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(Livro) Piaget e a Predicação Universal

2013

O objetivo deste livro é apresentar e explicitar, no contexto da Epistemologia Genética, como o sujeito epistêmico usa e se torna capaz de usar funções proposicionais para estruturar a realidade e produzir conhecimento sobre ela. Em especial, a investigação está centrada no período das operações concretas, nas idades entre 7 a 10 anos, marco crucial para a construção das operações.

PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL RAFAEL DOS REIS FERREIRA RICARDO PEREIRA TASSINARI PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL Conselho Editorial Acadêmico Responsável pela publicação desta obra Dr. Reinaldo Sampaio Pereira (Coordenador) Profa Dra Mariana Cláudia Broens Dr. Ricardo Pereira Tassinari Dra Clélia Aparecida Martins RAFAEL DOS REIS FERREIRA RICARDO PEREIRA TASSINARI PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL © 2013 Editora UNESP Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ F439p Ferreira, Rafael dos Reis Piaget e a predicação universal [recurso eletrônico] / Rafael dos Reis Ferreira, Ricardo Pereira Tassinari. – 1. ed. – São Paulo : Cultura Acadêmica, 2013. recurso digital Formato: ePDF Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-7983-435-6 (recurso eletrônico) 1. Piaget, Jean, 1896-1980. 2. Epistemologia. 3. Psicologia genética. 4. Genética. 5. Psicologia e filosofia. 6. Livros eletrônicos. I. Tassinari, Ricardo Pereira. II. Título. 13-06416 CDD: 158.1 CDU: 159.947 Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) […] se todo conhecimento é sempre vir a ser e consiste em passar de um conhecimento menor para um estado mais completo e mais eficaz, é claro que se trata de conhecer esse vir a ser e de analisá-lo da maneira mais exata possível. Entretanto, esse vir a ser não decorre do acaso, mas constitui um desenvolvimento e como não existe, em nenhum domínio cognitivo, começo absoluto até o desenvolvimento, este mesmo deve ser examinado desde os estágios denominados de formação […]. Piaget, 1973a, p.12 [...] a lógica é a axiomática das estruturas operatórias, da qual a psicologia e a sociologia do pensamento estudam o funcionaento real. Piaget, 1976, p.14 SUMÁRIO Introdução 9 1. Discussões preliminares ao Ensaio de Lógica Operatória 23 2. Questões e discussões de princípios presentes no Ensaio 59 3. Como o sujeito epistêmico usa e se torna capaz de usar funções proposicionais 95 Considerações finais 129 Referências bibliográficas 137 INTRODUÇÃO A expressão mais usual da predicação universal na Lógica Contemporânea é a função proposicional.1 Um dos primeiros (senão o primeiro) a introduzir a expressão “função proposicional” foi Bertrand Russell (1872-1970). Na Introdução à Filosofia da Matemática, Russell nos diz que “Uma ‘função proposicional’ é, na verdade, uma expressão contendo um ou mais componentes indeterminados tais que, quando lhes são atribuídos valores, a expressão se torna uma proposição” (Russell, 1966, p.149). Por exemplo, dada a proposição “Sócrates é Homem”, podemos, em um primeiro momento, decompô-la em um esquema assim expresso: “x é Homem”, tal que x pode ser substituído por “Sócrates”. Se expressarmos o predicado “Homem” por H e o sujeito “Sócrates” por s, então obtemos a seguinte expressão formal para a proposição “Sócrates é Homem”: H(s). Ademais, se x constitui um 1. O termo “função”, empregado aqui, inicialmente, tem o significado de função matemática. Em Piaget, como veremos, além desse significado, o termo “função” pode assumir o sentido de funcionamento ou funcionalidade, como em um organismo biológico. 10 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI símbolo indicativo de uma variável em relação a diversos indivíduos, então H(x), que representa a função proposicional, não é mais uma expressão atrelada a uma proposição particular, mas uma expressão geral que serve para sabermos se os termos que substituem x têm ou não a propriedade H. Por exemplo, se x for substituído por um termo que tenha a propriedade H, como “Sócrates” ou “Platão”, então a proposição é verdadeira; caso o termo que substitua x não tenha essa propriedade, como “Pégaso”, a proposição resultante é falsa. Russell, no Principia Mathematica (1910), apresenta-nos a função proposicional do seguinte modo: Função proposicional. Seja fx uma sentença contendo uma variável x e tal que ela se torna uma proposição quando a x é dado algum significado determinado fixo. Então, fx é chamada de “função proposicional”; ela não é uma proposição, já que, devido à ambiguidade de x, ela não assere em absoluto. (Russell & Whitehead, 1968, p.14, tradução nossa)2 Nas mais diversas áreas das ciências empíricas, podemos observar, também, a importância da função proposicional como análise de proposições científicas. Sendo as proposições unidades básicas de enunciação de teorias científicas, pois enunciam propriedades ou leis atribuídas a objetos ou a conjuntos de objetos descobertos pelos cientistas na realidade, a função proposicional tem um papel importante nas ciências empíricas, inclusive de fundamento, pois nos permite descobrir relações lógicas fundamentais entre os elementos constitutivos das proposições. Na Biologia, por exemplo, o enunciado teórico de que “todos os organismos vivos são formados por células” (generalização fundamental dessa ciência) pode ser decomposto em seus elementos lógicos, de forma que o estudo 2. “Propositional functions. Let fx be a statement containing a variable x and such that it becomes a proposition when x is given any fixed determined meaning. Then fx is called a ‘propositional function’; it is not a proposition, since owing to the ambiguity of x it really makes no assertion at all.” PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 11 da função proposicional nos permita mostrar como as partes desse enunciado se compõem de termos que estabelecem relações entre os conceitos de vida, organismo, célula, bem como quantificam os elementos sob essas relações (quantificadores “todos”, “alguns” e “nenhum”). Assim, como podemos perceber, é notável a importância que a função proposicional tem para o desenvolvimento das ciências, em especial para o desenvolvimento da Lógica e da Matemática. No interior desses domínios, a função proposicional se constitui como um esquema de análise lógico-matemática que nos permite descobrir relações fundamentais entre os elementos constitutivos de uma proposição, levando-nos a alcançar um nível de abstração elevado nas análises realizadas com seu recurso. Em uma perspectiva histórica, a função proposicional surgiu no final do século XIX e começo do século XX com a aproximação entre a Matemática e a Lógica. Segundo I. M. Bochenski (1966, p.334), em História da Lógica Formal, a função proposicional surgiu com a ampliação do conceito matemático de função, realizada, ao mesmo tempo, por Johann Gottlob Frege (1848-1925) e Charles Sanders Peirce (1839-1914).3 Em Frege, o conceito de função proposicional surge no contexto de seu projeto de fundamentação da Aritmética na Lógica e recebe tratamento explícito, com influência em autores posteriores como Bertrand Russell (1872-1970), com quem essa noção recebe o nome com o qual a conhecemos hoje. 3. Sobre a noção de função proposicional em Peirce, conferir, por exemplo, as seguintes passagens do The Collected Papers (1931): CP 2.95, nota 1, CP 3.537, nota 1, CP 4.550 e CP 4.12. Esta última referência aparece em Bochenski (1966, p.334, nota 19) e as três primeiras nos foram indicadas pelo prof. dr. Lauro Frederico Barbosa da Silveira durante a disciplina “Fundamentos de Semiótica”, ministrada no meu mestrado na Pós-Graduação em Filosofia da UNESP. Vamos, como fazem Bochenski e Robert Blanché, dar mais ênfase à influência histórica de Frege do que à de Peirce. Agradecemos ao prof. dr. Lauro pela indicação das referências sobre a função proposicional em Peirce. 12 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI Frege, em especial, em As leis fundamentais da Aritmética (1903), procura uma fundamentação axiomática da Aritmética na Lógica, pois, como nos diz em seu artigo “Função e conceito” (1891), “[...] a Aritmética é um desenvolvimento expansivo da Lógica, de que uma fundamentação mais rigorosa das leis aritméticas as reduz a leis puramente lógicas, e a tais leis apenas. Sou também desta opinião e nela fundamento a exigência de a linguagem simbólica aritmética ser expandida em um simbolismo lógico” (Frege, 1978, p.44). A função proposicional surge, então, a partir das pretensões de Frege de expressar as formas lógicas em um simbolismo desprovido de qualquer ambiguidade da linguagem natural. Para isso, Frege elabora uma linguagem artificial, chamada por ele, em alemão, de Begriffsschrift, sendo comumente traduzida, em português, por Ideografia ou Conceitografia. Em especial, no artigo citado, no qual o autor expõe algumas das ideias fundamentais de sua Conceitografia, ele rediscute a noção de função matemática e propõe uma ampliação dessa noção, interpretando o conceito em Lógica como “[...] uma função cujo valor é sempre um valor de verdade” (Frege, 1978, p.45). Em outras palavras, o conceito, em Lógica, passa a ser visto, com Frege, como uma função, o que podemos chamar de “função conceitual”, tal que um conceito (por exemplo, “ser um número par”) associa a cada elemento de um domínio de discurso (por exemplo, os Números Naturais) o valor Verdadeiro (caso ele seja par) ou o valor Falso (caso ele seja ímpar). Nesse sentido, escreve Robert Blanché, em História da Lógica, que se deve “[...] a Frege, além da primeira apresentação satisfatória da lógica sob a forma de um sistema axiomatizado, a maior parte das noções de base da lógica moderna” (Blanché, 1996, p.325). Dentre essas noções, “em particular, o ter ido buscar às matemáticas a noção de função para a análise da proposição é um passo decisivo na renovação da moderna lógica” (Blanché, 1996, p.324). De especial importância para nós, neste livro, é, então, essa noção de função, intitulada por Frege de “conceito” e comumente conhe- PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 13 cida, principalmente a partir dos trabalhos de Bertrand Russell, por “função proposicional”. A importância da função proposicional é tão significativa para a Lógica que I. M. Bochenski, em História da Lógica Formal¸ escreve: Nem De Morgan nem qualquer outro podiam seguir sendo lógicos em um nível de abstração tão elevado como o que aqui se alcança. Isto se sucede depois dele, sobre a base do redescobrimento do conceito escolástico de forma. Esse descobrimento se leva a efeito mediante uma ampliação do conceito matemático de função, realizada ao mesmo tempo por Peirce e Frege. (Bochenski, 1966, p.334, tradução nossa) A função proposicional é um dentre muitos outros resultados importantes para o desenvolvimento da Lógica provenientes dos esforços de fundamentação da Matemática desenvolvidos por Frege e difundidos, posteriormente, por Russell e Whitehead. Segundo Blanché, esses esforços foram tão importantes para a Lógica que representaram um renascimento para esse domínio de estudo; renascimento que foi designado de “Logística”, mas que hoje se prefere designar de “Lógica Matemática”, pois, segundo o autor, “[...] traduz bem uma das características distintas da lógica contemporânea, a saber, a aplicação constante dos métodos e dos raciocínios usados na matemática” (Blanché, 1996, p.357). Escreve o autor que, “até aos anos 30, a lógica, e esta é uma das suas características distintas, ocupou-se de forma privilegiada e quase exclusiva com as questões relativas aos fundamentos das matemáticas” (Blanché, 1996, p.324). Depois dos anos 1930 ocorrem, segundo Blanché (1996, p.371), acontecimentos cruciais no desenvolvimento da Lógica. Nasce a teoria dos modelos como disciplina científica, a reorientação da teoria metodológica da demonstração, a teoria da computabilidade, e outros elementos técnicos que mostram, conforme nos diz esse autor, “[...] que nesta época a lógica 14 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI matemática tende a impor-se à comunidade científica como uma disciplina completa, caracterizada simultaneamente pela audácia e pelo rigor intelectual” (Blanché, 1966, p.371). Constatações como essas, sobre o desenvolvimento da Lógica, levaram Jean Piaget (1896-1980), em 1949, na ocasião da publicação do Tratado de Lógica (1949) – reeditado, anos mais tarde, pelo próprio autor, com o nome de Ensaio de Lógica Operatória (1972) –,4 a dizer que a Lógica, como ciência dedutiva, conquistou o posto de uma ciência propriamente dita. O autor inicia essa obra dizendo: Reconhece-se hoje a validade de um axioma ou de um teorema de lógica, independente das ideias que se possam ter sobre esta mesma lógica formal considerada como disciplina geral. Tal fato indica que a lógica conquistou a posição de ciência propriamente dita, graças aos métodos precisos que substituíram os procedimentos simplesmente reflexivos e verbais da lógica clássica. (Piaget, 1976, p.1) Piaget não era um lógico de formação, mas compreendia a convergência crescente, a partir do final do século XIX, entre a Lógica e a Matemática, cujo caso da função proposicional é, como dissemos, um resultado dessa convergência. Escreve ele no Ensaio (1976, p.15-6), que a convergência gradual entre a Lógica e a Matemática resultou de um duplo processo; de um lado, a matematização da Lógica pela necessidade de um simbolismo exato, e, de outro, a logicização da Matemática, devido, principalmente, às exigências de uma axiomatização. Essa convergência significa, segundo o autor, tanto para a Lógica quanto para a Matemática, um 4. O Ensaio de Lógica Operatória é a segunda edição do Tratado de Lógica. Designá-las-emos, respectivamente, apenas como Ensaio e Tratado. A obra de nosso estudo é o Ensaio, reeditada posteriormente com a ajuda do lógico Jean-Blaise Grize, cuja edição aqui estudada é Piaget, 1976. A tradução é do francês Essai de Logique Operatoire. Paris: Dunod, 1972. PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 15 progressivo distanciamento da intuição como fundamento do conhecimento abstrato. No entanto, apesar do consenso de que a Lógica conquistou o posto de uma ciência propriamente dita, observa Piaget na mesma obra que, “[...] no caso de todas as ciências, inclusive das ciências dedutivas, o consenso deixa de ser geral quando se trata da significação a ser atribuída aos princípios, ou mesmo do objetivo a ser atingido e dos métodos a serem seguidos” (Piaget, 1976, p.1). Dentre essas significações, de especial interesse para nós, no presente livro, é a relação entre Lógica e Psicologia. Em particular, interessa-nos uma questão que é assim apresentada por Piaget no Ensaio, sendo a questão central desta obra: [...] como se constituem as estruturas elementares de classes, de relações, de números, de proposições, etc., formalizadas com toda independência e autonomia pelo lógico e [...] quais são suas relações com as “operações” do pensamento “natural”, muito mais pobre e não formalizado. [?] (Piaget, 1976, p.XV) Observemos que Piaget pressupõe, nessa questão, que as operações lógico-formais estão vinculadas a um sujeito.5 Ele está interessado em compreender como se formam as estruturas necessárias ao conhecimento lógico-matemático e como isso é possível a partir do desenvolvimento psicológico humano. Apesar desse recurso à Psicologia, trata-se, no contexto dessa investigação de Piaget, como veremos no desenvolvimento deste livro (cf. seção 1 do capítulo 1), fundamentalmente, de um interesse filosófico, relacionado à Teoria do Conhecimento e à Epistemologia, em particular ao que Piaget 5. Como veremos no decorrer deste livro, Piaget se interessa pela criança, pois é sobretudo a partir dela que se pode compreender o processo de formação das estruturas, e não apenas pelo sujeito adulto com suas estruturas já constituídas. Como veremos, Piaget (1976, p.XVI) entende que é compreendendo o processo de formação das estruturas que se pode melhor compreender a natureza de tais estruturas. 16 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI chama de “Epistemologia Genética”,6 e não propriamente uma investigação de pura Psicologia. Assim, como veremos, quando tratarmos do sujeito psicológico, nosso interesse será pelas condições que esse sujeito dará à constituição de um sujeito epistêmico,7 objeto de suas pesquisas epistemológicas. Para compreendermos melhor o significado inicial do que seja Epistemologia Genética, recorramos, primeiramente, ao significado do termo “epistemologia”. Ele é a junção da palavra grega “episteme” (ἐπιστήμη) que significa “ciência”, “conhecimento” (por oposição a “doxa”, δόξα, que significa crença comum ou opinião popular), e da palavra grega “logos” (λόγος), que significa, entre outras coisas, “estudo”, “discurso”, “razão”, “proporção”. Epistemologia é, então, o estudo do conhecimento, relacionado aos problemas do conhecer em geral. Modernamente, essa concepção parece assumir um sentido mais específico, relacionado ao estudo não de qualquer conhecimento, mas do conhecimento científico. Lalande, por exemplo, diz-nos que a Epistemologia é “[...] essencialmente o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados de diversas ciências [...]” (Lalande, 1938, p.211, tradução nossa), ou seja, é o estudo do conhecimento científico, dos seus pressupostos, conceitos e métodos. Já o termo “genética” deriva da palavra grega “genno” (γεννώ) e significa “origem”, “geração”, “criação”. Portanto, no sentido etimológico, podemos dizer que Epistemologia Genética é um estudo das origens do conhecimento científico, relacionado aos problemas de como surgem as condições necessárias para o conhecimento científico. Podemos dizer, também, de forma geral, que a Epistemologia Genética se constitui, por um lado, por um estudo crítico dos conceitos da História da Ciência (das ciências empíricas e lógico-mate- 6. Sugerimos aqui, para o leitor que não conhece a Epistemologia Genética, a introdução ao tema feita por Tassinari (2011b). 7. Designaremos o sujeito do conhecimento por “sujeito epistêmico”, como fazem Beth & Piaget (1961, p.332), por exemplo. PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 17 máticas) e, por outro, por um estudo da gênese dos conceitos científicos na cognição humana, auxiliado, como veremos (cf. seção 2 do capítulo 1), pelos métodos de uma psicologia, a Psicologia Genética.8 Nesse sentido, escreve Piaget: “[...] o método completo da epistemologia genética está constituído por uma elaboração íntima dos métodos histórico-crítico [da História da Ciência] e psicogenético [da Psicologia Genética]” (Piaget, 1950, p.17, tradução nossa). Além de uma epistemologia, no sentido estrito do termo, a Epistemologia Genética é uma teoria do conhecimento, pois, se entendermos que a Teoria do Conhecimento é, como nos diz Lalande, o “estudo da relação que existe entre o sujeito e o objeto no ato de conhecer” (Lalande, 1938, p.889, tradução nossa), ou seja, é o estudo da relação entre sujeito e objeto e das questões relativas à formação do nosso conhecimento, podemos dizer, então, que a Epistemologia Genética é, ao mesmo tempo, Epistemologia e Teoria do Conhecimento. Sendo assim, podemos considerar que as questões centrais de sua obra são fundamentalmente epistemológicas e de teoria do conhecimento e não exclusivamente psicológicas. No que se refere ao estudo das estruturas necessárias ao pensamento lógico-matemático e como elas são possíveis epistemologicamente, Piaget apresenta, no Ensaio, as primeiras estruturas do pensamento “natural”, procurando investigar seu processo de for- 8. O que é notável observar aqui é a existência de um certo paralelismo entre a construção histórica dos conceitos da História da Ciência e a construção histórica dos conceitos no âmbito psicogenético. Segundo Piaget (cf. 1973a, p.2930), além de as estruturas psicológicas possibilitarem o conhecimento científico, é possível traçar uma analogia entre a construção presente na História da Ciência com a construção intelectual investigada pela Psicologia Genética. Nesse sentido, as etapas da construção da causalidade, por exemplo, presentes na história do pensamento científico, parecem ser análogas às etapas da construção do pensamento individual ou coincidentes com elas. Sobre isso, observa Piaget: “A presente obra é o resultado dessa comparação, à qual nos temos consagrado constantemente, entre a psicogênese das operações intelectuais e seu desenvolvimento histórico” (Piaget, 1950, p.3, tradução nossa). 