PIAGET E A
PREDICAÇÃO
UNIVERSAL
RAFAEL DOS REIS FERREIRA
RICARDO PEREIRA TASSINARI
PIAGET E A
PREDICAÇÃO UNIVERSAL
Conselho Editorial Acadêmico
Responsável pela publicação desta obra
Dr. Reinaldo Sampaio Pereira (Coordenador)
Profa Dra Mariana Cláudia Broens
Dr. Ricardo Pereira Tassinari
Dra Clélia Aparecida Martins
RAFAEL DOS REIS FERREIRA
RICARDO PEREIRA TASSINARI
PIAGET E A
PREDICAÇÃO UNIVERSAL
© 2013 Editora UNESP
Cultura Acadêmica
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F439p
Ferreira, Rafael dos Reis
Piaget e a predicação universal [recurso eletrônico] / Rafael dos
Reis Ferreira, Ricardo Pereira Tassinari. – 1. ed. – São Paulo : Cultura
Acadêmica, 2013.
recurso digital
Formato: ePDF
Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-85-7983-435-6
(recurso eletrônico)
1. Piaget, Jean, 1896-1980. 2. Epistemologia. 3. Psicologia genética.
4. Genética. 5. Psicologia e filosofia. 6. Livros eletrônicos.
I. Tassinari, Ricardo Pereira. II. Título.
13-06416
CDD: 158.1
CDU: 159.947
Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de
Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
[…] se todo conhecimento é sempre vir a ser e
consiste em passar de um conhecimento menor
para um estado mais completo e mais eficaz, é
claro que se trata de conhecer esse vir a ser e de
analisá-lo da maneira mais exata possível.
Entretanto, esse vir a ser não decorre do acaso,
mas constitui um desenvolvimento e como não
existe, em nenhum domínio cognitivo, começo
absoluto até o desenvolvimento, este mesmo
deve ser examinado desde os estágios
denominados de formação […].
Piaget, 1973a, p.12
[...] a lógica é a axiomática das estruturas
operatórias, da qual a psicologia e a sociologia do
pensamento estudam o funcionaento real.
Piaget, 1976, p.14
SUMÁRIO
Introdução 9
1. Discussões preliminares ao
Ensaio de Lógica Operatória
23
2. Questões e discussões de princípios presentes no
Ensaio 59
3. Como o sujeito epistêmico usa e se torna capaz de usar
funções proposicionais 95
Considerações finais 129
Referências bibliográficas 137
INTRODUÇÃO
A expressão mais usual da predicação universal na Lógica
Contemporânea é a função proposicional.1 Um dos primeiros
(senão o primeiro) a introduzir a expressão “função proposicional”
foi Bertrand Russell (1872-1970).
Na Introdução à Filosofia da Matemática, Russell nos diz que
“Uma ‘função proposicional’ é, na verdade, uma expressão contendo um ou mais componentes indeterminados tais que, quando
lhes são atribuídos valores, a expressão se torna uma proposição”
(Russell, 1966, p.149).
Por exemplo, dada a proposição “Sócrates é Homem”, podemos, em um primeiro momento, decompô-la em um esquema
assim expresso: “x é Homem”, tal que x pode ser substituído por
“Sócrates”.
Se expressarmos o predicado “Homem” por H e o sujeito “Sócrates” por s, então obtemos a seguinte expressão formal para a
proposição “Sócrates é Homem”: H(s). Ademais, se x constitui um
1. O termo “função”, empregado aqui, inicialmente, tem o significado de função
matemática. Em Piaget, como veremos, além desse significado, o termo
“função” pode assumir o sentido de funcionamento ou funcionalidade, como
em um organismo biológico.
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
símbolo indicativo de uma variável em relação a diversos indivíduos,
então H(x), que representa a função proposicional, não é mais uma
expressão atrelada a uma proposição particular, mas uma expressão
geral que serve para sabermos se os termos que substituem x têm ou
não a propriedade H. Por exemplo, se x for substituído por um termo
que tenha a propriedade H, como “Sócrates” ou “Platão”, então a
proposição é verdadeira; caso o termo que substitua x não tenha essa
propriedade, como “Pégaso”, a proposição resultante é falsa.
Russell, no Principia Mathematica (1910), apresenta-nos a
função proposicional do seguinte modo:
Função proposicional. Seja fx uma sentença contendo uma variável x e tal que ela se torna uma proposição quando a x é dado
algum significado determinado fixo. Então, fx é chamada de
“função proposicional”; ela não é uma proposição, já que, devido
à ambiguidade de x, ela não assere em absoluto. (Russell & Whitehead, 1968, p.14, tradução nossa)2
Nas mais diversas áreas das ciências empíricas, podemos observar, também, a importância da função proposicional como análise de proposições científicas. Sendo as proposições unidades
básicas de enunciação de teorias científicas, pois enunciam propriedades ou leis atribuídas a objetos ou a conjuntos de objetos descobertos pelos cientistas na realidade, a função proposicional tem um
papel importante nas ciências empíricas, inclusive de fundamento,
pois nos permite descobrir relações lógicas fundamentais entre os
elementos constitutivos das proposições. Na Biologia, por exemplo,
o enunciado teórico de que “todos os organismos vivos são formados por células” (generalização fundamental dessa ciência) pode
ser decomposto em seus elementos lógicos, de forma que o estudo
2. “Propositional functions. Let fx be a statement containing a variable x and
such that it becomes a proposition when x is given any fixed determined meaning. Then fx is called a ‘propositional function’; it is not a proposition, since
owing to the ambiguity of x it really makes no assertion at all.”
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
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da função proposicional nos permita mostrar como as partes desse
enunciado se compõem de termos que estabelecem relações entre
os conceitos de vida, organismo, célula, bem como quantificam os
elementos sob essas relações (quantificadores “todos”, “alguns” e
“nenhum”).
Assim, como podemos perceber, é notável a importância que a
função proposicional tem para o desenvolvimento das ciências, em
especial para o desenvolvimento da Lógica e da Matemática. No
interior desses domínios, a função proposicional se constitui como
um esquema de análise lógico-matemática que nos permite descobrir relações fundamentais entre os elementos constitutivos de uma
proposição, levando-nos a alcançar um nível de abstração elevado
nas análises realizadas com seu recurso.
Em uma perspectiva histórica, a função proposicional surgiu no
final do século XIX e começo do século XX com a aproximação
entre a Matemática e a Lógica. Segundo I. M. Bochenski (1966,
p.334), em História da Lógica Formal, a função proposicional
surgiu com a ampliação do conceito matemático de função, realizada, ao mesmo tempo, por Johann Gottlob Frege (1848-1925) e
Charles Sanders Peirce (1839-1914).3
Em Frege, o conceito de função proposicional surge no contexto de seu projeto de fundamentação da Aritmética na Lógica e
recebe tratamento explícito, com influência em autores posteriores
como Bertrand Russell (1872-1970), com quem essa noção recebe
o nome com o qual a conhecemos hoje.
3. Sobre a noção de função proposicional em Peirce, conferir, por exemplo, as
seguintes passagens do The Collected Papers (1931): CP 2.95, nota 1, CP
3.537, nota 1, CP 4.550 e CP 4.12. Esta última referência aparece em Bochenski (1966, p.334, nota 19) e as três primeiras nos foram indicadas pelo
prof. dr. Lauro Frederico Barbosa da Silveira durante a disciplina “Fundamentos de Semiótica”, ministrada no meu mestrado na Pós-Graduação em
Filosofia da UNESP. Vamos, como fazem Bochenski e Robert Blanché, dar
mais ênfase à influência histórica de Frege do que à de Peirce. Agradecemos ao
prof. dr. Lauro pela indicação das referências sobre a função proposicional em
Peirce.
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
Frege, em especial, em As leis fundamentais da Aritmética
(1903), procura uma fundamentação axiomática da Aritmética na
Lógica, pois, como nos diz em seu artigo “Função e conceito”
(1891), “[...] a Aritmética é um desenvolvimento expansivo da Lógica, de que uma fundamentação mais rigorosa das leis aritméticas
as reduz a leis puramente lógicas, e a tais leis apenas. Sou também
desta opinião e nela fundamento a exigência de a linguagem simbólica aritmética ser expandida em um simbolismo lógico” (Frege,
1978, p.44).
A função proposicional surge, então, a partir das pretensões
de Frege de expressar as formas lógicas em um simbolismo desprovido de qualquer ambiguidade da linguagem natural. Para
isso, Frege elabora uma linguagem artificial, chamada por ele, em
alemão, de Begriffsschrift, sendo comumente traduzida, em português, por Ideografia ou Conceitografia. Em especial, no artigo citado, no qual o autor expõe algumas das ideias fundamentais de
sua Conceitografia, ele rediscute a noção de função matemática e
propõe uma ampliação dessa noção, interpretando o conceito em
Lógica como “[...] uma função cujo valor é sempre um valor de
verdade” (Frege, 1978, p.45). Em outras palavras, o conceito, em
Lógica, passa a ser visto, com Frege, como uma função, o que podemos chamar de “função conceitual”, tal que um conceito (por
exemplo, “ser um número par”) associa a cada elemento de um
domínio de discurso (por exemplo, os Números Naturais) o valor
Verdadeiro (caso ele seja par) ou o valor Falso (caso ele seja ímpar).
Nesse sentido, escreve Robert Blanché, em História da Lógica,
que se deve “[...] a Frege, além da primeira apresentação satisfatória da lógica sob a forma de um sistema axiomatizado, a maior
parte das noções de base da lógica moderna” (Blanché, 1996,
p.325). Dentre essas noções, “em particular, o ter ido buscar às matemáticas a noção de função para a análise da proposição é um passo
decisivo na renovação da moderna lógica” (Blanché, 1996, p.324).
De especial importância para nós, neste livro, é, então, essa noção
de função, intitulada por Frege de “conceito” e comumente conhe-
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
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cida, principalmente a partir dos trabalhos de Bertrand Russell,
por “função proposicional”.
A importância da função proposicional é tão significativa para
a Lógica que I. M. Bochenski, em História da Lógica Formal¸ escreve:
Nem De Morgan nem qualquer outro podiam seguir sendo lógicos em um nível de abstração tão elevado como o que aqui se
alcança. Isto se sucede depois dele, sobre a base do redescobrimento do conceito escolástico de forma. Esse descobrimento se
leva a efeito mediante uma ampliação do conceito matemático de
função, realizada ao mesmo tempo por Peirce e Frege. (Bochenski,
1966, p.334, tradução nossa)
A função proposicional é um dentre muitos outros resultados
importantes para o desenvolvimento da Lógica provenientes dos
esforços de fundamentação da Matemática desenvolvidos por
Frege e difundidos, posteriormente, por Russell e Whitehead. Segundo Blanché, esses esforços foram tão importantes para a Lógica
que representaram um renascimento para esse domínio de estudo;
renascimento que foi designado de “Logística”, mas que hoje se
prefere designar de “Lógica Matemática”, pois, segundo o autor,
“[...] traduz bem uma das características distintas da lógica contemporânea, a saber, a aplicação constante dos métodos e dos raciocínios usados na matemática” (Blanché, 1996, p.357).
Escreve o autor que, “até aos anos 30, a lógica, e esta é uma das
suas características distintas, ocupou-se de forma privilegiada e
quase exclusiva com as questões relativas aos fundamentos das matemáticas” (Blanché, 1996, p.324). Depois dos anos 1930 ocorrem,
segundo Blanché (1996, p.371), acontecimentos cruciais no desenvolvimento da Lógica. Nasce a teoria dos modelos como disciplina
científica, a reorientação da teoria metodológica da demonstração,
a teoria da computabilidade, e outros elementos técnicos que mostram, conforme nos diz esse autor, “[...] que nesta época a lógica
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
matemática tende a impor-se à comunidade científica como uma
disciplina completa, caracterizada simultaneamente pela audácia e
pelo rigor intelectual” (Blanché, 1966, p.371).
Constatações como essas, sobre o desenvolvimento da Lógica,
levaram Jean Piaget (1896-1980), em 1949, na ocasião da publicação do Tratado de Lógica (1949) – reeditado, anos mais tarde,
pelo próprio autor, com o nome de Ensaio de Lógica Operatória
(1972) –,4 a dizer que a Lógica, como ciência dedutiva, conquistou
o posto de uma ciência propriamente dita. O autor inicia essa obra
dizendo:
Reconhece-se hoje a validade de um axioma ou de um teorema de
lógica, independente das ideias que se possam ter sobre esta
mesma lógica formal considerada como disciplina geral. Tal fato
indica que a lógica conquistou a posição de ciência propriamente
dita, graças aos métodos precisos que substituíram os procedimentos simplesmente reflexivos e verbais da lógica clássica.
(Piaget, 1976, p.1)
Piaget não era um lógico de formação, mas compreendia a convergência crescente, a partir do final do século XIX, entre a Lógica
e a Matemática, cujo caso da função proposicional é, como dissemos, um resultado dessa convergência. Escreve ele no Ensaio
(1976, p.15-6), que a convergência gradual entre a Lógica e a Matemática resultou de um duplo processo; de um lado, a matematização da Lógica pela necessidade de um simbolismo exato, e, de
outro, a logicização da Matemática, devido, principalmente, às exigências de uma axiomatização. Essa convergência significa, segundo o autor, tanto para a Lógica quanto para a Matemática, um
4. O Ensaio de Lógica Operatória é a segunda edição do Tratado de Lógica. Designá-las-emos, respectivamente, apenas como Ensaio e Tratado. A obra de
nosso estudo é o Ensaio, reeditada posteriormente com a ajuda do lógico Jean-Blaise Grize, cuja edição aqui estudada é Piaget, 1976. A tradução é do
francês Essai de Logique Operatoire. Paris: Dunod, 1972.
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
15
progressivo distanciamento da intuição como fundamento do conhecimento abstrato.
No entanto, apesar do consenso de que a Lógica conquistou o
posto de uma ciência propriamente dita, observa Piaget na mesma
obra que, “[...] no caso de todas as ciências, inclusive das ciências
dedutivas, o consenso deixa de ser geral quando se trata da significação a ser atribuída aos princípios, ou mesmo do objetivo a ser
atingido e dos métodos a serem seguidos” (Piaget, 1976, p.1).
Dentre essas significações, de especial interesse para nós, no presente livro, é a relação entre Lógica e Psicologia. Em particular, interessa-nos uma questão que é assim apresentada por Piaget no
Ensaio, sendo a questão central desta obra:
[...] como se constituem as estruturas elementares de classes, de
relações, de números, de proposições, etc., formalizadas com toda
independência e autonomia pelo lógico e [...] quais são suas relações com as “operações” do pensamento “natural”, muito mais
pobre e não formalizado. [?] (Piaget, 1976, p.XV)
Observemos que Piaget pressupõe, nessa questão, que as operações lógico-formais estão vinculadas a um sujeito.5 Ele está interessado em compreender como se formam as estruturas necessárias
ao conhecimento lógico-matemático e como isso é possível a partir
do desenvolvimento psicológico humano. Apesar desse recurso à
Psicologia, trata-se, no contexto dessa investigação de Piaget, como
veremos no desenvolvimento deste livro (cf. seção 1 do capítulo 1),
fundamentalmente, de um interesse filosófico, relacionado à Teoria
do Conhecimento e à Epistemologia, em particular ao que Piaget
5. Como veremos no decorrer deste livro, Piaget se interessa pela criança, pois é
sobretudo a partir dela que se pode compreender o processo de formação das
estruturas, e não apenas pelo sujeito adulto com suas estruturas já constituídas.
Como veremos, Piaget (1976, p.XVI) entende que é compreendendo o processo de formação das estruturas que se pode melhor compreender a natureza
de tais estruturas.
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
chama de “Epistemologia Genética”,6 e não propriamente uma investigação de pura Psicologia. Assim, como veremos, quando tratarmos do sujeito psicológico, nosso interesse será pelas condições
que esse sujeito dará à constituição de um sujeito epistêmico,7 objeto
de suas pesquisas epistemológicas.
Para compreendermos melhor o significado inicial do que seja
Epistemologia Genética, recorramos, primeiramente, ao significado do termo “epistemologia”. Ele é a junção da palavra grega
“episteme” (ἐπιστήμη) que significa “ciência”, “conhecimento”
(por oposição a “doxa”, δόξα, que significa crença comum ou opinião popular), e da palavra grega “logos” (λόγος), que significa,
entre outras coisas, “estudo”, “discurso”, “razão”, “proporção”.
Epistemologia é, então, o estudo do conhecimento, relacionado aos
problemas do conhecer em geral. Modernamente, essa concepção
parece assumir um sentido mais específico, relacionado ao estudo
não de qualquer conhecimento, mas do conhecimento científico.
Lalande, por exemplo, diz-nos que a Epistemologia é “[...] essencialmente o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados de diversas ciências [...]” (Lalande, 1938, p.211, tradução
nossa), ou seja, é o estudo do conhecimento científico, dos seus
pressupostos, conceitos e métodos. Já o termo “genética” deriva da
palavra grega “genno” (γεννώ) e significa “origem”, “geração”,
“criação”. Portanto, no sentido etimológico, podemos dizer que
Epistemologia Genética é um estudo das origens do conhecimento
científico, relacionado aos problemas de como surgem as condições
necessárias para o conhecimento científico.
Podemos dizer, também, de forma geral, que a Epistemologia
Genética se constitui, por um lado, por um estudo crítico dos conceitos da História da Ciência (das ciências empíricas e lógico-mate-
6. Sugerimos aqui, para o leitor que não conhece a Epistemologia Genética, a introdução ao tema feita por Tassinari (2011b).
7. Designaremos o sujeito do conhecimento por “sujeito epistêmico”, como
fazem Beth & Piaget (1961, p.332), por exemplo.
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
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máticas) e, por outro, por um estudo da gênese dos conceitos
científicos na cognição humana, auxiliado, como veremos (cf. seção
2 do capítulo 1), pelos métodos de uma psicologia, a Psicologia Genética.8 Nesse sentido, escreve Piaget: “[...] o método completo da
epistemologia genética está constituído por uma elaboração íntima
dos métodos histórico-crítico [da História da Ciência] e psicogenético [da Psicologia Genética]” (Piaget, 1950, p.17, tradução nossa).
Além de uma epistemologia, no sentido estrito do termo, a
Epistemologia Genética é uma teoria do conhecimento, pois, se entendermos que a Teoria do Conhecimento é, como nos diz Lalande,
o “estudo da relação que existe entre o sujeito e o objeto no ato de
conhecer” (Lalande, 1938, p.889, tradução nossa), ou seja, é o estudo da relação entre sujeito e objeto e das questões relativas à formação do nosso conhecimento, podemos dizer, então, que a
Epistemologia Genética é, ao mesmo tempo, Epistemologia e
Teoria do Conhecimento. Sendo assim, podemos considerar que as
questões centrais de sua obra são fundamentalmente epistemológicas e de teoria do conhecimento e não exclusivamente psicológicas.
No que se refere ao estudo das estruturas necessárias ao pensamento lógico-matemático e como elas são possíveis epistemologicamente, Piaget apresenta, no Ensaio, as primeiras estruturas do
pensamento “natural”, procurando investigar seu processo de for-
8. O que é notável observar aqui é a existência de um certo paralelismo entre a
construção histórica dos conceitos da História da Ciência e a construção histórica dos conceitos no âmbito psicogenético. Segundo Piaget (cf. 1973a, p.2930), além de as estruturas psicológicas possibilitarem o conhecimento
científico, é possível traçar uma analogia entre a construção presente na História da Ciência com a construção intelectual investigada pela Psicologia Genética. Nesse sentido, as etapas da construção da causalidade, por exemplo,
presentes na história do pensamento científico, parecem ser análogas às etapas
da construção do pensamento individual ou coincidentes com elas. Sobre isso,
observa Piaget: “A presente obra é o resultado dessa comparação, à qual nos
temos consagrado constantemente, entre a psicogênese das operações intelectuais e seu desenvolvimento histórico” (Piaget, 1950, p.3, tradução nossa).
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
mação. Nesse sentido, ele escreve: “A ideia central [do Ensaio] é a
de que a formalização não é um estado, mas um processo, e que ela
se apoia, consequentemente, em estruturas que se elaboram segundo níveis” (Piaget, 1976, p.XVII). Em outras palavras, as formalizações que aparecem no Ensaio não correspondem às
explicitações de estruturas lógico-matemáticas prontas e acabadas,
em um sentido platônico do termo, mas são uma formalização das
estruturas do ser humano que surgem durante seu desenvolvimento. Cada estrutura relativa às operações “naturais” realizadas
pelo sujeito é, então, explicitada, formalmente, no Ensaio, no qual
cada estrutura está interligada a outra, organicamente.
Notemos, desse modo, que Piaget procura compreender as
formas lógicas como resultante de um processo de construção, vinculadas a uma psicologia e a uma sociologia do pensamento. Sendo
assim, de tal ponto de vista, Piaget compreende a Lógica, proposta
por ele no Ensaio, como
[...] a axiomática das estruturas lógicas operatórias, da qual a psicologia e a sociologia do pensamento estudam o funcionamento real.
(Piaget, 1976, p.14, grifo do autor)
Segundo Piaget (1958, p.52, e 1983a, p.40-1), em uma axiomática assumem-se certos axiomas como verdadeiros, independentemente de suas apelações intuitivas ou empíricas, pois o lógico
escolhe seus axiomas com toda a liberdade e de acordo com suas
necessidades, sem se prender aos elementos fornecidos pelo pensamento “natural” ou intuitivo. Esse desprendimento permite-lhe
reconstruir livremente sistemas formais segundo todas as possibilidades necessárias para a dedução, donde, “[...] por exemplo, o direito de construir lógicas trivalentes distintas, mas ainda próximas
do pensamento comum, ou a uma infinidade de valores que se distanciam consideravelmente das intuições do terço excluído”
(Piaget, 1983a, p.41). A construção de outras lógicas, além da Lógica Clássica, que para Piaget é o espelho do funcionamento
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
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cerebral,9 é, nesse sentido, possível dentro do jogo operatório simbólico realizado no interior dos sistemas formais. Um sistema
formal liberta, então, a Lógica das amarras intuitivas da realidade
empírica, permitindo ao lógico desenvolver diversas lógicas e estudar apenas as operações dedutivas, seu interesse efetivo.10
Se a axiomática realiza essa libertação, então ela exclui a Psicologia e a Sociologia das investigações dedutivas, de modo que a Lógica e a Psicologia ganham autonomia metodológica nas suas
9. Sobre a afirmação de que o funcionamento cerebral tem por base a Lógica
Clássica, cf. os seguintes textos de Piaget: 1967b, p.275-6; 1967a, p.1.244,
1987; e Beth & Piaget, 1961, p.324. Agradecemos à profa dra Zélia Ramozzi-Chiarottino pela indicação dessas referências.
10. Como veremos no decorrer do presente livro, Piaget tratará apenas do aspecto
das operações do pensamento “natural” relativos à Lógica Clássica. Parece-nos, ademais, que uma visão não clássica das operações psicológicas do sujeito
poderia trazer novas relações entre a Epistemologia Genética (que é, como veremos, a epistemologia proposta por Piaget) e a Lógica Contemporânea no que
se refere aos estudos da origem e construção das estruturas lógicas no ser humano, em especial a relação entre pensamento “natural” e as Lógicas Não
Clássicas; pois uma questão que se pode colocar é: o pensamento “natural”
segue apenas os padrões da Lógica Clássica ou será que é possível uma visão
não clássica das estruturas lógico-matemáticas descobertas no seio das operações “naturais” realizadas pelo sujeito? De outro modo: será que as Lógicas
Não Clássicas são possíveis apenas dentro de um jogo operatório simbólico
realizado no interior de sistemas formais, como nos indica Piaget na trecho citado, ou podemos encontrá-las, também, no seio das operações do pensamento
“natural” realizadas pelo sujeito na medida em que ele estrutura logicamente
sua realidade? Encontramos referências de Piaget às Lógicas Intuicionistas e às
Lógicas Polivalentes – Piaget faz referência a Brouwer no caso da primeira Lógica e a Lukasiewicz no caso da segunda no Ensaio (1976, p.373-81, e.g.). Pensamos, sobretudo, que, como diz Piaget (cf. final da seção 1, capítulo 1), se a
Epistemologia Genética está em constante construção, devendo acompanhar o
processo histórico de aumento do conhecimento (método histórico-crítico)
com o desenvolvimento do sujeito (método psicogenético), então pensamos
que as questões aqui colocadas podem ser verificadas e estudadas na abordagem de sua teoria. O despertar desses questionamentos na presente nota é o
reflexo dos valiosos questionamentos do prof. dr. Décio Krause (UFSC) ao
nosso trabalho, apresentado no XIV Encontro Nacional de Pós-Graduação em
Filosofia da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof),
realizado em outubro de 2010.
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
investigações sem fazer interferir uma na outra. Segundo Piaget,
“só a logística garante, por sua técnica de formalização, a autonomia respectiva da lógica e da psicossociologia, pois apenas a
axiomatização pode liberar uma ciência dedutiva de suas amarras
intuitivas e liberar um estudo concreto e causal de suas pressuposições normativas” (Piaget, 1976, p.15). Em outras palavras, enquanto a Lógica realiza uma análise formal, a Psicologia realiza
uma análise real do conhecimento lógico-matemático. Sobre isso,
diz-nos o autor:
Existe, entre a teoria formal e a análise real, exatamente a mesma
relação que há entre toda axiomática e toda pesquisa real concomitante (por exemplo, entre a geometria axiomática e a geometria
dos objetos físicos): independência completa dos métodos e correspondência possível entre os problemas. (idem, p.14)
Sobre a correspondência dos problemas, escreve ele: “[...] cada
estrutura formalizada corresponde a uma estrutura real, no pensamento comum ou, na ausência deste, no espírito do próprio lógico,
etc.” (ibidem, p.15); por outro lado, ainda segundo Piaget: “[...]
toda estrutura atingida pelas operações mentais do indivíduo, ou
por uma cooperação interindividual, suscita o problema lógico de
sua formalização possível [...]” (ibidem, p.15)
Nesse sentido, se a função proposicional, em particular, tem
um correspondente psicológico na realidade, então, por um lado, a
constituição desse correspondente real por um sujeito suscita o
problema de sua formalização possível no plano das análises lógicas. Inversamente, a análise formal da função proposicional suscita, do ponto de vista real, entre outras, a questão de saber qual é o
seu correspondente psicológico e como ele se constitui epistemologicamente, isto é, implica a questão de saber como o sujeito epistêmico usa e se torna capaz de usar funções proposicionais para
estruturar a realidade. Depreende-se, assim, uma questão da relação entre Lógica e Psicologia que guiará nossa investigação neste
livro, a qual pode ser formulada do seguinte modo:
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
21
Como o sujeito epistêmico usa e se torna capaz de usar funções
proposicionais na estruturação lógico-matemática que ele faz da realidade?
Diante de tal questão, é nosso objetivo apresentar e explicitar,
no contexto da Epistemologia Genética, que é a epistemologia proposta pelo autor, como o sujeito epistêmico usa e se torna capaz de
usar funções proposicionais para estruturar a realidade e produzir
conhecimento sobre ela. Em especial, centramos nossa investigação
no período das operações concretas, nas idades entre 7 a 10 anos,
marco crucial para a construção das operações, pois, segundo
Piaget, “[...] as operações concretas estabelecem, portanto, muito
bem a transição entre a ação e as estruturas lógicas mais gerais [...]”
(Piaget & Inhelder, 1990, p.86). Nesse período do desenvolvimento humano surgirá, como veremos adiante, uma das estruturas
que serão determinantes para o uso pleno da função proposicional
pelo sujeito no período operatório formal, a saber: a coordenação
reversível parte-todo.
Em vista disso, para situarmos a nossa questão no interior da
obra de Jean Piaget, realizamos, inicialmente, no capítulo 1, uma
breve e ampla contextualização do seu pensamento, no âmbito das
discussões filosóficas. Apresentamos os pressupostos gerais da
Epistemologia Genética e suas relações com a Psicologia Genética.
Situamos o Ensaio nesse contexto e mostramos como ele surgiu e
quais são as ideias centrais discutidas nesta obra.
No capítulo 2, apresentamos algumas das discussões de princípio realizadas por Piaget no Ensaio acerca do objeto e da definição
da Lógica Operatória. Apresentamos, também, uma breve caracterização do psicologismo em Lógica a partir de um ponto de vista
piagetiano para, então, apresentar uma discussão entre Piaget e o
lógico Evert W. Beth sobre um possível psicologismo em Lógica
decorrente da repercussão do Tratado. Beth pode ser considerado
um dos maiores representantes do debate com Piaget acerca desse
tema.
22
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
No capítulo 3, procuramos responder à questão central de
nosso livro. Nesse capítulo, apresentamos a definição de função
proposicional dada por Piaget no Ensaio. Procuramos mostrar,
também, em que medida a função proposicional é importante como
condição de uma lógica das classes e das relações e como esta sua
importância é determinante, da perspectiva de uma lógica das totalidades, para a Lógica Operatória. Veremos, também, que, para
Piaget, a função proposicional tem um correspondente psicológico:
o esquema conceitual. Nesse sentido, a pergunta de como o sujeito
epistêmico usa e se torna capaz de usar funções proposicionais para
estruturar logicamente a realidade consiste, então, em investigar,
no plano psicológico, como surgem os esquemas conceituais. Sendo
o processo de construção dos esquemas conceituais um longo processo, com origem nos primeiros esquemas de ação da criança,
amplo demais para ser estudado no espaço de uma dissertação de
mestrado (Ferreira, 2011, que resultou no presente livro), centramos nosso estudo no período chamado por Piaget de “período
operatório concreto”, em especial na passagem do período pré-operatório ao operatório concreto, passagem que podemos considerar
crucial para a construção das operações lógicas do pensamento,
pois é o momento de transição das ações do sujeito sobre a experiência sensível às primeiras estruturações lógico-operatórias da
realidade realizada por esse sujeito.
1
DISCUSSÕES PRELIMINARES AO
ENSAIO DE LÓGICA OPERATÓRIA
Realizamos, na seção 1 deste capítulo, uma breve e ampla contextualização do pensamento de Jean Piaget no âmbito das discussões filosóficas. Na seção 2, apresentamos os pressupostos gerais
da Epistemologia Genética e suas relações com a Psicologia Genética. Na seção 3, situamos o Ensaio nesse contexto e mostramos
como ele surgiu e quais são as ideias centrais discutidas nesta obra.
1. Heranças da tradição filosófica no pensamento
de Jean Piaget e a possibilidade de uma
Epistemologia Genética
Biólogo de formação, Jean Piaget (1896-1980) encontra na
Biologia um exemplo de ciência relativa à empiria e defronta-se, ao
mesmo tempo, com questões clássicas da Filosofia sobre os limites
e possibilidades do conhecimento humano. A respeito de sua formação, diz-nos ele, na sua autobiografia: “Minha educação superior concentrou-se nos campos da biologia e da filosofia, e, entre
1911 e 1925, publiquei cerca de 25 estudos sobre moluscos terrestres e aquáticos” (Piaget, 1974, p.285).
24
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
Sobre seu interesse pela Filosofia, ainda nos diz: “Ao passo que
eu desejava dedicar-me à biologia, tinha igual interesse pelos problemas do conhecimento objetivo e pela epistemologia” (idem,
p.285). A Filosofia se tornou tão marcante na sua formação que ele
escreve: “[...] a filosofia tem sua razão de ser e deve-se mesmo reconhecer que todo homem que não passou por ela é incuravelmente
incompleto” (Piaget, 1983b, p.68).
