é o refúgio.
Além das migrações voluntárias de pessoas que buscam acesso aos
bens materiais e imateriais que perfazem uma vida digna, são
aproximadamente 52 milhões de pessoas refugiadas por motivos de
perseguição ou guerras civis. São pessoas que tiveram que abandonar
seus lares, cidades e, muitas vezes, as bordas territoriais de seus
Estados-nação para procurar dignidade.
Os refugiados, deslocados internos e externos, implicam em uma
responsabilidade do Direito e do ser humano. Uma das formas de se
alcançar essa responsabilidade é pela análise das situações concretas
de violação de Direitos Humanos. Este artigo busca analisar a situação
concreta dos refugiados do Sudão do Sul, tomando como ponto de
partida o Cinema.
Nesse sentido, utiliza-se o filme Uma boa mentira, que narra a
guerra civil no Sudão, em 1983, dividindo o país entre norte e sul. A
guerra, motivada por recursos e por religião, destruiu diversas aldeias,
por meio do governo e de milicias. Ela durou mais de 21 anos e deixou
aproximadamente dois milhões de civis mortos no sul e mais de quatro
milhões de refugiados e deslocados internos.
O filme Uma Boa Mentira (2004) escrito por Margaret Nagle e
dirigido por Philippe Falardeau, retrata a história de crianças do Sudão
do Sul que são obrigadas a fugir das aldeias aonde moravam após
perderem todos seus familiares. Elas se deslocam mais de 1000km até
chegar a um campo de refugiados na Quênia. Durante esse trajeto,
passam por inúmeras dificuldades, como a fome, a sede e as doenças.
O filme também retrata a ida deles, 13 anos depois, para os Estados
Unidos, em busca de emprego e de condições de vida melhor. Diante
disso, o filme Uma Boa Mentira é o ponto de partida para a análise
concreta das situações de refúgio, traçando uma investigação do direito
com o cinema, trazendo pontos do mundo jurídico para o mundo
artistico.
201
Por meio do método dedutivo, em primeiro lugar, será investigada a
importância do cinema para a sensibilização do humano, bem como
para a compreensão dos direitos humanos. Sequencialmente, será
analisada a situação específica retratada pelo filme objeto deste artigo,
abordando a problemática dos refugiados do Sudão do Sul.
Finalmente, será analisada a problemática dos refugiados no mundo
contemporâneo.
2 CINEMA E SENSIBILIZAÇÃO DO DIREITO
Os vários modos de comunicação e expressão alcançados com o
desenvolvimento das mídias tecnológicas proporcionaram uma nova
dimensão não apenas no campo artístico e linguístico, mas, também,
nas reais condições de sensibilizar os seres humanos. E o cinema, visto
como a reprodução da arte através de sons, imagens, técnicas
ficcionistas demonstra-se como importante aliado para a reflexão de
assuntos jurídicos, principalmente se avaliado a partir de um viés
humanístico, considerando que a própria história do cinema representa
em seu ambiente a emotividade (SOUZA; NASCIMENTO, 2011).
Historicamente, a imagem em movimento, definida como o cinema,
foi desenvolvida pelos irmãos Auguste e Louis Lumière em uma
apresentação pública no Salão Grand Café para uma plateia de
aproximadamente trinta pessoas na cidade de Paris, na França.
Todavia, apesar do cinematógrafo ter sido criado por Léon Bouly em
1892, pode-se dizer que foram os irmãos Lumière, dois anos mais
tarde, em 1895, que elevaram a câmera para indústria de
entretenimento (MODRO, 2009).
Curiosamente, entre os filmes exibidos naquela ocasião pelos
irmãos Lumière, destaca-se para a metragem “A chegada do trem à
estação de Lyon”, que provocou uma reação inesperada no público,
pois diante da novidade apresentada, muitos espectadores acreditaram
que a imagem transmitida do trem estava realmente partindo para suas
direções, fazendo com que a multidão se afasta de maneira
assombrosa, já que estavam crentes que poderiam ser atropelados. A
sequência de fotografias em movimento foi capaz de despertar o
inimaginável nos telespectadores (ALMEIDA, 2009).
202
Numa visão disciplinar, o Direito e a arte do cinema correlacionamse, pois, ambos fenômenos são dinâmicos, e assim como o Direito, o
cinema também busca alcançar determinados fins com o intuito de
transmitir no agente uma mudança comportamental, e assim encontrar
uma resposta para determinados fenômenos no campo jurídico-social.
Isso além de repensar a forma de fazer Direito, também possui
consequências na esfera de aplicação do princípio da dignidade da
pessoa humana, conforme elucida Souza e Nascimento (2011). A
justifica sustenta-se acerca da condição e humana e sua perplexidade,
que muitas das vezes só pode ser levada ao conhecimento popular, por
intermédio de narrativas audiovisuais.
Ainda, em sentido semelhante, Lacerda (2007) preconiza que o” uso
de cinema no ensino jurídico pode apresentar diferentes finalidades:
promover a sensibilização, perceber o papel social da profissão,
transmitir e fixar informações, capacitar a expressividade da
argumentação, pensar e refletir”.
Nesse sentido, denota-se que o cinema é um modo eficaz para
sensibilizar o ser humano e próprio direito formal. Evidentemente,
nem sempre as narrativas mecânicas irão proporcionar ensinamentos
ou reflexões acerca das circunstâncias e exigências dos integrantes de
uma comunidade, assim como prescreve o discurso jurídico, mas,
existem vários caminhos que podem levar o cinema ao ideal previsto
por Kant, ou seja, a necessidade de colocar-se no lugar do outro e ser
coerente com si próprio, ou ainda, segundo de Nancy Pesky e Beverly
West:
Como bem sabem aqueles que buscam a verdade e as aspirações da alma, os filmes,
mais do que uma forma de entretenimento, são importantes instrumentos que podem
nos inspirar a crescer, nos motivar na busca de um sentido maior para a vida diária e
melhorar nosso bem-estar espiritual – e tudo através do uso criativo do controle
remoto (PESKY e WEST, 2005, p. 9).
Por esse viés é necessário observar que a combinação entre ver o
Direito como cinema não está apenas restrita a atuação do profissional
como operador de Direito limitando-se a filmes que abordam o
ambiente das tribunas, a investigação criminal ou a atuação do
advogado perante a ordem a pública. A posição do cinema enquanto
ferramenta capaz de sensibilizar o Direito e as emoções cotidianas
203
deve decorrer sob a perspectiva do indivíduo em colocar-se no lugar
do outro, identificando-se muitas das vezes com o personagem ou
reprovando a sua conduta na condição de um juízo ético-moral
transmitido através dos sentidos, ou seja, da percepção do olhar com
uma dose de emoção na alma.
Para tanto, é importante conceber que a ligação do Direito com o
cinema em sala de aula não está apenas condicionada ao espectro das
emoções e sensações. Pode-se reconhecer o cinema no processo
artístico e pedagógico, no âmago do intelecto para a formação de
profissionais pensantes capazes de interpretar de acordo com suas
experiências históricas, sociais ou culturais, fruto de uma realidade já
vivida (ROESLER, 2005). Esse processo entre conhecer e criar é uma
forma de conhecimento, muitas vezes não reparada pelo espectador
(ORTIGOZA LOPES, 2012). Tanto que por esse referencial a
condição linguística irá se manifestar mediante a expressão oral e
escrita, relacionada a percepção visual, sonora e sinestésica, a qual irá
dimensionar o conhecimento por meio do movimento. Tais habilidades
tem como propósito aproximar da esfera da comunicação, da arte, do
lúdico e da criatividade, conforme ensina de Roesler (2005).
No ambiente jurídico, Lacerda (2007) elenca as principais
finalidades que devem auxiliar na estratégia pedagógica a fim de
alcançar os objetivos almejados no processo de formação utilizando-se
do cinema em sala de aula, quais sejam: sensibilizar os alunos para
uma atitude diante da realidade, ajudar os alunos a perceber qual o
papel social da profissão que estão começando a aprender, transmitir,
compreender e fixar uma certa dose de informação básica sobre temas
jurídicos, exercitar a capacidade de expressão, poder de síntese e
habilidade de argumentação, pensar, refletir. Na proposta do autor,
busca-se desenvolver uma atitude intelectual e adequada as exigências
atuais, sob o fundamento que o pensar e o agir tradicional perdeu a sua
eficácia no aprendizado teórico.
Este poder de expressar a linguagem e o comportamento humano
reporta-se na potencialidade em conceber o Direito enquanto sistema
de normas e condutas composto para regular as relações sociais,pois de
acordo com Bourdieu (1989)“O direito tem um poder simbólico e um
204
poder de construção o de realidades”, e, ainda, nas palavras de
Almeida:
Para tanto, a ligação do cinema com o direito deve passar necessariamente pelo
conhecimento da história do cinema, suas distintas fases de desenvolvimento e os
principais movimentos ou fases que contribuíram para a construção de sua linguagem
de modo a propiciar o desenvolvimento de uma visão crítica das obras
cinematográficas e uma reflexão sobre as questões jurídicas que provocam. Para o
jurista, a articulação da linguagem cinematográfica com a linguagem e com as
práticas jurídicas deverá conferir-lhes condições para atuação na produção de
decisões, cada vez mais inseridas na sua realidade histórica e social(ALMEIDA,
2009).
A dimensão do cinema pelo saber jurídico palpado na emoção e na
arte é um indicador dos movimentos da cultura popular. Isso importa
reconhecer que sua análise não deve ser compreendida apenas pelo
ideal estético, pois o cinema é muito mais do que a arte através da
reprodução e arranjo dos son e imagens, como preconiza
Turner(1993), mas também uma prática social presente nas mais
diversas esferas do cotidiano real ou imaginário.
Nesse contexto, verifica-se que o cinema pode servir ao estudo do
Direito, e inclusive contribuir para uma abordagem linguística,
artística e formadora de opinião para assuntos que envolvam questões
jurídica pertinentes a realidade. O cinema pode e deve ser um
concebido como um poderoso instrumento, que em conjunto com o
Direito é capaz de ampliar o olhar humano, para que perceba, além das
normas, a necessidade em repensar e solucionar os problemas que
assolam o cotidiano.
Assim, a partir da assimilação entre Direito e cinema objetiva-se
ilustrar o filme Uma Boa Mentira (2004) escrito por Margaret Nagle e
dirigido por Philippe Falardeau a fim de retratar que o cinema pode ser
um importante instrumento pedagógico na tentativa de provocar uma
reação crítica e sensibilizadora nos espectadores, como éa
problemática dos refugiados em decorrência de guerras civis.
3 A HISTÓRIA E O CINEMA: A PROBLEMÁTICA DAS
GUERRAS CIVIS SUDANESAS E O CONSEQUENTE
FLUXO MIGRATÓRIO DE REFUGIADOS
205
Compreender a situação moderna do mais recente país na história
mundial86 não se resume à simples análise dos fatos recentes e do
violento contexto que constantemente assola sua população. O
processo histórico perpassa pela ascensão, controle, derrocada e trocas
de poder no controle de tal território, sob o jugo de potências diversas
durante os séculos, imbricadas em conflitos étnicos, sociais,
econômicos e religiosos, que ainda hoje culminam na imigração e
deslocamento de povos em fuga da morte.
Moellwald (2015) descreve o processo de configuração do Sudão
do Sul num estado independente como longo e complexo, que não
pode ser avaliado senão observando a própria historicidade do Sudão
em sua totalidade e a posterior fragmentação.
Os povos que formaram a maioria da população sul-sudanesa,
maciçamente composta de africanos, de tribos denominadas Dinka,
Nuern e Shilluk (nomenclaturas ainda mantidas), apresentam registros
históricos do século XIV de ocupação das margens do Rio Nilo
Branco, onde desenvolviam atividades pastoris e agrícolas sazonais
(BREIDLID, 2014).
Ao sul na porção “[...] chamada de Equatoria, supõe-se também que
diversos povos já ali habitavam nos séculos XIV e XV, dentre eles os
avukaya, azande, baka, moru, mundu e abare” (MOELLWALD, 2015)
Atribui o autor que o contato destes povos nilóticos com o mundo
afro-islâmico, ao norte, dá-se com a consolidação do poder do Império
Turco-otomano na região do Egito, a partir de 1820, e com a superação
da região alagadiça do Nilo Branco, chamada Sudd, que até então
mantinha tal região relativamente isolada.
Paulatinamente se estabelece uma relação de colonialismo,
precedente ao imperialismo europeu, baseada no comércio
escravagista, que passa a ser enfrentada, sem sucesso, pelos povos
sulistas na década de 1830 (BREIDLID, 2014).
Ao fim do século XIX tensões econômicas, políticas, além da
expansão imperialista europeia conduzem à influência hegemônica
inglesa na região. O Sudão passa a ser administrado por um
condomínio anglo-egípcio, com sede em Cartum. Fronteiras são
firmadas através de tratados diversos com belgas, franceses e etíopes.
(MOELLWALD, 2015).
206
O condomínio empreende tentativas de controlar a porção sul da
colônia, todavia passa a enfrentar forte oposição das populações há
tempos arraigadas na localidade, com aspectos sociais e políticos
diversos do norte. Tal resistência perduraria até 1930, quando se
estabelece uma ordenança meridional de distrito fechado, “na prática
dividindo o Sudão em duas regiões administrativas separadas”
(MOELLWALD, 2015).
Os sulistas passam sem maiores envolvimentos nos períodos das
grandes guerras mundiais, haja vista o modelo de administração
fechada, ao passo que os norte-sudaneses passam a exigir
autodeterminação em relação ao Império Britânico, entre as décadas de
40 e 50 (MOELLWALD, 2015).
Em 1947, é realizada em Juba, maior centro urbano do sul, uma
reunião entre ingleses, norte e sul-sudaneses, no fito de discussão do
processo de independência do Sudão. Contudo, os representantes do
sul não são considerados, consoante se destaca dos escritos de
Marwood, inglês, governador do estado da Equatoria no período:
A política do governo sudanês em atenção ao Sudão do Sul deve estar de acordo com
o fato de que os sulistas são distintamente africanos e negroides [...]” e seu
desenvolvimento econômico-social somente poderia dar-se “[...] eventualmente unido
ao Sudão do Norte, à África Oriental, ou em parte a ambos [...]. (MARWOOD, 1947,
p. 2, tradução nossa).
Após uma série de tratativas, se inicia o processo de independência
do Sudão. De fato, foi em 1956 que o Sudão alcança sua emancipação,
trazendo na completude de seu território a porção sul, sendo então o
maior país africano em extensão territorial. Segundo Harir surge como
uma representação do “microcosmo da África” que fica entre as
fronteiras de diferentes mundos culturais – África árabe/ África
africana, África muçulmana/ África cristã e África anglofônica /África
francofônica” (HARIR, 1994, tradução nossa).
Menciona, ainda, o autor supra que tal ambiente multifacetado pôs o
país desde o momento de sua criação numa posição complicada, cuja
elite árabe dominante do norte desejava reforçar sua identificação
árabe-muçulmana, enquanto a elite sulista tencionava ser africana e
não arabizada. Esta dicotomia culminou numa guerra civil já no
primeiro ano de independência. Por meio de negociações realizadas
207
em Addis Abeba, capital da Etiópia, se encerrou em 1972 com o saldo
de um milhão de mortos e desabrigados (HARIR, 1994).
O conflito foi marcado pela presença de milícias, com atenção à
formação do movimento guerrilheiro Anya-nya87, em 1963, atuante em
conflitos, mormente na zona rural. (BREIDLID, 2014).
Nos termos do acordo de paz ao sul foi atribuída autonomia, a
língua inglesa como idioma oficial e a cidade de Juba como a capital
da região. As políticas econômicas, monetárias, educacionais, sociais,
de defesa e relações exteriores permaneceram aos auspícios de
Cartum. Duas questões restaram controversas: a primeira quanto ao
território fronteiriço de Abyei88 que seria destinado por meio de um
plebiscito, até hoje não realizado, e a segunda foi incorporação do
Anya-nya ao exército sudanês, o que foi em parte rejeitado pelos seus
próprios integrantes e pelos partidos políticos do norte
(MOELLWALD, 2015).
A década seguinte ao acordo de paz foi marcada por relativa
estabilidade, entretanto, nos dizeres de Holt e Daly apud
MOELLWALD:
A história do sul autônomo seria marcada por tensões étnico-políticas, corrupção
desenfreada e parco investimento em obras públicas na região. A má administração, a
ineficiência de uma crescente burocracia local e as consequências da alta corrupção
podem ser constatadas ao considerarmos que, entre 1972 e 1977, apenas 20 por cento
dos recursos alocados ao sul foram utilizados (HOLT e DALY apud MOELL WALD,
2015, p. 76).
Ao norte, o presidente sudanês Nimeiri labutava em conciliar
distintos interesses dos diferentes grupos componentes do país,
sufocando tentativas de golpes e pendendo aos poucos à política de
administração de caráter religioso muçulmano. Até quando em 1983,
num “movimento político insensível, justificado apenas por
conveniência [própria]” implantou a todo o país a lei islâmica Sharia,
acirrando o conflito político (HARIR, 1994, tradução nossa).
O descontentamento dos sul-sudaneses aumentava apoiado na
discordância em fatores de exploração econômica do petróleo89 e da
construção de um canal de drenagem do Sudd. Tal quadro encerra na
formação do Movimento de Liberação do Povo Sudanês – MLPS90 e
seu braço armado Exército de Liberação do Povo Sudanês – ELPS91,
208
liderados pelo dinka John Garang de Mabior. Seus objetivos
específicos de luta consistiam na autodeterminação do Sudão do Sul
(HARIR, 1994).
De acordo com Badmus (2007) o sul rebelado, a crise
socioeconômica atinente à guerra resulta na deposição de Niemeri. Um
conselho militar transicional assume o governo, entre 1985 e 1986 e se
encerra com a eleição de um governo civil. (BADMUS, 2007).
Infere o autor que governo democrático durou apenas três anos.
Infrutíferas negociações com ELPS, economia caótica e excessivos
gastos bélicos, levaram a um novo golpe militar em 1989, capitaneado
pelo General Omar Al-Bashir92.
Durante o novo período de guerra no sul o governo fez ressurgir e
armou milícias tribais, usando conflitos perenes entre grupos de
pastores, armando grupos que se envolveram em guerras étnicas e
roubo de gado. (HARIR, 1994).
O resultado negativo direto afetou sobremaneira os civis em suas
atividades rurais e agropastoris. Esbulho de posses, tomada de reféns,
alastramento de doenças entre a população e rebanhos, surgiram como
consequência da ruptura de serviços básicos. Insegurança alimentar,
aliados aos excessos por partes dos envolvidos levaram ao
deslocamento e migração da população para as cidades, agravando o
quadro, e por derradeiro, eliminando as rotas de comércio no sul.
(HARIR, 1994)
De outro flanco Gerbase e Visentini (2014) ressaltam que o ELPS
desde sua constituição apresenta rixas tribais internas. No decorrer do
conflito aplicou sobre a população métodos coercitivos de guerrilha,
no fito de forçar a união política e dominação territorial. O próprio
movimento acabou por rachar em meados da década de 90, havendo
conflito entre as facções das tribos Nuern e Dinka.
No ínterim deste conflito civil a facção Nuern, encabeçada por Riek
Machar, alinhou-se ao governo do norte, até o ano de 2002 quando
Jhon Garang e o líder Nuern, celebraram um acordo de paz e
reintegraram o ELPS (GERBASE; VISENTINI, 2014). O resultado do
conflito civis foram:
209
Mortes e deslocamentos forçados foram causados em conflitos tanto entre nortistas e
sulinos quanto entre sulinos, e também em várias das muitas regiões do Sudão, por
motivos diferentes. E para que esse tipo peculiar de necropolítica existisse - tanto a do
Estado opressor quanto a de pequenos grupos militarizados -, estiveram sempre ativos
os complexos militares mundo afora. (MOELLWALD, 2015, p. 87).
É no decorrer da segunda guerra fratricida sudanesa, no início da
década de ١٩٩٠93 que se desdobra a história dos refugiados sudaneses
abordados no filme Uma Boa Mentira. Trata-se de uma das inúmeras
histórias de civis que por tortuosos caminhos, deixaram seus lares para
salvarem suas vidas e buscarem novas oportunidades.
Dados da ONU94 indicam que durante o conflito mais dois milhões
de vidas foram perdidas, quatro milhões foram deslocados de duas
terras e mais de seiscentos mil refugiaram-se em outros países.
Os anos de 2000 chegam e a comunidade internacional,
especialmente dos Estados Unidos95, exercem pressões diplomáticas
recorrentes, que resultam num acordo de paz celebrado em 2005, entre
ELPS e o governo do Sudão. O sul recobra a autonomia, a lei islâmica
é limitada à comunidade respectiva, a divisão de rendimentos do
petróleo e um referendo para o ano de 2011 sobre uma possível
secessão são estabelecidos. (BADMUS, 2007).
Nos termos do acordo “De modo curioso [...] Omar al-Bashir
tornou-se o presidente enquanto a posição de primeiro vice-presidente
foi concedida ao M/ELPS” (BADMUS, 2007, p. 319). A morte
repentina de Jhon Garang numa queda de helicóptero96 esteve prestes a
reconduzir o país à guerra “mas, felizmente, isso foi evitado graças à
indicação de Salva Kiir como líder do M/ELPS” (BADMUS, 2007, p.
319).
Em março de 2005, com a edição da resolução 1590 do o Conselho
de Segurança, foi implementada de fato a Missão de Paz da ONU no
Sudão97, a fim de prestar suporte na implementação do acordo
compreensivo de paz entre sul e norte, facilitar a prestação de ajuda
humanitária, serviços de desminagem, proteção e promoção de direitos
humanos.
Em janeiro de 2011 a população sul-sudanesa exerceu seu direito de
autodeterminação e através de um referendo votou em maioria
esmagadora pela separação do país, seis anos após o acordo de paz
210
celebrado. Formalmente alcançou a independência em 9 de julho de
2011, “embarcando num processo de construção de um novo Estado”
(KOPPELMAN, 2012, p. 7).
Para Oliveira e Silva, apesar de haver alcançado o resultado
desejado por sua população, a longa história beligerante impôs ao novo
Estado desafios hercúleos, tocantes à:
[...]pobreza extrema e sérias deficiências de infraestrutura, até a efetivação do controle
do território pelo novo governo, [...] demarcação das fronteiras. [...] sobretudo, ao fato
de que Sul reivindica territórios que não estavam incluídos nos acordos de paz – o que
sugere o envolvimento ainda mais direto do novo país nas disputas geopolíticas por
petróleo. (OLIVEIRA; SILVA, 2011, p. 25).
Estatísticas do ano de 2010 apontam que a taxa de mortalidade
infantil de crianças abaixo de cinco anos é 108 mortes a cada 1000
nascimentos. No tocante às crianças de até 1 ano de idade é de 32 a
grupo de cada 1000. Em 99 por cento das casas combustíveis sólidos
(carvão, madeira, esterco, etc.) são utilizados para cozinhar. Apenas 2
por cento das casas possuem água encanada nos estados. Em aspectos
educacionais apenas 13 por cento das mulheres sul-sudanesas são
alfabetizadas. (SSHHS, 2010).
Economicamente o Sudão meridional possui atividades
potencialmente complementares ao norte. Entretanto a lacuna de
infraestrutura, economia agrícola de produtos tropicais, inexistência de
indústria, salvo a petrolífera, de saída para o mar, infere que a
independência política não se espraiará ao campo econômico, restando
o país ainda apoiado no norte. (OLIVEIRA E SILVA, 2011).
Gerbase e Visentini apontam que clivagem do país em 2011
resultou num arranjo político em que o dinka Salva Kiir foi apontado
como presidente e o Nuern Riek Machar como vice-presidente. Um
balanço de poder entre as duas maiores tribos, que foi “fundamental
para a estabilidade política do país [...]” até o ano de 2013.
(GERBASE; VISENTINI, 2014).
Sustentam, contudo, que baseado na gradual aproximação de
eleições no ano de 2015 e dissonâncias acerca do petróleo, o
presidente dissolveu tal aliança e em julho de 2013 depôs Machar,
acusando-o de uma tentativa de golpe. Por seu turno o ex-vicepresidente reorganizou suas milícias, fundou o ELPS em oposição98, e
211
atacou os campos petrolíferos no estado do Alto Nilo. A escalada de
violência resultou num conflito étnico, que se alastrou pelo país,
polarizando, principalmente, as etnias dinka e nuern.
Em janeiro de 2014 Missão de Paz das Nações Unidas para o Sudão
do Sul99 publicou relatório afirmando que a escalada da violência após
a disputa entre os líderes superou as 10.000 mortes.
Entre 2014 e 2015 declarações de cessar fogo e tentativas de acordo
são incentivadas, enquanto os combates persistiam pelo país. No mês
de agosto de 2015 sob ameaças de sanções da ONU, o presidente Kiir
assinou um acordo de paz retornando Machar às funções de vicepresidente. Em abril de 2016 Machar retornou a Juba, todavia, após
desentendimento, em julho do corrente ano foi novamente demovido
pelo presidente100.
Em relatório divulgado em março deste ano o Escritório de Direitos
Humanos do Alto Comissariado das Nações Unidas concluiu que:
Desde de dezembro de 2013, brutais violações de direitos humanos, abusos, e sérias
violações de leis humanitárias internacionais foram perpetradas no Sudão do Sul. Isto
inclui mortes e ataques contra civis, estupros e outras formas de violência sexual,
prisões e detenções arbitrárias, sequestros e violação de direitos infantis, incluindo o
recrutamento e emprego de crianças nos confrontos. Por meio do conflito a violência
sexual e de gênero têm se alastrado. Todas as partes do conflito são responsáveis [...].
(2016, p. 13, tradução nossa).
A conjuntura atual mostra-se bastante desfavorável, cerca de 1,61
milhões de pessoas foram deslocadas internamente101, e encontram-se
vivendo em campos da ONU de proteção de civis, ou nos seus
arredores. Outros 855.166102 estão refugiados em campo em países
vizinhos: Etiópia, Uganda, Quênia e no Sudão.
4 O PROBLEMA DOS REFUGIADOS
O filme Uma Boa Mentira retrata a história de crianças que fogem
da Guerra Civil sudanesa. O filme dá visibilidade as inúmeras
dificuldades que enfrentam os refugiados, desde os problemas que
enfrentam dentro do próprio país, a dificuldade para conseguirem
embarcar para outro país em busca de condições dignas de vida, até o
212
preconceito e rejeição que enfrentam em diversos países para qual se
refugiam.
Uma Boa mentira é um filme escrito por Margaret Nagle e dirigido
por Philippe Falardeau, foi lançado em ٣ de outubro de ٢٠١٤.
Estrelado por Arnold Oceng, Ger Duany, Emmanuel Jal, Kuoth Wiel e
Reese Witherspoon.
O filme conta a história de quatro jovens que fogem do Sudão do
Sul, e juntos, percorrem uma imensa jornada de 917km até o Sul do
Quênia enfrentando inúmeras dificuldades e necessidades, caminhando
até um campo de refugiados, ali, permanecem por mais de 10 anos, até
conseguirem se refugiar nos Estados Unidos.
Ao chegarem lá, Abital é separada dos seus irmãos, e mandada para
Boston, enquanto Mamere, Jeremiah e Paul são mandados para o
Kansas, onde são recebidos pela assistente social Carrie, que tem a
missão de ajudar os garotos a encontrar um emprego e se adaptarem a
nova vida.
O choque de culturas fica muito visível no filme, exemplo com a
inocência dos irmãos ao perguntarem a Carrie o que é o Mc Donald’s,
o que para qualquer pessoa que vive lá é algo do cotidiano, normal,
para eles é surpreendente. Também estranham o fato dela falar ao
celular, e se perguntam se ela está falando sozinha, não sabem atender
o telefone quando ela liga para eles. Tudo para eles é novo, diferente e
desperta a curiosidade dos mesmos.
Carrie leva os 3 irmãos para buscar emprego, ao fazer uma
entrevista em um restaurante, não são aceitos por serem considerados
“estranhos” e sem experiência. Mamere consegue entrar na faculdade
de medicina, e se destaca entre os colegas, pois é muito dedicado.
Mamere e Jeremiah conseguem emprego num supermercado, lá eles
são ensinados a colocar as comidas que sobram e comidas vencidas no
lixo, e eles se indagam, se ninguém precisaria dessa comida, e jogam a
comida no lixo com muita relutância. Num certo episódio, Jeremiah
entrega comida para uma moradora de rua, que estava procurando
comida na lixeira, seu chefe o questiona sobre o que ele estaria
fazendo, condenando a atitude do rapaz, então Jeremiah lhe diz que é
pecado não ajudar quem precisa, pois ele sabe o quanto é difícil passar
por necessidades, e sabe que existem pessoas que ficariam muito
213
gratas por receber aquela comida. E se demite, entregando seu
uniforme ao gerente do mercado, porém, Carrie o orienta a voltar para
o emprego, pois ele deve obedecer ao “chefe” e porque ele precisa de
dinheiro para se sustentar.
Paul começa a trabalhar em uma mecânica, lá seus colegas de
trabalho lhe influenciam a usar maconha, o que acaba acontecendo
diversas vezes, e acaba mudando seu comportamento, seus irmãos
começam a perceber que ele está mais agressivo e menos motivado
com a vida na América, e até briga fisicamente com Mamere. Carrie e
Jeremiah fazem os dois se perdoarem e voltarem a ser “irmãos”.
Então Carrie vai em busca de trazer Abidal para se juntar aos
irmãos, que tanto sentem a falta dela. Busca o coordenador dos
refugiados, que afirma que será difícil de traze-la, pois, o seu país de
origem (Sudão) está patrocinando ações terroristas. Carrie afirma que
ela é apenas uma criança refugiada de uma guerra civil, e se candidata
a ser a família a receber Abidal no Kansas, e no durante Natal, ela
consegue trazer Abital para reencontrar seus irmãos. Os quatro ficam
conhecidos como os “Garotos Perdidos” do Sudão.
Abidal relata a Mamere que recebeu uma carta vinda da Quênia e se
sente confusa, pois a carta pode ser de Theo, irmão que eles
acreditavam estar mortos. O coordenador dos refúgios orienta Mamere
a ir para Quênia, pedir asilo e nas embaixadas contar sua história e do
irmão, e procurar um país que esteja em “boas condições” com os
Estados Unidos para conceder um visto para Theo. Então, nas
embaixadas afirmam não haver ninguém com esse nome ali. Mamere
vai até o campo de refugiados, aonde encontra Theo, mas não
consegue os documentos para levá-lo com ele, então, orienta Theo a se
passar por ele para ir para os Estados Unidos, Theo o questiona sobre
isso ser uma mentira, e Mamere o diz que é uma boa mentira. Mamere
vai para Kakuna trabalhar no hospital, enquanto Theo vai de encontro
aos irmãos em Kansas.
É importante ressaltar que Arnold Oceng, Ger Duany, Emmanuel
Jal e Kuoth Wiel, os atores principais do filme, que é baseado em fatos
reais, são de famílias de refugiados Sudaneses. O que torna o filme
ainda mais envolvente.
214
Atualmente, são mais de 60 milhões de refugiados ao redor do
mundo, o número nunca foi tão alto. Refugiado é definido segundo a
ACNUR (agência da ONU para refugiados) como:
[...] aquele que, por motivos de fundado temor de perseguição, por motivos de raça,
religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social específico ou opiniões
políticas, se encontre fora do seu país de nacionalidade, e não possa ou, em virtude
daquele temor, não queira se valer da proteção daquele país, ou que, se não tem
nacionalidade e se encontra fora do seu país de residência habitual em consequência
de tais acontecimentos, não possa ou, devido ao referido temor, não queira a ele
retornar. (ACNUR, 2013)
É o caso dos refugiados sudaneses, que, segundo dados recentes da
ONU de ٢٧ de julho de ٢٠١٦, chega a ٤ mil o número de refugiados
por dia que saem do Sudão devido aos recentes combates que vem
ocorrendo desde o final de ٢٠١٣103
Pessoas que são obrigadas a se submeterem as mais diversas
maneiras para sair do país de origem, enfrentando longas jornadas, em
situações geralmente precárias, em busca de um recomeço para uma
vida melhor, em busca bens materiais e imateriais, para obter uma
condição mínima para viver dignamente. E, provavelmente, se não
vivessem em situações de vulnerabilidade nos seus países, não sairiam
dali por vontade própria.