18 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI mação. Nesse sentido, ele escreve: “A ideia central [do Ensaio] é a de que a formalização não é um estado, mas um processo, e que ela se apoia, consequentemente, em estruturas que se elaboram segundo níveis” (Piaget, 1976, p.XVII). Em outras palavras, as formalizações que aparecem no Ensaio não correspondem às explicitações de estruturas lógico-matemáticas prontas e acabadas, em um sentido platônico do termo, mas são uma formalização das estruturas do ser humano que surgem durante seu desenvolvimento. Cada estrutura relativa às operações “naturais” realizadas pelo sujeito é, então, explicitada, formalmente, no Ensaio, no qual cada estrutura está interligada a outra, organicamente. Notemos, desse modo, que Piaget procura compreender as formas lógicas como resultante de um processo de construção, vinculadas a uma psicologia e a uma sociologia do pensamento. Sendo assim, de tal ponto de vista, Piaget compreende a Lógica, proposta por ele no Ensaio, como [...] a axiomática das estruturas lógicas operatórias, da qual a psicologia e a sociologia do pensamento estudam o funcionamento real. (Piaget, 1976, p.14, grifo do autor) Segundo Piaget (1958, p.52, e 1983a, p.40-1), em uma axiomática assumem-se certos axiomas como verdadeiros, independentemente de suas apelações intuitivas ou empíricas, pois o lógico escolhe seus axiomas com toda a liberdade e de acordo com suas necessidades, sem se prender aos elementos fornecidos pelo pensamento “natural” ou intuitivo. Esse desprendimento permite-lhe reconstruir livremente sistemas formais segundo todas as possibilidades necessárias para a dedução, donde, “[...] por exemplo, o direito de construir lógicas trivalentes distintas, mas ainda próximas do pensamento comum, ou a uma infinidade de valores que se distanciam consideravelmente das intuições do terço excluído” (Piaget, 1983a, p.41). A construção de outras lógicas, além da Lógica Clássica, que para Piaget é o espelho do funcionamento PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 19 cerebral,9 é, nesse sentido, possível dentro do jogo operatório simbólico realizado no interior dos sistemas formais. Um sistema formal liberta, então, a Lógica das amarras intuitivas da realidade empírica, permitindo ao lógico desenvolver diversas lógicas e estudar apenas as operações dedutivas, seu interesse efetivo.10 Se a axiomática realiza essa libertação, então ela exclui a Psicologia e a Sociologia das investigações dedutivas, de modo que a Lógica e a Psicologia ganham autonomia metodológica nas suas 9. Sobre a afirmação de que o funcionamento cerebral tem por base a Lógica Clássica, cf. os seguintes textos de Piaget: 1967b, p.275-6; 1967a, p.1.244, 1987; e Beth & Piaget, 1961, p.324. Agradecemos à profa dra Zélia Ramozzi-Chiarottino pela indicação dessas referências. 10. Como veremos no decorrer do presente livro, Piaget tratará apenas do aspecto das operações do pensamento “natural” relativos à Lógica Clássica. Parece-nos, ademais, que uma visão não clássica das operações psicológicas do sujeito poderia trazer novas relações entre a Epistemologia Genética (que é, como veremos, a epistemologia proposta por Piaget) e a Lógica Contemporânea no que se refere aos estudos da origem e construção das estruturas lógicas no ser humano, em especial a relação entre pensamento “natural” e as Lógicas Não Clássicas; pois uma questão que se pode colocar é: o pensamento “natural” segue apenas os padrões da Lógica Clássica ou será que é possível uma visão não clássica das estruturas lógico-matemáticas descobertas no seio das operações “naturais” realizadas pelo sujeito? De outro modo: será que as Lógicas Não Clássicas são possíveis apenas dentro de um jogo operatório simbólico realizado no interior de sistemas formais, como nos indica Piaget na trecho citado, ou podemos encontrá-las, também, no seio das operações do pensamento “natural” realizadas pelo sujeito na medida em que ele estrutura logicamente sua realidade? Encontramos referências de Piaget às Lógicas Intuicionistas e às Lógicas Polivalentes – Piaget faz referência a Brouwer no caso da primeira Lógica e a Lukasiewicz no caso da segunda no Ensaio (1976, p.373-81, e.g.). Pensamos, sobretudo, que, como diz Piaget (cf. final da seção 1, capítulo 1), se a Epistemologia Genética está em constante construção, devendo acompanhar o processo histórico de aumento do conhecimento (método histórico-crítico) com o desenvolvimento do sujeito (método psicogenético), então pensamos que as questões aqui colocadas podem ser verificadas e estudadas na abordagem de sua teoria. O despertar desses questionamentos na presente nota é o reflexo dos valiosos questionamentos do prof. dr. Décio Krause (UFSC) ao nosso trabalho, apresentado no XIV Encontro Nacional de Pós-Graduação em Filosofia da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), realizado em outubro de 2010. 20 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI investigações sem fazer interferir uma na outra. Segundo Piaget, “só a logística garante, por sua técnica de formalização, a autonomia respectiva da lógica e da psicossociologia, pois apenas a axiomatização pode liberar uma ciência dedutiva de suas amarras intuitivas e liberar um estudo concreto e causal de suas pressuposições normativas” (Piaget, 1976, p.15). Em outras palavras, enquanto a Lógica realiza uma análise formal, a Psicologia realiza uma análise real do conhecimento lógico-matemático. Sobre isso, diz-nos o autor: Existe, entre a teoria formal e a análise real, exatamente a mesma relação que há entre toda axiomática e toda pesquisa real concomitante (por exemplo, entre a geometria axiomática e a geometria dos objetos físicos): independência completa dos métodos e correspondência possível entre os problemas. (idem, p.14) Sobre a correspondência dos problemas, escreve ele: “[...] cada estrutura formalizada corresponde a uma estrutura real, no pensamento comum ou, na ausência deste, no espírito do próprio lógico, etc.” (ibidem, p.15); por outro lado, ainda segundo Piaget: “[...] toda estrutura atingida pelas operações mentais do indivíduo, ou por uma cooperação interindividual, suscita o problema lógico de sua formalização possível [...]” (ibidem, p.15) Nesse sentido, se a função proposicional, em particular, tem um correspondente psicológico na realidade, então, por um lado, a constituição desse correspondente real por um sujeito suscita o problema de sua formalização possível no plano das análises lógicas. Inversamente, a análise formal da função proposicional suscita, do ponto de vista real, entre outras, a questão de saber qual é o seu correspondente psicológico e como ele se constitui epistemologicamente, isto é, implica a questão de saber como o sujeito epistêmico usa e se torna capaz de usar funções proposicionais para estruturar a realidade. Depreende-se, assim, uma questão da relação entre Lógica e Psicologia que guiará nossa investigação neste livro, a qual pode ser formulada do seguinte modo: PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 21 Como o sujeito epistêmico usa e se torna capaz de usar funções proposicionais na estruturação lógico-matemática que ele faz da realidade? Diante de tal questão, é nosso objetivo apresentar e explicitar, no contexto da Epistemologia Genética, que é a epistemologia proposta pelo autor, como o sujeito epistêmico usa e se torna capaz de usar funções proposicionais para estruturar a realidade e produzir conhecimento sobre ela. Em especial, centramos nossa investigação no período das operações concretas, nas idades entre 7 a 10 anos, marco crucial para a construção das operações, pois, segundo Piaget, “[...] as operações concretas estabelecem, portanto, muito bem a transição entre a ação e as estruturas lógicas mais gerais [...]” (Piaget & Inhelder, 1990, p.86). Nesse período do desenvolvimento humano surgirá, como veremos adiante, uma das estruturas que serão determinantes para o uso pleno da função proposicional pelo sujeito no período operatório formal, a saber: a coordenação reversível parte-todo. Em vista disso, para situarmos a nossa questão no interior da obra de Jean Piaget, realizamos, inicialmente, no capítulo 1, uma breve e ampla contextualização do seu pensamento, no âmbito das discussões filosóficas. Apresentamos os pressupostos gerais da Epistemologia Genética e suas relações com a Psicologia Genética. Situamos o Ensaio nesse contexto e mostramos como ele surgiu e quais são as ideias centrais discutidas nesta obra. No capítulo 2, apresentamos algumas das discussões de princípio realizadas por Piaget no Ensaio acerca do objeto e da definição da Lógica Operatória. Apresentamos, também, uma breve caracterização do psicologismo em Lógica a partir de um ponto de vista piagetiano para, então, apresentar uma discussão entre Piaget e o lógico Evert W. Beth sobre um possível psicologismo em Lógica decorrente da repercussão do Tratado. Beth pode ser considerado um dos maiores representantes do debate com Piaget acerca desse tema. 22 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI No capítulo 3, procuramos responder à questão central de nosso livro. Nesse capítulo, apresentamos a definição de função proposicional dada por Piaget no Ensaio. Procuramos mostrar, também, em que medida a função proposicional é importante como condição de uma lógica das classes e das relações e como esta sua importância é determinante, da perspectiva de uma lógica das totalidades, para a Lógica Operatória. Veremos, também, que, para Piaget, a função proposicional tem um correspondente psicológico: o esquema conceitual. Nesse sentido, a pergunta de como o sujeito epistêmico usa e se torna capaz de usar funções proposicionais para estruturar logicamente a realidade consiste, então, em investigar, no plano psicológico, como surgem os esquemas conceituais. Sendo o processo de construção dos esquemas conceituais um longo processo, com origem nos primeiros esquemas de ação da criança, amplo demais para ser estudado no espaço de uma dissertação de mestrado (Ferreira, 2011, que resultou no presente livro), centramos nosso estudo no período chamado por Piaget de “período operatório concreto”, em especial na passagem do período pré-operatório ao operatório concreto, passagem que podemos considerar crucial para a construção das operações lógicas do pensamento, pois é o momento de transição das ações do sujeito sobre a experiência sensível às primeiras estruturações lógico-operatórias da realidade realizada por esse sujeito. 1 DISCUSSÕES PRELIMINARES AO ENSAIO DE LÓGICA OPERATÓRIA Realizamos, na seção 1 deste capítulo, uma breve e ampla contextualização do pensamento de Jean Piaget no âmbito das discussões filosóficas. Na seção 2, apresentamos os pressupostos gerais da Epistemologia Genética e suas relações com a Psicologia Genética. Na seção 3, situamos o Ensaio nesse contexto e mostramos como ele surgiu e quais são as ideias centrais discutidas nesta obra. 1. Heranças da tradição filosófica no pensamento de Jean Piaget e a possibilidade de uma Epistemologia Genética Biólogo de formação, Jean Piaget (1896-1980) encontra na Biologia um exemplo de ciência relativa à empiria e defronta-se, ao mesmo tempo, com questões clássicas da Filosofia sobre os limites e possibilidades do conhecimento humano. A respeito de sua formação, diz-nos ele, na sua autobiografia: “Minha educação superior concentrou-se nos campos da biologia e da filosofia, e, entre 1911 e 1925, publiquei cerca de 25 estudos sobre moluscos terrestres e aquáticos” (Piaget, 1974, p.285). 24 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI Sobre seu interesse pela Filosofia, ainda nos diz: “Ao passo que eu desejava dedicar-me à biologia, tinha igual interesse pelos problemas do conhecimento objetivo e pela epistemologia” (idem, p.285). A Filosofia se tornou tão marcante na sua formação que ele escreve: “[...] a filosofia tem sua razão de ser e deve-se mesmo reconhecer que todo homem que não passou por ela é incuravelmente incompleto” (Piaget, 1983b, p.68). Sua formação científica de biólogo e seus interesses pelos problemas do conhecer humano o despertaram, também, para a Psicologia. “Este treinamento [no campo da Biologia] foi extremamente útil às minhas investigações psicológicas posteriores [...]” (Piaget, 1974, p.285). Sobre a importância da Psicologia para seus trabalhos, em outra passagem escreve: Mas para mim, zoologista que fazia pesquisa de campo ou em laboratório, eu começava (demasiado devagar, infelizmente) a sentir que uma ideia é apenas uma ideia e que um fato é apenas um fato. Vendo meu bom mestre manipular todas as ideias como se se tratasse sempre de metafísica, eu sentia um certo mal-estar e em virtude disso ficava reduzido à sensação de que para analisar as relações entre o conhecimento e a vida orgânica seria talvez útil fazer um pouco de psicologia experimental. (Piaget, 1983b, p.74) O mestre a que Piaget se refere é Arnold Reymond, seu professor de Filosofia no ginásio e na Universidade de Neuchâtel, onde Piaget se doutorou em Biologia com uma tese sobre os moluscos de Valois. Segundo Piaget, “foi, pois, com a maior confiança nele [em Reymond] que me deixava encorajar a prosseguir uma carreira essencialmente filosófica e a especializar-me em filosofia biológica” (idem, p.74, grifo nosso) Notemos, assim, que sob a dupla influência dos métodos científicos da Biologia e da Psicologia de um lado, e das discussões em Filosofia, em particular pela Epistemologia, de outro, Piaget elabora uma epistemologia distinta das anteriores. Escreve Piaget no PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 25 Prefácio da Introdução à Epistemologia Genética:1 “No tempo de nossos estudos em zoologia, um duplo interesse pelos problemas de variação e adaptação e pelas questões lógicas e epistemológicas nos fez sonhar em construir uma epistemologia biológica” (Piaget, 1950, p.3, grifo nosso). Sobre a epistemologia de Piaget ser uma epistemologia biológica, comenta Zélia Ramozzi-Chiarottino:2 “[...] Piaget, com sua formação de biólogo, ao se interessar pelos problemas filosóficos, teve a ideia de escrever uma teoria do conhecimento inspirada na Biologia” (Ramozzi-Chiarottino, 1984, p.32). Em especial, Piaget é, como observa Manuel Martins Lourenço,3 influenciado pelas concepções da biologia do conhecimento e, também, profundamente influenciado por autores da filosofia do conhecimento, por exemplo, pela filosofia de Immanuel Kant (1724-1804), conside1. A Introdução à Epistemologia Genética é uma obra de 1950. Podemos dizer que essa obra é um marco nos estudos em Epistemologia realizados por Piaget, pois é a primeira vez que o autor usa o termo “epistemologia” para nomear seus escritos. Antes de 1950, as obras de Piaget recebiam nomes referentes apenas aos seus estudos em Psicologia, muito embora suas preocupações de fundo e a condução de suas pesquisas biológicas e psicológicas tenham se revelado, desde a adolescência, fundamentalmente circunscritas à Epistemologia e ao âmbito da Teoria do Conhecimento. Para consultar a lista de livros, em ordem cronológica, da produção intelectual de Piaget ou de sua equipe no Centro Internacional de Epistemologia Genética, pode-se acessar o site dos Arquivos Jean Piaget da Universidade de Genebra (Unige), no seguinte endereço eletrônico, disponível para consulta: <http://archivespiaget.ch/ fileadmin/user_upload/ajp/fichiers_pdf/Livres_de_Piaget_aux_AJP.pdf>. 2. Zélia Ramozzi-Chiarottino é filósofa, formada pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-graduação em Filosofia das Ciências pela Université d’Aix-Marseille, sob a orientação do epistemólogo Gilles G. Granger, e doutora em Ciência pela USP. Dedica-se, atualmente, à Filosofia da Ciência Biológica, dentre as quais, a Psicologia. 3. Conforme informações que recebemos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Manuel Martins Lourenço se licenciou em Filosofia pela Faculdade de Letras do Porto e cursou Ciências Pedagógicas pela mesma universidade. Foi professor da Faculdade de Letras desde 1975 onde parece ter lecionado até 1982. Lecionou, entre outras, nas cadeiras de Epistemologia das Ciências Humanas, Epistemologia Geral, História da Filosofia, Filosofia Contemporânea e Filosofia do Conhecimento. 26 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI rado por Piaget “o pai de todos nós” (Piaget, 1972 apud Lourenço, 2008a, p.248).4 De fato, podemos notar uma certa proximidade do pensamento de Piaget com a concepção kantiana sobre as faculdades da razão humana, mas, como veremos, ele se afasta dela em certos pontos essenciais. Como nos diz Kant, na Crítica da razão pura (1781),5 “[...] embora o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso todo ele se origina justamente da experiência” (Kant, 1983, p.22), pois: [...] há um tal conhecimento independente da experiência e mesmo de todas as impressões dos sentidos. Tais conhecimentos denominam-se a priori e distinguem-se dos empíricos, que possuem suas fontes a posteriori, ou seja, na experiência. (Idem, p.22, grifo do autor) Os conhecimentos a priori são estruturas ou esquemas, como as formas a priori da sensibilidade e do entendimento, que estão previamente contidas nas capacidades intelectuais. No que concerne às formas a priori da sensibilidade, há, segundo Kant (ibidem, p.40), duas formas, o espaço e o tempo. A título de exemplo, limitemo-nos ao espaço. Observa o autor (ibidem, p.39) que, se separarmos de um corpo aquilo sobre o que o entendimento se debruça, como a substância, a força, a divisibilidade, o volume etc., subsistem, ainda, a extensão e a figura. Segundo Kant, 4. A referência dessa passagem em Piaget dada por Lourenço é: Piaget, J. Discours de réception du “Prix Erasrae 1972”. Praemium Erasmianum, 1972, p.293. 5. Kant, I. Crítica da razão pura. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Esse livro é uma tradução da segunda edição da Crítica, de 1787. A primeira edição data de 1781 e a referência da segunda edição alemã é: Kritik der reinen Vernunft von Immanuel Kant, Professor in Königsberg der Königl. Akademie der Wissenschaften in Berlin Mitglied. Zewyte hin und wieder veresserte Auflage Riga, beu Johann Friedrich Hartknoch, 1787. PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 27 “ambas [extensão e figura] pertencem à intuição pura, que mesmo sem um objeto real dos sentidos ou da sensação, ocorre a priori na mente como uma simples forma da sensibilidade” (Kant, 1983, p.39-40). Dado que a extensão e a figura pertencem a um conceito mais abstrato ainda, o espaço, Kant nos diz que o espaço é uma forma a priori da sensibilidade, sendo, pois, condição necessária dos fenômenos ou de todos os objetos que aparecem à sensibilidade. Nesse sentido, escreve: O espaço é uma representação a priori necessária que subjaz a todas as intuições externas. Jamais é possível fazer-se uma representação de que não há espaço algum, embora se possa muito bem pensar que não se encontre objeto algum nele. Ele é, portanto, considerado a condição da possibilidade dos fenômenos e não uma determinação dependente destes; é uma representação a priori que subjaz necessariamente aos fenômenos externos. (Idem, p.41) Notemos, assim, que Kant não despreza a importância da experiência como condição inicial para o conhecimento e, ao mesmo tempo, confere às formas ou esquemas um apriorismo que regula a construção do objeto. Segundo Kant (ibidem, p.12), assim como Copérnico tirou a Terra e colocou o Sol no centro do movimento dos corpos celestes, agora, no plano do conhecimento, no que concerne à relação sujeito-objeto, não são as faculdades do conhecer que se regulam pela natureza dos objetos, mas os objetos que se regulam pela nossas faculdades do conhecer. Nesse sentido, a Filosofia, em uma espécie de revolução copernicana, deveria, como uma “crítica da razão pura”, investigar a importância das nossas faculdades para o conhecimento. Muito embora a filosofia do conhecimento de Kant tenha influenciado profundamente o pensamento de Piaget, este não se limitou a ela. Segundo Lourenço, “Kant, nada dizendo acerca do desenvolvimento ou aquisição do conhecimento ou compreensão, exerceu grande influência em Piaget que gosta de se considerar seu 28 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI herdeiro” (Lourenço, 2008a, p.248). Sobre isso, em outra passagem nos diz Lourenço: “Contudo, a ideia kantiana de que toda a experiência é mediada por esquemas ou estruturas, embora acolhida com grande entusiasmo, não o satisfez [Piaget] plenamente” (idem, p.249). Nesse sentido, de modo semelhante a Kant, Piaget concebe que existem esquemas que condicionam nosso conhecimento das coisas, mas, sobretudo, tais esquemas possuem uma gênese, não sendo estruturas dadas no sujeito. O termo “gênese”, usado por Piaget (cf. 1990, p.8), remete a origem e construção e não se limita à ciência Genética. Diz-nos Lourenço (2008a, p.249) que a noção de gênese advém de uma crença já presente na teoria biológica do conhecimento. Escreve ele: A teoria biológica do conhecimento é a crença que as formas cognitivas não são entidades estáticas e imutáveis, mas, como todos os traços físicos e fisiológicos do homem, estão sujeitas a um crescimento e desenvolvimento gradual, e que nenhuma teoria do