Sua formação científica de biólogo e seus interesses pelos problemas do conhecer humano o despertaram, também, para a Psicologia. “Este treinamento [no campo da Biologia] foi extremamente
útil às minhas investigações psicológicas posteriores [...]” (Piaget,
1974, p.285). Sobre a importância da Psicologia para seus trabalhos, em outra passagem escreve:
Mas para mim, zoologista que fazia pesquisa de campo ou em laboratório, eu começava (demasiado devagar, infelizmente) a
sentir que uma ideia é apenas uma ideia e que um fato é apenas
um fato. Vendo meu bom mestre manipular todas as ideias como
se se tratasse sempre de metafísica, eu sentia um certo mal-estar e
em virtude disso ficava reduzido à sensação de que para analisar
as relações entre o conhecimento e a vida orgânica seria talvez útil
fazer um pouco de psicologia experimental. (Piaget, 1983b, p.74)
O mestre a que Piaget se refere é Arnold Reymond, seu professor de Filosofia no ginásio e na Universidade de Neuchâtel,
onde Piaget se doutorou em Biologia com uma tese sobre os moluscos de Valois. Segundo Piaget, “foi, pois, com a maior confiança
nele [em Reymond] que me deixava encorajar a prosseguir uma
carreira essencialmente filosófica e a especializar-me em filosofia
biológica” (idem, p.74, grifo nosso)
Notemos, assim, que sob a dupla influência dos métodos científicos da Biologia e da Psicologia de um lado, e das discussões em
Filosofia, em particular pela Epistemologia, de outro, Piaget elabora uma epistemologia distinta das anteriores. Escreve Piaget no
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
25
Prefácio da Introdução à Epistemologia Genética:1 “No tempo de
nossos estudos em zoologia, um duplo interesse pelos problemas de
variação e adaptação e pelas questões lógicas e epistemológicas nos
fez sonhar em construir uma epistemologia biológica” (Piaget, 1950,
p.3, grifo nosso).
Sobre a epistemologia de Piaget ser uma epistemologia biológica, comenta Zélia Ramozzi-Chiarottino:2 “[...] Piaget, com sua
formação de biólogo, ao se interessar pelos problemas filosóficos,
teve a ideia de escrever uma teoria do conhecimento inspirada na
Biologia” (Ramozzi-Chiarottino, 1984, p.32). Em especial, Piaget
é, como observa Manuel Martins Lourenço,3 influenciado pelas
concepções da biologia do conhecimento e, também, profundamente influenciado por autores da filosofia do conhecimento, por
exemplo, pela filosofia de Immanuel Kant (1724-1804), conside1. A Introdução à Epistemologia Genética é uma obra de 1950. Podemos dizer que
essa obra é um marco nos estudos em Epistemologia realizados por Piaget,
pois é a primeira vez que o autor usa o termo “epistemologia” para nomear
seus escritos. Antes de 1950, as obras de Piaget recebiam nomes referentes
apenas aos seus estudos em Psicologia, muito embora suas preocupações de
fundo e a condução de suas pesquisas biológicas e psicológicas tenham se revelado, desde a adolescência, fundamentalmente circunscritas à Epistemologia e
ao âmbito da Teoria do Conhecimento. Para consultar a lista de livros, em
ordem cronológica, da produção intelectual de Piaget ou de sua equipe no
Centro Internacional de Epistemologia Genética, pode-se acessar o site dos
Arquivos Jean Piaget da Universidade de Genebra (Unige), no seguinte
endereço eletrônico, disponível para consulta: <http://archivespiaget.ch/
fileadmin/user_upload/ajp/fichiers_pdf/Livres_de_Piaget_aux_AJP.pdf>.
2. Zélia Ramozzi-Chiarottino é filósofa, formada pela Universidade de São Paulo
(USP), com pós-graduação em Filosofia das Ciências pela Université d’Aix-Marseille, sob a orientação do epistemólogo Gilles G. Granger, e doutora em
Ciência pela USP. Dedica-se, atualmente, à Filosofia da Ciência Biológica,
dentre as quais, a Psicologia.
3. Conforme informações que recebemos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Manuel Martins Lourenço se licenciou em Filosofia pela Faculdade de Letras do Porto e cursou Ciências Pedagógicas pela mesma
universidade. Foi professor da Faculdade de Letras desde 1975 onde parece ter
lecionado até 1982. Lecionou, entre outras, nas cadeiras de Epistemologia das
Ciências Humanas, Epistemologia Geral, História da Filosofia, Filosofia
Contemporânea e Filosofia do Conhecimento.
26
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
rado por Piaget “o pai de todos nós” (Piaget, 1972 apud Lourenço,
2008a, p.248).4
De fato, podemos notar uma certa proximidade do pensamento de Piaget com a concepção kantiana sobre as faculdades da
razão humana, mas, como veremos, ele se afasta dela em certos
pontos essenciais. Como nos diz Kant, na Crítica da razão pura
(1781),5 “[...] embora o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso todo ele se origina justamente da experiência”
(Kant, 1983, p.22), pois:
[...] há um tal conhecimento independente da experiência e
mesmo de todas as impressões dos sentidos. Tais conhecimentos
denominam-se a priori e distinguem-se dos empíricos, que possuem suas fontes a posteriori, ou seja, na experiência. (Idem, p.22,
grifo do autor)
Os conhecimentos a priori são estruturas ou esquemas, como
as formas a priori da sensibilidade e do entendimento, que estão
previamente contidas nas capacidades intelectuais.
No que concerne às formas a priori da sensibilidade, há, segundo Kant (ibidem, p.40), duas formas, o espaço e o tempo. A título de exemplo, limitemo-nos ao espaço. Observa o autor (ibidem,
p.39) que, se separarmos de um corpo aquilo sobre o que o entendimento se debruça, como a substância, a força, a divisibilidade, o
volume etc., subsistem, ainda, a extensão e a figura. Segundo Kant,
4. A referência dessa passagem em Piaget dada por Lourenço é: Piaget, J. Discours de réception du “Prix Erasrae 1972”. Praemium Erasmianum, 1972,
p.293.
5. Kant, I. Crítica da razão pura. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur
Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Esse livro é uma tradução da
segunda edição da Crítica, de 1787. A primeira edição data de 1781 e a referência da segunda edição alemã é: Kritik der reinen Vernunft von Immanuel
Kant, Professor in Königsberg der Königl. Akademie der Wissenschaften in
Berlin Mitglied. Zewyte hin und wieder veresserte Auflage Riga, beu Johann
Friedrich Hartknoch, 1787.
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
27
“ambas [extensão e figura] pertencem à intuição pura, que mesmo
sem um objeto real dos sentidos ou da sensação, ocorre a priori na
mente como uma simples forma da sensibilidade” (Kant, 1983,
p.39-40). Dado que a extensão e a figura pertencem a um conceito
mais abstrato ainda, o espaço, Kant nos diz que o espaço é uma
forma a priori da sensibilidade, sendo, pois, condição necessária
dos fenômenos ou de todos os objetos que aparecem à sensibilidade. Nesse sentido, escreve:
O espaço é uma representação a priori necessária que subjaz a
todas as intuições externas. Jamais é possível fazer-se uma representação de que não há espaço algum, embora se possa muito bem
pensar que não se encontre objeto algum nele. Ele é, portanto,
considerado a condição da possibilidade dos fenômenos e não
uma determinação dependente destes; é uma representação a
priori que subjaz necessariamente aos fenômenos externos. (Idem,
p.41)
Notemos, assim, que Kant não despreza a importância da experiência como condição inicial para o conhecimento e, ao mesmo
tempo, confere às formas ou esquemas um apriorismo que regula a
construção do objeto. Segundo Kant (ibidem, p.12), assim como
Copérnico tirou a Terra e colocou o Sol no centro do movimento
dos corpos celestes, agora, no plano do conhecimento, no que concerne à relação sujeito-objeto, não são as faculdades do conhecer
que se regulam pela natureza dos objetos, mas os objetos que se
regulam pela nossas faculdades do conhecer. Nesse sentido, a Filosofia, em uma espécie de revolução copernicana, deveria, como
uma “crítica da razão pura”, investigar a importância das nossas
faculdades para o conhecimento.
Muito embora a filosofia do conhecimento de Kant tenha influenciado profundamente o pensamento de Piaget, este não se limitou a ela. Segundo Lourenço, “Kant, nada dizendo acerca do
desenvolvimento ou aquisição do conhecimento ou compreensão,
exerceu grande influência em Piaget que gosta de se considerar seu
28
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
herdeiro” (Lourenço, 2008a, p.248). Sobre isso, em outra passagem
nos diz Lourenço: “Contudo, a ideia kantiana de que toda a experiência é mediada por esquemas ou estruturas, embora acolhida
com grande entusiasmo, não o satisfez [Piaget] plenamente” (idem,
p.249). Nesse sentido, de modo semelhante a Kant, Piaget concebe
que existem esquemas que condicionam nosso conhecimento das
coisas, mas, sobretudo, tais esquemas possuem uma gênese, não
sendo estruturas dadas no sujeito.
O termo “gênese”, usado por Piaget (cf. 1990, p.8), remete a
origem e construção e não se limita à ciência Genética. Diz-nos
Lourenço (2008a, p.249) que a noção de gênese advém de uma
crença já presente na teoria biológica do conhecimento. Escreve
ele:
A teoria biológica do conhecimento é a crença que as formas cognitivas não são entidades estáticas e imutáveis, mas, como todos os
traços físicos e fisiológicos do homem, estão sujeitas a um crescimento e desenvolvimento gradual, e que nenhuma teoria do conhecimento pode ser adequada sem relacionar a sua gênese com
todo o processo evolutivo. (Idem, p.249)
Com a chegada da teoria da evolução, a teoria biológica do conhecimento ganha força e repercussão nos vários aspectos do
conhecimento humano, em especial no aspecto psicológico, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX. Diz-nos Lourenço,
desse modo, que,
A partir de então, começa-se a aplicar a teoria da evolução aos
traços psicológicos do homem incluindo a inteligência e o pensamento. A oposição entre a natureza e a razão começa a ser rejeitada, e a teoria da evolução a gerar a necessidade de explicar a
evolução da descendência mental. (Ibidem, p.249-50)
Dentre as concepções da biologia do conhecimento, Piaget é
influenciado, em particular, pelas concepções de Herbert Spencer
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
29
(1828-1903) e Henri Bergson (1859-1941). Segundo Lourenço,
“Spencer e Bergson foram os primeiros filósofos a dar uma orientação biológica à epistemologia e, portanto, a relacionar as leis do
conhecimento com as da vida” (ibidem, p.250).
Diz-nos Piaget (1983b, p.72) que as leituras de Bergson, em
particular, influenciaram-no profundamente, e correspondiam aos
seus questionamentos na adolescência. Sobre isso, escreve: “Em resumo, eu descobriria [na adolescência] uma filosofia [a de Bergson]
respondendo exatamente à minha estrutura intelectual de então”
(idem, p.72). Nesse sentido, diz-nos, ainda, o autor: “[...] meu padrinho, um homem de letras […] convidou-me, num verão, a ir às
margens do lago de Annecy para me fazer ler e explicar-me A evolução criadora. Foi um verdadeiro impacto […] que impelem os
adolescentes para a filosofia” (ibidem, p.72)
Segundo Bergson, em A evolução criadora (1907), a inteligência
é produto da ação do homem sobre a natureza, pois a sua formação
emerge das atividades naturais de fabricação de instrumentos para
a sua sobrevivência. Nesse sentido, diz-nos ele:
[...] a inteligência é a faculdade de fabricar instrumentos inorganizados, isto é, artificiais. Se, através dela, a natureza nega-se a dotar
o ser vivo do instrumento que lhe servirá, é para que o ser vivo
possa, de acordo com as circunstâncias, diversificar sua fabricação.
A função essencial da inteligência será, pois, de deslindar, em
quaisquer circunstâncias, o meio de sair de dificuldades. Ela irá
procurar o que melhor lhe possa atender, isto é, inserir no quadro
proposto. Ela recairá essencialmente sobre as relações entre a situação dada e os meios de a utilizar. (Bergson, 1979, p.185)
Notemos que Bergson concebe, então, a inteligência, originalmente, como uma função biológica voltada para a vida prática e
para as ações vitais do organismo no meio. A inteligência está vinculada à resolução de problemas práticos e consiste em buscar a
melhor adequação a uma situação dada, elaborando, para isso, instrumentos disponíveis para sua ação no meio.
30
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
Segundo Lourenço, a ação tem um papel fundamental não
apenas para Bergson, mas também para Spencer. Nesse sentido,
escreve:
A inteligência e o conhecimento são, segundo eles [Spencer e
Bergson], o resultado de todo o processo evolutivo e, como a vida,
formas de ajustamento e adaptação ao meio – são instrumentos ao
serviço do bem-estar e da sobrevivência dos organismos. O conhecimento não é apenas contemplação; é também execução e
ação. (Lourenço, 2008a, p.250)
A noção de ação é parte central da teoria piagetiana. Sobre a
importância da ação para a construção do conhecimento e da inteligência no viés da concepção piagetiana, escreve Ramozzi-Chiarottino: “A ação, na concepção de Piaget, só pode ser entendida como
parte do funcionamento de toda organização viva” (Ramozzi-Chiarottino, 1984, p.33).
Nesse sentido, do ponto de vista da Teoria do Conhecimento,
nem o sujeito nem o objeto constituirão sozinhos as estruturas necessárias ao conhecimento, mas a interação entre eles. Desse modo,
escreve Piaget: “Conhecer não consiste, com efeito, em copiar o
real mas em agir sobre ele e transformá-lo (na aparência ou na realidade), de maneira a compreendê-lo em função dos sistemas de
transformação aos quais estão ligadas estas ações” (Piaget, 1973,
p.15).
A ação é tão importante para a formação e produção do conhecimento pelo sujeito que podemos encontrar na teoria piagetiana
uma espécie de filosofia da ação e, também, como nos indica Ramozzi-Chiarottino,6 Piaget afirma que sua teoria é uma álgebra es6. A passagem em que Piaget afirma que sua teoria é uma álgebra estrutural, indicada a nós por Ramozzi-Chiarottino, é a seguinte: “[...] a operação logística
não tem a pretensão de ser uma lógica, mas um modelo algébrico das operações
reais do pensamento” e “[...] a lógica operatória é, portanto, uma teoria algébrica das estruturas (mentais) em função das quais o pensamento real se impõe
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
31
trutural dos sistemas de ação. Para ele, a ação é condição necessária
para a estruturação do mundo realizada pelo sujeito.
Diz-nos Ramozzi-Chiarottino (1984, p.32) que um estudo da
teoria piagetiana mostraria toda a sua obra como uma teoria geral
da ação. Aponta a autora que Gilles-Gaston Granger, em sua obra
Filosofia do estilo (1968), tem, também, uma interpretação nesse
sentido. Comenta Ramozzi-Chiarottino que, na visão de Granger,
“[...] a maneira pela qual Piaget aborda e desenvolve o problema da
integração da ação ao objeto das ciências do homem é fruto do encontro de um estilo biológico e de um estilo matemático”. Granger,
na mesma obra, diz-nos que uma ação “[...] não é um estado fixo de
anulação de seus movimentos, mas um sistema de atos possíveis
organizados de tal modo que contrabalancem certas mudanças do
meio” (Granger, 1974, p.283). Nesse sentido, a ação, enquanto um
sistema de atos possíveis e realizáveis pelo sujeito, torna-se uma espécie de ação virtual. A ação, não conduzida pelo sujeito apenas em
uma situação específica e concreta, é, sobretudo, realizável por este
em situações possíveis, análogas ou semelhantes, formando um sistema de “atos virtuais” e gerais como um todo, passível, inclusive,
de formalização. Assim, segundo Granger:
[…] é pela introdução do virtual que se efetua a aproximação essencial, para Piaget, entre o tema biológico e o tema matemático:
as estruturas em questão em sua análise dos sistemas de ação são
estruturas matemáticas, porque são construídas por operações
não visadas isoladamente, mas segundo o conjunto de suas realizações virtuais. (Idem, p.283-4, grifo do autor)
Notemos, ademais, mesmo que brevemente, que uma ação não
é qualquer movimento do sujeito no meio. Segundo Piaget, “é ação
toda conduta (observável exteriormente, inclusive por interrogação
(com ou sem razão), uma lógica” (Piaget, 1952, p.81, tradução nossa). Agradecemos novamente à professora pela indicação.
32
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
clínica) visando um objetivo do ponto de vista do sujeito considerado” (Apostel et al., 1957, p.43). Em outras palavras, uma ação
pressupõe um tipo de intenção, por parte do sujeito, no sentido de
que visa a um fim na perspectiva desse sujeito.
Segundo Vicente Eduardo Ribeiro Marçal (2009, p.23), apesar
de existir a possibilidade de, em teoria, distinguir uma ação de um
movimento aleatório, tal distinção é tênue. Não nos interessa, para
os propósitos deste livro, entrar no mérito da questão de saber, por
exemplo, qual é o método clínico mais adequado para constatar se o
sujeito realiza, de fato, uma ação ou quando se dá o início das primeiras ações no bebê. Interessa-nos apenas, aqui, que Piaget desenvolve um estudo sobre a ação, sendo ela um conceito-chave na
teoria proposta por ele.
Relacionado às ações, temos, então, uma das noções centrais da
Epistemologia Genética: o esquema de ação. Para Piaget, “um esquema é a estrutura ou a organização das ações, as quais se transferem ou generalizam no momento da repetição da ação, em
circunstâncias semelhantes ou análogas” (Piaget, 1990, p.15). Citemos um exemplo (dentre inúmeros possíveis): Piaget (1975b,
p.35-40), em O nascimento da inteligência na criança (1936), observa que um de seus filhos, Laurent, usava, nos primeiros instantes de vida, os lábios para sugar no vazio, e que, paulatinamente,
passou a usá-los para sugar o seio da mãe, mesmo que de maneira
descoordenada, e, depois, o polegar e, progressivamente, outros
objetos, até que essa ação de sugar se generalizou dando origem ao
esquema de sucção.
Desse modo, o esquema é uma forma geral de certas ações, isto
é, algo comum entre as diversas ações individuais de um mesmo
tipo, podendo ser aplicada em contextos de ações distintos, mas
análogos, o que o torna uma condição da ação; sendo, portanto,
uma forma da ação, é uma estrutura organizadora da ação do sujeito
sobre o mundo. Em outras palavras, o esquema de ação é, segundo
Ramozzi-Chiarottino,
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
33
[...] condição primeira da ação, ou seja, da troca do organismo
com o meio. Ele é engendrado pelo funcionamento geral de toda
organização viva, a adaptação. O organismo com sua bagagem
hereditária, em contato com o meio, perturba-se, desequilibra-se
e, para superar esse desequilíbrio, ou seja, para adaptar-se, constrói os esquemas. (Ramozzi-Chiarottino, 1984, p.34)
Os diversos esquemas construídos pelo sujeito coordenam-se,
estabelecendo entre si uma rede de relações. Essas relações entre
esquemas de ação constituem o que Piaget chama de “sistema de
esquemas de ação” e permite mostrar a continuidade da adaptação
biológica com a adaptação intelectual. Citemos um exemplo retirado de O nascimento da inteligência (cf. 1975b, p.124): os esquemas
de sucção, preensão e visão assinalam o início de um comportamento
complexo, sendo um elo indispensável entre a adaptação biológica
e a intelectual. Em específico, objetos que são agarrados pela
criança, nos primeiros meses, tendem a ser chupados ou olhados, e
objetos que são olhados tendem a ser agarrados e chupados. A
partir de experiências particulares de preensão, sucção e visão com
objetos, o sujeito constitui um sistema de esquemas prévios, condição de sua ação, para aplicar os esquemas às situações análogas.
Nesse sentido, o objeto é assimilado através da coordenação sucessiva de esquemas de sucção, preensão e visão, adquirindo um conjunto de significações para o sujeito a partir do sistema de esquemas
a ele aplicados.
Notemos, nesse sentido, que existe uma teoria da significação
atrelada à constituição do sistema de esquemas de ação do sujeito.7
O sujeito, de posse de um sistema de esquemas de ação que lhe permitam agir sobre o real, atribui a esse real um conjunto de signifi-
7. A relação entre Lógica e Significação também ocupou as pesquisas de Piaget e
colaboradores no Centro Internacional de Epistemologia Genética. Perto do
fim de sua vida surge o livro Em direção a uma Lógica das Significações, publicada postumamente, em 1987.
34
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
cações que serão determinantes para a construção da realidade que
o cerca.
Encontramos em Latansio (2010) um estudo sobre a noção de
significação que traz explicitações sobre o tema da significação das
ações e dos objetos para o sujeito segundo a Epistemologia Genética. Não entraremos nos pormenores desse estudo; cabe-nos indicar, porém, que, como nos aponta Latansio (2010, p.35-6),
Piaget, em Apostel et al. (1957),8 v.IV dos Estudos de Epistemologia
Genética, fornece-nos definições que norteiam os estudos sobre a
significação, a saber: (i) “Def. 9: Do ponto de vista do observador,
a significação de uma ação é o conjunto das ações que ela torna possíveis, e o conjunto daquelas que ela torna impossíveis” (Apostel et
al., 1957, p.48, tradução de Latansio, 2010, p.36); (ii) Def. 10. Do
ponto de vista do sujeito S, a significação de uma coordenação de
ação é o conjunto das ações coordenadas com o qual o sujeito S a
compõe e o conjunto das coordenações de ação das quais o mesmo
sujeito a torna ação coordenada (cf. Apostel et al., 1957, p.48); (iii)
“Def. 11: A significação de um objeto A para um sujeito S numa
situação T é o conjunto das ações de S que lhe são aplicáveis em T”.
(Apostel et al., 1957, p.50, tradução de Latansio, 2010, p.38).
Nesse sentido, de modo geral, podemos dizer que a significação (de uma ação e de um objeto) está profundamente atrelada à
interação do sujeito com o objeto, isto é, ao sistema de esquema de
ação, seja do ponto de vista do observador ou do sujeito que realiza
a ação. Isso quer dizer que “[...] quanto mais complexas as construções internas, mais significações uma ação apresenta para esse indivíduo” (Latansio, 2010, p.37). Ainda, segundo Latansio, no caso
da significação do objeto, “[...] temos também (como no caso da
significação de uma ação), isto é, quanto mais complexo é seu sistema de esquemas de ação, mais significações um objeto tem para
um sujeito, devido à possibilidade de ações” (Latansio, 2010, p.38).
8. Essa obra é resultado de um estudo interdisciplinar entre lógicos e psicólogos
sobre as relações entre a Linguagem e a Lógica em Carnap, realizada no Centro
Internacional de Epistemologia Genética (cf. Apostel et al., 1957, p.3, nota 1).
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
35
O sistema de esquemas de ação, além de possibilitar um conjunto de significações para as ações do sujeito em relação aos objetos,
permite que se estabeleça um elo profundo de continuidade entre os
aspectos biológico, psicológico e epistemológico do sujeito. A constituição do sistema de esquemas de ação ocorre durante toda a nossa
vida, mas o notável é que, enquanto “mecanismo” biológico, o esquema está presente em todos os animais ou sujeitos-organismos. Em
especial no ser humano, sendo, pois, no caso deste, condição para o
sujeito psicológico e, progressivamente, condição para a constituição de um sujeito epistêmico. A continuidade entre a organização
biológica e as estruturas superiores da cognição, com a possibilidade
de produção de conhecimento, se expressa na complexificação gradual do sistema de esquemas de ação que o sujeito constrói na sua
interação com o meio.9 Escreve Piaget, em Biologia e conhecimento
9. Encontramos, no processo de adaptação em Piaget, com seus dois polos de
acomodação e assimilação, que trataremos logo em seguida, semelhanças
muito próximas com os processos auto-organizados. Michel Debrun, por
exemplo, diz-nos: “Há auto-organização cada vez que, a partir de um encontro
entre elementos realmente (e não analiticamente) distintos, desenvolve-se uma
interação sem supervisor (ou sem superior onipotente) – interação essa que
leva eventualmente à constituição de uma ‘forma’ ou à restruturação, por
‘complexificação’, de uma forma já existente” (Debrun, 1996a, p.13). Notemos, então, que o sujeito, tanto segundo essa teoria proposta por Debrun
quanto à de Piaget, participa do processo, sem dominá-lo completamente,
como se poderia entrever de um sujeito transcendental. O sujeito é um dentre
outros elementos (embora principal) no “ajuste” das estruturas que emergem
na construção do conhecimento, inclusive do saber fazer. Debrun também observou essa semelhança entre o processo de adaptação tratado por Piaget e os
processos auto-organizados; sobre isso, diz-nos ele em seu artigo “Por que,
quando e como é possível falar em auto-organização?”, mais precisamente no
contexto em que ele trata do “ajuste”, que “[...] alguns verão no ajuste a expressão de uma dialética de assimilação e acomodação entre um sujeito (individual ou coletivo) e seu ambiente […] Seria uma solução ‘à la Piaget’. Mas, se
for o caso, podemos indagar: não será que já estamos lidando com auto-organização? Ou algo muito próximo, da mesma família que ela? Transfiramos para
frente a discussão desse ponto. O certo é que não pode se tratar de hetero-explicação” (Debrun,1996b, p.XXXV).
36
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
(1967),10 que os conhecimentos se apoiam “[...] constantemente nas
ações e nos esquemas de ação, fora dos quais não têm nenhum poder
nem sobre o real nem sobre a análise interior” (Piaget, 1973, p.40)
Em O nascimento da inteligência na criança, Piaget nos mostra
que essa continuidade é muito mais fundamental do que se possa
imaginar. Da organização biológica do sujeito às suas estruturas
mais abstratas do conhecimento não há uma separação, mas uma
continuidade profunda, progressiva, lenta e gradual. Sobre a continuidade, escreve o autor na obra:
A inteligência verbal ou refletida baseia-se [ao longo de um processo] numa inteligência prática ou sensório-motora, a qual se
apoia, por seu turno, nos hábitos e associações adquiridos para
recombiná-los. Por outra parte, esses mesmos hábitos e associações pressupõem a existência [de um processo a partir] do sistema
de reflexos, cuja conexão com a estrutura anatômica e morfológica
do organismo é evidente. Existe, portanto, certa continuidade
entre a inteligência e os processos puramente biológicos de morfogênese e adaptação ao meio. (Piaget, 1975b, p.13)
A constituição dos sistemas de esquemas de ação obedece a
uma lei fundamental de toda organização viva: a adaptação. Segundo Piaget, “[...] a adaptação é um equilíbrio entre a assimilação e
a acomodação” (idem, p.17, grifo nosso). Uma assimilação é, no seu
entender (ibidem, p.17-8), a incorporação dos dados do meio ex-
10. Segundo Piaget, o problema central de Biologia e conhecimento é o de procurar
“as relações entre as regulações cognoscitivas e as orgânicas em todas as escalas” (Piaget, 1973, p.22). Nesse sentido, sendo nosso estudo, no presente
livro, um estudo epistemológico das estruturas lógico-matemáticas, adotaremos esse livro de Piaget como uma das linhas condutoras de nosso trabalho,
pois entendemos, como Ramozzi-Chiarottino, que, “Em Biologia e conhecimento (1967), Piaget mostra muito claramente o alcance epistemológico dos
esquemas motores de ação e insiste igualmente e mais do que nunca sobre as
estreitas relações entre conhecimento, organismo e lógica” (Ramozzi-Chiarottino, 2010, p.16-7).
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
37
terno ao sistema de esquemas do sujeito. Os esquemas são modificados em função do meio externo, havendo, com isso, ajuste ou
acomodação dos esquemas. Assim, a acomodação é uma mudança
do sistema de esquemas de ação, ou seja, é um reajuste ativo para
melhor atingir os fins propostos pelo sujeito e, assim, melhor interagir com o meio que está sendo assimilado. Há, nesse sentido, uma
interdependência entre acomodação e assimilação e ambos decorrentes da atividade do sujeito-organismo em um processo equilibrado que constitui a adaptação.
Para Piaget, “[...] toda conduta tende a assegurar equilíbrio entre
os fatores internos e externos ou, mais em geral, entre a assimilação e
a acomodação” (Piaget, 2002, p.89). Diz-nos ele que o processo de
equilibração tem um enorme poder explicativo, e que o equilíbrio
“[...] não é uma característica extrínseca ou acrescentada, mas propriedade intrínseca e constitutiva da vida orgânica e mental” (idem,
p.88). Nesse sentido, um organismo que esteja em permanente desequilíbrio está seguramente em um estado patológico e, por outro
lado, um equilíbrio permanente pode significar uma “cristalização”
da própria vida. Assim, “a consideração dos problemas do equilíbrio
é, portanto, indispensável para a explicação biológica e psicológica”
(ibidem, p.89), em especial para as operações lógico-matemáticas
realizadas pelo sujeito psicológico, pois “[...] uma estrutura psicologicamente equilibrada é, ao mesmo tempo, uma estrutura logicamente formalizável” (Piaget, 1976, p.14). Segundo o autor “[...] tal é
o caso das classificações, das seriações e das correspondências no
campo concreto, e dos sistemas dedutivos no campo das proposições” (idem, p.14); em especial, se assim podemos dizer, o caso da
função proposicional, que estudaremos mais detidamente no capítulo 3 do presente livro.
Os conceitos de adaptação e equilibração são, também, importantes no pensamento piagetiano porque, segundo Lourenço,
Uma das tarefas fundamentais de Piaget foi, precisamente, identificar os mecanismos adaptativos que operam nos esquemas ou
padrões de ação e reconstituir o seu reaparecimento metamorfo-
38
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
seado nos conceitos e na ciência, essenciais para aperfeiçoar o âmbito adaptativo dos mecanismos orgânicos e da ação. (Lourenço,
2008a, p.251)
Notemos, então, que o estudo da inteligência, realizado por
Piaget no plano da psicologia, consiste em identificar esses “mecanismos” adaptativos que estão presentes em todos os níveis do desenvolvimento humano. Desse modo, a inteligência é vista por
Piaget como um tipo adaptação biológica e o conhecimento pode
ser visto, se assim o podemos dizer, como um “produto biológico”
da adaptação da inteligência à natureza.
No mais alto nível da inteligência, o da inteligência conceitual,
podemos dizer, nesse sentido, que a Filosofia e as ciências são o resultado da adaptação da espécie humana à realidade; diríamos, ademais,
que elas são, na concepção de Piaget, a adaptação mais bem-sucedida
da natureza. Isso implica dizer, então, que não há uma ruptura entre
natureza e homem, mas uma continuidade profunda entre Biologia e
Epistemologia; em especial, para nossos interesses no livro, entre
Biologia e o conhecimento lógico-matemático. Sobre o fato de a inteligência ser um caso de adaptação biológica ao meio, escreve Piaget,
em O nascimento da inteligência na criança:
[…] a inteligência é uma adaptação […] Afirmar que a inteligência é um caso particular da adaptação biológica equivale, portanto, a supor que ela é, essencialmente, uma organização e que a
sua função consiste em estruturar o universo tal como o organismo
estrutura o meio imediato. (Piaget, 1975b, p.15)
Em outra passagem, na mesma obra, o autor ainda nos diz:
O organismo adapta-se construindo materialmente novas formas
para inseri-las nas do universo, ao passo que a inteligência prolonga tal criação construindo, mentalmente, as estruturas suscetíveis de aplicarem-se às do meio. Num sentido e no começo da
evolução mental, a adaptação intelectual é, portanto mais restrita
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
39
do que a adaptação biológica, mas, prolongando-se esta, aquela
supera-a infinitamente […]. (Idem, p.15-16)
Nesse sentido, como resultado da evolução da inteligência, podemos entender que a ciência “[...] é a mais bela das adaptações do
organismo humano ao meio exterior”. (Piaget, 1950, p.112) e que
“a mais bela das adaptações ao meio que a vida realizou foi a adaptação do conhecimento à realidade” (Piaget, 1972 apud Lourenço,
2008a, p.251).
