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Utopia da Autossustentabilidade: impasses, desafios e conquistas da Ancine

2021

O cinema e o audiovisual brasileiros se desenvolveram muito nos últimos anos, e um dos principais fatores que impulsionaram essa trajetória reside na atuação da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Em setembro de 2021, a Ancine completará 20 anos como o principal órgão responsável pelas políticas públicas para o audiovisual brasileiro. Nesta publicação, Marcelo Ikeda, com sua experiência como pesquisador e ex-servidor da agência, passa em revista toda a trajetória da Ancine, desde os antecedentes de sua criação até os impasses do governo Bolsonaro. Além de apresentar as características da agência em termos das políticas desenvolvidas e de seus impactos no mercado audiovisual brasileiro, o livro analisa os embates e os conflitos de poder que marcaram sua história. Em jogo, está a autonomia da Ancine como agência reguladora para implementar suas políticas, resistindo às tendências de captura seja pelo mercado seja pelo governo.

UTOPIA DA AUTOSSUSTENTABILIDADE impasses, desafios e conquistas da Ancine Conselho Editorial Alex Primo – UFRGS Álvaro Nunes Larangeira – UFES André Lemos – UFBA André Parente – UFRJ Carla Rodrigues – PUC-Rio Cíntia Sanmartin Fernandes − UERJ Ciro Marcondes Filho – USP Cristiane Freitas Gutfreind – PUCRS Erick Felinto – UERJ Francisco Rüdiger – PUCRS Giovana Scareli – UFSJ Jaqueline Moll − UFRGS João Freire Filho – UFRJ Juremir Machado da Silva – PUCRS Marcelo Rubin de Lima – UFRGS Maria Immacolata Vassallo de Lopes – USP Maura Penna – UFPB Micael Herschmann − UFRJ Michel Maffesoli – Paris V Muniz Sodré – UFRJ Philippe Joron – Montpellier III Pierre le Quéau – Grenoble Renato Janine Ribeiro – USP Rose de Melo Rocha – ESPM Simone Mainieri Paulon – UFRGS Vicente Molina Neto – UFRGS UTOPIA DA AUTOSSUSTENTABILIDADE impasses, desafios e conquistas da Ancine Marcelo Ikeda Copyright © Marcelo Ikeda, 2021 Capa: Like Conteúdo Projeto gráfico e editoração: Vânia Möller Revisão: Simone Ceré Editor: Luis Antonio Paim Gomes Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Bibliotecária Responsável: Denise Mari de Andrade Souza – CRB 10/960 I26u Ikeda, Marcelo Utopia da autossustentabilidade: impasses, desafios e conquistas da Ancine / Marcelo Ikeda. – Porto Alegre: Sulina, 2021. 246 p.; 16x23 cm. ISBN: 978-65-5759-041-6 1. História do Cinema. 2. Cinema Brasileiro - Gestão. 3. Audiovisual - Cinema. 4. Ancine – Brasil. 5. Cinema. I. Título. CDU: 791.43 CDD: 791.409 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA MERIDIONAL LTDA. Rua Leopoldo Bier, 644, 4° andar – Santana CEP: 90620-100 – Porto Alegre, RS – Brasil Tel: (51) 3110 9801 www.editorasulina.com.br e-mail: sulina@editorasulina.com.br [Agosto/2021] IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL Para Leopoldo Nunes, que, entre conquistas e perdas, buscou incorporar, na gestão pública, o espírito de luta por um audiovisual brasileiro genuinamente livre. Sumário Apresentação | 9 Introdução | 11 1 Antecedentes de criação da Ancine | 17 2 A implementação da Ancine: desafios e impasses da gestão Dahl | 25 3 O primeiro governo Lula: o projeto Ancinav e as ameaças à Ancine | 52 4 A gestão Rangel: a Lei 11.437/06 e a criação do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) | 68 5 A Lei 12.485/11 e a regulação da TV por assinatura | 87 6 A Lei 12.599/12 e a expansão do parque exibidor | 107 7 A terceira gestão de Rangel: a nova fase do FSA com a Condecine Teles | 115 8 Um balanço da gestão Rangel | 139 9 O governo Temer e o foco industrialista da gestão Leitão-Castro | 158 10 O governo Bolsonaro e a gestão Alex Braga | 191 Considerações finais | 236 Referências | 244 Apresentação Este livro resume uma boa parte de minha trajetória pessoal, uma vez que trabalhei na Agência Nacional do Cinema (Ancine) entre 2002 e 2010. Comecei como assessor da diretora Lia Gomensoro, passando pela coordenação das Superintendências de Desenvolvimento Financeiro (SDF) e de Acompanhamento de Mercado (SAM). Mesmo sendo servidor concursado, optei por deixar a Ancine para me tornar professor do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC) em 2010. Fora da agência, eu possuía mais liberdade para promover uma análise das políticas públicas para o audiovisual, agora de um ponto de vista mais acadêmico. Assim, eu me tornava um pesquisador independente, cujas reflexões não espelhavam nem uma captura pelo governo (um olhar ideológico político-partidário em busca dos cargos de poder) nem pelo mercado (o ponto de vista dos produtores). Minha dissertação de mestrado em Comunicação na Universidade Federal Fluminense (UFF) foi uma análise das políticas públicas para o audiovisual a partir das leis de incentivo, o que gerou o livro Cinema brasileiro a partir da retomada: aspectos econômicos e políticos, publicado em 2015. No entanto, o livro avançava basicamente até o fim do governo Lula em 2011. O epílogo do livro apresentava justamente os novos desafios com a recente aprovação da Lei 12.485/11. Assim, sinto que esta publicação não apenas amplia e atualiza o livro anterior mas também o coloca sob uma nova perspectiva. A proposta aqui é analisar a consolidação das políticas públicas para o audiovisual a partir dos anos 2000 tendo como ponto de vista a criação e o desenvolvi- |9 mento específico da Ancine. O livro contém um bom material de descrição de mecanismos como o emaranhado de linhas e parâmetros do FSA e as imbricadas cotas de canal e de pacote da Lei 12.485/11, mas acredito que sua principal contribuição reside no exame dos conflitos de poder em torno de cada gestão da Ancine. Acredito que minha posição como pesquisador independente permite uma avaliação dos pesos e contrapesos de cada medida, sem “defender” ou “atacar” determinada gestão segundo padrões ideológicos estabelecidos a priori. Além disso, minha experiência empírica, por ter trabalhado na Ancine durante oito anos, permite vislumbrar com mais riqueza de detalhes algumas nuances dos bastidores da formulação e implementação das políticas públicas no período, jogando luz para alguns de seus impasses. Desse modo, esta publicação parte da inerente imbricação entre as questões técnicas, jurídicas e políticas na conformação das políticas públicas para o setor da cultura, em que o gestor precisa negociar soluções com um setor produtivo naturalmente aguerrido e heterogêneo, e também considera as forças de embate político do interior do governo. Entre o mercado e o governo, o desafio da Ancine é se equilibrar adequadamente nessa corda bamba, nesse jogo de estica e puxa, para que as políticas públicas para o audiovisual sejam conformadas com critérios de coerência e estabilidade. Gostaria de agradecer a colaboração de Ana Paula Sousa na leitura de uma versão preliminar deste texto. Agradeço também a Thiago Carvalho, pelo instigante intercâmbio voluntário de ideias, sobre assuntos públicos de amplo conhecimento, a partir de uma primeira versão do presente texto. Como de praxe, cabe esclarecer que as argumentações e conclusões são todas evidentemente de minha inteira responsabilidade. Expresso também minha gratidão aos amigos Fábio Rogério, Verônica Cavalcanti, Doug de Paula, Josy Macedo, Daia Flórios e Sara Síntique por dividirem as angústias do processo de escrita e opinarem sobre o título desta obra. 10 | Introdução Criada em 6 de setembro de 2001, por meio da Medida Provisória nº 2.228-1/01, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) completará 20 anos de existência em setembro de 2021. Para uma instituição pública, especialmente vinculada ao campo cultural, completar duas décadas de funcionamento contínuo é um feito raro, a ser celebrado. Se a Ancine sobreviver às turbulências do governo Bolsonaro, conseguirá ultrapassar a duração da Embrafilme (1969-1990), que não chegou a completar seu vigésimo primeiro aniversário. Ambas as instituições têm em comum o projeto de desenvolver o cinema brasileiro, mas também muitas diferenças. Enquanto a Embrafilme era uma empresa pública que atuava diretamente nas atividades de produção e distribuição de filmes, a Ancine é uma agência reguladora, que visa criar condições sistêmicas para o desenvolvimento do mercado brasileiro, atuando não apenas no fomento, mas também na regulação e fiscalização do mercado audiovisual. Trata-se de um enorme desafio para as instituições públicas sobreviver às transformações impostas pelas mudanças de governo. No Brasil, existe uma triste tradição, utilizando a expressão do professor Albino Rubim (2007), de imensas descontinuidades na política cultural, quando um dirigente, para carimbar sua “marca registrada”, decide se contrapor à gestão anterior e implementar um novo projeto pessoal. Além disso, as | 11 políticas públicas ainda são muito marcadas pela discricionariedade do dirigente, e não por uma gestão profissional, calcada num diagnóstico setorial que avalie riscos e oportunidades, que estimule uma ação guiada por indicadores técnicos e metodologias estáveis. Assim, o maior desafio da Ancine foi sobreviver a cinco diferentes presidentes da República (FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro), de matizes políticos bastante distintos, ainda que enfrentando turbulências que ameaçaram sua continuidade. O desafio era estabelecer uma nova institucionalização para o setor audiovisual, baseando-se em políticas de Estado, e não propriamente de governo. Isto é, que a agência adquirisse maturidade institucional e reconhecimento social a fim de estabelecer suas próprias políticas segundo critérios e parâmetros específicos de sua área de atuação, independentemente dos desígnios presidenciais. O objetivo desta publicação é, portanto, promover uma reflexão sobre o papel da Ancine no desenvolvimento do mercado audiovisual brasileiro em seus primeiros vinte anos de atuação. Este livro foi escrito com vistas a uma proposta mais aberta de diálogo com o leitor, evitando-se adentrar em especificidades extremamente técnicas, ou ainda uma linguagem tipicamente acadêmica. O desafio deste texto foi buscar uma linguagem dinâmica, mas sem perder o rigor e a profundidade da análise. Em especial, um dos principais interesses deste livro é o de investigar as dinâmicas de poder que estão por trás das decisões sobre o perfil da política pública no período. Assim, antes de uma descrição técnica de seus mecanismos de atuação ou uma cronologia de fatos marcantes, a publicação busca refletir sobre os contornos da política pública no período por meio dos bastidores das disputas em torno de um projeto de poder. Por isso, o livro acabará utilizando uma divisão tradicional, segundo as gestões de cada diretor-presidente do órgão: Gustavo Dahl, Manoel Rangel, Christian de Castro e Alex Braga. Em determinados momentos, buscaremos mostrar como disputas entre os membros do Colegiado, ou ainda, 12 | entre outros campos institucionalizados das políticas audiovisuais (como a Secretaria do Audiovisual, o Conselho Superior do Cinema, ou o Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual) afetaram o desenho dessas políticas. Por isso, um ponto de destaque nesta publicação será a relação do Colegiado da Ancine com o Ministério da Cultura (ou seu órgão vinculado correspondente) ou mesmo com os valores de cada governo. As análises dessas dinâmicas de poder são importantes não como meras fofocas de bastidores sobre estratégias de dominação, mas principalmente para que possamos compreender se a Ancine conseguiu de fato desenvolver autonomia – um princípio fundamental em se tratando de uma agência reguladora. Veremos, portanto, que a trajetória da Ancine oscilou entre momentos de captura pelo mercado (em que certos segmentos da classe audiovisual estiveram marcadamente presentes para implementar um modelo de política audiovisual que os favorecesse) e outros de captura pelo governo (de diferentes modos). Entre o governo e o mercado, o grande desafio da Ancine foi estabelecer suas políticas com autonomia, buscando um equilíbrio que vise ao interesse público, isto é, não propriamente o do setor produtivo ou do governo vigente, mas o da sociedade como um todo. A Ancine foi construída num momento em que o cinema brasileiro vivia uma crise institucional, em que as leis de incentivo fiscal mostravam-se insuficientes para conduzir o cinema brasileiro a um patamar menos instável. Sob as bases do governo FHC, sua tendência era industrialista, de ocupação do mercado interno, que, com o fim da Embrafilme, foi rapidamente ocupado pelo produto estrangeiro. Assim, ao ser criada, a grande expressão que resumia os desafios institucionais da agência era a busca pela autossustentabilidade. Segundo os preceitos da MP 2.228-1/01, marco legal de criação da Ancine, a expressão autossustentabilidade era vista por um viés essencialmente econômico. Ou seja, refletia uma política desenvolvimentista de cunho industrial, em que a política pública era um instrumento provisório | 13 de apoio à competitividade do cinema brasileiro, para que ele buscasse, a médio prazo, sobreviver com suas próprias pernas, sem depender diretamente do Estado, isto é, que o financiamento das obras audiovisuais pudesse ocorrer a partir de recursos próprios das empresas da cadeia produtiva do audiovisual ou com patrocínios privados. No entanto, dada a configuração do mercado audiovisual em nível mundial, controlado por um grupo de cinco grandes conglomerados empresariais que dominam os mercados da imensa maioria dos países, herança de uma estrutura oligopolística consolidada historicamente desde os anos 1920, a autossustentabilidade é um objetivo deveras ambicioso. Como comparação, o Instituto de la Cinematografía y de las Artes Audiovisuales (ICAA), responsável