conhecimento pode ser adequada sem relacionar a sua gênese com todo o processo evolutivo. (Idem, p.249) Com a chegada da teoria da evolução, a teoria biológica do conhecimento ganha força e repercussão nos vários aspectos do conhecimento humano, em especial no aspecto psicológico, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX. Diz-nos Lourenço, desse modo, que, A partir de então, começa-se a aplicar a teoria da evolução aos traços psicológicos do homem incluindo a inteligência e o pensamento. A oposição entre a natureza e a razão começa a ser rejeitada, e a teoria da evolução a gerar a necessidade de explicar a evolução da descendência mental. (Ibidem, p.249-50) Dentre as concepções da biologia do conhecimento, Piaget é influenciado, em particular, pelas concepções de Herbert Spencer PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 29 (1828-1903) e Henri Bergson (1859-1941). Segundo Lourenço, “Spencer e Bergson foram os primeiros filósofos a dar uma orientação biológica à epistemologia e, portanto, a relacionar as leis do conhecimento com as da vida” (ibidem, p.250). Diz-nos Piaget (1983b, p.72) que as leituras de Bergson, em particular, influenciaram-no profundamente, e correspondiam aos seus questionamentos na adolescência. Sobre isso, escreve: “Em resumo, eu descobriria [na adolescência] uma filosofia [a de Bergson] respondendo exatamente à minha estrutura intelectual de então” (idem, p.72). Nesse sentido, diz-nos, ainda, o autor: “[...] meu padrinho, um homem de letras […] convidou-me, num verão, a ir às margens do lago de Annecy para me fazer ler e explicar-me A evolução criadora. Foi um verdadeiro impacto […] que impelem os adolescentes para a filosofia” (ibidem, p.72) Segundo Bergson, em A evolução criadora (1907), a inteligência é produto da ação do homem sobre a natureza, pois a sua formação emerge das atividades naturais de fabricação de instrumentos para a sua sobrevivência. Nesse sentido, diz-nos ele: [...] a inteligência é a faculdade de fabricar instrumentos inorganizados, isto é, artificiais. Se, através dela, a natureza nega-se a dotar o ser vivo do instrumento que lhe servirá, é para que o ser vivo possa, de acordo com as circunstâncias, diversificar sua fabricação. A função essencial da inteligência será, pois, de deslindar, em quaisquer circunstâncias, o meio de sair de dificuldades. Ela irá procurar o que melhor lhe possa atender, isto é, inserir no quadro proposto. Ela recairá essencialmente sobre as relações entre a situação dada e os meios de a utilizar. (Bergson, 1979, p.185) Notemos que Bergson concebe, então, a inteligência, originalmente, como uma função biológica voltada para a vida prática e para as ações vitais do organismo no meio. A inteligência está vinculada à resolução de problemas práticos e consiste em buscar a melhor adequação a uma situação dada, elaborando, para isso, instrumentos disponíveis para sua ação no meio. 30 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI Segundo Lourenço, a ação tem um papel fundamental não apenas para Bergson, mas também para Spencer. Nesse sentido, escreve: A inteligência e o conhecimento são, segundo eles [Spencer e Bergson], o resultado de todo o processo evolutivo e, como a vida, formas de ajustamento e adaptação ao meio – são instrumentos ao serviço do bem-estar e da sobrevivência dos organismos. O conhecimento não é apenas contemplação; é também execução e ação. (Lourenço, 2008a, p.250) A noção de ação é parte central da teoria piagetiana. Sobre a importância da ação para a construção do conhecimento e da inteligência no viés da concepção piagetiana, escreve Ramozzi-Chiarottino: “A ação, na concepção de Piaget, só pode ser entendida como parte do funcionamento de toda organização viva” (Ramozzi-Chiarottino, 1984, p.33). Nesse sentido, do ponto de vista da Teoria do Conhecimento, nem o sujeito nem o objeto constituirão sozinhos as estruturas necessárias ao conhecimento, mas a interação entre eles. Desse modo, escreve Piaget: “Conhecer não consiste, com efeito, em copiar o real mas em agir sobre ele e transformá-lo (na aparência ou na realidade), de maneira a compreendê-lo em função dos sistemas de transformação aos quais estão ligadas estas ações” (Piaget, 1973, p.15). A ação é tão importante para a formação e produção do conhecimento pelo sujeito que podemos encontrar na teoria piagetiana uma espécie de filosofia da ação e, também, como nos indica Ramozzi-Chiarottino,6 Piaget afirma que sua teoria é uma álgebra es6. A passagem em que Piaget afirma que sua teoria é uma álgebra estrutural, indicada a nós por Ramozzi-Chiarottino, é a seguinte: “[...] a operação logística não tem a pretensão de ser uma lógica, mas um modelo algébrico das operações reais do pensamento” e “[...] a lógica operatória é, portanto, uma teoria algébrica das estruturas (mentais) em função das quais o pensamento real se impõe PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 31 trutural dos sistemas de ação. Para ele, a ação é condição necessária para a estruturação do mundo realizada pelo sujeito. Diz-nos Ramozzi-Chiarottino (1984, p.32) que um estudo da teoria piagetiana mostraria toda a sua obra como uma teoria geral da ação. Aponta a autora que Gilles-Gaston Granger, em sua obra Filosofia do estilo (1968), tem, também, uma interpretação nesse sentido. Comenta Ramozzi-Chiarottino que, na visão de Granger, “[...] a maneira pela qual Piaget aborda e desenvolve o problema da integração da ação ao objeto das ciências do homem é fruto do encontro de um estilo biológico e de um estilo matemático”. Granger, na mesma obra, diz-nos que uma ação “[...] não é um estado fixo de anulação de seus movimentos, mas um sistema de atos possíveis organizados de tal modo que contrabalancem certas mudanças do meio” (Granger, 1974, p.283). Nesse sentido, a ação, enquanto um sistema de atos possíveis e realizáveis pelo sujeito, torna-se uma espécie de ação virtual. A ação, não conduzida pelo sujeito apenas em uma situação específica e concreta, é, sobretudo, realizável por este em situações possíveis, análogas ou semelhantes, formando um sistema de “atos virtuais” e gerais como um todo, passível, inclusive, de formalização. Assim, segundo Granger: […] é pela introdução do virtual que se efetua a aproximação essencial, para Piaget, entre o tema biológico e o tema matemático: as estruturas em questão em sua análise dos sistemas de ação são estruturas matemáticas, porque são construídas por operações não visadas isoladamente, mas segundo o conjunto de suas realizações virtuais. (Idem, p.283-4, grifo do autor) Notemos, ademais, mesmo que brevemente, que uma ação não é qualquer movimento do sujeito no meio. Segundo Piaget, “é ação toda conduta (observável exteriormente, inclusive por interrogação (com ou sem razão), uma lógica” (Piaget, 1952, p.81, tradução nossa). Agradecemos novamente à professora pela indicação. 32 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI clínica) visando um objetivo do ponto de vista do sujeito considerado” (Apostel et al., 1957, p.43). Em outras palavras, uma ação pressupõe um tipo de intenção, por parte do sujeito, no sentido de que visa a um fim na perspectiva desse sujeito. Segundo Vicente Eduardo Ribeiro Marçal (2009, p.23), apesar de existir a possibilidade de, em teoria, distinguir uma ação de um movimento aleatório, tal distinção é tênue. Não nos interessa, para os propósitos deste livro, entrar no mérito da questão de saber, por exemplo, qual é o método clínico mais adequado para constatar se o sujeito realiza, de fato, uma ação ou quando se dá o início das primeiras ações no bebê. Interessa-nos apenas, aqui, que Piaget desenvolve um estudo sobre a ação, sendo ela um conceito-chave na teoria proposta por ele. Relacionado às ações, temos, então, uma das noções centrais da Epistemologia Genética: o esquema de ação. Para Piaget, “um esquema é a estrutura ou a organização das ações, as quais se transferem ou generalizam no momento da repetição da ação, em circunstâncias semelhantes ou análogas” (Piaget, 1990, p.15). Citemos um exemplo (dentre inúmeros possíveis): Piaget (1975b, p.35-40), em O nascimento da inteligência na criança (1936), observa que um de seus filhos, Laurent, usava, nos primeiros instantes de vida, os lábios para sugar no vazio, e que, paulatinamente, passou a usá-los para sugar o seio da mãe, mesmo que de maneira descoordenada, e, depois, o polegar e, progressivamente, outros objetos, até que essa ação de sugar se generalizou dando origem ao esquema de sucção. Desse modo, o esquema é uma forma geral de certas ações, isto é, algo comum entre as diversas ações individuais de um mesmo tipo, podendo ser aplicada em contextos de ações distintos, mas análogos, o que o torna uma condição da ação; sendo, portanto, uma forma da ação, é uma estrutura organizadora da ação do sujeito sobre o mundo. Em outras palavras, o esquema de ação é, segundo Ramozzi-Chiarottino, PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 33 [...] condição primeira da ação, ou seja, da troca do organismo com o meio. Ele é engendrado pelo funcionamento geral de toda organização viva, a adaptação. O organismo com sua bagagem hereditária, em contato com o meio, perturba-se, desequilibra-se e, para superar esse desequilíbrio, ou seja, para adaptar-se, constrói os esquemas. (Ramozzi-Chiarottino, 1984, p.34) Os diversos esquemas construídos pelo sujeito coordenam-se, estabelecendo entre si uma rede de relações. Essas relações entre esquemas de ação constituem o que Piaget chama de “sistema de esquemas de ação” e permite mostrar a continuidade da adaptação biológica com a adaptação intelectual. Citemos um exemplo retirado de O nascimento da inteligência (cf. 1975b, p.124): os esquemas de sucção, preensão e visão assinalam o início de um comportamento complexo, sendo um elo indispensável entre a adaptação biológica e a intelectual. Em específico, objetos que são agarrados pela criança, nos primeiros meses, tendem a ser chupados ou olhados, e objetos que são olhados tendem a ser agarrados e chupados. A partir de experiências particulares de preensão, sucção e visão com objetos, o sujeito constitui um sistema de esquemas prévios, condição de sua ação, para aplicar os esquemas às situações análogas. Nesse sentido, o objeto é assimilado através da coordenação sucessiva de esquemas de sucção, preensão e visão, adquirindo um conjunto de significações para o sujeito a partir do sistema de esquemas a ele aplicados. Notemos, nesse sentido, que existe uma teoria da significação atrelada à constituição do sistema de esquemas de ação do sujeito.7 O sujeito, de posse de um sistema de esquemas de ação que lhe permitam agir sobre o real, atribui a esse real um conjunto de signifi- 7. A relação entre Lógica e Significação também ocupou as pesquisas de Piaget e colaboradores no Centro Internacional de Epistemologia Genética. Perto do fim de sua vida surge o livro Em direção a uma Lógica das Significações, publicada postumamente, em 1987. 34 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI cações que serão determinantes para a construção da realidade que o cerca. Encontramos em Latansio (2010) um estudo sobre a noção de significação que traz explicitações sobre o tema da significação das ações e dos objetos para o sujeito segundo a Epistemologia Genética. Não entraremos nos pormenores desse estudo; cabe-nos indicar, porém, que, como nos aponta Latansio (2010, p.35-6), Piaget, em Apostel et al. (1957),8 v.IV dos Estudos de Epistemologia Genética, fornece-nos definições que norteiam os estudos sobre a significação, a saber: (i) “Def. 9: Do ponto de vista do observador, a significação de uma ação é o conjunto das ações que ela torna possíveis, e o conjunto daquelas que ela torna impossíveis” (Apostel et al., 1957, p.48, tradução de Latansio, 2010, p.36); (ii) Def. 10. Do ponto de vista do sujeito S, a significação de uma coordenação de ação é o conjunto das ações coordenadas com o qual o sujeito S a compõe e o conjunto das coordenações de ação das quais o mesmo sujeito a torna ação coordenada (cf. Apostel et al., 1957, p.48); (iii) “Def. 11: A significação de um objeto A para um sujeito S numa situação T é o conjunto das ações de S que lhe são aplicáveis em T”. (Apostel et al., 1957, p.50, tradução de Latansio, 2010, p.38). Nesse sentido, de modo geral, podemos dizer que a significação (de uma ação e de um objeto) está profundamente atrelada à interação do sujeito com o objeto, isto é, ao sistema de esquema de ação, seja do ponto de vista do observador ou do sujeito que realiza a ação. Isso quer dizer que “[...] quanto mais complexas as construções internas, mais significações uma ação apresenta para esse indivíduo” (Latansio, 2010, p.37). Ainda, segundo Latansio, no caso da significação do objeto, “[...] temos também (como no caso da significação de uma ação), isto é, quanto mais complexo é seu sistema de esquemas de ação, mais significações um objeto tem para um sujeito, devido à possibilidade de ações” (Latansio, 2010, p.38). 8. Essa obra é resultado de um estudo interdisciplinar entre lógicos e psicólogos sobre as relações entre a Linguagem e a Lógica em Carnap, realizada no Centro Internacional de Epistemologia Genética (cf. Apostel et al., 1957, p.3, nota 1). PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 35 O sistema de esquemas de ação, além de possibilitar um conjunto de significações para as ações do sujeito em relação aos objetos, permite que se estabeleça um elo profundo de continuidade entre os aspectos biológico, psicológico e epistemológico do sujeito. A constituição do sistema de esquemas de ação ocorre durante toda a nossa vida, mas o notável é que, enquanto “mecanismo” biológico, o esquema está presente em todos os animais ou sujeitos-organismos. Em especial no ser humano, sendo, pois, no caso deste, condição para o sujeito psicológico e, progressivamente, condição para a constituição de um sujeito epistêmico. A continuidade entre a organização biológica e as estruturas superiores da cognição, com a possibilidade de produção de conhecimento, se expressa na complexificação gradual do sistema de esquemas de ação que o sujeito constrói na sua interação com o meio.9 Escreve Piaget, em Biologia e conhecimento 9. Encontramos, no processo de adaptação em Piaget, com seus dois polos de acomodação e assimilação, que trataremos logo em seguida, semelhanças muito próximas com os processos auto-organizados. Michel Debrun, por exemplo, diz-nos: “Há auto-organização cada vez que, a partir de um encontro entre elementos realmente (e não analiticamente) distintos, desenvolve-se uma interação sem supervisor (ou sem superior onipotente) – interação essa que leva eventualmente à constituição de uma ‘forma’ ou à restruturação, por ‘complexificação’, de uma forma já existente” (Debrun, 1996a, p.13). Notemos, então, que o sujeito, tanto segundo essa teoria proposta por Debrun quanto à de Piaget, participa do processo, sem dominá-lo completamente, como se poderia entrever de um sujeito transcendental. O sujeito é um dentre outros elementos (embora principal) no “ajuste” das estruturas que emergem na construção do conhecimento, inclusive do saber fazer. Debrun também observou essa semelhança entre o processo de adaptação tratado por Piaget e os processos auto-organizados; sobre isso, diz-nos ele em seu artigo “Por que, quando e como é possível falar em auto-organização?”, mais precisamente no contexto em que ele trata do “ajuste”, que “[...] alguns verão no ajuste a expressão de uma dialética de assimilação e acomodação entre um sujeito (individual ou coletivo) e seu ambiente […] Seria uma solução ‘à la Piaget’. Mas, se for o caso, podemos indagar: não será que já estamos lidando com auto-organização? Ou algo muito próximo, da mesma família que ela? Transfiramos para frente a discussão desse ponto. O certo é que não pode se tratar de hetero-explicação” (Debrun,1996b, p.XXXV). 36 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI (1967),10 que os conhecimentos se apoiam “[...] constantemente nas ações e nos esquemas de ação, fora dos quais não têm nenhum poder nem sobre o real nem sobre a análise interior” (Piaget, 1973, p.40) Em O nascimento da inteligência na criança, Piaget nos mostra que essa continuidade é muito mais fundamental do que se possa imaginar. Da organização biológica do sujeito às suas estruturas mais abstratas do conhecimento não há uma separação, mas uma continuidade profunda, progressiva, lenta e gradual. Sobre a continuidade, escreve o autor na obra: A inteligência verbal ou refletida baseia-se [ao longo de um processo] numa inteligência prática ou sensório-motora, a qual se apoia, por seu turno, nos hábitos e associações adquiridos para recombiná-los. Por outra parte, esses mesmos hábitos e associações pressupõem a existência [de um processo a partir] do sistema de reflexos, cuja conexão com a estrutura anatômica e morfológica do organismo é evidente. Existe, portanto, certa continuidade entre a inteligência e os processos puramente biológicos de morfogênese e adaptação ao meio. (Piaget, 1975b, p.13) A constituição dos sistemas de esquemas de ação obedece a uma lei fundamental de toda organização viva: a adaptação. Segundo Piaget, “[...] a adaptação é um equilíbrio entre a assimilação e a acomodação” (idem, p.17, grifo nosso). Uma assimilação é, no seu entender (ibidem, p.17-8), a incorporação dos dados do meio ex- 10. Segundo Piaget, o problema central de Biologia e conhecimento é o de procurar “as relações entre as regulações cognoscitivas e as orgânicas em todas as escalas” (Piaget, 1973, p.22). Nesse sentido, sendo nosso estudo, no presente livro, um estudo epistemológico das estruturas lógico-matemáticas, adotaremos esse livro de Piaget como uma das linhas condutoras de nosso trabalho, pois entendemos, como Ramozzi-Chiarottino, que, “Em Biologia e conhecimento (1967), Piaget mostra muito claramente o alcance epistemológico dos esquemas motores de ação e insiste igualmente e mais do que nunca sobre as estreitas relações entre conhecimento, organismo e lógica” (Ramozzi-Chiarottino, 2010, p.16-7). PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 37 terno ao sistema de esquemas do sujeito. Os esquemas são modificados em função do meio externo, havendo, com isso, ajuste ou acomodação dos esquemas. Assim, a acomodação é uma mudança do sistema de esquemas de ação, ou seja, é um reajuste ativo para melhor atingir os fins propostos pelo sujeito e, assim, melhor interagir com o meio que está sendo assimilado. Há, nesse sentido, uma interdependência entre acomodação e assimilação e ambos decorrentes da atividade do sujeito-organismo em um processo equilibrado que constitui a adaptação. Para Piaget, “[...] toda conduta tende a assegurar equilíbrio entre os fatores internos e externos ou, mais em geral, entre a assimilação e a acomodação” (Piaget, 2002, p.89). Diz-nos ele que o processo de equilibração tem um enorme poder explicativo, e que o equilíbrio “[...] não é uma característica extrínseca ou acrescentada, mas propriedade intrínseca e constitutiva da vida orgânica e mental” (idem, p.88). Nesse sentido, um organismo que esteja em permanente desequilíbrio está seguramente em um estado patológico e, por outro lado, um equilíbrio permanente pode significar uma “cristalização” da própria vida. Assim, “a consideração dos problemas do equilíbrio é, portanto, indispensável para a explicação biológica e psicológica” (ibidem, p.89), em especial para as operações lógico-matemáticas realizadas pelo sujeito psicológico, pois “[...] uma estrutura psicologicamente equilibrada é, ao mesmo tempo, uma estrutura logicamente formalizável” (Piaget, 1976, p.14). Segundo o autor “[...] tal é o caso das classificações, das seriações e das correspondências no campo concreto, e dos sistemas dedutivos no campo das proposições” (idem, p.14); em especial, se assim podemos dizer, o caso da função proposicional, que estudaremos mais detidamente no capítulo 3 do presente livro. Os conceitos de adaptação e equilibração são, também, importantes no pensamento piagetiano porque, segundo Lourenço, Uma das tarefas fundamentais de Piaget foi, precisamente, identificar os mecanismos adaptativos que operam nos esquemas ou padrões de ação e reconstituir o seu reaparecimento metamorfo- 38 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI seado nos conceitos e na ciência, essenciais para aperfeiçoar o âmbito adaptativo dos mecanismos orgânicos e da ação. (Lourenço, 2008a, p.251) Notemos, então, que o estudo da inteligência, realizado por Piaget no plano da psicologia, consiste em identificar esses “mecanismos” adaptativos que estão presentes em todos os níveis do desenvolvimento humano. Desse modo, a inteligência é vista por Piaget como um tipo adaptação biológica e o conhecimento pode ser visto, se assim o podemos dizer, como um “produto biológico” da adaptação da inteligência à natureza. No mais alto nível da inteligência, o da inteligência conceitual, podemos dizer, nesse sentido, que a Filosofia e as ciências são o resultado da adaptação da espécie humana à realidade; diríamos, ademais, que elas são, na concepção de Piaget, a adaptação mais bem-sucedida da natureza. Isso implica dizer, então, que não há uma ruptura entre natureza e homem, mas uma continuidade profunda entre Biologia e Epistemologia; em especial, para nossos interesses no livro, entre Biologia e o conhecimento lógico-matemático. Sobre o fato de a inteligência ser um caso de adaptação biológica ao meio, escreve Piaget, em O nascimento da inteligência na criança: […] a inteligência é uma adaptação […] Afirmar que a inteligência é um caso particular da adaptação biológica equivale, portanto, a supor que ela é, essencialmente, uma organização e que a sua função consiste em estruturar o universo tal como o organismo estrutura o meio imediato. (Piaget, 1975b, p.15) Em outra passagem, na mesma obra, o autor ainda nos diz: O organismo adapta-se construindo materialmente novas formas para inseri-las nas do universo, ao passo que a inteligência prolonga tal criação construindo, mentalmente, as estruturas suscetíveis de aplicarem-se às do meio. Num sentido e no começo da evolução mental, a adaptação intelectual é, portanto mais restrita PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 39 do que a adaptação biológica, mas, prolongando-se esta, aquela supera-a infinitamente […]. (Idem, p.15-16) Nesse sentido, como resultado da evolução da inteligência, podemos entender que a ciência “[...] é a mais bela das adaptações do organismo humano ao meio exterior”. (Piaget, 1950, p.112) e que “a mais bela das adaptações ao meio que a vida realizou foi a adaptação do conhecimento à realidade” (Piaget, 1972 apud Lourenço, 2008a, p.251). Em Biologia e conhecimento, encontramos uma passagem que coloca em termos ainda mais claros essa relação entre Biologia e Epistemologia,11 a saber: […] gradativamente, os sistemas cognoscitivos derivam uns dos outros, e em última análise dependem sempre de coordenações nervosas e orgânicas, de tal maneira que o conhecimento é necessariamente solidário com a organização vital em conjunto. (Piaget, 1973a, p.23). De modo mais específico, Piaget entende que conhecer um objeto implica incorporá-lo aos esquemas de ação. Dizer que todo conhecimento supõe uma assimilação e consiste em conferir significações vem a ser, pois afinal de contas, afirmar que conhecer um objeto implica incorporá-lo a esquemas de ação, isto é verdade desde as condutas sensório-motoras elementares até às operações lógico-matemáticas superiores. (Piaget, 1973a, p.17) Assim, retomando a discussão sobre a originalidade da epistemologia proposta por Piaget, muito embora o seu pensamento possa ser interpretado como um kantismo, na medida em que os 11. Relação esta que nos permite entender, mais precisamente, a caracterização que Piaget atribui a sua epistemologia de “epistemologia biológica”; como vimos no início deste capítulo (cf. Piaget, 1950, p.3). 