Em Biologia e conhecimento, encontramos uma passagem que
coloca em termos ainda mais claros essa relação entre Biologia e
Epistemologia,11 a saber:
[…] gradativamente, os sistemas cognoscitivos derivam uns dos
outros, e em última análise dependem sempre de coordenações
nervosas e orgânicas, de tal maneira que o conhecimento é necessariamente solidário com a organização vital em conjunto. (Piaget,
1973a, p.23).
De modo mais específico, Piaget entende que conhecer um objeto implica incorporá-lo aos esquemas de ação.
Dizer que todo conhecimento supõe uma assimilação e consiste
em conferir significações vem a ser, pois afinal de contas, afirmar
que conhecer um objeto implica incorporá-lo a esquemas de ação,
isto é verdade desde as condutas sensório-motoras elementares até
às operações lógico-matemáticas superiores. (Piaget, 1973a, p.17)
Assim, retomando a discussão sobre a originalidade da epistemologia proposta por Piaget, muito embora o seu pensamento
possa ser interpretado como um kantismo, na medida em que os
11. Relação esta que nos permite entender, mais precisamente, a caracterização
que Piaget atribui a sua epistemologia de “epistemologia biológica”; como
vimos no início deste capítulo (cf. Piaget, 1950, p.3).
40
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
esquemas condicionam nosso conhecimento das coisas, as heranças
das teorias biológicas do conhecimento e seus procedimentos metodológicos em Psicologia Experimental, permitem-nos conjecturar que, no fundo, Piaget “biologiza” Kant. Em outras palavras,
como nos indica Ramozzi-Chiarotino (1984, p.29), a teoria de
Piaget pode ser vista como um kantismo evolutivo. Os elementos
desse kantismo, na teoria piagetiana, levam Ramozzi-Chiarottino,
por exemplo, a entender “[...] a obra de Piaget como uma retomada
da problemática kantiana que se resolverá à luz da Biologia e da
concepção do ser humano como um animal simbólico” (Ramozzi-Chiarottino, 1984, p.29).
Assim, diferentemente de Kant, que parece tratar as categorias
como estruturas fixas, Piaget se inspira na Biologia e busca a gênese
de tais categorias, entendendo que algumas das questões (sobre
fatos) da Teoria do Conhecimento poderiam ser estudadas no nível
das observações empíricas. Nesse sentido, observa Lourenço que
“[...] o verdadeiro problema, segundo Piaget, não é se ou não os
esquemas existem, mas se ou não são fixos e imutáveis” (Lourenço,
2008a, p.249). Sobre isso nos diz, ainda, que
[...] [Piaget] se dá por tarefa, desde o início da sua carreira intelectual, “resolver o mais importante dos problemas reais da teoria do
conhecimento, o da fixidez ou da plasticidade [e historicidade]
das categorias da razão”, e vê que “a teoria do conhecimento podia
ser perspectivada no terreno da psicologia”. (Idem, p.249)
Como exemplo da concepção de Piaget sobre as categorias,
vejamos, em linhas gerais, qual é o tratamento que o autor dá a
duas de um conjunto de “grandes categorias da ação”:12 a do espaço
12. As grandes categorias da ação são os esquemas do objeto permanente, do espaço, do tempo e da causalidade (cf., por exemplo, Piaget, 1990, p.18-9), as
quais permitem o sujeito estruturar a sua realidade e a partir das quais surgem
os demais esquemas no sujeito, como os de velocidade, volume, densidade,
conservação da matéria, identidade, função etc.
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
41
e a da permanência do objeto. Em A Psicologia da Criança, diz-nos
(1990, p.18-9) que o sujeito constrói, no nível sensório-motor,
um conjunto de esquemas de ação práticos13 que lhe permitirá construir a noção de espaço progressivamente e que a constituição da
permanência do objeto no espaço é um dos caminhos decisivos
nessa direção. Segundo Piaget, em A construção do real na criança
(1937), “pode-se afirmar que a constituição da noção de objeto
é correlativa da organização do próprio campo espacial” (Piaget,
13. Os esquemas de ação práticos estão estritamente atrelados às ações sensório-motoras do sujeito, sem qualquer recurso, no início do desenvolvimento, à
representação cognitiva, principalmente pelo fato de este sujeito não dispor, no
nível sensório-motor, de tais representações. Ele desloca-se no espaço seguindo “padrões de deslocamento” que Piaget identificou serem muito semelhantes à noção de “grupo” matemático. Tendo em vista tais semelhanças,
Piaget desenvolve todo um estudo sobre os esquemas de ação práticos. Tomando emprestada a ideia matemática de “grupos práticos de deslocamento”
de Poincaré, Piaget vê nos esquemas de ação práticos verdadeiros “grupos práticos de deslocamentos”, cuja significação psicológica na criança é, em resumo,
assim apresentado por ele: “[...] a) Um deslocamento AB e um deslocamento
BC podem coordenar-se num único deslocamento AC, que ainda faz parte do
sistema; b) Todo deslocamento AB pode inverter-se em BA, donde a conduta
do ‘retorno’ ao ponto de partida; c) A composição do deslocamento AB e do
seu inverso BA dá o deslocamento nulo AA; d) Os deslocamentos são associativos, o que quer dizer que, na sequência ABCD, temos AB + BD = AC +
CD: isso significa que um mesmo ponto D pode ser atingido a partir de A por
caminhos diferentes (se os segmentos AB, BC etc., não estiverem em linha
reta), o que constitui a conduta do ‘desvio’, cujo caráter tardio se conhece ([…]
na criança, conduta compreendida pelos chimpanzés, mas ignorada das galinhas etc.)” (Piaget, 1990, p.21). Notemos, então, que “[...] a criança não percebe esses grupos nas coisas nem toma conhecimento consciente das operações
inteiramente motoras por meio das quais as elabora; portanto, os grupos permanecem totalmente ‘práticos’” (Piaget, 1970, p.95); esses grupos são vistos,
então, apenas do ponto de vista do observador e não do sujeito que pratica a
ação. Cabe observar, também, que os grupos práticos de deslocamentos,
podem ser vistos, como vimos, como uma álgebra das ações. Nesse sentido,
tais grupos formam um sistema de atos possíveis e realizáveis, em uma espécie
de “manipulação” virtual, não incorporado pelo sujeito apenas em uma situação concreta e específica, mas, sobretudo, incorporado por ele em situações
análogas ou semelhantes, formando um sistema de “atos virtuais” como um
todo, passível, inclusive, de formalização.
42
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
1970, p.93). Nesse sentido, escreve o autor, na mesma obra, que
“[...] a noção de espaço só se compreende em função da construção
dos objetos e será preciso começar por descrever a segunda para
se entender a primeira: somente o grau de objetivação que a
criança atribui às coisas nos elucida cabalmente sobre o grau de
exterioridade que confere ao espaço” (idem, p.94); por exemplo,
as percepções de formas, dimensões, distâncias, posições, perspectivas etc.
Desse modo, podemos notar, mesmo em linhas gerais, que a
categoria espacial será o resultado de uma construção contínua do
sujeito, na sua interação com o objeto em construção, que remonta
aos seus primeiros anos de vida. A crescente coordenação entre os
esquemas da permanência do objeto e do espaço, por exemplo, por
parte da criança, permite a ela construir a realidade que a cerca.
Nesse sentido, ainda em A construção do real na criança, diz-nos o
autor de um modo mais amplo: “A crescente coerência dos esquemas acompanha, paralelamente, a constituição de um mundo
de objetos e de relações espaciais, de causas e de relações temporais,
em resumo, a elaboração de um universo sólido e permanente”
(ibidem, p.8).
Assim, o sistema de esquemas de ação, constituído no nível
mais elementar do desenvolvimento, o período sensório-motor,
que é o nível prático da inteligência, “[...] organiza o real construindo, pelo próprio funcionamento, as grandes categorias da ação
que são os esquemas do objeto permanente, do espaço, do tempo e
da causalidade, subestrutura das futuras noções correspondentes”
(Piaget, 1990, p.18-9). Diz-nos ainda Piaget, que “nenhuma dessas
categorias existe no princípio e o universo inicial está inteiramente
centrado no corpo e na ação próprios, num egocentrismo tão total
quanto inconsciente de si mesmo (por falta de consciência do eu)”
(idem, p.19); em outras palavras, em linhas gerais, podemos dizer
que as categorias possuem uma gênese e se formam mediante um
crescente processo de descentralização do eu que envolve uma progressiva interação entre o sujeito e o meio objetivo que o cerca.
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
43
Diante do problema da fixidez ou da plasticidade (histórica)
das categorias da razão, do âmbito da Teoria do Conhecimento,
Piaget elabora a questão central da sua epistemologia:
Em lugar de se indagar o que é o conhecimento em geral ou como o
conhecimento científico (tomado também em bloco) é possível, o
que produz, naturalmente, a constituição de toda uma filosofia,
podemos limitar-nos, pelo método, ao problema “positivo”
seguinte: como aumentam os (e não o) conhecimentos? Por quais processos uma ciência passa de um conhecimento determinado, julgado depois insuficiente, a outro conhecimento determinado
julgado depois superior pela consciência comum dos adeptos desta
disciplina? Todos os problemas epistemológicos são então encontrados, mas na perspectiva histórico-crítica e não mais de improviso, nas de uma filosofia. É desta epistemologia genética ou
científica que falaremos aqui para mostrar quanto a psicologia da
criança é capaz de trazer-lhe concurso talvez não negligenciável
[…]. (Piaget, 1973, p.32-3, grifo nosso)
Esse problema, o de investigar “como aumentam os (e não o)
conhecimentos?”, embora amplo, pode ser considerado, se não o
cerne dos questionamentos epistemológicos piagetianos, ao menos
uma das questões epistemológicas centrais de sua obra. No viés
dessa questão, perguntar-se pelo como é se perguntar pelos processos constitutivos do conhecimento, ou seja, é se perguntar pela
gênese das estruturas que tornam possível o conhecimento humano
da realidade. Por isso, a epistemologia de Piaget é uma epistemologia em que se estudam as estruturas e as condições necessárias ao
conhecimento possível. A teoria de Piaget, por ser uma epistemologia que procura a gênese das estruturas necessárias aos conhecimentos no sujeito epistêmico, é designada por ele de Epistemologia
Genética.
Nesse sentido, a Epistemologia Genética visa ao conhecimento-processo e não o conhecimento-estado. Na perspectiva do
conhecimento-processo, parte-se do pressuposto de que o conheci-
44
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
mento está em construção e de que existe, portanto, uma historicidade. Ora, se existe uma historicidade, o conhecimento nunca é
estático e acabado, mas é passível de novas construções e reformulações, sendo, pois, a Epistemologia Genética, inclusive, parte importante desse processo histórico de construção do conhecimento.
O que nos permite dizer que a Epistemologia Genética não é um
estudo finalizado das noções científicas, mas um grande “pátio em
construção”.
Diz-nos Piaget, em Psicologia e Epistemologia (1970): “Essa
transformação fundamental do conhecimento-estado em conhecimento-processo, leva então a colocar em termos bastante novos a
questão das relações entre epistemologia e desenvolvimento ou
mesmo formação psicológica das noções e operações” (Piaget,
1973b, p.10). Pois, se todo conhecimento é um “vir a ser”, uma das
questões que se pode colocar em Epistemologia é a de saber, por
exemplo, como funcionam os processos desse “vir a ser” do conhecimento-processo. Nesse sentido, a Psicologia pode ter um papel
fundamental no estudo científico de como funcionam tais processos necessários ao conhecimento. É sobre a relação entre a Epistemologia e a Psicologia que trataremos na seção seguinte.
2. Relações entre a Psicologia Genética e a
Epistemologia Genética
Veremos, nesta seção, em que medida é possível uma relação
entre Epistemologia e Psicologia. Observaremos, em especial,
como Piaget propõe uma relação entre elas e como, a partir de um
ponto de vista metodológico, é possível, em particular, a relação
entre Epistemologia Genética e Psicologia Genética. No âmbito
dessa relação, veremos que Piaget não é bem compreendido, sendo
dada a ele a caracterização de “psicologista” por recorrer a uma psicologia na explicação dos conhecimentos, e, também, de “positivista”, por se utilizar, principalmente, do método científico nas
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
45
suas investigações epistemológicas e por não atribuir à Filosofia o
título de conhecimento propriamente dito, mas apenas o de “sabedoria”.
Segundo Piaget, não é difícil encontrar nas epistemologias
clássicas uma recorrência a uma psicologia. Para o autor (1973b,
p.10), as correntes empiristas, por exemplo, ao recorrerem aos
dados sensíveis na experiência, tratam de noções psicológicas como
percepções, associações, hábitos etc. Mas o problema é, segundo
ele, que essas filosofias não dispunham, ainda, de um método empírico rigoroso de investigação psicológica; método que surgirá
com o advento da Psicologia Experimental no século XIX, no contexto do desenvolvimento das demais ciências empíricas.
Na perspectiva piagetiana, sem o recurso da Psicologia Experimental, o estudo das noções psicológicas se torna apenas especulativo e não busca verificar as questões de fato, que são questões que
podem ser testadas na experiência e respondidas com métodos
científicos de verificação empírica. Nesse sentido, diz-nos: “Mas
como as filosofias empiristas e sensualistas, etc., nasceram bem
antes da psicologia experimental, contentamo-nos com essas noções do senso comum e de descrições principalmente especulativas” (idem, p.11).
O distanciamento dos métodos científicos de verificações empíricas é mais evidente, segundo Piaget, nas epistemologias consideradas platônicas, racionalistas ou aprioristas, pois “[...] cada qual
acreditou ter encontrado um instrumento fundamental de conhecimento estranho, superior ou anterior à experiência” (ibidem, p.11).
Tais epistemologias desvelam seus conhecimentos por intermédio
de especulações metafísicas e não compreenderam que algumas
questões pertenciam ao âmbito dos fatos; elas “[...] deixaram de verificar [o] que estava realmente à disposição do sujeito. Entretanto,
existe aqui, quer se queira quer não, uma questão de fato” (ibidem,
p.11).
Em vista disso, uma das novidades da Epistemologia Genética
é a de que ela recorre aos métodos científicos da Psicologia para
46
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
estudar as questões de fatos sobre os conhecimentos. A Epistemologia Genética se serve, em particular, da Psicologia Experimental
para compreender, cientificamente, como, por exemplo, nasce a
inteligência, na sua relação com o organismo biológico, e como se
constituem os níveis mais elementares das estruturas necessárias
ao desenvolvimento da inteligência. Notemos, então, que a Psicologia Experimental tem o papel metodológico de ir à experiência,
com métodos científicos rigorosos de investigação empírica. Uma
psicologia que adote essa posição e que, a partir dela, vise compreender, também, a gênese psicológica dos conhecimentos, é denominada pelo autor de Psicologia Genética.
A Psicologia Genética procura, segundo Piaget (1990, p.9), estudar a gênese dos elementos relativos aos grandes temas da Psicologia Geral, como a inteligência, a percepção, as operações etc. Na
medida em que a Psicologia Genética realiza esse estudo da gênese,
ela recorre, então, à Psicologia da Criança, pois,
[…] se todo conhecimento é sempre vir a ser e consiste em passar
de um conhecimento menor para um estado mais completo e mais
eficaz, é claro que se trata de conhecer esse vir a ser e de analisá-lo
da maneira mais exata possível. Entretanto, esse vir a ser não decorre do acaso, mas constitui um desenvolvimento e como não
existe, em nenhum domínio cognitivo, começo absoluto até o desenvolvimento, este mesmo deve ser examinado desde os estágios
denominados de formação […]. (Piaget, 1973a, p.12)
Nesse sentido, para estudar esse “vir a ser” ou o processo de
constituição dos nossos conhecimentos da forma mais exata possível, o “[...] método genético […] tende, assim, a conferir à psicologia da criança uma espécie de posição-chave nos domínios mais
diversos”, pois ele procura “[...] explicar as funções mentais pelo
seu modo de formação e, portanto, pelo seu desenvolvimento na
criança” (Piaget, 1990, p.9), por exemplo, o problema de saber se
os objetos da Lógica são inatos ou adquiridos e, também, o pro-
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
47
blema de compreender como se constituem as estruturas elementares da lógica e, nesse sentido, procurar quais são as relações dessas
estruturas com o pensamento “natural” em formação. Desse modo,
o sujeito do conhecimento que nos interessa neste livro não é,
apenas, o sujeito adulto, com as estruturas já construídas, mas
também e principalmente a criança, cujas estruturas estão em formação. É, pois, a criança que nos permite estudar os processos de
formação dessas estruturas e, a partir da compreensão desse processo, a possibilidade de compreensão da natureza geral de tais estruturas.
Segundo Piaget (1976, p.XVI), como já citado, é compreendendo o processo de formação das estruturas que se pode compreender como elas são, pois seus processos formadores nos
permitem melhor descobrir a natureza dos conhecimentos. Desse
modo, a criança é uma espécie de “matéria-prima” das investigações psicológicas e, por conseguinte, na perspectiva genética, das
investigações epistemológicas. De modo ilustrativo e um tanto
poético, no seu livro A Psicologia da Criança, o autor diz:
[…] se a criança apresenta grandíssimo interesse por si mesma, a
isso deve acrescentar-se, na verdade, o fato de que a criança explica o homem tanto quanto o homem explica a criança, e não raro
ainda mais, pois se o homem educa a criança por meio de múltiplas transformações sociais, todo adulto, embora criador, começou, sem embargo, sendo criança; e isso tanto nos tempos
pré-históricos quanto hoje em dia. (Piaget, 1990, p.9)
Notemos que, embora a Epistemologia Genética e a Psicologia
Genética tenham uma relação intrínseca, uma não se confunde com
a outra. Segundo Piaget, em Psicologia e Epistemologia,
A psicologia genética é a ciência cujos métodos são cada vez mais
semelhantes aos da Biologia. A epistemologia, em compensação,
passa, em geral, por parte da filosofia, necessariamente solidária a
48
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
todas as outras disciplinas filosóficas e que comportam, em consequência, uma tomada de posição metafísica. (Piaget, 1973b, p.32)
Podemos observar, portanto, que, com a análise de casos no
âmbito da Psicologia Genética, no que concerne às questões de fato
sobre o conhecimento humano, os estudos de Epistemologia Genética deixam, por um lado, o isolamento das ideias metafísicas para
assumir uma perspectiva com um certo controle. Por outro lado, a
partir dos resultados da Psicologia Genética, o epistemólogo genético pode se posicionar diante das questões de princípios da Filosofia, podendo trazer contribuições às questões clássicas da
Epistemologia e da Teoria do Conhecimento.14
Observemos que o espírito científico de Piaget não poderia se
limitar aos métodos especulativos da Filosofia tradicional, que,
embora pudessem trazer fecundas visões heurísticas em relação ao
conhecimento, inclusive na elaboração de hipóteses e de reflexões
sobre os conceitos e métodos de uma ciência, carecia de verificação
14. De uma lista extensa de obras produzidas por Piaget e sua equipe no Centro
Internacional de Epistemologia Genética, encontramos, em sua maioria, obras
com destacados “sabores” científicos e epistemológicos: A causalidade física
na criança (1927), O desenvolvimento das quantidades físicas na criança: conservação e atomismo (1941), A gênese do número na criança (1941), “Classes,
relações e números” (1942), O desenvolvimento da noção de tempo na criança
(1946), A noção de movimento e velocidade na criança (1946), A geometria espontânea na criança (1948), A representação do espaço na criança (1948), A Gênese da ideia de acaso na criança (1951), A gênese das estruturas lógicas
elementares (1959), Epistemologia do espaço (1964), Epistemologia do tempo
(1966), Epistemologia e Psicologia da Função (1968), Epistemologia e Psicologia
da Identidade (1968), As teorias da causalidade (1971), As explicações causais
(1971), A formação da noção de força (1973), A composição das forças e os problemas dos vetores (1973), Investigações sobre a contradição (1974), Investigações
sobre a generalização (1978), Investigações sobre as correspondências (1980),
entre outras obras não menos importantes, cujos muitos resultados científicos
obtidos são, como já frisamos, retomados e discutidos por Piaget diante das
ideias já presentes na tradição da História da Filosofia. Infelizmente, tais obras
são ainda pouco conhecidas no meio filosófico.
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
49
empírica, propiciada pelos métodos da Biologia e da Psicologia.
Nesse sentido, diz o autor:
[...] a primeira razão da minha nascente desafeição a respeito dos
métodos tradicionais da filosofia resultou do conflito, primeiro
sentido em mim mesmo, entre os hábitos de verificação, próprios
do biólogo e do psicólogo e a reflexão especulativa que me tentava
sem cessar, mas cuja impossibilidade de submetê-la a um controle
eu percebia cada vez mais claramente [...]. (Piaget, 1983b, p.76)
Nesse sentido, a Filosofia é vista por Piaget não como um conhecimento científico, decorrente de um método de controle empírico, mas um saber crítico, uma sabedoria. Sobre isso, escreve:
[...] a filosofia, de acordo com o grande nome que recebeu, constitui uma “sabedoria” indispensável aos seres racionais para coordenar as diversas atividades do homem, mas que não atinge um
saber propriamente dito, provido das garantias e dos modos de
controle que caracterizam o que se denomina “conhecimento”.
(Piaget, 1983b, p.67)
Ao assumir tal atitude metodológica, em busca de uma Epistemologia com “os pés fincados” na verificação empírica, sem, no
entanto, desvincular “a cabeça” das especulações filosóficas, Piaget
não nega o alto valor da Filosofia. Segundo ele, como já citamos:
“[...] deve-se mesmo reconhecer que todo homem que não passou
por ela [a Filosofia] é incuravelmente incompleto” (Piaget, 1983b,
p.68).
Tal posição metodológica faz com que, muitas vezes, Piaget
seja mal compreendido e receba o título de “positivista” e, também,
de “psicologista”.
Quanto ao título de “positivista”, escreve Piaget, na introdução de A Epistemologia Genética: “Em poucas palavras se encontrará nestas páginas a exposição de uma epistemologia que é
50
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
naturalista sem ser positivista” (Piaget, 1983a, p.5). A posição de
Piaget em relação ao positivismo fica mais evidente em uma das
passagens de sua obra Sabedoria e ilusões da Filosofia, em que ele
descreve um diálogo seu com o filósofo I. Benrubi, o qual o classificou de “positivista”. Sobre isso, escreve: “O filósofo I. Benrubi
escreveu uma espécie de relatório de conjunto sobre as correntes
filosóficas de língua francesa e deu-me a honra de citar meu nome,
sem discussão, mas classificando-me entre os positivistas” (Piaget,
1983b, p.80).
Relata Piaget que, na ocasião de sua conversa com o referido
filósofo, procurou argumentar que, se o positivismo é uma certa
forma de Epistemologia que ignora ou subestima a atividade do sujeito a favor apenas da constatação ou da generalização das leis
constatadas, então ele não pode ser compreendido como “positivista”, pois:
[...] tudo o que encontro mostra-me o papel das atividades do sujeito e a necessidade racional da explicação causal. Sinto-me bem
mais próximo de Kant ou de Brunschvicg que de Comte, e próximo de Meyerson que opôs ao positivismo argumentos que verifico sem cessar (posta à parte a identificação). (Idem, p.80)
Sobre essa passagem, comenta Ramozzi-Chiarottino:
Apesar desta e de tantas outras colocações autobiográficas, Piaget
tem sido classificado por muitos como “positivista”, provavelmente por ter vinculado o problema do conhecimento à observação dos fatos e ao mesmo tempo à Epistemologia. Entretanto,
como ele mesmo disse repetidas vezes, nada há em seu sistema de
“positivo” a não ser o ocupar-se de fatos positivos que, não obstante, refutam o Positivismo enquanto forma de epistemologia
que ignora ou substitui a atividade do sujeito em benefício apenas
da constatação ou da generalização de leis constatadas. (Ramozzi-Chiarottino, 1984, p.29)
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
51
Piaget é, também, mal intitulado de “psicologista” pelo fato de
ele, no exercício da Epistemologia Genética, recorrer à análise empírica da psicologia do sujeito. Para compreendermos o papel da
Psicologia no interior das abordagens teóricas e empíricas piagetianas, cabe ressaltar o seu papel metodológico. Escreve Lourenço
que
Piaget vira-se para a psicologia, porque era a disciplina que melhor poderia estabelecer a ligação entre a biologia e a epistemologia, as suas preocupações fundamentais – é uma ciência que,
tendo suas raízes na biologia, desemboca na inteligência e nas
formas cognitivas em que assenta toda a construção do conhecimento possível. (Lourenço, 2008, p.247-8)
Notemos que, segundo Piaget, “[...] se esse gênero de análise [a
Epistemologia Genética] comporta uma parte essencial de experimentação psicológica, de modo algum significa, por essa razão, um
esforço de pura psicologia” (Piaget, 1983a, p.4). Nesse sentido,
Furth, em Piaget e o conhecimento, comenta:
[...] Piaget estudou aquilo que é geral ou generalizável na estrutura cognitiva de um indivíduo; o objeto de sua investigação,
como ele afirma, é o homem como conhecedor em geral, ao invés
de um conhecedor singular, com uma individualidade singular.
(Furth, 1974, p.33)
Assim, em linhas gerais, a Epistemologia Genética visa ao sujeito epistêmico e não apenas ao sujeito psicológico, pois ela não se
confunde e não se reduz à Psicologia Genética. Escreve Piaget que
“o sujeito epistêmico (por oposição ao sujeito psicológico) é o que é
comum a todos os sujeitos, uma vez que as coordenações gerais de
ações têm um universal que é a própria organização biológica”
(Beth & Piaget, 1961, p.304-5, tradução nossa). Nesse sentido, a
Epistemologia Genética volta-se, de um modo mais amplo e abs-
52
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
trato, para o sujeito do conhecimento, chamado aqui, como dissemos, de sujeito epistêmico, e a Psicologia Genética estuda o
sujeito psicológico, o indivíduo, e procura fazer ciência sobre o que
há de comum a tais indivíduos ou sujeitos.
Um dos conhecimentos científicos que ocuparam Piaget durante sua vida, foi o conhecimento lógico-matemático, o que nos
leva ao assunto da próxima seção.
3. O Ensaio de Lógica Operatória no
contexto da Epistemologia Genética
Situamos, nesta seção, o Ensaio no contexto da Epistemologia
Genética, e apresentamos as ideias centrais discutidas nessa obra e
por que essa obra surgiu de uma segunda edição do Tratado.
No Ensaio, Piaget escreve que, em 1947, dirigiram-se a ele
para que escrevesse um tratado de Lógica e que, embora houvesse
estudiosos mais qualificados para escrevê-lo, eles se recusaram a
fazê-lo. Piaget aceitou tal empreendimento devido, principalmente, às necessidades crescentes da Epistemologia Genética, necessidades assim apresentadas por ele no Ensaio:
[...] o problema geral formulado pela epistemologia genética
sendo o de procurar descobrir a natureza dos conhecimentos em
função de seus mecanismos formadores, é evidente que deveríamos incluir neste programa a análise da constituição das estruturas lógicas. (Piaget, 1976, p.XVI)
Embora Piaget já tivesse publicado em 1942 um pequeno trabalho sobre “Classes, relações e números”, que continha um princípio de análise lógica da constituição dessas estruturas, ao ser
procurado para escrever um tratado, considerou a oportunidade de
apresentar suas ideias sobre tais estruturas de um modo mais completo e em um espaço mais amplo. Diante desse contexto, a obra
recebeu, então, inicialmente, na sua primeira edição, o nome de
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
53
Tratado de Lógica Operatória: ensaio de logística operatória, publicado em 1949.
Contudo, o resultado de tal empreendimento não foi propriamente um tratado de Lógica. O próprio Piaget (1976, p.XVI) nos
diz que a sua obra foi mal intitulada por ele mesmo de Tratado e
que sua verdadeira intenção, como ressalta, era o que já estava
enunciado no subtítulo: a realização de um ensaio de logística operatória.
As repercussões do Tratado, entre os especialistas, foram de
duas espécies, observa o próprio autor (1976, p.XVI). Um grupo
considerou legítimo o propósito de procurar as raízes das estruturas
lógicas nas operações do pensamento do sujeito, mas identificou
problemas na formalização de algumas estruturas. O outro grupo,
ao contrário, não aceitou a legitimidade do Tratado, entendendo
que este trazia um tipo de psicologismo em Lógica, e, também, criticou a pouca formalização presente na obra.
Diante da crítica dos especialistas, Piaget publicou uma segunda edição do Tratado, mas agora sob uma nova designação: Ensaio de Lógica Operatória, publicado em 1972. No Ensaio, ele
recebeu ajuda do lógico Jean-Blaise Grize, que o auxiliou na formalização, apesar de deixar em aberto a questão da formalização das
estruturas de agrupamento15 e outros problemas remanescentes
15. Segundo Grize (Piaget, 1976, p.90, nota 6), “a estrutura de agrupamento, que
Jean Piaget introduziu em 1941, revelou-se difícil de ser formalizada completamente. As tentativas feitas, até hoje, são ainda pouco satisfatórias, no sentido
de que todas comprometem, de uma maneira ou de outra, o pensamento de
Piaget”. Piaget, na Introdução ao Ensaio, nos dá algumas indicações de que o
problema da formalização da estrutura de agrupamento se deve, principalmente, à natureza de tal estrutura, isto é, devido a essa estrutura permanecer
muito mais arraigada ao conteúdo psicológico do que, propriamente, às estruturas lógico-matemáticas. Segundo o autor, “as dificuldades encontradas no
que concerne ao agrupamento podem, pois, ser interpretadas como uma razão
a mais para considerar esta estrutura como bastante elementar, donde, simultaneamente, sua pouca mobilidade (o que priva da generalidade própria às estruturas de nível superior que interessam ao lógico clássico e ao matemático) e
sua resistência à formalização” (idem, p.XIX). Entretanto, é “[...] interessante
54
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
que não trataremos aqui. Sobre essa segunda edição, observa
Piaget:
Tal ensaio foi recebido pelos especialistas com sentimentos
mistos, o que obriga, de um lado, a justificar por que alguns dentre
eles consideram-no importante o suficiente para solicitar o aparecimento de uma segunda edição e, por outro lado, por que o lógico
J. B. Grize, que se encarregou desta reedição, demonstrou sua dedicação e sua amizade aceitando até mesmo o ingrato trabalho de
revisar sua apresentação. (Piaget, 1976, p.XV)
Lembremos que o termo “ensaio” (Dicionário Aurélio) vem
do francês essai e quer dizer “[...] um estudo sobre determinado assunto, porém menos aprofundado e/ou menor que um tratado
formal e acabado”. Piaget, no Ensaio, além de refletir sobre questões amplas da Lógica, expôs, de modo didático e parcialmente
formal, as principais definições e noções relativas a esse domínio de
estudo.