Os direitos humanos perseguem a dignidade humana como um fim,
consistindo na obtenção de um acesso justo e igualitários a todos os
bens, que é obtido no processo de humanização do ser humano
(FLORES, 2009)104.
A internacionalização dos Direitos Humanos, se deu a partir do
momento em que os mesmos passaram a ser garantidos pela ordem
internacional, em 10 de dezembro de 1948, na Assembleia Geral das
Nações Unidas, com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, fazendo que, os Estados assumissem o compromisso de
cumpri-los. Os Estados que se tornam parte do tratado, possuem o
dever de respeitar, proteger e cumprir os Direitos Humanos. Possui
como objetivo que todos os países possam garantir direitos civis,
políticos, econômicos, sociais e culturais básicos.
Para garantir que os direitos fossem alcançáveis aos refugiados em
âmbito internacional foi criado o United Nations High Comissioner for
215
Refuges (UNHCR), no Brasil ACNUR, para garantir proteção e
auxílio aos refugiados. As principais características e objetivos da
ACNUR são:
a. Proteger os refugiados através de convênios internacionais;
b. Promover medidas que melhorem a situação dos refugiados
e tentar reduzir o número dos mesmos;
c. Fomentar o seu acolhimento em novas comunidades
nacionais;
d. Promover a aceitação dos mesmos no território que se
encontra refugiado;
e. Conhecer a situação dos refugiados, obtendo informações
sobre o número dos mesmos, e também das leis que lhe
digam respeito;
f. Manter contato com os órgãos interessados (governos,
organizações governamentais e não-governamentais)
(ACNUR, 2013)
O primeiro direito do refugiado é a não penalização do refugiado por sua
entrada e permanência ilegal em um país, também tem o direito de não ser
discriminado, motivo pelo qual os Estados aplicarão as disposições da
Convenção sem discriminação de raça, religião ou país de origem (artigo
3º).
Por fim, o Princípio da Não Devolução (Non-Refoulement), previsto na
Convenção sobre os Refugiados, é garantia que os refugiados possuem de
não serem devolvidos ao seu país de origem.
Artigo 33 da Convenção de Refugiados: Nenhum dos Estados
Contratantes expulsará ou rechaçará para as fronteiras dos territórios em
que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da
sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das
opiniões políticas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
216
O uso expressivo promovido pela arte cinematográfica, em que pese, nas
relações entre cinema e o Direito demonstra-se como um importante aliado
na salvaguarda dos direitos humanitários. Utilizando-se das narrativas
mecânicas é possível conceber um senso de reflexão crítico, principalmente
em face dos fenômenos jurídicos-sociais que assolam o cotidiano da
sociedade. Deste modo, o movimento que se quer alcançar por meio da
interdisciplinaridade entre Direito e cinema não está apenas atrelado ao
processo imaginário e ideológico do homem, mas sim, no campo
emocional, na necessidade de colocar-se no lugar do outro e interpretar a
sociedade a partir de valores e princípios éticos e morais que duramente
foram conquistados no campo das relações humanas.
É nesse contexto que exsurge a necessidade em estudar e avaliar a
metragem Uma Boa Mentira a fim de ressaltar que o elo entre cinema e
Direito tem o condão de transformar as percepções da humanidade e
sensibilizar para uma atitude além da realidade, assim como é o problema
dos refugiados. O filme mostra um recorte das situações precárias que os
refugiados se submetem para conseguir saírem do seu país de origem, desde
a dificuldade de adaptação e de aceitação que enfrentam quando conseguem
se alocar em país diverso. Nesse viés, é possível observar além das telas que
o enfrentamento da problemática está longe de uma solução, pois envolve a
violação de direitos básicos, como a vida, a segurança, a liberdade, vivendo
em situações a margem de toda guerra, miséria e demais sofrimentos.
“A história do Sudão do Sul como nação independente tem profundas
raízes em movimentos belicosos, do domínio dos povos por diferentes
impérios, de alianças voláteis no confronto de adversários comuns, das mais
diversas formas violentas de dominação e imposição de vontades. Um
Estado que hoje sofre com uma identidade nacional enfraquecia,
sobrepujada pelo sentimento tribal em que povos, aos nossos olhos
semelhantes, compreendem-se diferentes e com necessidade imposição de
sua língua, costumes, e tentativa de controle dos recursos petrolíferos.
Neste turbilhão marcado por aproximados 60 anos de diferentes guerras,
os massacres de civis, destruição de vilarejos, recrutamento de crianças,
estupros, pobreza, fome e miséria se demonstraram constantes, alterando-se
as partes das contendas, mas não as vítimas. O movimento de refugiados e
deslocados internos tem sido uma constante e uma problemática de difícil
217
solução enquanto as tratativas de paz se desenrolam em ritmo lento e
desinteressado.
Ainda que o tema esteja em voga na atualidade, inclusive com a
participação de sul sudaneses nos eventos olímpicos do Rio de Janeiro, sob
a bandeira da delegação de refugiados, que haja a discussão e em termos
engajamento internacional na questão, atrocidades tais quais narrados em
Uma boa mentira não serão apenas histórias cinematográficas, mas o
cotidiano de diversos povos presos às áreas beligerantes.
6 REFERÊNCIAS
ACNUR, Manual de procedimentos e critérios para a determinação da condição de refugiado;
De acordo com a convenção de 1951 e o protocolo de 1967 relativos ao estatuto dos refugiados.
Disponível
em:
http://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2013/Manual_de_procedimentos
_e_criterios_para_a_determinacao_da_condicao_de_refugiado.pdf?view=1;
ALMEIDA, José Rubens Demoro. Cinema, Direito e prática jurídica – uma introdução. Revista
do curso de Direito da Faculdade de Campo Limpo Paulista, v. VII, pg. 38-47, Porto Alegre: IOB,
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219
OS REFUGIADOS AMBIENTAIS E O DESAFIO NA
CONSTRUÇÃO DE UMA LEGISLAÇÃO DE PROTEÇÃO
INTERNACIONAL105
Rodrigo Tonel106
Guilherme Hammarstrom Dobler107
Daniel Rubens Cenci108
RESUMO
As mudanças climáticas estão entre as maiores ameaças aos direitos
humanos de nossa geração, colocando em risco os direitos fundamentais da
vida, saúde, alimentação e dignidade dos indivíduos e comunidades em
todo mundo. Neste contexto, temos como principais personagens os
refugiados ambientais, isto é, pessoas obrigadas a migrarem devido às
alterações climáticas, diante à inospitalidade causada por tais fenômenos,
impossibilitando as condições mínimas de vivência e habitação. O desafio é
a construção de uma legislação de proteção internacional a estes grupos,
onde a comunidade internacional se disponha a garantir os direitos humanos
fundamentais e a adoção de um modelo sustentável.
Palavras Chave: Refugiados; meio ambiente; direitos humanos.
1 INTRODUÇÃO
A migração é uma das mais antigas estratégias para lidar com as
mudanças climáticas. Através de milênios as pessoas têm migrado de
lugares, temporária ou permanentemente, devido a, por exemplo, extensas
secas e/ou outros fenômenos e mudanças ambientais. Atualmente, todavia,
muitas pessoas estão migrando devido ao tão debatido tema do aquecimento
global, onde já se tem presenciado fenômenos e/ou mudanças em várias
partes do mundo - em alguns casos, catástrofes – o que tem obrigado um
grande número de pessoas a saírem de seus locais, devido à inospitalidade
causada pelos fenômenos climáticos o que, de fato, impossibilita ter
condições mínimas de habitação e, consequentemente, a migrarem para
outros locais em busca de abrigo, fixação de residência, assistência médica,
220
educação, entre outras. Assim, temos como personagens os nominados
“refugiados ambientais”, expressivamente referidos no debate das
mudanças climáticas.
A mudança climática é um forte contribuinte para a migração. Assim,
podemos conceituar a expressão “refugiados climáticos” como pessoas que
já não ganham uma vida segura em suas tradicionais terras devido a fatores
ambientais de âmbito incomum (MYERS; KENT, 1995).
Alguns fenômenos que contribuem para a migração se manifestam como,
por exemplo, desastres naturais, gradual degradação ambiental, conflitos
ambientais, mudanças climáticas, destruições ambientais devido ao uso de
armas tecnologicamente potentes para destruições massivas utilizadas em
conflitos, projetos de desenvolvimento (construções de barragens para
geração de energia elétrica), acidentes de índole industrial (indústrias
nucleares), áreas destinadas à proteção ambiental, pobreza, gênero, idade,
etnicidade, escassez de recursos, carência de direitos fundamentais de
determinada região, entre outros critérios que possam influenciar a
habilidade das pessoas no acesso de recursos e oportunidades
(KOLMANNSKOG, 2008).
Todavia, importante salientar que migração é um termo utilizado em um
sentido geral, significando, essencialmente, “[...] todas as formas de
movimento acontecendo voluntariamente ou involuntariamente, através ou
dentro de fronteiras nacionais [...]”. (KOLMANNSKOG, p. 11, 2008,
tradução nossa).109
É evidente, no entanto, que a história das civilizações está recheada de
eventos onde a migração era prática muito tradicional e de grande utilidade
para a manutenção da vida destes povos, fazendo, muitas vezes, parte de
suas culturas de subsistência. Temos, sob este contexto, a presença dos
pastores nômades que percorriam um intercâmbio de longas distâncias,
onde muitas destas migrações eram internas e temporárias, seguindo-se os
ciclos climáticos (IOM, ٢٠٠٩).
Observando, deste modo, pelo viés histórico, a migração parece legítima
e legal pelos costumes e tradições praticados pelas civilizações, porém, este
ponto merece ser destacado porque, nos dias que correm, o controle das
fronteiras tem aumentado drasticamente entre as nações nas últimas
décadas, como exemplo, basta mencionar as tentativas diárias de imigrantes
221
provenientes de diversos países que desejam atravessar as fronteiras entre
os Estados Unidos da América e o México (KOLMANNSKOG, 2008).
Nos últimos anos, fatores de índole ambiental tem se tornado mais
reconhecidos entre os muitos que podem influenciar a migração.
Presentemente, existem dois posicionamentos com perspectivas opostas em
relação à ligação entre as questões ambientais e seus efeitos sobre a
migração. Na primeira corrente – também chamada minimalista - os
defensores afirmam que os desafios tangentes à problemática ambiental,
como é o caso das mudanças climáticas, não seriam fatores precípuos para
influenciar, substancialmente, a migração. Por outro lado, existe uma
corrente oposta- ou também maximalistas – propondo que a degradação
ambiental desenvolve fenômenos que são diretamente responsáveis pela
migração de pessoas em várias partes do mundo (SUHRKE, s.d.).
2 MIGRAÇÃO E DESASTRES AMBIENTAIS
O termo desastre pode ser definido como
[...] situação ou evento, que supera a capacidade local, exigindo um pedido a nível nacional
ou internacional para assistência externa [...]; um acontecimento imprevisto e, muitas vezes,
repentino, que provoca grandes danos, destruição e sofrimento humano. Embora,
frequentemente, causado pela natureza, desastres também podem ser originados por ações
humanas. (EM-DAT, s.d., tradução nossa)110.
Deste modo, quando colocamos o termo supracitado diante das
anomalias climáticas que vem acontecendo - ou que podem vir a acontecer
em nosso Planeta -, os resultados poderão ser catastróficos. Devemos,
portanto, ter em mente, que:
[...] indicações de mudanças climáticas do futuro do planeta Terra, devem ser tratadas com
maior seriedade, e com o princípio da precaução em primeiro lugar em nossas mentes.
Extensas mudanças climáticas podem alterar e ameaçar as condições de vida de grande parte
da humanidade. Aquelas podem induzir a migração em grande escala e levar a uma maior
competição para os recursos da Terra. Tais mudanças vão resultar, particularmente, pesados
encargos para os países mais vulneráveis. Poderá aumentar o risco de violentos conflitos e
guerras, dentro e entre os Estados. (NOBEL PEACE PRIZE, 2007, tradução nossa)111.
Pesquisas revelam que, em termos estatísticos, em nosso Planeta já
existem quatro vezes mais pessoas que são deslocadas e/ou removidas por
desastres naturais do que pela guerra. Então, por este raciocínio, em todo o
222
mundo existem muitas pessoas que são tragicamente afetadas por guerras,
multiplicando-se isto por quatro vezes, e calculam-se as estatísticas para
obtermos o resultado do número de pessoas que existem hoje no mundo
removidas somente por desastres naturais, ou seja, dezenas de milhões de
pessoas (CLIMATE REFUGEES ROUNDTABLE, 2012).
Se, a título de exemplo, acontecesse um acidente de automóvel em uma
intersecção e, estivessem pessoas severamente machucadas e estiradas no
chão em função do acidente, como seres humanos teríamos o sentimento de
cuidar, ajudar ou mesmo auxiliar tais pessoas, e somente após prestarmos o
devido cuidado é que buscaríamos respostas no sentido de tomar
conhecimento a respeito de quem causou o acidente. Nas mudanças
climáticas, frequentemente, fazemos o oposto, em outras palavras, nos
focamos tanto no que está causando estes fenômenos que acabamos quase
nunca observando os efeitos, isto é, numa perspectiva acerca das
consequências que isto causa aos seres humanos.
A discussão para o público em geral e com ampla aceitação é acerca da
ideia de que a humanidade propulsionada com o atual consumo de energia
está contribuindo para as mudanças climáticas e, particularmente, mudanças
relacionadas à temperatura do planeta. O planeta está passando por diversas
mudanças, ou seja, estamos mudando as condições naturais de nosso
planeta em uma velocidade surpreendente.
Os geologistas estão destacando o fato de que estamos vivendo em uma
nova Era geológica, e que essa nova Era geológica – também conhecida
como The Age of the Anthropocene - é definida essencialmente pelos seres
humanos, quer dizer, os seres humanos detêm o poder de fundamentalmente
mudar o planeta, significa que:
[...] anthropocene define o período mais recente do planeta Terra como sendo influenciado
por seres humanos ou antrópico, baseado em evidências globais avassaladoras de onde os
processos dos sistemas terrestres atmosférico, geológico, hidrológico, biosférico e outros
estão agora sendo alterados por seres humanos [...]. (ELLIS, 2013, tradução nossa).112
E, baseiam-se os geologistas por elevados e exigentes padrões de
pesquisa científica. Uma das conclusões evidenciadas é a de que os seres
humanos são seres que dispõem de habilidades especiais. Especiais, no
sentido de como pensamos e refletimos nossas vidas a partir da intelecção
de que detemos determinados sentimentos que nos fazem especiais e/ou
223
mesmo diferentes dos demais seres vivos. O fato é que, diante de tais
circunstâncias e tais habilidades, somos capazes de mudar o mundo.
Entretanto, há que se ressaltar que existem previsões de grandes catástrofes
para o planeta em um futuro bem próximo e, que, portanto, devemos tomar
decisões na tentativa de revertermos este cenário, impedindo as
consequências desagradáveis – caso dos refugiados climáticos, a título de
ilustração - que possam irromper de nossas ações.
A superpopulação, o consumo excessivo, a falta de recursos e as
mudanças climáticas, isto é, todos estes elementos colidem entre si. Como
fora destacado anteriormente, as pessoas sempre migraram no decurso da
história, todavia, o fato que aqui quer se focar diz respeito que já não
existem Estados disponíveis onde se possam asilar todos aqueles indivíduos
que estão passando por dificuldades naqueles aspectos.
Neste seguimento, os refugiados ambientais dão a entender que algo de
errado está acontecendo em nosso planeta, significando, portanto, que
muitos precisam de ajuda imediatamente.
Segundo Zetter (2015), uma estrutura coerente e sistemática que discuta
todas as formas de migração internacional é essencial na luta contra a
disjunção entre deslocamento forçado e proteção. A disponibilidade de
canais legais para a migração internacional não tem mantido o ritmo com a
expansiva demanda e alcance global para este processo. Apesar de todos os
esforços, inexiste uma estrutura coerente em ambos os níveis, nacional e
internacional.
Ainda neste tocante, complementa Zetter (2015, p. 21, tradução nossa)113,
afirmando que “nem todo indivíduo removido forçosamente é um
refugiado, mas todas as pessoas removidas forçosamente necessitam de
alguma forma de proteção [...]”. Com isso, a estrutura normativa já não se
demonstra mais eficiente para nortear todos os desafios relacionados à
proteção de imigração forçada no mundo.
2.1A proliferação de políticas e práticas de proteção
O direito a uma vida digna e bem-estar, esculpido no art. 25 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) – Universal
Declaration of Human Rights-, demonstra o quão importante e digno de
respeito é a satisfação de se poder ter um padrão de vida onde sejam
224
respeitados tais elementos. Todavia, para se atingir tal objetivo ou mesmo
manter este estandarte de vida, é, sem sombra de dúvida, imprescindível
lançar mãos de meios que, efetivamente, possibilitem a realização deste
direito básico e fundamental. Em outras palavras, não há como falar em
vida digna e bem-estar quando não se dispõe de um ambiente limpo e
saudável que assegure tais condições. Neste sentido, é indubitavelmente
essencial um ambiente que permita a concretização deste direito humano.
Sob este contexto, quando levamos em conta a ligação entre este direito
humano fundamental e o caso dos refugiados ambientais, levantar-se-ão
muitas questões para serem discutidas apontando-se para proteção deste
direito. O maior desafio resume-se, devido à falta de clara definição acerca
do conteúdo e escopo de tal direito humano, o que, consequentemente,
constitui um severo problema. Algumas normas de caráter internacional
surgiram na tentativa de, ao menos, amainar tal problema, porém, na
maioria das vezes, demonstraram-se infrutíferas, não surtindo resultados
compensatórios.
Segundo a introdução dos Princípios Orientadores relativos aos
Deslocados Internos:
[...] os deslocados internos são pessoas, ou grupos de pessoas, forçadas ou obrigadas a fugir
ou abandonar as suas casas ou seus locais de residência habituais, particularmente em
consequência de, ou com vista a evitar, os efeitos dos conflitos armados, situações de
violência generalizada, violações dos direitos humanos ou calamidades humanas ou naturais,
e que não tenham atravessado uma fronteira internacionalmente reconhecida de um Estado.
(NATIONS, 2004, p.1, grifo nosso, tradução nossa).114
Na própria introdução para a aplicação destes princípios, resta claro
saber que há a incorporação dos elementos relativos ao deslocamento
quando feito por motivos de calamidades e/ou desastres naturais, deixando
evidenciada a tendente preocupação das Nações Unidas em legislar o
assunto.
No entanto, deve-se constatar que a orientação dada pelos princípios não
é suficiente para oferecer ampla proteção para aqueles deslocados por
desastres naturais. Assim, o principal objetivo é delinear o potencial para
mais amplo desenvolvimento destes princípios, incrementando e adaptando
as normas e estruturas já existentes para, totalmente, abordar as diferentes
modalidades de deslocamento ambiental.
225
Tal abordagem tem a vantagem de não propor que as pessoas deslocadas
por força de fatores ambientais constituam uma nova categoria de pessoas
sem proteção e reconhecimento internacional. O infortúnio é que existe
pouco suporte internacional que proponha o pleno desenvolvimento para
uma nova categoria normativa. Todavia, a progressiva adaptação das
normas e instrumentos existentes possui a vantagem adicional de permitir a
expansão das competências e capacidades institucionais sem
necessariamente requerer a uma nova estrutura organizacional (IOM, 2009).
As pessoas deslocadas em função das mudanças climáticas e sua relação
com a uma lei de proteção internacional é, no momento, obscura. Quando
colocada em frente de tais circunstâncias a lei internacional pode ser
exercida sob diferentes ângulos, em outras palavras, considerando-se a
hipótese de uma lei internacional que regule este tipo de situação dever ser
aplicada como uma nova lei internacional ou se a aplicação de tal lei
internacional deve ser adotada de forma mais paulatina, isto é, sob o
contexto de um desenvolvimento legislativo constante de acordo surgem os
problemas é o âmago da discussão jurisprudencial.
Uma abordagem sob o ponto de vista do direito ambiental apresenta
limitações e desafios no que diz respeito à imigração/deslocamento
induzido pelas mudanças climáticas. Em um primeiro momento, a exigência
por uma responsabilidade legal é obrigação primária entre os Estados. Em
segundo lugar, existe considerável dificuldade em quantificar o prejuízo
causado pelas emissões de gases carbonos em todos os Estados e, do
mesmo modo, identificar a causa entre as emissões e seus respectivos
efeitos negativos, quando todos os Estados têm contribuído pelas emissões
em algum momento. E, em terceiro lugar, permanecem dificuldades em
estabelecer a responsabilidade dos países principais emitentes de gases
poluentes.
Neste sentido, alguns estudiosos trouxeram argumentos criativos para a
discussão. Sugerem-nos que,
[...] as pessoas que vivem em áreas onde existem maiores riscos de habitação devido às
mudanças climáticas deveriam ter a opção de migrarem para outros países, em números
exatamente proporcionais aos países anfitriões mais responsáveis pela cumulação de
emissões de gases efeito estufa [...]. (McADAM; SAUL, s.d., p.14, tradução nossa).115
226
Sob este viés, por exemplo, os Estados Unidos da América deveriam
receber a maior quantidade de imigrantes, pois se sabe que é um dos
maiores emitentes de gases poluentes.
Esta abordagem tenta fazer uma reflexão acerca da responsabilidade das
imigrações devido às mudanças climáticas analogicamente frente os
Estados mais responsáveis pelas emissões de gases poluentes causadores do
efeito estuda.
Assim, aquelas comunidades consideradas as mais vulneráveis, são as
que mais sofrem com os efeitos das alterações climáticas devidamente por
estarem mais expostas às emanações das indústrias poluentes, onde,
consequentemente, são afetadas de forma muito mais intensa e acelerada
considerando estatísticas a nível global.
Conforme salientam Acselrad, Mello e Bezerra (2009), tal fenômeno
piora, quando se leva em conta populações como indígenas, agricultores e
pescadores, os quais dependem fundamentalmente do que se extrai da
natureza para sua respectiva subsistência, quando a alteração do clima
provoca efeitos bastante negativos, desestabilizando os recursos naturais.
Diante da irracionalidade ambiental e da desigualdade social que se
apresenta no atual mundo globalizado, as alterações no clima produzem
injustiças e efeitos sociais desiguais, reforçando ainda mais a ideia do
relacionamento entre as discussões sociais e ambientais (RAMMÊ, 2012).
As mudanças climáticas potencialmente impingem o gozo da completa
gama dos direitos humanos internacionalmente protegidos. Entretanto, a lei
dos direitos humanos oferece um ponto de fundação e traz, igualmente,
possibilidades significativas para o desenvolvimento de princípios e
orientações proativas para proteger as pessoas deslocadas por razões
ambientais, funcionando como o principal instrumento definindo normas de
proteção, legislando sobre a liberdade de movimento – o que se encaixa
perfeitamente no contexto dos deslocados ambientais.
De acordo com McAdam e Saul (s.d.), existem três razões pelas quais os
direitos humanos são essenciais neste contexto. Primeiro, porque a lei dos
direitos humanos é particularmente importante no que tange aos direitos
daquelas pessoas suscetíveis ao deslocamento induzido devido a forças
climáticas. Em outras palavras, a lei dos direitos humanos estabelece um
estandarte mínimo de tratamento que os Estados devem proporcionar aos
indivíduos, provendo, outrossim, quais direitos devem ser avaliados
227
dependendo da situação concreta e, quais as autoridades que tem a
competência e responsabilidade para responder as necessidades em que se
encontram aqueles por quais os direitos não estão observados ou se
encontram em um grau de perigo e prejuízo devido a catástrofes climáticas,
por exemplo. Em segundo lugar, os direitos humanos podem garantir
proteção complementar, em outros termos, quando os direitos são
ameaçados devido às mudanças climáticas, a lei dos direitos humanos pode
promover um leque em termos de bases legais, considerando as hipóteses
de solicitação de asilo, pelos atingidos, em outro Estado. E, a terceira razão,
traz em seu bojo a hipótese de relocação, onde a lei dos direitos humanos
coloca um padrão mínimo de tratamento a ser observado pelo Estado
acolhedor, buscando-se através disso, evitar o desrespeito às condições
mínimas e fundamentais de vivência, no que corresponde ao ser humano.
2.2 A perturbação das mudanças climáticas frente os direitos
civis e políticos
Existe uma significativa preocupação de que as mudanças climáticas
possam trazer sérios problemas e perturbações à observância dos direitos
civis e políticos, podendo provocar mudanças radicais nas instituições
sociais de um país e, mesmo, no próprio governo. Neste sentido, é possível
prever que catástrofes causadas pelas mudanças climáticas possam trazer
resultados negativos sob o aspecto da preparação de um Estado para
responder a emergência de um desastre, principalmente, em estados mais
vulneráveis a estes eventos.
Para McAdam e Saul apud IOM (2009, p. 409, tradução nossa)116,
[...] não é que a mudança climática em si é responsável por violações de direitos; ao
contrário, são os efeitos das alterações climáticas que enfraquecem as capacidades dos
estados e os impedem de cumprir sua obrigação de proteger os direitos das pessoas [...]”.
Todavia, há que se fazer uma ponderação acerca dos meios, estratégias e
quais caracteres cada norma deve observar a fim de estatuir as
especificidades de cada caso, esclarecendo-se, antes de tudo, os diferentes
cenários e tipologias de deslocamentos, sabendo-se que tais características
serão essenciais para determinar de maneira mais prudente, quais normas de
228
proteção devem ser adotadas para atender as necessidades de cada caso
específico.
2.3 Os desabrigados ambientais na América Latina
Na América Latina encontram-se exemplos dos mais variados acerca da
temática dos desabrigados ambientais. Conforme revela Brown (2009), a
cada dia, no México, expressivos números de mexicanos arriscam suas
vidas tentando ultrapassar a fronteira com os Estados Unidos da América
em busca de emprego e, por conseguinte, uma vida melhor, muitos dos
quais são provenientes de áreas rurais assoladas pela erosão. Muitos destes
imigrantes entram pelo deserto do Arizona, onde, frequentemente, muitos
acabam morrendo devido à desidratação causada, especialmente, pelo sol
abrasador do deserto. Um levantamento feito no ano de 2001 revela que, em
média, são encontrados cerca de 200 cadáveres por ano.
Além da erosão, outro fenômeno que afeta alguns países latino
americanos é a desertificação, onde, em países como Brasil e México
sofrem severamente. Segundo Brown (2009), no Brasil, calcula-se que este
fenômeno afeta cerca de 66 milhões de hectares de terras e, no México,
cerca de 59 milhões de hectares, o que, sem sombra de dúvida, faz com que
muitas pessoas tenham que imigrar de suas terras em busca de melhores
condições de vida.
Já na Argentina, Uruguai, Paraguai e novamente no Brasil, as inundações
são as principais responsáveis pelo deslocamento de pessoas de seus locais
de origem para outros locais onde não existam estes fenômenos, ou a
incidência e o risco são potencialmente menores. Especialistas afirmam que
as fortes chuvas se devem devido ao já conhecido fenômeno meteorológico
El Niño.
Todavia, há que se ressaltar que o Brasil, o Paraguai e a Argentina estão
entre os dez países que mais desmataram nos últimos 25 anos e, que,
conforme o desmatamento aumentava, em contrapartida, as inundações,
exponencialmente, cresciam (FRAYSSINET, 2016). É sabido que as
florestas constituem um papel essencial na regulação climática e que sua
respectiva destruição traz consequências gravíssimas. Sob este viés,
frequentemente acontece o conhecido efeito dominó, em que movimentando
uma estrutura, acaba-se por desequilibrar todo o resto do conjunto.
229
Desta forma, se verifica que é necessário se estabelecer uma ordem
ambiental entre estas nações com a finalidade de buscar meios para resolver
estes problemas, como por exemplo, a recuperação de áreas de florestas
nativas para proporcionar a diminuição da ocorrência de inundações e,
sucessivamente, os transtornos causados por estas.
Na Colômbia o cenário não se manifesta diferente, ou seja, em 2010 as
chuvas causaram cerca de 174 mortes e deixaram 1,5 milhão de pessoas
desabrigadas. Além disso, grandes perdas econômicas em setores como o
de transporte (EFE, 2010, grifo nosso).
Constata-se, portanto, que existe uma miríade de adversidades causadas
exclusivamente por fenômenos ambientais, muitos deles, especialmente,
devido às alterações no clima. E isso retrata seriamente a responsabilidade
que os Estados têm de combater a degradação ambiental causada em seus
territórios, principalmente, devido à orexia econômica, onde se presencia
imensas devastações da biodiversidade para prática de atividades
econômicas o que, usualmente, resulta em negativos transtornos como é o
caso discutido aqui, qual seja, os desabrigados ambientais.
2.4 A perspectiva brasileira no cenário das mudanças
climáticas
No Brasil, vários eventos foram realizados nos últimos anos,
demonstrando, sobretudo, a crescente preocupação deste país com relação
aos desafios ambientais presentes no planeta e sua responsabilidade como
nação frente ao cenário internacional. Alguns dos eventos que merecem
destaque são as Conferências das Nações Unidas sobre meio ambiente
celebradas no estado do Rio de Janeiro.
Em 1992, houve a chamada “Rio 92”, onde foram discutidos muitos
temas, dentre eles, cabe aqui destacar, a discussão a respeito da temática das
alterações climáticas, aonde a preocupação com o fenômeno do
aquecimento global vem se intensificando desde meados dos anos 70,
também se discutiu a qualidade do ar, poluição e, algumas discussões
trouxerem contribuições para a criação do Protocolo de Kyoto em 1997
(MENEGHETTI, 2012).
Já Rio+ 10, realizada em 2002, promovida pela ONU em Johanesburgo,
na África do Sul, conhecida como “Cúpula Mundial sobre o
230
Desenvolvimento Sustentável”, teve como objetivo reforçar o compromisso
de cada uma das nações envolvidas, como também, encorajar ainda mais o
debate sobre descobertas em termos de novas tecnologias que venham a
beneficiar o meio ambiente e, ao mesmo tempo, proporcionar o crescimento
econômico (FRANCISCO, s.d.).
A “Declaração das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável”,
ocorrida em 2012, na cidade do Rio de Janeiro, tendo como principal
finalidade a“ [...] renovação do compromisso político com o
desenvolvimento sustentável, por meio da avaliação do progresso e das
lacunas na implementação das decisões adotadas pelas principais cúpulas
sobre o assunto e do tratamento de temas novos e emergentes. ” (RIO+20,
2012).
Na referida conferência, as discussões “[...] focalizaram um ciclo
sustentável de desenvolvimento, com a incorporação de bilhões de pessoas
à economia, com o consumo de bens e serviços dentro de padrões
sustentáveis”. (RIO+20, 2012).
Iniciativas têm sido tomadas com o fito de confrontar o enleio ambiental
no Brasil. Entretanto, não basta elaborar projetos dos mais variados e não
colocar em prática tais ideias. É necessário, sobretudo, exigir a efetiva
atuação daquilo que fora planejado. A adoção de políticas nesse sentido traz
significativa colaboração.
2.5 A conferência do clima em Paris – COP 21
A Conferência do Clima em Paris – COP 21 – reuniu representantes de
195 países na discussão sobre medidas para frear o aquecimento global,
tendo como principais objetivos tratar da responsabilidade de cada Estado
envolvido em trabalhar para que o aquecimento global fique na média de
1,5ºC, não ultrapassando a ٢ºC, determinando, igualmente, que os países
ricos sejam responsáveis por garantir financiamento de ١٠٠ bilhões de
euros por ano no combate ao aumento de temperatura (GARCIA, ٢٠١٥).
A Conferência reconhece a necessidade de efetiva resposta a urgente
ameaça trazida pelas mudanças climáticas, as necessidades específicas dos
países em desenvolvimento, ressaltando atenção àqueles países mais
vulneráveis, também reconhece a importância dos compromissos de todos
231
os níveis de governos e outros atores neste contexto, de acordo com as
respectivas legislações nacionais de cada uma das partes frente ao clima.
Além disso, ficou estabelecido no artigo 4º do Acordo que cada parte
fica obrigada a participar das convocações a cada ٥ anos servindo como um
meio para informar as partes quais foram os resultados obtidos durante este
lapso temporal (NATIONS, ٢٠١٦).