40 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI esquemas condicionam nosso conhecimento das coisas, as heranças das teorias biológicas do conhecimento e seus procedimentos metodológicos em Psicologia Experimental, permitem-nos conjecturar que, no fundo, Piaget “biologiza” Kant. Em outras palavras, como nos indica Ramozzi-Chiarotino (1984, p.29), a teoria de Piaget pode ser vista como um kantismo evolutivo. Os elementos desse kantismo, na teoria piagetiana, levam Ramozzi-Chiarottino, por exemplo, a entender “[...] a obra de Piaget como uma retomada da problemática kantiana que se resolverá à luz da Biologia e da concepção do ser humano como um animal simbólico” (Ramozzi-Chiarottino, 1984, p.29). Assim, diferentemente de Kant, que parece tratar as categorias como estruturas fixas, Piaget se inspira na Biologia e busca a gênese de tais categorias, entendendo que algumas das questões (sobre fatos) da Teoria do Conhecimento poderiam ser estudadas no nível das observações empíricas. Nesse sentido, observa Lourenço que “[...] o verdadeiro problema, segundo Piaget, não é se ou não os esquemas existem, mas se ou não são fixos e imutáveis” (Lourenço, 2008a, p.249). Sobre isso nos diz, ainda, que [...] [Piaget] se dá por tarefa, desde o início da sua carreira intelectual, “resolver o mais importante dos problemas reais da teoria do conhecimento, o da fixidez ou da plasticidade [e historicidade] das categorias da razão”, e vê que “a teoria do conhecimento podia ser perspectivada no terreno da psicologia”. (Idem, p.249) Como exemplo da concepção de Piaget sobre as categorias, vejamos, em linhas gerais, qual é o tratamento que o autor dá a duas de um conjunto de “grandes categorias da ação”:12 a do espaço 12. As grandes categorias da ação são os esquemas do objeto permanente, do espaço, do tempo e da causalidade (cf., por exemplo, Piaget, 1990, p.18-9), as quais permitem o sujeito estruturar a sua realidade e a partir das quais surgem os demais esquemas no sujeito, como os de velocidade, volume, densidade, conservação da matéria, identidade, função etc. PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 41 e a da permanência do objeto. Em A Psicologia da Criança, diz-nos (1990, p.18-9) que o sujeito constrói, no nível sensório-motor, um conjunto de esquemas de ação práticos13 que lhe permitirá construir a noção de espaço progressivamente e que a constituição da permanência do objeto no espaço é um dos caminhos decisivos nessa direção. Segundo Piaget, em A construção do real na criança (1937), “pode-se afirmar que a constituição da noção de objeto é correlativa da organização do próprio campo espacial” (Piaget, 13. Os esquemas de ação práticos estão estritamente atrelados às ações sensório-motoras do sujeito, sem qualquer recurso, no início do desenvolvimento, à representação cognitiva, principalmente pelo fato de este sujeito não dispor, no nível sensório-motor, de tais representações. Ele desloca-se no espaço seguindo “padrões de deslocamento” que Piaget identificou serem muito semelhantes à noção de “grupo” matemático. Tendo em vista tais semelhanças, Piaget desenvolve todo um estudo sobre os esquemas de ação práticos. Tomando emprestada a ideia matemática de “grupos práticos de deslocamento” de Poincaré, Piaget vê nos esquemas de ação práticos verdadeiros “grupos práticos de deslocamentos”, cuja significação psicológica na criança é, em resumo, assim apresentado por ele: “[...] a) Um deslocamento AB e um deslocamento BC podem coordenar-se num único deslocamento AC, que ainda faz parte do sistema; b) Todo deslocamento AB pode inverter-se em BA, donde a conduta do ‘retorno’ ao ponto de partida; c) A composição do deslocamento AB e do seu inverso BA dá o deslocamento nulo AA; d) Os deslocamentos são associativos, o que quer dizer que, na sequência ABCD, temos AB + BD = AC + CD: isso significa que um mesmo ponto D pode ser atingido a partir de A por caminhos diferentes (se os segmentos AB, BC etc., não estiverem em linha reta), o que constitui a conduta do ‘desvio’, cujo caráter tardio se conhece ([…] na criança, conduta compreendida pelos chimpanzés, mas ignorada das galinhas etc.)” (Piaget, 1990, p.21). Notemos, então, que “[...] a criança não percebe esses grupos nas coisas nem toma conhecimento consciente das operações inteiramente motoras por meio das quais as elabora; portanto, os grupos permanecem totalmente ‘práticos’” (Piaget, 1970, p.95); esses grupos são vistos, então, apenas do ponto de vista do observador e não do sujeito que pratica a ação. Cabe observar, também, que os grupos práticos de deslocamentos, podem ser vistos, como vimos, como uma álgebra das ações. Nesse sentido, tais grupos formam um sistema de atos possíveis e realizáveis, em uma espécie de “manipulação” virtual, não incorporado pelo sujeito apenas em uma situação concreta e específica, mas, sobretudo, incorporado por ele em situações análogas ou semelhantes, formando um sistema de “atos virtuais” como um todo, passível, inclusive, de formalização. 42 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI 1970, p.93). Nesse sentido, escreve o autor, na mesma obra, que “[...] a noção de espaço só se compreende em função da construção dos objetos e será preciso começar por descrever a segunda para se entender a primeira: somente o grau de objetivação que a criança atribui às coisas nos elucida cabalmente sobre o grau de exterioridade que confere ao espaço” (idem, p.94); por exemplo, as percepções de formas, dimensões, distâncias, posições, perspectivas etc. Desse modo, podemos notar, mesmo em linhas gerais, que a categoria espacial será o resultado de uma construção contínua do sujeito, na sua interação com o objeto em construção, que remonta aos seus primeiros anos de vida. A crescente coordenação entre os esquemas da permanência do objeto e do espaço, por exemplo, por parte da criança, permite a ela construir a realidade que a cerca. Nesse sentido, ainda em A construção do real na criança, diz-nos o autor de um modo mais amplo: “A crescente coerência dos esquemas acompanha, paralelamente, a constituição de um mundo de objetos e de relações espaciais, de causas e de relações temporais, em resumo, a elaboração de um universo sólido e permanente” (ibidem, p.8). Assim, o sistema de esquemas de ação, constituído no nível mais elementar do desenvolvimento, o período sensório-motor, que é o nível prático da inteligência, “[...] organiza o real construindo, pelo próprio funcionamento, as grandes categorias da ação que são os esquemas do objeto permanente, do espaço, do tempo e da causalidade, subestrutura das futuras noções correspondentes” (Piaget, 1990, p.18-9). Diz-nos ainda Piaget, que “nenhuma dessas categorias existe no princípio e o universo inicial está inteiramente centrado no corpo e na ação próprios, num egocentrismo tão total quanto inconsciente de si mesmo (por falta de consciência do eu)” (idem, p.19); em outras palavras, em linhas gerais, podemos dizer que as categorias possuem uma gênese e se formam mediante um crescente processo de descentralização do eu que envolve uma progressiva interação entre o sujeito e o meio objetivo que o cerca. PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 43 Diante do problema da fixidez ou da plasticidade (histórica) das categorias da razão, do âmbito da Teoria do Conhecimento, Piaget elabora a questão central da sua epistemologia: Em lugar de se indagar o que é o conhecimento em geral ou como o conhecimento científico (tomado também em bloco) é possível, o que produz, naturalmente, a constituição de toda uma filosofia, podemos limitar-nos, pelo método, ao problema “positivo” seguinte: como aumentam os (e não o) conhecimentos? Por quais processos uma ciência passa de um conhecimento determinado, julgado depois insuficiente, a outro conhecimento determinado julgado depois superior pela consciência comum dos adeptos desta disciplina? Todos os problemas epistemológicos são então encontrados, mas na perspectiva histórico-crítica e não mais de improviso, nas de uma filosofia. É desta epistemologia genética ou científica que falaremos aqui para mostrar quanto a psicologia da criança é capaz de trazer-lhe concurso talvez não negligenciável […]. (Piaget, 1973, p.32-3, grifo nosso) Esse problema, o de investigar “como aumentam os (e não o) conhecimentos?”, embora amplo, pode ser considerado, se não o cerne dos questionamentos epistemológicos piagetianos, ao menos uma das questões epistemológicas centrais de sua obra. No viés dessa questão, perguntar-se pelo como é se perguntar pelos processos constitutivos do conhecimento, ou seja, é se perguntar pela gênese das estruturas que tornam possível o conhecimento humano da realidade. Por isso, a epistemologia de Piaget é uma epistemologia em que se estudam as estruturas e as condições necessárias ao conhecimento possível. A teoria de Piaget, por ser uma epistemologia que procura a gênese das estruturas necessárias aos conhecimentos no sujeito epistêmico, é designada por ele de Epistemologia Genética. Nesse sentido, a Epistemologia Genética visa ao conhecimento-processo e não o conhecimento-estado. Na perspectiva do conhecimento-processo, parte-se do pressuposto de que o conheci- 44 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI mento está em construção e de que existe, portanto, uma historicidade. Ora, se existe uma historicidade, o conhecimento nunca é estático e acabado, mas é passível de novas construções e reformulações, sendo, pois, a Epistemologia Genética, inclusive, parte importante desse processo histórico de construção do conhecimento. O que nos permite dizer que a Epistemologia Genética não é um estudo finalizado das noções científicas, mas um grande “pátio em construção”. Diz-nos Piaget, em Psicologia e Epistemologia (1970): “Essa transformação fundamental do conhecimento-estado em conhecimento-processo, leva então a colocar em termos bastante novos a questão das relações entre epistemologia e desenvolvimento ou mesmo formação psicológica das noções e operações” (Piaget, 1973b, p.10). Pois, se todo conhecimento é um “vir a ser”, uma das questões que se pode colocar em Epistemologia é a de saber, por exemplo, como funcionam os processos desse “vir a ser” do conhecimento-processo. Nesse sentido, a Psicologia pode ter um papel fundamental no estudo científico de como funcionam tais processos necessários ao conhecimento. É sobre a relação entre a Epistemologia e a Psicologia que trataremos na seção seguinte. 2. Relações entre a Psicologia Genética e a Epistemologia Genética Veremos, nesta seção, em que medida é possível uma relação entre Epistemologia e Psicologia. Observaremos, em especial, como Piaget propõe uma relação entre elas e como, a partir de um ponto de vista metodológico, é possível, em particular, a relação entre Epistemologia Genética e Psicologia Genética. No âmbito dessa relação, veremos que Piaget não é bem compreendido, sendo dada a ele a caracterização de “psicologista” por recorrer a uma psicologia na explicação dos conhecimentos, e, também, de “positivista”, por se utilizar, principalmente, do método científico nas PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 45 suas investigações epistemológicas e por não atribuir à Filosofia o título de conhecimento propriamente dito, mas apenas o de “sabedoria”. Segundo Piaget, não é difícil encontrar nas epistemologias clássicas uma recorrência a uma psicologia. Para o autor (1973b, p.10), as correntes empiristas, por exemplo, ao recorrerem aos dados sensíveis na experiência, tratam de noções psicológicas como percepções, associações, hábitos etc. Mas o problema é, segundo ele, que essas filosofias não dispunham, ainda, de um método empírico rigoroso de investigação psicológica; método que surgirá com o advento da Psicologia Experimental no século XIX, no contexto do desenvolvimento das demais ciências empíricas. Na perspectiva piagetiana, sem o recurso da Psicologia Experimental, o estudo das noções psicológicas se torna apenas especulativo e não busca verificar as questões de fato, que são questões que podem ser testadas na experiência e respondidas com métodos científicos de verificação empírica. Nesse sentido, diz-nos: “Mas como as filosofias empiristas e sensualistas, etc., nasceram bem antes da psicologia experimental, contentamo-nos com essas noções do senso comum e de descrições principalmente especulativas” (idem, p.11). O distanciamento dos métodos científicos de verificações empíricas é mais evidente, segundo Piaget, nas epistemologias consideradas platônicas, racionalistas ou aprioristas, pois “[...] cada qual acreditou ter encontrado um instrumento fundamental de conhecimento estranho, superior ou anterior à experiência” (ibidem, p.11). Tais epistemologias desvelam seus conhecimentos por intermédio de especulações metafísicas e não compreenderam que algumas questões pertenciam ao âmbito dos fatos; elas “[...] deixaram de verificar [o] que estava realmente à disposição do sujeito. Entretanto, existe aqui, quer se queira quer não, uma questão de fato” (ibidem, p.11). Em vista disso, uma das novidades da Epistemologia Genética é a de que ela recorre aos métodos científicos da Psicologia para 46 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI estudar as questões de fatos sobre os conhecimentos. A Epistemologia Genética se serve, em particular, da Psicologia Experimental para compreender, cientificamente, como, por exemplo, nasce a inteligência, na sua relação com o organismo biológico, e como se constituem os níveis mais elementares das estruturas necessárias ao desenvolvimento da inteligência. Notemos, então, que a Psicologia Experimental tem o papel metodológico de ir à experiência, com métodos científicos rigorosos de investigação empírica. Uma psicologia que adote essa posição e que, a partir dela, vise compreender, também, a gênese psicológica dos conhecimentos, é denominada pelo autor de Psicologia Genética. A Psicologia Genética procura, segundo Piaget (1990, p.9), estudar a gênese dos elementos relativos aos grandes temas da Psicologia Geral, como a inteligência, a percepção, as operações etc. Na medida em que a Psicologia Genética realiza esse estudo da gênese, ela recorre, então, à Psicologia da Criança, pois, […] se todo conhecimento é sempre vir a ser e consiste em passar de um conhecimento menor para um estado mais completo e mais eficaz, é claro que se trata de conhecer esse vir a ser e de analisá-lo da maneira mais exata possível. Entretanto, esse vir a ser não decorre do acaso, mas constitui um desenvolvimento e como não existe, em nenhum domínio cognitivo, começo absoluto até o desenvolvimento, este mesmo deve ser examinado desde os estágios denominados de formação […]. (Piaget, 1973a, p.12) Nesse sentido, para estudar esse “vir a ser” ou o processo de constituição dos nossos conhecimentos da forma mais exata possível, o “[...] método genético […] tende, assim, a conferir à psicologia da criança uma espécie de posição-chave nos domínios mais diversos”, pois ele procura “[...] explicar as funções mentais pelo seu modo de formação e, portanto, pelo seu desenvolvimento na criança” (Piaget, 1990, p.9), por exemplo, o problema de saber se os objetos da Lógica são inatos ou adquiridos e, também, o pro- PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 47 blema de compreender como se constituem as estruturas elementares da lógica e, nesse sentido, procurar quais são as relações dessas estruturas com o pensamento “natural” em formação. Desse modo, o sujeito do conhecimento que nos interessa neste livro não é, apenas, o sujeito adulto, com as estruturas já construídas, mas também e principalmente a criança, cujas estruturas estão em formação. É, pois, a criança que nos permite estudar os processos de formação dessas estruturas e, a partir da compreensão desse processo, a possibilidade de compreensão da natureza geral de tais estruturas. Segundo Piaget (1976, p.XVI), como já citado, é compreendendo o processo de formação das estruturas que se pode compreender como elas são, pois seus processos formadores nos permitem melhor descobrir a natureza dos conhecimentos. Desse modo, a criança é uma espécie de “matéria-prima” das investigações psicológicas e, por conseguinte, na perspectiva genética, das investigações epistemológicas. De modo ilustrativo e um tanto poético, no seu livro A Psicologia da Criança, o autor diz: […] se a criança apresenta grandíssimo interesse por si mesma, a isso deve acrescentar-se, na verdade, o fato de que a criança explica o homem tanto quanto o homem explica a criança, e não raro ainda mais, pois se o homem educa a criança por meio de múltiplas transformações sociais, todo adulto, embora criador, começou, sem embargo, sendo criança; e isso tanto nos tempos pré-históricos quanto hoje em dia. (Piaget, 1990, p.9) Notemos que, embora a Epistemologia Genética e a Psicologia Genética tenham uma relação intrínseca, uma não se confunde com a outra. Segundo Piaget, em Psicologia e Epistemologia, A psicologia genética é a ciência cujos métodos são cada vez mais semelhantes aos da Biologia. A epistemologia, em compensação, passa, em geral, por parte da filosofia, necessariamente solidária a 48 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI todas as outras disciplinas filosóficas e que comportam, em consequência, uma tomada de posição metafísica. (Piaget, 1973b, p.32) Podemos observar, portanto, que, com a análise de casos no âmbito da Psicologia Genética, no que concerne às questões de fato sobre o conhecimento humano, os estudos de Epistemologia Genética deixam, por um lado, o isolamento das ideias metafísicas para assumir uma perspectiva com um certo controle. Por outro lado, a partir dos resultados da Psicologia Genética, o epistemólogo genético pode se posicionar diante das questões de princípios da Filosofia, podendo trazer contribuições às questões clássicas da Epistemologia e da Teoria do Conhecimento.14 Observemos que o espírito científico de Piaget não poderia se limitar aos métodos especulativos da Filosofia tradicional, que, embora pudessem trazer fecundas visões heurísticas em relação ao conhecimento, inclusive na elaboração de hipóteses e de reflexões sobre os conceitos e métodos de uma ciência, carecia de verificação 14. De uma lista extensa de obras produzidas por Piaget e sua equipe no Centro Internacional de Epistemologia Genética, encontramos, em sua maioria, obras com destacados “sabores” científicos e epistemológicos: A causalidade física na criança (1927), O desenvolvimento das quantidades físicas na criança: conservação e atomismo (1941), A gênese do número na criança (1941), “Classes, relações e números” (1942), O desenvolvimento da noção de tempo na criança (1946), A noção de movimento e velocidade na criança (1946), A geometria espontânea na criança (1948), A representação do espaço na criança (1948), A Gênese da ideia de acaso na criança (1951), A gênese das estruturas lógicas elementares (1959), Epistemologia do espaço (1964), Epistemologia do tempo (1966), Epistemologia e Psicologia da Função (1968), Epistemologia e Psicologia da Identidade (1968), As teorias da causalidade (1971), As explicações causais (1971), A formação da noção de força (1973), A composição das forças e os problemas dos vetores (1973), Investigações sobre a contradição (1974), Investigações sobre a generalização (1978), Investigações sobre as correspondências (1980), entre outras obras não menos importantes, cujos muitos resultados científicos obtidos são, como já frisamos, retomados e discutidos por Piaget diante das ideias já presentes na tradição da História da Filosofia. Infelizmente, tais obras são ainda pouco conhecidas no meio filosófico. PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 49 empírica, propiciada pelos métodos da Biologia e da Psicologia. Nesse sentido, diz o autor: [...] a primeira razão da minha nascente desafeição a respeito dos métodos tradicionais da filosofia resultou do conflito, primeiro sentido em mim mesmo, entre os hábitos de verificação, próprios do biólogo e do psicólogo e a reflexão especulativa que me tentava sem cessar, mas cuja impossibilidade de submetê-la a um controle eu percebia cada vez mais claramente [...]