UTOPIA
DA AUTOSSUSTENTABILIDADE
impasses, desafios e conquistas da Ancine
Conselho Editorial
Alex Primo – UFRGS
Álvaro Nunes Larangeira – UFES
André Lemos – UFBA
André Parente – UFRJ
Carla Rodrigues – PUC-Rio
Cíntia Sanmartin Fernandes − UERJ
Ciro Marcondes Filho – USP
Cristiane Freitas Gutfreind – PUCRS
Erick Felinto – UERJ
Francisco Rüdiger – PUCRS
Giovana Scareli – UFSJ
Jaqueline Moll − UFRGS
João Freire Filho – UFRJ
Juremir Machado da Silva – PUCRS
Marcelo Rubin de Lima – UFRGS
Maria Immacolata Vassallo de Lopes – USP
Maura Penna – UFPB
Micael Herschmann − UFRJ
Michel Maffesoli – Paris V
Muniz Sodré – UFRJ
Philippe Joron – Montpellier III
Pierre le Quéau – Grenoble
Renato Janine Ribeiro – USP
Rose de Melo Rocha – ESPM
Simone Mainieri Paulon – UFRGS
Vicente Molina Neto – UFRGS
UTOPIA
DA AUTOSSUSTENTABILIDADE
impasses, desafios e conquistas da Ancine
Marcelo Ikeda
Copyright © Marcelo Ikeda, 2021
Capa: Like Conteúdo
Projeto gráfico e editoração: Vânia Möller
Revisão: Simone Ceré
Editor: Luis Antonio Paim Gomes
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP
Bibliotecária Responsável: Denise Mari de Andrade Souza – CRB 10/960
I26u
Ikeda, Marcelo
Utopia da autossustentabilidade: impasses, desafios e conquistas
da Ancine / Marcelo Ikeda. – Porto Alegre: Sulina, 2021.
246 p.; 16x23 cm.
ISBN: 978-65-5759-041-6
1. História do Cinema. 2. Cinema Brasileiro - Gestão. 3. Audiovisual
- Cinema. 4. Ancine – Brasil. 5. Cinema. I. Título.
CDU: 791.43
CDD: 791.409
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA MERIDIONAL LTDA.
Rua Leopoldo Bier, 644, 4° andar – Santana
CEP: 90620-100 – Porto Alegre, RS – Brasil
Tel: (51) 3110 9801
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e-mail: sulina@editorasulina.com.br
[Agosto/2021]
IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL
Para Leopoldo Nunes,
que, entre conquistas e perdas,
buscou incorporar, na gestão pública,
o espírito de luta por um audiovisual
brasileiro genuinamente livre.
Sumário
Apresentação | 9
Introdução | 11
1 Antecedentes de criação da Ancine | 17
2 A implementação da Ancine: desafios e impasses da gestão Dahl | 25
3 O primeiro governo Lula: o projeto Ancinav e as ameaças à Ancine | 52
4 A gestão Rangel: a Lei 11.437/06 e a criação do Fundo Setorial do
Audiovisual (FSA) | 68
5 A Lei 12.485/11 e a regulação da TV por assinatura | 87
6 A Lei 12.599/12 e a expansão do parque exibidor | 107
7 A terceira gestão de Rangel: a nova fase do FSA
com a Condecine Teles | 115
8 Um balanço da gestão Rangel | 139
9 O governo Temer e o foco industrialista da gestão Leitão-Castro | 158
10 O governo Bolsonaro e a gestão Alex Braga | 191
Considerações finais | 236
Referências | 244
Apresentação
Este livro resume uma boa parte de minha trajetória pessoal, uma
vez que trabalhei na Agência Nacional do Cinema (Ancine) entre 2002
e 2010. Comecei como assessor da diretora Lia Gomensoro, passando
pela coordenação das Superintendências de Desenvolvimento Financeiro
(SDF) e de Acompanhamento de Mercado (SAM). Mesmo sendo servidor
concursado, optei por deixar a Ancine para me tornar professor do curso de
Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC) em 2010.
Fora da agência, eu possuía mais liberdade para promover uma análise das
políticas públicas para o audiovisual, agora de um ponto de vista mais acadêmico. Assim, eu me tornava um pesquisador independente, cujas reflexões não espelhavam nem uma captura pelo governo (um olhar ideológico
político-partidário em busca dos cargos de poder) nem pelo mercado (o
ponto de vista dos produtores). Minha dissertação de mestrado em Comunicação na Universidade Federal Fluminense (UFF) foi uma análise das
políticas públicas para o audiovisual a partir das leis de incentivo, o que
gerou o livro Cinema brasileiro a partir da retomada: aspectos econômicos e
políticos, publicado em 2015. No entanto, o livro avançava basicamente até
o fim do governo Lula em 2011. O epílogo do livro apresentava justamente os novos desafios com a recente aprovação da Lei 12.485/11.