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os desafios no que tange aos deslocados ambientais dão-se em razão de
uma sociedade global extremamente norteada pelo viés capitalista, onde
impera um modelo de injustiça social e econômica. Deste modo, diversas
são as consequências e efeitos, como ocorre com os deslocados ambientais.
Um dos meios na tentativa de se reverter este paradigma capitalista
avassalador, seria a implementação de um modelo de sociedade sustentável,
ou seja, implicando a formação de cidadãos conscientes e participativos no
que diz respeito aos processos de produção, formando uma racionalidade
ambiental, deslocando a conduta de uma visivelmente sociedade consumista
para uma sociedade orientada pelo respeito à natureza com foco voltado
para produção sob um ideal sustentável, utilizando-se, por exemplo, de
práticas que não gerem gases poluentes, mas que sejam compatíveis com
um modelo de respeito às condições ambientais e naturais de nosso planeta
(NUNES; TYBUSCH, 2015).
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234
O HAITI É AQUI: EDUCAÇÃO E INCLUSÃO DOS
IMIGRANTES HAITIANOS NO NORTE DO RIO GRANDE
DO SUL
Thaís JanainaWenczenovicz117
Rodrigo Espiúca dos AnjosSiqueira118
RESUMO
Desde os primórdios da Humanidade o homem tem migrado por razões
diversas, impulsionado por motivos endógenos e exógenos. Migra-se por
questões culturais, econômicas, políticas e sociorreligiosas ou desastres
ambientais e climáticos a exemplo do grupo em estudo. A imigração
haitiana ao Brasil é um fenômeno migratório que ganhou grande proporção
após o terremoto que abalou o país caribenho em 12 de janeiro de 2010 e
provocou a morte de mais de milhares de pessoas e deixou outras tantas na
condição de refugiados. Nesse sentido, pretende-se demonstrar um dos
fatores de integração e inclusão dos haitianos na sociedade brasileira: a
Educação.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Educação. Imigrantes Haitianos.
Inclusão.
1INTRODUÇÃO
Pensar os fluxos migratórios na América Latina compreende desvelar as
relações que se estabeleceram na construção do ideário social dos países.
Diversos países da América Latina receberam contingentes humanos em
decorrência de sua condição econômica, política e social. A modalidade de
inserção no mercado internacional, aliado às conjunturas internas dos
países, levaram ao desenvolvimento de políticas de incentivo à imigração.
Entre 1870 e 1930 estima-se que entre 42 e 60 milhões de europeus
deixaram o Velho Mundo, impulsionados por motivos endógenos e
exógenos. A América Latina recebeu mais de 13 milhões de imigrantes,
sendo que 90% desse total tiveram como destino a Argentina, o Brasil,
Uruguai e Cuba. Muitos imigrantes deixavam seus países com o ideal de se
235
tornarem proprietários de terras na América; outros em busca de trabalho
assalariado, fosse este permanente ou temporário; e muitos partiam fugidos
de perseguições religiosas, das guerras ou dos desastres ambientais. A
bibliografia pertinente em geral relaciona os imigrantes com a expansão da
economia agroexportadora, o desenvolvimento do meio urbano e das
cidades, a composição e o crescimento populacional.
A questão imigracional condicionou também os debates sobre o ideal de
nação que emergia diante dos processos de formação dos países recémindependentes. Nessa teia social, surgiram diversas análises que discutiam,
de forma ampla e comparativa, as grandes migrações históricas do final do
século XIX, XX e XXI na América Latina, englobando temas como fatores
de expulsão, políticas de atração; questões relacionadas com os debates
governamentais e às legislações pertinentes à imigração; deslocamentos
dentro dos países e entre os países. Os temas voltados para as Migrações e
Direitos Fundamentais, Cidadania, Gênero, Direitos Humanos, Educação,
dentre outros estão presentes somente após 1990.
O devido estudo trata da integração dos Imigrantes Haitianos junto à
sociedade brasileira – mais especificamente na região norte do Rio Grande
do Sul (Brasil) - tendo em vista sua relação junto às dimensões materiais e
concepções das diretrizes inclusivas educacionais. Nesse sentido, pretendese indicar alguns fatores que impulsionaram o deslocamento desses
imigrantes e o processo de adaptação no Sul do Brasil, bem como em que
medida as políticas de imigração ameaçam a manutenção dos Direitos
Humanos de indivíduos provenientes de países com histórico de
dependência e intransigência aos Direitos Fundamentais Civis e Sociais em
seu país de origem. Tal condição corrobora na análise entre as políticas de
integração e negação aos Direitos Humanos. Ao longo dos últimos vinte
anos, o Brasil adotou uma série de novas políticas voltadas à gestão dos
movimentos transfronteiriços e aos imigrantes no Brasil, políticas estas que
respondem não somente ao ativismo dos migrantes e seus aliados, mas
também à estratégia da política externa brasileira. Como procedimento
metodológico, o devido trabalho utiliza-se da pesquisa bibliográfica
acompanhado da descrição e interpretação da realidade dos sujeitos na
compreensão da temática abordada tendo utilizado a técnica de Grupo focal.
Para representar os dados a partir de uma perspectiva mais próxima do
sujeito, foram utilizados fragmentos das entrevistas e análise de discurso.
236
2 PROCESSO MIGRATÓRIO E OS HAITIANOS NO SUL
DO BRASIL
O Acre figura dentre os Estados que primeiramente receberam os
imigrantes haitianos no Brasil. Segundo dados da Polícia Federal (2014),
aportaram no Acre – desde dezembro de 2010, cerca de 130 mil haitianos
utilizando-se da fronteira do Peru com o Estado e se instalaram de forma
precária ainda nos estados do Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul
e do Pará. Calcula-se que entre janeiro e setembro do ano de 2011, foram 6
mil e, em 2012, foram 2.318 haitianos que entraram ilegalmente no Brasil.
Posterior o fluxo migratório também inseriu os Estados do Sudeste e Sul do
Brasil – Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Enquanto questão legal, sabe-se que a grande maioria dos haitianos que
solicitou refúgio no Brasil, não se enquadra como refugiado nos termos da
legislação específica. No entanto, o Governo Brasileiro, por meio do
Conselho Nacional de Imigração (CNIg), decidiu autorizar a permanência
por razões humanitárias aos haitianos que ingressaram por via terrestre até
13/01/2012. Neste caso, após o CNIg conceder a residência no Brasil e de
posse da publicação dessa decisão no Diário Oficial da União, os haitianos
foram recomendados a se dirigir a uma unidade da Polícia Federal para
registrarem-se e fazer o pedido de Carteira de Identidade de Estrangeiro.
Após o registro na Polícia Federal, o imigrante está apto a prorrogar o
prazo de sua Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), nas
agências credenciadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Ressalta-se também que mesmo estando o imigrante com o protocolo de
pedido de refúgio e aguardando a concessão de sua residência pelo CNIg,
ele poderá retirar sua CTPS e trabalhar em qualquer entidade usufruindo da
legislação trabalhista do país de acolhimento.
De acordo com dados do Ministério do Trabalho (RAIS, 2014), é
possível apontar que dentre os imigrantes haitianos – categoria –
Estrangeiros com vínculo formal de trabalho, segundo o quesito principais
nacionalidades de um total de 14.579 ingressos no Brasil em 2013, 12.518
eram do sexo masculino e 2.061 feminino. Observa-se que ao fazer a
análise considerando a variável sexo, no período de três anos (2011, 2012 e
2013) e levando em conta todas as nacionalidades, se obtém uma média de
237
72% de homens estrangeiros e 28% de mulheres estrangeiras. (MTE/RAIS,
2014)
Levando em conta os motivos que fizeram com que os imigrantes
haitianos se deslocassem ao Brasil pode-se dizer que no Rio Grande do Sul
os espaços de recepção foram inicialmente as cidades de Rio Grande e
Porto Alegre. Contudo, impulsionados pelo seu objetivo maior – o trabalho
– fixaram morada em cidades de outras regiões como: Bento Gonçalves,
Caxias do Sul, Erechim, Lageado, Marau e Passo Fundo.
Na cidade de Erechim (norte do Estado do Rio Grande do Sul), além dos
haitianos é possível identificar senegaleses, um pequeno grupo de Gana e,
alguns angolanos que se apresentam como opção de mão-de-obra a
construção civil esporadicamente. A partir de 2012, o grupo de haitianos
que residiam em Erechim totalizava em torno de 50 pessoas, sendo a
maioria homens, na faixa etária de 18 a 45 anos, apresentando-se
majoritariamente como mão-de-obra para a indústria metal-mecânica e
construção civil. (SMED: Coordenação Pedagógica – NEJA, 2015)
Segundo Tedesco (2012), em termos econômicos, os haitianos a modo
dos senegaleses também apresentam um comportamento empreendedor,
assumindo riscos, comercializando bijuterias e aceitando empregos
temporários para formar fundos e realizar projetos de vida (“constituir meu
próprio empreendimento no Senegal”, “sustentar família no Senegal”). O
fluxo de remessas financeiras e o desenvolvimento de competências dos
que passaram por Erechim e Passo Fundo (RS) confirmam essa perspectiva.
Dentre suas inserções na comunidade local e regional já virou rotina vêlos circulando e interagindo com o coletivo local. Enquanto inserção social
e cidadã há algumas ações já efetivadas no quesito Educação e Saúde com o
respaldo de órgãos governamentais desde 2012 – momento da chegada do
primeiro grupo. Aos poucos as instituições universitárias e sociais foram
demandas para auxiliarem no processo de acolhimento e inclusão. Na
região norte do Rio Grande do Sul pode-se citar ações provenientes da
Universidade Federal da fronteira Sul, Universidade Estadual do Rio
Grande do Sul, Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões e Faculdade Anglicana.
Dentre uma das primeiras iniciativas foi à criação de uma modalidade de
ensino – alfabetização, em uma parceria da Faculdade Anglicana e a
Secretaria Municipal de Educação. Desde 2012 as instituições oferecem
238
aulas no período noturno aos haitianos junto ao Programa de Alfabetização
Municipal como uma forma de garantir melhor integração a sociedade
nacional e regional.119
A possibilidade de alfabetizar-se em língua portuguesa também se
estende para outros benefícios, como a acessibilidade e permanência ao
direito à Educação. Nesse espaço os haitianos também recebem alimentação
no período entre aulas, vale-transporte e material didático. Essa ação, como
apontado é o resultado de um protocolo de intenções assinado pela
Faculdade Anglicana de Erechim e o Poder Público Municipal – Secretaria
de Educação – o que possibilitou que outras demandas sociais fossem
atendidas como o acesso a saúde e o acompanhamento junto ao processo de
legalização-documental.
Na cidade de Chapecó – distante a 90 quilômetros de Erechim, há uma
ação pontual com relação à inclusão dos haitianos no ensino superior, tratase do projeto PROHAITI da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS.
O PROHAITI tem a intensão de contribuir, por meio de vagas
suplementares, para integrar os imigrantes haitianos à sociedade local e
nacional, por meio do acesso aos cursos de graduação da UFFS. O
programa teve início em 2013 e, no início, ofertou oportunidades de
formação superior, exclusivamente, a cidadãos haitianos residentes no
município de Chapecó e região. De acordo com o Programa, as vagas
destinadas aos haitianos são ofertadas por meio de processo seletivo
especial e o aluno que ingressar através do processo será matriculado como
aluno regular.
O primeiro processo seletivo foi realizado em março de 2014 por meio
de um edital específico para este fim, prevendo acesso à educação superior
da UFFS para estudantes haitianos – PROHAITI com o total de 35
inscrições. Após os trâmites normais do processo, inscrição, provas,
resultado foram realizadas as matriculas de 27 alunos nos cursos de
Administração, Ciências Sociais, Enfermagem, Engenharia Ambiental,
História, Letras Português e Espanhol, Matemática e Pedagogia. Em julho
de 2014 foi realizado outro processo seletivo, com 33 inscrições. Desse
total de inscritos, 12 haitianos foram matriculados nos cursos de
Administração, Agronomia, Ciência da Computação, História, Letras
Português e Espanhol, Pedagogia e Geografia. Até novembro de 2014 havia
39 alunos haitianos matriculados na Universidade Federal da Fronteira Sul,
239
no âmbito do programa PROHAITI. (UFFS: banco de dados acadêmicos,
2015)
Em análise aos processos seletivos das Universidades também é possível
constatar que há algumas modalidades ou programas de inserção de
estudantes haitianos no ambiente escolar do ensino superior brasileiro,
como os convênios de algumas universidades para intercâmbio, que os
estudantes vêm para o Brasil, estudam e devem, geralmente, ao final do
curso, retornar ao Haiti. Dentre as universidades que aderiram a esse
projeto, há estudantes haitianos frequentando aulas na Universidade
Estadual de Campinas, a Unicamp, em Curitiba, na Universidade Federal do
Paraná, UFPR e em Florianópolis, junto a Universidade Federal de Santa
Catarina, a UFSC.
No ano de 2014, a Universidade Federal da Integração LatinoAmericana, UNILA, lançou o Edital nº 004/2014 que, em seu resumo
“Regulamenta o processo de seleção do Programa Especial de Acesso à
Educação Superior da UNILA para estudantes haitianos – Pró- HAITI, para
ingresso no primeiro semestre letivo de 2015, na Universidade Federal da
Integração Latino-Americana” (p. 1). No total foram ofertadas 29 vagas,
sendo 22 para o bacharelado e 7 para a licenciatura, contemplando diversas
áreas, sendo apenas uma para cada curso. (UNILA, 2016)
Em relação aos aspectos culturais, os haitianos conservam os hábitos
religiosos,120 alimentares e de convivência compatíveis ao grupo e em
constante estado de ressignificância. Entre eles, além da cordialidade e
espontaneidade, é conservada a hierarquia familiar. Nesse aspecto, é
possível sinalizar que os imigrantes aderem à integração junto à
comunidade regional fora do âmbito pragmático do trabalho. Sentem, sim, o
estranhamento mesclado com curiosidade pelos que os cercam e os veem.
No aspecto cultural é possível perceber que, praticamente, se utilizam
dos espaços vagos dos dias e ou dos finais de semana - em momentos que
não estão trabalhando – para telefonarem para amigos e familiares no Haiti
e no Brasil, assistirem televisão e escutarem música. Alguns declaram que
já frequentam clubes que oferecem atividades de dança.
Sabe-se que a ausência de contato com a comunidade produz
distanciamento, indiferença e ausência de fatores integrativos e de
sociabilidade. Beccegato (1995) e Sayad (2008) apontam que não basta
simplesmente adquirir algumas informações sobre usos, costumes ou
240
aprender línguas estrangeiras para se fazer intercultura; deve-se adentrar,
sim, para as problemáticas cognitivas, afetivas, sociais, desenvolver um
pensamento aberto, flexível, inclusivo, que valorize os comportamentos
reconhecidos no diálogo e no encontro. As identidades e identificações
produzidas no interior das sociedades hospedeiras se (re)constroem pelos
autóctones e estrangeiros também a partir de referenciais simbólicos
(MEIHY; BELLINO, 2008).
2. HAITIANOS NO NORTE DO RIO GRANDE DO SUL:
ALGUMAS QUESTÕES METODOLÓGICAS
Como já sinalizado, o devido estudo realizou contato direto com um
grupo de 30 estudantes devidamente matriculados na rede municipal de
ensino na região norte do Rio Grande do Sul, mais especificamente na
cidade de Erechim. Do total de 30 alunos, 15 são haitianos e tiveram
contato direto com os proponentes do estudo. Foram realizadas cinco visitas
no turno da noite junto às dependências da Faculdade Anglicana de
Erechim – parceira da atividade educacional junto com a Secretaria
Municipal de Educação/Erechim.
Dentre as atividades foram realizadas entrevistas, troca de ideias e
saberes, bem como momentos de diálogos coletivos para discutir os fatores
que impulsionaram a saída de seu país de origem, viagem, adaptação e
visões iniciais da situação de imigrante. O estudo adotou abordagem
qualitativa e o tipo de pesquisa utilizado foi a pesquisa-ação. O universo foi
representado por 15 estudantes – nível de alfabetização e uma educadora.
A técnica de coleta foi realizada através de Grupos Focais, tendo como
função reunir informações detalhadas sobre o processo de deslocamento,
recepção, negações e identidades construídas no país receptor.
Os encontros foram realizados durante dez (10) dias com duas (02) horas
de duração, acompanhados da professora titular. Após obter os dados
coletados do roteiro de entrevista, foi realizada a transcrição e compilação
dos dados. Já a análise e interpretação dos dados foram organizadas na
forma tema x percentual.
Feita a estruturação, os dados obtidos foram comparados entre si a fim
de traçar minimamente características comuns entre eles. Dessa análise foi
241
possível concluir: 14 entrevistados são do sexo masculino e uma do sexo
feminino; 75% possuía relação civil estável ao deixar o país de origem,
sendo que a maioria mantém contato semanal com a família por meio das
redes sociais. O uso da tecnologia foi assinalado por todos os entrevistados
e esses apontaram que as redes mais usadas para efetivar a comunicação são
o Badoo, Facebook, WhatsApp, e Viber – todos com acesso livre de
encargos.
Sobre o uso das tecnologias, observou-se que em 100% dos entrevistados
houve afirmação de uso diário. Utilizam-se primeiramente para
entretenimento e obter contato com os familiares. A aquisição de um
aparelho de comunicação móvel está dentre os objetos mais cobiçados após
o recebimento do primeiro salário.
No tópico que solicitava informações acerca da viagem, 55% afirmou ter
passado por países da América Central como Colômbia, Peru e Venezuela e
um depoente afirmou ter tentado a vida na Espanha antes de se deslocar ao
Brasil. Como meios de transporte apontaram automóvel (pequenos
deslocamentos), transporte coletivo (ônibus e trem) e avião. A média de
investimentos dispensados desde a saída do Haiti até o Brasil ficou em
torno de 10.000,00 a 15.000,00. Este montante em muitas entrevistas foi
sinalizado que se obteve por meio de empréstimos – com familiares ou
agiotas.
Segundo os dados são da Agência Brasileira de Inteligência (Abin, 2015)
pelo menos 38 mil haitianos que já atravessaram, sem visto, a fronteira do
Brasil pelo Acre, acrescida da informação que a rede de coiotes já faturou
US$ 60 milhões – o equivalente a mais de R$ 185 milhões – nos últimos
quatro anos. Sobre esse fato houve por parte dos depoentes uma certa
resistência em se pronunciarem sobre o assunto.
É importante assinalar que, pela resolução do CNIg (Conselho Nacional
de Imigração), de ٢٠١٢, a vigência da concessão de vistos humanitários
para os haitianos se encerra em outubro de ٢٠١٥, aumentando a pressão
para o ingresso. Entretanto, há a possibilidade de o prazo ser adiado para até
o final de ٢٠١٥, porém a movimentação de estrangeiros na fronteira não
deverá diminuir ou se encerrar.
Outra determinação do Conare (Conselho Nacional para Refugiados) do
ano passado flexibiliza o acesso ao país de quem se declara nessa condição
242
perante a Polícia Federal. Isso também explica o grande número de
imigrantes africanos e até asiáticos que estão entrando no país pelo Acre.
Também foi analisado o ponto a qual questionava a relação estabelecida
nos espaços de trabalho. Dentre as observações mais usadas estão a
expressões: aqui trabalho muito, mas tenho salário; os patrões no Brasil não
são ruins, mas trocam os funcionários de função com frequência, e as
dificuldades de adaptarem-se as normas de segurança de trabalho. Muitos
depoimentos afirmam que os treinamentos dados com vistas a proteção do
trabalhador não são bem assimilados pela dificuldade imposta pela língua.
3 EDUCAÇÃO E INCLUSÃO: IMIGRANTES HAITIANOS
NO SUL DO BRASIL
Como já apontado, homens e mulheres de idade variada circulam nas
mais diversas regiões do Brasil com o objetivo de integrarem-se a ‘Pátria
Laboral’. Dentre as inúmeras dificuldades de adaptação e inclusão está o
domínio da língua portuguesa. O aprendizado linguístico tem sido a maior
dificuldade dos imigrantes e são observáveis algumas ações desenvolvidas
por conta de organismos não governamentais.
A Igreja Católica por meio de sua pastoral local teve a iniciativa de
começar um curso de português básico em (Porto Velho/RO), ministrado
por um haitiano que já aprendeu a língua portuguesa (Brasil). A partir deste
aprendizado inicial, criou-se um projeto de extensão na Universidade
Federal de Rondônia, denominado Migração haitiana na Amazônia
brasileira: linguagem e inserção social de haitianos em Porto Velho,
objetivando de imediato o ensino da língua portuguesa, noções de história e
geografia do Brasil e da Amazônia, noções de direitos humanos e
trabalhistas, visando sua inserção social. (COTINGUIBA; PIMENTEL.
2012. p. 101.)
Em contrapartida por iniciativa independente do Governo e com o intuito
de auxiliar e ensinar, foi elaborado o método de ensino de português para
Haitianos, implantado pela Marília Pimentel e o Geraldo Cotinguiba, de
Rondônia, no qual oportunizaram um curso em Santa Catarina e outro em
Porto Alegre no ano de 2014.
243
Nessa assertiva, também pode-se citar a experiência desenvolvida no
norte do Rio Grande do Sul, mas especificamente no município de Erechim
junto a Congregação Anglicana. Essa valorização da cidadania e promoção
da inserção social de um cidadão consciente e de atuação relevante se
revela contínua ao longo da história da Igreja Anglicana no Brasil. Guedes
(2010) assevera que a relevância da educação para a Igreja sempre se deu,
também, no contexto do exercício da cidadania e na busca da democracia
plenamente exercida na vida do país.
Também nos dizeres de Drey, verifica-se uma imbrincada relação da
atuação da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil para a construção de uma
sociedade democrática e para a capacitação de indivíduos capazes de
exercer cidadania plena pelo estabelecimento de entidades educacionais:
Um ponto extremamente relevante para o empreendimento dessas missões no campo
educativo, sobretudo de formação das instituições de ensino, era a preocupação com a
inserção de novos sujeitos ativos na sociedade, que pudessem exercer plenamente sua
cidadania e assim contribuir para a consolidação da República brasileira, que dava seus
passos nas primeiras décadas do Século XX. (DREY, 2013, p. 38)
A principal motivação da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil para a
manutenção de escolas e missões é a emancipação do sujeito. Com a
educação, a Igreja propagava seus ideais de fraternidade, justiça e
igualdade. Essa atividade educacional proporcionava aos fiéis, e àqueles
que noutra banda não encontrariam guarida, oportunidade de crescimento
pessoal, e, consequentemente, social.
Assim, a Igreja Anglicana manteve postura historicamente vinculada à
propagação dos ideais da cidadania plena e prestação de serviços
educacionais a parcelas vulneráveis da sociedade ou excluídos socialmente,
conforme se verifica nas afirmações de Drey:
A oferta de ensino das instituições anglicanas, ao que consta dos documentos, era destinada
a dois públicos distintos: membros da elite não católica, que procurava uma alternativa de
ensino frente às instituições católicas romanas; e alguns sujeitos históricos provenientes de
camadas sociais menos favorecidas, que encontravam nas instituições anglicanas, a
possibilidade do acesso às letras e ao conhecimento. (DREY, 2013, p. 84)
E foi por meio dessas atividades que a Igreja Episcopal Anglicana do
Brasil revelou sua valorização da cidadania e da educação como ferramenta
libertadora e emancipadora, conduta que perdura até hoje como postura de
acolhida e garantia dos direitos dos migrantes, seja através do oferecimento
244
de oportunidades de formação e aprendizado da língua portuguesa – como
forma de inserção social e exercício da cidadania – seja por intermédio da
prestação de serviços básicos no seio das missões aos marinheiros
mercantes, conforme se verificará mais adiante.
Como meio de consecução de seus fins, a Igreja Anglicana, em várias
localidades do globo terrestre, tem historicamente desenvolvido projetos no
campo da educação, evidenciando sua preocupação com a difusão do
conhecimento a todos quanto possíveis. Em 1907, já se revelava essa
preocupação, conforme o 9º Concílio da Igreja Episcopal Brasileira (como
era denominada a Igreja à época).
As escolas do Governo são lamentavelmente ineficientes. A falta de disciplina intelectual e
moral é tão evidente que nem o clero, nem o leigo pode apoiar as escolas ao seu redor. O
problema se tornou urgente e as oportunidades proporcionam à Igreja a possibilidade de
aprofundar sua influência na vida daqueles que lhes foram confiados (ACTAS DO 9º
CONCÍLIO DA IGREJA EPISCOPAL BRASILEIRA, 1907, p. 25)
Para Guedes (2010), a importância que a igreja atribuía à educação tinha
também caráter político, ou seja, o exercício da cidadania para a plena
consecução da democracia na vida nacional.
Assim, verifica-se a grande relevância atribuída pela Igreja Anglicana à
educação como ferramenta de inserção social e de desenvolvimento da
cidadania que tem eco, ainda hoje, nas diversas ações desenvolvidas para a
promoção da educação.
A parceria entre Prefeitura Municipal de Erechim e Faculdade Anglicana
de Erechim, tem como objetivo o ensino da língua portuguesa e é
desenvolvida pelas duas entidades, estabelecendo-se a responsabilidade do
ente político na concessão do vale-transporte, alimentação e profissional
docente especializada na alfabetização de jovens e adultos; e da instituição
de ensino superior no fornecimento da infraestrutura de sala de aula.
Este convênio já gera novas oportunidades de inserção e integração aos
haitianos, uma vez que alguns alunos que frequentam o curso de língua
portuguesa há mais tempo, e dominam melhor o vernáculo, iniciaram os
estudos no curso técnico em Segurança do Trabalho no Instituto Anglicano
Barão do Rio Branco (escola de educação básica mantida pela Igreja
Episcopal Anglicana do Brasil em Erechim), desta forma ampliando sua
formação técnica e aumentando suas chances de inserção no mercado de
trabalho.
245
Ainda no âmbito da acolhida e garantia de direitos aos migrantes,
também a Igreja Anglicana tem envidado seus esforços. Cite-se como
exemplo as iniciativas desenvolvidas pela The Episcopal Church por meio
da missão aos marinheiros mercantes denominada The Seamen´s Church
Institute of New York and New Jersey (Instituto Igreja dos Marinheiros),
com sede em Nova Iorque e bases de atendimento em Port Newark, em
Nova Jersey, e mesmo no Brasil (no Espírito Santo). Esta missão
desenvolve atividades de garantia dos direitos dos marinheiros mercantes,
com ações de conscientização e fiscalização das condições das embarcações
por intermédio do seu Center for Seafarer´s Rights (Centro para os Direitos
dos Marítimos) que conta com advogados e acadêmicos do curso de direito
designados para fornecer aconselhamento jurídico aos marítimos e, em caso
de necessidade, recorrer ao judiciário para garantia e proteção às normas
laborais, de segurança do trabalho e de direito internacional marítimo. Uma
das atividades mais desenvolvidas naquela missão é a intermediação com as
autoridades portuárias norte-americanas para que seja concedida a chamada
shore-leave, muito cobiçada pelos marítimos quando ancorados nos portos
estadunidenses.
Outra iniciativa que merece destaque, ainda na mesma seara da proteção
aos direitos dos marítimos, é a The Mission to Seafarers (A Missão para os
Marítimos) da Church of England, cuja missão é a garantia e proteção dos
direitos dos marítimos nos portos ao redor do mundo. A Missão para os
Marítimos tem instalações em vários portos, inclusive Belém, no Pará, e
Pernambuco (mais especificamente, no Porto de Suape-PE). As atividades
desenvolvidas pela missão vão desde o fornecimento de aconselhamento
espiritual até o auxílio diante das dificuldades com acesso às instalações da
missão ou facilidades instaladas no setor portuário.
No Brasil, a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (nomenclatura oficial
da Igreja Anglicana no país), tem desenvolvido, além das parcerias com a
The Seamen´s Church Institute e com a The Mission to Seafarers acima
mencionadas, o atendimento às necessidades dos migrantes por intermédio
do mencionado convênio celebrado entre a Prefeitura Municipal de
Erechim-RS e a Faculdade Anglicana de Erechim-RS onde são oferecidas
aulas de português, gratuitamente, à comunidade de imigrantes da região.
246
4 INTEGRAÇÃO E SOCIABILIDADE: UMA EXPERIÊNCIA
COLETIVA FAE E PODER PÚBLICO MUNICIPAL
É possível perceber que a escola, para os imigrantes haitianos, atua como
referência para um novo status, já que em sua maioria, os haitianos vestem
as suas melhores roupas para frequentar as aulas e tem na figura do
professor a representação da autoridade máxima. No contexto da
observação ao grupo foi possível presenciar atitudes e gestos de
amabilidade e cooperação com a educadora e gestão diretiva.
Acrescente-se ainda que o espaço disponibilizado pela Igreja Anglicana
para as aulas termina por ser um ponto de encontros. Concretamente, estes
encontros passam a criar uma rede de sociabilidade que se fortalece, um
local em que as informações são compartilhadas, reuniões para emprego são
realizadas e também se assiste à construção de laços de amizade e à
manifestação das relações de parentesco.
Nesse processo de fortalecimento da cidadania, pela consolidação de
ferramentas de interação social, integração cultural e inserção no mercado
de trabalho, verifica-se que, para os imigrantes haitianos no norte do Rio
Grande do Sul, as possibilidades de alcançar os objetivos pessoais e
coletivos de uma vida melhor são maiores. A condição de expressar-se e ser
entendido, assim como, entender com clareza o que lhe é dito, proporciona
melhores condições de compreensão do mundo ao redor e também
possibilidades de maior tempo de permanência no emprego.
Essa compreensão potencializada também permite aos imigrantes um
melhor entendimento nas normas e regras relativas à saúde e segurança do
trabalhador e culmina por minimizar os riscos no ambiente de trabalho. Não
somente permite ao trabalhador imigrante melhor compreensão das normas
de segurança, bem como, uma maior apropriação dos direitos laborais
garantidos ao operário no Brasil e a possibilidade de denunciar, com
clareza, os abusos sofridos e eventual desrespeito infligido ao seu
patrimônio jurídico-laboral.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
247
O presente trabalho apresentou elementos da relação existente entre a
chegada dos imigrantes haitianos no Sul do Brasil e seu processo de
integração, mais especificamente buscando a efetivação de direitos aos
recém-chegados no quesito Educação.
Em relação à ausência de condições mínimas de sobrevivência, atingindo
em alguns casos a própria dignidade humana - como, por exemplo, tentar
escapar dos desastres ambientais e, mais especificamente quando isso
ocorre com o grupo de haitianos, observou-se que as centenas de homens
provenientes dos países de economia periférica buscam refúgio nos países
de economia central, mas na maioria das vezes não conseguem livrar-se do
estigma da miséria. Trata-se de uma nova era de colonização, mas, dessa
feita, uma colonização feita pelo (e em benefício do) capital.
A revolução tecnológica acarretou consequências no mercado de
trabalho, o que gerou reflexos nas massas migratórias de trabalhadores, que
partiram em busca de colocação profissional. Essa transformação da
tecnologia facilita o trânsito de informações e de pessoas no mundo, o que
também influi nas migrações em geral.
O contato com o grupo de haitianos permitiu concluir que quando o
imigrante é identificado apenas por suas características étnicas e pelo nicho
do mercado de trabalho em que consegue se inserir, o que ocorre com certa
constância, é uma identificação negativa e, como consequência é negado ao
indivíduo o reconhecimento como um ser humano completo. Sua
identificação como trabalhador imigrante diante da sociedade acaba
servindo de empecilho para que possa conseguir melhor colocação de
trabalho, ainda que se trate de um trabalhador qualificado, frustrando suas
esperanças de, ao atravessar fronteiras, obter acesso a um mundo melhor.
Verificou-se, nas entrevistas, que algumas necessidades básicas de
trabalho são desrespeitadas em virtude da condição de imigrantes dos
trabalhadores haitianos como: dificuldade linguística, adjetivações
histórico-culturais e dificuldade em adaptar-se as múltiplas tarefas exigidas
pelo empregador. Sem sombra de dúvidas, o domínio da língua nacional e
sua alfabetização e ampliação da escolaridade os torna cidadãos inclusos.