. (Piaget, 1983b, p.76) Nesse sentido, a Filosofia é vista por Piaget não como um conhecimento científico, decorrente de um método de controle empírico, mas um saber crítico, uma sabedoria. Sobre isso, escreve: [...] a filosofia, de acordo com o grande nome que recebeu, constitui uma “sabedoria” indispensável aos seres racionais para coordenar as diversas atividades do homem, mas que não atinge um saber propriamente dito, provido das garantias e dos modos de controle que caracterizam o que se denomina “conhecimento”. (Piaget, 1983b, p.67) Ao assumir tal atitude metodológica, em busca de uma Epistemologia com “os pés fincados” na verificação empírica, sem, no entanto, desvincular “a cabeça” das especulações filosóficas, Piaget não nega o alto valor da Filosofia. Segundo ele, como já citamos: “[...] deve-se mesmo reconhecer que todo homem que não passou por ela [a Filosofia] é incuravelmente incompleto” (Piaget, 1983b, p.68). Tal posição metodológica faz com que, muitas vezes, Piaget seja mal compreendido e receba o título de “positivista” e, também, de “psicologista”. Quanto ao título de “positivista”, escreve Piaget, na introdução de A Epistemologia Genética: “Em poucas palavras se encontrará nestas páginas a exposição de uma epistemologia que é 50 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI naturalista sem ser positivista” (Piaget, 1983a, p.5). A posição de Piaget em relação ao positivismo fica mais evidente em uma das passagens de sua obra Sabedoria e ilusões da Filosofia, em que ele descreve um diálogo seu com o filósofo I. Benrubi, o qual o classificou de “positivista”. Sobre isso, escreve: “O filósofo I. Benrubi escreveu uma espécie de relatório de conjunto sobre as correntes filosóficas de língua francesa e deu-me a honra de citar meu nome, sem discussão, mas classificando-me entre os positivistas” (Piaget, 1983b, p.80). Relata Piaget que, na ocasião de sua conversa com o referido filósofo, procurou argumentar que, se o positivismo é uma certa forma de Epistemologia que ignora ou subestima a atividade do sujeito a favor apenas da constatação ou da generalização das leis constatadas, então ele não pode ser compreendido como “positivista”, pois: [...] tudo o que encontro mostra-me o papel das atividades do sujeito e a necessidade racional da explicação causal. Sinto-me bem mais próximo de Kant ou de Brunschvicg que de Comte, e próximo de Meyerson que opôs ao positivismo argumentos que verifico sem cessar (posta à parte a identificação). (Idem, p.80) Sobre essa passagem, comenta Ramozzi-Chiarottino: Apesar desta e de tantas outras colocações autobiográficas, Piaget tem sido classificado por muitos como “positivista”, provavelmente por ter vinculado o problema do conhecimento à observação dos fatos e ao mesmo tempo à Epistemologia. Entretanto, como ele mesmo disse repetidas vezes, nada há em seu sistema de “positivo” a não ser o ocupar-se de fatos positivos que, não obstante, refutam o Positivismo enquanto forma de epistemologia que ignora ou substitui a atividade do sujeito em benefício apenas da constatação ou da generalização de leis constatadas. (Ramozzi-Chiarottino, 1984, p.29) PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 51 Piaget é, também, mal intitulado de “psicologista” pelo fato de ele, no exercício da Epistemologia Genética, recorrer à análise empírica da psicologia do sujeito. Para compreendermos o papel da Psicologia no interior das abordagens teóricas e empíricas piagetianas, cabe ressaltar o seu papel metodológico. Escreve Lourenço que Piaget vira-se para a psicologia, porque era a disciplina que melhor poderia estabelecer a ligação entre a biologia e a epistemologia, as suas preocupações fundamentais – é uma ciência que, tendo suas raízes na biologia, desemboca na inteligência e nas formas cognitivas em que assenta toda a construção do conhecimento possível. (Lourenço, 2008, p.247-8) Notemos que, segundo Piaget, “[...] se esse gênero de análise [a Epistemologia Genética] comporta uma parte essencial de experimentação psicológica, de modo algum significa, por essa razão, um esforço de pura psicologia” (Piaget, 1983a, p.4). Nesse sentido, Furth, em Piaget e o conhecimento, comenta: [...] Piaget estudou aquilo que é geral ou generalizável na estrutura cognitiva de um indivíduo; o objeto de sua investigação, como ele afirma, é o homem como conhecedor em geral, ao invés de um conhecedor singular, com uma individualidade singular. (Furth, 1974, p.33) Assim, em linhas gerais, a Epistemologia Genética visa ao sujeito epistêmico e não apenas ao sujeito psicológico, pois ela não se confunde e não se reduz à Psicologia Genética. Escreve Piaget que “o sujeito epistêmico (por oposição ao sujeito psicológico) é o que é comum a todos os sujeitos, uma vez que as coordenações gerais de ações têm um universal que é a própria organização biológica” (Beth & Piaget, 1961, p.304-5, tradução nossa). Nesse sentido, a Epistemologia Genética volta-se, de um modo mais amplo e abs- 52 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI trato, para o sujeito do conhecimento, chamado aqui, como dissemos, de sujeito epistêmico, e a Psicologia Genética estuda o sujeito psicológico, o indivíduo, e procura fazer ciência sobre o que há de comum a tais indivíduos ou sujeitos. Um dos conhecimentos científicos que ocuparam Piaget durante sua vida, foi o conhecimento lógico-matemático, o que nos leva ao assunto da próxima seção. 3. O Ensaio de Lógica Operatória no contexto da Epistemologia Genética Situamos, nesta seção, o Ensaio no contexto da Epistemologia Genética, e apresentamos as ideias centrais discutidas nessa obra e por que essa obra surgiu de uma segunda edição do Tratado. No Ensaio, Piaget escreve que, em 1947, dirigiram-se a ele para que escrevesse um tratado de Lógica e que, embora houvesse estudiosos mais qualificados para escrevê-lo, eles se recusaram a fazê-lo. Piaget aceitou tal empreendimento devido, principalmente, às necessidades crescentes da Epistemologia Genética, necessidades assim apresentadas por ele no Ensaio: [...] o problema geral formulado pela epistemologia genética sendo o de procurar descobrir a natureza dos conhecimentos em função de seus mecanismos formadores, é evidente que deveríamos incluir neste programa a análise da constituição das estruturas lógicas. (Piaget, 1976, p.XVI) Embora Piaget já tivesse publicado em 1942 um pequeno trabalho sobre “Classes, relações e números”, que continha um princípio de análise lógica da constituição dessas estruturas, ao ser procurado para escrever um tratado, considerou a oportunidade de apresentar suas ideias sobre tais estruturas de um modo mais completo e em um espaço mais amplo. Diante desse contexto, a obra recebeu, então, inicialmente, na sua primeira edição, o nome de PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 53 Tratado de Lógica Operatória: ensaio de logística operatória, publicado em 1949. Contudo, o resultado de tal empreendimento não foi propriamente um tratado de Lógica. O próprio Piaget (1976, p.XVI) nos diz que a sua obra foi mal intitulada por ele mesmo de Tratado e que sua verdadeira intenção, como ressalta, era o que já estava enunciado no subtítulo: a realização de um ensaio de logística operatória. As repercussões do Tratado, entre os especialistas, foram de duas espécies, observa o próprio autor (1976, p.XVI). Um grupo considerou legítimo o propósito de procurar as raízes das estruturas lógicas nas operações do pensamento do sujeito, mas identificou problemas na formalização de algumas estruturas. O outro grupo, ao contrário, não aceitou a legitimidade do Tratado, entendendo que este trazia um tipo de psicologismo em Lógica, e, também, criticou a pouca formalização presente na obra. Diante da crítica dos especialistas, Piaget publicou uma segunda edição do Tratado, mas agora sob uma nova designação: Ensaio de Lógica Operatória, publicado em 1972. No Ensaio, ele recebeu ajuda do lógico Jean-Blaise Grize, que o auxiliou na formalização, apesar de deixar em aberto a questão da formalização das estruturas de agrupamento15 e outros problemas remanescentes 15. Segundo Grize (Piaget, 1976, p.90, nota 6), “a estrutura de agrupamento, que Jean Piaget introduziu em 1941, revelou-se difícil de ser formalizada completamente. As tentativas feitas, até hoje, são ainda pouco satisfatórias, no sentido de que todas comprometem, de uma maneira ou de outra, o pensamento de Piaget”. Piaget, na Introdução ao Ensaio, nos dá algumas indicações de que o problema da formalização da estrutura de agrupamento se deve, principalmente, à natureza de tal estrutura, isto é, devido a essa estrutura permanecer muito mais arraigada ao conteúdo psicológico do que, propriamente, às estruturas lógico-matemáticas. Segundo o autor, “as dificuldades encontradas no que concerne ao agrupamento podem, pois, ser interpretadas como uma razão a mais para considerar esta estrutura como bastante elementar, donde, simultaneamente, sua pouca mobilidade (o que priva da generalidade própria às estruturas de nível superior que interessam ao lógico clássico e ao matemático) e sua resistência à formalização” (idem, p.XIX). Entretanto, é “[...] interessante 54 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI que não trataremos aqui. Sobre essa segunda edição, observa Piaget: Tal ensaio foi recebido pelos especialistas com sentimentos mistos, o que obriga, de um lado, a justificar por que alguns dentre eles consideram-no importante o suficiente para solicitar o aparecimento de uma segunda edição e, por outro lado, por que o lógico J. B. Grize, que se encarregou desta reedição, demonstrou sua dedicação e sua amizade aceitando até mesmo o ingrato trabalho de revisar sua apresentação. (Piaget, 1976, p.XV) Lembremos que o termo “ensaio” (Dicionário Aurélio) vem do francês essai e quer dizer “[...] um estudo sobre determinado assunto, porém menos aprofundado e/ou menor que um tratado formal e acabado”. Piaget, no Ensaio, além de refletir sobre questões amplas da Lógica, expôs, de modo didático e parcialmente formal, as principais definições e noções relativas a esse domínio de estudo. Entendemos que, no Ensaio, Piaget não se propõe a escrever um tratado, pois, um tratado pressupõe um estudo completo de um determinado assunto, o que não condiz com sua visão sobre o conhecimento. Como pudemos notar na seção anterior, o conhecimento, para ele, é um conhecimento-processo e, em particular, como veremos em detalhes na seção 1 do capítulo 2, a Lógica é estudar tal estrutura e precisamente por causa de suas próprias lacunas, já que ela constitui um termo de passagem, bastante estável e muito frequentemente, entre as operações do pensamento natural e as que o lógico formaliza” (ibidem, p.XIX). Nesse sentido, a natureza das estruturas de agrupamento nos dá “[...] primeiro, uma confirmação do fato de que a formalização constitui um processo e não uma situação adquirida independentemente dos níveis considerados. Em segundo lugar, isso parece confirmar que, quanto mais uma estrutura permanece próxima de seu conteúdo, menos fácil torna-se sua formalização” (ibidem, p.XVIII). Veremos na seção 1 do capítulo 2 que, para Piaget, o conteúdo e a forma têm uma relação de dependência mútua e hierárquica, tal que um certo conteúdo pode ser forma em uma situação e vice-versa. PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 55 vista, assim como a Epistemologia Genética na seção 2 deste capítulo, como uma espécie de “pátio em construção”, pois A formalização não termina por cima, já que não existe (ou ainda não existe) lógica geral; ela é a fortiori incompleta por baixo, já que as operações elementares originam-se de ações psicológicas exercidas sobre os objetos concretos, e que se deve cortar, pela raiz, a “forma” de seu “conteúdo” vivo e diverso. (Idem, p.21, grifo do autor) O Ensaio constitui, assim, a visão do autor sobre o que é a Lógica, seu objeto e seu método de análise. Essa visão ampla da Lógica envolve uma discussão de princípios realizada na Introdução da obra. No corpo do Ensaio, o autor expõe as estruturas lógicas encontradas por ele em suas investigações empíricas, bem como suas formalizações e o modo como elas se relacionam. A apresentação dessas estruturas obedece à divisão às vezes utilizada nas disciplinas da Lógica, pois, na primeira parte, ele faz um estudo das “operações intraproposicionais” e, na segunda parte, das “operações interproposicionais”. A discussão sobre os princípios da Lógica nos interessa diretamente aqui, pois, entender como, no contexto da Epistemologia Genética, o sujeito usa e se torna capaz de usar funções proposicionais, objeto de nossa investigação no presente livro, pressupõe um posicionamento filosófico sobre a Lógica e uma discussão sobre seu estatuto em relação às demais ciências, por exemplo, a Psicologia. Decidimos, então, apresentar os propósitos gerais do Ensaio seguindo, inicialmente, sua ordem de exposição, mostrando as discussões realizadas na Introdução e, em linhas gerais, como as divisões realizadas no interior da obra se articulam como um todo. Como dissemos, o Ensaio é uma reedição do Tratado e surgiu, assim como este, da necessidade de se compreender a relação entre as formas lógicas e as operações elementares realizadas por um sujeito do conhecimento. O autor compreende, nesse sentido, as 56 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI formas lógicas a partir de um sujeito que estrutura e conhece a realidade, o sujeito epistêmico. O interesse pelas estruturas desse sujeito epistêmico motivou a formulação da questão central da obra, assim apresentada: O problema que deu origem a este ensaio, é, pois, o de compreender como se constituem as estruturas elementares de classes, de relações, de números, de proposições, etc., formalizadas com toda independência e autonomia pelo lógico e de procurar quais são suas relações com as “operações” do pensamento “natural”, muito mais pobre e não formalizado. (Piaget, 1976, p.XV) Embora se possa dizer que o problema é irrelevante para determinados contextos de análises, como uma análise em Lógica Matemática, por exemplo, em última instância, Piaget (1976, p.XV) nos chama a atenção para um interesse mais amplo de análise, a análise epistemológica. Nesse sentido, como ele nos indica, assim como a Aritmética dos matemáticos saiu dos números “naturais” antes de ser exposta por qualquer teoria formalizada e, também, assim como Aristóteles extraiu sua silogística do pensamento comum, a partir de uma reflexão da linguagem usual, não podemos negar que as estruturas lógico-matemáticas, formalizadas com toda a independência e autonomia pelo lógico, têm alguma relação com as “operações” do pensamento “natural”, muito mais pobre e não formalizado. Notemos, então, que o Ensaio surge da necessidade de compreender o processo de formalização das estruturas lógicas mais elementares, pois, como já citamos, “a ideia central é a de que a formalização não é um estado, mas um processo, e que ela se apoia, consequentemente, em estruturas que se elaboram segundo níveis” (idem, p.XVII). Nesse sentido, dizer que a formalização não é um estado é compreendê-la como uma construção formal das operações realizáveis pelo sujeito, não uma formalização das estruturas prontas e acabadas, existentes em um mundo platônico, mas uma formalização que é extraída do conteúdo vivo e histórico do sujeito. PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 57 Desse modo, segundo Piaget (1976, p.3), um bom método para compreender como tais estruturas se relacionam entre si, segundo níveis, seria compreender as etapas da própria formalização, isto é, como as estruturas lógicas se ordenam das bases aos patamares superiores da hierarquia das estruturas do sujeito epistêmico. Sobre isso, diz Piaget: [...] podemos nos perguntar [...] se o melhor método para atingir o formal em seus aspectos mais significativos não seria o de seguir as etapas da própria formalização lógica: tratar-se-ia, portanto, de partir do chão para chegar ao teto (o que evita, entre outras coisas, a necessidade de postular a unicidade deste teto), em vez de pendurar os andares inferiores nos patamares superiores da construção. (Piaget, 1976, p.3) Notemos que, até meados da década de 1940, essas ideias de Piaget não haviam sido expressamente publicadas em um espaço amplo. Embora ele já tivesse publicado O nascimento da inteligência na criança, que data de 1936, A construção do real na criança em 1937 e A formação do símbolo na criança em 1945, obras consideradas fundamentais, entre outras não menos importantes, para a compreensão dos primórdios da construção do funcionamento e das estruturas da inteligência, ele ainda não havia publicado um estudo sobre as estruturas lógico-matemáticas. Como já indicamos, apenas em 1942 (portanto, sete anos antes do Tratado), consta um pequeno trabalho intitulado “Classes, relações e números” que, segundo ele (idem, p.XV), já continha um princípio de análise lógica da constituição dessas estruturas. Piaget inicia a Introdução do Ensaio reconhecendo a Lógica como um domínio de estudo que conquistou a posição de uma ciência propriamente dita e autônoma. Reconhece-se hoje a validade de um axioma ou de um teorema de lógica, independente das ideias que se possam ter sobre esta mesma lógica formal considerada como disciplina geral. Tal fato 58 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI indica que a lógica conquistou a posição de ciência propriamente dita, graças aos métodos precisos que substituíram os procedimentos simplesmente reflexivos e verbais da lógica clássica. (Ibidem, p.1) Sobre a tendência da Lógica em ser “pura” ou ainda “exclusivamente formal”, em oposição aos procedimentos verbais da Lógica Clássica, diz-nos, ainda: “Que a lógica moderna tenha tendência a ser ‘pura’, quer dizer, exclusivamente formal, todos concordam sem dificuldade” (ibidem, p.3). No entanto, como observa Piaget (ibidem, p.1), o consenso deixa de ser geral quando a discussão recai sobre as posições de princípio mais gerais assumidas sobre a Lógica e, portanto, ao se escrever um ensaio de Lógica é necessário discutir e delimitar, já no início, os pontos a serem abordados no que se refere à tomada de posições sobre os princípios da Lógica. Mas, como no caso de todas as ciências, inclusive das ciências dedutivas, o consenso deixa de ser geral quando se trata da significação a ser atribuída aos princípios, ou mesmo do objetivo a ser atingido e dos métodos a serem seguidos. Eis por que, paradoxalmente, é necessário declarar de que se vai falar quando se empreende a tarefa de escrever um Ensaio de Lógica, e é indispensável delimitar os métodos que se pretende usar. (Ibidem, p.1) Piaget (1976, p.1) nos diz que haveria boas razões para inverter essa ordem de apresentação do Ensaio: ao invés de começar expondo primeiramente os princípios e depois os resultados, poder-se-ia começar com os resultados e terminar por uma discussão de princípios. Mas, como “[...] uma Introdução é sobretudo uma tomada de posição com referência aos trabalhos dos predecessores dos quais se é devedor, mesmo quanto aos pontos de divergência, é essencial insistir no fato de que a interpretação dos princípios da lógica pertence aos próprios lógicos” (ibidem, p.1). PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 59 Piaget realiza, então, na Introdução ao Ensaio uma discussão dos princípios da Lógica, abordando os seguintes pontos: (a) objeto da Lógica; (b) a relação da Lógica com a Psicologia e a Sociologia; (c) as fronteiras entre a Lógica e a Matemática; e (d) a definição e os métodos da Lógica. Para nossos interesses, no presente livro, tratamos, no capítulo 2, dos itens (a), (b) e parte do item (d). 