Entendemos que, no Ensaio, Piaget não se propõe a escrever
um tratado, pois, um tratado pressupõe um estudo completo de um
determinado assunto, o que não condiz com sua visão sobre o conhecimento. Como pudemos notar na seção anterior, o conhecimento, para ele, é um conhecimento-processo e, em particular,
como veremos em detalhes na seção 1 do capítulo 2, a Lógica é
estudar tal estrutura e precisamente por causa de suas próprias lacunas, já que
ela constitui um termo de passagem, bastante estável e muito frequentemente,
entre as operações do pensamento natural e as que o lógico formaliza” (ibidem,
p.XIX). Nesse sentido, a natureza das estruturas de agrupamento nos dá “[...]
primeiro, uma confirmação do fato de que a formalização constitui um processo e não uma situação adquirida independentemente dos níveis considerados. Em segundo lugar, isso parece confirmar que, quanto mais uma
estrutura permanece próxima de seu conteúdo, menos fácil torna-se sua formalização” (ibidem, p.XVIII). Veremos na seção 1 do capítulo 2 que, para
Piaget, o conteúdo e a forma têm uma relação de dependência mútua e hierárquica, tal que um certo conteúdo pode ser forma em uma situação e vice-versa.
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
55
vista, assim como a Epistemologia Genética na seção 2 deste capítulo, como uma espécie de “pátio em construção”, pois
A formalização não termina por cima, já que não existe (ou ainda
não existe) lógica geral; ela é a fortiori incompleta por baixo, já que
as operações elementares originam-se de ações psicológicas exercidas sobre os objetos concretos, e que se deve cortar, pela raiz, a
“forma” de seu “conteúdo” vivo e diverso. (Idem, p.21, grifo do
autor)
O Ensaio constitui, assim, a visão do autor sobre o que é a Lógica, seu objeto e seu método de análise. Essa visão ampla da Lógica
envolve uma discussão de princípios realizada na Introdução da
obra. No corpo do Ensaio, o autor expõe as estruturas lógicas encontradas por ele em suas investigações empíricas, bem como suas
formalizações e o modo como elas se relacionam. A apresentação
dessas estruturas obedece à divisão às vezes utilizada nas disciplinas da Lógica, pois, na primeira parte, ele faz um estudo das
“operações intraproposicionais” e, na segunda parte, das “operações interproposicionais”.
A discussão sobre os princípios da Lógica nos interessa diretamente aqui, pois, entender como, no contexto da Epistemologia
Genética, o sujeito usa e se torna capaz de usar funções proposicionais, objeto de nossa investigação no presente livro, pressupõe um
posicionamento filosófico sobre a Lógica e uma discussão sobre
seu estatuto em relação às demais ciências, por exemplo, a Psicologia.
Decidimos, então, apresentar os propósitos gerais do Ensaio
seguindo, inicialmente, sua ordem de exposição, mostrando as discussões realizadas na Introdução e, em linhas gerais, como as divisões realizadas no interior da obra se articulam como um todo.
Como dissemos, o Ensaio é uma reedição do Tratado e surgiu,
assim como este, da necessidade de se compreender a relação entre
as formas lógicas e as operações elementares realizadas por um sujeito do conhecimento. O autor compreende, nesse sentido, as
56
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
formas lógicas a partir de um sujeito que estrutura e conhece a realidade, o sujeito epistêmico.
O interesse pelas estruturas desse sujeito epistêmico motivou a
formulação da questão central da obra, assim apresentada:
O problema que deu origem a este ensaio, é, pois, o de compreender como se constituem as estruturas elementares de classes,
de relações, de números, de proposições, etc., formalizadas com
toda independência e autonomia pelo lógico e de procurar quais
são suas relações com as “operações” do pensamento “natural”,
muito mais pobre e não formalizado. (Piaget, 1976, p.XV)
Embora se possa dizer que o problema é irrelevante para determinados contextos de análises, como uma análise em Lógica Matemática, por exemplo, em última instância, Piaget (1976, p.XV) nos
chama a atenção para um interesse mais amplo de análise, a análise
epistemológica. Nesse sentido, como ele nos indica, assim como a
Aritmética dos matemáticos saiu dos números “naturais” antes de
ser exposta por qualquer teoria formalizada e, também, assim como
Aristóteles extraiu sua silogística do pensamento comum, a partir
de uma reflexão da linguagem usual, não podemos negar que as estruturas lógico-matemáticas, formalizadas com toda a independência e autonomia pelo lógico, têm alguma relação com as
“operações” do pensamento “natural”, muito mais pobre e não formalizado.
Notemos, então, que o Ensaio surge da necessidade de compreender o processo de formalização das estruturas lógicas mais
elementares, pois, como já citamos, “a ideia central é a de que a formalização não é um estado, mas um processo, e que ela se apoia,
consequentemente, em estruturas que se elaboram segundo níveis”
(idem, p.XVII). Nesse sentido, dizer que a formalização não é um
estado é compreendê-la como uma construção formal das operações realizáveis pelo sujeito, não uma formalização das estruturas
prontas e acabadas, existentes em um mundo platônico, mas uma
formalização que é extraída do conteúdo vivo e histórico do sujeito.
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
57
Desse modo, segundo Piaget (1976, p.3), um bom método para
compreender como tais estruturas se relacionam entre si, segundo
níveis, seria compreender as etapas da própria formalização, isto é,
como as estruturas lógicas se ordenam das bases aos patamares superiores da hierarquia das estruturas do sujeito epistêmico. Sobre
isso, diz Piaget:
[...] podemos nos perguntar [...] se o melhor método para atingir o
formal em seus aspectos mais significativos não seria o de seguir
as etapas da própria formalização lógica: tratar-se-ia, portanto, de
partir do chão para chegar ao teto (o que evita, entre outras coisas,
a necessidade de postular a unicidade deste teto), em vez de pendurar os andares inferiores nos patamares superiores da construção. (Piaget, 1976, p.3)
Notemos que, até meados da década de 1940, essas ideias de
Piaget não haviam sido expressamente publicadas em um espaço
amplo. Embora ele já tivesse publicado O nascimento da inteligência
na criança, que data de 1936, A construção do real na criança em
1937 e A formação do símbolo na criança em 1945, obras consideradas fundamentais, entre outras não menos importantes, para
a compreensão dos primórdios da construção do funcionamento e
das estruturas da inteligência, ele ainda não havia publicado um estudo sobre as estruturas lógico-matemáticas. Como já indicamos,
apenas em 1942 (portanto, sete anos antes do Tratado), consta um
pequeno trabalho intitulado “Classes, relações e números” que, segundo ele (idem, p.XV), já continha um princípio de análise lógica
da constituição dessas estruturas.
Piaget inicia a Introdução do Ensaio reconhecendo a Lógica
como um domínio de estudo que conquistou a posição de uma
ciência propriamente dita e autônoma.
Reconhece-se hoje a validade de um axioma ou de um teorema de
lógica, independente das ideias que se possam ter sobre esta
mesma lógica formal considerada como disciplina geral. Tal fato
58
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
indica que a lógica conquistou a posição de ciência propriamente
dita, graças aos métodos precisos que substituíram os procedimentos simplesmente reflexivos e verbais da lógica clássica.
(Ibidem, p.1)
Sobre a tendência da Lógica em ser “pura” ou ainda “exclusivamente formal”, em oposição aos procedimentos verbais da
Lógica Clássica, diz-nos, ainda: “Que a lógica moderna tenha tendência a ser ‘pura’, quer dizer, exclusivamente formal, todos concordam sem dificuldade” (ibidem, p.3). No entanto, como observa
Piaget (ibidem, p.1), o consenso deixa de ser geral quando a discussão recai sobre as posições de princípio mais gerais assumidas
sobre a Lógica e, portanto, ao se escrever um ensaio de Lógica é
necessário discutir e delimitar, já no início, os pontos a serem abordados no que se refere à tomada de posições sobre os princípios da
Lógica.
Mas, como no caso de todas as ciências, inclusive das ciências dedutivas, o consenso deixa de ser geral quando se trata da significação a ser atribuída aos princípios, ou mesmo do objetivo a ser
atingido e dos métodos a serem seguidos. Eis por que, paradoxalmente, é necessário declarar de que se vai falar quando se empreende a tarefa de escrever um Ensaio de Lógica, e é indispensável
delimitar os métodos que se pretende usar. (Ibidem, p.1)
Piaget (1976, p.1) nos diz que haveria boas razões para inverter
essa ordem de apresentação do Ensaio: ao invés de começar expondo primeiramente os princípios e depois os resultados, poder-se-ia começar com os resultados e terminar por uma discussão de
princípios. Mas, como “[...] uma Introdução é sobretudo uma tomada de posição com referência aos trabalhos dos predecessores
dos quais se é devedor, mesmo quanto aos pontos de divergência, é
essencial insistir no fato de que a interpretação dos princípios da
lógica pertence aos próprios lógicos” (ibidem, p.1).
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
59
Piaget realiza, então, na Introdução ao Ensaio uma discussão
dos princípios da Lógica, abordando os seguintes pontos: (a) objeto
da Lógica; (b) a relação da Lógica com a Psicologia e a Sociologia;
(c) as fronteiras entre a Lógica e a Matemática; e (d) a definição e os
métodos da Lógica. Para nossos interesses, no presente livro, tratamos, no capítulo 2, dos itens (a), (b) e parte do item (d).
2
QUESTÕES E DISCUSSÕES DE
PRINCÍPIOS PRESENTES NO ENSAIO
Neste capítulo, na seção 1, apresentamos algumas das discussões de princípio acerca do objeto e da definição da Lógica Operatória, realizadas por Piaget no Ensaio. Fazemos, também, na seção
2, uma breve caracterização do psicologismo em Lógica a partir de
um ponto de vista piagetiano para, então, apresentar, na seção 3,
uma discussão, decorrente da repercussão do Tratado, entre Piaget
e o lógico Evert W. Beth (1908-1964) sobre a existência de um possível psicologismo.
1. Objeto e definição da Lógica Operatória
Introduzindo a discussão sobre o objeto da Lógica no Ensaio,
Piaget parte de um ponto que é, segundo ele, consenso entre os
lógicos, sejam eles de origem platônica, nominalista ou fisicalista:
o objeto da Lógica são enunciados suscetíveis de verdade ou de
falsidade.
Há um ponto sobre o qual todos os lógicos estão de acordo, seja
qual for a escola a que pertençam: é que a análise lógica trata de
certos enunciados suscetíveis de verdade ou de falsidade, ou, dito
62
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
de outra maneira, que o objeto da lógica refere-se ao verdadeiro e
ao falso. (Piaget, 1976, p.3)
Portanto, em uma primeira aproximação, poder-se-ia definir a
lógica como “[...] o estudo do conhecimento verdadeiro, considerado em suas formas mais gerais” (idem, p.3).
Mas, podemos nos perguntar: as outras ciências não têm,
também, como objeto de estudo o conhecimento verdadeiro, procurando distingui-lo do conhecimento falso na sua investigação?
Nesse sentido, será que o objeto da Lógica é o mesmo que o das
outras ciências?
Como Piaget considera o estudo dos diversos tipos de conhecimentos científicos reservado à Epistemologia, o autor faz um breve
paralelo entre o estudo realizado pela Epistemologia e o realizado
pela Lógica para compreendermos que tipo de conhecimento verdadeiro é o objeto de cada uma delas.
Diz que se pode estudar o conhecimento verdadeiro de perspectivas distintas, de acordo com o recorte do objeto para efeito de
estudo. Por conseguinte, escreve ele:
Pode-se, com efeito, estudar o conhecimento seja a título de relação entre o sujeito e o objeto, seja a título de forma pura, quer
dizer, referindo-se exclusivamente [...] a certas atividades do sujeito que implicam a distinção do verdadeiro e do falso. (Idem,
p.4)
Desse modo, tanto a Epistemologia quanto a Lógica têm como
objeto o conhecimento verdadeiro, mas o analisam distintamente.
A primeira estuda o conhecimento científico da perspectiva de um
sujeito situado no mundo e que interage com os objetos que estão
ao seu redor; e a segunda é um estudo das atividades internas realizadas pelo sujeito, não qualquer uma, mas as atividades que o sujeito realiza sobre certos enunciados suscetíveis de verdade ou de
falsidade.
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
63
Os enunciados, suscetíveis de verdade ou falsidade, de que
trata a Lógica, são chamados, por Piaget, de proposições, sendo
assim definidas no corpo do Ensaio:
Definição 1. – Chamaremos de “proposição” p, q, r, etc., os enunciados categóricos, verdadeiros ou falsos e afirmativos (positivos) ou
negativos. (Piaget, 1976, p.33)1
Enunciados categóricos são os que podem ser verdadeiros ou
falsos, excluindo-se, com isso, os demais enunciados, como os imperativos e os optativos, por exemplo, os quais não podem ser considerados com os mesmos valores que atribuímos aos enunciados
categóricos. Temos, assim, que Piaget está considerando o estudo
da lógica bivalente, na qual cada proposição recebe um de dois valores: o de veracidade ou o de falsidade.
Além dos valores de veracidade ou de falsidade que uma proposição pode receber em uma lógica bivalente, temos que uma
proposição, segundo a definição proposta, pode ser positiva ou negativa; por exemplo, “Este cravo é vermelho” é uma proposição
positiva e “Este cravo não é vermelho” é uma proposição negativa.
Piaget expressa as proposições positivas por p e as negativa por p̄.
Positiva ou negativa, as proposições podem ser ou verdadeiras ou
falsas, isto é, “Este cravo é vermelho” pode ser verdadeiro ou falso,
bem como o pode ser “Este cravo não é vermelho”.
As proposições podem ser encontradas isoladamente ou em
conjunto, sendo que, neste último caso, sequências de proposições
podem expressar um raciocínio lógico conhecido como argumento.
1. Notemos, ademais, que a proposição é apresentada como uma expressão ao ser
definida como um enunciado. No entanto, alguns manuais de Lógica convencionam chamar de proposição não a expressão propriamente dita, mas o sentido da expressão; com efeito, “Este cravo é vermelho” e “Vermelho é este
cravo”, por exemplo, seriam, segundo essa concepção, dois enunciados para
uma mesma proposição e não duas proposições distintas, como podemos entrever da definição de Piaget.
64
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
Com efeito, consideremos o exemplo simples de argumento que
pode ser tratado em Lógica, expresso pela sequência de proposições: “Se o gato mia alto, então ele tem fome”, “O gato mia alto”,
logo “O gato tem fome”. Notemos que, se aceitarmos as duas primeiras proposições do argumento como verdadeiras, então a
verdade da terceira decorre necessariamente das outras. Esse argumento, que foi dado a título de exemplo, é um caso particular da
regra de inferência conhecida, em Lógica, como modus ponens,
assim expressa simbolicamente: A → B, A ├ B.
Nesse e em outros casos semelhantes, notemos que, na relação
entre proposições, o lógico não está interessado na determinação da
verdade ou da falsidade das proposições, assim como se faz nas
ciências empíricas. Em linhas gerais, o cientista elabora proposições de modo hipotético e procura verificar, empiricamente, se a
sua hipótese corresponde aos fenômenos observados. Os resultados das observações apenas sustentam a hipótese e não a demonstram definitivamente. Já ao lógico interessa, por exemplo, se a
conclusão segue necessariamente das premissas aceitas previamente, isto é: se as premissas são verdadeiras, então a conclusão
segue necessariamente delas? Sobre o interesse particular da Lógica, escreve Piaget que o problema lógico trata “[...] apenas da validade interna dos sistemas de proposições, isto é, da maneira pela
qual uma proposição arrasta ou exclui outras” (Piaget, 1976, p.5).
Voltando ao exemplo supracitado, se nos perguntarmos sobre a
veracidade das proposições, então a proposição “Se o gato mia alto,
então ele tem fome” é falsa, pois sabemos que não é toda vez que, se
um gato mia alto, ele tem fome: ele pode miar para exigir a presença
do dono, por exemplo. Porém, em Lógica, como dissemos, simplesmente se assume que a proposição é verdadeira ou falsa para,
então, se realizar as inferências necessárias, independentemente de
sua veracidade empírica. O “se” é, assim, uma condicional que expressa a “libertação” da Lógica do objeto da realidade.
Essa libertação da Lógica, bem como sua preocupação com as
inferências, permite-nos compreender, de um modo amplo, por
que Piaget define a Lógica, como já citado, em primeira aproxi-
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
65
mação, como “[...] o estudo do conhecimento verdadeiro, considerado em suas formas mais gerais” (Piaget, 1976, p.3).
A partir daí, Piaget convenciona “[...] chamar de epistemologia
ao estudo do conhecimento enquanto relação entre o sujeito e o objeto, e reservar o termo de lógica para a análise formal do conhecimento” (idem, p.4, grifo do autor). Sobre isso, ainda nos diz o autor
que a Lógica “[...] estuda simplesmente o modo pelo qual os dados
são enunciados por proposições e como estas se encadeiam entre
elas: trata, portanto, de um domínio que permanece interior à atividade do sujeito” (ibidem, p.5).
Se o interesse da Lógica é por uma análise formal do conhecimento, segundo Piaget (1976, p.7), convém que determinemos em
que consiste essa forma, quer dizer, do que ela é a forma.
A noção de forma nos remete a uma noção correlata, a de conteúdo, pois, se ela é forma, ela o é de alguma coisa. No § 2 do capítulo I do Ensaio, o autor define forma e conteúdo nos seguintes
termos:
Definição 4. – O “conteúdo” de uma ligação operatória é constituído
pelos dados, ou os termos que os podem substituir, enquanto a
“forma” é o que permanece imutável no decurso de tais substituições.
(Ibidem, p.37-8)
Um dos exemplos dados por Piaget (1976, p.37) é o seguinte: a
“construção” (p ⊃ q) . (q ⊃ r) → (p ⊃ r). Neste exemplo, o símbolo
“⊃” expressa uma implicação entre proposições individuais designadas por ele de p, q e r, já o símbolo “→” também expressa uma
implicação não entre proposições individuais, mas relacionado a
uma sequência de proposições, isto é, as proposições antecedentes
(p ⊃ q) e (q ⊃ r) e as consequentes (p ⊃ r), ou seja, é uma implicação
associada a um argumento e não entre proposições individuais. O
primeiro tipo de implicação é chamado de implicação material e o
segundo de implicação formal, pois eles desempenham o papel de
conteúdo e forma respectivamente. Em outras palavras, a implicação formal é uma construção mais geral que permanece imutável
66
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
conforme a substituição das proposições individuais no seu interior. Poderíamos substituir as proposições p, q e r por a, b e c que a
validade da implicação formal permaneceria a mesma. Ou seja, em
ambos os casos, com p, q e r ou com a, b, c: “se os antecedentes são
considerados verdadeiros, então a conclusão tem que ser considerada verdadeira”.
Mas, a mesma implicação material p ⊃ q, que é conteúdo nesse
caso, pode não o ser em outros casos como o que ocorre no exemplo
p1 ⊃ q1, em que p e q foram substituídas por p1 ⊃ q1. Nesse sentido, p ⊃ q expressa a forma de uma implicação. Nota Piaget que
“[...] tal implicação material particular permanecerá conteúdo enquanto ela desempenhar o papel de dado, mas ela assumirá o nível
de forma pelo fato de que se pode construí-la” (idem, p.37).
Por sua vez, as proposições específicas, como p e q, por
exemplo, podem ser uma construção de elementos mais simples. A
forma proposicional p pode significar “x é um A” e q significar “x é
um B”, por exemplo, tal que A e B expressem duas classes em que
A está incluído em B (A ⊆ B), pois, se x pertence a A, então x pertence a B, logo A está incluído em B. Nesse caso, temos, então, que
a implicação material p ⊃ q não é mais conteúdo, mas exprime a
relação que existe entre um elemento x pertencer a A e o mesmo
elemento x pertencer a B, indicando a inclusão de A em B. A implicação p ⊃ q será, portanto, forma com relação a um conteúdo de
nível inferior, indicados, aqui, pela pertinência de x a A e de x a B.
Essa sequência de exemplos nos ajuda a entender que a ligação
entre conteúdo e forma constitui uma dependência mútua e hierárquica. É “dependência mútua”, pois forma e conteúdo são correlativas. Nesse sentido, escreve Piaget que “[...] a forma e o conteúdo
lógicos das ligações operatórias são relativos um ao outro e, por
conseguinte, indissociáveis” (ibidem, p.38). É “hierárquica”, pois
uma forma de nível inferior pode ser conteúdo de uma forma de
nível superior e assim sucessivamente.
Cada uma dessas ligações de dependências mútuas e hierárquicas, passíveis de desempenhar concomitantemente o papel de
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
67
forma e conteúdo, é designada por Piaget como estrutura, sendo
assim definida:
Definição 5. – Chamaremos de “estrutura” toda ligação lógica suscetível de desempenhar, alternativa ou simultaneamente, o papel de
forma e de conteúdo. (Piaget, 1976, p.38)
Há termos, porém, que desempenham, segundo o autor,
apenas o papel de conteúdo; Piaget chama esses termos de conteúdos extralógicos, o qual é definido do seguinte modo:
Definição 6. – Chamaremos de “conteúdo extralógico” os termos que
só podem desempenhar o papel de conteúdos. (Idem, p.38)
Mas, poderíamos nos perguntar: que termos são esses que desempenham apenas o papel de conteúdo? Existem conteúdos que
permanecem sempre conteúdos e dos quais não se podem determinar formas? Se existem tais conteúdos, então seriam eles a correspondência da Lógica com a realidade física ou psicológica?
Diz-nos Piaget que, na perspectiva da hierarquia das estruturas, “[...] os qualitativos de dado ou extralógico não significam,
de modo algum, que se atinjam assim os próprios elementos primeiros, seja do ponto de vista físico ou psicológico, seja do ponto
de vista lógico” (ibidem, p.44). O conteúdo extralógico recebe essa
designação por ser o que ainda não foi formalizado. Sua não formalização não indica que ele seja o conteúdo mais elementar e impossível de ser formalizado na hierarquia das estruturas, mas que é
suscetível de encontrar formalizações posteriores, podendo ocorrer
que sejam encontradas novas formalizações no dado, considerado
extralógico. Com base em um exemplo citado pelo autor (cf. 1976,
p.44), ilustremos a noção de conteúdo extralógico: imaginemos que
sejam encontradas pedras vermelho-púrpura na natureza, perfazendo um modelo de pedra nunca antes visto, sendo que tal pedra
tenha sido chamada de “pedra única”. Mas que, depois de algumas
68
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
análises laboratoriais, sejam encontradas pequenas diferenças entre
essas pedras, por exemplo, padrões geométricos, refração da luz e
densidade. Cada uma das pedras, que perfaziam o modelo da
“pedra única” e que inicialmente pareceriam ser idênticas, passa,
então, a receber nomes individuais segundo um padrão de classificação mais detalhado, resultando uma nova classificação. Esse
exemplo ilustra que, assim como a “pedra única”, o conteúdo extralógico é, também, assumido como dado enquanto não se encontram novas construções que o tornem suscetível de classificações
mais minuciosas ou de formalizações.
Nesse sentido, segundo Piaget (1976, p.20), é difícil saber qual
operação elementar interessa mais à dedução lógica. Como observamos acima, o conteúdo extralógico não é definitivo, pois se pode
formalizá-lo a partir da fixação de novos caracteres formais conforme a decomposição dos conteúdos em dados mais elementares.
Isso ocorre, segundo o autor, pois os mais diversos tipos de relações
são em número ilimitado, sendo difícil fixar qual relação é mais
formal e de interesse da Lógica e qual não é. Sobre isso, escreve o
autor: “[...] os diversos tipos de relações sendo, sem dúvida, em número ilimitado, não se sabe onde fixar os limites de seus caracteres
formais mais gerais, e é possível distinguir caracteres especiais cada
vez mais diferenciados” (idem, p.20).
O conteúdo extralógico não é, portanto, um conteúdo definitivamente dado, mas passível de futuras formalizações: “[...] que o
sistema das estruturas está, portanto, sempre aberto para baixo,
quer dizer, suscetível de dar origem a análises ulteriores mais refinadas e a novas formalizações de conteúdos até então considerados
como dados e extralógicos” (ibidem, p.44).
Ora, se o sistema de estruturas é aberto por baixo, seria ele,
também, aberto por cima? Segundo Piaget, “[...] esse conjunto de
operações [...] permanece, por sua vez, aberto, mas por baixo, pois
não se sabe por antecipação a partir de que limite elas interessam à
dedução” (ibidem, p.20).
Em suma, cada estrutura é ao mesmo tempo forma, isto é, uma
construção abstrata com referência aos dados inferiores, e con-
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
69
teúdo, que é um dado que se aplica à forma. Já os conteúdos extralógicos são dados não formalizados, mas que podem vir a sê-lo. Do
ponto de vista da análise das atividades do sujeito epistêmico, a
noção de formal, que caracteriza a Lógica, depende, assim, dessa
relação mútua entre forma e conteúdo e da hierarquia das estruturas construída pelo sujeito.
Ora, se a Lógica, em primeira aproximação, é o estudo do conhecimento formal considerado em suas formas mais gerais, e visto
que o formal nos remete às estruturas lógicas, então a questão que
fica é de saber qual é a natureza de tais estruturas, já que, aparentemente, elas não têm correspondência com a realidade empírica,
pois o conteúdo extralógico é sempre passível de formalização.
Seriam elas simples regras sintáticas, de tal modo que cada
estrutura se correlacionaria com outra conforme uma regra de
composição de signos? Segundo essa concepção, conhecida como
concepção nominalista, a Lógica seria um jogo de regras sintáticas
reduzidas simplesmente ao plano dos signos e não teria uma correspondência semântica. Mas será que é possível mover ou operar
sobre signos sem fazer referência a uma significação?
No entender de Piaget, um signo implica sempre um correspondente semântico, pois,
[...] mesmo reduzindo as formas lógicas ao nível de puros signos,
há a considerar que um signo implica sempre uma significação e
que o próprio jogo formal, independente de qualquer referência a
seu conteúdo, é um sistema de significações distintas, já que implica valores verdadeiros e falsos (ou positivos e negativos).
(Piaget, 1976, p.8)
O lógico, desse modo, quando trabalha com proposições, trabalha com o correspondente semântico de cada uma delas, que são
os valores de veracidade ou de falsidade, seja nas ligações de composição, seja nas de decomposição das proposições. Tomemos o
caso, por exemplo, da decomposição de simples proposições como
“Este cachorro é animal”. É possível obter por decomposição os
70
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
elementos “este cachorro” (sujeito) e “é animal” (o predicado). Podemos, então, substituir “este cachorro” por “este vírus” e, nesse
caso, temos a proposição “Este vírus é animal”, que é, evidentemente, falsa. Portanto, a substituição no interior da proposição nos
permite relacionar seus elementos e trabalhar com seus valores de
verdade ou de falsidade.
Por outro lado, podemos realizar operações entre as proposições, compondo assim proposições mais complexas. Em específico,
proposições como “O gato está magro” e “O gato está doente”
podem ser combinadas por uma conjunção “O gato está magro e
doente”. Se atribuirmos todos os valores possíveis para essas proposições, em uma lógica bivalente, podemos, então, trabalhar com
os valores verdadeiro e falso em todas as suas combinações possíveis. Isso resulta em uma combinação de valores de veracidade e de
falsidade para a conjunção, tal que ela é verdadeira se, e somente se,
as proposições “O gato está magro” e “O gato está doente” forem
ambas verdadeiras, pois a conjunção nos diz que ambas ocorrem ao
mesmo tempo; em todos os outros casos de atribuição de valores, a
proposição será falsa. Notemos, assim, que, no caso das operações
entre proposições, compomos novas proposições a partir de proposições simples, de tal forma que podemos trabalhar com seus correspondentes valores de veracidade ou de falsidade.
Assim, através das operações realizadas sobre ligações no interior ou entre as proposições, podemos compô-las ou decompô-las,
resultando em novas proposições. Ora, escreve Piaget que, “se chamamos de ‘operações’ às atividades intelectuais que compõem ou
decompõem tais ligações, podemos então considerar as estruturas
lógicas como exprimindo as operações do pensamento” (Piaget,
1976, p.9). Aqui o autor nos chama a atenção para a noção de operação e sua importância como atividade que é realizada por um sujeito. A operação, em particular, é definida no § 4 do capítulo I do
Ensaio:
Definição 10. – Chamaremos de “operação” a transformação reversível de uma estrutura (definição 5) em uma outra, seja por modifi-
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
71
cação da “forma”, seja por substituição referente ao conteúdo.
(Idem, p.53)
Uma transformação reversível, como nos diz Piaget (1976,
p.14-5), é a possibilidade de desenvolver uma ação não apenas em
um sentido, mas também no sentido contrário. Em outras palavras,
é a possibilidade de coordenar uma ação a, que parte de um estado
A e resulta no estado B, com uma ação b, que parte do estado B e
resulta no estado A, de forma a anular a ação, resultando a inversa
dessa coordenação. Voltando ao exemplo da implicação formal e
material, dada a implicação formal (p ⊃ q) . (q ⊃ r) → (p ⊃ r), uma
ação reversível é a possibilidade de decompor essa implicação em
proposições antecedentes (p ⊃ q) e (q ⊃ r) e consequentes (p ⊃ r) e
realizar a ação inversa, de composição dessas proposições para
constituir novamente a implicação formal. A reversibilidade permite, assim, ao sujeito uma maior mobilidade em seu sistema de
esquemas de ação, que deixa de oferecer apenas caminhos únicos, e
é uma das condições necessárias para o pensamento operatório. Segundo o autor, “[...] é esta composição reversível que transforma as
ações simples em operações propriamente ditas” (idem, p.14-5).
Em especial, podemos realizar dois tipos de transformações reversíveis: as de composição e de decomposição das proposições.
Piaget as denomina, cada uma delas, de operações interproposicionais e operações intraproposicionais. Cada uma delas é definida pelo
autor no §1 do capítulo I do Ensaio, nos seguintes termos:
Definição 2. – Será chamada de “operação interproposiconal” toda
composição que permite construir, por meio de proposições quaisquer,
p, q, r, das quais se conhecem apenas os valores de verdade ou de
falsidade, outras proposições bem determinadas e caracterizadas respectivamente pelas diversas combinações possíveis destes únicos valores de verdade. (Ibidem, p.32)
Definição 3. – Chamaremos de “intraproposicionais” as operações
que permitem decompor uma proposição em elementos (esta decom-
72
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
posição podendo ser levada a graus variáveis), e construir novas
proposições determinadas pelas transformações destes elementos; os
valores verdadeiros e falsos das proposições assim engendradas resultam então das combinações entre os próprios elementos. (Ibidem,
p.33)
Vemos, portanto, que, seja no aspecto interproposicional seja
no aspecto intraproposicional, a noção de operação aparece como
uma noção que, segundo Piaget (ibidem, p.10), se aplica a todos os
elementos lógicos. Elas são “[...] duas categorias de operações cujo
estudo divide toda a lógica” (ibidem, p.31).
Nessa perspectiva, pelo que vimos até agora, podemos compreender a segunda definição de Lógica, em nível mais aproximado, proposta por Piaget: “A lógica seria então, em segunda
aproximação, a teoria formal das operações do pensamento”
(ibidem, p.9), pois é “[...] o conjunto das operações do pensamento
que a lógica tem obrigação de formalizar, se pretende chegar a uma
teoria exaustiva da coerência formal” (ibidem, p.10).