Nesse aspecto, a busca e ampliação da escolaridade colabora com o
processo de integração. Com vista a essa assertiva, a Igreja Episcopal
Anglicana do Brasil promoveu a aproximação dos haitianos a entidades
educacionais. Esta postura revela a importância atribuída à educação como
248
ferramenta de transformação social e pessoal, na medida que fornece ao
indivíduo condições de protagonismo pessoal e social, assim como, uma
sólida e crítica inserção social. Entretanto, os desafios que os haitianos
encontram no Brasil, no campo da educação, apresenta um quadro flagrante
da ausência de uma política de imigração e, neste caso, de um despreparo
quanto a esse fluxo migratório.
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de17 de dezembro de 2014.
250
ESPAÇO URBANO ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO:
VIDA COM QUALIDADE E XENOFOBIA
Luiz Carlos Segala121
Mariana Carolina Lemes122
Jivago Pizarro Schulte Ulguim123
RESUMO
O trabalho tem por tema a análise do espaço urbano. Para a delimitação do
tema, restringiu-se o âmbito de investigação a considerações sobre a
harmonização do direito ao espaço urbano ecologicamente equilibrado,
ponto de partida para uma vida com qualidade, com as ondas migratórias. A
perspectiva de realização do direito ao espaço urbano ecologicamente
equilibrado no contexto de imigrações é o problema sob investigação. O
objetivo geral do artigo é discutir os mecanismos de efetivação do direito à
luz de um estudo multidisciplinar. Optou-se pelo método de abordagem
dialético. Utilizou-se a documentação indireta, abrangendo a pesquisa
documental e a bibliográfica.
Palavras-chave: Meio ambiente artificial; Meio ambiente ecologicamente
equilibrado; Xenofobia.
1INTRODUÇÃO
O estudo tem por tema o meio ambiente artificial, mais especificamente
os espaços urbanos.
Para a delimitação do tema restringiu-se o âmbito de investigação a
considerações sobre o direito fundamental ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, com especial atenção às colisões entre
desenvolvimento sustentável das áreas urbanas e xenofobia.
O tema é relevante e atual, justificando-se a sua escolha diante da
escassez de textos científicos que explorem o prisma tal como delimitado,
bem como pela contemporaneidade e essencialidade dos debates referentes
aos aumentos de conflitos xenofóbicos. A pertinência do assunto se
justifica, ainda, pelo recrudescimento do número de demandas
251
administrativas e judiciais que perseguem a garantia do direito humano à
habitação, principalmente confrontando-o com o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
A pesquisa tem como problema a realização do direito à vida com
qualidade nos espaços urbanos e do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado nos casos que envolvem a convivência com
migrantes, envolvendo questões xenofóbicas.
O objetivo geral do artigo é discutir a aplicação do modelo duplo de
regras e princípios às questões referentes ao direito à moradia e ao direito
ao espaço urbano ecologicamente equilibrado no atual contexto de
recrudescimento da xenofobia.
Optou-se pelo método de abordagem dialético para o estudo do tema,
através da percepção de uma lacuna nos conhecimentos acerca da qual
formula hipóteses.
No intuito de atingir os propósitos da pesquisa, coletando os dados
necessários à sua realização, foi utilizada a documentação indireta,
abrangendo a pesquisa documental e a bibliográfica.
Para sua concretização, a pesquisa propõe um estudo multidisciplinar do
equilíbrio ecológico necessário aos centros urbanos, com o objetivo de
identificar os fatores determinantes para uma possível mudança de
paradigma na produção e manutenção desses espaços, assegurando o direito
à cidade e à arquitetura a todos; migrantes, ou não.
No intuito de alcançar os objetivos, o desenvolvimento do texto foi
organizado de modo a, num primeiro momento dedicar-se ao estudo do
espaço urbano ecologicamente equilibrado, direito à moradia e do direito
meio ambiente ecologicamente equilibrado e, posteriormente, à
problematização do modelo duplo de regras e princípios, de Robert Alexy,
refletindo sobre a justificação e a intensidade de eventuais restrições às
normas de direito fundamental envolvidas (especialmente vida e moradia
em espaços urbanos).
Espera-se, ao final, oferecer colaboração à comunidade acadêmica,
tecendo considerações sobre a harmonização dos direitos à vida e,
especialmente à moradia, na sociedade de risco e o direito ao espaço urbano
ecologicamente equilibrado, livre de xenofobia.
252
2 ESPAÇO URBANO ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO
O artigo pretende ser ponto de partida no estudo do espaço urbano
ecologicamente equilibrado através de diferentes ramos do conhecimento.
O espaço urbano é aqui analisado como espécie do gênero meio
ambiente artificial (SIRVINSKAS, 2015, p. 759), ao passo em que o meio
ambiente ecologicamente equilibrado é entendido como o direito à vida
com qualidade nos centros urbanos.
Tratar do espaço urbano é trazer à baila um tema abrangente e complexo
(SPOSITO, 2011, p. 123), que, por isso mesmo, possibilita o tratamento
transdisciplinar da questão.
OLIVEIRA ([s.d.], p. 177) ensina que é nas cidades e nos seus lugares,
mais especificamente, que os direitos, sob a forma de leis, aparecem de
forma palpável e contraditória, decodificando-se em normas e posturas que
regem a vida urbana.
Pondere-se que no intuito de reger a vida urbana, a Lei nº 10.257/2001
regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 (CF),
buscando estabelecer parâmetros para o uso da propriedade urbana em
benefício da coletividade, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, além,
é claro, de proporcionar o equilíbrio ambiental (ANTUNES, 2015, p. 649).
Nesse sentido, o Estatuto da Cidade foi idealizado para propiciar a boa
gestão da vida urbana, vez que “gerir cidades é produzir impactos sobre o
meio ambiente – positivos ou negativos” (ANTUNES, 2015, p. 677).
A cidadania é, sobretudo, uma questão de empoderamento de pessoas; as
balizas de sua efetivação se delineiam sob a pressão de interesses diversos
que procuram encontrar espaço de expressão e negociação, afigurando-se as
cidades como um campo de observação privilegiado para a reflexão dos
rumos que estão e que se pretende sejam tomados por determinada
comunidade e a construção prática e teórica da cidadania, assim como seus
efeitos.
1. 1 Meio ambiente ecologicamente equilibrado
Os seres humanos estão todos – sem exceção – inseridos no meio
ambiente, estando o meio ambiente protegido em diversos documentos
internacionais.
253
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 traz, em seu Título VIII,
Capítulo VI, artigo 225, previsão sobre o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
Em nível infraconstitucional, o inciso I do artigo 3º da Lei nº 6.938, de
1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente – PNMA) oferece o
conceito de meio ambiente:
Art 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
I - Meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física,
química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas;
Já o artigo 4º da PNMA define, dentre outros objetivos, que a política
nacional do meio ambiente visará a compatibilização do desenvolvimento
econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do
equilíbrio ecológico e, a definição de áreas prioritárias de ação
governamental relativa à qualidade e ao equilíbrio ecológico, atendendo aos
interesses da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos
Municípios.
As cidades devem visar, igualmente, a harmonização de seu
desenvolvimento e crescimento com a preservação e qualidade dos espaços
urbanos, de forma que estes sejam equilibrados.
1. 2 Cidades ecologicamente equilibradas
Ao contrário da cidade sem vida, a cidade viva fervilha, denotando maior
possibilidade de felicidade para todos.
O conceito de cidade viva, porém, é relativo (GEHL, 2015, p. 63), não se
limitando a uma aferição quantitativa. Ou seja, não é o número de pessoas
que a torna efervescente, interessante, mas, sim, o espaço convidativo,
popular, acolhedor.
A qualidade de vida na cidade é uma preocupação destacada por seu
caráter multifacetado (GEHL, 2015, p. 65).
GEHL (2015, p. 63) assim destaca:
Conquanto a cidade viva e convidativa seja um objetivo em si mesma, ela é também o ponto
de partida para um planejamento urbano holístico, envolvendo as qualidades essenciais que
tornam uma cidade segura, sustentável e saudável.
254
A partir daí pode-se verificar que as cidades deveriam ser o produto de
um planejamento, holístico, ou seja, transdisciplinar, que pudesse promover
um ambiente ecologicamente equilibrado.
O potencial da vida da cidade, como processo de autorreforço, destaca a importância de um
cuidadoso planejamento urbano que concentra e inspira a vida nas novas áreas urbanas.
O planejamento urbano deve ser, pois, pensado para privilegiar o
convívio harmônio dos cidadãos, inspirando e facilitando uma vida
harmônica para todos.
Quando o planejamento não existe ou não é adequado se iniciam
conflitos, não se limitando estes apenas aos xenofóbicos.
1. 3 Xenofobia
Como ressaltado por BAUMAN (2009, p. 20),
Paradoxalmente, quanto mais persistem – num determinado lugar – as proteções “do berço
ao túmulo”, hoje ameaçadas em toda parte pela sensação compartilhada de um perigo
iminente, mais parecem atraentes as válvulas de escape xenófobas.
O autor ressalta o fato de a xenofobia seria uma tentativa desesperada
dos locais de salvar a solidariedade e o Estado Social de um determinado
território, atacando os estrangeiros, sobretudo os migrantes, supostamente
os responsáveis pelo declínio da proteção conquistada ao longo da história
(idem, pp. 19-21).
BAUMAN aponta para o fato de que, na atualidade, há uma preocupação
não com todas as formas de reveses e com o “des-emprego”, não como uma
condição temporária, mas, sim, como algo perene: o residente local ou
nacional compreende que excluído da sociedade (e. g. tendo seu emprego
ocupado por um imigrante), poderá ser definitivamente alijado das
proteções oferecidos pelo “guarda-chuva” estatal (idem, p. 21-23). Segundo
o autor, percebe-se que a sociedade abriria mão dos desempregados
crônicos e dos criminosos “de bom grado”, por interpretar que teria tudo a
ganhar se o fizesse (idem, p. 24); tais pessoas são vistas como não passíveis
de serem “socialmente recicladas” (idem, p. 25).
SOUZA (2002, p. 61), por seu turno, diz que
O preconceito é, normalmente, uma forma pré-consciente de medo; alimenta-se do medo de
sentir medo, ou seja, de objetivar o temor, e afasta do horizonte o perigo de um confronto
255
direito com o diferente por sua anulação violenta ou sublimada a priori.
Os cidadãos temem o estrangeiro, o imigrante, pelo medo que este se
apodere de sua cidade, de seu trabalho, de suas oportunidades. Trata-se de
um discurso do ódio (hate speech) a exigir a atenção das autoridades e a
elaboração de políticas públicas que o inibam, sob pena de, omitindo-se os
administradores, verem as situações de xenofobia se ampliarem, com a
eclosão de conflitos.
1. 4 Moradia
Em âmbito internacional, o direito à moradia é reconhecido como direito
humano desde 1948, tendo sido expressamente destacado pela Declaração
universal dos direitos humanos, em seu artigo 25.1, o qual assim destaca:
Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família
saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os
serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença,
invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu
controle (grifo nosso).
A partir daí a moradia erigiu-se num direito humano reconhecido ao
redor do mundo, passando a ser reconhecido por sua indispensabilidade à
dignidade da pessoa humana.
O Pacto internacional de direitos econômicos sociais e culturais
(PIDESC), internalizado pelo Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992, em seu
artigo 11.1 prevê que os Estados-partes reconhecem o direito de toda pessoa
a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à
alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria
contínua de suas condições de vida.
O Comitê de direitos econômicos, sociais e culturais (CESCR), ao
interpretar o artigo 11.1 do PIDESC aponta aspectos do direito à moradia,
bem como da questão atinente a remoções e despejos forçados (Comentário
Geral nº 7 do CESCR).
A Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de
discriminação racial, internalizada no Brasil pelo Decreto nº 65.810, de 8 de
dezembro de 1969, em seu artigo V, “e”, “iii”, dispõe sobre o compromisso
dos Estados-partes de proibir e a eliminar a discriminação racial em todas
suas formas e a garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei sem
256
distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica, inclusive no gozo
do direito à habitação.
A Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação
contra a mulher, adotada e aberta à assinatura, ratificação e adesão pela
Resolução 34/180, da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 18 de
dezembro de 1979, no artigo 14. 2, traz que os Estados-partes adotarão
todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher
nas zonas rurais a fim de assegurar, em condições de igualdades entre
homens e mulheres, que elas participem no desenvolvimento rural e dele se
beneficiem, especialmente através de reforma agrária e reassentamento,
assegurando às mulheres o gozo de condições de vida adequadas, inclusive
no que pertine à habitação.
A Convenção sobre os direitos das crianças, promulgada no Brasil pelo
Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990, por seu artigo 16.1 dispõe
que nenhuma criança será objeto de interferências arbitrárias ou ilegais em
sua vida particular, sua família, seu domicílio ou sua correspondência, nem
de atentados ilegais a sua honra e a sua reputação, sendo ônus dos Estadospartes, de acordo com as condições nacionais e dentro de suas
possibilidades, adotar medidas apropriadas a fim de ajudar os pais e outras
pessoas responsáveis pela criança a tornar efetivo esse direito e, caso
necessário, proporcionar assistência material e programas de apoio,
especialmente no que diz respeito à nutrição, ao vestuário e à habitação.
A Convenção sobre o status dos refugiados, em seu artigo 21, dita que os
Estados Contratantes darão aos refugiados que residam regularmente no seu
território, tratamento tão favorável quanto possível e, em todo caso,
tratamento não menos favorável do que aquele que é dado, nas mesmas
circunstâncias, aos estrangeiros em geral no que respeita ao alojamento.
Finalmente, a Convenção internacional para a proteção dos direitos de
todos os trabalhadores migrantes e membros de suas famílias, de ١٩٩٠, no
artigo ٤٣.١ traz previsão de que os trabalhadores migrantes devem gozar de
igualdade de tratamento em relação aos nacionais do Estado do emprego em
relação ao acesso à moradia, incluindo projetos de moradia social, e
proteção contra exploração em relação a aluguéis.
Já no âmbito nacional, o direito à moradia possui status constitucional,
assegurado como direito fundamental, no artigo 6º, caput, da Constituição
257
Federal de 1988, tendo sido inserido através da Emenda Constitucional nº
26, de 2000.
Dita o mencionado dispositivo legal, em sua redação dada pela Emenda
Constitucional nº 90, de 2015:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (grifo nosso).
Como se vê, o direito à moradia foi reconhecido de forma expressa pelo
constituinte mais de uma década após o termo inicial de vigência da Lei
Fundamental de 1988.
1. 5 Modelo duplo
Os direitos à moradia e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
estão inseridos, ambos, no rol de direitos fundamentais, tratando-se,
portanto, de normas materialmente constitucionais.
Para muitos, é grande a importância em reconhecer se as normas124 que
tratam de direitos fundamentais devem ser reconhecidas como regras ou
como princípios.
Tal premissa está vazada no pensamento de Robert Alexy, para quem “a
distinção entre regras e princípios é um dos pilares fundamentais do edifício
da teoria dos direitos fundamentais” (ALEXY, 2011, p. 82).
Alexy discute, em sua teoria, os modelos puros de princípios e de regras
e propõe um modelo duplo, de regras e princípios.
Ab initio, uma norma seria reputada ou como regra ou como princípio,
mas, na prática, podem adquirir um caráter dúplice e, uma vez que nenhum
direito fundamental é absoluto, poderá, em qualquer caso, sofrer restrições.
As restrições que possam atingir as normas fundamentais estão
autorizadas pela Constituição, de forma explícita ou implícita.
Cada restrição a direitos fundamentais deve ser estabelecida apenas e
tão-somente no caso de restarem preenchidas algumas condições (“estados
de restrição”), de forma garantir que a redução dos direitos ou garantias é
autorizada num nível menor (por exemplo, individual) para garantir a sua
manutenção ou ampliação num nível maior (por exemplo, metaindividual).
Nos processos de enfrentamento entre normas de direito fundamental,
“[nenhuma] tem inteiramente o caráter de regra ou de princípio, senão um
258
caráter normativo de duplo nivelamento (nível das regras e nível dos
princípios)”(BERNARDES; FERREIRA, 2016, p. 639).
1. 6 Direito à vida e à moradia (e)m espaço urbano
ecologicamente equilibrado
Ao falar em meio ambiente na ‘sociedade de risco’ - expressão atribuível
a BECK (2006), que busca fazer referência no texto aos riscos aumentados
presentes na sociedade de consumo -, necessária a compreensão, ao menos
inicial, do que vem a ser a ‘justiça ambiental’, tema tratado com maestria
pelo autor ACSELRAD (2010)125, através da doutrina de quem a
expressão vem ganhando renome.
A justiça ambiental trata de questões afetas ao tema meio ambiente como
objeto de atenção na atualidade, pois falta reconhecer a centralidade dos
princípios de justiça ambiental para a viabilização da proteção ecológica,
atividade econômica e futuro da democracia.
Segundo a doutrina da ‘justiça ambiental’, atualmente há uma crescente
escassez de recursos naturais e desestabilização de ecossistemas, que atinge
determinados grupos sociais e áreas geográficas de modo diferente e
injusto.
A relação entre a sociedade e a natureza reflete assimetrias políticas,
sociais e econômicas, havendo um aumento da degradação ambiental em
comunidades negras, grupos indígenas e populações de menor renda.
Existiria um (des)balanço de poder que se torna origem e multiplicação
de impactos ambientais, sem que existam análises a respeito. A ausência de
comprovação científica das injustiças ambientais permite que os detentores
do poder e as camadas produtoras pretendam a sua neutralidade política nos
problemas de conservação do meio ambiente.
Uma vez que inexiste comprovação da ‘culpa’ dos governos e dos
produtores, o problema passa deve ser tratado a partir de métodos técnicoregulatórios ao invés de redistributivos, participativos e compensatórios.
2CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como cidadãos devemos empreender uma busca constante por
cidadanias mais justas e estratégias mais inclusivas e democráticas, com a
259
expurgação da xenofobia nos espaços urbanos.
Nesse sentido, torna-se necessário compreender que ‘justiça ambiental ‘é
muito mais que uma doutrina, ou uma ideologia, representando um
processo contra as injustiças tradicionalmente incrustadas no Estado de
Direito convencional.
A problemática ambiental incorpora desigualdades sociais, de raça, de
sexo, de classe, bem como a lógica hegemônica de acumulação de capital e
cerceamento de oportunidades, inclusive de obtenção de moradia digna e
vida nas cidades.
As pessoas mais ricas têm advogados, assistentes periciais e dinheiro
para se defender, enquanto as mais pobres nada têm senão os problemas
ambientais que legados pelas indústrias e governos, e a maior parte delas
não possui uma propriedade, estando alijadas do âmbito de realização do
direito à moradia.
A verdade é que nosso planeta vem sendo apropriado por interesses cada
vez mais excludentes. Prova disso seria o ‘Memorando Summers’ (1991),
do Banco Mundial, caso em que se postulou a transferência das indústrias
mais poluentes aos países menos desenvolvidos ao pensamento de que
nesses países há menor controle, maior aceitação da degradação e menor
expectativa de vida, o que autorizaria países ditos desenvolvidos a poluí-los
e causar lesões à população, tratada como “refugo humano” (BAUMAN,
2005).
Se forem consideradas as desigualdades sociais, podemos alcançar um
maior nível de justiça ambiental, através de múltiplas estratégias de ação e
maior capacidade criativa, ao passo que, se ignorarmos as desigualdades
sociais, alcançaremos apenas soluções que não asseguram proteção
ambiental para todos, consequentemente com um menor nível de justiça
ambiental e estratégias limitadas.
As injustiças ambientais não são uma abstração; elas são facilmente
quantificadas e localizadas, sendo possível verificar que lutas para
democratização de acesso a bens e serviços supostamente universais
“ambientalizam” demandas.
Os riscos ambientais devem ser percebidos como atos essencialmente
políticos e, a população deve perceber e reagir de acordo com suas
condições sociais, culturais e organizativas.
260
Migrantes e estrangeiros “aceitam” maiores riscos na falsa cognição de
que serão beneficiadas por melhores oportunidades de emprego e moradia
nos locais onde se estabelecem.
De um lado temos o aumento da legislação (crescente em volume,
complexidade e burocratização) e, de outro, um “Estado-anão” (com a
contenção de seu papel quanto a políticas redistributivas sociais, regionais e
ambientais).
A globalização torna-se outro obstáculo às lutas por justiça ambiental em
razão da mobilidade do capital, captura do Estado pelo neoliberalismo,
neutralização das relações antagônicas e, riscos da política de
desregulamentação.
Emprego e renda sofrem forte pressão de parcelas importantes da
população para submissão à exploração ambiental e social enquanto o
movimento de justiça ambiental se digladia com o modelo monocultural
exportador (produção de divisas/crescimento econômico), viabilizando mais
injustiças ambientais e o aumento da desigualdade e da marginalização,
com a proliferação da xenofobia.
Vivemos uma necessidade de mobilização forte e centrada dos direitos
universais, pois, enquanto os danos ambientais puderem ser transferidos
para os mais pobres, especialmente se forem migrantes.
A pressão geral sobre o meio ambiente não recrudescerá. É necessário
proteger os espaços urbanos hoje, para a presente e as futuras gerações, ou
não haverá quase nada o que se proteger. O desenvolvimento das cidades
deve ser sustentável, com a busca continua por alternativas que permitam o
aumento da proteção deferida ao ambiente para todos, sejam locais,
migrantes ou estrangeiros.
A coleta de dados sobre processos xenofóbicos e a elaboração de
políticas públicas para a inibição a curto, médio e longo das situações de
conflito deve ser incentivada, com o estudo multidisciplinar do problema
como forma de melhoria das condições de vida nas cidades.
3REFERÊNCIAS
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263
EDUCAÇÃO PARA OS DIREITOS HUMANOS: TEORIA
CRÍTICA E SENSIBILIDADE
Diogo Dal Magro126
RESUMO
O objetivo geral deste estudo é esclarecer a importância de categorias como
a Sensibilidade para o desenvolvimento da Teoria Crítica e a Educação os
Direitos Humanos. O problema de pesquisa é buscar a partir de quais
categorias pode-se capacitar cidadãos comprometidos com os Direitos
Humanos, reinventado também a própria ideia de Direitos Humanos, em
face dos desafios deste início de século XXI. O método utilizado é o
Dedutivo. Como parte das conclusões, observa-se que a Sensibilidade
auxilia no desenvolvimento da alteridade e no reconhecimento do outro
como um “sujeito de direitos”, enquanto a Teoria Crítica analisa a
precariedade e o abismo entre teoria (normas) e prática de Direitos
Humanos, evidenciando a necessária reinvenção de seu conceito,
estruturado na dignidade da pessoa humana.
Palavras-chave:Direitos Humanos, Cidadania, Sensibilidade, Educação.
1 INTRODUÇÃO
Desde sua declaração até hoje, poucos são os avanços concretos e
práticos, mas inúmeros os desafios que os Direitos Humanos encarram na
sociedade pós-moderna do início do século XXI.
Analisando-se por uma perspectiva histórica, alguns dos ideais propostos
pela Revolução Francesa ocorrida em 1789 e também pela Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, do mesmo ano, bem como da Declaração
de Independência dos Estados Unidos, os quais inspiraram e precederam a
Declaração Universal dos Direito Humanos de 1948, ainda não foram
efetivados de maneira satisfatória.
É por meio do horizonte expandido pelo atual momento de trânsito,
ruptura, reinvenção, denominado Pós-Modernidade127, que se pode analisar
tais desafios.
264
Este novo horizonte constitui um novo modo de encarrar o mundo.
Permite a reavaliação da Razão Instrumental e de seus limites, bem como o
desenvolvimento de novas categorias, como é o caso da Sensibilidade,
também denominada Razão Sensível.
O problema de pesquisa deste trabalho fica assim apresentado: a partir de
quais categorias pode-se capacitar cidadãos comprometidos (educados) para
com os Direitos Humanos, bem como redefinir a própria ideia de Direitos
Humanos, em face dos desafios da humanidade do início do século XXI?
Como resposta para esta indagação, apresenta-se a hipótese de que se faz
necessário uma Educação para os direitos Humanos. A Educação para os
Direitos Humanos decorre ao passo que a Teoria Crítica analisa o abismo
entre textos normativos (teoria) e prática, evidenciando a necessidade de
reinvenção dos Direitos Humanos. Um meio vetor para tal é a
Sensibilidade, visto que, enquanto força capaz de aguçar os sentidos, auxilia
no desenvolvimento da alteridade e o reconhecimento do Outro como um
“sujeito de direitos”, desenvolvendo o espaço de consolidação da dignidade.
Propõe-se, como objetivo geral deste trabalho, esclarecer a importância
de categorias como a Sensibilidade para o desenvolvimento da Teoria
Crítica e a Educação para os Direitos Humanos. Para complementar esta
pesquisa, elenca-se os seguintes objetivos específicos: a) entender a
necessidade de reinvenção dos Direitos Humanos, como vetor para a
Educação e efetivação; b) evidenciar, através da Teoria Crítica, as lacunas
existentes entre os textos normativos dos Direitos Humanos e a realidade
social; c) compreender a importância de desenvolver a Alteridade como
eixo central à Educação aos Direitos Humanos.
O método utilizado para o andamento desta pesquisa é o Dedutivo128.
Parte-se da premissa maior de que a educação possibilita o
desenvolvimento. Logo, a premissa menor é que a educação para os
Direitos Humanos, baseada na Sensibilidade e na Teoria Crítica,
oportunizará o desenvolvimento de uma cultura de Direitos Humanos,
composta por indivíduos que pratiquem o Reconhecimento e a Alteridade.
As técnicas que viabilizam o Método são a Pesquisa Bibliográfica e
Documental129 e a Categoria130.
2 UMA NOVA IDEIA DE DIREITOS HUMANOS
265
Um dos avanços trazidos pela Modernidade, e, especialmente graças ao
advento do Constitucionalismo, refere-se a constante ação de busca por
positivação de direitos. No âmbito de Direitos Humanos, observa-se a
inspiração destes, já com a Magna Charta de 1215, mas, especificamente,
com a Petição de Direitos (1628), garantindo direitos patrimoniais, o Ato
Habeas Corpus (1678), positivando direitos processuais, a Declaração de
Direitos (1689), garantindo alguns direitos do “humano”, todas ocorridas na
Inglaterra; com a Carta de Virgínia (1776), promovendo a positivação do
direito à vida, liberdade, propriedade, segurança e felicidade; a Declaração
de Independência dos Estados Unidos da América (1776) e a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), ambas (re)positivando
direitos semelhantes os da Carta de Virgínia (vida, liberdade, propriedade,
segurança).
Já no século XX, a positivação de direitos continua com a Constituição
Mexicana (1917), garantindo direitos trabalhistas; a Constituição de
Weimar (1919), positivando direitos sociais; a Declaração Internacional de
Direitos do Homem (1929), e, em 1948, a atual Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
É perceptível o esforço tomado tanto pelas nações, positivando os
direitos e garantias fundamentais, quanto por órgãos e poderes
internacionais, até chegar-se a uma declaração universal, que visa, de
acordo com Herrera Flores, “formular juridicamente uma base mínima de
direitos que alcance a todos os indivíduos e formas de vida que compõem a
ideia abstrata de humanidade”. (2009, p. 29)
Observa-se, portanto, uma preocupação em positivar direitos. A
Modernidade, enquanto paradigma a realizar a Razão Instrumental, é vetor
para o Positivismo, no que concerne ao direito como sendo puramente
objetivo. Assim, a visão destes direitos, enquanto positivados, é uma
concepção livre de influências de qualquer natureza. Deste modo, ignora-se
a concepção de que os Direitos Humanos são resultados de um
materialismo histórico que, em meados do século XX, são positivados.
Outra característica referente a positivação de direitos, refere-se ao fato
que, acreditou-se, na Modernidade, sendo resultado do positivismo
normativista, que todos os direitos pudessem ser descritos de forma precisa,
ou seja delimitados e, uma vez positivados tinham validade131 legal, e isto
era sinônimo de eficácia. Para Bittar, dentre as principais questões que
266
influenciaram os juristas do século XX, está “a centralidade das reflexões
jurídicas sobre o princípio da validade, questão que se torna foco de atenção
de toda a esquemática de funcionamento do sistema jurídico” (2009, p. 75).
Esta característica encontra-se presente na própria Declaração Universal
dos Direitos Humanos, embora não tendo o papel do Estado, há a
configuração da ONU.
Passado mais de meio século desde a sua declaração, observa-se que os
Direitos Humanos não cumpriram com todos os seus desafios iniciais e,
ainda, novos surgem neste início de século XXI. Assim sendo, são
necessárias algumas observações.
As condições que levaram à declaração de 1948, segundo Herrera Flores,
fizeram com que seus redatores priorizassem dois grandes objetivos:
1) a descolonização dos países e regiões submetidos ao poder e ao saqueio imperialista das
grandes metrópoles; e 2) a consolidação de um regime internacional ajustado à nova
configuração de poder surgida depois da terrível experiências das duas guerras mundiais, o
qual culminou na Guerra Fria entre dois sistemas contrapostos. (2009, p. 71)
Basta analisar a história para verificar que o Neocolonialismo não se
configura como um desafio atual. Quanto a Guerra Fria, com a queda do
Muro de Berlim e a recente abertura entre Estados Unidos da América e
Cuba, observa-se que estes dois objetivos, que eram centralidade da
declaração de 1948, não se constituem como preocupações na atual
sociedade.
O contexto social, econômico, político deste início do século XXI
configura-se como totalmente outro132. Os novos desafios sociais são outros
e, nesta mudança de contextos e desafios, o objetivo maior de nossos
esforços é, de acordo com o autor Herrera Flores, “[...] armar-se de ideias e
conceitos que nos permitam avançar na luta pela dignidade humana”.
(2009, p. 71)
O caráter universalista dos Diretos Humanos pode revestir-se, por vezes,
de certas armadilhas. Se, durante a Modernidade, houve a dessubjetivação
do homem e a busca por uma igualdade objetiva, a Pós-Modernidade
oportuniza a vivência e importância do plural.
Estabelecer os Direitos Humanos “universais” incute ignorar as
diferentes realidades sociais mundiais, ignorando suas riquezas culturais e
tradicionais, bem como sua formação histórica.133
267
O que deve constituir nos Direitos Humanos de forma universal é a luta
pela dignidade da pessoa humana. Para Herrera Flores,
[...] a luta pela dignidade constitui um caráter global, não parcelado. A luta pela dignidade é
o componente “universal” que nós propomos. Se existe um elemento ético e político
universal, ele se reduz, para nós, à luta pela dignidade, de que podem e devem se considerar,
beneficiários todos os grupos e todas as pessoas que habitam nosso mundo. Desse modo, os
direitos humanos não seriam, nem mais nem menos, um dos meios – talvez o mais
importante – para se chegar à referida dignidade. A dignidade é, por conseguinte, o objetivo
global pelo qual se luta utilizando, entre outros meios, o direito. (2009, p. 75)
A dignidade da pessoa humana134 deve constituir-se, portanto, como
pedra fundamental dos Direitos Humanos e este deve ser seu caráter
universal.135 Para Bittar, a dignidade da pessoa humana também pode ser
entendida como um “[...] minimum exigível socialmente, capaz, por seus
recursos, meios e técnicas, de alcançar justiça social”. (2009, p. 305)
Contudo, não basta apenas redefinir a ideia dos Direitos Humanos em
concepção de dignidade da pessoa humana. É necessário que haja
percepção para que estes sejam adaptados à cada realidade social, que se
constitui pluralmente.136 Além disso, a realidade é dinâmica. Em virtude
disso, é indispensável reinventar os Direitos Humanos cotidianamente, em
face dos múltiplos desafios vividos a todo momento.
3 EDUCAÇÃO PARA OS DIREITOS HUMANOS
Em meio aos atuais tempos de crise, são perceptíveis distintas formas em
que a dignidade da pessoa humana é ferida, e, determinadas vezes subtraída
de seu sujeito. Os Direitos Humanos acabam por tornarem-se vazios em
essência, sendo apenas utilizado sua nomenclatura para considerações
errôneas.