2 QUESTÕES E DISCUSSÕES DE PRINCÍPIOS PRESENTES NO ENSAIO Neste capítulo, na seção 1, apresentamos algumas das discussões de princípio acerca do objeto e da definição da Lógica Operatória, realizadas por Piaget no Ensaio. Fazemos, também, na seção 2, uma breve caracterização do psicologismo em Lógica a partir de um ponto de vista piagetiano para, então, apresentar, na seção 3, uma discussão, decorrente da repercussão do Tratado, entre Piaget e o lógico Evert W. Beth (1908-1964) sobre a existência de um possível psicologismo. 1. Objeto e definição da Lógica Operatória Introduzindo a discussão sobre o objeto da Lógica no Ensaio, Piaget parte de um ponto que é, segundo ele, consenso entre os lógicos, sejam eles de origem platônica, nominalista ou fisicalista: o objeto da Lógica são enunciados suscetíveis de verdade ou de falsidade. Há um ponto sobre o qual todos os lógicos estão de acordo, seja qual for a escola a que pertençam: é que a análise lógica trata de certos enunciados suscetíveis de verdade ou de falsidade, ou, dito 62 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI de outra maneira, que o objeto da lógica refere-se ao verdadeiro e ao falso. (Piaget, 1976, p.3) Portanto, em uma primeira aproximação, poder-se-ia definir a lógica como “[...] o estudo do conhecimento verdadeiro, considerado em suas formas mais gerais” (idem, p.3). Mas, podemos nos perguntar: as outras ciências não têm, também, como objeto de estudo o conhecimento verdadeiro, procurando distingui-lo do conhecimento falso na sua investigação? Nesse sentido, será que o objeto da Lógica é o mesmo que o das outras ciências? Como Piaget considera o estudo dos diversos tipos de conhecimentos científicos reservado à Epistemologia, o autor faz um breve paralelo entre o estudo realizado pela Epistemologia e o realizado pela Lógica para compreendermos que tipo de conhecimento verdadeiro é o objeto de cada uma delas. Diz que se pode estudar o conhecimento verdadeiro de perspectivas distintas, de acordo com o recorte do objeto para efeito de estudo. Por conseguinte, escreve ele: Pode-se, com efeito, estudar o conhecimento seja a título de relação entre o sujeito e o objeto, seja a título de forma pura, quer dizer, referindo-se exclusivamente [...] a certas atividades do sujeito que implicam a distinção do verdadeiro e do falso. (Idem, p.4) Desse modo, tanto a Epistemologia quanto a Lógica têm como objeto o conhecimento verdadeiro, mas o analisam distintamente. A primeira estuda o conhecimento científico da perspectiva de um sujeito situado no mundo e que interage com os objetos que estão ao seu redor; e a segunda é um estudo das atividades internas realizadas pelo sujeito, não qualquer uma, mas as atividades que o sujeito realiza sobre certos enunciados suscetíveis de verdade ou de falsidade. PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 63 Os enunciados, suscetíveis de verdade ou falsidade, de que trata a Lógica, são chamados, por Piaget, de proposições, sendo assim definidas no corpo do Ensaio: Definição 1. – Chamaremos de “proposição” p, q, r, etc., os enunciados categóricos, verdadeiros ou falsos e afirmativos (positivos) ou negativos. (Piaget, 1976, p.33)1 Enunciados categóricos são os que podem ser verdadeiros ou falsos, excluindo-se, com isso, os demais enunciados, como os imperativos e os optativos, por exemplo, os quais não podem ser considerados com os mesmos valores que atribuímos aos enunciados categóricos. Temos, assim, que Piaget está considerando o estudo da lógica bivalente, na qual cada proposição recebe um de dois valores: o de veracidade ou o de falsidade. Além dos valores de veracidade ou de falsidade que uma proposição pode receber em uma lógica bivalente, temos que uma proposição, segundo a definição proposta, pode ser positiva ou negativa; por exemplo, “Este cravo é vermelho” é uma proposição positiva e “Este cravo não é vermelho” é uma proposição negativa. Piaget expressa as proposições positivas por p e as negativa por p̄. Positiva ou negativa, as proposições podem ser ou verdadeiras ou falsas, isto é, “Este cravo é vermelho” pode ser verdadeiro ou falso, bem como o pode ser “Este cravo não é vermelho”. As proposições podem ser encontradas isoladamente ou em conjunto, sendo que, neste último caso, sequências de proposições podem expressar um raciocínio lógico conhecido como argumento. 1. Notemos, ademais, que a proposição é apresentada como uma expressão ao ser definida como um enunciado. No entanto, alguns manuais de Lógica convencionam chamar de proposição não a expressão propriamente dita, mas o sentido da expressão; com efeito, “Este cravo é vermelho” e “Vermelho é este cravo”, por exemplo, seriam, segundo essa concepção, dois enunciados para uma mesma proposição e não duas proposições distintas, como podemos entrever da definição de Piaget. 64 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI Com efeito, consideremos o exemplo simples de argumento que pode ser tratado em Lógica, expresso pela sequência de proposições: “Se o gato mia alto, então ele tem fome”, “O gato mia alto”, logo “O gato tem fome”. Notemos que, se aceitarmos as duas primeiras proposições do argumento como verdadeiras, então a verdade da terceira decorre necessariamente das outras. Esse argumento, que foi dado a título de exemplo, é um caso particular da regra de inferência conhecida, em Lógica, como modus ponens, assim expressa simbolicamente: A → B, A ├ B. Nesse e em outros casos semelhantes, notemos que, na relação entre proposições, o lógico não está interessado na determinação da verdade ou da falsidade das proposições, assim como se faz nas ciências empíricas. Em linhas gerais, o cientista elabora proposições de modo hipotético e procura verificar, empiricamente, se a sua hipótese corresponde aos fenômenos observados. Os resultados das observações apenas sustentam a hipótese e não a demonstram definitivamente. Já ao lógico interessa, por exemplo, se a conclusão segue necessariamente das premissas aceitas previamente, isto é: se as premissas são verdadeiras, então a conclusão segue necessariamente delas? Sobre o interesse particular da Lógica, escreve Piaget que o problema lógico trata “[...] apenas da validade interna dos sistemas de proposições, isto é, da maneira pela qual uma proposição arrasta ou exclui outras” (Piaget, 1976, p.5). Voltando ao exemplo supracitado, se nos perguntarmos sobre a veracidade das proposições, então a proposição “Se o gato mia alto, então ele tem fome” é falsa, pois sabemos que não é toda vez que, se um gato mia alto, ele tem fome: ele pode miar para exigir a presença do dono, por exemplo. Porém, em Lógica, como dissemos, simplesmente se assume que a proposição é verdadeira ou falsa para, então, se realizar as inferências necessárias, independentemente de sua veracidade empírica. O “se” é, assim, uma condicional que expressa a “libertação” da Lógica do objeto da realidade. Essa libertação da Lógica, bem como sua preocupação com as inferências, permite-nos compreender, de um modo amplo, por que Piaget define a Lógica, como já citado, em primeira aproxi- PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 65 mação, como “[...] o estudo do conhecimento verdadeiro, considerado em suas formas mais gerais” (Piaget, 1976, p.3). A partir daí, Piaget convenciona “[...] chamar de epistemologia ao estudo do conhecimento enquanto relação entre o sujeito e o objeto, e reservar o termo de lógica para a análise formal do conhecimento” (idem, p.4, grifo do autor). Sobre isso, ainda nos diz o autor que a Lógica “[...] estuda simplesmente o modo pelo qual os dados são enunciados por proposições e como estas se encadeiam entre elas: trata, portanto, de um domínio que permanece interior à atividade do sujeito” (ibidem, p.5). Se o interesse da Lógica é por uma análise formal do conhecimento, segundo Piaget (1976, p.7), convém que determinemos em que consiste essa forma, quer dizer, do que ela é a forma. A noção de forma nos remete a uma noção correlata, a de conteúdo, pois, se ela é forma, ela o é de alguma coisa. No § 2 do capítulo I do Ensaio, o autor define forma e conteúdo nos seguintes termos: Definição 4. – O “conteúdo” de uma ligação operatória é constituído pelos dados, ou os termos que os podem substituir, enquanto a “forma” é o que permanece imutável no decurso de tais substituições. (Ibidem, p.37-8) Um dos exemplos dados por Piaget (1976, p.37) é o seguinte: a “construção” (p ⊃ q) . (q ⊃ r) → (p ⊃ r). Neste exemplo, o símbolo “⊃” expressa uma implicação entre proposições individuais designadas por ele de p, q e r, já o símbolo “→” também expressa uma implicação não entre proposições individuais, mas relacionado a uma sequência de proposições, isto é, as proposições antecedentes (p ⊃ q) e (q ⊃ r) e as consequentes (p ⊃ r), ou seja, é uma implicação associada a um argumento e não entre proposições individuais. O primeiro tipo de implicação é chamado de implicação material e o segundo de implicação formal, pois eles desempenham o papel de conteúdo e forma respectivamente. Em outras palavras, a implicação formal é uma construção mais geral que permanece imutável 66 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI conforme a substituição das proposições individuais no seu interior. Poderíamos substituir as proposições p, q e r por a, b e c que a validade da implicação formal permaneceria a mesma. Ou seja, em ambos os casos, com p, q e r ou com a, b, c: “se os antecedentes são considerados verdadeiros, então a conclusão tem que ser considerada verdadeira”. Mas, a mesma implicação material p ⊃ q, que é conteúdo nesse caso, pode não o ser em outros casos como o que ocorre no exemplo p1 ⊃ q1, em que p e q foram substituídas por p1 ⊃ q1. Nesse sentido, p ⊃ q expressa a forma de uma implicação. Nota Piaget que “[...] tal implicação material particular permanecerá conteúdo enquanto ela desempenhar o papel de dado, mas ela assumirá o nível de forma pelo fato de que se pode construí-la” (idem, p.37). Por sua vez, as proposições específicas, como p e q, por exemplo, podem ser uma construção de elementos mais simples. A forma proposicional p pode significar “x é um A” e q significar “x é um B”, por exemplo, tal que A e B expressem duas classes em que A está incluído em B (A ⊆ B), pois, se x pertence a A, então x pertence a B, logo A está incluído em B. Nesse caso, temos, então, que a implicação material p ⊃ q não é mais conteúdo, mas exprime a relação que existe entre um elemento x pertencer a A e o mesmo elemento x pertencer a B, indicando a inclusão de A em B. A implicação p ⊃ q será, portanto, forma com relação a um conteúdo de nível inferior, indicados, aqui, pela pertinência de x a A e de x a B. Essa sequência de exemplos nos ajuda a entender que a ligação entre conteúdo e forma constitui uma dependência mútua e hierárquica. É “dependência mútua”, pois forma e conteúdo são correlativas. Nesse sentido, escreve Piaget que “[...] a forma e o conteúdo lógicos das ligações operatórias são relativos um ao outro e, por conseguinte, indissociáveis” (ibidem, p.38). É “hierárquica”, pois uma forma de nível inferior pode ser conteúdo de uma forma de nível superior e assim sucessivamente. Cada uma dessas ligações de dependências mútuas e hierárquicas, passíveis de desempenhar concomitantemente o papel de PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 67 forma e conteúdo, é designada por Piaget como estrutura, sendo assim definida: Definição 5. – Chamaremos de “estrutura” toda ligação lógica suscetível de desempenhar, alternativa ou simultaneamente, o papel de forma e de conteúdo. (Piaget, 1976, p.38) Há termos, porém, que desempenham, segundo o autor, apenas o papel de conteúdo; Piaget chama esses termos de conteúdos extralógicos, o qual é definido do seguinte modo: Definição 6. – Chamaremos de “conteúdo extralógico” os termos que só podem desempenhar o papel de conteúdos. (Idem, p.38) Mas, poderíamos nos perguntar: que termos são esses que desempenham apenas o papel de conteúdo? Existem conteúdos que permanecem sempre conteúdos e dos quais não se podem determinar formas? Se existem tais conteúdos, então seriam eles a correspondência da Lógica com a realidade física ou psicológica? Diz-nos Piaget que, na perspectiva da hierarquia das estruturas, “[...] os qualitativos de dado ou extralógico não significam, de modo algum, que se atinjam assim os próprios elementos primeiros, seja do ponto de vista físico ou psicológico, seja do ponto de vista lógico” (ibidem, p.44). O conteúdo extralógico recebe essa designação por ser o que ainda não foi formalizado. Sua não formalização não indica que ele seja o conteúdo mais elementar e impossível de ser formalizado na hierarquia das estruturas, mas que é suscetível de encontrar formalizações posteriores, podendo ocorrer que sejam encontradas novas formalizações no dado, considerado extralógico. Com base em um exemplo citado pelo autor (cf. 1976, p.44), ilustremos a noção de conteúdo extralógico: imaginemos que sejam encontradas pedras vermelho-púrpura na natureza, perfazendo um modelo de pedra nunca antes visto, sendo que tal pedra tenha sido chamada de “pedra única”. Mas que, depois de algumas 68 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI análises laboratoriais, sejam encontradas pequenas diferenças entre essas pedras, por exemplo, padrões geométricos, refração da luz e densidade. Cada uma das pedras, que perfaziam o modelo da “pedra única” e que inicialmente pareceriam ser idênticas, passa, então, a receber nomes individuais segundo um padrão de classificação mais detalhado, resultando uma nova classificação. Esse exemplo ilustra que, assim como a “pedra única”, o conteúdo extralógico é, também, assumido como dado enquanto não se encontram novas construções que o tornem suscetível de classificações mais minuciosas ou de formalizações. Nesse sentido, segundo Piaget (1976, p.20), é difícil saber qual operação elementar interessa mais à dedução lógica. Como observamos acima, o conteúdo extralógico não é definitivo, pois se pode formalizá-lo a partir da fixação de novos caracteres formais conforme a decomposição dos conteúdos em dados mais elementares. Isso ocorre, segundo o autor, pois os mais diversos tipos de relações são em número ilimitado, sendo difícil fixar qual relação é mais formal e de interesse da Lógica e qual não é. Sobre isso, escreve o autor: “[...] os diversos tipos de relações sendo, sem dúvida, em número ilimitado, não se sabe onde fixar os limites de seus caracteres formais mais gerais, e é possível distinguir caracteres especiais cada vez mais diferenciados” (idem, p.20). O conteúdo extralógico não é, portanto, um conteúdo definitivamente dado, mas passível de futuras formalizações: “[...] que o sistema das estruturas está, portanto, sempre aberto para baixo, quer dizer, suscetível de dar origem a análises ulteriores mais refinadas e a novas formalizações de conteúdos até então considerados como dados e extralógicos” (ibidem, p.44). Ora, se o sistema de estruturas é aberto por baixo, seria ele, também, aberto por cima? Segundo Piaget, “[...] esse conjunto de operações [...] permanece, por sua vez, aberto, mas por baixo, pois não se sabe por antecipação a partir de que limite elas interessam à dedução” (ibidem, p.20). Em suma, cada estrutura é ao mesmo tempo forma, isto é, uma construção abstrata com referência aos dados inferiores, e con- PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 69 teúdo, que é um dado que se aplica à forma. Já os conteúdos extralógicos são dados não formalizados, mas que podem vir a sê-lo. Do ponto de vista da análise das atividades do sujeito epistêmico, a noção de formal, que caracteriza a Lógica, depende, assim, dessa relação mútua entre forma e conteúdo e da hierarquia das estruturas construída pelo sujeito. Ora, se a Lógica, em primeira aproximação, é o estudo do conhecimento formal considerado em suas formas mais gerais, e visto que o formal nos remete às estruturas lógicas, então a questão que fica é de saber qual é a natureza de tais estruturas, já que, aparentemente, elas não têm correspondência com a realidade empírica, pois o conteúdo extralógico é sempre passível de formalização. Seriam elas simples regras sintáticas, de tal modo que cada estrutura se correlacionaria com outra conforme uma regra de composição de signos? Segundo essa concepção, conhecida como concepção nominalista, a Lógica seria um jogo de regras sintáticas reduzidas simplesmente ao plano dos signos e não teria uma correspondência semântica. Mas será que é possível mover ou operar sobre signos sem fazer referência a uma significação? No entender de Piaget, um signo implica sempre um correspondente semântico, pois, [...] mesmo reduzindo as formas lógicas ao nível de puros signos, há a considerar que um signo implica sempre uma significação e que o próprio jogo formal, independente de qualquer referência a seu conteúdo, é um sistema de significações distintas, já que implica valores verdadeiros e falsos (ou positivos e negativos). (Piaget, 1976, p.8) O lógico, desse modo, quando trabalha com proposições, trabalha com o correspondente semântico de cada uma delas, que são os valores de veracidade ou de falsidade, seja nas ligações de composição, seja nas de decomposição das proposições. Tomemos o caso, por exemplo, da decomposição de simples proposições como “Este cachorro é animal”. É possível obter por decomposição os 70 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI elementos “este cachorro” (sujeito) e “é animal” (o predicado). Podemos, então, substituir “este cachorro” por “este vírus” e, nesse caso, temos a proposição “Este vírus é animal”, que é, evidentemente, falsa. Portanto, a substituição no interior da proposição nos permite relacionar seus elementos e trabalhar com seus valores de verdade ou de falsidade. Por outro lado, podemos realizar operações entre as proposições, compondo assim proposições mais complexas. Em específico, proposições como “O gato está magro” e “O gato está doente” podem ser combinadas por uma conjunção “O gato está magro e doente”. Se atribuirmos todos os valores possíveis para essas proposições, em uma lógica bivalente, podemos, então, trabalhar com os valores verdadeiro e falso em todas as suas combinações possíveis. Isso resulta em uma combinação de valores de veracidade e de falsidade para a conjunção, tal que ela é verdadeira se, e somente se, as proposições “O gato está magro” e “O gato está doente” forem ambas verdadeiras, pois a conjunção nos diz que ambas ocorrem ao mesmo tempo; em todos os outros casos de atribuição de valores, a proposição será falsa. Notemos, assim, que, no caso das operações entre proposições, compomos novas proposições a partir de proposições simples, de tal forma que podemos trabalhar com seus correspondentes valores de veracidade ou de falsidade. Assim, através das operações realizadas sobre ligações no interior ou entre as proposições, podemos compô-las ou decompô-las, resultando em novas proposições. Ora, escreve Piaget que, “se chamamos de ‘operações’ às atividades intelectuais que compõem ou decompõem tais ligações, podemos então considerar as estruturas lógicas como exprimindo as operações do pensamento” (Piaget, 1976, p.9). Aqui o autor nos chama a atenção para a noção de operação e sua importância como atividade que é realizada por um sujeito. A operação, em particular, é definida no § 4 do capítulo I do Ensaio: Definição 10. – Chamaremos de “operação” a transformação reversível de uma estrutura (definição 5) em uma outra, seja por modifi- PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 71 cação da “forma”, seja por substituição referente ao conteúdo. (Idem, p.53) Uma transformação reversível, como nos diz Piaget (1976, p.14-5), é a possibilidade de desenvolver uma ação não apenas em um sentido, mas também no sentido contrário. Em outras palavras, é a possibilidade de coordenar uma ação