Assim, sinto que esta publicação não apenas amplia e atualiza o
livro anterior mas também o coloca sob uma nova perspectiva. A proposta
aqui é analisar a consolidação das políticas públicas para o audiovisual a
partir dos anos 2000 tendo como ponto de vista a criação e o desenvolvi-
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mento específico da Ancine. O livro contém um bom material de descrição
de mecanismos como o emaranhado de linhas e parâmetros do FSA e as
imbricadas cotas de canal e de pacote da Lei 12.485/11, mas acredito que
sua principal contribuição reside no exame dos conflitos de poder em torno de cada gestão da Ancine. Acredito que minha posição como pesquisador independente permite uma avaliação dos pesos e contrapesos de cada
medida, sem “defender” ou “atacar” determinada gestão segundo padrões
ideológicos estabelecidos a priori. Além disso, minha experiência empírica,
por ter trabalhado na Ancine durante oito anos, permite vislumbrar com
mais riqueza de detalhes algumas nuances dos bastidores da formulação e
implementação das políticas públicas no período, jogando luz para alguns
de seus impasses. Desse modo, esta publicação parte da inerente imbricação entre as questões técnicas, jurídicas e políticas na conformação das
políticas públicas para o setor da cultura, em que o gestor precisa negociar
soluções com um setor produtivo naturalmente aguerrido e heterogêneo,
e também considera as forças de embate político do interior do governo.
Entre o mercado e o governo, o desafio da Ancine é se equilibrar adequadamente nessa corda bamba, nesse jogo de estica e puxa, para que as políticas
públicas para o audiovisual sejam conformadas com critérios de coerência
e estabilidade.
Gostaria de agradecer a colaboração de Ana Paula Sousa na leitura
de uma versão preliminar deste texto. Agradeço também a Thiago Carvalho, pelo instigante intercâmbio voluntário de ideias, sobre assuntos públicos de amplo conhecimento, a partir de uma primeira versão do presente
texto. Como de praxe, cabe esclarecer que as argumentações e conclusões
são todas evidentemente de minha inteira responsabilidade. Expresso também minha gratidão aos amigos Fábio Rogério, Verônica Cavalcanti, Doug
de Paula, Josy Macedo, Daia Flórios e Sara Síntique por dividirem as angústias do processo de escrita e opinarem sobre o título desta obra.
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Introdução
Criada em 6 de setembro de 2001, por meio da Medida Provisória
nº 2.228-1/01, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) completará 20
anos de existência em setembro de 2021. Para uma instituição pública,
especialmente vinculada ao campo cultural, completar duas décadas de
funcionamento contínuo é um feito raro, a ser celebrado. Se a Ancine
sobreviver às turbulências do governo Bolsonaro, conseguirá ultrapassar
a duração da Embrafilme (1969-1990), que não chegou a completar seu
vigésimo primeiro aniversário.
Ambas as instituições têm em comum o projeto de desenvolver o
cinema brasileiro, mas também muitas diferenças. Enquanto a Embrafilme
era uma empresa pública que atuava diretamente nas atividades de produção e distribuição de filmes, a Ancine é uma agência reguladora, que visa
criar condições sistêmicas para o desenvolvimento do mercado brasileiro,
atuando não apenas no fomento, mas também na regulação e fiscalização
do mercado audiovisual.
Trata-se de um enorme desafio para as instituições públicas sobreviver às transformações impostas pelas mudanças de governo. No Brasil,
existe uma triste tradição, utilizando a expressão do professor Albino Rubim (2007), de imensas descontinuidades na política cultural, quando
um dirigente, para carimbar sua “marca registrada”, decide se contrapor
à gestão anterior e implementar um novo projeto pessoal. Além disso, as
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políticas públicas ainda são muito marcadas pela discricionariedade do dirigente, e não por uma gestão profissional, calcada num diagnóstico setorial que avalie riscos e oportunidades, que estimule uma ação guiada por
indicadores técnicos e metodologias estáveis.