Notemos, porém, que as operações do pensamento, objeto da
Lógica, não são quaisquer operações intelectuais, mas são as operações realizadas de modo inferencial, isto é, de modo dedutivo sobre
proposições. Nesse sentido, podemos dizer que as operações do
pensamento que a Lógica estuda são as deduções realizadas sobre
as proposições. Desse modo, o autor propõe a última definição de
Lógica:
[...] podemos defini-la [a Lógica], numa terceira aproximação,
como a teoria formal das operações dedutivas. (Ibidem, p.19)
Do ponto de vista da hierarquia das estruturas podemos nos
indagar até que grau de sucessão superior é possível alcançar? Isto
é, até que ponto podemos fixar formas cada vez mais gerais ou
obter a forma de todas as formas? Depreende-se desses questionamentos uma questão mais específica: haveria uma Lógica geral?
Para Piaget (ibidem, p.20) até que não se demonstre a existência de
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
73
uma Lógica geral, isto é, de um sistema de inferências que abranjam
todos os outros campos da Lógica, a hierarquia das estruturas permanece, pois, aberta por cima.
Nesse sentido, as operações permanecem ilimitadas por cima
da hierarquia, e, como vimos, ela também permanece aberta por
baixo. Sobre essa dupla abertura, por cima e por baixo, ainda nos
diz Piaget:
A formalização não termina por cima, já que não existe (ou ainda
não existe) lógica geral; ela é a fortiori incompleta por baixo, já que
as operações elementares originam-se de ações psicológicas exercidas sobre os objetos concretos, e que se deve cortar, pela raiz, a
“forma” de seu “conteúdo” vivo e diverso. (Piaget, 1976, p.21)
O fato de serem abertas por cima e por baixo indica que as estruturas lógicas não são, na visão do autor, estruturas fechadas e
acabadas. Sempre é possível obter novas formalizações no interior
da hierarquia das estruturas, pois a relação entre forma e conteúdo
é mútua e compõem, até que não se descubra uma Lógica geral ou
um conteúdo extralógico definitivo, uma construção sucessiva e ilimitada na hierarquia. Sobre isso, escreve Piaget: “[...] o ‘formal’,
que caracteriza a lógica, não é uma qualidade dada [fechada e acabada], caracterizando um estado, mas a expressão de um processo
ou de um movimento de formalização [semelhante a um organismo
vivo]” (idem, p.21)
Esse processo que caracteriza o “formal” e, inclusive, as estruturas, é mais bem compreendido quando se pressupõe que há um
sujeito que conhece e realiza a ação de operar sobre elas. Nesse sentido, não seria demais afirmar que, para Piaget, as estruturas lógicas são como as de um “sistema vivo” que fazem parte da
construção da realidade realizada pelo sujeito do conhecimento. E,
quando o lógico as estuda, busca nelas a formalização necessária
para a compreensão das operações dedutivas que realizamos sobre
as proposições. No entanto, tais formalizações “cortam”, como nos
diz o autor na passagem supracitada, as operações formais do con-
74
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
teúdo vivo das ações psicológicas e físicas exercidas pelo sujeito
sobre os objetos e são, com isso, fixadas e estagnadas para o estudo
da Lógica. O lógico, assim, trata de fixar as estruturas como estáticas e se livra das influências externas dos conteúdos extralógicos
para, então, formalizar as deduções necessárias. O recorte da realidade feito por ele se restringe às operações dedutivas realizadas
sobre proposições.
Nesse sentido, “a definição de lógica, que acabamos de aceitar,
designa, na realidade, apenas um ideal: a lógica é de fato a teoria,
não formal (em estado acabado), mas formalizante ou formalizadora das operações dedutivas” (Piaget, 1976, p.21). Assim, se as
estruturas lógicas são um processo contínuo de construção realizada por um sujeito e se a Lógica é, de fato, uma teoria formalizante
ou formalizadora das operações dedutivas, então só podemos defini-la, segundo Piaget, em aproximações, pois a Lógica é um conhecimento que está em constante construção.
Embora para Piaget a Lógica seja um edifício em construção,
muitos lógicos, segundo ele (idem, p.21), idealizam-na como o reflexo de ideias eternas e imutáveis. Nesse edifício do conhecimento,
todos os lógicos, na visão do autor, usam o mesmo material de
construção e conseguem encontrar as mesmas vigas mestras da armação que dá equilíbrio e sustentação para toda a estrutura lógica.
Porém, diz-nos Piaget, há certas tendências que dividem os lógicos
nessa grande empreitada e os obrigam a seguirem caminhos distintos:
[...] segundo as tendências que forçam o lógico a partir de cima, da
base, ou dos níveis médios da hierarquia das formalizações, ele
acabará por dar uma imagem bem diversa do edifício total, embora fazendo uso das mesmas pedras, das mesmas fachadas e encontrando, cedo ou tarde, as mesmas vigas mestras. (Ibidem,
p.21)
Podemos entender que tais tendências são escolhas de princípio que o lógico faz e que determinam sua visão do que seja a Ló-
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
75
gica. Conforme seus princípios, alguns lógicos criam a convicção
de que partir de cima é o melhor método, pois é a partir dos níveis
superiores que se podem encontrar as leis necessárias e universais
do pensamento; nessa perspectiva, a Lógica seria um reflexo das
estruturas eternas e imutáveis previamente existentes, posição classificada, em geral, como “platonismo”. Outros, pelo contrário,
partem dos níveis mais inferiores e procuram compreender a Lógica como um pátio em construção, como é o caso de Piaget.
Piaget parte do princípio de que um bom método para compreender os aspectos mais significativos das estruturas lógicas não
é postular a existência do teto do edifício, isto é, pressupor que
preexistem estruturas eternas e imutáveis, mas sim postular as
bases do edifício, isto é, que existe um sujeito epistêmico que estrutura a realidade logicamente e é possível estudar como ele constrói
seus conhecimentos estruturais. Segundo Piaget, como já citado,
“[...] tratar-se-ia, portanto, de partir do chão para chegar ao teto (o
que evita, entre outras coisas, a necessidade de postular a unicidade
deste teto), em vez de pendurar os andares inferiores nos patamares
superiores da construção” (Piaget, 1976, p.3). Notemos que, segundo o próprio autor, “[...] sua preocupação essencial não é nem
fisicalista, nem matemática, mas consiste em querer esclarecer o
mecanismo real do pensamento e, especialmente sua reversibilidade, pela análise das estruturas formais correspondentes” (idem,
p.25)
Mas, mesmo concordando que é legítimo realizar um projeto
de investigação que esclareça o funcionamento real do pensamento
pela análise de suas estruturas formais correspondentes e, também,
“concordando que a lógica trata do próprio pensamento, resta a
considerar que o programa de uma ‘ciência das leis do pensamento’
conflita com o de uma parte da psicologia, que é a psicologia do
pensamento” (ibidem, p.2). Esse conflito nos insere no quadro do
debate tradicional que há, na história da Filosofia, sobre o problema do psicologismo em Lógica. Resta, pois, saber como Piaget
coloca o problema do psicologismo em relação à tradição, como
esse problema é solucionado a partir da relação entre Lógica e Psi-
76
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
cologia proposta por ele no contexto da Epistemologia Genética. É
o que veremos nas próximas seções.
2. Uma caracterização do psicologismo em Lógica
Procuramos formular, nesta seção, o problema do psicologismo em Lógica e apresentamos, também, a visão piagetiana sobre
esse problema.
De modo geral, há diversas tendências do psicologismo. Vamos
nos utilizar, inicialmente, da caracterização de José Ferrater Mora
que nos diz que elas podem ser resumidas em três grupos muito
semelhantes. Uma das tendências considera a Psicologia como o
conhecimento que explicaria todos os outros conhecimentos; por
essa corrente, argumenta-se que, se todo conhecimento é um conhecimento elaborado pelo homem e se esse homem é objeto de
uma psicologia, então essa psicologia seria a pedra base que fundamentaria a árvore do conhecimento, pois seria o conhecimento do
conhecimento. Outra tendência consiste na tentativa de explicar a
formação dos conceitos por meio de uma concepção psicológica. E,
por fim, existe “a tendência a ‘reduzir’ a lógica e a teoria do conhecimento à psicologia, ou então a tratar as noções lógicas e epistemológicas principalmente por meio de conceitos de caráter psicológico”
(Ferrater Mora, 2001, p.2.414).
Segundo Ferrater Mora, historicamente, o chamado “psicologismo” tornou-se mais conhecido na última acepção. Nesse sentido, o psicologismo tende a estudar a Lógica, em particular, como
a ciência do pensar ou dos pensamentos. Segundo as características
gerais dessa tendência, se as leis da Lógica são igualmente leis do
pensamento e se um dos objetos da Psicologia são as leis do pensamento, então a Lógica é um dos objetos da Psicologia, pois estaria
“reduzida” aos conceitos e métodos dessa ciência (ibidem, p.2.414).
Observa o mesmo autor que essa tendência se inclinava ou se
inclina, de modo geral, a estudar a Lógica como a ciência do pensar
ou do pensamento, seguindo duas tendências: uma tendência des-
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
77
critiva dos fatos do pensamento, por exemplo, descrevendo os
juízos, os raciocínios, os conceitos etc., isto é, como se pensa; ou
segundo uma tendência prescritiva e normativa, investigando
como se deve pensar (Ferrater Mora, 2001, p.2.414).
Notemos, então, que há uma relação muito próxima entre Lógica e Psicologia, a ponto de algumas tendências de pensamento
reduzirem uma à outra, sem necessidade de uma separação metodológica. Na visão de Piaget (1958, p.53), em Psicologia da Inteligência, as relações entre esses domínios percorre uma trajetória
parecida com a trajetória percorrida pelas discussões em torno do
conflito entre a Geometria Dedutiva e a Geometria Física: “Como
é o caso dessas duas disciplinas [a Geometria Dedutiva e a Geometria Física], a lógica e a psicologia do pensamento começaram por
se confundir ou por se indiferenciarem” (idem, p.53). Inicialmente,
a Lógica e a Psicologia eram, na sua visão, conhecimentos interligados, não havendo necessidade de uma diferenciação entre elas.
Piaget também comenta no Ensaio, que, já desde Aristóteles,
na ausência de uma axiomática estrita, construiu-se uma Lógica
muito próxima a uma Psicologia e a uma Sociologia. Diz-nos o
autor que Aristóteles sistematizou uma Lógica que emergiu de
suas observações da natureza e da polis grega, isto é, uma Lógica,
como nos diz Piaget, que não saía dos quadros da Psicologia, da
Sociologia ou, de um modo mais amplo, uma Lógica inserida em
uma Ontologia. Escreve Piaget que os princípios elaborados pela
Lógica Clássica, “[...] tais como os da não-contradição, o de identidade ou o do terceiro excluído foram formulados não a título de
axiomas de início de uma construção formal autônoma, mas a título
de axiomas de ‘fatos normativos’ observados na consciência individual ou coletiva” (Piaget, 1976, p.12)
Segundo Piaget (1958, p.53), já mais recentemente, quando a
Psicologia se constituiu em uma ciência independente, muitos psicólogos procuraram esclarecer o funcionamento psicológico da inteligência tomando como referência as noções de conceito, juízo,
raciocínio, dedução, indução etc., comumente estudados nos manuais de Lógica. Desse modo, “por um efeito apenas residual de
78
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
indissociação primitiva, continuaram [os psicólogos] a considerar a
lógica como uma ciência da realidade. Situaram-na, apesar de seu
caráter normativo, no mesmo plano da psicologia” (Piaget, 1958,
p.54). Sobre a constituição da Psicologia como ciência independente, diz-nos Júlio Fragata, em uma seção dedicada ao psicologismo e ao antipsicologismo de um livro seu sobre Husserl, que
As ciências experimentais atingiram, na última metade do século
XIX, um apogeu que provocou entusiasmo geral. Entre elas, começou a atrair a atenção a Psicologia Experimental que, devido ao
seu método de reflexão introspectiva, naturalmente se propunha
também à particular consideração dos que se dedicavam à Filosofia. (Fragata, 1962, p.18)
Dentre os pensadores que receberam influência dessa tendência científica e, também, psicologista, podemos citar John
Stuart Mill (1806-1873). Mill escreveu uma obra célebre intitulada
Sistema de Lógica Dedutiva e Indutiva (1843), em que expõe os
princípios e as provas dos métodos de investigação científica. Segundo Blanché, “A lógica de Mill é antiformalista. Ele recusa-se a
reduzir a lógica à lógica formal, e critica aqueles que, como Hamilton, a definem como a ciência da consequência” (Blanché, 1996,
p.251). Nesse sentido, escreve Mill:
Conhecemos as verdades através de duas vias: algumas diretamente por si mesmas; outras, por meio de outras verdades. As primeiras são objetos de intuição e consciência; as segundas, de
inferência. As verdades conhecidas pela intuição são as premissas
originais das quais todas as demais são inferidas. Sendo nosso assentimento à conclusão baseado na verdade das premissas não poderíamos chegar a nenhum conhecimento pelo raciocínio, a não
ser que alguma coisa pudesse ser conhecida antes de qualquer raciocínio. (Mill, 1974, p.79-80)
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
79
Desse modo, segundo Blanché, para Mill, a inferência silogística não diz nada além do que está contido nas premissas e que,
para ele, “o verdadeiro fundamento da nossa inferência são outros
fatos particulares análogos ao que pretendemos provar, a saber: a
morte de João, de Tomás, etc. O nosso raciocínio vai do fato ao
fato” (Blanché, 1996, p.253-4). Isto é: existe uma Lógica Indutiva
que precisa de uma atenção especial e a Lógica Formal a ignora por
completo por não ser seu plano de análise. Nesse sentido, segundo
Blanché, “Mill propõe-se estabelecer ‘regras práticas que seriam
para a própria indução o que as regras do silogismo são para a interpretação da dedução’ [...]. De fato, a teoria de Mill abandona desde
o início o campo da lógica para se espraiar pelo da metodologia
científica” (idem, p.255)
Por outro lado, ainda no contexto do século XIX, surge uma
concepção oposta à concepção de Mill e de outros adeptos do psicologismo, concepção conhecida como logicismo. O logicismo surgiu,
como notamos na Introdução, com o desenvolvimento da Matemática e a convergência desta com a Lógica. Segundo Blanché (cf.
1996, p.305), no século XIX houve uma mudança de perspectiva na
relação da Lógica com a Matemática, trazendo consequências extremamente importantes para o modo de se fazer Lógica.
Particularmente com Frege, em seu projeto de fundamentação
da Aritmética em princípios lógicos, a Lógica torna-se o conhecimento que deveria fundamentar o edifício da Matemática. Seu projeto deu origem a uma concepção fundacionista da Matemática.
Segundo ele, em Os fundamentos da Aritmética, “após afastar-se
por algum tempo do rigor euclidiano, a matemática volta agora a
ele, e de algum modo esforça-se para ultrapassá-lo” (Frege, 1980,
p.205). Escreve ele em outra passagem: “Por isso acreditei dever
remontar aos fundamentos lógicos gerais um pouco mais do que a
maioria dos matemáticos talvez julgue necessário” (idem, p.204)
Nesse sentido, a Lógica deveria, por excelência, ser o conhecimento das leis que não é deste ou daquele sujeito, e sim universal,
dando origem à concepção logicista, um tipo de platonismo. Segundo Blanché (1996, p.309), o logicismo associa um certo plato-
80
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
nismo à Lógica, marcando o período de elaboração da moderna
logística ou da Lógica Matemática. Sobre isso, escreve: “[...] esta
associação de um logicismo platonizante à lógica é um dos traços
que marcaram o período de elaboração desta moderna logística”.
Frege (1980, p.204) diz que um dos princípios lógicos que deve
ser seguido para a fundamentação da Aritmética na Lógica é “separar precisamente o psicológico do lógico, o subjetivo do objetivo”, pois, segundo ele (1980, p.204) não se pode conhecer a
essência de uma coisa por meio de uma investigação da gênese da
natureza da alma humana, pois essa concepção lança tudo no subjetivo e, se levada às últimas consequências, suprime a verdade.
Sobre isso, escreve o autor:
Imagina-se, pelo que parece, que os conceitos nascem na alma individual como as folhas nas árvores, e pretende-se ser possível conhecer sua essência por meio da investigação de sua gênese, que se
procura explicar psicologicamente a partir da natureza da alma
humana. (Frege, 1980, p.202)
Nesse contexto, Frege critica Mill de modo irreverente por este
se dirigir às crianças ou se transportar para a origem histórica do
desenvolvimento da humanidade para explicar como surgem os
objetos da Matemática, como o conceito de número, por exemplo.
O que dizer então daqueles que, ao invés de prosseguir este trabalho onde ele não aparece ainda realizado, o menosprezam, se
dirigem ao quarto das crianças ou se transportam para as mais antigas fases conhecidas de desenvolvimento da humanidade, a fim
de lá descobrir, como J. S. Mill, algo como uma aritmética de pãezinhos e pedrinhas! (Idem, p.202)
Ora, delegar, pois, à Psicologia o fundamento do conhecimento é, segundo Frege, negar o conhecimento objetivo e impossibilitar a ciência, pois migraríamos para as incertezas do relativismo
e supriríamos a verdade. Nesse sentido, o pensador nos diz, na
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
81
mesma obra: “Se no fluxo constante de todas as coisas nada se
mantivesse firme e eterno, o conhecimento do mundo deixaria de
ser possível e tudo mergulharia em confusão” (ibidem, p.202).
Frege usa o termo alemão Gedanke para expressar o conhecimento firme e eterno supracitado. Traduz-se Gedanke por pensamento ou ideia. O que Frege quer dizer por Gedanke não é algo
subjetivo, uma representação mental, assim como as palavras
“pensamento” e “ideia” poderiam comumente deixar entrever. O
autor quer expressar por Gedanke algo que existe independente de
nós, que pode ser expresso por sentenças e é compreendido por
muitos, portanto, objetivo ou universal.
Escreve o autor, em “O pensamento”, que “o pensamento não
pertence nem a meu mundo interior, como uma ideia, nem tampouco ao mundo exterior, ao mundo das coisas sensorialmente perceptíveis” (Frege, 2002, p.35). O pensamento é, para o autor algo
objetivo. Frege (2002, p.27) procura argumentar, então, que o pensamento nos permite obter um conhecimento estável e permanente
que existe em um terceiro domínio, no qual se encontram, também,
as entidades lógicas universais.
Observemos que o antipsicologismo de Frege nos conduz a um
platonismo. As leis da Lógica seriam, segundo a concepção fregiana, entidades existentes por si mesmas, que podem ser abarcadas pela Razão e expressas pela linguagem humana. As leis da
Lógica estariam, assim, previamente dadas. Caberia, então, explicitar as relações lógicas necessárias para a devida fundamentação
do conhecimento científico. A Lógica seria, pois, segundo essa
concepção, o conhecimento que possibilita fundamentar todos os
outros conhecimentos científicos, em especial a Matemática. Nesse
sentido, o objetivo central de Frege, ao escrever Os fundamentos da
Aritmética e As leis fundamentais da Aritmética, é, em particular,
fundamentar toda a Aritmética em princípios lógicos, e não psicológicos.
Notemos, assim, que, nesse contexto, o psicologismo pode ser
visto como uma tentativa de fundamentação da Lógica na Psicologia. Frege (1980, p.203) nos diz que essa tentativa nos leva a uma
82
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
confusão entre razões demonstrativas e condições internas ou externas da produção de uma demonstração. As razões demonstrativas devem ser explicitadas pela Lógica e as condições internas ou
externas de uma demonstração devem ser objeto da Psicologia.
Sobre essa distinção, escreve Frege: “Deve-se ao menos conceder
que toda investigação acerca da cogência de uma demonstração ou
da legitimidade de uma definição deve ser lógica” (idem, p.203).
Em outra passagem, ainda nos diz: “Na verdade pode ser útil examinar as representações, e a alternância das representações, que
aparecem no pensamento matemático; mas que a psicologia não
imagine poder contribuir em algo para a fundamentação da aritmética” (ibidem, p.201). Assim, “tem-se em geral que distinguir a
questão de como chegamos ao conteúdo de um juízo da questão do
que justifica nossa asserção” (ibidem, p.206).
Assim, segundo a posição de Frege em relação à Psicologia, se
pudéssemos caracterizar o psicologismo em Lógica, dado o que
vimos até aqui, diríamos que ele é uma confusão de planos de análise que advém da tentativa de fundamentar os métodos, os conceitos e as entidades da Lógica e da Matemática nos métodos,
conceitos e entidades da Psicologia, não reconhecendo, com isso, a
autonomia da Lógica e da Matemática para realizar análises de
demonstração no plano da validade e não da realidade empírica.
Nesse sentido, uma das consequência do psicologismo é reduzir o
raciocínio dedutivo ao raciocínio indutivo, de modo que as verdades da Lógica e da Matemática não são mais que regras gerais
abstraídas de casos particulares.
Uma caracterização semelhante do psicologismo em Lógica
é dada por Mario Ariel González Porta: “O psicologismo lógico é
uma teoria que se propõe assimilar a lógica à psicologia, concebendo a primeira como parte da segunda e negando, desta forma, a
existência de entidades e estruturas propriamente lógicas” (Porta,
2004, p.109). Em outra passagem no mesmo artigo ainda escreve:
Mas, o que é o psicologismo? A assimilação da lógica como disciplina à psicologia como disciplina é consequência não só (e não
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
83
sempre) da confusão das leis lógicas com as psicológicas, mas da
redução de umas às outras, redução que, pela sua vez, não afeta só
as leis, mas a toda entidade que possa ser considerada especificamente lógica. A essência do psicologismo, pois, é o reducionismo:
o psicologismo não necessariamente confunde, mas sempre reduz.
(Porta, 2004, p.114-5)
Ainda segundo Porta, essa redução do lógico ao psicológico
constitui também uma redução do objetivo ao subjetivo. E uma das
consequências desse reducionismo é “[...] o idealismo, o solipsismo
e, em definitivo, o ceticismo. O motivo fundamental da crítica fregueana ao psicologismo é, pois, epistemológico: o psicologismo
conduz a uma negação da objetividade” (idem, p.115).
Ora, se é necessário, por um lado, distinguir a Lógica da Psicologia, devido a, principalmente, elas terem planos de análises distintos, por outro lado, essa posição de diferenciação entre elas, na
visão de Piaget, acabou por opor uma à outra de modo um tanto
radical, não se perguntando, inclusive, sobre o papel do sujeito na
constituição das estruturas lógicas. Escreve ele, em Psicologia da
Inteligência: “[...] na medida em que a lógica foi renunciando à impressão da expressão verbal para constituir, sob o nome de logística, um algoritmo cujo rigor seria igual ao da expressão matemática,
foi-se a lógica transformando numa técnica axiomática” (Piaget,
1958, p.54).
A logística, segundo Piaget (1958, p.54), constituiu-se como
um “modelo” ideal de pensamento ao propor um projeto de tornar
as técnicas de demonstração o símbolo de objetividade. Sua técnica
axiomática permite que a Lógica se liberte, por conseguinte, das
estruturas lógicas de um sujeito, estabelecendo uma relação absolutamente autônoma entre a Lógica e a Psicologia. Nesse sentido,
ainda escreve o autor na obra:
Mas então as relações entre lógica e psicologia se acham igualmente simplificadas. A lógica não tem por que recorrer à psicologia, pois que uma questão de fato não intervém, absolutamente,
84
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
numa teoria hipotético-dedutiva. Inversamente, seria absurdo invocar a logística para resolver uma questão resultante da experiência, tal como a do mecanismo real da inteligência. (Piaget,
1958, p.54-5)
Em função do desenvolvimento da logística e de sua forte influência na Lógica Moderna, a posição antipsicologista entre os lógicos se tornou expressamente contundente. Surge, então, na visão
piagetiana, um antipsicologismo radical entre alguns lógicos formalistas que criticam qualquer relação possível entre Lógica e Psicologia, por exemplo, uma possível relação entre as leis ou as
estruturas lógicas com as estruturas de um sujeito, seja ele psicológico ou epistemológico.
Diante desse cenário, veremos, a seguir, como Piaget vê a relação entre Lógica e Psicologia no contexto da Epistemologia Genética e como o autor se posiciona em seu debate com o lógico Evert
Willem Beth, após as repercussões do Tratado.
3. Relações da Lógica com a Psicologia
Expomos, aqui, a concepção de Piaget sobre uma possível
coordenação entre Lógica e Psicologia, exposta por ele no Tratado e
rediscutida no Ensaio. Apresentamos algumas das oposições centrais de Beth a essa possível coordenação entre os domínios supracitados e como Piaget responde a elas. Argumentaremos, também,
a partir da caracterização do psicologismo feita e das próprias posições epistemológicas de Piaget, que ele não é um psicologista, como
procura mostrar em algumas passagens de sua obra.
Dentre as críticas que surgiram após a publicação do Tratado,
consta a do lógico Evert Willem Beth (1908-1964), professor da
Universidade de Amsterdã. Beth pode ser considerado um dos
maiores representantes do debate com Piaget acerca desse tema,
pois, logo após a publicação do Tratado, encarrega-se de uma dura
crítica a ele e, posteriormente, como veremos, continua e aprofunda
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
85
esse debate, chegando a ocorrer publicações de obras nas quais
ambos participam. Por esse motivo, é o autor que escolhemos para
tratar da questão de um possível psicologismo na obra de Piaget.
Sobre tais críticas e como elas foram recebidas, diz-nos Piaget
na Introdução do Ensaio:
Tivemos, em contrapartida, uma grande satisfação ao convencer
um de nossos adversários, o grande lógico E. W. Beth, após um
artigo especialmente severo de sua autoria, a escrever em colaboração um trabalho intitulado Epistemologia matemática e psicologia, onde conseguimos pôr-nos de acordo sobre a necessidade de
“uma certa coordenação entre a lógica e a psicologia”. (Piaget,
1976, p.XVI)
O artigo foi publicado na revista Methodos. Pelo que consta nas
referências dadas por Piaget (Piaget, 1976, p.XVI; 1983b, p.91;
Beth & Piaget, 1961, p.143), Beth teria criticado a pouca formalização das estruturas do pensamento natural e, também, uma certa
coordenação entre a Lógica pura e o pensamento “natural”, ambas
apresentadas no Tratado.
Em Sabedoria e ilusões da Filosofia, obra publicada 16 anos depois da publicação da primeira edição do Ensaio, conta-nos Piaget
(1983b, p.91) que tentou, na época, rebater as críticas de Beth. Diz-nos o autor que escreveu algumas páginas, as quais pretendia publicar no espaço geralmente concedido pela revista, mas que elas
foram recusadas por P. Bochenski (Beth teria escrito o seu artigo a
pedido de Bochenski).
No entanto, foram concedidas algumas linhas e, nesse pequeno
espaço, Piaget se dirigiu a Beth, expressando, como ele mesmo nos
diz em Sabedoria e ilusões da Filosofia, que
[...] compreendia muito bem que um puro lógico reagisse com
vigor contra um ensaio de formalização de certas estruturas escolhidas, porque pertencentes ao pensamento natural, mas que há aí
um problema e que o único meio de nos entendermos seria pu-
86
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
blicar juntos um trabalho sobre tais assuntos, onde nem apenas o
lógico nem apenas o psicólogo pode bastar para executar a tarefa.
(Piaget, 1983b, p.91)
Com esse mesmo “tom” de aproximação, conta-nos Piaget que
escreveu pessoalmente para Beth, mas agora fora do espaço público
da revista, propondo-lhe que ambos deixassem o orgulho intelectual de lado para escreverem um trabalho juntos, em prol do conhecimento. Sobre isso nos diz Piaget: “Escrevi longamente a Beth
no mesmo sentido, propondo-lhe fazer abstração dos nossos ‘eu’ e
dedicarmo-nos seriamente a esse trabalho” (idem, p.91).
Piaget, então, convidou o lógico Beth para discutir suas idéias
em um simpósio. Conta-nos ele que Beth “[...] confessou-se surpreso e sensibilizado com essa reação e não recusou a colaboração
proposta, mas pedindo para pensar. Eu estava pois um tanto inquieto com o que ele pensaria e diria no Simpósio” (ibidem, p.91).
O encontro era o Simpósio Internacional de Epistemologia Genética, organizado anualmente por Piaget no Centro de Epistemologia Genética, e sediado na Faculdade de Ciências de Genebra.
O Simpósio, diz-nos Piaget (1983b, p.91), contou com a participação de muitos especialistas, entre os quais havia um grupo de
lógicos, matemáticos e psicólogos, todos interessados em Epistemologia. Beth compareceu e lá foram discutidas as ideias e as concepções de cada um. Sobre a participação de Beth relata Piaget:
Este nos deu plena satisfação. Desde a primeira sessão, Beth encontrou a demonstração, por considerações topológicas inesperadas, de uma proposição que Apostel procurava justificar no
domínio das relações entre a linguagem, lógica e a informação [...]
(Idem, p.91)
Apostel é um lógico que também escreveu com Piaget obras
em colaboração, por exemplo, As ligações analíticas e sintéticas no
comportamento do sujeito, obra a que já fizemos menção na seção 1
do capítulo 1. Cabe notar aqui, ademais, que Piaget não se privou
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
87
de dialogar com diversos intelectuais, entre os quais citamos W. V.
Quine, J. B. Grize, W. McCulloch, G. G. Granger, F. Meyer, T. S.
Kuhn, todos colaborando de um modo ou de outro com as discussões realizadas no Centro.
Voltando ao Simpósio que reuniu Beth e Piaget, suas discussões resultaram em uma obra intitulada Epistemologia Matemática
e Psicologia, v.XIV dos Estudos de Epistemologia Genética, cuja primeira edição data de 1961. Essa obra é dividida em duas grandes
partes. Na primeira delas, Beth expõe sua concepção sobre a relação entre Lógica e pensamento matemático, amparada na História da Filosofia. Na segunda parte, Piaget apresenta sua visão,
porém mais voltada às objeções colocadas por Beth até então, desde
a repercussão do Tratado. A conclusão da obra foi um trabalho assinado por ambos. Segundo Beth e Piaget,
O primeiro dos dois autores redigiu de início sua própria parte (I)
e a comunicou ao segundo, que então escreveu a sua (II) e a submeteu em seguida ao primeiro. Este, enfim, propôs um projeto de
conclusões gerais comuns que o segundo autor completou, e que
os dois colocaram-se definitivamente de acordo levando em consideração as observações úteis de nosso primeiro leitor, J. B. Grize,
ao qual ambos agradecemos. (Beth & Piaget, 1961, p.1, tradução
nossa)
De formação em Matemática e em Física, Beth, como ele
mesmo nos diz em Epistemologia Matemática e Psicologia (idem,
p.4), desenvolveu interesse pela Filosofia, donde seus estudos de
Filosofia da Matemática, em especial de Epistemologia e das questões sobre os fundamentos da Matemática. Um de seus interesses
foi pela relação entre Psicologia e pensamento matemático. Notemos que, embora Beth tivesse uma formação matemática, seus
interessem tendiam, também, para um debate mais amplo, que
ia além dos estudos de Lógica Matemática a que ele também se
dedicava.