a, que parte de um estado A e resulta no estado B, com uma ação b, que parte do estado B e resulta no estado A, de forma a anular a ação, resultando a inversa dessa coordenação. Voltando ao exemplo da implicação formal e material, dada a implicação formal (p ⊃ q) . (q ⊃ r) → (p ⊃ r), uma ação reversível é a possibilidade de decompor essa implicação em proposições antecedentes (p ⊃ q) e (q ⊃ r) e consequentes (p ⊃ r) e realizar a ação inversa, de composição dessas proposições para constituir novamente a implicação formal. A reversibilidade permite, assim, ao sujeito uma maior mobilidade em seu sistema de esquemas de ação, que deixa de oferecer apenas caminhos únicos, e é uma das condições necessárias para o pensamento operatório. Segundo o autor, “[...] é esta composição reversível que transforma as ações simples em operações propriamente ditas” (idem, p.14-5). Em especial, podemos realizar dois tipos de transformações reversíveis: as de composição e de decomposição das proposições. Piaget as denomina, cada uma delas, de operações interproposicionais e operações intraproposicionais. Cada uma delas é definida pelo autor no §1 do capítulo I do Ensaio, nos seguintes termos: Definição 2. – Será chamada de “operação interproposiconal” toda composição que permite construir, por meio de proposições quaisquer, p, q, r, das quais se conhecem apenas os valores de verdade ou de falsidade, outras proposições bem determinadas e caracterizadas respectivamente pelas diversas combinações possíveis destes únicos valores de verdade. (Ibidem, p.32) Definição 3. – Chamaremos de “intraproposicionais” as operações que permitem decompor uma proposição em elementos (esta decom- 72 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI posição podendo ser levada a graus variáveis), e construir novas proposições determinadas pelas transformações destes elementos; os valores verdadeiros e falsos das proposições assim engendradas resultam então das combinações entre os próprios elementos. (Ibidem, p.33) Vemos, portanto, que, seja no aspecto interproposicional seja no aspecto intraproposicional, a noção de operação aparece como uma noção que, segundo Piaget (ibidem, p.10), se aplica a todos os elementos lógicos. Elas são “[...] duas categorias de operações cujo estudo divide toda a lógica” (ibidem, p.31). Nessa perspectiva, pelo que vimos até agora, podemos compreender a segunda definição de Lógica, em nível mais aproximado, proposta por Piaget: “A lógica seria então, em segunda aproximação, a teoria formal das operações do pensamento” (ibidem, p.9), pois é “[...] o conjunto das operações do pensamento que a lógica tem obrigação de formalizar, se pretende chegar a uma teoria exaustiva da coerência formal” (ibidem, p.10). Notemos, porém, que as operações do pensamento, objeto da Lógica, não são quaisquer operações intelectuais, mas são as operações realizadas de modo inferencial, isto é, de modo dedutivo sobre proposições. Nesse sentido, podemos dizer que as operações do pensamento que a Lógica estuda são as deduções realizadas sobre as proposições. Desse modo, o autor propõe a última definição de Lógica: [...] podemos defini-la [a Lógica], numa terceira aproximação, como a teoria formal das operações dedutivas. (Ibidem, p.19) Do ponto de vista da hierarquia das estruturas podemos nos indagar até que grau de sucessão superior é possível alcançar? Isto é, até que ponto podemos fixar formas cada vez mais gerais ou obter a forma de todas as formas? Depreende-se desses questionamentos uma questão mais específica: haveria uma Lógica geral? Para Piaget (ibidem, p.20) até que não se demonstre a existência de PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 73 uma Lógica geral, isto é, de um sistema de inferências que abranjam todos os outros campos da Lógica, a hierarquia das estruturas permanece, pois, aberta por cima. Nesse sentido, as operações permanecem ilimitadas por cima da hierarquia, e, como vimos, ela também permanece aberta por baixo. Sobre essa dupla abertura, por cima e por baixo, ainda nos diz Piaget: A formalização não termina por cima, já que não existe (ou ainda não existe) lógica geral; ela é a fortiori incompleta por baixo, já que as operações elementares originam-se de ações psicológicas exercidas sobre os objetos concretos, e que se deve cortar, pela raiz, a “forma” de seu “conteúdo” vivo e diverso. (Piaget, 1976, p.21) O fato de serem abertas por cima e por baixo indica que as estruturas lógicas não são, na visão do autor, estruturas fechadas e acabadas. Sempre é possível obter novas formalizações no interior da hierarquia das estruturas, pois a relação entre forma e conteúdo é mútua e compõem, até que não se descubra uma Lógica geral ou um conteúdo extralógico definitivo, uma construção sucessiva e ilimitada na hierarquia. Sobre isso, escreve Piaget: “[...] o ‘formal’, que caracteriza a lógica, não é uma qualidade dada [fechada e acabada], caracterizando um estado, mas a expressão de um processo ou de um movimento de formalização [semelhante a um organismo vivo]” (idem, p.21) Esse processo que caracteriza o “formal” e, inclusive, as estruturas, é mais bem compreendido quando se pressupõe que há um sujeito que conhece e realiza a ação de operar sobre elas. Nesse sentido, não seria demais afirmar que, para Piaget, as estruturas lógicas são como as de um “sistema vivo” que fazem parte da construção da realidade realizada pelo sujeito do conhecimento. E, quando o lógico as estuda, busca nelas a formalização necessária para a compreensão das operações dedutivas que realizamos sobre as proposições. No entanto, tais formalizações “cortam”, como nos diz o autor na passagem supracitada, as operações formais do con- 74 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI teúdo vivo das ações psicológicas e físicas exercidas pelo sujeito sobre os objetos e são, com isso, fixadas e estagnadas para o estudo da Lógica. O lógico, assim, trata de fixar as estruturas como estáticas e se livra das influências externas dos conteúdos extralógicos para, então, formalizar as deduções necessárias. O recorte da realidade feito por ele se restringe às operações dedutivas realizadas sobre proposições. Nesse sentido, “a definição de lógica, que acabamos de aceitar, designa, na realidade, apenas um ideal: a lógica é de fato a teoria, não formal (em estado acabado), mas formalizante ou formalizadora das operações dedutivas” (Piaget, 1976, p.21). Assim, se as estruturas lógicas são um processo contínuo de construção realizada por um sujeito e se a Lógica é, de fato, uma teoria formalizante ou formalizadora das operações dedutivas, então só podemos defini-la, segundo Piaget, em aproximações, pois a Lógica é um conhecimento que está em constante construção. Embora para Piaget a Lógica seja um edifício em construção, muitos lógicos, segundo ele (idem, p.21), idealizam-na como o reflexo de ideias eternas e imutáveis. Nesse edifício do conhecimento, todos os lógicos, na visão do autor, usam o mesmo material de construção e conseguem encontrar as mesmas vigas mestras da armação que dá equilíbrio e sustentação para toda a estrutura lógica. Porém, diz-nos Piaget, há certas tendências que dividem os lógicos nessa grande empreitada e os obrigam a seguirem caminhos distintos: [...] segundo as tendências que forçam o lógico a partir de cima, da base, ou dos níveis médios da hierarquia das formalizações, ele acabará por dar uma imagem bem diversa do edifício total, embora fazendo uso das mesmas pedras, das mesmas fachadas e encontrando, cedo ou tarde, as mesmas vigas mestras. (Ibidem, p.21) Podemos entender que tais tendências são escolhas de princípio que o lógico faz e que determinam sua visão do que seja a Ló- PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 75 gica. Conforme seus princípios, alguns lógicos criam a convicção de que partir de cima é o melhor método, pois é a partir dos níveis superiores que se podem encontrar as leis necessárias e universais do pensamento; nessa perspectiva, a Lógica seria um reflexo das estruturas eternas e imutáveis previamente existentes, posição classificada, em geral, como “platonismo”. Outros, pelo contrário, partem dos níveis mais inferiores e procuram compreender a Lógica como um pátio em construção, como é o caso de Piaget. Piaget parte do princípio de que um bom método para compreender os aspectos mais significativos das estruturas lógicas não é postular a existência do teto do edifício, isto é, pressupor que preexistem estruturas eternas e imutáveis, mas sim postular as bases do edifício, isto é, que existe um sujeito epistêmico que estrutura a realidade logicamente e é possível estudar como ele constrói seus conhecimentos estruturais. Segundo Piaget, como já citado, “[...] tratar-se-ia, portanto, de partir do chão para chegar ao teto (o que evita, entre outras coisas, a necessidade de postular a unicidade deste teto), em vez de pendurar os andares inferiores nos patamares superiores da construção” (Piaget, 1976, p.3). Notemos que, segundo o próprio autor, “[...] sua preocupação essencial não é nem fisicalista, nem matemática, mas consiste em querer esclarecer o mecanismo real do pensamento e, especialmente sua reversibilidade, pela análise das estruturas formais correspondentes” (idem, p.25) Mas, mesmo concordando que é legítimo realizar um projeto de investigação que esclareça o funcionamento real do pensamento pela análise de suas estruturas formais correspondentes e, também, “concordando que a lógica trata do próprio pensamento, resta a considerar que o programa de uma ‘ciência das leis do pensamento’ conflita com o de uma parte da psicologia, que é a psicologia do pensamento” (ibidem, p.2). Esse conflito nos insere no quadro do debate tradicional que há, na história da Filosofia, sobre o problema do psicologismo em Lógica. Resta, pois, saber como Piaget coloca o problema do psicologismo em relação à tradição, como esse problema é solucionado a partir da relação entre Lógica e Psi- 76 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI cologia proposta por ele no contexto da Epistemologia Genética. É o que veremos nas próximas seções. 2. Uma caracterização do psicologismo em Lógica Procuramos formular, nesta seção, o problema do psicologismo em Lógica e apresentamos, também, a visão piagetiana sobre esse problema. De modo geral, há diversas tendências do psicologismo. Vamos nos utilizar, inicialmente, da caracterização de José Ferrater Mora que nos diz que elas podem ser resumidas em três grupos muito semelhantes. Uma das tendências considera a Psicologia como o conhecimento que explicaria todos os outros conhecimentos; por essa corrente, argumenta-se que, se todo conhecimento é um conhecimento elaborado pelo homem e se esse homem é objeto de uma psicologia, então essa psicologia seria a pedra base que fundamentaria a árvore do conhecimento, pois seria o conhecimento do conhecimento. Outra tendência consiste na tentativa de explicar a formação dos conceitos por meio de uma concepção psicológica. E, por fim, existe “a tendência a ‘reduzir’ a lógica e a teoria do conhecimento à psicologia, ou então a tratar as noções lógicas e epistemológicas principalmente por meio de conceitos de caráter psicológico” (Ferrater Mora, 2001, p.2.414). Segundo Ferrater Mora, historicamente, o chamado “psicologismo” tornou-se mais conhecido na última acepção. Nesse sentido, o psicologismo tende a estudar a Lógica, em particular, como a ciência do pensar ou dos pensamentos. Segundo as características gerais dessa tendência, se as leis da Lógica são igualmente leis do pensamento e se um dos objetos da Psicologia são as leis do pensamento, então a Lógica é um dos objetos da Psicologia, pois estaria “reduzida” aos conceitos e métodos dessa ciência (ibidem, p.2.414). Observa o mesmo autor que essa tendência se inclinava ou se inclina, de modo geral, a estudar a Lógica como a ciência do pensar ou do pensamento, seguindo duas tendências: uma tendência des- PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 77 critiva dos fatos do pensamento, por exemplo, descrevendo os juízos, os raciocínios, os conceitos etc., isto é, como se pensa; ou segundo uma tendência prescritiva e normativa, investigando como se deve pensar (Ferrater Mora, 2001, p.2.414). Notemos, então, que há uma relação muito próxima entre Lógica e Psicologia, a ponto de algumas tendências de pensamento reduzirem uma à outra, sem necessidade de uma separação metodológica. Na visão de Piaget (1958, p.53), em Psicologia da Inteligência, as relações entre esses domínios percorre uma trajetória parecida com a trajetória percorrida pelas discussões em torno do conflito entre a Geometria Dedutiva e a Geometria Física: “Como é o caso dessas duas disciplinas [a Geometria Dedutiva e a Geometria Física], a lógica e a psicologia do pensamento começaram por se confundir ou por se indiferenciarem” (idem, p.53). Inicialmente, a Lógica e a Psicologia eram, na sua visão, conhecimentos interligados, não havendo necessidade de uma diferenciação entre elas. Piaget também comenta no Ensaio, que, já desde Aristóteles, na ausência de uma axiomática estrita, construiu-se uma Lógica muito próxima a uma Psicologia e a uma Sociologia. Diz-nos o autor que Aristóteles sistematizou uma Lógica que emergiu de suas observações da natureza e da polis grega, isto é, uma Lógica, como nos diz Piaget, que não saía dos quadros da Psicologia, da Sociologia ou, de um modo mais amplo, uma Lógica inserida em uma Ontologia. Escreve Piaget que os princípios elaborados pela Lógica Clássica, “[...] tais como os da não-contradição, o de identidade ou o do terceiro excluído foram formulados não a título de axiomas de início de uma construção formal autônoma, mas a título de axiomas de ‘fatos normativos’ observados na consciência individual ou coletiva” (Piaget, 1976, p.12) Segundo Piaget (1958, p.53), já mais recentemente, quando a Psicologia se constituiu em uma ciência independente, muitos psicólogos procuraram esclarecer o funcionamento psicológico da inteligência tomando como referência as noções de conceito, juízo, raciocínio, dedução, indução etc., comumente estudados nos manuais de Lógica. Desse modo, “por um efeito apenas residual de 78 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI indissociação primitiva, continuaram [os psicólogos] a considerar a lógica como uma ciência da realidade. Situaram-na, apesar de seu caráter normativo, no mesmo plano da psicologia” (Piaget, 1958, p.54). Sobre a constituição da Psicologia como ciência independente, diz-nos Júlio Fragata, em uma seção dedicada ao psicologismo e ao antipsicologismo de um livro seu sobre Husserl, que As ciências experimentais atingiram, na última metade do século XIX, um apogeu que provocou entusiasmo geral. Entre elas, começou a atrair a atenção a Psicologia Experimental que, devido ao seu método de reflexão introspectiva, naturalmente se propunha também à particular consideração dos que se dedicavam à Filosofia. (Fragata, 1962, p.18) Dentre os pensadores que receberam influência dessa tendência científica e, também, psicologista, podemos citar John Stuart Mill (1806-1873). Mill escreveu uma obra célebre intitulada Sistema de Lógica Dedutiva e Indutiva (1843), em que expõe os princípios e as provas dos métodos de investigação científica. Segundo Blanché, “A lógica de Mill é antiformalista. Ele recusa-se a reduzir a lógica à lógica formal, e critica aqueles que, como Hamilton, a definem como a ciência da consequência” (Blanché, 1996, p.251). Nesse sentido, escreve Mill: Conhecemos as verdades através de duas vias: algumas diretamente por si mesmas; outras, por meio de outras verdades. As primeiras são objetos de intuição e consciência; as segundas, de inferência. As verdades conhecidas pela intuição são as premissas originais das quais todas as demais são inferidas. Sendo nosso assentimento à conclusão baseado na verdade das premissas não poderíamos chegar a nenhum conhecimento pelo raciocínio, a não ser que alguma coisa pudesse ser conhecida antes de qualquer raciocínio. (Mill, 1974, p.79-80) PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 79 Desse modo, segundo Blanché, para Mill, a inferência silogística não diz nada além do que está contido nas premissas e que, para ele, “o verdadeiro fundamento da nossa inferência são outros fatos particulares análogos ao que pretendemos provar, a saber: a morte de João, de Tomás, etc. O nosso raciocínio vai do fato ao fato” (Blanché, 1996, p.253-4). Isto é: existe uma Lógica Indutiva que precisa de uma atenção especial e a Lógica Formal a ignora por completo por não ser seu plano de análise. Nesse sentido, segundo Blanché, “Mill propõe-se estabelecer ‘regras práticas que seriam para a própria indução o que as regras do silogismo são para a interpretação da dedução’ [...]. De fato, a teoria de Mill abandona desde o início o campo da lógica para se espraiar pelo da metodologia científica” (idem, p.255) Por outro lado, ainda no contexto do século XIX, surge uma concepção oposta à concepção de Mill e de outros adeptos do psicologismo, concepção conhecida como logicismo. O logicismo surgiu, como notamos na Introdução, com o desenvolvimento da Matemática e a convergência desta com a Lógica. Segundo Blanché (cf. 1996, p.305), no século XIX houve uma mudança de perspectiva na relação da Lógica com a Matemática, trazendo consequências extremamente importantes para o modo de se fazer Lógica. Particularmente com Frege, em seu projeto de fundamentação da Aritmética em princípios lógicos, a Lógica torna-se o conhecimento que deveria fundamentar o edifício da Matemática. Seu projeto deu origem a uma concepção fundacionista da Matemática. Segundo ele, em Os fundamentos da Aritmética, “após afastar-se por algum tempo do rigor euclidiano, a matemática volta agora a ele, e de algum modo esforça-se para ultrapassá-lo” (Frege, 1980, p.205). Escreve ele em outra passagem: “Por isso acreditei dever remontar aos fundamentos lógicos gerais um pouco mais do que a maioria dos matemáticos talvez julgue necessário” (idem, p.204) Nesse sentido, a Lógica deveria, por excelência, ser o conhecimento das leis que não é deste ou daquele sujeito, e sim universal, dando origem à concepção logicista, um tipo de platonismo. Segundo Blanché (1996, p.309), o logicismo associa um certo plato- 80 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI nismo à Lógica, marcando o período de elaboração da moderna logística ou da Lógica Matemática. Sobre isso, escreve: “[...] esta associação de um logicismo platonizante à lógica é um dos traços que marcaram o período de elaboração desta moderna logística”. Frege (1980, p.204) diz que um dos princípios lógicos que deve ser seguido para a fundamentação da Aritmética na Lógica é “separar precisamente o psicológico do lógico, o subjetivo do objetivo”, pois, segundo ele (1980, p.204) não se pode conhecer a essência de uma coisa por meio de uma investigação da gênese da natureza da alma humana, pois essa concepção lança tudo no subjetivo e, se levada às últimas consequências, suprime a verdade. Sobre isso, escreve o autor: Imagina-se, pelo que parece, que os conceitos nascem na alma individual como as folhas nas árvores, e pretende-se ser possível conhecer sua essência por meio da investigação de sua gênese, que se procura explicar psicologicamente a partir da natureza da alma humana. (Frege, 1980, p.202) Nesse contexto, Frege critica Mill de modo irreverente por este se dirigir às crianças ou se transportar para a origem histórica do desenvolvimento da humanidade para explicar como surgem os objetos da Matemática, como o conceito de número, por exemplo. O que dizer então daqueles que, ao invés de prosseguir este trabalho onde ele não aparece ainda realizado, o menosprezam, se dirigem ao quarto das crianças ou se transportam para as mais antigas fases conhecidas de desenvolvimento da humanidade, a fim de lá descobrir, como J. S. Mill, algo como uma aritmética de pãezinhos e pedrinhas! (Idem, p.202) Ora, delegar, pois, à Psicologia o fundamento do conhecimento é, segundo Frege, negar o conhecimento objetivo e impossibilitar a ciência, pois migraríamos para as incertezas do relativismo e supriríamos a verdade. Nesse sentido, o pensador nos diz, na PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 81 mesma obra: “Se no fluxo constante de todas as coisas nada se mantivesse firme e eterno, o conhecimento do mundo deixaria de ser possível e tudo mergulharia em confusão” (ibidem, p.202). Frege usa o termo alemão Gedanke para expressar o conhecimento firme e eterno supracitado. Traduz-se Gedanke por pensamento ou ideia. O que Frege quer dizer por Gedanke não é algo subjetivo, uma representação mental, assim como as palavras “pensamento” e “ideia” poderiam comumente deixar entrever. O autor quer expressar por Gedanke algo que existe independente de nós, que pode ser expresso por sentenças e é compreendido por muitos, portanto, objetivo ou universal. Escreve