pelas políticas públicas para o audiovisual espanhol, ou seja, órgão equivalente à Ancine na Espanha, estabelece como objetivo “atingir uma proporção aceitável do mercado interno”.1 Com o termo proporción aceptable, parece-me que o ICAA tem objetivos mais modestos do que os da Ancine, assumindo a consciência de que o setor audiovisual habita num mercado historicamente dominado pelo produto estrangeiro. Como veremos em detalhes a seguir, se o desenho do “tripé institucional” proposto pela MP 2.228-1/01 era de fato ambicioso, envolvendo, inclusive, a formação de um grupo interministerial para formular as políticas para o audiovisual brasileiro, a Ancine, seu órgão mais robusto, nasceu com instrumentos limitados para poder cumprir sua tão ambiciosa missão. Se o cinema brasileiro patinava num patamar de cerca de 10% de participação de mercado no início dos anos 2000, a autossustentabilidade era na verdade um sonho distante, quase um ideal. Desse modo, de forma provocativa, intitulo este livro como Utopia da autossustentabilidade para sugerir diversos dos impasses e desafios que assolaram a Ancine nesses vinte anos de trajetória. Organização, competências e organograma do ICAA. Disponível em: http://www.culturaydeporte.gob.es/ cultura/areas/cine/el-icaa/organizacion.html. 1 14 | Ainda que estivesse bem distante de atingir o ideal da autossustentabilidade, não se deve considerar que a Ancine foi um fracasso. O audiovisual brasileiro indiscutivelmente cresceu e se diversificou nos últimos vinte anos. Houve inúmeras conquistas nas políticas públicas para o audiovisual brasileiro. O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) diversificou o financiamento ao setor audiovisual, abrangendo não apenas a produção, mas todos os elos da cadeia produtiva. Com a Lei 12.485/11, foi criada uma demanda inédita de produção independente nos canais da televisão por assinatura no País, até então completamente dominados pela produção estrangeira ou pela produção dos próprios canais. Os Arranjos Regionais estimularam a desconcentração dos recursos no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, nacionalizando a produção audiovisual brasileira. A Lei 12.599/12 estimulou a expansão do parque exibidor e sua modernização, acelerando o processo de digitalização das salas de cinema no País. O cinema brasileiro produziu diversos filmes campeões de bilheteria e foi reconhecido por sua qualidade artística, com participações e premiações em festivais internacionais de prestígio, como os de Cannes e Berlim e até no Oscar. Talvez a autossustentabilidade possa ser pensada para além da esfera estritamente econômica, mas por um ponto de vista ecológico. Nesse sentido mais amplo do termo, é possível considerá-lo como parte do fortalecimento de um ecossistema, ou seja, incorporando também os impactos ambientais, culturais e sociais das políticas empreendidas. Há um conjunto de transformações sociais que foram produzidas em decorrência desses investimentos que não devem ser quantificadas exclusivamente pela geração de emprego e renda. Além disso, mesmo em termos econômicos, há uma série de benefícios indiretos, ou ainda, de externalidades positivas, em setores produtivos muitos diversos, muito além da indústria do audiovisual. Nesse sentido, o audiovisual pode permanecer como utopia, mas num outro sentido. Esse conceito ecológico pode sugerir que o audiovisual pode ser um instrumento de cidadania, por apresentar outros modos de | 15 ser, por refletir as contradições de nossa sociedade, por expressar nossos valores, por inventar outros mundos possíveis, por aliar ação e imaginação na proposição de um País mais justo, de maiores oportunidades, em que possamos viver em comunidade, convivendo com nossas próprias diferenças. A criação da Ancine e a continuidade de sua trajetória foram atravessadas por esse conjunto de desejos. O audiovisual é, de fato, um setor que articula, de forma intrínseca, a economia e a cultura. Trata-se de um dos setores que mais consolidam o seu potencial econômico, especialmente em decorrência das transformações a partir da internet e os processos de convergência, mas também possui um inestimável valor intangível por expressar nossos modos de ser, influenciando as relações de poder e de legitimação em nossa sociedade. Nesses vinte anos, a Ancine, assim como o próprio governo brasileiro, oscilou entre esses distintos “projetos de utopia”. De todo modo, a autossustentabilidade permanece como sintoma de um projeto possível de utopia, mas também fruto de disputas entre visões de mundo e projetos de poder. 16 |