Para Aquino, faz-se indispensável refletir a respeito dos Direitos
Humanos:
A ausência de uma reflexão crítica sobre o significado dos Direitos Humanos como preceito
de compreensão sobre o que Ser humano, fundamentado pela filosofia, indica a grave
carência e limitação de nossa capacidade para perceber os males – físicos e psíquicos – que
se espalham no mundo. As pessoas estão perdendo suas essências para manter algo vazio
como elemento de integração. (2014, p. 45)
268
Eis os novos desafios do contexto deste início do século XX. Repensar
os Direitos Humanos em sua essência. A Teoria Crítica apresenta-se como
vetor indispensável para esta reflexão. Em referência a Teoria Crítica, para
Wolkmer,
[...] pode-se conceituar teoria crítica como o instrumental pedagógico operante (teóricoprático) que permite a sujeitos inertes e mitificados uma tomada histórica de consciência,
desencadeando processos que conduzem à formação de agentes sociais possuidores de uma
concepção de mundo racionalizada, antidogmática, participativa e transformadora. Trata-se
de proposta que não parte de abstrações, de um a priori dado, de elaboração mental pura e
simples, mas da experiência histórico-concreta, da prática cotidiana insurgente, dos conflitos
e das interações sociais e das necessidades humanas essenciais. (2002, p. 5)
O potencial da Teoria Crítica137, enquanto instrumento teórico e prático, é
que ela propicia a o desenvolvimento de uma consciência reflexiva baseada
na realidade. Não se trata apenas de reflexões abstratas, mas sim uma nova
forma de ver a realidade, considerando-se, a partir da reflexão, seus
desafios, sua estrutura, sua constituição histórica. É uma reflexão crítica138
acerca das possibilidades de realizar o novo,139 visto que há uma
significativa distorção entre norma e realidade
É por meio da Teoria Crítica e, posteriormente, da Sensibilidade (Razão
Sensível) que se pode investir contra a realidade que, segundo Bittar,
encontra-se insensível, rude e fria:
[...] A modernidade consolidada, como modernidade que realiza a razão instrumental, em
muitos sentidos e dimensões, exercita rudeza e incute rudeza na dimensão da vida. Essa
rudeza, que bloqueia os sentidos é a mesma que permite a trivialização do absurdo; ela
constrói a dimensão da insensibilidade do cotidiano. A rudeza e a frieza também se tornam
formas de expressão que marcam práticas sociais e determinam muito das próprias práticas
do direito. (2011, p. 58)
Enquanto o cotidiano (a realidade social) apresentar-se insensível, a
prática de ações voltadas aos Direitos Humanos e, consequentemente, à
dignidade da pessoa humana, encontrar-se-ão vazias, esquivas, com
ausência de significados e sentidos.
A Sensibilidade constitui-se em um novo modo de vivenciar a realidade.
A partir de uma sensibilidade, as relações humanas dar-se-ão de forma
fraterna e solidária. Para Bittar, “O termo “sensibilidade” (Sinnlichkeit)140,
em sua amplitude semântica, revela que largos são os horizontes da
269
dimensão do sensível, do sensitivo, do intuitivo, do perceptivo”. (2011, p.
58)
Ao realizar a Sensibilidade, o ambiente cotidiano torna-se palco de
relações de respeito aos Direitos Humanos e a dignidade da pessoa humana.
A respeito da Razão Sensível, esta deve ser encarada como um meiotermo entre a Razão Lógica e a dimensão sensível, presente em todos os
indivíduos, porém, em determinados casos, encontra-se encoberta.
Contudo, tanto a Teoria Crítica, bem como a Sensibilidade, não se
desenvolvem automaticamente. Para que haja seu desenvolvimento no
social, necessita-se de uma pedagogia em Direitos Humanos, que tenha por
objetivo desenvolver estas duas categorias nos indivíduos por meio de uma
Educação para os Direitos Humanos, propiciando a construção de um saber
sensível.141
O papel de uma Educação para os Direitos Humanos é desenvolver, a
partir da Teoria Crítica e da Sensibilidade, dos mais diversos meios e
formas, uma consciência voltada para o Outro, onde haja atitude de
alteridade e de reconhecimento. Para Bittar:
Um dos grandes desafios da educação em direitos humanos é o de gerar sensibilização. Em
que pesa o resgate da sensibilidade para a formação humana e humanista? Qual a tarefa da
educação em direitos humanos nesse setor?[...]Não é somente o aparato cognitivo e o acesso
ao conceito que definem a boa apreensão e percepção de uma realidade. Se a educação em
direitos humanos pretende, como de fato assim se apresenta, realizar cidadania, empoderar
em direitos e educar no contexto histórico, deve fazê-lo por meio de inúmeras linguagens,
que afeta as percepções dos educandos. Pensando a educação em direitos humanos no
ambiente escolar, deve-se ter presente que, se uma sala de aula é um ambiente complexo, do
qual participam educandos com vocações, formações, percepções e experiências as mais
diversas, inclusive dotados de formas de percepção da realidade as mais diversas, das
sinestésicas às visuais e auditivas, fica claro que a diversidade dos canais de
aprendizado/ensino deve ser explorada com habilidade no ambiente de formação
intraescolar. (2011, p. 70)
Os Direitos Humanos, enquanto direitos “do homem” e “para o homem”,
somente são realizáveis com a prática da alteridade, enquanto capacidade
que permite a saída do ego para adentrar na dimensão do Outro (alter). É
desenvolver a compaixão.142 A Alteridade constitui-se como pedra
fundamental para os Direitos Humanos. Para Warat, “[...] definitivamente a
questão dos direitos humanos é uma questão de alteridade. Não podemos
falar de Direitos humanos ignorando o componente da alteridade que o
constitui em estrutura”. (2010, p. 116)
270
O reconhecimento também se constitui como pressuposto aos Direitos
Humanos. Reconhecer o Outro como um sujeito de direitos é reconhecer a
dimensão do Outro como totalmente distinta da dimensão do Eu.
Sem o reconhecimento do outro como um sujeito de direitos, a estrutura
dos Direitos Humanos perde sua significação e seu sentido, fazendo com
que estes tornem-se apenas uma expressão vazia.
A Educação para os Direitos Humanos possibilita desenvolver uma
cultura em Direitos Humanos, a fim de que as relações sociais que marcam
a capacidade civilizatória do homem, sejam capazes de conduzir a uma
emancipação cidadã.143
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os desafios do novo contexto do início do século XXI evidenciam a
necessidade de repensar as práticas voltadas aos Direitos Humanos.
Reinventar os Direitos Humanos, como atitudes de prática cotidiana, que
enalteçam o sentido da dignidade da pessoa humana, são os novos almejos
da humanidade.
A Educação aos Direitos Humanos, viabilizada e construída por meio de
políticas públicas, é capaz de gerar o progresso de uma cultura em Direitos
Humanos, tendo como eixo central, a Alteridade, bem como o
reconhecimento.
A partir disto, as relações humanas passarão a adquirir novos
significados, novos sentidos, demonstrando a capacidade humana de
relacionar-se civilizatória e harmoniosamente.
A Pós-Modernidade caracteriza-se pela subjetivação dos indivíduos,
considerando o dissenso, a diversidade e a vivência do plural.
Somente com uma cultura de convívio com o Outro, respeitando suas
diferenças e colocando-se constantemente em seu lugar é que a
emancipação de uma cidadania surgirá.
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272
DIREITO E GLOBALIZAÇÃO: ENTRE CÉTICOS,
TRANSNACIONALISTAS E GLOBALISTAS
Gustavo Polis144
RESUMO
O presente artigo busca discorrer sobre o Direito inserido nas relações do
mundo “sem fronteiras”. Nesta senda, observa-se como problema de
pesquisa a ser enfrentado, a conceituação de Transnacionalismo assim como
as diferentes visões sobre o tema, no que diz respeito a produção do direito
em cenários globalizados. Através do método indutivo, baseado em
pesquisas e análises bibliográficas tem-se como objetivo discorrer como se
dá a confecção do direito em cenários globalizados sob diferentes óticas
quanto sua produção, validade e aplicabilidade.
Palavras-chave: Globalização; Produção do Direito; Transnacionalismo.
1 INTRODUÇÃO
O estudo que se apresenta objetiva analisar o processo de
transnacionalismo, em especial, no que concerne a produção do Direito em
cenários globalizados, assim como as respectivas divergências teóricas a
respeito do tema. Parte-se da enunciação de o Direito ser um elemento
maleável da sociedade, portanto, acompanhando diretamente toda e
qualquer alteração nos mais diversos aspectos estruturantes do local onde
desempenha sua função.
A ciência jurídica, por muito tempo, classificou o fenômeno das leis
tendo como base a ideia do Estado Soberano. Conceito este utilizado desde
o momento em que se deu a transição da sociedade feudal, guiada pelos
interesses de um Suserano, para a criação dos Estados Nacionais, os quais
passaram a exercer uma jurisdição pautada pela soberania dentro dos
limites de seus determinados territórios. Tendo, em um primeiro momento,
um Rei Soberano como o único detentor do poder de dizer o direito para
aqueles sob seu domínio, perpassando, com a evolução do ideário
capitalista, pelo estado liberal e democrático onde a população, diretamente,
273
selecionaria representantes legitimados para a tarefa de confeccionar as
normas que regem a sociedade.
Porém, durante o século XX o modo como as diferentes nações se
relacionavam entrou em um profundo processo de mutação, assim como as
relações jurídicas. Após findada a Segunda Guerra Mundial o avanço
econômico/tecnológico foi tamanho, que espaços virtuais se criaram, onde o
Estado, por diferentes razões, não foi capaz de compreender, muito menos
regulamentar, fazendo caminho para que agentes (privados), previamente
desconhecidos e indiferentes ao processe legislativo, tomassem esses
espaços para si em detrimento da soberania estatal, nessa conjuntura
originou-se o fenômeno do Transnacionalismo.
Outrossim, como em qualquer outro ramo científico, face a proliferação
do Direito Transnacional no âmbito jurídico, diferentes teorizações e
pensamentos acerca do tema foram produzidos, em especial sobre a
confecção normativa em cenários globalizados.
2 A CRISE DO ESTADO NACIONAL E O SURGIMENTO
DO DIREITO TRANSNACIONAL
A Idade Média foi marcada pela descentralização territorial e política,
em larga escala. Na pessoa do senhor feudal encontrava-se toda força
política dentro de determinadas macro ou microrregiões, sistema este que
perdurou por longos séculos. Entretanto, ao passo que o ser humano passou
a desbravar os confins do planeta, não só os mapas e cartas cartográficas
aumentaram, mas as relações entre os homens entraram em um grande
processo de alteração, seja pelo crescente desenvolver econômico, como
nunca antes visto na história da humanidade, seja pelo advento
centralizador na figura da religião, em especial, a Igreja Católica.
Inevitavelmente, com o exponencial crescimento dos mais variados
ramos de uma inicial sociedade capitalista, tornou-se insustentável a
manutenção do antigo modelo feudal vigente até então. Neste momento,
uma certa desordem estabeleceu-se na sociedade, a qual encontrava-se em
processo de transição do antigo modelo, para um novo, de cunho capitalista.
E para o bem-estar da sociedade civil como um todo, em especial para a
manutenção da paz e estabilidade regional, proporcionando, assim, um
274
campo aberto para a burguesia disposta a investir seu capital no comércio
em pleno desenvolvimento, origina-se o chamado Estado Nacional.
A partir disso a burguesia passa a confiar a centralização de todo poder
político, e consequentemente legislativo, nas mãos de um ente absoluto. A
figura da soberania é alterada, antes baseada na suserania, agora estava
ligada a uma questão territorial, onde um Rei Soberano passou, pouco a
pouco, a fazer valer as decisões do Estado perante aqueles que vivem dentro
dos limites de suas divisas terrestres. Essas transformações fizeram-se
acompanhar de uma descentralização administrativa, que também
modificou os procedimentos pelos quais se formam e se cumprem as
imposições do Estado, que passaram a ser regidos pelo ordenamento
jurídico da própria administração pública (MELLO, 2003).
Outrossim, a sociedade não cessou o processo de desenvolvimento
inerente a condição humana. Ao passo que o Estado-nação se estabeleceu,
primeiramente em seu caráter absolutista, caracterizado pela concentração
de todo poder na figura de um rei soberano, novas correntes de pensamento
acerca dos modelos de agrupamento social surgiram, culminando nas ideias
liberais, e assim sucessivamente.
Em função exatamente dessa busca insaciável por progresso,
característica inerente ao ser humano, que o Estado Nacional como
conhecemos até hoje, acha-se emaranhado em uma profunda crise. Tal fato
decorre do aparecimento de novos agentes, no século XX, que promoveram
grandes alterações na ordem estatal. Notadamente, após findado o período
das Grandes Guerras, as fronteiras terrestres que dividiam os países não
mais significavam um obstáculo para o intercâmbio cultural-jurídico entre
estes. Em função do grande desenvolvimento das tecnologias e da própria
economia, criaram-se espaços (Globalização) onde os Estados, rígidos da
forma que os concebemos, não foram capazes de prestar a devida
regulamentação necessária, fazendo chão para que outros agentes, através
de interesses transnacionais constituídos por meio de instituições novas de
difícil caracterização à luz do glossário político-jurídico moderno, tomem
essas lacunas para si. Notadamente os processos de globalização, de
maneira crescente, criaram um mercado mundial, uma nova ordem supra e
transnacional que permite a livre circulação de capitais, mercadorias, bens e
serviços (STAFFEN, 2015), por consequência, as estruturas estatais
entraram em uma marcha de ruptura.
275
Procede-se, dessa forma, uma ordem global de pluralismo jurídico.
Sendo que este não tem um caráter unitário, não possuindo uma
estruturação específica, ou seja, um Direito entre o público e o privado,
alocado entre a esfera nacional e a supranacional, denominado Direito
Transnacional. O primeiro estudioso que buscou teorizar o fenômeno do
transnacionalismo foi o advogado Philip Jessup, em meados dos anos 1950.
Em um primeiro instante desconstruindo a ideia de um Direito
Internacional, haja vista este apenas compreender as relações de um país
com outro, situação não mais condizente com o novo panorama
globalizado, passando a aduzir que a lei transnacional seria toda lei que
regulamenta ações ou eventos que transcendem as fronteiras nacionais
(JESSUP, 1956, p. 12-40), ao passo que até mesmo Tribunais nacionais
poderiam basear suas decisões em direitos e precedentes internacionais ou
transnacionais, sendo esta, ainda hoje, uma das definições mais difundidas
do vocábulo. Apontou, de igual sorte, o processo de expansão das fontes do
Direito, colocando-a como característica fundamental do processo de
transnacionalidade A partir da eflorescência do Direito Transnacional no
século XX, o debate político e acadêmico acerca deste não ficou inerte, haja
vista as diferentes visões construídas sobre a questão ao longo do tempo,
como será abordado em seguida.
3 CÉTICOS
Ao trazer à baila o Transnacionalismo inúmeras “questões de ordem”,
digamos assim, vêm à tona. Para elucidar as discussões mais assíduas
acerca dessa problemática, duas questões emergem com maior relevância,
quais sejam: A lei transnacional pode ser considerada, em seu todo, como,
de fato, uma lei? Ou ainda, o Direito Transnacional pode ser considerado,
em toda amplitude do termo, um Direito, propriamente dito? Para cada uma
dessas questões encontra-se diversas respostas que destoam umas das
outras.
Por séculos a doutrina e filosofia do Direito concentraram-se em
compreender o fenômeno das leis através do advento do Estado Soberano.
Precisamente por esse motivo, comumente, os juristas vêm as leis como
vontades ou até mesmo diretrizes provindas de um ente estatal. Aqueles que
seguem essa clássica linha de pensamento jurídico, muito mais rígida no
276
que se refere a legitimidade do legislador, é tido como um Cético em
relação ao Direito Transnacional.
Os estudiosos filiados a essa teoria consideram impossível conceber leis
elaboradas em âmbitos diversos ao nacional, haja vista ser o Estado o
legítimo e único detentor do poder/legitimação para elaborar qualquer tipo
de norma, e tudo que estiver fora de seu alcance é indiferente ao direito.
Esta, evidentemente, é uma herança das ideias primeiras sobre nações e do
próprio contrato social, onde o grande Estado, exercendo sua soberania com
a anuência dos demais integrantes da sociedade, atuaria como responsável
pela elaboração de normas que visam o bem viver daqueles sob sua tutela
(ROUSSEAU, 1762, p. 25) e nada que esteja fora desse campo pode
interessar ao Estado. Consideram que o Estado-Nação, por seu duplo
conceito, relacionado a sua dimensão geopolítica, definida por suas
fronteiras, assim como seus agrupamentos étnicos e culturais, referindo,
assim, a noção de Estado através da territorialidade, significam uma
jurisdição pautada e delimitada pelas fronteiras nacionais, onde este, pelo
critério da soberania, tem autoridade para exercer controle exclusivo sobre
os mecanismos de poder (LAW, 2015, p. 68-89), entre estes o poder de criar
leis.
Aduzem, ainda, ser o Direito um fenômeno estritamente originário
dentro de uma comunidade em específico. De igual sorte, tal conceituação
provem do pensamento clássico do “ius commune”, irrompido após o
declínio do Império Romano, juntamente de seu Direito Canônico, dando
grande ênfase para as normas construídas dentro de cada comunidade, de
forma independente, conjuntura essa que levou ao fortalecimento da ideia
da criação de um Estado Nacional forte, pautado pela soberania absoluta
dentro de seu território.
Os Céticos ainda vão além na crítica em relação a noção de um Direito
em caráter Transnacional. Acreditam piamente que o problema central do
Transnacionalismo é o seu caráter antidemocrático. Não se encontra como
modo de formação centralizado do Direito por obra de autoridades com
competência para tal (MIRANDA, 2006, p. 24), a julgar pela participação
de atores estranhos à dogmática estatal no processo legislativo, acredita-se
que há uma evidente violação ao processo democrático no momento em que
a elaboração de qualquer tipo de normatividade acontece em qualquer
277
âmbito diverso do que o do Órgão legitimamente eleito, através da
participação popular, para tal tarefa.
De igual natureza, a desestruturação característica do Direito
Transnacional parece problemática aos olhos daqueles que são mais
suspeitos quando o assunto é legitimidade. Pela falta de um poder
constituinte, a concepção do direito elaborado em esferas transcendentes às
fronteiras nacionais, é tida como frágil, pois não indica um mecanismo de
garantia dos mais variados direitos da forma como ocorre quando da
utilização das ferramentas dos direitos internos (MIRANDA, 2006, p. 26),
assim sendo necessário ter um grande cuidado com o alcance à ser dado a
esse tipo de legislação, o que poderia acarretar em grandes malefícios a
ordem jurídica já posta.
4 OS TRANSNACIONALISTAS
Na contramão do pensamento cético, o leque de regulamentos elaborados
supranacionalmente se expande rápida e exponencialmente, da mesma
maneira que seus respectivos impactos na saciedade como um todo. Ao
invocar o Transnacionalismo é necessário, para sua total e plena
compreensão, entender que a lei possui novas fontes, locais e bases de
autoridade, distanciando, em certa medida, o alcance estatal em certas
questões anteriormente dominadas pelo poder soberano, a exemplo do
processo legislativo. Aqueles que adotam essa visão, mais ampla em
relação ao Direito, em especial acerca da expansão de suas fontes, são
denominados Transnacionalistas.
Os filiados a essa linha de pensamento, diferente do que habitualmente
pensa-se, não negam, de forma alguma, a importância que deve ser dada à
soberania estatal. Por outro lado, acreditam que no mundo moderno,
globalizado da forma que é, novas fontes de Direito originaram-se e é
justamente papel do Estado não ignorá-las, mas sim criar mecanismos
eficientes pra promover a absorção desse corpo legislativo elaborado
supranacionalmente, através da promoção de um forte intercâmbio com
outros modelos e culturas jurídicas, no intuito de que o Estado,
pessoalmente, na figura de seu sistema jurídico, possa prestar uma tutela
jurisdicional adequada aos litígios provindos especialmente do
278
estabelecimento das novas relações do mundo onde as fronteiras terrestres,
e a soberania, foram, como nunca antes, relativizadas.
Em função da preocupação com as novas fontes de Direito que Philip
Jessup, em meados de 1950, buscou, primeiramente, teorizar o Direito
Transnacional. Tendo em vista que considerava o uso do termo “Direito
Internacional” enganador, pois este sugere uma preocupação apenas com as
relações de uma Nação com outras (JESSUP, 1956, p. 01), deixando de
lado, assim, vários partícipes dos processos de produção normativa já
existentes àquela época, refletindo diretamente nos diversos campos
decisórios nacionais e transnacionais.
Nesta senda, podemos afirmar que os partidários dessa corrente de
pensamento creem na extensão da jurisdição através das fronteiras
nacionais. Assim, abrindo espaço para que pessoas, corporações, agências
públicas ou privadas ou até mesmo organizações se tornarem protagonistas
sendo, de uma forma ou de outra, afetados por corpos regulamentais
originários de fora da jurisdição territorial do Estado-Nação em que
qualquer um destes estiver situado, ou de igual sorte se não propriamente
criado, mas também validado ou interpretado por autoridades externas em
relação ao país (COTTERELL, 2011, p. 512), sendo este um elemento
crucial na perspectiva Transnacionalista em relação ao panorama atual.
Outro aspecto de grande importância quando se fala em
Transnacionalismo dentro do campo de estudo dos integrantes dessa
corrente é o fato da grande importância transferida dos entes públicos para
os entes e elementos privados. Aqui, há uma maior valorização da esfera
privada, como Organizações Não Governamentais (ONG’s), Sociedades,
Corporações, Empresas, Grupos e afins, em detrimento, precisamente, do
poderio estatal posto na forma dos primórdios do Estado Soberano, pois
terão a oportunidade de participar ativamente do processo de discussão e
produção legislativa, da mesma forma que o próprio ente estatal.
O privado sob a ótica Transnacionalista sugere que a dinâmica de
produção, interpretação e desenvolvimento é primeiramente localizada
junto dos atores da sociedade civil ao invés do que com da autoridade
pública do Estado (COTTERELL, 2011, 513). Pontualmente por essa razão,
as demandas da sociedade civil serão colocadas em primeiro lugar,
inclusive em relação as demandas estatais, por isso a alegação de que
qualquer regimento que pode ser reconhecido como lei, mesmo que
279
desenvolvido essencialmente por atores provindos da sociedade privada,
gerará importantes reflexos na esfera pública. Os Transnacionalistas alegam
que o Estado deveria “relativizar” sua soberania, assim, abraçando e
reconhecendo esses regimes de regulamentação estabelecidos
extraterritorialmente, sejam estes elaborados por Organizações,
Corporações ou Associações, promovendo uma governança, e
consequentemente, uma legislação em conformidade com este novo
cenário.
Destarte, o pensamento dos Transnacionalistas está diretamente ligado
com a flexibilização estatal face as diversas relações globalizadas. Por
conseguinte, acreditam que este cenário “sem fronteiras” deve ser visto
como uma forma de promover alterações fundamentais na sociedade
usando-se, para isso, do direito Transnacional. Alteração essa que passa
pela reconceituação da ideia de lei estatal, que não pode mais ser vista
como algo incapaz de ser desafiado, mas deve ser vista como um processo
contínuo de construção que aceite suporte e auxílio de todas as fontes
possíveis (GLENN, 2006, p. 468), configurando, dessa maneira, uma
coexistência pacífica entre o que é nacional e o que é transnacional.
5 GLOBALISTAS
Sem dúvida, de fato, os conceitos de Direito e Globalização não podem
mais serem dissociados. Neste cenário, cada vez mais, a doutrina
desenvolve novas perspectivas sobre esse fenômeno, estreitando em graus
cada vez maiores a influência dos agentes da globalização na esfera
jurídica.
Não obstante, gradativamente as teorias sobre o próprio Direito
Transnacional foram tomando formas e elaborando conceitos mais amplos
em relação a produção de corpos regulamentais em espaços globalizados.
Esses fatores podem ser observados na teoria que compreende o Direito
Transnacional em seu viés mais abrangente. Aqui, este pretenderia difundir
um direito global uniforme através das fronteiras. Aqueles que se associam
a essa corrente, com base na construção de um direito em cima de um
princípio global, são conhecidos como Globalistas.
Para os adeptos dessa linha, o Transnacionalismo busca, paulatinamente,
quebrar as barreiras entre as nações a fim de criar um sistema jurídico
280
universal a todos, ou seja, a difusão do ideário de uma sociedade
essencialmente sem fronteiras, global. Trazem a ideia de que a legislação
supranacional colocou os indivíduos, empresas, Organizações Não
Governamentais e os próprios Estados sob um novo sistema de regulação,
onde poderes e também restrições foram reconhecidas, assim como direitos
e deveres, os quais transcendem as reivindicações do Estado Soberano, e
mesmo que não sejam fiscalizados por instituições com capacidade
coercitiva de execução, a quebra desses ordenamentos ocasiona severas
consequências (HELD, 1995, p. 11), criando, deste modo, uma legitimidade
além das delimitadas fronteiras terrestres da jurisdição estatal, em
desacordo com aquilo que é posto pela clássica teoria da norma.
Os Globalistas acreditam na total relativização da ideia de um Estado
Nacional, afinal a economia globalizada emergiu como uma chave dinâmica
na formação de um sistema transnacional de poder. Tal sistema é alicerçado
em interesses superiores aos do próprio país como entidade soberana, tanto
é que essa “onda global” já se espalha pelas próprias instituições estatais,
como em algumas agências do próprio poder Executivo e mais
especificamente, nos Tribunais nacionais onde se produzem os mecanismos
necessários para acomodar direitos e deveres reconhecidamente advindos
de espaços globalizados através do impulso e pressão do capital global
(SASSEN, 2000, p. 111), nesse sentido, acreditam os partidários dessa linha
de pensamento, que o Estado Nacional não suportou o grande avanço do
poderio do capital econômico global, cedendo, em grande parte, lacunas
legislativas para que outros elementos passassem a assumir um papel de
maior evidência.
O maior expoente do pensamento Globalista é o professor italiano
Sabino Cassese. O catedrático busca elencar alguns princípios, por meio da
análise dos quais pode-se exprimir suas características enquanto
ordenamento, que norteiam a produção e aplicação do direito global em
meio a uma evidenciada governança global sem governo (STAFFEN;
OLIVIERO, 2012. p. 350). O constitucionalista elenca alguns princípios
comprobatórios desta nova ordem posta: a) plurissubjetividade; b)
normatização; c) administração; d) jurisdição; e) legitimação e f) justiça.
Aduz, de igual maneira, a ocorrência de diversos fenômenos de caráter
estrutural que podem ser observados no direto global, como a setorização
dos sistemas jurídicos que operam além do Estado, concentrando em dar
281
respostas para cada caso, individualmente, assim como a inexistência de
uma hierarquia dentre esses sistemas jurídicos, a escassa uniformidade, e
consequente heterogeneidade, dos ordenamentos distintos que integram o
ordenamento global, salienta, de igual sorte, a utilização das instituições
administrativas nacionais em prol das instituições globais, a relação direta
entre essas instituições e os cidadãos e a possibilidade de disputas
multipolares que apresentam muitas controvérsias globais (CASSESE,
2010, p. 85-86).
À medida que a comunidade internacional se desenvolveu, e se
desenvolve, algumas categorias de regras ganham ênfase. A partir disso,
alguns valores passaram a ser objeto de uma maior atenção por parte dos
diversos agentes no cenário mundial, merecendo, assim, uma proteção
especial (CASSESE, 2005, p. 16), valores esses referentes às condições
mínimas de dignidade que deveriam ser garantidas a todas as pessoas,
propagando, pela primeira vez a noção de direitos humanos. Esse fenômeno
originou-se, em um primeiro momento após findada a Primeira Guerra
Mundial, concentrando-se na proteção dos direitos dos trabalhadores,
culminando na criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
similarmente, em um segundo momento, face o massacre ocorrido na
Segunda Guerra Mundial, por motivos de intolerância étnica e religiosa,
entre os demais abusos ocorridos no período, a comunidade internacional
empenhou grande esforço na elaboração de mecanismos protetivos contra o
genocídio e na manutenção dos direitos humanos mais básicos.
Considerando esses e outros pontos, os Globalistas tem como sua
principal bandeira a manutenção dos Direitos Humanos. Julgam que os
problemas da sociedade moderna, globalizada ao extremo, não podem, de
forma alguma, serem enfrentados, e muito menos prevenidos, fazendo uso
exclusivo das limitadas ferramentas dos direitos nacionais internos, por isso
defendem que um padrão civilizatório global deve ser buscado através do
Direito Transnacional, sendo esta a única forma de garantir a aplicação dos
Direitos Humanos em larga escala.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se, portanto, que restou comprovado que o Direito procura,
gradualmente, expandir suas fontes de produção. O que, é claro, não
282
poderia ser diferente, pois como uma ciência social deve acompanhar o
desenvolvimento da sociedade na qual ele está inserido.
Com isso, da mesma forma como ocorreu no período de transição do
modelo feudal para o Estado Soberano primitivo, pautado pelas ideias
capitalistas, onde o direito passou a ser objeto de responsabilidade do ente
estatal, com a incumbência de ditar as regras do que seria aceitável ou não
para todos aqueles que habitavam seus limites terrestres, não mais se
reduzindo a determinações postas por um Suserano, a ciência jurídica
expandiu seus horizontes em função das novas perspectivas trazidas pelo
advento da Globalização.
A forma como as diferentes nações se relaciona passou por um profundo
processo de alteração a partir do início do século XX. Principalmente após
o final do período das guerras mundiais, em função da grande evolução das
tecnologias e da economia, e consequentemente da globalização, as
fronteiras terrestres já não mais significavam um obstáculo para o
intercâmbio jurídico e cultural entre elas. Neste cenário, novos agentes,
privados, estranhos ao clássico glossário político-jurídico, passaram a
ocupar espaços onde os Estados não eram capazes de alcançar,
relativizando, assim, suas respectivas soberanias e ocasionando uma quebra
de paradigmas. Sob esse panorama surge um novo ramo do Direito, o
Transnacionalismo.
Como ocorre com todas as novas “descobertas” no ramo da ciência, seja
ela humana ou natural, diferentes pensamentos acerca do tema surgiram ao
passo que este se proliferou. Mais especificamente sobre o
Transnacionalismo e a produção do Direito em cenários globalizados, três
são as correntes mais difundidas: Céticos, Transnacionalistas e Globalistas.
Sendo os céticos, como o próprio nome já traz, aqueles que desacreditam
em qualquer postulado transnacional. Tal posicionamento é acarretado pelo
reconhecimento do Estado como o único detentor do poder e da
legitimidade para a tarefa de legislar. Por outro lado, os filiados ao
pensamento Transnacionalista não negam, de forma alguma, a importância
intrínseca do Estado-Nação, entretanto acreditam que na sociedade
globalizada, característica do último século, novas fontes, locais e bases do
Direito se originaram e é papel deste buscar absorver essa normatividade
supranacional no intuito de prestar um melhor serviço jurisdicional para as
demandas globais. Ainda, um tanto quanto mais radical, há a corrente dos
283
Globalistas, que entendem que o Direito Transnacional deve buscar,
paulatinamente, o estabelecimento de um Direito global uniforma através
das fronteiras, sendo esta a única forma de garantir a efetivação dos Direitos
Humanos, haja vista que os problemas característicos da sociedade
globalizada não podem ser resolvidos, muito menos previstos, com as
limitas ferramentas e meios dos direitos internos.
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285
DIREITOS HUMANOS E RESPONSABILIDADE
EMPRESARIAL: A QUEM COMPETE A PROTEÇÃO E O
RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS?
Regiane Nistler 145
Rubia Fiamoncini Bértoli 146
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo geral analisar se a competência de
proteger e respeitar os Direitos Humanos também recai sobre as empresas.
Para tanto, traçou-se três objetivos específicos: explorar o conceito de
Direitos Humanos e a crise ideológica existente na primeira parte, distinguir
Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário em um segundo
momento, bem como discorrer, na terceira parte do artigo, sobre a
competência do Estado e de outros entes privados em efetivar os Direitos
Humanos. Quanto à metodologia, utilizou-se: método de abordagem
indutivo; método de procedimento monográfico; técnica de pesquisa
bibliográfica.
Palavras-chave: Direitos Humanos; Responsabilidade empresarial;
Proteção; Respeito.