Assim, o maior desafio da Ancine foi sobreviver a cinco diferentes
presidentes da República (FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro), de matizes políticos bastante distintos, ainda que enfrentando turbulências que
ameaçaram sua continuidade. O desafio era estabelecer uma nova institucionalização para o setor audiovisual, baseando-se em políticas de Estado, e
não propriamente de governo. Isto é, que a agência adquirisse maturidade
institucional e reconhecimento social a fim de estabelecer suas próprias
políticas segundo critérios e parâmetros específicos de sua área de atuação,
independentemente dos desígnios presidenciais.
O objetivo desta publicação é, portanto, promover uma reflexão
sobre o papel da Ancine no desenvolvimento do mercado audiovisual brasileiro em seus primeiros vinte anos de atuação. Este livro foi escrito com
vistas a uma proposta mais aberta de diálogo com o leitor, evitando-se
adentrar em especificidades extremamente técnicas, ou ainda uma linguagem tipicamente acadêmica. O desafio deste texto foi buscar uma linguagem dinâmica, mas sem perder o rigor e a profundidade da análise.
Em especial, um dos principais interesses deste livro é o de investigar as dinâmicas de poder que estão por trás das decisões sobre o perfil
da política pública no período. Assim, antes de uma descrição técnica de
seus mecanismos de atuação ou uma cronologia de fatos marcantes, a publicação busca refletir sobre os contornos da política pública no período
por meio dos bastidores das disputas em torno de um projeto de poder.
Por isso, o livro acabará utilizando uma divisão tradicional, segundo as gestões de cada diretor-presidente do órgão: Gustavo Dahl, Manoel Rangel,
Christian de Castro e Alex Braga. Em determinados momentos, buscaremos mostrar como disputas entre os membros do Colegiado, ou ainda,
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entre outros campos institucionalizados das políticas audiovisuais (como a
Secretaria do Audiovisual, o Conselho Superior do Cinema, ou o Comitê
Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual) afetaram o desenho dessas políticas. Por isso, um ponto de destaque nesta publicação será a relação do
Colegiado da Ancine com o Ministério da Cultura (ou seu órgão vinculado
correspondente) ou mesmo com os valores de cada governo.
As análises dessas dinâmicas de poder são importantes não como
meras fofocas de bastidores sobre estratégias de dominação, mas principalmente para que possamos compreender se a Ancine conseguiu de fato
desenvolver autonomia – um princípio fundamental em se tratando de
uma agência reguladora. Veremos, portanto, que a trajetória da Ancine oscilou entre momentos de captura pelo mercado (em que certos segmentos
da classe audiovisual estiveram marcadamente presentes para implementar
um modelo de política audiovisual que os favorecesse) e outros de captura
pelo governo (de diferentes modos).
Entre o governo e o mercado, o grande desafio da Ancine foi estabelecer suas políticas com autonomia, buscando um equilíbrio que vise ao
interesse público, isto é, não propriamente o do setor produtivo ou do governo vigente, mas o da sociedade como um todo. A Ancine foi construída
num momento em que o cinema brasileiro vivia uma crise institucional,
em que as leis de incentivo fiscal mostravam-se insuficientes para conduzir
o cinema brasileiro a um patamar menos instável. Sob as bases do governo
FHC, sua tendência era industrialista, de ocupação do mercado interno,
que, com o fim da Embrafilme, foi rapidamente ocupado pelo produto estrangeiro. Assim, ao ser criada, a grande expressão que resumia os desafios
institucionais da agência era a busca pela autossustentabilidade.
Segundo os preceitos da MP 2.228-1/01, marco legal de criação
da Ancine, a expressão autossustentabilidade era vista por um viés essencialmente econômico. Ou seja, refletia uma política desenvolvimentista de
cunho industrial, em que a política pública era um instrumento provisório
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de apoio à competitividade do cinema brasileiro, para que ele buscasse,
a médio prazo, sobreviver com suas próprias pernas, sem depender diretamente do Estado, isto é, que o financiamento das obras audiovisuais
pudesse ocorrer a partir de recursos próprios das empresas da cadeia produtiva do audiovisual ou com patrocínios privados.
No entanto, dada a configuração do mercado audiovisual em nível
mundial, controlado por um grupo de cinco grandes conglomerados empresariais que dominam os mercados da imensa maioria dos países, herança
de uma estrutura oligopolística consolidada historicamente desde os anos
1920, a autossustentabilidade é um objetivo deveras ambicioso. Como
comparação, o Instituto de la Cinematografía y de las Artes Audiovisuales
(ICAA), responsável pelas políticas públicas para o audiovisual espanhol,
ou seja, órgão equivalente à Ancine na Espanha, estabelece como objetivo “atingir uma proporção aceitável do mercado interno”.1 Com o termo
proporción aceptable, parece-me que o ICAA tem objetivos mais modestos
do que os da Ancine, assumindo a consciência de que o setor audiovisual
habita num mercado historicamente dominado pelo produto estrangeiro.