88
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
As teses que Beth procurou defender na primeira parte de
Epistemologia Matemática e Psicologia são, escreve ele:
[...] as teses que eu me proponho a defender são fundadas, não
sobre uma tomada de posição a respeito da psicologia ou sobre um
logicismo de um formalismo limitado, mas sobre um cuidado profundo e sincero de fazer justiça à lógica formal e à psicologia do
pensamento, e sobre os estudos aprofundados em ambos os domínios. (Ibidem, p.4, tradução nossa)
Um dos cuidados exigidos por Beth, em Epistemologia Matemática e Psicologia, compreendia a necessidade de se reconhecer a
autonomia da Lógica e da Matemática para investigar as deduções
formais sem desprezar a importância da Psicologia para o estudo do
pensamento. Para ele, a Lógica e a Matemática deveriam ser autônomas em relação à Psicologia quando se tratasse de investigar as
noções de validade e fundamento. A investigação de cada um dos
domínios, preservando sua autonomia de análise, evitaria um provável psicologismo em Lógica, confusão que deveria ser evitada.
Sobre a posição de Beth, escreve Piaget: “Na primeira parte desta
obra, E. W. Beth defende a tese, e a justifica pela história, de uma
autonomia completa entre a matemática e a lógica, sempre sustentando (§21) que o formalismo, apesar de sua importância considerável, não saberia fornecer delas uma filosofia completa” (ibidem,
p.143, tradução nossa).
Na segunda parte da mesma obra, Piaget diz que partilha da
mesma opinião de Beth sobre a independência da Lógica e da Matemática para realizar suas próprias análises, sem recurso a uma
ciência empírica como a Psicologia. Sobre isso, diz-nos:
Partiremos aqui exatamente das mesmas opiniões e cremos estar
de acordo com E. W. Beth em cada uma de suas afirmações,
quanto a esta independência radical do trabalho do lógico e do
matemático nas suas análises de validade e de fundamento.
(Ibidem, p.143, tradução nossa)
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
89
No entanto, segundo o autor, há uma correspondência entre
Lógica e Psicologia que precisa ser explicitada; correspondência
que Beth parece não ter compreendido inicialmente. Sobre isso nos
diz ele:
O nosso papel na segunda parte desta obra não consiste de forma
alguma em nos opor a tal ou qual concepção particular de E. W.
Beth, mas apenas buscar a explicação psicológica (e que, como veremos, se transformará sem cessar em um tipo de correspondência
psicológica) das posições que o lógico é levado a adotar em virtude
do desenvolvimento autônomo das pesquisas sobre os fundamentos. (Ibidem, p.147, tradução nossa)
Para entendermos as razões que sustentam a tese de Piaget de
que há independência dos métodos com correspondência entre os
domínios supracitados, vejamos como o autor coloca o problema
do psicologismo em Lógica.
O psicologismo é a tendência que conduz a misturar as questões
de validade com questões de fato; dizendo de outra forma, é a tendência de substituir os métodos puramente dedutivos da lógica
por métodos nos quais intervêm os dados psicológicos. No seu capítulo II, Beth mostrou o fracasso dessas tentativas do ponto de
vista lógico. (Ibidem, p.151, tradução nossa)
[...] qualifica-se de “psicologismo” toda tentativa de reduzir um
problema lógico ou matemático utilizando-se de resultados emprestados da psicologia; nós subscrevemos igualmente sem hesitar a condenação do psicologismo, claro, pois isso testemunha
uma confusão não somente de métodos, mas ainda dos problemas
eles próprios. (Ibidem, p.143, tradução nossa)
Notemos que Piaget, nesse caso, caracteriza o psicologismo de
modo semelhante a Frege, conforme a breve exposição que fizemos
na seção anterior. Semelhança que também é observada por Leslie
90
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
Smith (1999) em seu artigo “Epistemological principles for Developmental Psychology in Frege and Piaget”.2 Nesse artigo, Smith
discute paralelos entre as epistemologias de Frege e Piaget. Em
uma seção intitulada “Psychologism and Epistemology”, ele escreve: “O trabalho de Frege, no entanto, inclui uma crítica incisiva
da lógica psicológica, e é nesse sentido que é amplamente considerado como uma rejeição do psicologismo [...] A rejeição de Piaget
ao psicologismo é igualmente explícita” (Smith, 1999a, p.85-6, tradução nossa). Depois de mostrar que ambos rejeitam o psicologismo, Smith escreve: “Que se fique de acordo que ambos Frege e
Piaget negaram que leis lógicas são redutíveis à Psicologia” (idem,
p.86, tradução nossa).
Nesse sentido, semelhante a Frege, Piaget (Beth & Piaget,
1961, p.143-4) também entende que a Lógica e a Psicologia têm
planos de análises distintos. Diz-nos Piaget que o problema lógico
consiste, em parte, em buscar quais são as condições de validade de
uma dedução formal e o problema psicológico, em parte, consiste
em determinar como funciona o pensamento lógico e matemático
do ponto de vista experimental. Sobre isso, escreve:
Com efeito, se o problema lógico, em presença de uma demonstração matemática, consiste em pesquisar sob quais condições ela
pode ser tida como válida, o problema psicológico consiste apenas
em determinar por meio de quais mecanismos mentais ela em realidade se desenvolve na mente do matemático. (Idem, tradução
nossa)
Essa independência dos métodos pode ser ilustrada a partir de
um exemplo dado por Piaget no seu livro Psicologia da Inteligência,
cuja primeira edição data de 1947, dois anos antes da publicação do
Tratado.
2. Para mais artigos sobre a relação entre Frege e Piaget cf. também Smith
(1999b) e Muller (1999).
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
91
Psicologia da Inteligência é parte de um conjunto de aulas ministradas por ele em 1942, no Collège de France, cujas páginas, segundo o autor “[...] limitam-se a esboçar um ponto de vista, o da
constituição das ‘operações’, e a situá-lo, o mais objetivamente
possível, no conjunto dos outros, já consagrados” (Piaget, 1958,
p.2).
Na seção “Lógica e Psicologia” do segundo capítulo de Psicologia da Inteligência, o autor trata dos limites e relações entre os referidos domínios de estudo. De especial importância para nós aqui
é a breve análise do princípio da não contradição realizada por
Piaget.
Sabendo que o princípio de não contradição afirma que uma
proposição A é incompatível com uma proposição não-A, ou seja,
que não ocorrem A e não-A ao mesmo tempo e sob o mesmo ponto
de vista, uma das questões que pode ser colocada é: como o princípio de não contradição, estudado pelo lógico, se expressa nas condutas dos sujeitos psicológicos?
Como nos indica Piaget (1958, p.55), para solucionarmos tal
questão é preciso falar dos métodos correspondentes a cada um
desses domínios de estudo: o método lógico e o método psicológico.
Do ponto de vista lógico, a partir da possibilidade de atribuir
valores de veracidade ou de falsidade às proposições, o lógico pode
identificar contradições no interior da dedução segundo princípios
previamente aceitos pela Lógica adotada (que em nosso caso é a
Lógica Clássica). Desse modo, para sabermos se uma pessoa se
contradiz precisamos analisar as proposições enunciadas por ela e
ver se algumas implicam a negação de outra.
Essa coerência e ordenação interna do pensamento corresponde
ao princípio de não contradição abstraído e estudado pelo lógico na
teoria formal elaborada por ele. No plano lógico, segundo Piaget
(1958, p.55), “[...] a aplicação do ‘princípio de [não] contradição’ recai exclusivamente nas definições, isto é, nos conceitos axiomatizados e não nas noções vivas das quais o pensamento se serve na
realidade”. Nesse plano, “longe de ‘aplicarem um princípio’, as ações
92
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
se organizam segundo condições internas de coerência, e a estrutura
dessa organização constitui o fato do pensamento real, correspondendo ao que chamamos, no plano axiomático, de ‘princípio de [não]
contradição’” (Piaget, 1958, p.56)
No funcionamento da realidade psicológica do pensamento,
podemos dizer que o princípio de não contradição não é o resultado
de construções formais sobre proposições reguladas por princípios,
e sim o resultado da realidade vivida pelo sujeito em toda a complexidade da sua vida psicológica e social. Piaget nos diz que,
Efetivamente [do ponto de vista lógico], o princípio de [não] contradição limita-se a proibir a afirmação e a negação simultânea de
dado caráter. A é incompatível com não-A. Mas, para o pensamento efetivo de um sujeito real, a dificuldade começa quando ele
se pergunta se se tem o direito de afirmar simultaneamente A e B,
pois jamais a lógica prescreve diretamente se B implica, ou não,
não-A. (Idem, p.55)
É da experiência que o sujeito vai tirar se B implica, ou não,
não-A; logo, se B é contraditório a A. Nesse sentido, quando o
autor diz que a Lógica “jamais prescreve diretamente se B implica,
ou não, não-A”, ele quer dizer que o sujeito real se volta não para a
dedução formal, mas para a coerência da realidade psicológica e social vivida por ele, da qual a Lógica não pode decidir, pois não é seu
plano de análise.
Isso significa que, se a Psicologia não pode intervir na decisão
sobre uma validade de uma demonstração lógica, a Lógica não
pode intervir na autonomia da Psicologia no que concerne às investigações dos fenômenos causais. Sobre essa reciprocidade, escreve
Piaget, em Epistemologia Matemática e Psicologia:
[...] a independência da atividade lógico-matemática em relação à
psicologia é então inteiramente recíproca. Em compreensão, o domínio psicológico está bem delimitado porque parte exclusivamente do mecanismo real dos processos mentais, e isto é suficiente
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
93
[também] para impedir toda aplicação da psicologia a um problema de validade formal. (Beth & Piaget, 1961, p.145, tradução
nossa)
Citando um exemplo desta independência dos métodos, Piaget
escreve no Ensaio:
Se [por exemplo] a lógica é uma teoria formal das operações do
pensamento, a psicologia e a sociologia, ou pelo menos certas
partes destas disciplinas, constituem, ao contrário, uma teoria real
das próprias operações: das operações efetuadas pelo indivíduo,
ou permutadas graças à linguagem e efetuadas em comum.
(Piaget, 1976, p.10)
Embora haja independência dos métodos, isso não quer dizer,
segundo Piaget (1958, p.57), que os esquemas lógicos não possam
auxiliar nas análises psicológicas. “Não há dúvida que os esquemas
lógicos tenham auxiliado, frequentemente, pelas sutilezas que
apresentam, a análise dos psicólogos” (idem, p.57). Os estudos da
Lógica podem auxiliar o psicólogo na esquematização das informações coletadas empiricamente, quando o psicólogo elabora, por
exemplo, hipóteses e predição dos fenômenos que podem ser comprovados ou invalidados no contexto da teoria por ele aventada.
Assim, voltando à discussão entre Beth e Piaget, podemos
notar que Piaget não discorda de Beth quanto à autonomia da Lógica em relação à Psicologia, pois, como vimos, Piaget defende que
temos dois métodos distintos para cada um dos domínios supracitados e que cada um desses domínios tem autonomia suficiente
para investigar o recorte que eles fazem do pensamento operatório,
seja o recorte formal ou real. Sobre essa autonomia e independência,
em suma nos diz o autor no Ensaio que:
[...] jamais um dado de fato, psicológico ou sociológico, poderia
ser invocado na formalização lógica, a qual permanece autônoma
mesmo com referência às normas mais comumente aceitas pelo
94
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
grupo social ou pelos indivíduos; jamais, em compensação, um
raciocínio que se apoia num algoritmo formal poderia ter validade
de um fato da experiência, em psicologia ou em sociologia do pensamento. É esta independência dos métodos apenas que assegura,
aliás, a correspondência dos problemas. (Piaget, 1976, p.15)
Em Psicologia da Inteligência, Piaget (1958, p.55) nos diz que,
se a Lógica realiza uma análise formal e a Psicologia uma análise
real, a correspondência que há entre elas é a mesma que há “entre
um esquema e a realidade que ele representa”, isto é, entre a forma
e o conteúdo de uma estrutura lógica. Sobre essa correspondência,
diz-nos Piaget
A correspondência dos problemas é clara. Primeiro, todos os problemas suscitados pela formalização lógica podem corresponder a
problemas psicológicos e sociológicos. Assim, o emprego de um
simbolismo logístico adequado corresponde ao problema dos
signos; cada estrutura formalizada corresponde a uma estrutura
real, no pensamento comum ou, na ausência deste, no espírito do
próprio lógico, etc. Inversamente, toda estrutura atingida pelas
operações mentais do indivíduo, ou por uma cooperação interindividual, suscita o problema lógico de sua formalização possível: é
o caso da reversibilidade e dos diversos agrupamentos de conjunto
constituído pelas operações concretas e abstratas. (Piaget, 1976,
p.15)
Piaget (1976, p.14) observa que entre a teoria formal da Lógica
e a análise real da Psicologia ou da Sociologia, ocorre a mesma relação que há entre a geometria axiomática e a geometria dos objetos
físicos: independência completa dos métodos e correspondência
possível entre os problemas. Nesse sentido, podemos entender que
a correspondência da Lógica com a Psicologia e a Sociologia é análoga ao que há entre um esquema e a realidade que ele representa,
entre o formal e o real, entre a Aritmética dos matemáticos e os números “naturais” construídos antes de qualquer teoria, ou entre a
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
95
axiomática e a realidade dos fenômenos empíricos. Analogia que
torna possível compreender
[...] então as verdadeiras relações entre a lógica, de um lado, e a
psicologia ou a sociologia das operações intelectuais, de outro: a
lógica é a axiomática das estruturas operatórias, da qual a psicologia
e a sociologia do pensamento estudam o funcionamento real. (Piaget,
1976, p.14, grifo do autor)
Na Psicologia da Inteligência, diz-nos Piaget (1958, p.52) que
uma axiomática é uma ciência exclusivamente hipotético-dedutiva,
isto é, ela libera as estruturas operatórias de suas amarras intuitivas,
da qual ela se originou, para reconstruir livremente um esquema
teórico por meio de proposições indemonstráveis, os axiomas.
Estes, combinados entre si, geram todas as possibilidades segundo
as relações de necessidades no interior da dedução.
Diz-nos, ainda, Piaget, que a axiomática
[...] frente a realidades complexas e resistentes à análise exaustiva,
permite a ela construir modelos simplificados do real, fornecendo,
assim, ao estudo deste último, instrumentos de dissecção insubstituíveis. De modo geral, uma axiomática constitui, como o demonstrou F. Gonseth, um “esquema” da realidade e pelo próprio
fato de que toda abstração conduz a uma esquematização, o método axiomático prolonga, no total, o da própria inteligência.
(Piaget, 1958, p.52-3)
Nesse sentido, Beth chega a concordar com Piaget que há uma
certa complementaridade entre os domínios supracitados e que ela
é necessária para uma pesquisa epistemológica. Ambos escrevem
nas Conclusões Comuns, em Epistemologia Matemática e Psicologia, que
Em suma, cada uma das duas respectivas atividades do lógico e do
psicólogo se refere à outra, não porque elas seriam interdepen-
96
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
dentes, mas porque, cada uma permanecendo totalmente autônoma, são complementares. São então esta autonomia e esta
complementaridade reunidas que tornam não somente possível,
mas necessária a pesquisa de uma síntese epistemológica. (Beth &
Piaget, 1961, p.332, tradução nossa)
Desse modo, o problema epistemológico que Piaget se coloca
consiste “[...] precisamente em explicar como os diversos tipos de
conhecimento são possíveis (e possíveis no duplo sentido de sua validade normativa e de seu funcionamento real)” (Beth & Piaget,
1961, p.166, tradução nossa). Lembremos que a questão epistemológica que o autor coloca no Ensaio e que deu origem a ele é: em que
medida as estruturas lógicas formalizadas com toda a autonomia
pelo lógico derivam das estruturas operatórias construídas por um
sujeito epistêmico e o ajudam a ordenar a realidade?
Assim, em vista do que dissemos, se entendermos por psicologismo a tentativa de resolver um problema lógico ou matemático se
utilizando de resultados emprestados da Psicologia, implicando,
com isso, uma confusão de métodos e problemas, podemos entender que Piaget não é um psicologista.
O Ensaio, assim, não é apenas uma análise formal das estruturas lógicas ao modo de um tratado de Lógica e, também, não é
uma obra de pura Psicologia, mas um estudo de Epistemologia Genética. Nele se procura compreender como se constituem as estruturas necessárias aos aumentos de nossos conhecimentos, isto é,
como as estruturas lógicas, estudadas com toda a autonomia pelo
lógico, se constituem em um sujeito epistêmico e como elas se coordenam resultando em estruturas passíveis de formalização.
3
COMO O SUJEITO EPISTÊMICO USA E
SE TORNA CAPAZ DE USAR FUNÇÕES
PROPOSICIONAIS
Uma das estruturas necessárias ao conhecimento lógico-matemático é a função proposicional, objeto de nosso livro. Nesse sentido, veremos, neste capítulo, na seção 1, a definição de função
proposicional dada por Piaget no Ensaio.1 Procuramos mostrar,
também, em que medida a função proposicional é importante como
condição de uma lógica das classes e das relações e como ela se
constitui em uma das pedras bases da Lógica Operatória.
A partir disso reapresentamos e situamos, na seção 2, a questão
central do livro em relação à definição de função proposicional e
das discussões realizadas, nos capítulos anteriores, sobre a contextualização do Ensaio na Epistemologia Genética. Veremos que a
função proposicional, estudada com autonomia pelo lógico, tem
1. Notemos aqui que toda função proposicional é uma função, mas nem toda
função é uma função proposicional; em outras palavras, a função proposicional
é um tipo de função. Apesar de a função proposicional ser uma função, limitamos o nosso estudo da função proposicional apenas ao Ensaio, no qual, como
sabemos, ela é apresentada e definida. Não fizemos um estudo geral de sua
gênese a partir da obra Epistemologia e Psicologia da Função (1968), em que é
realizado um estudo sobre a gênese da noção de função em geral, pois tal estudo ultrapassaria os propósitos de nosso trabalho. Porém, fica registrado,
aqui, que Piaget realiza, com seus colaboradores, um estudo detido da gênese
da função em geral.
98
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
um correspondente na realidade psicológica que a torna possível: o
esquema conceitual; é, então, o esquema conceitual que permite ao
sujeito epistêmico usar as funções proposicionais.
Por fim, na seção 3, investigamos a psicogênese da função proposicional e, consequentemente, dos esquemas conceituais, para
responder como o sujeito se torna capaz de usar a função proposicional.
1. A função proposicional e a sua importância
para a Lógica Operatória
Apresentamos aqui a definição de função proposicional dada
por Piaget no Ensaio e explicitamos como a função proposicional
está relacionada à Lógica Operatória e, em especial, às operações
intraproposicionais. Nesse sentido, mostramos como a função proposicional torna possível a lógica das classes e a lógica das relações,
condição necessária para a Lógica Operatória.
A função proposicional é definida por Piaget no §4 do Ensaio
do seguinte modo:
Definição 7. – Uma função proposicional ax é um enunciado nem
verdadeiro nem falso, mas suscetível de adquirir um valor de verdade
ou de falsidade segundo a determinação dos argumentos que substituem o argumento indeterminado x. (Piaget, 1976, p.45)
No estudo da função proposicional, o termo argumento é usado
para designar a própria variável x ou o que substitui a variável x na
função. A variável x é chamada de argumento indeterminado e o que
a substitui, se não for uma variável, de argumento determinado (cf.
idem, p.45).
Tomemos um exemplo simples para explicitar o uso desta
função. Comecemos com a proposição “o cravo é vermelho”. Podemos substituir o sujeito dessa proposição por outro termo, resultando em uma nova proposição, por exemplo, “a rosa é vermelha”.
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
99
Essa substituição resulta em uma proposição com um valor de verdade ou de falsidade. Se expressarmos por x a possibilidade de
substituição de um sujeito por outros sujeitos quaisquer no seio de
uma proposição, temos então, no caso da proposição citada, a expressão “x é vermelho”. Se, ainda, designarmos também o predicado “é vermelho” pela letra a, podemos expressar, formalmente, a
função proposicional por ax.
Notemos que o enunciado ax não é uma expressão particular,
mas uma expressão geral que indica a sua constituição a partir de
seus elementos mais simples, os objetos (sujeitos) e a propriedade
desses objetos (predicados).
Nesse sentido, a substituição do argumento indeterminado
pelo argumento determinado na função proposicional resulta em
uma proposição à qual é possível atribuir um valor de verdade ou
de falsidade. O termo a é, segundo o autor (1976, p.45), a função
em si mesma.
Embora Piaget (1976, p.45) escreva que a função proposicional
teve origem em Russell, as primeiras noções já estavam presentes,
como vimos na Introdução, em Frege, não sob o nome de função
proposicional, mas sob o nome de conceito. Há diferenças nas definições de função proposicional dada por esses autores que não trataremos aqui, mas que podem ser relevantes em outros contextos,
como uma discussão sobre o estatuto ontológico da função proposicional, por exemplo.2 Para os propósitos do livro, interessa-nos
apenas que Russell trata a função proposicional como uma expressão e que Piaget, influenciado pelos trabalhos de Russell, o faz
da mesma forma.
2. Sobre as diferentes abordagens da função proposicional por Frege e Russell,
Bochenski (1966, p.336) escreve: “Russell, que conhece bem Frege, segue o
pensamento desse grande lógico, senão com duas diferenças: não parte, como
Frege, do conceito matemático de função, mas de análises aristotélicas das sentenças; mas logo parece interpretar a palavra ‘função’, segundo havia dito, como
nome de uma expressão, de uma fórmula escrita”. Notemos que Frege não define função como uma expressão, pois, para ele, os entes matemáticos não são
meras expressões, estas apenas os designam.
100
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
Segundo Piaget (1976, p.45-46), uma função proposicional
também pode ser transformada em proposição de dois modos: podemos dizer que todos os x têm a propriedade a ou que ao menos
um x tem tal propriedade. No primeiro caso, a notação dada por
Piaget é (x)ax, e, no segundo caso, a notação é (∃x)ax. Notemos
que tanto (x)ax ׅcomo (∃x)ax são possíveis proposições, pois, conforme a determinação do argumento x e do predicado a, terão seu
valor de verdade ou de falsidade definidos.
Sob influência de Russell, Piaget distinguirá funções proposicionais de classes lógicas. Consta nas referências bibliográficas do
Ensaio, o livro de Russell, intitulado Introdução à Filosofia da Matemática, que é a principal referência de Piaget ao fazer a distinção
supracitada (Piaget parafraseia partes dessa obra).
Na Introdução à Filosofia da Matemática, Russell (1966, p.177)
formula cinco condições, necessárias e suficientes, para a existência
lógica de uma classe. Vejamos duas delas, que Piaget (1976, p.46)
cita no Ensaio, particularmente no contexto da distinção entre
função proposicional e classe, enquanto as outras condições elaboradas por Russell são, segundo Piaget, “[...] condições restritivas às
classes matemáticas (conjuntos), que não nos interessam aqui”.
(idem, p.46)
A primeira das condições necessárias e suficientes para a existência lógica de uma classe é: toda classe é definida por uma função
proposicional, tal que a proposição resultante na substituição na
função é verdadeira para os membros da classe e falsa com relação
aos que não são membros dessas classes (Russel, 1966, p.177). Por
exemplo, a classe dos Homens é determinada a partir dos possíveis
termos que venham a substituir a variável x na expressão H(x) e
que tenham a propriedade H de ser homem, ou seja, que resultem
em uma proposição verdadeira. Nesse sentido, diz-nos Russell:
“Tudo o que estamos observando no momento é que uma classe é
tornada determinada por uma função proposicional e que toda
função proposicional determina uma classe apropriada” (Russel,
1966, p.177).
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
101
A segunda condição, dada por Russell é: “Duas funções formalmente equivalentes devem determinar a mesma classe, e duas
que não são formalmente equivalentes devem determinar classes
diferentes” (idem, p.177). Um exemplo de funções equivalentes é
dado por Piaget no Ensaio é: “x é 4” e “x é 2 + 2”; nesse caso, essas
funções são equivalentes, pois determinam a mesma classe, com
um único elemento, o número 4. Assim, segundo Russell,
É o fato de haver outras funções formalmente equivalentes a uma
função dada o que impossibilita identificar uma classe com
uma função; pois desejamos que as classes sejam tais que não
haja duas classes distintas tendo exatamente os mesmos membros, e, portanto, duas funções formalmente equivalentes terão
de determinar a mesma classe. (Ibidem, p.176)
Com base nessa distinção de Russel entre função proposicional
e classe lógica, Piaget define classes a partir da noção de função
proposicional do seguinte modo:
Definição 8. – Uma classe é o conjunto dos termos que podem ser
substituídos uns pelos outros a título de argumentos conferindo um
valor de verdade a uma função proposicional. (Piaget, 1976, p.49)
Piaget denota por {x│ax} o conjunto dos elementos que
podem ser substituídos uns pelos outros a título de argumentos,
conferindo um valor de verdade a uma função proposicional.
Ora, se uma classe pode ser definida a partir de uma função
proposicional, então, como nos diz Piaget, “[...] a classe não se
reduz a uma coleção física, mas resulta da substituição de um indivíduo por outro, no seio de uma proposição: a primeira condição da
existência de uma classe é, pois, de fato, a construção de uma
função proposicional” (idem, p.46). Piaget também argumenta que
“uma classe lógica não poderia ser concebida, com efeito, como um
simples amontoado de indivíduos: a melhor prova disto, diz Russell, é que uma classe pode ser vazia” (Piaget, 1976, p.46).
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
Essa condição da função proposicional como logicamente anterior à classe é, também, comentada por Russell (1966, p.175),
que a considera “o equipamento final do mundo”. Sobre a importância da função proposicional para a existência lógica das classes,
comenta Piaget:
Ora, depois de ter sido objeto de uma organização admirável nos
trabalhos de Russell, a lógica das classes foi abandonada por ele
como o fundamento do edifício lógico [...] A noção capital, que se
deve a Russell, e que associa do modo mais natural a noção de
classe à da proposição [...] é a noção de “função proposicional”.
(Piaget, 1976, p.45)
Em suma, podemos dizer, então, que, para Piaget, a função
proposicional é condição necessária para a constituição de uma
classe e, por conseguinte, da construção de uma lógica das classes.3
Isso mostra a importância da função proposicional como a base do
edifício lógico na hierarquia das estruturas, principalmente se a
Lógica Operatória for vista pela perspectiva de uma lógica das totalidades operatórias, como Piaget quer mostrar no Ensaio.
Piaget, no Ensaio, procura mostrar que as operações lógicas estariam interligadas como um todo, segundo o que ele chama de sistemas de conjunto (cf., por exemplo, idem, p.27) ou de uma lógica
das totalidades operatórias (cf., por exemplo, ibidem, p.47).
Uma lógica das totalidades seria semelhante às operações de
conjunto ou de totalidade desenvolvida na Matemática, em que,
como observa Piaget, “[...] as operações não existem em estado isolado, mas são solidárias com estruturas globais” (ibidem, p.25).
3. Em teoria de conjuntos, o princípio que expressa funções proposicionais como
condição de constituição de classes é, em geral, o axioma da compreensão. Na
teoria Zermelo-Fraenkel de conjuntos, o axioma da compreensão diz que, para
todo conjunto A e para toda função proposicional P(x), corresponde um conjunto H, cujos elementos são exatamente aqueles x de A para os quais P(x) é
verdadeira. Nesse caso, fica claro a importância da função proposicional para
se definir conjuntos.
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
103
Um exemplo dado pelo autor são os “corpos”, “anéis” e outros sistemas algébricos que, a partir de leis de composição de seu conjunto, se constituem como um todo articulado.
Segundo Piaget (1976, p.27), o mesmo ocorre na Psicologia.
Entende o autor que, nesse domínio, as operações do pensamento
não estão isoladas, mas apoiam-se em sistemas de conjunto. Nesse
sentido, como vimos no capítulo 2, seção 1, as estruturas lógico-matemáticas, construídas pelo sujeito, estariam interligadas e ordenadas de modo que as estruturas se sucedem hierarquicamente,
sendo a forma de uma estrutura de nível inferior o conteúdo de
uma estrutura de nível superior.
Sobre a visão de um sistema de conjunto tanto na Matemática
quanto na Psicologia, escreve Piaget:
Tanto em matemática quanto em psicologia, quer dizer, nas duas
disciplinas entre as quais a lógica se coloca, o papel das totalidades
operatórias, com suas propriedades de conjunto, tornou-se fundamental nas sistematizações das operações abstratas, bem como
das operações reais em jogo no pensamento em ação. (Idem, p.25)
Se a Lógica é, como vimos no capítulo 2, seção 1, a teoria formal
das operações dedutivas, tal que essas operações estão “encarnadas” pela psicologia de um sujeito e são desenvolvidas no plano
simbólico e formal das teorias lógico-matemáticas, Piaget (1976,
p.25) pergunta-se, então, no Ensaio, se a Lógica, que se coloca entre
a Psicologia e a Matemática, não seria, também, um sistema de
conjunto, isto é, se a Lógica não poderia ser sistematizada segundo
uma lógica das totalidades operatórias, assim como se faz na Matemática e na Psicologia. É nesse sentido que Piaget proporá uma lógica das totalidades operatórias “[...] do duplo ponto de vista da
lógica das proposições e da lógica das classes e das relações” (idem,
p.28).
Antes de passarmos para as descrições das totalidades operatórias das proposições, das classes e das relações, vejamos o que
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
Piaget entende por relação e como esta se coordena com as classes
lógicas.
Piaget define relação, em primeira aproximação, no §4 do Ensaio do seguinte modo:
Definição 9. – Uma relação é o que caracteriza um termo por intermédio de um outro. (Idem, p.52)
Tomemos como exemplo de uso de relação a proposição “a
maçã é menor que a melancia”. Os termos “maçã” e “melancia”
são relativos um ao outro, segundo o termo “é menor que”. Se expressarmos esse termo por a e a possibilidade de substituição dos
termos “maçã” e “melancia” por outro, na referida proposição,
pelas variáveis x e y, então obtemos uma expressão geral para proposições que expressam uma relação entre dois elementos, a saber:
axy. Notemos que a relação axy é, também, uma função proposicional.
Observa Piaget (1976, p.53-4) que toda função proposicional,
seja na forma axy ou na forma ax, é uma relação. No caso de axy, a
relação a está explicitada. Mas, também, em ax, pode-se admitir
uma relação implícita (com exceção das classes vazias), pois, embora ax expresse que apenas um termo x tem a propriedade a, essa
propriedade pode englobar o conjunto dos termos x1, x2 etc. que
têm tal propriedade (e que podem substituir x na função, mantendo-a verdadeira). Por exemplo, embora expressemos a proposição “o cravo é vermelho” por ax, existem outros termos que têm a
propriedade de ser vermelhos, o que nos leva a expressar a função
ax por ax1, ax2 etc. Notemos que, nesse caso, a relação está implicitamente colocada, podendo ser assim explicitada: ax1x2; um
exemplo de proposição expressa nessa forma é: “o cravo é vermelho
como a rosa”. Sobre o caso de uma função proposicional ser um
tipo de relação tanto na forma axy quanto na forma ax, escreve
Piaget:
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
105
[...] toda função a, tanto na forma ax quanto axy, constituirá uma
relação; a única diferença será que, em axy, a relação a é explicitamente colocada como relação [...] entre x e y, enquanto em ax
trata-se de uma relação simétrica que permanece entre os argumentos x1 e x2, etc. substitutivos de x. (Piaget, 1976, p.53-4)
Notemos, ademais, que uma relação não se confunde com uma
classe. Segundo Piaget, enquanto “[...] uma classe é a reunião de
termos individuais (ou uma reunião de outras classes cujas subclasses reúnem sempre, elas próprias, em definitivo, termos individuais) [...] uma relação é, ao contrário, o que permite reunir estes
termos segundo suas equivalências, sua ordem, etc.” (idem, p.50).