ABSTRACT
The present paper intends to analyze whether companies also have the duty
of protecting and respecting the Human Rights. In order to discuss this
topic, three specific goals were defined: exploring the definition of Human
Rights and the existing ideological crisis, in the first part of the text;
distinguishing Human Rights from International Humanitarian Law in a
second moment; and in the third part discoursing upon the duty of the
government and private entities to provide the accomplishment of Human
Rights. The inductive approach, monographic proceedings and
bibliographic research tecnique were used as methods in this paper.
Key words: Human rights; Corporate responsibility; Protection; Respect.
286
INTRODUÇÃO
Quando um tema se torna universal e cai no domínio popular, tende a
perder o verdadeiro sentido e seu significado se vulgariza. Os Direitos
Humanos não fogem à regra: as pessoas leigas tandem a desvalorizar a
importância da expressão Direitos Humanos, atribuindo-lhe conotações
pejorativas. Tornou-se imperativo recuperar seu destaque e reconhecer –lhe
a essência. Trata-se de uma parte importante do Direito, que se interliga aos
ramos das ciências humanas em vista de suas características, das quais se
destacam a universalidade e a inalienabilidade. Os Direitos Humanos não
são exclusividade de uma raça ou classe: pertencem a todos porque a todos
interessam. Há que encurtar a distância entre a teoria e a prática, porque o
simples e enunciado de bons propósitos não impede o vácuo que se forma
entre uma e outra. Muitas vezes direitos são ignorados e as pessoas - seres
humanos que são - deles não desfrutam. Impõe-se compreender a razão de
ser dos Direitos Humanos e as lutas travadas até a consecução de seu
reconhecimento, com o que as pessoas assimilarão sua magnitude e sentirse-ão, também, detentoras de Direitos Humanos.
O presente artigo procura fazer uma análise do conceito de Direitos
Humanos com foco na dignidade da pessoa humana, parte indissociável da
noção de Direitos Humanos. Far-se-á, outrossim, alusão à diferença entre
Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário, visto ser este último
mais específico por pressupor um conflito armado.
O ponto principal deste artigo, todavia, é analisar a quem compete a
proteção dos Direitos Humanos. Objetivando as atitudes necessárias para a
efetivação destes – de vez que nem todos desfrutam da mesma proteção e
segurança – torna-se imprescindível profunda reflexão sobre os eventuais
responsáveis pela promoção e proteção dos Direitos Humanos. O fatos
evidenciam que o Estado, de há muito, é incapaz de resolver sozinho os
problemas relativos aos Direitos Humanos, por não suprir as necessidades
da população nem dar resposta aos anseios básicos da sociedade. Diante da
ineficiência do Estado, outros atores vão surgindo e preenchendo as lacunas
criadas pela inoperância do setor público: são empresas privadas, fundações
e ONGs, que estão mudando a vida de milhões de pessoas, proporcionandolhes saúde, educação, moradia e outros direitos básicos. Em consequência, a
287
dignidade do ser humano é restabelecida pelas ações desses entes privados.
Empresários se conscientizam, cada vez mais, de que possuem
responsabilidades na causa humanitária e que suas atitudes podem fazer
oscilar o pêndulo da balança a favor da dignidade humana. É com o intuito
de discorrer sobre responsabilidades comuns em relação aos Direitos
Humanos que este artigo foi idealizado.
CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS
Na conceituação de Direitos Humanos há uma visão amplamente
compartilhada sobre o tema. Isto é, muito embora a nomenclatura possa
variar, em geral, há certo consenso doutrinário sobre o que significa a
expressão Direitos Humanos. Vicente de Paulo Barretto (2013, p. 25),
conceitua:
“Direitos humanos” é uma expressão que combina lei e moralidade e expressam desde o
século XVIII basicamente o respeito à dignidade da pessoa humana, o direito à vida, à
liberdade, à igualdade de todos os homens perante a lei, à segurança, à liberdade de
expressão, o acesso à educação e o direito à participação política.
O referido autor (2013, p. 255) complementa que a expressão “Direitos
Humanos”, se refere, antes de tudo, “a uma categoria de direitos que têm o
caráter de abrigar e proteger a existência e o exercício das diferentes
capacidades do ser humano, que irão encontrar na ideia de dignidade da
pessoa humana, o seu ponto convergente.” Luiz Cláudio Gonçalves Junior
(2014, p. 171), de maneira didática expõe:
A ideia de direitos humanos se traduz num direito que pertence ao ser humano. Neste
sentido, não estamos falando no cidadão americano, asiático, africano ou europeu, mas em
qualquer ser humano. Assim, quando falamos em direitos humanos nos referimos a algo
universal, ou seja, que pertence a todas as pessoas independentemente de sua condição
particular na sociedade.
Isso significa que, em relação aos Direitos Humanos, pelo menos em
tese, considerando sua razão de ser, não há qualquer prevalência de um ou
outro povo. Os africanos merecem a mesma proteção que os europeus e
americanos. Paulo Hamilton Siqueira Junior e Miguel Augusto Machado de
Oliveira (2007, p. 43) aduzem que:
Os direitos humanos são aquelas cláusulas básicas, superiores e supremas que todo o
indivíduo deve possuir em face da sociedade em que está inserido. São oriundos das
288
reivindicações morais e políticas que todo ser humano almeja perante a sociedade e o
governo. Nesse prisma, esses direitos dão ensejo aos denominados direitos subjetivos
públicos, sendo em especial o conjunto de direitos subjetivos que em cada momento
histórico concretiza as exigências de dignidade, igualdade e liberdade humanas.
Nessa linha de raciocínio, Luiz Cláudio Gonçalves Junior (2014, p. 171)
completa: “São direitos de natureza globalizante e que pertencem a todos
pela simples condição humana de “ser”. [...] Os direitos humanos trazem
como valor supremo a dignidade da pessoa humana”. Portanto, há consenso
doutrinário acerca do que significa a expressão Direitos Humanos e o valor
que ela carrega consigo. Márcio Ricardo Staffen (2015, p. 81)
didaticamente expõe:
[...] o ideal de Direitos Humanos deve ser compreendido como uma pretensão moral
justificada, enraizada nos valores da liberdade e da igualdade, preocupado com a
potencialização da autonomia pessoal, por meio da racionalidade, da solidariedade e da
segurança jurídica.
A vasta doutrina que explora a matéria exprime a importância de se
discutir o tema. Assim afirma Bobbio (2004, p. 229): “Os direitos do
homem, apesar de terem sido considerados naturais desde o início, não
foram dados de uma vez por todas.” Somente após muita luta, combate e
persistência - e derramamento de sangue, por consequência –, é que houve
um progresso no sentido de reconhecer esses direitos elementares e buscar,
de algum modo, garanti-los. Neste sentido, aludem Alfredo Culleton,
Fernanda Frizzo Bragato e Sinara Porto Fajardo (2009, p. 179): “A história
dos direitos humanos é a história das lutas sociais para a sua realização. Ou,
dito de trás para diante, as lutas sociais sempre existiram para a conquista
do que, hoje em dia, se reconhece como direitos humanos.” Muito há por
fazer e, por esse motivo, é imprescindível que haja a disseminação de
conhecimentos e a troca de ideias.
A CRISE IDEOLÓGICA DO CONCEITO DE DIREITOS
HUMANOS
Apesar de a doutrina conceituar Direitos Humanos de maneira correlata,
sempre pontuando as principais características, tal conceito nem sempre é
visto dessa maneira pela população leiga, no cotidiano da vida em
sociedade. A expressão “Direitos Humanos” é, por vezes, utilizada de
289
maneira desvirtuada, distorcida. Alfredo Culleton, Fernanda Frizzo Bragato
e Sinara Porto Fajardo (2009, p. 15) discorrem:
[...] o termo direitos humanos é dos mais usados no meio jurídico e político atual, tanto por
cientistas, juristas, sociólogos e filósofos que se ocupam do ser humano, do Estado e do
Direito como pelo cidadão normal. Por sua função reguladora da legitimidade dos sistemas
políticos e dos ordenamentos jurídicos e pela convicção de muitos de que constituem uma
garantia para a sua dignidade e são responsáveis por garantir a sua liberdade e igualdade, a
compreensão adequada dos direitos humanos é uma tarefa teórica de alcance prático. Ao
mesmo tempo, é um termo emotivo que suscita sentimentos entre seus destinatários e capaz
de se prestar a manipulações de todo o tipo. Assim como outros conceitos como democracia,
liberdade, fascismo e respeito, para referir alguns dos mais importantes, estão no núcleo da
luta política, na urgência das necessidades do momento podem fazer com que a atenção seja
centrada mais nas ações e menos nas preocupações teóricas envolvidas.
Os autores continuam (2009, p. 15-16):
Às vezes se tem a sensação de que militantes e ativistas dos direitos humanos não sabem
muito bem o que querem dizer ao usar essa palavra ou a usam entre si com diferentes
sentidos, ou supondo que o outro sabe do que está falando. Podemos até falar de uma
retórica dos direitos humanos, uma instrumentalização ideológica dos mesmos. Por isso a
função do pensamento filosófico-jurídico é tentar esclarecer essas improcedências e buscar
uma fundamentação e uma conceituação o mais universalizáveis possível.
Paulo Hamilton Siqueira Junior e Miguel Augusto Machado de Oliveira
(2007, p. 40), retratam essa questão:
A expressão “direitos humanos” talvez seja uma das locuções que mais traga uma carga
negativa e até mesmo um sentido pejorativo e de injustiça. Essa proposição é identificada
com a impunidade, adstrita àqueles que defendem os marginais. É comum, nos meios de
comunicação, a crítica à “turma dos direitos humanos”, sempre identificada com o grupo de
pessoas que só defendem os “direitos dos bandidos”. Esse conceito se afigura como errôneo,
pois os referidos direitos são inerentes à toda sociedade.
Confirmando tal acepção negativa, aduz Álvaro Lazzarini (2001, p. 1516):
Os marginais, por exemplo, dizem que os “Direitos Humanos” são os “Direitos dos Manos”,
ou seja, da marginalidade. O povo ordeiro tem dado também tal conotação, quando critica os
defensores dos” Direitos Humanos”, dizendo que eles só se preocupam com os bandidos e
não com as suas vítimas.
Os Direitos Humanos transcendem essa perspectiva de “só proteger
bandidos” ou grupos minoritários. Significam muito mais, não dizendo
respeito somente a uma classe ou uma determinada camada social, embora
estas sejam as que mais precisam de tutela, na maioria das vezes. Os
290
Direitos Humanos são de toda a humanidade. Interessante a resposta de
Kenneth Roth, CEO da Human Rights Watch ao ser entrevistado pela
repórter da revista Veja, Nathalia Watkins. A repórter perguntou (2016, p.
20): “Por que alguns cidadãos e grupos políticos, inclusive no Brasil,
acusam ativistas dos direitos humanos de defender bandidos?” O
entrevistado respondeu (2016, p.20):
É importante tratar todos, até terroristas, de forma humana. A razão pela qual é fundamental
ter um julgamento criterioso e sem tortura é que isso protege qualquer pessoa de ser acusada
injustamente de criminosa. Caso contrário, teríamos de deixar a polícia decidir quem é
criminoso ou não. O papel da polícia não é punir, é investigar crimes e prender suspeitos
para que eles sejam levados a julgamento. O que mais preocupa, no Brasil, é que 40% dos
detentos estejam esperando julgamento. Isso gera superlotação e condições subumanas nas
prisões.
Além disso, o que agrava ainda mais a situação no Brasil é o fato de que,
ao sair das prisões, são raros os casos de reeducação ou ressocialização.
Tais condições subumanas, aliadas, muitas vezes, à impunidade e à
percepção errônea do verdadeiro problema relativo aos Direitos Humanos
por parte da população e daqueles que estão no comando e que são,
portanto, responsáveis pelos seus atos, faz com que as violações de hoje
sejam sentidas amanhã, porém, com mais força e maior poder de destruição.
O caos aumenta. Há que se superar tal visão deturpada, e por vezes,
preconceituosa. Importante é discutir, debater, propagar ideias e
experiências.
Ainda não houve a conscientização geral de que o tema Direitos
Humanos deve ser preocupação de todos, não só pelos princípios morais
que giram em torno dessa temática, mas porque o impacto que sua proteção
ou violação gera, é sentido por todos, de uma maneira ou de outra. É um
assunto que possui repercussão global. O que acontece na África não é
problema tão somente da África, e a situação dos imigrantes não é problema
apenas da Europa. Não se trata de um problema isolado. A curto ou a longo
prazo, seja pelo altruísmo ou pelo humanitarismo, seja pela questão
econômica, os efeitos de tais violações serão sentidos por todos. Somente a
conscientização global da necessidade de discutir os Direitos Humanos (em
outros ambientes que não apenas o acadêmico), evidenciará os efeitos
prejudiciais da omissão.
291
DIREITOS HUMANOS E DIREITO INTERNACIONAL
HUMANITÁRIO
Outro detalhe importante a respeito de Direitos Humanos é que estes não
se confundem com Direito Internacional Humanitário, que, nos dizeres de
Sidney Guerra (2015, p. 45):
É, definitivamente, um corpo de normas internacionais, de origem convencional ou
consuetudinária, destinado especificamente a ser aplicado nos conflitos armados,
internacionais ou não internacionais, que limita o direito das partes em conflito de escolher
livremente os métodos e os meios utilizados na guerra, ou que protege s pessoas e os bens
atingidos, ou que possam ser atingidos por esse conflito. Esse Direito não tem a pretensão de
proibir a guerra, nem a ambição de definir sua legalidade ou legitimidade, mas de ser
aplicado quando o recurso à força foi infelizmente imposto e o que resta é reduzir o
sofrimento das pessoas que não participam ou que deixaram de participar das hostilidades.
Isto é, diferentemente dos Direitos Humanos que devem ser protegidos
em todos os Estados e a qualquer tempo independentemente de haver guerra
ou não, o Direito Internacional Humanitário, para ter atuação, pressupõe um
conflito armado. Neste sentido, Leonardo Nemer Caldeira Brant e Larissa
Campos de Oliveira Soares (2009, p. 607) expõem:
Tem a finalidade de reger as normas referentes à condução das hostilidades e as normas de
proteção e distinção entre combatentes e civis em casos de conflito armado. A relação
jurídica que esse ramo do Direito abrange é entre as partes que estão em conflito armado,
sejam elas Estados, grupos insurgentes ou outros grupos armados organizados.
Ou seja, a nomenclatura é diferente e o objetivo do Direito Internacional
Humanitário é mais específico, embora haja também, através dele, a
preservação dos Direitos Humanos. Afinal de contas, fala-se de um
ambiente hostil e belicoso que necessita de assistência imediata e eficiente
para minimizar os resultados das selvagerias cometidas e extermínio de
direitos, sendo esta a razão de ser do Direito Internacional Humanitário. Ao
preservar e proteger Direitos Humanos de pessoas que estão em um conflito
armado ou em outra situação calamitosa, respeita-se Direitos Humanos.
A NECESSIDADE DE ATUAÇÃO EM PROL DOS
DIREITOS HUMANOS.
292
Mesmo que a luta pela proteção e efetivação dos Direitos Humanos seja
antiga, cada vez mais ela é atual e precisa se fortalecer. Apesar dos avanços
duramente conquistados e da frequente troca de informações e experiências,
em muitos aspectos, parece haver uma regressão. É o caso da situação dos
imigrantes que chegam todos os dias à Europa em busca de melhores
condições de vida e são mal recebidos. Outros nem conseguem chegar,
perecendo pelo caminho, incluindo-se aí pessoas de todas as idades: de
bebês de colo a idosos, todos aspirando uma melhor condição de vida e,
consequentemente, um modo de preservar sua dignidade.
Conforme visto, a DUDH trata da dignidade e da igualdade dos seres
humanos, estabelecendo que todos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos. Na prática, a Declaração, por si só, não surte os efeitos
pretendidos. Diferentemente do que preconiza o artigo 1º da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, há quem defenda não se tratar de direitos
inatos, dependendo de uma pluralidade de ações para produzir efeitos.
Vicente de Paulo Barreto (2013, p. 29-30) afirma:
A igualdade não é natural, ela deve ser conquistada Dessa forma, os direitos humanos têm
força de declarações morais ao afirmar em sua essência que os indivíduos não são livres e
iguais, mas devem ser. [...] Os direitos humanos são uma utopia na qual as pessoas mantêm
uma expectativa de desejo do Outro.
Estas considerações tocam em um ponto central: não é por existir uma
Declaração Universal dos Direitos Humanos que estes estarão seguros,
protegidos, invioláveis. Aliás, para alguns Estados, isso pouco significa.
Sidney Guerra (2015, p. 40) comenta:
Hoje não há povo que negue uma Carta de direitos e o respectivo mecanismo de efetivação,
o que, todavia, ainda não significa uma garantia de justiça concreta, porquanto esses direitos
podem variar ao sabor do pensamento político ou filosófico informador de determinado
Estado.
Ou seja, não basta que os Direitos Humanos estejam postos em uma
Declaração Universal. A atitude humana em prol da sua proteção não só é
importante como é indispensável. Sem ela, não há convenção ou declaração
capaz de garantir a proteção desses direitos básicos. Bobbio elucida a
questão (2004, p. 43):
Quando se trata de enunciá-los, o acordo é obtido com relativa facilidade,
independentemente do maior ou menor poder de convicção de seu fundamento absoluto;
293
quando se trata de passar à ação, ainda que o fundamento seja inquestionável, começam as
reservas e as oposições. O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje,
não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico,
mas político.
Portanto, considerando que para a proteção dos Direitos Humanos se
exigem condutas efetivas, as perguntas cabíveis são: condutas De Quem?
De Quem é a responsabilidade pela proteção e respeito aos Direitos
Humanos? Seria (ainda) dos Estados, ou, com o fenômeno da globalização,
ultrapassou-se essa visão? Cabe uma análise mais profunda.
O ESTADO COMO PROTETOR DOS DIREITOS
HUMANOS: AS DIFICULDADES.
O fenômeno da globalização mudou o mundo fazendo com que as
fronteiras dos Estados (tão importantes outrora), fossem um mero detalhe.
Roberto Epifanio Tomaz (2013, p. 214) esclarece:
[...] a globalização tem alterado drasticamente o modo de vida humano, intensificando as
relações de troca, de comunicação, e de trânsito, para além das fronteiras nacionais, a
expansão massificada das telecomunicações, turismo, cultura, com reflexos no ecossistema e
nas relações das organizações governamentais e não governamentais [...]
O mundo é encarado sob outra perspectiva. Hoje existem muito mais
atores dirigentes dos negócios e das políticas do que Estados. Evidente que
os Estados tiveram participação fundamental nas conquistas referentes aos
Direitos Humanos, porém, tão somente eles não são capazes de garantir
estes direitos. Com efeito, alude Doglas Cesar Lucas (2009, p. 51):
Apesar de os Estados nacionais serem identificados como agentes importantes na instituição
dos direitos humanos em cada país, de acordo com as suas necessidades específicas, é
forçoso reconhecer que um certo esgotamento tomou conta da capacidade de esses Estados
atenderem às demandas de ordem global.
Não dá para esperar que o Estado promova a proteção dos Direitos
Humanos sozinho. Mesmo porque, conforme ensina Márcio Ricardo Staffen
(2015, p. 82-83): “Como é possível crer na condição de derivação dos
Direitos Humanos a partir do Estado se, por outro lado, os Estados são os
principais responsáveis por frequentes violações dos Direitos Humanos?”
Muitos Estados não conseguem sequer prover os mais básicos direitos de
maneira efetiva, em que pese terem ratificado a DUDH. O que é pior: não
294
só não conseguem prover tais direitos, como suas ações acabam por destruir
qualquer esperança da população no sentido de possuir uma vida mais
digna. Despontam aí, os efeitos prejudiciais que a corrupção deixa nos
países em que sua prática parece ser a regra e não a exceção. Pessoas
morrem pela falta de saúde, pela falta de segurança, e pela falta de
oportunidade por não terem educação de qualidade. Os crimes,
consequentemente, aumentam, e o que se vê é uma bola de neve que cresce
a cada ato de incompetência, a cada ação de corruptos, e a cada conivência
ou omissão. Nesses casos, em vez de tutelar os Direitos Humanos, o Estado
inoperante os extingue (apesar dos discursos demagógicos e populistas).
Parag Khanna (2011, p. 25), bastante direto, expõe o problema, afirmando
que muitos governos:
São mais reguladores do que provedores: os melhores entre eles cobram impostos ampla e
justamente, garantem tribunais eficientes, protegem direitos de propriedade, defendem
fronteiras nacionais, policiam com justiça e honestidade, mantêm a estabilidade econômica e
oferecem alguma rede de seguridade social. Quantos governos poderíamos citar que fazem
isso? Em muitas partes do mundo, cada vez mais grupos cívicos, instituições religiosas de
caridade e empresas que oferecem esses bens básicos. Poucos cidadãos ainda dizem “isso é
obrigação do governo” e esperam que o serviço seja executado.
Ou seja, por mais que o Estado tenha um papel relevante, é ingenuidade
confiar tão somente ao Estado a função de proteger, respeitar e garantir os
Direitos Humanos, como se o poder público tivesse efetivo poder (e boa
vontade) para tanto. Até mesmo porque, com a globalização e a frequente
troca de informações (muitas em tempo real), os problemas que dizem
respeito aos Direitos Humanos possuem relevância global. Aduz Doglas
Cesar Lucas (2009, p. 43-44): “Nada é tão longe que não possa mais
interessar ao local e nem tão localizado que não possa influenciar outros
lugares.” Neste sentido, então, a visão de que os Direitos Humanos são
competência somente dos Estados soberanos fica ultrapassada. O referido
autor (2009, p. 44) afirma que os Estados possuem dois desafios:
Já não são mais capazes de garantir, de forma autônoma e soberana a prevalência dos
projetos nacionais ou comunitários de emancipação sobre a ordem internacional dos
acontecimentos econômicos, políticos, culturais, religiosos, etc.; por outro lado, sua
soberania não é suficiente para enfrentar de maneira mais apropriada os problemas que
afetam a humanidade como um todo e, especialmente, para fomentar uma cultura políticojurídica transnacional de direitos humanos, defendida mais objetivamente a partir do
segundo pós-Guerra Mundial.
295
Infelizmente, o Estado não supre as necessidades dos indivíduos. Aliás, o
Estado nunca conseguiu cumprir sequer as mais básicas das carências
humanas. Tanto é que, ainda hoje, em pleno século XXI, há pessoas
morrendo pela falta de comida, água, remédios e por doenças que, em
outras partes do mundo, são facilmente tratadas e curáveis. Neste sentido,
aduzem Maurizio Oliviero e Paulo Márcio Cruz (2013, p. 39):
Atualmente, o Estado não consegue mais dar respostas consistentes à Sociedade diante da
complexidade das demandas transnacionais que se avolumam continuamente. Os problemas
sociais aumentam em proporções preocupantes. Tudo leva a crer que o principal fator dessas
crises cíclicas esteja localizado exatamente no próprio Estado Constitucional Moderno.
Esses problemas sociais, dentre os quais se encontram violações aos
Direitos Humanos, são implicações que, segundo Doglas Cesar Lucas
(2009, p. 37):
[...] afetam toda a humanidade, não podendo ser enfrentadas de forma local e nem ser
balizadas por uma cultura de direitos humanos que deposita sua validade apenas no
reconhecimento positivo de cada país ou nas práticas culturais que pontuam a tradição de
uma comunidade. De fato, a nova conformação do mundo atual reivindica uma nova
abrangência do direitos humanos e um conjunto comum de reciprocidades e de
responsabilidades de alcance global.
O Estado falhou e continua a falhar. Abusos são cometidos diariamente e
pouco se consegue. Após o 11 de Setembro, muitas atitudes violentas foram
tomadas, principalmente pelos Estados Unidos da América, em nome da
segurança da população. É evidente que o combate ao terrorismo deve
ocorrer e deve surtir efeitos, mas, inocentes morrem por excessos cometidos
nesta guerra entre ocidente e muçulmanos extremistas. Essa batalha parece
não ter fim. Gisella Martignago e Patricia Marques Freitas (2012, p. 273)
discorrem que:
Tais situações apenas demonstram o abandono tanto pelos EUA quanto por outros países, do
multilateralismo nas ações militares e pelos abusos dos direitos humanos em nome da luta
contra o terrorismo. A pauta do dia de todos os governantes deve dirigir-se para a existência
de um sistema mundial que funcione, e por meio do qual os povos do mundo possam
enfrentar juntos todos os desafios, para que assim produza efeitos os direitos internacionais
elaborados e ratificados por vários Estados.
Ainda que um país não esteja em guerra, sua omissão para com a
população civil é um claro desrespeito aos Direitos Humanos. Com exceção
de radicais religiosos, a grande parte da população só quer paz e seus
296
direitos respeitados. Sem o apoio de organismos internacionais fornecendo
abrigo, comida e medicamentos, as pessoas (crianças, jovens e idosos)
ficam, eventualmente, abandonados à própria sorte. Para muitos, inclusive
governantes, as Convenções, Pactos e Declarações de Direitos Humanos
pouco significam. Não se pode permitir, através da ação ou da omissão, que
os avanços até aqui conquistados, sejam reduzidos ou até mesmo,
ignorados. Mesmo que haja falhas, persiste a responsabilidade estatal em
preservar os Direitos Humanos, uma vez que, conforme destaca Doglas
Cesar Lucas (2009, p. 52): “[...] a razão do Estado não pode ser mais forte
que o direito da humanidade, sob pena de uma visão míope da soberania ser
a causa de uma paralisia brutal a afetar a universalidade dos direitos
humanos”. As pessoas que detêm o poder de tomar decisões importantes, de
reflexo nacional e internacional, devem fazê-lo sob a ótica dos Direitos
Humanos. Neste sentido o referido autor (2009, p. 51) afirma que os
Direitos Humanos: “devem exercer um protagonismo e uma prevalência
sobre as soberanias nacionais, servindo de referência jurídico-moral para as
relações internacionais, independentemente dos critérios nacionais de
validade”.
Assim, devido à omissão governamental, outros atores surgem e
assumem o lugar do Estado com o papel de respeitar, garantir e proteger os
Direitos Humanos onde quer que seja.
A GLOBALIZAÇÃO E A RESPONSABILIDADE
EMPRESARIAL EM RELAÇÃO AOS DIREITOS
HUMANOS.
A globalização mudou até mesmo a forma de encarar os Direitos
Humanos. Novos protagonistas surgiram e estão agindo cada vez mais. Os
destacados papéis assumidos por esses novos organismos independem de
Estados ou Governos. Consoante afirma Márcio Ricardo Staffen (2015, p.
78): “[...] não há sentido a manutenção espacial do ideal de Direitos
Humanos apenas nos territórios estatais ou, dos tratados internacionais
vinculados originalmente aos Estados”. É devido a essa espécie de “limbo”
que surgem as instituições privadas transnacionais que possuem
responsabilidades para com a proteção dos Direitos Humanos. A
297
Globalização é que faz possível tal mudança. Conforme pontua Doglas
Cesar Lucas (2009, p. 69):
A ordem mundial emergente suscita novas formas de consciência espaço-tempo e constituise pela interdependência cada vez mais contundente entre os sujeitos clássicos do Direito
Internacional (principalmente os Estados isolados) e os novos atores que povoam o universo
dos acontecimentos políticos, econômicos, culturais, etc., em escala mundial, entre os quais
podem ser citados os novos blocos regionais, as empresas transnacionais, as organizações
não-governamentais com alcance praticamente mundial, os organismos internacionais,
enfim, o embrionário aparecimento de uma sociedade internacional contemporânea.
Tanto Estados como esses outros atores internacionais possuem
responsabilidades. Somente com essas responsabilidades comuns e ações
direcionadas à proteção dos Direitos Humanos é que se superará alguns
obstáculos hoje tão evidentes. Doglas Cesar Lucas (2009, p. 65) continua:
Uma cultura de responsabilidades comuns, uma ética para além das nações e das soberanias,
representa uma reação à singularidades do mundo moderno, que parece erodir-se aos poucos
diante das novas tendências globais, uma reação centrada em bens, valores e interesses
humanos universais capazes de obrigar o homem a respeitar e a se responsabilizar pela
preservação da vida, do planeta e de seus semelhantes, independentemente de sua
nacionalidade, etnia, religião, etc. Num cenário em que o mundo se constitui como um
mosaico de problemas, que os Estados não protagonizam quase nada isoladamente, que
aumentam os níveis de interdependência global em praticamente todos os campos de
sociabilidade, que os objetivos da humanidade caminham para uma convergência cada vez
mais indivisível, comunidades separadas e isoladas, soberanas a todo custo, diminuem as
possibilidades de diálogo, restringem o poder da ação política em escala global e impedem
que a responsabilidade se dê em razão de temas que interessam à humanidade do homem
como tal.
As necessidades do mundo moderno ultrapassam a noção de soberania
estatal. O autor Parag Khanna (2011, p. 35-36), de maneira mais direta
enfatiza o papel desses novos atores e das responsabilidades comuns:
Agências especializadas, como o Programa Alimentar Mundial (PAM), o Alto Comissariado
das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância
(Unicef) não apenas salvam vidas em lugares aos quais as grandes potências não dão a
menor importância, mas durante o processo mudam a forma de o mundo lidar com questões
como segurança alimentar e saúde pública – questões de grande impacto na estabilidade
política. Como não são instáveis por excesso de carga nem centralizadas, seu trabalho é
executado exatamente no local onde estão os problemas, e elas entusiasticamente fazem
parcerias com empresas e ONGs para desempenhar suas tarefas. Essas organizações
merecem o Prêmio Nobel que ganharam. Quanto ao resto, o frouxo consenso que permitiu
ao Conselho de Segurança da ONU, ao Banco Mundial e as outras entidades se arrestarem
por tanto tempo, funcionando à maneira medíocre de sempre, não existe mais. Vivem um
bizarro paradoxo: espera-se que elas estimulem a eficiência, mas é muito mais eficiente
298
contorná-las. [...] A noção de responsabilidade vem, fundamentalmente, do uso estratégico
da vergonha. Com tanta sofisticação tecnológica no mundo, parece que só o nosso
desenvolvimento pessoal íntimo ficou para trás – e a vergonha acelera nossa curva de
aprendizado.
Esses outros atores, mesmo as empresas transnacionais possuem
responsabilidades. Alguns cumprem seu papel fazendo muito mais do que
os Estados. É o caso das Fundações filantrópicas espalhadas pelo mundo e
das ONGs que levam comida e remédio para ambientes esquecidos. Se não
fosse a ação dessas instituições, essas pessoas não teriam a quem recorrer.
Parag Khanna (2011, p. 52-53) destaca o resultado de tais ações:
Bill e Melinda Gates inicialmente aproveitaram a deixa de Ted Turner, fundador da CNN,
que doou 1 bilhão de dólares para criar a UN Foundation e ajudar o Unicef e o Fundo de
População das Nações Unidas, e fizeram parcerias com empresas como a Vodafone para
combater o sarampo e a Aids. A UN Foundation gastou mais de 1 bilhão de dólares, e fez
parcerias com mais de cem ONGs para distribuir 10 bilhões de doses de vacina contra a
pólio para dois bilhões de crianças. Agora essas parcerias são a norma, e o time de futebol
Barcelona contribui com 2 milhões de dólares para projetos do Unicef, além de usar seu logo
nas camisas. [...] O financiamento empresarial no combate à Aids tem aumentado de ano
para ano.
O autor continua a enfatizar o que essas instituições estão fazendo pela
população mundial, promovendo saúde, educação e fornecendo o mínimo
básico necessário para uma vida mais digna (2011, p. 56):
A Oxfam usa seu orçamento de 500 milhões de dólares para fornecer rádios aos
mantenedores da paz da ONU em Ruanda (que não têm rádio), comprar ações de gigantes da
indústria farmacêutica, como a GlaxoSmithKline, a fim de pressionar sua política de vacinas
e publicar importantes relatórios sobre clima para subsidiar tecnologia limpa em países
pobres. Críticos do crescente poder das ONGs perguntam, com malícia, em nome de quem
elas realmente falam. A resposta é que sua legitimidade vem da autoridade de sua expertise,
imparcialidade e representatividade, bem como da transparência de suas operações. Em
muitos sentidos, é mais fácil cobrar-lhes responsabilidades do que aos governos: quanto mais
expostas, mais prestam contas aos doadores, às instituições de caridade, aos clientes e à
própria concorrência. Seu financiamento certamente é mais eficaz do que o de fontes
oficiais: quase todo o dinheiro vai para operações e parceiros na linha de frente, o que as
torna menos suscetíveis de desperdícios e intrusões governamentais, ao mesmo tempo que
treinam a sociedade civil.