Como veremos em detalhes a seguir, se o desenho do “tripé institucional” proposto pela MP 2.228-1/01 era de fato ambicioso, envolvendo, inclusive, a formação de um grupo interministerial para formular as
políticas para o audiovisual brasileiro, a Ancine, seu órgão mais robusto,
nasceu com instrumentos limitados para poder cumprir sua tão ambiciosa
missão. Se o cinema brasileiro patinava num patamar de cerca de 10% de
participação de mercado no início dos anos 2000, a autossustentabilidade
era na verdade um sonho distante, quase um ideal. Desse modo, de forma
provocativa, intitulo este livro como Utopia da autossustentabilidade para
sugerir diversos dos impasses e desafios que assolaram a Ancine nesses vinte
anos de trajetória.
Organização, competências e organograma do ICAA. Disponível em: http://www.culturaydeporte.gob.es/
cultura/areas/cine/el-icaa/organizacion.html.
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Ainda que estivesse bem distante de atingir o ideal da autossustentabilidade, não se deve considerar que a Ancine foi um fracasso. O
audiovisual brasileiro indiscutivelmente cresceu e se diversificou nos últimos vinte anos. Houve inúmeras conquistas nas políticas públicas para o
audiovisual brasileiro. O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) diversificou
o financiamento ao setor audiovisual, abrangendo não apenas a produção,
mas todos os elos da cadeia produtiva. Com a Lei 12.485/11, foi criada
uma demanda inédita de produção independente nos canais da televisão
por assinatura no País, até então completamente dominados pela produção
estrangeira ou pela produção dos próprios canais. Os Arranjos Regionais
estimularam a desconcentração dos recursos no eixo Rio de Janeiro-São
Paulo, nacionalizando a produção audiovisual brasileira. A Lei 12.599/12
estimulou a expansão do parque exibidor e sua modernização, acelerando
o processo de digitalização das salas de cinema no País. O cinema brasileiro
produziu diversos filmes campeões de bilheteria e foi reconhecido por sua
qualidade artística, com participações e premiações em festivais internacionais de prestígio, como os de Cannes e Berlim e até no Oscar.
Talvez a autossustentabilidade possa ser pensada para além da esfera estritamente econômica, mas por um ponto de vista ecológico. Nesse
sentido mais amplo do termo, é possível considerá-lo como parte do fortalecimento de um ecossistema, ou seja, incorporando também os impactos
ambientais, culturais e sociais das políticas empreendidas. Há um conjunto
de transformações sociais que foram produzidas em decorrência desses investimentos que não devem ser quantificadas exclusivamente pela geração
de emprego e renda. Além disso, mesmo em termos econômicos, há uma
série de benefícios indiretos, ou ainda, de externalidades positivas, em setores produtivos muitos diversos, muito além da indústria do audiovisual.
Nesse sentido, o audiovisual pode permanecer como utopia, mas
num outro sentido. Esse conceito ecológico pode sugerir que o audiovisual
pode ser um instrumento de cidadania, por apresentar outros modos de
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ser, por refletir as contradições de nossa sociedade, por expressar nossos valores, por inventar outros mundos possíveis, por aliar ação e imaginação na
proposição de um País mais justo, de maiores oportunidades, em que possamos viver em comunidade, convivendo com nossas próprias diferenças.
A criação da Ancine e a continuidade de sua trajetória foram atravessadas por esse conjunto de desejos. O audiovisual é, de fato, um setor
que articula, de forma intrínseca, a economia e a cultura. Trata-se de um
dos setores que mais consolidam o seu potencial econômico, especialmente em decorrência das transformações a partir da internet e os processos
de convergência, mas também possui um inestimável valor intangível por
expressar nossos modos de ser, influenciando as relações de poder e de
legitimação em nossa sociedade. Nesses vinte anos, a Ancine, assim como
o próprio governo brasileiro, oscilou entre esses distintos “projetos de utopia”. De todo modo, a autossustentabilidade permanece como sintoma de
um projeto possível de utopia, mas também fruto de disputas entre visões
de mundo e projetos de poder.
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