O autor nos diz que a noção de classe e relação corresponde ao que
se entendia, tradicionalmente em Lógica, por extensão e compreensão de um conceito, respectivamente. Sobre isso, diz-nos: “A
lógica tradicional, que não distinguia as classes e as relações, mas as
reunia sob o termo indiferenciado de ‘conceitos’, opunha, por outro
lado, cuidadosamente uma à outra, a extensão e a compreensão”.
Diz-nos Bochenski (1966, p.265 e 272), em História da Lógica
Formal, que a noção de extensão e compreensão de um conceito,
desde já muito antiga, recebeu tratamento explícito somente no século XVII, com o manual de Lógica La Logique ou L’art de penser,
também chamado de Logique du Port Royal, dos autores P. Nicole e
A. Arnault. Em La Logique, a noção de extensão (étendue) de conceito é distinta da de compreensão (compréhension) de um conceito.
A compreensão de um conceito são as características ou atributos
que são próprios ao conceito de algo; sobre isso, Bochenski oferece-nos, como exemplo, a compreensão do conceito de triângulo, o
qual abarca: figura, três linhas, três ângulos etc. A extensão de um
conceito são os sujeitos que caem sob esse conceito; assim, a extensão do conceito de triângulo são todos os triângulos existentes.
Ciente dessa distinção entre extensão e compreensão de um
conceito, Piaget escreve: “[...] a extensão é, por definição, o conjunto dos indivíduos aos quais se aplica (justamente) o conceito
[...]. Essa extensão corresponde assim ao que se chama hoje de
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
classe, e pode-se definir como classe todo conceito em extensão (cf.
definição 8)” (Piaget, 1976, p.50). Por outro lado, “[...] a compreensão é o conjunto dos atributos que possuem em comum esses
indivíduos” e que, nesse sentido, “[...] permite reunir os x, ou os x
e os y, é a função ela mesma, a ou b, que é ‘compreensão’ e vamos
ver que é ela que constitui, em todos os casos, a relação” (idem,
p.50).
Assim, como podemos notar, segundo a perspectiva de uma
lógica das totalidades operatórias ou ainda de uma Lógica Operatória, como pretende Piaget que seja a Lógica, a função proposicional é o que há de mais fundamental, pois ela permite explicitar a
forma e a constituição das operações elementares como as de classificação4 e relacionamento. Nesse sentido, a existência da função proposicional é condição das operações elementares de classificação e
relacionamento. Em relação às operações intraproposicionais (ver
capítulo 2, seção 1 deste trabalho), temos que, segundo Piaget, “é a
passagem da proposição como tal à função proposicional que leva,
portanto, ao estudo das operações intraproposicionais” (ibidem,
p.45).
As operações intraproposicionais (condição das operações
sobre classes e relações) constituem, segundo Piaget (1976, p.28),
“operações de primeira potência”, pois elas formam um todo e são,
na hierarquia das estruturas, construções de níveis mais elementares. Já as operações interproposicionais (operações de negação,
conjunção, condicional etc.) são “operações de segunda potência”,
pois uma proposição qualquer pressupõe como conteúdo uma operação de classes e relações.
4. As operações elementares de classificação e seriação são estudadas em detalhes
na obra Gênese das estruturas lógicas elementares (1959), que é o resultado de
estudos que Piaget realizou em parceria com sua colaboradora Bärbel Inhelder.
Não trataremos desse estudo por fugir do foco de nosso trabalho, mas cabe
observar que, nessa obra, é realizado um estudo experimental profundo sobre
os “mecanismos” que se encarregam da evolução e são condições necessárias a
tais operações elementares.
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
107
O Ensaio propriamente dito é, então, dividido em duas grandes
partes. Na parte I, o autor nos apresenta um estudo das operações
intraproposicionais, mostrando como as classes e as relações se articulam como um todo a partir das operações sobre funções proposicionais. Na parte II, é realizado um estudo das operações
interproposicionais, no qual o autor mostra que são “[...] ao mesmo
tempo superiores às precedentes e influenciando sobre seu resultado (já que uma proposição é, quanto a seu conteúdo, uma operação de classes e de relações)” (Piaget, 1976, p.28).
Veremos, nas seções seguintes, como a função proposicional
tem um correspondente psicológico na realidade do sujeito e como
esse sujeito dará condições para o surgimento da função proposicional. Será feita uma análise de condições psicológicas necessárias
ao surgimento da função proposicional em um sujeito psicológico
e, por conseguinte, em um sujeito produtor de conhecimento, o sujeito epistêmico.
2. Uma questão de fato: como o sujeito
epistêmico usa e se torna capaz de usar funções
proposicionais?
Com base nas discussões de princípio realizadas nos capítulos
anteriores e dada a definição de função proposicional, reapresentamos, nesta seção, a questão central deste livro. Em face da presente questão, perguntamo-nos qual é a correspondência entre
função proposicional, estudada com autonomia pelo lógico, e as
estruturas do sujeito psicológico. Veremos que à função proposicional corresponde, psicologicamente, o esquema conceitual.
Vimos, no capítulo anterior, que Piaget considera que a Lógica
é uma axiomática das estruturas operatórias da qual a Psicologia e a
Sociologia do pensamento estudam o funcionamento real. Se aceitarmos tal posição, temos que as estruturas elementares de classes,
de relações, de proposições etc., formalizadas com toda a independência e autonomia pelo lógico, têm correspondências com as
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
“operações” do pensamento natural; logo, uma das questões de
fato que surgem é a de compreender qual é a correspondência entre
o uso da função proposicional e as estruturas do sujeito psicológico.
Nesse sentido, assentado o terreno das discussões de princípio, nos
capítulos anteriores, podemos, agora, reapresentar a questão central de nosso livro, nos termos já mencionados na Introdução, para
analisá-la mais detalhadamente:
Como o sujeito epistêmico usa e se torna capaz de usar funções
proposicionais na estruturação lógico-matemática que ele faz da realidade?
Comecemos nosso estudo da correspondência entre a função
proposicional e as estruturas do sujeito epistêmico, a partir da sua
relação com a construção das classes, apresentada por Piaget no § 8
do Ensaio (1976, p.74). Consideremos, então, uma operação de
substituição simples: se ax1 significa, por exemplo, para o sujeito
epistêmico, a proposição “x1 é de madeira”, ele pode substituir x1
por x2, x3 etc., (sendo que esses objetos têm a propriedade de ser
madeira), conservando o valor de veracidade das proposições resultantes dessa substituição. Essa operação, diz-nos Piaget (1976,
p.74), tem um correspondente psicológico na realidade. Nesse sentido, escreve ele: “Do ponto de vista das operações reais do sujeito,
quer dizer, do ponto de vista psicológico, a substituição simples
corresponde a um mecanismo perfeitamente geral da ação e do
pensamento, que é o da identificação dos objetos a um esquema de
atividade”.
Podemos entender a expressão “esquema de atividade” aqui
como se estendendo a noção de esquema de ação, ou seja, a estrutura ou a organização dessa atividade, a qual se transfere ou generaliza no momento da repetição da atividade, em circunstâncias
semelhantes ou análogas.5 Notamos, então, uma semelhança entre
uma função proposicional e um esquema de ação. Qual seria o seu
5. Lembremos que, como vimos no capítulo 1, seção 1, “um esquema [de ação] é
a estrutura ou a organização das ações, as quais se transferem ou generalizam
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
109
significado? Será que a função proposicional tem origem em um esquema de ação?
Piaget, em O nascimento da inteligência na criança, diz-nos que
existe uma analogia de ordem funcional entre um esquema de ação
e um esquema conceitual. Escreve ele:
No tocante, em primeiro lugar, às classes ou aos gêneros é evidente que o “esquema móvel”, apesar de todas as diferenças de
estrutura que o separam desses seres lógicos, é-lhes funcionalmente semelhante. Como eles, de fato, o “esquema móvel” denota
sempre um ou mais objetos, por “pertença”. (Piaget, 1975b,
p.228)
Nesse sentido, de forma geral, quando uma criança aplica um
esquema de ação a um objeto – por exemplo, suga seu polegar –,
existe uma espécie de identificação prática de um objeto a um esquema de ação – por exemplo, o polegar (objeto) é considerado pelo
sujeito como “sugável”, relativo ao esquema de sugar.
Tendo em vista tais semelhanças, segundo Apostel et al., em
As ligações analíticas e sintéticas no comportamento do sujeito, podemos definir a extensão e a compreensão de um esquema de ação:
“Df. 8. A extensão de um esquema é a reunião das extensões de
ações das quais ele é o esquema. A compreensão de um esquema é o
esquema em si mesmo” (Apostel et al., 1957, p.48, tradução nossa).
Em seguida, ainda nos diz: “Df. 8 bis. A extensão de uma ação é a
reunião de objetos sobre os quais ela porta” (idem, p.48, tradução
nossa). Nesse sentido, podemos notar que um esquema de ação,
assim como um esquema conceitual, reúne objetos (extensão) por
meio de uma propriedade comum (compreensão).
Porém, no período sensório-motor, a criança não consegue,
ainda, conceber a extensão da sua ação ou, como nos diz Piaget:
“[...] a assimilação sensório-motora, que conhece a compreensão
no momento da repetição da ação, em circunstâncias semelhantes ou análogas”
(Piaget, 1990, p.15).
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
não comporta extensão do ponto de vista do sujeito”. Assim, existe
um longo percurso do surgimento dos esquemas sensório-motores
à possibilidade de o sujeito epistêmico ser capaz de usar a função
proposicional. Sendo assim, qual seria, então, o correspondente
psicológico da função proposicional?
No § 4 do Ensaio, Piaget (1976, p.46) nos diz que a função proposicional, como primeira condição da existência da lógica das
classes, tem um equivalente psicológico: um esquema de identificação conceitual.
Notemos que um esquema de identificação conceitual implica,
primeiramente, que um sujeito seja capaz de atribuir uma mesma
propriedade a diferentes objetos, analogamente, como vimos, ao
esquema de ação sensório-motor. Mais ainda, voltando ao exemplo
supracitado, vemos que o sujeito consegue determinar não apenas
que um objeto x1 tem a propriedade a, (por exemplo, ser de madeira), mas que também os objetos x2, x3 etc. têm a propriedade a,
por meio da substituição simples, já mencionada. Essa ligação dos
esquemas de identificação conceitual com o sistema de esquemas
de ação é o que nos permite dizer que há uma significação concreta
associada aos esquemas conceituais. Nesse sentido, escreve Piaget
que
No exemplo escolhido, se uma ação, que se refere a um pedaço de
madeira x1, é repetida em outros objetos que poderão ser igualmente cortados, talhados, etc., estes objetos x2, x3, etc., serão
então comparados com o primeiro, do ponto de vista do esquema
da ação considerada, e é a formalização deste cotejo que constitui a
operação lógica elementar da substituição. Por outro lado, o próprio esquema destas ações, ou dos juízos emitidos a seu respeito,
corresponde ao predicado a. (Piaget, 1976, p.74-5)
Se, de fato, “o próprio esquema destas ações, ou dos juízos
emitidos a seu respeito, corresponde ao predicado a”, cabe se perguntar, então, por que a assimilação de um dado por um esquema
sensório-motor não é condição suficiente para a existência de es-
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
111
quemas de identificação conceitual. Mais ainda, considerando os
“juízos emitidos a seu respeito”, cabe perguntar se as verbalizações
feitas pelas crianças, por exemplo, “este besouro é um bicho”, não
seriam, ainda, evidências da existência de um esquema de identificação conceitual?
Veremos que não, pois a aquisição dos esquemas conceituais
não supõe apenas que a criança verbalize o reconhecimento de
certas propriedades dos objetos, mas, também, que ela seja capaz
de coordenar suas extensões, em especial, seja capaz de coordenações reversíveis parte-todo.
Segundo Piaget, no capítulo VIII de A formação do símbolo na
criança,
[...] para que a criança pudesse tomar uma decisão sobre isso [de
decidir se um besouro e pequenas minhocas são bichos, por
exemplo], [seria preciso] que ela soubesse reunir as partes num
todo segundo um modo de composição reversível [...]. (Piaget,
1975a, p.291)
Para citar um caso de irreversibilidade, consideremos o experimento de transvasamento dos líquidos no qual se apresentam dois
recipientes para uma criança, os recipientes A e B, sendo este último
mais estreito e mais alto. Os recipientes apresentam volumes iguais,
variando apenas no formato. A intenção é passar o volume de água
de um recipiente a outro de modo a observar se a criança consegue
perceber a conservação do líquido, embora os recipientes tenham
formas diferentes. A pergunta que é feita a elas antecipadamente é
se haverá ou não conservação do líquido transvasado de um recipiente a outro. O experimento mostra que crianças do período pré-operatório são incapazes ainda de perceber a conservação do
líquido. Experimentos como esses mostram que as crianças do pré-operatório raciocinam, segundo Piaget,
[…] somente sobre estados ou configurações estáticas, negligenciando as transformações como tais. Para atingir a estas últimas, ao
112
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
contrário, é preciso raciocinar por meio de “operações” reversíveis
e estas só se constroem pouco a pouco, por uma regularização progressiva das compensações em jogo. (Piaget, 2002, p.72, grifo do
autor)
Nesse sentido, na medida em que a criança é capaz de antecipar suas ações e reconstituí-las, há, segundo Piaget, a preparação
da reversibilidade, “[...] bastando [pois] prolongar esta ação interiorizada, no sentido da mobilidade reversível, para transformá-la
em ‘operação’” (idem, p.36).
Visando a esse momento crucial de preparação da reversibilidade, centramos a nossa investigação no início das primeiras operações lógicas realizadas pelo sujeito, ou seja, no nível que Piaget
chama de “período operatório concreto”, aproximadamente entre
7-8 a 11-12 anos; marco que podemos considerar crucial para a
construção das operações, pois, segundo Piaget, como já citado,
“[...] as operações concretas estabelecem, portanto, muito bem a
transição entre a ação e as estruturas lógicas mais gerais [...]”
(Piaget, 1990, p.86). É, pois, nesse nível que surge a coordenação
reversível parte-todo.
Retomando a noção de reversibilidade mencionada, brevemente, na seção 1 do capítulo 2, temos que uma transformação reversível é a possibilidade de desenvolver uma ação não apenas em
um sentido, mas também no sentido contrário. Em outras palavras,
é a possibilidade de coordenar uma ação a, que parte de um estado
A e resulta no estado B, com uma ação b, que parte do estado B e
resulta no estado A, de forma a anular a ação, resultando a inversa
dessa coordenação. Nesse sentido, no caso da coordenação reversível parte-todo, a criança tem a possibilidade de coordenar uma
ação a de comparação que vai da parte A ao todo B, com uma ação b
de comparação que vai do todo B à parte A, de forma a saber que a
parte compõe o todo e que o todo é composto pela parte.
Existem inúmeros experimentos que evidenciam essa capacidade da criança de coordenação parte-todo através de uma coordenação reversível, e mostram, por si, como ela é, de fato, gradual e
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
113
necessária à aquisição do esquema conceitual. Dentre eles, consideremos, por exemplo, o experimento das contas de madeira, descrito por Piaget na obra A gênese do número na criança (Piaget &
Szeminska, 1975, capítulo VII). Nesse experimento, tem-se uma
caixa com várias contas de madeiras, sendo a grande maioria da cor
castanha e apenas duas da cor branca.
Algumas das perguntas que são feitas à criança são: “Há mais
contas de madeira ou contas castanhas?”; “que colar seria mais comprido, o que se poderia fazer com contas de madeira ou com as contas
castanhas?” (pede-se, inclusive, para a criança desenhar um e outro
colar, antes de se fazer essa pergunta).
Nesse caso, a coordenação reversível parte-todo possibilita à
criança coordenar uma ação a de comparação da parte A (contas
castanhas) com o todo B (contas de madeira), com uma ação b, de
comparação do todo B (contas de madeira) com a parte A (contas
castanhas), de forma a saber que, no caso, existem mais contas de
madeira (todo) do que contas castanhas (parte).
Vejamos um exemplo de como as crianças respondem aos
questionamentos de Piaget:
Stro (6 anos): “Existem nesta caixa mais contas de madeira ou
mais contas castanhas? – Mais contas castanhas. – Por quê? –
Porque das de madeira só há duas. – Mas as castanhas não são
também de madeira? – Ah, sim. – Então, há mais castanhas ou
mais de madeira? – Mais castanhas. (Piaget & Szeminska, 1975,
p.227)
Oli (5;2): “Estas contas são todas castanhas? – Não, há duas
brancas. – Elas são todas de madeira? – Sim. – Se se despejasse
todas as contas de madeira aqui, sobraria alguma? – Não. – Se se
despejasse ali todas as castanhas, sobraria alguma? – Sim, as duas
brancas. – Então, que colar seria mais comprido, o que se poderia
fazer com as castanhas desta caixa ou o que se poderia fazer com as
contas de madeira desta outra caixa? – O das castanhas. (Piaget &
Szeminska, 1975, p.228)
114
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
Notemos que a criança, muito embora diga que uma determinada conta tem a propriedade de ser de madeira (todo), de ser castanha (parte) ou de ser branca (parte), ela não compreende que há
mais contas de madeira (todo) do que castanhas ou brancas (parte).
Sobre essa incapacidade de coordenar reversivelmente a parte e o
seu todo, Piaget e Szeminska escrevem:
Tudo se passa como se a criança, pensando na parte, esquecesse o
todo e vice-versa. Ou melhor, a criança, quando pensa no todo,
consegue bem se representar as partes ainda não dissociadas (pois,
por exemplo, desenha corretamente o colar correspondente ao
todo e distingue muito bem nesse todo uma vintena de contas castanhas e duas contas brancas), mas, quando procura dissociar
uma das partes, não consegue mais se lembrar do todo ou levá-lo
em consideração, limitando-se a comparar a parte de que se ocupa
com a parte restante, ou seja, ao resíduo do todo primitivo. Assim,
se pensa nas contas castanhas, a criança não as compara, com
efeito, senão às contas brancas, e não mais ao conjunto das contas
de madeira. (Piaget & Szeminska, 1975, p.235)
Casos semelhantes podem ser encontrados não apenas em experimentos psicológicos controlados, mas também em observações
dos comportamentos espontâneos das crianças desse nível. No capítulo VIII de A formação do símbolo na criança, encontramos um
caso particularmente interessante para os propósitos aqui apresentados:
Aos 2;1 (13), J. quer ir ver um pequeno vizinho corcunda que ela
encontra a passeio. Alguns dias antes, J., depois de minhas explicações sobre o porquê dessa corcunda, que queria saber, disse:
“Pobre rapaz, ele é doente, tem uma corcunda.” Na véspera, J. já
tinha desejado revê-lo, mas estava gripado, o que J. chamava de
estar “doente de cama”. Saímos então a passeio e, a caminho, J.
pergunta: “Ele ainda está doente de cama?” – Não, eu o vi hoje de
manhã, não está mais de cama. (Piaget, 1975a, p.296)
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
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Relata Piaget que Jaqueline, uma de suas filhas, ao observar o
corcunda com gripe, insere todas as doenças em uma mesma classe
e raciocina que, se o corcunda se cura da gripe, então deixa de ser
corcunda. Piaget chama esse tipo de raciocínio, presente no pré-operatório, de transdução. Segundo ele,
[...] a transdução é um raciocínio sem imbricações reversíveis de
classes hierárquicas, nem de relações. Sendo sistema de coordenações sem imbricações, por conexão direta entre esquemas
semissingulares, a transdução será, pois, uma espécie de experiência mental que prolonga as coordenações de esquemas sensório-motores no plano das representações; como não constituem
conceitos gerais, e sim meros esquemas de ações evocados mentalmente, essas representações ficarão a meio-caminho entre o símbolo-imagem e o próprio conceito. (Idem, p.300)
A transdução é um raciocínio típico do período pré-operatório,
sendo, grosso modo, uma inferência do particular para o particular.
Ela nos revela quais as estruturas que estão subjacentes às condutas
verbais das crianças. Tanto o experimento das contas, quanto a observação do corcunda apresentados são, como facilmente podemos
observar, casos de raciocínios transdutivos, e mostram que as
crianças do pré-operatório, embora digam que esse ou aquele objeto
tem essa ou aquela propriedade, são incapazes, ainda, de coordenar
de modo reversível parte-todo.
No experimento das contas, ela é incapaz de compreender não
apenas que toda conta castanha e branca é uma conta de madeira,
mas, igualmente, de compreender o seu inverso. Também, na observação do corcunda, a criança identifica as duas doenças e as insere em uma única classe, em vez de distingui-las em classes
separadas e inseri-las segundo uma relação reversível de parte-todo, em que estar gripado e ser corcunda são duas doenças dentre
outras, na classe das doenças em geral.
Por que, então, isso acontece? Por que a criança, mesmo verbalizando que um objeto tem ou não uma determinada propriedade
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
ainda não é capaz de coordenar parte-todo? Em outras palavras,
quais são os esquemas necessários para as coordenações reversíveis
parte-todo e como ocorre, em detalhes, a passagem do raciocínio
transdutivo ao raciocínio lógico-matemático usual? Quais as estruturas determinantes para a aquisição do esquema conceitual? É o
que veremos na próxima seção.
3. Da ação sobre a experiência sensível à
estruturação lógico-matemática do real:
análise de condições necessárias ao uso
da função proposicional
Nesta seção veremos como surge uma das condições necessárias aos primeiros raciocínios lógico-matemáticos. Veremos, em detalhes, como se dá a passagem das ações sobre a experiência
sensível, do final do período pré-operatório, às primeiras estruturações lógicas do real, no início do período operatório concreto. Em
especial, detalharemos como as estruturas desse período darão condição para o surgimento dos esquemas conceituais e, com efeito,
para o uso pleno da função proposicional no período operatório
formal.
No capítulo VIII de A formação do símbolo na criança, todo
consagrado à passagem dos esquemas sensório-motores aos esquemas conceituais, Piaget analisa a progressiva e lenta constituição dos esquemas conceituais. Segundo ele (1975a, p.278), os
esquemas conceituais se constituem a partir dos esquemas sensório-motores, não se dispensando, com isso, a importância da socialização e da linguagem, que são dimensões de sua interação com
o meio, influenciando a construção de seu sistema de esquemas de
ação. Nesse mesmo capítulo, em um parágrafo intitulado “Da inteligência sensório-motora à representação cognitiva”, diz-nos Piaget
(1975a, p.304-5) que, para passarmos da inteligência sensório-motora ao pensamento conceitual, seriam necessárias, em resumo, as
seguintes condições:
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
117
A) “[...] um sistema de operações que transponha as ações exteriores de sentido único para ações mentais móveis e reversíveis”
(idem, p.305). Em outras palavras, que o sujeito seja capaz de
realizar ações mentais e que, com isso, ele seja capaz de antecipar
um ato, não atrelado, necessariamente, a um esquema sensório-motor em curso. Mais do que isso, que o sujeito seja capaz de,
por meio de ações mentais, realizar uma ação reversível, de sentido contrário à ação inicial, isto é, de saber, por exemplo, que as
partes compõem o todo e que o todo é composto pelas partes;
B) “[...] uma coordenação interindividual das operações, que assegure, ao mesmo tempo, a reciprocidade geral dos pontos de vista
e a correspondência do pormenor das operações e dos resultados
respectivos”(ibidem, p.305). Consequentemente, que o sujeito
seja capaz de utilizar-se de sistemas de signos verbais e que, reciprocamente, esses signos verbais permitam a comunicação entre
os sujeitos, ou seja, a coordenação interindividual das operações
realizadas pelos sujeitos. Segundo Piaget (1975b, p.282) o “[...]
conceito anuncia o elemento característico de comunicação, porquanto são designados por fonemas verbais que os colocam em
relação com a ação de outrem”. Em uma outra passagem, diz-nos ainda (1975b, p.282): “[...] o conceito supõe uma definição
fixa, a qual corresponde, ela própria, a uma convenção estável
que atribui sua significação ao signo verbal”.
Por entendermos que ambas as condições são por demais complexas para serem tratadas no espaço deste livro, decidimos aprofundar nosso estudo, como dissemos na seção anterior, na condição
descrita pelo termo A, isto é, a capacidade do sujeito de coordenar
reversivelmente a parte e o todo.
Em Tassinari (1998), encontramos elementos que nos ajudam
a compreender melhor as estruturas subjacentes às primeiras coordenações reversíveis parte-todo tratadas por Piaget. Tassinari,
nessa dissertação de mestrado, explicita-nos, na obra de Piaget,
uma noção fundamental para compreendermos o momento crucial
da passagem das ações sobre a experiência sensível (do período pré-
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
-operatório) às operações do operatório concreto: a noção de transfiguração.
Essa noção foi proposta por Tassinari no contexto de sua orientação com a professora Zélia Ramozzi-Chiarottino. Na época, Ramozzi-Chiarottino respondia a uma crítica de Gilles-Gaston
Granger a Piaget.
Segundo Granger, haveria uma ruptura na obra de Jean Piaget,
em particular na explicação da passagem da ação sobre a experiência sensível ao aparecimento (para a consciência) das estruturas
lógico-matemáticas.
Desse ponto de vista neo-empirista, a passagem do operatório ao
formal é muito bem descrita por Piaget. Mas sempre nos pareceu
que a ruptura decisiva com a experiência sensível realizada pelo
aparecimento das estruturas lógico-matemáticas, que ele qualifica
de formais, foi por ele minimizada. É que, para ele, o simbolismo
é sempre apenas a notação ou o apoio de um comportamento, jamais um sistema de objetos interessantes em si mesmos e suscetíveis de reagir sobre o comportamento, em retorno. Língua natural
ou signos matemáticos, tudo se passa aparentemente como se
fossem apenas as codificações transparentes e neutras de uma atividade que somente preocuparia o psicólogo e o epistemólogo,
cujo objeto é descrever a gênese de sua organização. (Granger,
1979, p.62, tradução nossa)
Parece-nos que Granger busca apontar que Piaget não considera as formas puras das operações sobre signos realizadas pelos
matemáticos como “um sistema de objetos interessantes em si
mesmos”. Para Granger, Piaget considera que as operações sobre
signos seriam apenas a “notação ou o apoio de um comportamento”, isto é, estariam atreladas a uma psicologia do sujeito e somente a ela. Nesse sentido, haveria uma ruptura entre o simbolismo
que serve de notação, ou o apoio a um comportamento psicológico
(de interesse a uma Psicologia e a uma Epistemologia), e o forma-
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
119
lismo das estruturas matemáticas que aparecem no jogo sobre
signos realizado pelo matemático na construção da sua ciência.
Ramozzi-Chiarottino, em resposta às críticas de Granger, diz
que os textos de Piaget, de fato, permitem uma interpretação tal
como feita por Granger. Mas também considera que uma outra é
possível, com base nos escritos menores de Piaget sobre a imagem
mental. Sua interpretação encontra-se nos textos: L’Image mentale
et la question de la rupture de la raison (ou intelligence) avec l’expérience sensible e “Logique, Biologie et société dans le modèle piagetien de la connaissance”.
Segundo Tassinari (1998, p.3) a interpretação de Ramozzi-Chiarottino “[...] explicita tal passagem, cujos principais resultados acabam por mostrar o papel da imagem na elaboração do
sistema de operações; dentre eles [...] o de representante dos estados sobre os quais o sujeito opera”. Nesse caso, parece-nos que a
ruptura apontada por Granger encontraria no sistema de operações
sobre imagens mentais uma passagem gradual das ações sobre a experiência sensível ao aparecimento das estruturas lógico-matemáticas. Não nos interessa aqui, propriamente, retomar essa discussão
sobre a qual, no nosso entender, são possíveis diversas visões. Interessa-nos sim, que essa questão levou a novas explicitações sobre o
pensamento do autor, principalmente explicitações sobre a construção da capacidade operatória do sujeito, sobre a qual versa a dissertação de Tassinari, na qual encontramos a noção de transfiguração
que utilizaremos neste trabalho e que nos ajudará a melhor compreender como o sujeito torna-se capaz de coordenar reversivelmente a parte e o todo.
No que se refere a essa noção, segundo Tassinari,
Uma transfiguração é uma ação virtual, reversível, realizável em
pensamento (endogenamente) pelo sujeito, que permite comparar
duas representações de objetos ou situações – tendo então a
imagem mental o papel do símbolo que permite evocá-los –
através da passagem de uma das representações (que chamaremos
estado 1) a outra representação (estado 2), sem fundi-las em uma
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
representação imagética única, ou seja, tendo consciência de que
se trata de dois objetos ou situações diferentes que são ligados pela
própria ação que os compara. (Tassinari, 1998, p.6)
O termo “transfiguração”, cunhado por Tassinari, permite-nos, segundo ele (1998, p.6-7), designar as ações interiorizadas
pelo sujeito na forma de ações interiorizadas sobre imagens, em
que “trans” significa “movimento para além de” e “figura” significa “imagem”.
Assim, segundo essa noção de transfiguração, o que será determinante para a coordenação reversível parte-todo é a capacidade
que o sujeito terá para pensar sobre imagens mentais. Segundo
Piaget,
Essa facilidade de pensar por imagens, juntamente com o parentesco estrutural que acabamos de notar entre as assimilações próprias ao símbolo lúdico e ao pré-conceito, leva-nos a inquirir se
este não participa ainda do esquema imagístico mais que o conceito propriamente dito, o qual se destacará dele precisamente
quando atingir o nível operatório. (Piaget, 1975a, p.292)
A coordenação do esquema imagístico é marcante no período
operatório concreto, no qual, como dissemos, surgem as primeiras
coordenações reversíveis parte-todo. Porém, o papel das imagens
mentais no pré-conceitual é diferente do papel das imagens mentais no operatório concreto, sobretudo no que se refere à aquisição
mais aproximada do esquema conceitual.
Segundo Piaget (1975a, p.310-1), no nível pré-conceitual, a
imagem individual é predominante nos raciocínios. É marcante,
nesse nível, como vimos, o raciocínio transdutivo. Tais raciocínios
evidenciam estar centrados na existência de um indivíduo tipo, que
como veremos a seguir, surge quando o sujeito elege uma imagem
mental que serve de representante da coisa significada, mas não
uma representação geral, como um conceito, mas ainda individualizada.
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
121
A título de exemplo, recorramos à observação 107 do capítulo
VIII de A formação do símbolo na criança. Relata Piaget (1975a,
p.289) que Jaqueline, sua filha, aos 2;6(3), ao caminhar no jardim,
vê uma lesma e, alguns metros adiante, vê outra lesma, designando
todas as lesmas que vê pelo termo “a lesma”. Porém, quando questionada por Piaget se é ou não a mesma lesma que ela vê durante o
passeio, ela diz que é e não é; quando Piaget insiste na pergunta, ela
não responde.