Muitas ONGs e empresas conseguem fazer um trabalho magnífico
através de recursos financeiros despendidos em prol de ações humanitárias.
Com esse dinheiro, muito se consegue fazer pelos mais necessitados. É,
sem dúvida, uma iniciativa que demonstra como o mundo poderia ser
299
melhor se todos tivessem objetivos comuns e se engajassem na causa que é,
antes de tudo, - porém não apenas- uma questão moral que reflete na
consciência de cada um. Parag Khanna (2011, p. 56) elenca outros
exemplos de organizações que estão empenhadas na causa humanitária:
Outras superONGs, incluindo CAR, Save the Children e Mercy Corps, também se
impuseram como participantes mundiais independentes. A capacidade de usar a influência e
o poder da tecnologia e do capital lhe permite passar por cima de governos. Elas já não se
referem aos seus contribuintes como doadores, mas como investidores. As principais ONGs
de assistência humanitária (cujas doações anuais ultrapassam 20 bilhões de dólares)
juntaram-se à Microsoft numa plataforma de “Conexão ONG” para que esta os assista nas
melhores formas de compilar e compartilhar. Esse tipo de planejamento interoperacional é o
que se espera de países-membros da Otan – e agora qualquer um pode fazer isso.
Aqueles que deveriam tomar atitudes, muitas vezes não tomam. Por
outro lado, instituições e organizações surgem e se propõem a fazer o
trabalho, levando, conforme já dito, além de comida e medicamento, um
pouco de esperança àqueles mais necessitados. O fato de prestarem atenção
ao que acontece ao redor do mundo (violações e supressões de Direitos
Humanos), e de fornecer uma rápida resposta a esses acontecimentos, já
demonstra uma maior preocupação. A responsabilidade passa a ser de um
número maior de organismos e instituições. As parcerias costumam
produzir mais efeitos e vantagens do que a ação isolada. É o caso, por
exemplo, do Fundo Global para combate à AIDS, tuberculose e malária,
criado em ٢٠٠٢, com o objetivo de, conforme relata Philip Kotler e Nancy
R. Lee (٢٠١٠, p. ٥٤): “aumentar substancialmente o financiamento global
para intervir em três doenças espalhadas por todo o planeta; essas doenças
matam mais de ٦ milhões de pessoas a cada ano”. Ainda sobre essa
instituição, continuam os referidos autores (٢٠١٠, p. ٥٤):
O Fundo Global foi criado como uma fundação que funciona como uma instituição
beneficente ao mesmo tempo pública e provada. Ele não faz parte da Organização Mundial
da Saúde das Nações Unidas nem do Banco Mundial, embora ambas contribuam com
recursos para lutar contra essas doenças. O Fundo Global funciona como um mecanismo de
financiamento mais do que como um órgão implementador. Ele tem um painel de revisão
técnica que revê e concede recursos às aplicações que mereçam concessões. As concessões
só são renovadas depois de uma revisão rigorosa dos resultados atingidos. O Fundo Global já
concedeu US$ 10 bilhões em 136 países para combater essas doenças. Em agosto de 2006, a
Fundação Gates contribuiu com US$ 500 milhões para o Fundo Global, dizendo que o fundo
era “uma das iniciativas de saúde mais importantes do mundo”.
300
Existem pessoas e instituições engajadas e predispostas a mudar a
realidade mundial em diversos aspectos. Muitos agem localmente, outros,
todavia, conseguem fazer a diferença em âmbito global. Philip Kotler e
Nancy Lee (2010, p. 56) também destacam o papel da Fundação Bill &
Melinda Gates:
A Fundação já desembolsou US$ 14,4 bilhões. Bill e Melinda Gates decidiram concentrar
suas concessões em algumas áreas em vez de contribuir para todas as causas. [...] Decidiram
então concentrar-se em cinco áreas principais:
Reduzir as doenças que mais matam no mundo – AIDS, malária e tuberculose
Financiar vacinações e imunizações
Oferecer microfinanciamento para os pobres
Melhorar a produtividade agrícola por meio de uma revolução verde na África
Melhorar o ensino médio público nos Estados Unidos.
Sem dúvidas, a Fundação Bill & Melinda Gates exerce um papel nobre.
O mais interessante é que, conforme Philip Kotler e Nancy Lee (2010, p.
56) relatam:
A Fundação Gates não trabalha sozinha, e tem como aliadas outras fundações beneficentes
como Rockefeller, Michael and Susan Dell, Hewlett, etc. A Fundação Gates ajudou a dar
início à GAVI Alliance [...] com uma contribuição de US$ 1,5 bilhão. GAVI é sustentada por
17 governos doadores também pela União Europeia. A aliança distribuiu vacinas (tétano,
hepatite B e febre amarela) a 138 milhões de crianças em 70 dos países mais pobres do
mundo, salvando vidas ao evitar mais de dois milhões de mortes prematuras.
Trata-se de garantir os mais básicos dos direitos humanos: o direito à
vida e à saúde. O trabalho conjunto é uma necessidade atual.
Philip Kotler e Nancy Lee (2010, p. 64-65), tratando especificamente da
questão da pobreza (inúmeras vezes interligada com as violações dos
Direitos Humanos, uma vez que nos ambientes mais pobres não há saúde,
alimentos e educação) explicam:
Ajudar os pobres a escapar da pobreza não é apenas responsabilidade do governo. A redução
eficaz e sustentável da pobreza depende da ação de uma parceria entre governo,
organizações sem fins lucrativos e empresas. A sinergia surge quando os três trabalham em
conjunto. Em qualquer setor ou segmento, a sinergia de resultados também ocorre quando a
força de um compensa a fraqueza do outro ou dos dois outros.
Sobre a responsabilidade empresarial na redução da pobreza, os autores
continuam (2010, p. 278):
301
A responsabilidade social corporativa é algo relativamente recente na vida de qualquer
empresa. No século passado, as empresas pediram e exigiram mais direitos sem admitir as
responsabilidades proporcionais vinculadas a esses direitos. [...] O compromisso sério com a
responsabilidade social corporativa começou quando o governo e os grupos de cidadãos
exigiram reformas e solicitaram que as corporações corrigissem os casos de abuso de poder
corporativo conhecidos.
Nem todas as empresas e nem todos os organismos que se propõem a
ajudar conseguem, de fato, preencher o mínimo exigido. Existe, ainda,
muita violação e desrespeito também por parte dos órgãos não estatais,
assim como por ações e omissões dos governantes. Deve haver um meio de
coibir tais práticas e enaltecer as condutas exemplares, como, aliás, já se
está fazendo. Márcio Ricardo Staffen (2015, p. 31) relata:
Outro expediente novo que se observa é o surgimento de instrumentos para respeito à norma
manejados na contramão dos métodos estatais clássicos, ou seja, ao invés da sanção pelo
descumprimento, o rumo é alterado pela promoção direta dos sujeitos que voluntariamente
adimpliram suas obrigações de modo que os reticentes se inserem em uma posição de ampla
exclusão. Neste quadro, bons exemplos podem ser extraídos da articulação encabeçado pela
IATA – Associação Internacional de Transportes Aéreos, com entes governamentais,
empresas privadas e companhias aéreas; no caso do direito à alimentação, como Direito
Humano elementar, entre FAO, GATT, importadores e exportadores de matérias
agropecuárias, arquitetando verdadeiras cláusulas sociais em relações transnacionais, ou
ainda, o papel da rede hoteleira Sabena durante o genocídio em Ruanda.
Ou seja, as empresas que protegem e respeitam os Direitos Humanos,
devem ser reconhecidas, a fim de que continuem com essas práticas, que
beneficiam muitos mais além dos seus chefes (ou sócios). Philip Kotler e
Nancy R. Lee (2010, p. 280) discorrem sobre o papel das empresas: “As
grandes corporações globais estão aqui para ficar porque o mundo precisa
delas. Apesar de sua parcela de transgressões, elas têm muitos pontos
positivos. A questão é como recanalizá-las em direções mais construtivas e
responsáveis”. Não dá para ignorar o trabalho feito por algumas
corporações. Os investimentos do setor privado em causas humanitárias, em
inúmeros casos, é superior ao investimento dos Estados (que existem para,
entre outras coisas, proporcionar bem-estar e assegurar uma vida digna à
população). Philip Kotler e Nancy R. Lee (2010, p. 281) exemplificam:
Em termos de apoio direto para a redução da pobreza, sabe-se que muitas corporações são
filantrópicas. Algumas criam sua própria fundação que assume projetos de alívio da pobreza,
como a Fundação Coca-Cola. Outras contribuem com regularidade para uma ONG dedicada
302
a ajudar os pobres, como as 118 grandes empresas nas Filipinas que formaram e apoiaram a
Philippine Business for Social Progress (PBSP).
E os autores continuam demonstrando os resultados dos investimentos
do setor privado nessas causas (2010, p. 282):
A Global Business Coalition é uma aliança de cerca de ١٧٠ corporações internacionais que
se comprometeram a combater a epidemia de AIDS por meio do conhecimento especializado
das empresas-membros em medicamentos e produtos antiaids, em prestação de serviços e
distribuição, em comunicação de massa e publicidade e em planejamento e implementação
de gestão de programas. A ONU tem elogiado as empresas farmacêuticas que concordaram
com um desconto substancial nos preços de remédios essenciais contra AIDS nos países
africanos afetados.
Ainda sobre as atribuições do setor privado, os autores supra referidos
(2010, p. 282) destacam as ações da Philippine Business for Social Progress
(PBSP), uma ONG criada em 1970, na qual:
As empresas-membros da PBSP comprometeram-se a contribuir anualmente com 0,6% de
sua receita líquida. O papel da PBSP no alívio da pobreza é ser um “financiador direto” e
“intermediário” para o mercado de microempreendedores pobres que precisam de
microfinanciamento. Como financiador, a PBSP usou as contribuições anuais das empresasmembros para fornecer fundos que as organizações comunitárias locais, como cooperativas e
ONGs a nível das aldeias, pudessem emprestar a seus membros microempreendedores. Em
seu papel de intermediário, a PBSP uniu-se a órgãos nacionais e estrangeiros na economia
formal cujos recursos eram negados aos pobres por algum motivo”.
Cada qual (Estados e demais instituições, inclusive empresas
transnacionais) precisa fazer sua parte (através de ações com repercussão
local e/ou global). Trata-se de uma necessidade do mundo moderno e
globalizado. Márcio Ricardo Staffen (2015, p. 24) leciona:
[...] o problema de governar o mundo se funde em contextos que perpassam por alianças
militares (OTAN); instituições intergovernamentais (ONU, UNESCO, UNICEF, OMS e
afins); organismos regionais (Conselho Europeu); agremiações pós-imperialistas
(Commonwealth, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa); ordenamentos quase
políticos (União Europeia, Mercosul, UNASUL); summit (G-20, G-8, BRICS) e outras
milhares de ONGs.
Somam-se a esse conjunto de atores, ainda, as empresas, que, conforme
discorrido, exercem um papel importante em várias partes do mundo
(partes, aliás, ignoradas por outros atores). É por meio das ações conjuntas
de todos esses organismos e instituições que haverá maior avanço no
303
combate às violações dos Direitos Humanos em âmbito global. Márcio
Ricardo Staffen (2015, p. 25) reitera:
As vertentes do Direito Global articulam-se em múltiplos níveis, governos, administrações
locais, instituições intergovernamentais, cortes ultra-estatais e nacionais, networks,
organismos híbridos (público-privado), organizações não governamentais e dos próprios
indivíduos.
Diante dos dados que demonstram os resultados dos investimentos do
setor privado em causas humanitárias, é inegável que as Empresas
contribuem e poderão contribuir ainda mais para que os Direitos Humanos
sejam protegidos. As grandes empresas já perceberam que suas ações
podem salvar vidas (literalmente). Philip Kotler e Nancy R. Lee (2010, p.
287) arrematam:
As empresas podem desempenhar um papel cada vez maior na luta contra a pobreza. Depois
de muitos anos concentrando-se apenas em obter lucros, elas estão começando a assumir
responsabilidades sociais, em parte como resultado da pressão de ativistas [...] e das novas
leis, bem como por sua conscientização. As empresas têm atuado individual e coletivamente
para enfrentar problemas como HIV, a malária e outras doenças, além de baixar os custos de
alimentos e outros produtos e serviços a fim de torná-los mais acessíveis aos pobres.
Com essa importante posição, as empresas (algumas delas) perceberam
que são responsáveis e que muitas pessoas delas dependem. Mais do que
uma questão de imagem, é uma questão moral, que afeta a cada um de
maneira diferente. Se quem deveria fornecer ajuda, não fornece, e quem,
por outro lado, poderia mesmo sem a obrigação de fornecer, mas que
também não fornece, como as pessoas necessitadas podem sobreviver? É
evidente que, para a proteção dos Direitos Humanos e sua efetiva garantia,
são necessários, além de boa vontade e altruísmo, recursos financeiros.
Para superar alguns problemas que afetam os seres humanos, precisa-se
de verbas bem administradas e destinadas ao fim a que se propõem. Por
esses motivos, as empresas têm papel de destaque, mas não somente elas.
As alianças são o caminho para a paz e a tolerância. Problemas sempre
existirão. São inevitáveis. A solução para diminuir a quantidade e a
dimensão dos problemas globais e que exigem uma resposta é a
participação conjunta de todos esses órgãos para a efetivação dos Direitos
expostos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Quando se diz
que os problemas são globais, não se está dizendo que o governo deve ser
global (STAFFEN, 2015). Os problemas são globais porque se espraiam
304
mundo a fora, em maior ou menor frequência, conforme já dito. Evidente
que essas alianças entre os entes referidos não se dará o tempo todo para
combater todos os tipos de violações aos Direitos Humanos e/ou promoção
de tais Direitos. Mas, o que permitirá um avanço em termos de proteção de
Direitos Humanos é a conscientização dos entes, das instituições, das
pessoas físicas, além, é claro, dos governantes, de que as violações que
acontecem pelo mundo (doenças, terrorismo, guerras civis, falta de comida
e remédio, corrupção e intolerância religiosa) são responsabilidade de
todos, e não somente do Estado, ou das empresas ou ONG’s. Não se pode
isentar o Estado e nem deixar de incluir as empresas nessa missão de
proporcionar melhores condições de vida às pessoas. Mesmo que os
Direitos Humanos sejam universais, eles dependem de ações para sua
proteção e promoção. Quanto mais atores trabalharem conjuntamente,
menos difícil será a tarefa.
CONCLUSÃO
Através deste trabalho pode-se perceber que há certo desvirtuamento do
conceito e dos objetivos dos Direitos Humanos por boa parte da população,
que não compreende a importância destes. Por isso, faz-se necessário
esclarecer a razão de ser dos Direitos Humanos e disseminar seu conceito
(real) para além da Academia. Distinguiu-se Direitos Humanos de Direito
Internacional Humanitário, que, muito embora possam parecer expressões
sinônimas, possuem diferenças.
Deu-se maior destaque, porém, à análise da responsabilidade na proteção
e respeito aos Direitos Humanos, com o objetivo de analisar se as empresas
possuem compromisso com as causas humanitárias. Sabe-se que, para os
ideais embutidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos se
concretizarem, fazem-se necessárias ações efetivas, local e globalmente,
que proporcionem segurança, alimentação, saúde e bem-estar para pessoas
que vivem em situações precárias e subumanas. Muitos entes privados estão
se conscientizando e ajudando as causas humanitárias. São bilhões
investidos no combate às doenças, no fornecimento de alimentação e
educação de melhor qualidade, na melhora da moradia e assim por diante.
Se não fossem esses entes engajados, essas crianças e toda a população
carente não teriam a quem recorrer. Além de recursos financeiros, para que
305
haja a proteção aos Direitos Humanos, requer-se boa vontade, uma dose de
altruísmo e um mínimo de ética.
Através deste artigo, pode-se perceber que existe a responsabilidade
empresarial na proteção e respeito aos Direitos Humanos uma vez que o
Estado não supre todas as necessidades e não consegue dar uma efetiva
resposta aos problemas que assolam os povos. Diante dessa situação, as
empresas ocupam lugar de destaque porque conseguem não só resolver os
problemas mais rapidamente, mas preveni-los. Sem tanta burocracia e com
recursos disponíveis para serem investidos em áreas estratégicas as
empresas dispostas a mitigar as chagas sociais conseguem efetivar ações
concretas em prol dos Direitos Humanos.
Os resultados serão mais promissores quando todos os entes envolvidos
trabalharem em conjunto, cada qual desempenhando um papel fundamental.
Nem por isso se deverá retirar a responsabilidade dos ombros do Estado e
coloca-la sobre as empresas, assim como não se pode isentar as empresas
onerando somente o Estado. O trabalho conjunto se mostra mais eficaz,
ameniza dificuldades e otimiza resultados. A globalização pode ser um fator
muito importante em todo esse processo. Para positivar o efeito da ausência
de fronteiras e da rápida troca de informações, a noção de universalidade e
responsabilidade comuns acabará beneficiando a todos, e, onde há benefício
coletivo, há respeito pelos Direitos Humanos
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¹Mestrando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência
Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Bolsista CAPES.
Pós-graduando lato sensu em Direito Empresarial e dos Negócios pela
307
UNIVALI. Bacharel em Direito pela UNIVALI. Advogado militante nas
áreas de Direito Civil, Direito Previdenciário e Direito Ambiental. E-mail:
yury.queiroz@hotmail.com.
Currículo
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/9983503439643086
Pós-graduada em Direito Penal e Processual Penal pelo Complexo de
Ensino Damásio de Jesus (٢٠١٥-٢٠١٤). Graduada em Direito pela
Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI (٢٠١٣); Advogada militante na
área de direito penal e direito do Trabalho. Membro da Comissão do Direito
dos Animais da Subsecção da OAB/SC de Balneário Camboriú – SC. Email: portellaadvogada@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/
٧٧٧٤٤١٢٩٩٣٩١٩٣٨٧
Essa qualificação dos haitianos como refugiados será discutida a diante,
com a finalidade de confirmar se contemplam os requisitos para aquisição
desse status.
O autor não descarta a existência de outras dimensões da sustentabilidade,
porém, assevera que as cinco apresentadas são suficientes para sublinhar a
complexidade com que se precisa tratar o tema da sustentabilidade.
Sobre a dimensão tecnológica da sustentabilidade se recomenda a leitura do
texto: CRUZ, Paulo Márcio; REAL FERRER, Gabriel. Direito,
Sustentabilidade e a Premissa Tecnológica como Ampliação de seus
Fundamentos. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, v. 36,
n. 71, p. 239, dez. 2015. ISSN 2177-7055.
Para a resolução n.97 do CNIg, consideram-se razões humanitárias, aquelas resultantes do
agravamento das condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido
naquele país em 12 de janeiro de 2010.
“O Viva Rio é uma organização sem fins lucrativos, fundada em 1993, no
Rio de Janeiro, que atua na formação de comunidades seguras e sadias em
territórios vulneráveis. Em 2004, chegou ao Haiti a convite da ONU. Em
2014, instalou-se nos Estados Unidos como Viva Rio Inc”. Disponível em:
<http://vivario.org.br/quem-somos-2/>. Acesso em: 31 jul. 2016.
HAITI AQUI. Disponível em: <http://haitiaqui.com/br/quem-somos>.
Acesso em: 31 jul. 2016.
REPÓRTER BRASIL. Imigrantes haitianos são escravizados no Brasil.
(2014). Disponível em: <http://reporterbrasil.org.br/2014/01/imigranteshaitianos-sao-escravizados-no-brasil/>. Acesso em: 07/08/2016 às
15h29min.
308
Ementa: VÍNCULO EMPREGATÍCIO. ESTRANGEIRO EM SITUAÇÃO
IRREGULAR. A situação irregular do estrangeiro não pode servir de
argumento para sonegar direitos do trabalhador, quando se constata a
existência de uma relação típica de emprego. Seria um avilte às garantias e
aos princípios constitucionais e dos que regem o Direito Laboral, como o da
dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho. (TRT-1. RO
5831520115010432 RJ, Relator: Gustavo Tadeu Alkmim, 1ª Turma, julgado
em 29/05/2012). TRT 1º REGIÃO. Acórdão n. RO 5831520115010432.
Disponível
em:
http://trt1.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24563744/recurso-ordinario-ro5831520115010432-rj-trt-1. Acesso em: 07/08/2016 às 16h37min.
REPORTER BRASIL. “Sem acesso a políticas públicas, haitianos são
explorados”
(2014).
Disponível
em:
http://reporterbrasil.org.br/2014/01/sem-acesso-a-politicas-publicashaitianos-sao-explorados/. Acesso em: 07/08/2016 às 16h13min.
Mestranda IMED 2016, carolbresolinm@gmail.com
Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da
Faculdade Meridional. Professora dos Cursos de Direito da Faculdade
Meridional e Faculdade CESUSC. Pesquisadora da Fundação Meridional.
Coordenadora do grupo de pesquisa MAR – Migração, Asilo e Refúgio.
Para saber mais sobre as informações contidas no parágrafo, visitar o sitio
eletrônico do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados,
disponível
em:
<http://www.acnur.org/portugues/quemajudamos/apatridas/>.
Referência a música Holy Mountains, da banda System of a Down, que
menciona as montanhas armênias.
Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina –
UFSC. Mestra em Direito pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos
Conhecer Direito – NECODI/UFSC, do Grupo de Pesquisa Modelagem e
Compreensão de Sistemas Sociais: Direito, Estado, Sociedade e
Política/UFSC, e do Núcleo de Estudos de História e Rock –
NEHROCK/UFSC. Pesquisadora do Grupo Direito das Mulheres/UFSC.
Bolsista CAPES. E-mail: amandai040@gmail.com
Doutorando em História pela Universidade Federal de Santa Catarina –
UFSC. Mestre em História pela Universidade Estadual de Montes Claros –
309
UNIMONTES. Pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos
Medievais – MERIDIANUM/UFSC. E-mail: rodoxbastos@gmail.com.
Disponível em: < http://migre.me/uPbxh >. Acesso em 30/08/16.
Ocorre que a Turquia é uma aliada importante para a Organização do
Tratado do Atlântico Norte – OTAN, pois possui a base aérea de Incirlik,
localizada perto de países conflituosos, como por exemplo o Iraque.
Almeida (2013, p. 137) transcreve o dispositivo legal: “1. Uma pessoa que publicamente denigra a
Turquicidade, a República ou a Grande Assembleia Nacional da Turquia, deve ser sentenciada a pena
de prisão de 6 meses a 3 anos. 2.Uma pessoa que publicamente denigra o Governo da República da
Turquia, o corpo judiciário do Estado, as organizações militares ou de segurança, deve ser
sentenciada a pena de prisão de 6 meses a 2 anos. 3. Se a ofensa à Turquicidade for cometida por um
cidadão turco em outro país, a pena imposta deve ser aumentada em um terço. 4. Expressões de
pensamento com a intenção de crítica não constituem crime”.
Vídeo disponível em: <http://migre.me/u٤l٣C>. Acesso ٠٧/٠٦/٢٠١٦.
“Está se referindo à recusa do governo americano em reconhecer o
genocídio armênio em 1915. ” (Tradução nossa).
Uma tradução aproximada poderia ser “Mentindo de forma profana
politicamente assassinos covardes” (Tradução nossa).
“Eliminação, eliminação, eliminação / Por que?, Morra, Afunde / O Genocídio de uma raça inteira /
Levou embora todo o nosso orgulho / O Genocídio de uma raça inteiro / Levou embora, assista tudo
se arruinar”. (Tradução nossa).
“Revolução, a única solução / A resposta armada de uma nação inteira / Revolução, a única solução /
Nós levamos toda sua merda, agora está na hora de restituição / Reconhecimento, Restauração,
Reparação / Reconhecimento, Restauração, Reparação / Os assista se arruinar”. (Tradução nossa).
“O plano foi dominado e chamado de Genocídio / (Nunca quero ver você por perto) / Levaram todas
as nossas crianças e então nós morremos / (Nunca quero ver você por perto) / Os poucos que ficaram
nunca foram achados / (Nunca quero ver você por perto) / Tudo em um sistema se arruinou...
Arruinado... Arruinado... / Arruinado... Afunde.../ Assista tudo se arruinar”. (Tradução nossa).
Disponível em: <http://migre.me/u4l4p> em 08/06/2016
Disponível em: <http://migre.me/u4l7i>. Acesso em 10/06/2016.
Disponível em: < http://migre.me/u4l9F>. Acesso em 10/06/2016.
Para mais informações, checar: < http://migre.me/u4lfd>. Acesso em
10/06/2016.
Para mais informações, checar: < http://migre.me/u4lg1>. Acesso em
10/06/2016.
Para mais informações, checar: < http://migre.me/u4lgU >. Acesso em
310
10/06/2016.
*
Mestrando no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito
(Mestrado) da Faculdade Meridional (IMED). Membro do Grupo de
Pesquisa “Transnacionalismo e Circulação de Modelos Jurídicos”. Bolsista
PROSUP/CAPES vinculado ao PPGD-IMED. Advogado (OAB/RS).
Currículo
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/3650515438834580.
E-mail:
cttlers@gmail.com.
“Assim sendo, para efeitos deste estudo, podemos definir a eficácia jurídica
como a possibilidade (no sentido de aptidão) de a norma vigente
(juridicamente existente) ser aplicada aos casos concretos e de – na medida
de sua aplicabilidade – gerar efeitos jurídicos, ao passo que a eficácia social
(ou efetividade) pode ser considerada como englobando tanto a decisão pela
efetiva aplicação da norma (juridicamente eficaz), quanto o resultado
concreto decorrente – ou não – desta aplicação”. (SARLET, 2012, p. 13321333).
Conferir, a propósito, Piovesan (2002, p. 75-98).
Confira-se: Caletti (2007, p. 153-176) e Caletti e Staffen (2015, p. 133156).
Artigo 27. Direito Interno e Observância de Tratados. Uma parte não pode
invocar as disposições de seu direito interno para justificar o
inadimplemento de um tratado. Esta regra não prejudica o artigo 46.
Até o presente momento, apenas a Convenção Internacional sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados
em Nova York, em 30 de março de 2007 e aprovados pelo Decreto n. 6.949,
de 25 de agosto de 2009.
Adota-se o ponto de partida do surgimento do instituto na Comissão
Interamericana de Direitos Humanos devido ao reconhecimento, pelo
Estado brasileiro, de sua jurisdição obrigatória. Acerca dos antecedentes
históricos do instituto, consulte-se Mazzuoli (2011, p. 81-82).
O Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992, promulgou a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), e,
mediante o Decreto n. 4.463, de 8 de novembro de 2002, reconheceu, o
Brasil, a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH).
Artigo 2. Dever de adotar disposições de direito interno. Se o exercício dos
direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido
311
por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes
comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e
com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra
natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e
liberdades.
Cunhou-se a expressão “controle de supralegalidade” para designar o juízo
de compatibilidade das normas domésticas com o corpo de tratados que
versa matéria comum ordinária, não atinente a direitos humanos.
O fundamento convencional da natureza obrigatória das sentenças da Corte
Interamericana de Direitos Humanos repousa no artigo 68, parágrafo 1º, da
Convenção Americana de Direitos Humanos.
No mesmo sentido desse julgado, podem ser arroladas as seguintes
decisões, constantes do mesmo Cuadernillo de Jurisprudencia de la Corte
Interamericana de Derechos Humanos: (1) Caso Trabajadores Cesados del
Congreso (Aguado Alfaro y otros) Vs. Perú. Excepciones Preliminares,
Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de Noviembre de 2006; e
(2) Caso Cabrera García y Montiel Flores Vs. México. Excepción
Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 26 de noviembre de
2010.
Aqui, duas ressalvas são pertinentes. Primeiro, a transcendência da
simplória e minimalista compreensão da lei como instrumento de coação.
Segundo, a necessidade de se manter atento à produção legislativa
infraconstitucional. O avanço de teorias constitucionais não pode significar
um preterimento da legislação, sob pena de se viver em duas realidades
paradoxais. Conferir Zagrebelsky (2009) e LEAL (2010).
“No atual estágio da nossa evolução social é justamente a Teoria do Estado
que há de responder à questão de como, dentro da realidade social, é
oportuno que tenha praticamente sentido e seja, além disso, possível tornar
a Constituição relativamente separada desta realidade social, objeto de um
método dogmático especial”. (HELLER, 1968, p. 307).
“A companhia petrolífera British Petroleum, responsável por uma das
maiores degradações da vida marinha no Golfo do México, continuou suas
campanhas publicitárias sobre suas boas práticas empresariais. Qualquer
tentativa de regulá-las é recebida com muita indignação e ameaças
financeiras, uma vez que o lucro parece ser sacrossanto e valorizado acima
dos direitos humanos. O Primeiro-ministro britânico apontou o fato de que
312
qualquer compensação que a British Petroleum tivesse que pagar,
possivelmente $ 4,4 bilhões, corroeria o lucro dos acionistas. Outro
exemplo foi o caos que as transações bancárias não regulamentadas criaram
no Hemisfério Norte, e toda a reação planejada na época foi lentamente
retirada dos projetos legislativos da União Europeia e dos Estados Unidos.
Em vez de estabelecer normas obrigatórias para as empresas
multinacionais, que não são sujeitos do direito internacional público, elas
são estimuladas a se comportar melhor”. (JAICHAND, 2014, p. 42, grifos
originais).
Essa, aliás, foi uma pecha que, histórica e recorrentemente, se atrelou aos
Direitos Humanos: a de se tratar de um ramo do Direito incidente ou efetivo
unicamente no plano pós-violatório.
Um dos maiores defensores da criação desse tribunal é o professor Manfred
Nowak, que o reputa uma instituição fundamental para garantir que os
Estados-partes cumprissem suas obrigações referentes aos tratados de
Direitos Humanos. As principais características deste sistema preveem um
tribunal permanente a ser criado através de um tratado. Estados-Partes no
presente tratado estabeleceriam sistemas nacionais para aplicar todos os
tratados de Direitos Humanos com base na complementaridade, conforme
estabelecido no Estatuto de Roma para a justiça penal internacional. O
Tribunal se tornaria parte da estrutura da Organização das Nações Unidas
seria financiado por esse organismo. Esse tribunal teria jurisdição inclusive
sobre atores não estatais, tais como corporações multinacionais, sendo que
o Escritório do Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU
supervisionaria os acórdãos do Tribunal. (NOWAK e KOSMA, 2009).
Acadêmica de Direito da Faculdade Meridional – IMED, onde é bolsista Fapergs/Cnpq/Imed,
vinculada ao Centro Brasileiro de Pesquisa sobre a Teoria da Justiça de Amartya Sen: interfaces com
direito, políticas de desenvolvimento e democracia. E-mail:<luanalucca@live.com>. Lattes:
<http://lattes.cnpq.br/3534943362215343>
Pós- doutor em Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Doutor em Filosofia pela
PUCRS. Professor do programa da Pós-Graduação em direito da Faculdade Meridional – IMEDMestrado. Professor do curso de Direito (Graduação e especialização) da Faculdade Meridional –
IMED de Passo Fundo. Membro do Grupo de Trabalho, Ética e Cidadania da ANPOF (Associação
Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Filosofia). Pesquisador da Faculdade Meridional.
Coordenador do Grupo de Pesquisa: Multiculturalismo, Minorias, Espaço Público e Sustentabilidade.
Líder do Grupo de Estudo: Multiculturalismo e Pluralismo Jurídico. Líder do Centro Brasileiro de
313
pesquisa sobre Amartya Sem: interface com direito. Políticas de desenvolvimento e democracia. Email: <neurojose@hotmail.com><nzambam@imed.edu.br>.
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Passo Fundo – RS.
Advogada. Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal de Santa Maria. Graduada em Direito pela
Universidade
Federal
de
Santa
Maria.
E-mail:
rafaelacruzmello@gmail.com.