[...] mais ou menos aos 2;6, designa pelo termo “a lesma” as
lesmas que vamos ver, todos os dias de manhã, ao longo de certo
caminho. Aos 2;7(2), exclama: “Olhe ela ali!”, quando vê uma;
dez metros adiante, vemos outra e J. diz: “Outra vez a lesma.” Repondo: “Mas não é outra?” J. volta então para ver a primeira:
“Então é a mesma?” – “É.” – “Outra lesma?” – “É.” – “Outra ou
a mesma? – ...” É claro que a pergunta não tem sentido para J.
(Idem, p.289)
Constatações como essas nos indicam que Jaqueline ainda associa o termo “a lesma” a um único indivíduo tipo, o que nos leva a
pensar que ela usa uma única imagem mental como símbolo para
todas as lesmas que vê. Nesse sentido, ela não consegue, ainda, elaborar duas imagens mentais correspondentes a cada uma das
lesmas que vê sem fundi-las uma na outra.
Podemos concluir, então, que a criança, nesse período, não é
capaz de executar transfiguração, como definida anteriormente.
No entanto, quando a criança torna-se capaz de realizar transfigurações, ela torna-se capaz de representar cada uma das lesmas, separadamente, em imagens, sem fundir a representação da primeira
lesma com a da segunda, fazendo-as corresponderem a situações
distintas.
Quando uma transfiguração se generaliza a situações semelhantes, tal que o sujeito passa a ser capaz de, voltando ao exemplo
da lesma, identificar uma lesma a partir de outra e de aplicar essa
identificação a situações semelhantes, não apenas em um jardim,
122
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
mas em sua casa, no quarto etc., então, diz Tassinari (1998, p.7),
esse sujeito adquire um esquema de transfiguração. Nesse sentido,
de modo análogo ao esquema de ação definido por Piaget, Tassinari
(1998, p.7) define um esquema de transfiguração como “[...] o conjunto de qualidades gerais de uma transfiguração, ou seja, daquilo
que permite repetir a mesma transfiguração ou de aplicá-la a novos
conteúdos”.
Tassinari (1998, p.8) busca justificar a validade experimental
do conceito de transfiguração a partir dos dados e resultados experimentais e teóricos alcançados por Piaget e Barbel Inhelder na
obra A imagem mental na criança. Dentre os tipos de imagens estabelecidos pelos autores da obra, Tassinari nos chama a atenção para
o que Piaget designa de imagens antecipadoras.
Diz-nos Tassinari (1998, p.8) que uma imagem antecipadora
ocorre, segundo a concepção de Piaget, quando um modelo, que não
é conhecido, é antecipado pelo próprio sujeito em imagens. Segundo
Piaget (1990, p.62), ocorrem imagens antecipadoras quando, por
exemplo, a criança consegue imaginar transformações de uma figura
geométrica sem que ela tenha realizado essa transformação na experiência.
Ora, se, nesse caso, a criança é capaz de realizar, em pensamento, com imagens, transformações de uma figura geométrica,
então ela é capaz de construir e comparar uma imagem referente a
uma situação anterior de uma determinada figura geométrica com
a imagem atual dessa figura; ou seja, por definição, ela realiza uma
transfiguração. Inversamente, se a criança é capaz de realizar transfiguração, então ela é capaz, por exemplo, de imaginar transformações de uma figura geométrica nos seus diferentes estados sem
recorrer à experiência, ou seja, o sujeito possui imagens antecipadoras. Nesse sentido, Tassinari (1998, p.10) diz-nos que “[...] o sujeito será capaz de realizar transfiguração se, e somente se, conseguir
construir imagens antecipadoras”. Assim, a transfiguração é condição necessária e suficiente às imagens antecipadoras (idem, p. 8).
Sobre isso, nos diz:
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
123
[...] se a transfiguração é uma ação virtual que permite comparar
duas representações de objetos ou situações sem fundi-los em
uma representação imagética única, ela é condição necessária à
antecipação de evocação; por outro lado, ela é condição suficiente
na medida em que essa ação interiorizada permite a construção e
comparação da nova imagem com a situação anterior, sendo que
as características de distinção e identificação utilizadas na comparação são as mesmas usadas para a construção da nova imagem.
Assim, há transfiguração se, e somente se, houver “antecipação de
evocação” [imagens antecipadoras]. (Ibidem, p.8)
Notemos, então, que os esquemas de transfiguração permitem
ao sujeito agir sobre objetos no plano virtual das representações. A
ação sobre imagens antecipadoras dá ao sujeito condições para realizar operações sobre elas. Nesse sentido, há uma relação intrínseca
entre transfiguração e operação, a qual é explicitada por Tassinari.
O autor (1998, p.10) procura sustentar a hipótese de que “[...] estas
[operações] seriam schèmes [esquemas] de transfigurações ou
resultaria da coordenação destes”. Para verificar a sua hipótese,
Tassinari apresenta-nos sete razões sustentadas nos resultados experimentais de Piaget em A imagem mental na criança que não discutiremos aqui.
Se assumirmos a hipótese de Tassinari de que as operações
concretas seriam esquemas de transfigurações, então podemos
compreender que as operações de classes e de relacionamento seriam, inicialmente, esquemas de transfigurações. Segundo Tassinari (1998, p.6), “a transfiguração é condição tanto das classes
individuais (pois ela estabelece a individualidade estrita da representação dos objetos), quanto da representação precisa de uma
transformação do real (já vivida ou não pela criança)”. Nesse sentido, a capacidade de fixar duas imagens sem fundi-las dá ao objeto
representado uma identidade tal que o objeto representado seja um
objeto determinado pelos outros objetos que lhe servem como
comparação.
124
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
Ora, a existência de individualidade está diretamente relacionada à constituição das classes e vice-versa. O problema da ausência de individualidade e de classe geral, apontado por Piaget, é
então solucionado, pois, segundo ele,
[...] esses dois caracteres de ausência de identidade individual e de
ausência de classe geral na realidade são um só: é à falta de classes
de generalidade estável que os elementos individuais, não estando
reunidos num todo real que os enquadre, participam diretamente
uns dos outros sem individualidade permanente, e é à falta dessa
individualidade das partes que o conjunto não pode ser construído
como classe imbricante. (Piaget, 1975a, p.290)
A possibilidade de comparar imagens e extrair dessa comparação
uma propriedade ou um conceito, unindo os objetos pelo que há de
comum entre eles e separando-os pelas suas diferenças, é, se assim o
podemos dizer, o germe da constituição das operações de classes e de
relacionamento. Diríamos, então, que a constituição de um esquema
de transfiguração é condição da coordenação reversível parte-todo e,
consequentemente, condição necessária do esquema conceitual e do
uso da função proposicional pelo sujeito, nos casos concretos.
Com efeito, voltando ao experimento das contas de madeira,
podemos observar que, quando a criança se torna capaz de realizar
transfiguração, ela se torna capaz de comparar os elementos da percepção atual com outros imaginados. Em específico, ela é capaz de
passar de uma imagem mental (que, por exemplo, representa o
conjunto das contas castanhas distribuído espacialmente) a outra
imagem mental (que, por exemplo, representa o conjunto das
contas de madeiras distribuído espacialmente) e comparar seus significados entre si sem que uma exclua a outra e sem fundi-las em
uma única imagem, entendendo que se trata de duas coisas diferentes que são ligadas por essa própria ação endógena que as compara. Ao mesmo tempo, ela consegue coordenar parte e todo, pois
as imagens mentais servem na comparação para que ela se lembre
do todo (fixando-o em uma imagem mental) quando ela o compara
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
125
com as partes que o compõem (cada uma dessas partes está,
também, associada às imagens mentais). Assim, se a criança pensa
nas contas castanhas, ela as compara, com efeito, com as contas
brancas, e, também, com o conjunto das contas de madeira, não se
esquecendo de nenhuma delas no momento da comparação. Portanto, ela é capaz de, simplesmente operando com imagens mentais, fazer relações do tipo: “toda conta castanha é uma conta de
madeira”, “nem toda conta de madeira é conta castanha” e “tanto a
conta castanha quanto a conta branca são contas de madeira”. A
Figura 1 explicita esses encaixes e relações de classes:
Figura 1
Nessa figura, os círculos negros representam as contas castanhas e os círculos brancos representam as contas brancas. O quadrado do lado esquerdo representa quando a criança considera
apenas as contas castanhas (círculos negros) e o do lado direito representa quando a criança considera todas as contas (as de madeira). As setas indicam as possíveis coordenações que ela é capaz
de fazer com o uso de transfigurações.6
6. Tassinari (2011a) usa a estrutura matemática de dígrafo para interpretar os sistemas de esquemas de transfiguração. Segundo ele, os dígrafos parecem se relacionar de uma forma bem mais natural com os sistemas de esquemas de
transfiguração e os propõe como uma única estrutura fundamental para a Lógica Operatória Concreta. No artigo “Sobre uma Estrutura Fundamental para
a Lógica Operatória Concreta”, Tassinari expõe a forma lógico-matemática da
estrutura matemática de dígrafo para os sistemas de esquemas de transfiguração e discute sua relação com o surgimento das operações concretas de
126
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
No caso da observação do corcunda, a criança capaz de usar o
esquema de transfiguração é também capaz de comparar a imagem
de um indivíduo corcunda e gripado com a imagem de um indivíduo corcunda e não gripado, de modo que tem condições de saber
que são doenças distintas. Se percebe que as doenças são distintas,
ela percebe, também, por comparação, que tanto o estado de ser
corcunda quanto o de estar com gripe são duas dentre outras
doenças. Desse modo, ela torna-se capaz de pôr sob uma mesma
classe o que é semelhante (estar doente) e de separar, em classes
distintas, o que é diferente (ser corcunda e estar gripado). Isso permite à criança compor e decompor classes segundo uma relação reversível de parte-todo, de modo que ela se torna capaz de saber que
nenhum corcunda gripado, quando se cura da gripe, deixa de ser
corcunda e continua sendo um doente. Assim, reconhece que nem
todo doente é um corcunda.
Surge, então, com os esquemas de transfiguração, a possibilidade de uma lógica das classes e de relações, condição, como vimos
na seção 1 deste capítulo, das operações intraproposicionais da Lógica Operatória. Se existem conceitos, vistos também na seção 1
deste capítulo, existem compreensão e extensão de um conceito. E
aqui se torna claro por que, apesar de podermos definir a compreensão e a extensão de um esquema de ação sensório-motor como
análogas à de um esquema conceitual, elas se diferenciam, já que,
no caso do esquema de ação, como vimos, na seção 2 deste capítulo,
a criança não consegue conceber a extensão da sua ação, mas consegue se representar e compreender a extensão de um esquema
conceitual.
O esquema de transfiguração pode ser considerado, nesse sentido, como condição necessária para o surgimento das operações,
marcando o surgimento do nível operatório concreto. Tassinari
(1998, p.7) nos diz que “[...] as operações concretas são schèmes
[esquemas] de transfiguração ou resultam da coordenação destes”.
seriação e classificação, indicando como dela decorrem as estruturas de agrupamento e a estruturação lógica da realidade pelo sujeito epistêmico.
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
127
Assim, o nível operatório concreto tem como característica a possibilidade de o sujeito realizar ações internas sobre imagens mentais,
permitindo-lhe operar logicamente sobre essas imagens.
Para finalizar nossa análise, vejamos com mais detalhe o papel
da imagem mental no sistema de esquema de transfiguração.
Cada imagem mental tem um significado para o sujeito e, consequentemente, estabelece uma significação. Ora, se há significação, então, segundo Piaget, “[...] é preciso distinguir, em todo e
qualquer dado mental, dois aspectos indissoluvelmente unidos,
cuja relação constitui, precisamente, a significação: o significante e
o significado” (Piaget, 1975b, p.185). De modo bem amplo, podemos dizer que o significante é o meio pelo qual se representa algo
e o significado é o que é representado, que, nesse caso, é a própria
imagem mental.
No uso corrente da linguagem verbal, presente nos quadros sociais da vida adulta, essa distinção entre significante e significado é
bem clara, pois, por exemplo, percebemos facilmente que “[...] o
significante é o signo verbal, isto é, certo som articulado a que se
convenciona atribuir um sentido definido; e o significado é o conceito em que consiste o sentido do signo verbal” (Piaget, 1975b,
p.184).
Temos também que, à medida que a criança é capaz de usar um
significante para evocar um significado na ausência deste, ela
torna-se capaz de diferenciar o significante de seu significado.
Quando essa novidade surge na conduta da criança, Piaget fala de
“função semiótica”.
A função semiótica “[...] consiste numa diferenciação dos significantes (signos e símbolos) e dos significados (objetos ou acontecimentos, uns e outros esquemáticos ou conceitualizados” (Piaget,
2002, p.79). Um símbolo, segundo Piaget, é “[...] uma imagem
evocada mentalmente ou um objeto material escolhido intencionalmente para designar uma classe de ações ou objetos” (1975b,
p.185). Por exemplo, como vimos na seção anterior, a imagem da
lesma simboliza todas as lesmas existentes. Já um signo, é “[...] um
símbolo coletivo e por isso mesmo ‘arbitrário’” (idem, p.185), ou
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
seja, é a linguagem verbal construída e convencionada pela sociedade para uso coletivo. O aparecimento de ambos ocorre, em geral,
durante o segundo ano de vida da criança e ambos são “[...] dois
polos, individual e social, de uma mesma elaboração de significações” (ibidem, p.185)
Notemos que o surgimento da função semiótica é também
condição necessária para a passagem da ação sobre a experiência
sensível às primeiras estruturações lógico-matemáticas da realidade, tendo o símbolo, em especial a imagem mental, papel decisivo nessa passagem, já que a imagem mental é condição
imprescindível para o esquema de transfiguração e, por conseguinte, para a coordenação reversível parte-todo. A Figura 2 representa essa capacidade de operação (transfiguração) sobre símbolos
(que em nosso caso são imagens mentais).
Figura 2
Como está expresso na figura, cada símbolo pode ter um correspondente semântico na realidade. A criança passa a operar sobre
objetos mediante a operação sobre símbolos. Dentre essas operações está a substituição simples introduzida na seção 2 deste capítulo: se ax1 significa, por exemplo, para o sujeito epistêmico, a
proposição “x1 é de madeira”, ele pode substituir x1 por x2, x3 etc.
(desde que estes sejam objetos que tenham a propriedade de ser de
madeira), conservando o valor de veracidade das proposições resultantes dessa substituição. Nesse sentido, podemos entender mais
precisamente as palavras de Piaget (1976, p.74): “Do ponto de vista
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
129
das operações reais do sujeito, quer dizer, do ponto de vista psicológico, a substituição simples corresponde a um mecanismo perfeitamente geral da ação e do pensamento, que é o da identificação dos
objetos a um esquema de atividade”. Assim, o esquema de atividade não é mais apenas um esquema de ação sensório-motor (que é
uma de suas condições), mas um esquema de uma atividade ampliada, um esquema conceitual, que possibilita à criança conceituar
e classificar os objetos de sua realidade e, consequentemente, ser
capaz de usar funções proposicionais relativas a elementos concretos dessa realidade. Logo, a operação sobre símbolos permite
coordenar os esquemas conceituais.
Neste ponto, podemos vislumbrar como a condição B introduzida no início desta seção (p.115), de “coordenação interindividual
das operações”, a partir da utilização de sistemas de signos verbais
sociais que permitem a comunicação entre os sujeitos, é importante
na construção dos esquemas conceituais; mas, como já dissemos,
não será analisada aqui.
Notemos, na Figura 2, a representação dos dois aspectos do conhecimento: o aspecto figurativo e o operativo. Segundo Piaget,
“sem dúvida, se chama ‘operativo’ (Df.) esse aspecto do conhecimento que é relativo às ações e às operações, e existe igualmente um
aspecto ‘figurativo’, quer dizer (Df.) relativo às configurações sensíveis (por exemplo, à percepção e à imagem mental)” (Beth &
Piaget, 1961, p.169, tradução nossa).
Nesse período, as percepções e símbolos (incluindo a imagem)
correspondem ao aspecto figurativo e as ações e transfigurações ao
aspecto operativo do conhecimento. Sem entrarmos nos pormenores
do período operatório formal ou hipotético-dedutivo, diremos apenas que, nesse caso, podemos considerar o diagrama da Figura 2 em
relação não mais apenas a operações sobre símbolos, mas representando também operações sobre signos, possibilitando então um raciocínio hipotético-dedutivo geral, como o presente nas ciências e na
Filosofia. Em especial, temos nesse período a possibilidade de consideração do simbolismo como requerido por Granger, na sua visão
crítica do sistema de Piaget.
130
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
No caso de raciocínio sem imagem, o signo verbal servirá como
o significante fixo sobre o qual se realizam operações sobre o real e
o sujeito terá todas as condições para o uso da função proposicional
que, como vimos, é definida por Piaget como um enunciado do seguinte modo:
Definição 7. – Uma função proposicional ax é um enunciado nem
verdadeiro nem falso, mas suscetível de adquirir um valor de verdade
ou de falsidade segundo a determinação dos argumentos que substituem o argumento indeterminado x. (Piaget, 1976, p.45).
É, portanto, no plano do enunciado verbal que a função proposicional é definida no Tratado e no Ensaio e, também, formalizada
com toda a independência pelo lógico. Nesse nível, a linguagem
passa a assumir papel crucial na realização das operações, que são
operações realizadas basicamente sobre proposições e signos em
geral e não propriamente sobre imagens mentais, que passarão a
ter, progressivamente, apenas um caráter acessório ao signo verbal.
Podemos observar, então, como, para Piaget, as estruturas elementares da Lógica, em especial a função proposicional, possuem
uma correspondência com as “operações” do pensamento “natural” e como, segundo sua teoria, o sujeito epistêmico usa e se
torna capaz de usar a função proposicional. É o que procuramos
explicitar neste livro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De espírito científico-filosófico, o pensamento piagetiano se
constitui como um pensamento essencialmente inter e multidisciplinar. Diz-nos Piaget (1983b, p.88) que, para praticar a Epistemologia Genética, “[...] não basta ser psicólogo um pouco a par da
filosofia e um pouco biólogo: é preciso ainda mais ser lógico, matemático, físico, cibernético e historiador de ciências, para só falar do
essencial”.
No entanto, em vista da má compreensão desse caráter essencial da Epistemologia Genética, é comum dizer que Piaget é simplesmente um “biólogo” que aplica conceitos da Biologia para
compreender a cognição humana, ou que ele é apenas um “psicólogo” que estuda o desenvolvimento das crianças. Piaget recebe outras caracterizações, como “pedagogo”, pois teria se debruçado
sobre questões de ensino e aprendizagem, área em que a sua teoria
parece ser mais conhecida e aplicada. No meio filosófico, no qual
há intelectuais que deveriam olhar com mais cautela os princípios
dessa teoria, seu ofício por essência, encontramos afirmações de
que Piaget é um “cientista” que desprezou o papel da Filosofia
como conhecimento e que, portanto, sua teoria não é filosófica,
mas científica. Já entre aqueles que o consideram filósofo, chamam-no, com vimos no capítulo 1, seção 1, de “positivista”, caracterização que mostramos não se justificar, pois o sujeito tem papel
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
central na sua teoria. Entre os lógicos, parcela dos intelectuais com
quem Piaget teve mais dificuldade de diálogo durante sua vida, ele
é acusado, como vimos, no mesmo capítulo, de “psicologista”,
denominação que também vimos não se justificar, dado que Piaget,
assim como Frege, sabe da importância de distinguir a questão de
como chegamos ao conteúdo de um juízo (objeto da Psicologia) da
questão de como se justifica uma asserção (objeto da Lógica).
Por que a teoria piagetiana é tão malvista, principalmente entre
filósofos e lógicos, sendo mais estudada, ao menos aqui no Brasil,
em departamentos de Educação e de Psicologia, sendo raramente
estudada em departamentos de Filosofia?
No que concerne à receptividade da teoria piagetiana no meio
acadêmico, em especial no meio filosófico, diz-nos Lourenço que
Piaget
[...] teve a pouca sorte de escrever numa época dominada pelo
programa epistemológico da separação genético/normativo, descoberta/justificação do positivismo lógico que dificultou, em
grande parte, o reconhecimento da sua visão de epistemologia,
muito mais generosa, na filosofia. (2008a, p.247)
Segundo essa visão, dominante na época, o conhecimento científico, centrado na descoberta/justificação, deve ser separado das
questões puramente epistemológicas e filosóficas. Segundo essa
visão, escreve M. Boden (1979 apud Lourenço, 2008a, p.247) que
“[...] a psicologia teorética, empiricamente baseada, não é relevante
para questões puramente epistemológicas e filosóficas”. Nesse
sentido, talvez sob o véu da doutrina positivista, o pensamento piagetiano não tenha encontrado no meio acadêmico-filosófico brasileiro o espaço amplo de debates a que a teoria se propõe.
Na visão de Ramozzi-Chiarottino,1 o pensamento piagetiano
teve e tem pouca receptividade no meio acadêmico porque sua
1. Essa hipótese de Ramozzi-Chiarottino nos foi apresentada na ocasião da
defesa da dissertação que serviu de base para o presente livro.
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
133
teoria chegou, ao menos aqui no Brasil, pela via da Psicopedagogia.
Segundo ela, os psicopedagogos, de forma geral, com uma visão de
cunho ingênuo e não epistemológico, aplicaram a teoria de Piaget,
necessariamente, à Pedagogia e a uma Psicologia de um empirismo
ingênuo, muito embora o próprio Piaget diga, como vimos e é ressaltado por Ramozzi-Chiarottino, em Biologia e conhecimento, que
seu trabalho não consistiu apenas em identificar condutas observáveis, mas sim em captar indícios de transformações sucessivas na
construção do próprio funcionamento das estruturas mentais do
sujeito epistêmico, cujos “sintomas” se refletem nas ações que
visam ao conhecimento do mundo, seja na vida infantil, seja na
adolescência, seja na vida adulta.
Somado a isso, notemos que a crescente fragmentação do conhecimento talvez seja um outro fator que limita a visão dos estudiosos no sentido de que é possível articular as especialidades para
uma compreensão mais ampla do conhecimento humano.
Ora, embora as diversas especialidades tenham princípios,
métodos e objetos de investigação distintos, com planos de análises
diferentes, cada uma delas pode trazer contribuições fundamentais
acerca de temas comuns. A Epistemologia Genética nos ensina que
é possível, muito proveitoso para o conhecimento, uma coordenação entre os domínios de investigação, sem que isso implique
confusões de planos de análises (como um psicologismo em Lógica) ou de questões de fato com questões de princípio.
Essa noção de coordenação entre os domínios, preservando-se
os planos de análises, parece-nos muito atual, principalmente em
face da fragmentação que vive o conhecimento. Piaget encontrou
no Centro Internacional de Epistemologia Genética uma fecunda
integração e continuidade entre os domínios científico e filosófico,
com interlocuções e debates profícuos, apesar das barreiras de linguagens especializadas presentes nas diversas áreas. Essa característica interdisciplinar é marcante no pensamento piagetiano e
encontra repercussões em diversas áreas do conhecimento, não
apenas na Educação, área na qual sua teoria ficou mais conhecida,
mas essencialmente na Filosofia e nas ciências, como a Biologia,
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RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
Psicologia, Física, Química etc; com contribuições inclusive para
temas interdisciplinares, como os relacionados à noção de auto-organização, citado na nota 9 da seção 1 do capítulo 1.
No artigo de Debrun “A ideia de auto-organização”, por
exemplo, encontramos uma passagem que traduz bem a importância da teoria de Piaget para a compreensão dos processos auto-organizados. A passagem está na seção em que Debrun se refere
aos processos auto-organizados que ocorrem nos organismos,
como um caso do que ele chama de “auto-organização secundária”.
No âmbito da auto-organização secundária, as estruturas do organismo se constituem em um nível de alta complexidade que emerge
de seus próprios processos, considerados criativos e construtivos,
não sendo, pois, segundo Debrun, estruturas inatas. Nesse contexto, escreve ele: “Só que, nesse caso (se considerarmos as estruturas como dadas), temos ou teríamos que abandonar a ideia de
auto-organização, cujos arautos – Piaget (1979) em particular –
destacam o caráter criativo ou construtivo” (Debrun, 1996, p.11,
grifo nosso).
Do ponto de vista metodológico, a coordenação entre os domínios proposta pela Epistemologia Genética parece-nos ficar mais
clara. Como vimos na seção 1 do capítulo 1 com a análise de casos
da Psicologia no que concerne às questões de fato sobre o conhecimento humano, os estudos de Epistemologia deixam, por um lado,
o isolamento das idéias metafísicas da Filosofia para assumirem
uma perspectiva com certo controle. Por outro lado, a partir dos
resultados da Psicologia Genética, o epistemólogo genético tem
embasamento científico para se posicionar diante das questões de
princípio da Filosofia, podendo trazer contribuições às questões
clássicas da Epistemologia e da Teoria do Conhecimento. Notemos, também, como vimos no mesmo capítulo, que a Psicologia
Genética é a ciência que estabelece uma “ponte” entre os conhecimentos da Biologia e da Epistemologia Genética. Nesse sentido, a
Epistemologia Genética é caracteriza pelo próprio Piaget como
“epistemologia biológica”.
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
135
Assim, embora à Epistemologia Genética pertença um tratamento empírico, ela não deixa de ser filosófica. Como vimos na Introdução, com a análise etimológica da expressão, em face de nossa
exposição até aqui e se assumirmos as caracterizações de Lalande,
podemos dizer, então, que a Epistemologia Genética é, ao mesmo
tempo, Epistemologia e Teoria do Conhecimento e que as questões
centrais de sua obra são fundamentalmente epistemológicas e de
Teoria do Conhecimento e não exclusivamente psicológicas ou
científicas.
Notemos, também, que, na coordenação entre Filosofia e
ciência, é notável a distinção entre questões de fato e questões de
princípio. As questões de fato, testáveis empiricamente, contribuem, no caso da Psicologia Genética, para a constituição dos modelos científicos de explicação psicológica da cognição humana.
Subsidiado pelas constatações científicas da Psicologia, Piaget se
sente “mais à vontade” para se posicionar diante dos princípios de
uma filosofia, conjecturando reflexões heurísticas no cenário dos
debates cultivados na tradição filosófica. Um dos resultados, nesse
sentido, foi que Piaget constatou que a Lógica não se origina das
estruturas da língua, mas que ela tem suas raízes nas ações sensório-motoras, pois, como pudemos notar no estudo que fizemos,
aqui, da função proposicional, os esquemas de ação e as imagens
mentais têm um papel preponderante em seu processo de formação.
A própria questão colocada pela Epistemologia Genética
traduz a intenção de Piaget de constituir, também, uma “Epistemologia científica”, motivada, como vimos, pelos métodos da Psicologia Genética. Piaget não se pergunta “o que é o conhecimento?”,
por exemplo, o que implicaria mais uma conceituação do conhecimento que propriamente uma questão de fato, mas a questão de
“como aumentam os (e não o) conhecimentos?”. A pergunta sobre
o “como” envolve uma pergunta sobre o processo, e isso não é necessariamente uma posição de princípio, mas uma questão que
pode ser levada à empiria.
136
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
De modo semelhante, a questão central de nosso livro, “como
o sujeito epistêmico usa e se torna capaz de usar funções proposicionais?” é, também, uma questão de fato e não, apenas, de princípio. E a questão ganha um caráter propriamente filosófico na
medida em que pressupõe um conjunto de questões de princípio,
como as questões discutidas principalmente no capítulo 2 (Qual é o
objeto e a definição de Lógica? O que quer dizer psicologismo em
Lógica e o que significa, na perspectiva da Epistemologia Genética, dizer que é possível uma certa relação ou coordenação entre
Lógica e Psicologia sem que isso implique um psicologismo?)
Em particular, vimos como a função proposicional, uma das
noções centrais da Lógica Moderna, estudada com toda a autonomia pelo lógico, coordena-se com as (ou corresponde às) estruturas do sujeito epistêmico. Vimos que a função proposicional tem
um equivalente psicológico na realidade, o esquema de identificação conceitual, sobre o qual nos debruçamos no capítulo 3, seção
1, e buscamos sua gênese.
Elementos da teoria piagetiana nos levam à constatação de que
o uso da função proposicional está funcionalmente presente em
todos os níveis do desenvolvimento humano, desde a constituição
dos primeiros esquemas conceituais às estruturas mais abstratas. Já
o acabamento estrutural, finda-se ao longo de um processo, no
nível que Piaget chama de operatório formal ou hipotético-dedutivo, em média, dos 11-12 anos em diante. Nesse nível, a linguagem
passa a assumir papel crucial na realização das operações (por isso,
as chamamos de hipotético-dedutivas), que são operações realizadas basicamente sobre proposições e signos em geral e não
propriamente sobre imagens mentais, que passarão a ter, progressivamente, um caráter acessório ao signo verbal.
É notável a importância de uma investigação da gênese da
função proposicional para o conhecimento da origem e construção
do conceito no ser humano, tanto do ponto de vista psicogenético
quanto do ponto de vista histórico-crítico. Sabemos que o conceito
é um dos elementos centrais na condução do homem às mais elevadas abstrações nos domínios científicos e filosóficos. Análogo a
PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL
137
um esquema de ação, o conceito é uma generalização que permite
ao homem não se limitar aos casos particulares, e sim alçar voos no
plano das generalizações e, por conseguinte, realizar abstrações,
onde são possíveis as ciências e a Filosofia. Assim, um estudo da
gênese da função proposicional pode se constituir em um dos estudos centrais no sentido de buscar os fundamentos de nosso conhecimento.
Sendo nossa pergunta pelo uso e pelas condições de uso das
funções proposicionais que tornam possível a estruturação lógico-matemática pelo sujeito epistêmico de sua realidade um tanto
ampla para uma investigação de gênese, centramos nossa investigação no início das operações lógicas realizadas pelo sujeito, propriamente no nível que Piaget chama de período operatório
concreto, em média, entre 7 a 10 anos, marco considerado crucial
na construção das operações. Procurando captar o momento mais
preciso dessa passagem, recorremos à noção de esquema de transfiguração, apresentada e discutida no capítulo 3, seção 2.
Os esquemas de transfiguração mostram-nos o quanto é importante a imagem mental para a criança no final do período pré-operatório e o início do período operatório concreto. Essa noção
mostra-nos, em detalhes, como ocorre a passagem das ações sobre a
experiência sensível à estruturação lógico-matemática da realidade.
Em especial, esforçamo-nos para explicar como surgem os esquemas conceituais a partir do esquema de transfiguração, pois,
como afirma Piaget, no Ensaio, o esquema conceitual é o equivalente psicológico da função proposicional. Nesse sentido, explicar
como surge a função proposicional, condição das operações de relacionamento e classificação, é mostrar um caso de como é possível,
de um modo mais amplo, uma coordenação entre Lógica e Psicologia. Isso implica dizer, também, que as estruturas lógicas, na
perspectiva da teoria piagetiana, estão “encarnadas” em um sujeito.
Podemos entender, desse modo, que tanto o sujeito psicológico
quanto o sujeito epistêmico são dimensões de um mesmo sujeito: o
sujeito-organismo. Como vimos no capítulo 1, seção 1, a inteli-
138
RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI
gência é um caso especial de adaptação biológica. Ela estrutura a
realidade, assim como o organismo estrutura o meio. Isso implica
dizer que há uma continuidade profunda entre natureza e homem,
entre Biologia e Epistemologia, entre conteúdo e forma, e entre Psicologia e Lógica.
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EQUIPE DE REALIZAÇÃO
Coordenação Geral
Tulio Kawata