Advogado. Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal de Santa Maria. Graduada em Direito pela
Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: marciombrum@gmail.com.
Advogada. Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal de Santa Maria. Graduada em Direito pela
Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: tieli.zd@hotmail.com.
A grande modificação é vista no novo constitucionalismo latino americano, sobretudo com as
vanguardistas constituições da Bolívia e do Equador e nestas, uma das bases para o reconhecimento
das diferentes identidades e para criação de especificidades e peculiaridades das condições sociais
dos povos tradicionais é o reconhecimento de direitos da sociobiodiversidade.
Nos seguintes casos houve a concepção da CIDH da propriedade sob um
viés coletivo: Caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Equador, 2012;
Comunidade Indígena Sawhayamaxa vs. Paraguai, 2001, Comunidade
Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs, Nicarágua, 2001.
Nos seguintes casos houve a concepção da CIDH da propriedade sob um
elemento tramsgeracional e transfronteiriço: Casos Comunidade Mayagna
(Suma) Awas Tingini vs. Nicarágua, 2001; Caso Comunidade Indígena
Sawhoyamaxa vs. Paraguai, 2006 e Caso Comunidade Indígena Xákmok
Kásek vs. Paraguai, 2010.
Nos seguintes casos houve a concepção da CIDH de gozo livre dos direitos
de propriedade: Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Equador, 2012.
Povo Saramaka vs. Suriname, 2007.
Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Bolsista CAPES. E-mail: marciombrum@gmail.com.
Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
E-mail: rafaelacruzmello@gmail.com.
A petição ao SIDH foi assinada por: Comunidades Arara da Volta Grande,
Juruna do Km 17, Arroz Cru e Ramal das Penas, representadas, por
Movimento Xingu Vivo Para Sempre (MXVPS), Coordenação das
314
Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) Prelazia do
Xingu, Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Sociedade Paraense de
Direitos Humanos (SDDH), Justiça Global e Asociación Interamericana
para la Defensa del Ambiente (AIDA).
Os peticionários esclarecem que se trata de uma situação de urgência e
gravidade, tendo em vista que a obra ameaça impactar irremediavelmente a
vida e a integridade dos indígenas e ribeirinhos que vivem na região, que
serão submetidos ao deslocamento forçado, à insegurança alimentar e
hidrológica, com a perda de água potável, ao aumento de doenças, ameaças
de invasões às terras indígenas e ao aproveitamento ilegal de recursos
naturais, ao aumento da pobreza e à migração desordenada, que
sobrecarregará os sistemas de saúde, educação e segurança pública.
Explicam, ainda, que apesar da gravidade e irreversibilidade dos impactos
da obra para as comunidades locais, não foram realizadas as medidas
adequadas para garantir a proteção dos direitos das mesmas nem do meio
ambiente.
Mestranda em Direito pela Faculdade Meridional – IMED (Passo
Fundo/RS). Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto
Catarinense de Pós-Graduação – ICPG (2009). Especialista em Direito
Empresarial e dos Negócios, pela UNIVALI (2013). Graduada em Direito
pela Universidade para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí (2008) e
graduada em Sistemas de Informação pela mesma universidade (2003).
Professora titular da disciplina de Direito Processual Civil V Procedimentos Especiais e professora substituta das disciplinas de Direito
Processual Civil II - Processo de Conhecimento e Direito Processual Civil
IV - Processo de Execução, do curso de Direito da UNIDAVI e da
disciplina de Legislação e Ética, do curso de Sistemas de Informação, da
UNIDAVI. Coordenadora da Escola Superior de Advocacia (ESA) Subseção de Rio do Sul, da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de
Santa Catarina. Conselheira Suplente da Subseção de Rio do Sul, da Ordem
dos Advogados do Brasil, Seção de Santa Catarina. Advogada OAB/SC. Email: francianehasse@gmail.com
Mestranda em Direito pela Faculdade Meridional – IMED (Passo
Fundo/RS). Bolsista CAPES/PROSUP. Membro do grupo de estudos
Fundamentos e Dimensões dos Direitos Humanos. Membro Efetivo da
Rede
Brasileira
Direito
e
Literatura
(RDL).
E-
315
mail: mss.marilin@gmail.com
Graduada em Direito pela Anhanguera. Advogada. Membro do grupo de
estudos Fundamentos e Dimensões dos Direitos Humanos, vinculado ao
PPGD - IMED. E-mail: amandasimor@hotmail.com.
Para saber mais sobre a história da ONU, ver necessariamente o sítio
eletrônico
da
ONU,
disponível
em:
https://nacoesunidas.org/conheca/historia/. Acesso em 11/06/2016.
A Declaração sobre a eliminação de toas as formas de intolerância e
discriminação baseadas na religião ou crença art. III. Disponível em
https://www.oas.org/dil/port/1981Declara%C3%A7%C3%A3o%20sobre%
20a%20Elimina%C3%A7%C3%A3o%20de%20Todas%20as%20Formas%
20de%20Intoler%C3%A2ncia%20e%20Discrimina%C3%A7%C3%A3o%
20Baseadas%20em%20Religi%C3%A3o%20ou%20Cren%C3%A7a.pdf.
Acesso em 12/06/16.
À primeira vista o uso do véu feminino, àquelas mulheres que são adeptas
ao islamismo, pode ter uma má conotação, sendo estereotipado como
elemento de uma cultura sexista, que se preocupa em manter a mulher
subjugada em condições de submissão. É inegável que em algumas
comunidades islâmicas ocorre muito mais que imposição do uso do véu,
mas o trato com as mulheres, de um modo geral é destinado a mantê-las
submissas aos homens, retirando-se delas a possibilidade do exercício da
liberdade (como é o caso da Arábia Saudita, em que as mulheres não podem
dirigir). Entretanto, deve-se considerar que existem diversas interpretações
do Alcorão, logo, não são todas elas que disseminam uma sistemática de
dominação extrema das mulheres.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão é datada em
1789, os artigos a que se referem a “lei do véu” trazem o seguinte texto Art.
4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo.
Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites
senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos
mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei. Art.
5º. A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é
vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a
fazer o que ela não ordene. Art. 10º. Ninguém pode ser molestado por suas
opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não
perturbe a ordem pública estabelecida pela lei. Disponível em
316
<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-dasNa%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-dohomem-e-do-cidadao-1789.html> Acesso em 11/06/2016.
O conteúdo da Reclamação pode ser acessado na íntegra através do
Tribunal
Europeu
de
Direitos
humanos
pelo
link:
<http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-145466#{“itemid”:[“001-145466”]}>.
Acesso em 21/11/15.
Trata-se do trecho extraído da decisão final do TEDH. O conteúdo pode ser
acessado através do link: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-145466#
{“itemid”: [“001-145466”]} acesso em 12/06/2016.
Avis relatif à l’expression des religions dans les espaces publics.
Recommandations du Haut Conseil à L’integration relatives à l’expression
religiuse dans les espaces publics de la Republique, marzo 2010.
http://archives.hci.gouv.fr/Avis-relatif-a-l-expression-des.html. Acesso em
12/06/16.
ANGELETTI, Silvia. Il divieto francese al velo integrale, tra valori, diritti,
laicité e fraternité. Rivista di Diritto pubbli italiano, comparato,
europeo.Itália. N.1 – 22/01/2016, p.10.
Mestrando do curso de Ciência Jurídica no programa de Pós-Graduação da
Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Bolsista do Fundo de Apoio à
Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior – FUMDES. Pósgraduando lato sensu em Direito Empresarial e Advocacia Empresarial pela
Universidade Anhanguera - Uniderp. Especialista lato sensu em Direito
Civil e Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera – Uniderp.
Bacharel em Direito pela UNIVALI. Professor na Universidade do Oeste de
Santa Catarina (UNOESC) e Tabelião de Notas e Protestos da Comarca de
Modelo/SC.E-mail: alanprovin@hotmail.com
“[...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de
modo a ter uma percepção ou conclusão geral [...]”. PASOLD, Cesar Luis.
Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 11. ed. Florianópolis:
Conceito editorial/Milleniuum, 2008. p. 86.
“[...] explicitação prévia do(s) motivo(s), do(s) objetivo(s) e do produto
desejado, delimitando o alcance temático e de abordagem para a atividade
intelectual, especialmente para uma pesquisa.” PASOLD, Cesar Luis.
Metodologia da pesquisa jurídica: Teoria e prática. p. 53.
317
“[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma
idéia.” PASOLD, Cesar Luis. Metodologia da pesquisa jurídica: Teoria e
prática. p. 25.
“[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal
definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos [...]”. PASOLD,
Cesar Luis. Metodologia da pesquisa jurídica: Teoria e prática. p. 37.
“Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e
coletâneas legais. PASOLD, Cesar Luis. Metodologia da pesquisa jurídica:
Teoria e prática. p. 209.
Art. 1.748. Compete também ao tutor, com autorização do juiz: [...] II - aceitar por ele heranças,
legados ou doações, ainda que com encargos; [...]
O artigo foi escrito sob a orientação da Professora Doutora da Faculdade
Meridional, Leilane Serratine Grubba, coordenadora do Grupo de Pesquisa
MAR – Migrações, Asilo e Refúgio e do Grupo de Pesquisa FUNDIH –
Fundamentos e Dimensões dos Direitos Humanos.
Advogada, especialista em Direito Tributário e Gestão de Pessoas pela
Universidade Anhanguera – Uniderp. Mestranda em Direito Democracia e
Sustentabilidade
pela
Faculdade
Meridional.
E-mail:
andy_battezini@hotmail.com
Acadêmica de Direito da Faculdade Meridional IMED, bolsista FAPERGS,
e participante do grupo de pesquisa MAR – Migração, Asilo e Refúgio
Graduando em Direito pela UFSC, bacharel em Segurança Pública,
especialista em Políticas de Gestão em Segurança Pública, capitão da
polícia militar de Santa Catarina, consultor policial das Nações Unidas para
a missão de paz no Sudão do Sul no período de 2015 a 2016.
Reconhecido e membro componente da Organização das Nações Unidas,
em
14
de
julho
de
2011,
(disponível
em
https://nacoesunidas.org/conheca/paises-membros/#paisesMembros9)
é
comumente referenciado como país mais recente do mundo pela mídia
jornalística, a exemplo das empresas de comunicação inglesas BBC
(disponível
em
www.bbc.com/news/world-africa-140690820)
e
Independent.
Disponível
em
http://www.independent.co.uk/news/world/africa/south-sudan-worldsnewest-country-poor-independence-day-celebrate-a7113126.html).
Acessados em 1 de agosto de 2016.
Tradução livre do termo oriundo do dialeto sul-sudanês madi significa
318
veneno de cobra.
A região de Abyei localizada na fronteira entre Sudão e Sudão do Sul possui grande concentração de
recursos petrolíferos. O território ainda hoje é reivindicado por ambos os países. Em 2011 o Conselho
de Segurança da ONU adotou a esolução 1990 que estabeleceu a Força de Segurança Interina da
ONU para Abyei, com vistas à proteção da população civil e dos prestadores de ajuda humanitária.
Disponível em: http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/unisfa/background.shtml. Acesso em 8
de agosto de 2016
Em 1979 a empresa estadunidense Chevron descobriu imensas reservas de
petróleo na porção centro-sul do Sudão. (MOELLWALD, 2015). Cerca de
75% destas reservas destas estão atualmente localizadas no atual Sudão do
Sul, ou em áreas disputadas, enquanto a estrutura de logística de
escoamento de produção (oleodutos e portos) concentra-se quase que em
totalidade em território sudanês. (SALMAN, 2011, tradução nossa).
Em inglês Sudanese People Liberation Movement, mais conhecido pela
sigla SPLM;
Em inglês Sudanese People Liberation Army, mais conhecido pela sigla
SPLA;
Omar Al-Bashir continua no poder desde o golpe militar mencionado.
Informação disponível em http://www.bbc.com/news/world-africa16010445. Acesso em 31 de julho de 2016;
Em entrevista para o website People nominada Encontre na vida real os “Garotos Perdidos” do
Sudão em a A Boa Mentira (tradução nossa), Ger Duany e Emmanuel Jal, cuja história inspirou o
filme, afirmam ter fugido para o campo de refugiados no Quênia ano de 1993. Disponível em
http://www.people.com/article/the-good-lie-movie-real-life-lost-boys-of-sudan-ger-duany-emmanueljal-reese-witherspoon. Acesso em 1º de agosto de 2016;
Disponível
em
http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unmis/background.shtml.
Acesso em 2 de agosto de 2016;
O reforço à influência estadunidense na região se dá no período pós-guerra
fria, almejando mitigar o controle dos poços de petróleo sudaneses por parte
dos chineses, estabelecidos nos anos, 1990. A secessão do Sudão do Sul
colocou “nas mãos de um país com graves problemas políticos, econômicos
e de infraestrutura 75% das reservas de petróleo que anteriormente
pertenciam ao Sudão.” (GERBASE e VISENTINI, 2004, p. 2).
O acidente aéreo ocorrido próximo entre a fronteira do Sudão do Sul e
Uganda causou a morte de 13 pessoas, incluindo Jhon Garang. Violentos
319
protestos foram registados na capital sudanesa Cartum. Disponível em
http://www.sudantribune.com/spip.php?article10893. Acesso em 1º de
agosto de 2016.
Em inglês chamada United Nations Mission in the Sudan – UNMIS. Após a
independência em 2011, a resolução do Conselho de Segurança nº 1996
encerrou a antiga missão e iniciou a United Nation Mission in South Sudan
– UNMISS, que segue atuando no país em conflito. Disponível em
http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unmis/background.shtml
e http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/unmiss/background.shtml.
Acesso em 1º de agosto de 2016.
Em inglês Sudanese People Liberation Army in Opposition – SPLA-IO.
Disponível
em
http://www.un.org/apps/news/story.asp?
NewsID=46912#.V6o0nJgrK01. Acesso em 9 de agosto de 2016.
Cronologia
elaborada
pela
BBC.
Disponível
em
http://www.bbc.com/news/world-africa-14019202. Acesso em 9 de agosto
de 2016.
Dados do Escritório das Nações Unidas para Assuntos Humanitários.
Disponível em http://www.unocha.org/south-sudan. Acesso em 9 de agosto
de 2016.
Dados do Escritório das Nações Unidas para Refugiados. Disponível em
http://data.unhcr.org/SouthSudan/regional.php. Acesso em 9 de agosto de
2016.
“O conflito do Sudão do Sul, que teve início em dezembro de 2013,
produziu uma das piores situações de deslocamento do mundo, com imenso
sofrimento. Cerca de 1,69 milhão de pessoas estão deslocadas no interior do
país, enquanto há atualmente pouco mais de 831 mil refugiados sulsudaneses, principalmente na Etiópia, Sudão e Uganda. ” Disponível em:
https://nacoesunidas.org/quatro-mil-pessoas-fogem-diariamente-do-sudaodo-sul-para-uganda-alerta-onu/ Acesso em 02 de ago. 2016.
Em seu livro, Joaquín tenta evidenciar mostrar que os Direitos Humanos
precisam ser reinventados no século XXI. A ideia de reinvenção dos
Direitos Humanos é, nos reinventa, inseridos nas lutas sociais, por um
desenvolvimento digno das pessoas e dos mais diversos povos. Para assim,
garantir um mundo mais justo, igualitário e solidário. Deve-se entender o
mundo para elaborar políticas públicas que efetivem os Direitos Humanos.
FLORES, Joaquín Herrera. A reinvenção dos Direitos Humanos.
320
Florianópolis: Fundação Boiteux,2009
Projeto de Pesquisa: Perspectivas Latinoamericanas en el Debate Ambiental
Mundial entre 1992 y 2012. Los casos de Chile, Ecuador y Brasil. Un
estudio de historia de las ideas políticas del tiempo presente en el espacio de
la política mundial e internacional.
Aluno da graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul – Unijui; Bolsista Cnpq, tonelr@yahoo.com
Aluno da graduação em Ciências Biológicas e Medicina Veterinária pela
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul –
Unijui; Bolsista PET/CAPES, ghammars@asu.edu
Professor Doutor, do Universidade Regional, do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul
[...] forms of movement taking place voluntarily or involuntarily and across or within national
borders […].
situation or event, which overwhelms local capacity, necessitating a request
to national or international level for external assistance […]; An unforeseen
and often sudden event that causes great damage, destruction and human
suffering. Though often caused by nature, disasters can have human origins.
Indications of changes in the earth’s future climate must be treated with the
utmost seriousness, and with the precautionary principle uppermost in our
minds. Extensive climate changes may alter and threaten the living
conditions of much of mankind. They may induce large-scale migration and
lead to greater competition for the earth’s resources. Such changes will
place particularly heavy burdens on the world’s most vulnerable countries.
There may be increased danger of violent conflicts and wars, within and
between states.
[…] anthropocene defines Earth’s most recent geologic time period as being
human-influenced, or anthropogenic, based on overwhelming global
evidence that atmospheric, geologic, hydrologic, biospheric and other earth
system processes are now altered by humans […].
not every forcibly displaced person is a refugee, but all forcibly displaced
people need some form of protection […].
[...] internally displaced persons are persons or groups of persons who have
been forced or obliged to flee or to leave their homes or places of habitual
residence, in particular as a result of or in order to avoid the effects of
armed conflicts, situations of generalized violence, violations of human
321
rights or natural or human-made disasters, and who have not crossed an
internationally recognized State border.
[…] people living in areas which are likely to be rendered uninhabitable due to climate change
should have the early option of migrating to other countries, in numbers roughly proportionate to the
host countries’ cumulative greenhouse gas emissions […].
[…] it is not that climate change itself is responsible for rights violations;
rather, it is the effects of climate change that weaken states’ capacities and
hinder them from fulfilling their obligation to protect people’s rights […].
Docente Adjunta na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul
(UERGS). Professora Colaboradora do Programa de Pesquisa e Extensão e
Pós-Graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina
UNOESC/ Brasil. E-mail: t.wencze@terra.com.br
Advogado, Mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade do Oeste
de Santa Catarina, Especialista em Direitos Humanos pela Universidade
Católica de Brasília, professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação
das Faculdades Anglicanas de Erechim e de Tapejara/Brasil. E-mail:
espiuca@yahoo.com
Nesse aspecto existem diversas ações localizadas nos Estados do Sul do
Brasil. A exemplo pode-se citar a iniciativa da Universidade de Lajeado –
Univates que busca proporcionar formação de professores de Língua
Portuguesa como Língua Adicional e tenha como base a interação com a
cultura de estrangeiros que escolhem o Brasil para viver, temporária ou
definitivamente, através do projeto de extensão “Ensino e aprendizagem de
Língua Portuguesa como língua adicional: investigação, formação e
ensino”, vinculado ao curso de Letras da Univates. Além de oferecer aos
acadêmicos um conhecimento aplicado sobre o ensino do idioma, a prática
atende a uma importante demanda do Vale do Taquari: ensinar Língua
Portuguesa aos imigrantes haitianos que vivem na região.
Também é possível constatar que alguns adentraram ao ecletismo religioso
tão bem propalado no Brasil: tornaram-se adeptos de Igrejas
neopentecostais. Em nossa pesquisa, os depoentes declararam que
frequentam as seguintes Igrejas: Assembleia de Deus – do ramo do
pentecostalismo histórico – e as neopentecostais Igreja Universal do Reino
de Deus e Igreja Internacional da Graça de Deus.
Graduando do Curso de Direito da Faculdade Concórdia (FACC).
Mestre em Direitos Sociais, Difusos e Coletivos pela UNISAL. Professora
322
do Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Concórdia (FACC).
Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Coordenador do Núcleo de
Prática Jurídica e Professor do Curso de Bacharelado em Direito da
Faculdade Concórdia (FACC).
Diferenciam-se as disposições normativas das normas. Aquelas são o objeto
da interpretação; a fórmula lingüística reconhecida como ato ou fato de
produção de direito, ou seja, a parte de um texto ainda a interpretar. Essas
são o resultado da interpretação; conteúdo de sentido resultante da
interpretação da disposição normativa, ou seja, a patê de um texto já
interpretado (BERNARDES; FERREIRA, 2016, p. 225).
Ao tratar do tema, ACSELRAD (2010) trata da “tragédia dos comuns”, uma
situação onde indivíduos agindo de forma independente e racionalmente de
acordo com seus próprios interesses se comportam em contrariedade aos
melhores interesses de uma comunidade, esgotando algum recurso comum.
Poder-se-ia dizer, assim, que a injustiça ambiental é fruto de consensos
artificiais entre grupos afetados e aqueles que se beneficiam da degradação
ambiental, com o sistemático encobrimento das causas políticas da
degradação ambiental.
Graduando do Curso de Direito da Faculdade Meridional - Imed. Membro do Grupo de Pesquisa
Ética, Cidadania e Sustentabilidade. E-mail: diogo.dalmagro@yahoo.com.br. Artigo escrito sob
orientação do Professor doutor Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino.
Para Bittar, “A pós-modernidade chega para se instalar definitivamente,
mas a modernidade ainda não deixou de estar presente entre nós, e isto fato.
Suas verdades, seus preceitos, seus princípios, suas instituições, seus
valores (impregnados do ideário burguês, capitalista e liberal) ainda
permeiam grande parte das práticas institucionais e sociais, de modo que a
simples superação imediata da modernidade é ilusão. Obviamente, nenhum
processo histórico instaura uma nova ordem, uma nova fonte de inspiração
de valores sociais, do dia para a noite, e o viver transitivo é exatamente um
viver intemporal, ou seja, entre dois tempos, entre dois universos de
valores, enfim, entre passado erodido e presente multifário.” BITTAR,
Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. 2. ed. rev., atual. e
ampliada. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 108.
“[...] base lógica da dinâmica da Pesquisa Científica que consiste em
estabelecer uma formulação geral e, em seguida, buscar as partes do
fenômeno de modo a sustentar a formulação geral”. PASOLD, Cesar Luiz.
323
Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 12. ed. São Paulo:
Conceito Editorial, 2011, p. 205.
“[...] Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e
coletâneas legais.” PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa
jurídica: teoria e prática. p. 207.
“[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou expressão de
uma ideia”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica:
teoria e prática. p. 25, grifos originais da obra em estudo.
Para Bittar, “Toda concepção teórica de Kelsen a respeito do direito gira em
torno da idéia de validade, na medida em que validade é a chave para a
concepção de um direito que se resume a ser norma jurídica, e que se
fundamenta (com fundamento de validade), também numa outra norma, a
chamada Grundnorm.
Hans Kelsen deverá significar apenas a máxima idealização sistêmica do
direito, organizado a partir de parâmetros contidos na idéia de validade,
pois, enfim, norma válida será aquela definida como expedida pela
autoridade competente, dentro da forma procedimental prevista e publicada
de acordo com os parâmetros legais superiores a ela.” BITTAR, Eduardo
Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. p. 184/185.Destaques
originais da obra estudada.
Para Warat, “O direito, a cultura e a democracia precisam ser vividas
permanentemente como territórios de conquista e não como resultados. Os
resultados são as formas legíveis desse trinômio. São as formas pelas quais
ficam enclausurados pelas máscaras de um poder que vê subversão nas
emergências do diverso e do novo.” WARAT, Luis Alberto. A Ciência
Jurídica e seus dois maridos. 2. ed. Santa Cruz do Sul, (RS): EDUNISC,
2000. p. 134.
“Não se reconhece nenhum direito fundamental, tampouco a Dignidade da
Pessoa Humana, como categorias absolutas, imutáveis. Essas retratam as
lutas e conquistas humanas no decorrer do tempo na busca de maior
emancipação civilizatória ao se garantir critérios mínimos de preservação
da vida, no sentido mais amplo da expressão. Por esse motivo, e segundo
Sarlet, a Dignidade da Pessoa Humana é unidade axiológica aberta.”
BASTIANI, Ana Cristina Bacega de; PELLENZ, Mayara; AQUINO,
Sérgio Ricardo Fernandes de. Guttacavat lapidem: reflexões axiológicas e
práticas sobre direitos humanos e dignidade da pessoa humana. Erechim:
324
Deviant, 2016. p. 66.
“A expressão “dignidade da pessoa humana”, [...], deixa de representar
mero conceito aberto na Constituição e ganha um sentido como tilosas
políticas sociais, limite mesmo que permita diferir o justo do injusto, o
aceitável do inaceitável, o legítimo do ilegítimo. [...] Ademais, a expressão
serve como: diretriz básica das políticas públicas; orientação teleológica
para ações sociais e intervenções públicas na economia; núcleo de sentido
hermenêutico para a interpretação dos demais dispositivos constitucionais;
sede básica dos direitos humanos; guia para a legislação infraconstitucional,
determinando o sentido da cultura jurídica legislada; fundamento para a
criação de instrumentos de proteção da pessoa humana; palavra-chave para
a criação da ordem conceptual e deontológica dos direitos constitucionais;
princípio primeiro de todos os demais princípios da Constituição.”
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. p.
304.Destaques originais da obra estudada.
Para Herrera Flores, “Nada é mais universal que garantir a todos a
possibilidade de lutar, plural e diferenciadamente, pela dignidade humana.
A maior violação aos direitos humanos consiste em impedir que algum
indivíduo, grupo ou cultura possa lutar por seus objetivos éticos e políticos
mais gerais; entre os quais, se destaca o acesso igualitário aos bens
necessários ou exigíveis para se viver dignamente.” HERRERA FLORES,
Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação
Boiteux, ٢٠٠٩. p. ١١٩/١٢٠.
“Uma concepção de dignidade cultural da pessoa humana (versão pósmoderna da idéia de dignidade) está em fermentação em pleno bojo dos
conflitos mais cruentos para a afirmação da lógica da dignidade universal
da pessoa humana (versão moderna de idéia de dignidade). Se a noção de
dignidade sobrevive, altualmente, apesar das dificuldades, fica claro que ela
transfere sua significação para a defesa da diversidade humana.” BITTAR,
Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. 305.
“Em meu ensaio “Teoria Tradicional e Teoria Crítica” apontei a diferença
entre dois métodos gnosiológicos. Um foi fundamentado no Discours de
laMéthode [Discurso sobre o Método], cujo jubileu de publicação se
comemorou neste ano, e o outro, na crítica da economia política. A teoria
em sentido tradicional, cartesiano, como a que se encontra em vigor em
todas as ciências especializadas, organiza a experiência à base da
325
formulação de questões que surgem em conexão com a reprodução da vida
dentro da sociedade atual. Os sistemas das disciplinas contêm os
conhecimentos de tal forma que, sob circunstâncias dadas, são aplicáveis ao
maior número possível de ocasiões. A gênese social dos problemas, as
situações reais nas quais a ciência é empregada e os fins perseguidos em sua
aplicação, são por ela mesma consideradas exteriores. – A teoria crítica da
sociedade, ao contrário, tem como objeto os homens como produtores de
todas as suas formas históricas de vida. As situações efetivas, nas quais a
ciência se baseia, não são para ela uma coisa dada, cujo único problema
estaria na mera constatação e previsão segundo as leis da probabilidade. O
que é dado não depende apenas da natureza, mas também do poder do
homem sobre ele. Os objetos e a espécie de percepção, a formulação de
questões e o sentido da resposta dão provas da atividade humana e do grau
de seu poder.” HORKHEIMER, Max. Teoria Tradicional e Teoria
Crítica. In: Horkheimer/Adorno. 5 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p.
69.
“A crítica tem, por vocação, incluir-se no mundo, construindo uma zona
intermediária entre as instituições e a fantasia. Ela é sempre uma construção
utópica da realidade. Nunca é uma explicação sistêmica.” WARAT, Luis
Alberto. A Ciência Jurídica e seus dois maridos. p. 165.
“[...] a “crítica” pode compreender “aquele conhecimento que não é dogmático, nem permanente,
(mas) que existe num contínuo processo de fazer-se a si próprio. E, seguindo a posição de que não
existe conhecimento sem práxis, o conhecimento ‘crítico’ seria aquele relacionado com um certo tipo
de ação que resulta na transformação da realidade. Somente uma teoria ‘crítica’ pode resultar na
libertação do ser humano, pois não existe transformação da realidade sem a libertação do ser
humano”.
[...]
“A “crítica”, enquanto processo histórico identificado ao utópico, ao radical e ao desmistificador,
assume a “função de abrir alternativas de ação e margens de possibilidades que se projetam sobre as
continuidades históricas.” Uma posição “crítica” há que ser vista, portanto, não só como uma
avaliação crítica “de nossa condição presente, mas crítica em trabalhar em direção a uma nova
existência”. WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 4. ed.São
Paulo: Saraiva, 2002. p. 4/5.
“Essa racionalidade científica, que se faz passar pela única forma de
racionalidade, recalca aspectos importantes da razão: a sensualidade, a
sensibilidade, a sensação. O termo alemão Sinnlichkeit(sensibilidade)
326
conserva os três sentidos. Marcuse chama a atenção par o fato de a palavra
ter deslizado do campo sensorial, corporal, para o terreno da estética e da
filosofia da arte. Sensação, sensualidade e sensibilidade foram tornadas
antagônicas pela civilização repressiva, foram preteridas pela hipertrofia da
racionalidade analítica, pragmática e calculadora, vale dizer, matemtizante.
Malgrado os desenvolvimentos técnicos e científicos, há uma regressão da
sociedade, o que se atesta pelas periódicas recaídas na barbárie, no auge da
civilização – os fascismos, os nazismos, o totalitarismo.” MATOS, Olgária
Chain Feres. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. 2.
ed. São Paulo: Moderna, 2005. p. 56.
Nas palavras de Aquino, “O saber sensível, impregnado pelo prazer dos
sentidos, cumpre sua função de efetivar a união social porque engendra uma
sabedoria comedida, um saber dionisíaco. Para Maffesoli, a sinergia dos
sentidos e a sua harmonia contida na vida de todos os dias concretizam o
sensível como princípio de civilização porque nele reside uma fonte de
riqueza espiritual, que fortalece o corpo e também a plenitude do coração.
“AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Raízes do direito na pósmodernidade. Itajaí, (SC): UNIVALI, 2016, p. 38. Destaques originais da
obra estudada.
Nas palavras de Warat, “Essa compaixão não envolve nenhum sentimento
de pena ou piedade. Falo de uma compaixão entendida como simpatia,
como alteridade. Refiro-me à possibilidade de entrar no sentimento do
outro, entendendo assim a diferença dos seus pontos de vista. A compaixão
que estou falando permite a produção com o outro da diferença. A produção
da diferença com o outro, que é uma forma de inscrever com o outro o novo
na temporalidade, permite dar os primeiros passo na produção do amor, ou
seja, na produção de um relacionamento sadio.” WARAT, Luis Alberto. A
Ciência Jurídica e seus dois maridos. p. 114.
“[...] a educação e a metodologia em (e para) os direitos humanos deve
preparar para o convívio com a diversidade, na base do diálogo e do
respeito, voltado para a alteridade, como forma pragmática de solidariedade
social, na base da tolerância.” BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito
na pós-modernidade. p. 430.
Acadêmico do 6º semestre do curso de Direito (IMED), bolsista de iniciação científica
PROBIC/FAPERGS e membro do grupo de pesquisa “Transnacionalismo e Circulação de Modelos
Jurídicos” coordenado pelo Prof. Dr. Márcio Ricardo Staffen.
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Mestranda em Direito pelo PPGD da Faculdade Meridional - IMED.
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino
Superior – PROSUP/CAPES. Professora substituta dos cursos de Direito e
Administração do Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto
Vale
do
Itajaí
–
UNIDAVI.
Endereço
eletrônico:
regianenistler@outlook.com.
Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário para o
Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí- UNIDAVI. Assistente de Pesquisa
do Grupo Direito, Constituição e Sociedade de Risco (GPDC-UNIDAVI).
Endereço eletrônico: rubiabertoli@gmail.com.
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Sobre
Editora Deviant LTDA
Erechim-RS
Brasil
2016
ISBN
978-85-69114-61-1
Conselho Editorial
Dra. Janaína Rigo Santin
Dr. Edison Alencar Casagranda
Dr. Sérgio Fernandes Aquino
Dra. Cecília Maria Pinto Pires
Dra. Ironita Policarpo Machado
Dra. Gizele Zanotto
Dr. Victor Machado Reis
Dr. Wilson Engelmann
Dr. Antonio Manuel de Almeida Pereira
Dr. Eduardo Borba Neves
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