o autor, em “O pensamento”, que “o pensamento não pertence nem a meu mundo interior, como uma ideia, nem tampouco ao mundo exterior, ao mundo das coisas sensorialmente perceptíveis” (Frege, 2002, p.35). O pensamento é, para o autor algo objetivo. Frege (2002, p.27) procura argumentar, então, que o pensamento nos permite obter um conhecimento estável e permanente que existe em um terceiro domínio, no qual se encontram, também, as entidades lógicas universais. Observemos que o antipsicologismo de Frege nos conduz a um platonismo. As leis da Lógica seriam, segundo a concepção fregiana, entidades existentes por si mesmas, que podem ser abarcadas pela Razão e expressas pela linguagem humana. As leis da Lógica estariam, assim, previamente dadas. Caberia, então, explicitar as relações lógicas necessárias para a devida fundamentação do conhecimento científico. A Lógica seria, pois, segundo essa concepção, o conhecimento que possibilita fundamentar todos os outros conhecimentos científicos, em especial a Matemática. Nesse sentido, o objetivo central de Frege, ao escrever Os fundamentos da Aritmética e As leis fundamentais da Aritmética, é, em particular, fundamentar toda a Aritmética em princípios lógicos, e não psicológicos. Notemos, assim, que, nesse contexto, o psicologismo pode ser visto como uma tentativa de fundamentação da Lógica na Psicologia. Frege (1980, p.203) nos diz que essa tentativa nos leva a uma 82 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI confusão entre razões demonstrativas e condições internas ou externas da produção de uma demonstração. As razões demonstrativas devem ser explicitadas pela Lógica e as condições internas ou externas de uma demonstração devem ser objeto da Psicologia. Sobre essa distinção, escreve Frege: “Deve-se ao menos conceder que toda investigação acerca da cogência de uma demonstração ou da legitimidade de uma definição deve ser lógica” (idem, p.203). Em outra passagem, ainda nos diz: “Na verdade pode ser útil examinar as representações, e a alternância das representações, que aparecem no pensamento matemático; mas que a psicologia não imagine poder contribuir em algo para a fundamentação da aritmética” (ibidem, p.201). Assim, “tem-se em geral que distinguir a questão de como chegamos ao conteúdo de um juízo da questão do que justifica nossa asserção” (ibidem, p.206). Assim, segundo a posição de Frege em relação à Psicologia, se pudéssemos caracterizar o psicologismo em Lógica, dado o que vimos até aqui, diríamos que ele é uma confusão de planos de análise que advém da tentativa de fundamentar os métodos, os conceitos e as entidades da Lógica e da Matemática nos métodos, conceitos e entidades da Psicologia, não reconhecendo, com isso, a autonomia da Lógica e da Matemática para realizar análises de demonstração no plano da validade e não da realidade empírica. Nesse sentido, uma das consequência do psicologismo é reduzir o raciocínio dedutivo ao raciocínio indutivo, de modo que as verdades da Lógica e da Matemática não são mais que regras gerais abstraídas de casos particulares. Uma caracterização semelhante do psicologismo em Lógica é dada por Mario Ariel González Porta: “O psicologismo lógico é uma teoria que se propõe assimilar a lógica à psicologia, concebendo a primeira como parte da segunda e negando, desta forma, a existência de entidades e estruturas propriamente lógicas” (Porta, 2004, p.109). Em outra passagem no mesmo artigo ainda escreve: Mas, o que é o psicologismo? A assimilação da lógica como disciplina à psicologia como disciplina é consequência não só (e não PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 83 sempre) da confusão das leis lógicas com as psicológicas, mas da redução de umas às outras, redução que, pela sua vez, não afeta só as leis, mas a toda entidade que possa ser considerada especificamente lógica. A essência do psicologismo, pois, é o reducionismo: o psicologismo não necessariamente confunde, mas sempre reduz. (Porta, 2004, p.114-5) Ainda segundo Porta, essa redução do lógico ao psicológico constitui também uma redução do objetivo ao subjetivo. E uma das consequências desse reducionismo é “[...] o idealismo, o solipsismo e, em definitivo, o ceticismo. O motivo fundamental da crítica fregueana ao psicologismo é, pois, epistemológico: o psicologismo conduz a uma negação da objetividade” (idem, p.115). Ora, se é necessário, por um lado, distinguir a Lógica da Psicologia, devido a, principalmente, elas terem planos de análises distintos, por outro lado, essa posição de diferenciação entre elas, na visão de Piaget, acabou por opor uma à outra de modo um tanto radical, não se perguntando, inclusive, sobre o papel do sujeito na constituição das estruturas lógicas. Escreve ele, em Psicologia da Inteligência: “[...] na medida em que a lógica foi renunciando à impressão da expressão verbal para constituir, sob o nome de logística, um algoritmo cujo rigor seria igual ao da expressão matemática, foi-se a lógica transformando numa técnica axiomática” (Piaget, 1958, p.54). A logística, segundo Piaget (1958, p.54), constituiu-se como um “modelo” ideal de pensamento ao propor um projeto de tornar as técnicas de demonstração o símbolo de objetividade. Sua técnica axiomática permite que a Lógica se liberte, por conseguinte, das estruturas lógicas de um sujeito, estabelecendo uma relação absolutamente autônoma entre a Lógica e a Psicologia. Nesse sentido, ainda escreve o autor na obra: Mas então as relações entre lógica e psicologia se acham igualmente simplificadas. A lógica não tem por que recorrer à psicologia, pois que uma questão de fato não intervém, absolutamente, 84 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI numa teoria hipotético-dedutiva. Inversamente, seria absurdo invocar a logística para resolver uma questão resultante da experiência, tal como a do mecanismo real da inteligência. (Piaget, 1958, p.54-5) Em função do desenvolvimento da logística e de sua forte influência na Lógica Moderna, a posição antipsicologista entre os lógicos se tornou expressamente contundente. Surge, então, na visão piagetiana, um antipsicologismo radical entre alguns lógicos formalistas que criticam qualquer relação possível entre Lógica e Psicologia, por exemplo, uma possível relação entre as leis ou as estruturas lógicas com as estruturas de um sujeito, seja ele psicológico ou epistemológico. Diante desse cenário, veremos, a seguir, como Piaget vê a relação entre Lógica e Psicologia no contexto da Epistemologia Genética e como o autor se posiciona em seu debate com o lógico Evert Willem Beth, após as repercussões do Tratado. 3. Relações da Lógica com a Psicologia Expomos, aqui, a concepção de Piaget sobre uma possível coordenação entre Lógica e Psicologia, exposta por ele no Tratado e rediscutida no Ensaio. Apresentamos algumas das oposições centrais de Beth a essa possível coordenação entre os domínios supracitados e como Piaget responde a elas. Argumentaremos, também, a partir da caracterização do psicologismo feita e das próprias posições epistemológicas de Piaget, que ele não é um psicologista, como procura mostrar em algumas passagens de sua obra. Dentre as críticas que surgiram após a publicação do Tratado, consta a do lógico Evert Willem Beth (1908-1964), professor da Universidade de Amsterdã. Beth pode ser considerado um dos maiores representantes do debate com Piaget acerca desse tema, pois, logo após a publicação do Tratado, encarrega-se de uma dura crítica a ele e, posteriormente, como veremos, continua e aprofunda PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 85 esse debate, chegando a ocorrer publicações de obras nas quais ambos participam. Por esse motivo, é o autor que escolhemos para tratar da questão de um possível psicologismo na obra de Piaget. Sobre tais críticas e como elas foram recebidas, diz-nos Piaget na Introdução do Ensaio: Tivemos, em contrapartida, uma grande satisfação ao convencer um de nossos adversários, o grande lógico E. W. Beth, após um artigo especialmente severo de sua autoria, a escrever em colaboração um trabalho intitulado Epistemologia matemática e psicologia, onde conseguimos pôr-nos de acordo sobre a necessidade de “uma certa coordenação entre a lógica e a psicologia”. (Piaget, 1976, p.XVI) O artigo foi publicado na revista Methodos. Pelo que consta nas referências dadas por Piaget (Piaget, 1976, p.XVI; 1983b, p.91; Beth & Piaget, 1961, p.143), Beth teria criticado a pouca formalização das estruturas do pensamento natural e, também, uma certa coordenação entre a Lógica pura e o pensamento “natural”, ambas apresentadas no Tratado. Em Sabedoria e ilusões da Filosofia, obra publicada 16 anos depois da publicação da primeira edição do Ensaio, conta-nos Piaget (1983b, p.91) que tentou, na época, rebater as críticas de Beth. Diz-nos o autor que escreveu algumas páginas, as quais pretendia publicar no espaço geralmente concedido pela revista, mas que elas foram recusadas por P. Bochenski (Beth teria escrito o seu artigo a pedido de Bochenski). No entanto, foram concedidas algumas linhas e, nesse pequeno espaço, Piaget se dirigiu a Beth, expressando, como ele mesmo nos diz em Sabedoria e ilusões da Filosofia, que [...] compreendia muito bem que um puro lógico reagisse com vigor contra um ensaio de formalização de certas estruturas escolhidas, porque pertencentes ao pensamento natural, mas que há aí um problema e que o único meio de nos entendermos seria pu- 86 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI blicar juntos um trabalho sobre tais assuntos, onde nem apenas o lógico nem apenas o psicólogo pode bastar para executar a tarefa. (Piaget, 1983b, p.91) Com esse mesmo “tom” de aproximação, conta-nos Piaget que escreveu pessoalmente para Beth, mas agora fora do espaço público da revista, propondo-lhe que ambos deixassem o orgulho intelectual de lado para escreverem um trabalho juntos, em prol do conhecimento. Sobre isso nos diz Piaget: “Escrevi longamente a Beth no mesmo sentido, propondo-lhe fazer abstração dos nossos ‘eu’ e dedicarmo-nos seriamente a esse trabalho” (idem, p.91). Piaget, então, convidou o lógico Beth para discutir suas idéias em um simpósio. Conta-nos ele que Beth “[...] confessou-se surpreso e sensibilizado com essa reação e não recusou a colaboração proposta, mas pedindo para pensar. Eu estava pois um tanto inquieto com o que ele pensaria e diria no Simpósio” (ibidem, p.91). O encontro era o Simpósio Internacional de Epistemologia Genética, organizado anualmente por Piaget no Centro de Epistemologia Genética, e sediado na Faculdade de Ciências de Genebra. O Simpósio, diz-nos Piaget (1983b, p.91), contou com a participação de muitos especialistas, entre os quais havia um grupo de lógicos, matemáticos e psicólogos, todos interessados em Epistemologia. Beth compareceu e lá foram discutidas as ideias e as concepções de cada um. Sobre a participação de Beth relata Piaget: Este nos deu plena satisfação. Desde a primeira sessão, Beth encontrou a demonstração, por considerações topológicas inesperadas, de uma proposição que Apostel procurava justificar no domínio das relações entre a linguagem, lógica e a informação [...] (Idem, p.91) Apostel é um lógico que também escreveu com Piaget obras em colaboração, por exemplo, As ligações analíticas e sintéticas no comportamento do sujeito, obra a que já fizemos menção na seção 1 do capítulo 1. Cabe notar aqui, ademais, que Piaget não se privou PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 87 de dialogar com diversos intelectuais, entre os quais citamos W. V. Quine, J. B. Grize, W. McCulloch, G. G. Granger, F. Meyer, T. S. Kuhn, todos colaborando de um modo ou de outro com as discussões realizadas no Centro. Voltando ao Simpósio que reuniu Beth e Piaget, suas discussões resultaram em uma obra intitulada Epistemologia Matemática e Psicologia, v.XIV dos Estudos de Epistemologia Genética, cuja primeira edição data de 1961. Essa obra é dividida em duas grandes partes. Na primeira delas, Beth expõe sua concepção sobre a relação entre Lógica e pensamento matemático, amparada na História da Filosofia. Na segunda parte, Piaget apresenta sua visão, porém mais voltada às objeções colocadas por Beth até então, desde a repercussão do Tratado. A conclusão da obra foi um trabalho assinado por ambos. Segundo Beth e Piaget, O primeiro dos dois autores redigiu de início sua própria parte (I) e a comunicou ao segundo, que então escreveu a sua (II) e a submeteu em seguida ao primeiro. Este, enfim, propôs um projeto de conclusões gerais comuns que o segundo autor completou, e que os dois colocaram-se definitivamente de acordo levando em consideração as observações úteis de nosso primeiro leitor, J. B. Grize, ao qual ambos agradecemos. (Beth & Piaget, 1961, p.1, tradução nossa) De formação em Matemática e em Física, Beth, como ele mesmo nos diz em Epistemologia Matemática e Psicologia (idem, p.4), desenvolveu interesse pela Filosofia, donde seus estudos de Filosofia da Matemática, em especial de Epistemologia e das questões sobre os fundamentos da Matemática. Um de seus interesses foi pela relação entre Psicologia e pensamento matemático. Notemos que, embora Beth tivesse uma formação matemática, seus interessem tendiam, também, para um debate mais amplo, que ia além dos estudos de Lógica Matemática a que ele também se dedicava. 88 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI As teses que Beth procurou defender na primeira parte de Epistemologia Matemática e Psicologia são, escreve ele: [...] as teses que eu me proponho a defender são fundadas, não sobre uma tomada de posição a respeito da psicologia ou sobre um logicismo de um formalismo limitado, mas sobre um cuidado profundo e sincero de fazer justiça à lógica formal e à psicologia do pensamento, e sobre os estudos aprofundados em ambos os domínios. (Ibidem, p.4, tradução nossa) Um dos cuidados exigidos por Beth, em Epistemologia Matemática e Psicologia, compreendia a necessidade de se reconhecer a autonomia da Lógica e da Matemática para investigar as deduções formais sem desprezar a importância da Psicologia para o estudo do pensamento. Para ele, a Lógica e a Matemática deveriam ser autônomas em relação à Psicologia quando se tratasse de investigar as noções de validade e fundamento. A investigação de cada um dos domínios, preservando sua autonomia de análise, evitaria um provável psicologismo em Lógica, confusão que deveria ser evitada. Sobre a posição de Beth, escreve Piaget: “Na primeira parte desta obra, E. W. Beth defende a tese, e a justifica pela história, de uma autonomia completa entre a matemática e a lógica, sempre sustentando (§21) que o formalismo, apesar de sua importância considerável, não saberia fornecer delas uma filosofia completa” (ibidem, p.143, tradução nossa). Na segunda parte da mesma obra, Piaget diz que partilha da mesma opinião de Beth sobre a independência da Lógica e da Matemática para realizar suas próprias análises, sem recurso a uma ciência empírica como a Psicologia. Sobre isso, diz-nos: Partiremos aqui exatamente das mesmas opiniões e cremos estar de acordo com E. W. Beth em cada uma de suas afirmações, quanto a esta independência radical do trabalho do lógico e do matemático nas suas análises de validade e de fundamento. (Ibidem, p.143, tradução nossa) PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 89 No entanto, segundo o autor, há uma correspondência entre Lógica e Psicologia que precisa ser explicitada; correspondência que Beth parece não ter compreendido inicialmente. Sobre isso nos diz ele: O nosso papel na segunda parte desta obra não consiste de forma alguma em nos opor a tal ou qual concepção particular de E. W. Beth, mas apenas buscar a explicação psicológica (e que, como veremos, se transformará sem cessar em um tipo de correspondência psicológica) das posições que o lógico é levado a adotar em virtude do desenvolvimento autônomo das pesquisas sobre os fundamentos. (Ibidem, p.147, tradução nossa) Para entendermos as razões que sustentam a tese de Piaget de que há independência dos métodos com correspondência entre os domínios supracitados, vejamos como o autor coloca o problema do psicologismo em Lógica. O psicologismo é a tendência que conduz a misturar as questões de validade com questões de fato; dizendo de outra forma, é a tendência de substituir os métodos puramente dedutivos da lógica por métodos nos quais intervêm os dados psicológicos. No seu capítulo II, Beth mostrou o fracasso dessas tentativas do ponto de vista lógico. (Ibidem, p.151, tradução nossa) [...] qualifica-se de “psicologismo” toda tentativa de reduzir um problema lógico ou matemático utilizando-se de resultados emprestados da psicologia; nós subscrevemos igualmente sem hesitar a condenação do psicologismo, claro, pois isso testemunha uma confusão não somente de métodos, mas ainda dos problemas eles próprios. (Ibidem, p.143, tradução nossa) Notemos que Piaget, nesse caso, caracteriza o psicologismo de modo semelhante a Frege, conforme a breve exposição que fizemos na seção anterior. Semelhança que também é observada por Leslie 90 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI Smith (1999) em seu artigo “Epistemological principles for Developmental Psychology in Frege and Piaget”.2 Nesse artigo, Smith discute paralelos entre as epistemologias de Frege e Piaget. Em uma seção intitulada “Psychologism and Epistemology”, ele escreve: “O trabalho de Frege, no entanto, inclui uma crítica incisiva da lógica psicológica, e é nesse sentido que é amplamente considerado como uma rejeição do psicologismo [...] A rejeição de Piaget ao psicologismo é igualmente explícita” (Smith, 1999a, p.85-6, tradução nossa). Depois de mostrar que ambos rejeitam o psicologismo, Smith escreve: “Que se fique de acordo que ambos Frege e Piaget negaram que leis lógicas são redutíveis à Psicologia” (idem, p.86, tradução nossa). Nesse sentido, semelhante a Frege, Piaget (Beth & Piaget, 1961, p.143-4) também entende que a Lógica e a Psicologia têm planos de análises distintos. Diz-nos Piaget que o problema lógico consiste, em parte, em buscar quais são as condições de validade de uma dedução formal e o problema psicológico, em parte, consiste em determinar como funciona o pensamento lógico e matemático do ponto de vista experimental. Sobre isso, escreve: Com efeito, se o problema lógico, em presença de uma demonstração matemática, consiste em pesquisar sob quais condições ela pode ser tida como válida, o problema psicológico consiste apenas em determinar por meio de quais mecanismos mentais ela em realidade se desenvolve na mente do matemático. (Idem, tradução nossa) Essa independência dos métodos pode ser ilustrada a partir de um exemplo dado por Piaget no seu livro Psicologia da Inteligência, cuja primeira edição data de 1947, dois anos antes da publicação do Tratado. 2. Para mais artigos sobre a relação entre Frege e Piaget cf. também Smith (1999b) e Muller (1999). PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 91 Psicologia da Inteligência é parte de um conjunto de aulas ministradas por ele em 1942, no Collège de France, cujas páginas, segundo o autor “[...] limitam-se a esboçar um ponto de vista, o da constituição das ‘operações’, e a situá-lo, o mais objetivamente possível, no conjunto dos outros, já consagrados” (Piaget, 1958, p.2). Na seção “Lógica e Psicologia” do segundo capítulo de Psicologia da Inteligência, o autor trata dos limites e relações entre os referidos domínios de estudo. De especial importância para nós aqui é a breve análise do princípio da não contradição realizada por Piaget. Sabendo que o princípio de não contradição afirma que uma proposição A é incompatível com uma proposição não-A, ou seja, que não ocorrem A e não-A ao mesmo tempo e sob o mesmo ponto de vista, uma das questões que pode ser colocada é: como o princípio de não contradição, estudado pelo lógico, se expressa nas condutas dos sujeitos psicológicos? Como nos indica Piaget (1958, p.55), para solucionarmos tal questão é preciso falar dos métodos correspondentes a cada um desses domínios de estudo: o método lógico e o método psicológico. Do ponto de vista lógico, a partir da possibilidade de atribuir valores de veracidade ou de falsidade às proposições, o lógico pode identificar contradições no interior da dedução segundo princípios previamente aceitos pela Lógica adotada (que em nosso caso é a Lógica Clássica). Desse modo, para sabermos se uma pessoa se contradiz precisamos analisar as proposições enunciadas por ela e ver se algumas implicam a negação de outra. Essa coerência e ordenação interna do pensamento corresponde ao princípio de não contradição abstraído e estudado pelo lógico na teoria formal elaborada por ele. No plano lógico, segundo Piaget (1958, p.55), “[...] a aplicação do ‘princípio de [não] contradição’ recai exclusivamente nas definições, isto é, nos conceitos axiomatizados e não nas noções vivas das quais o pensamento se serve na realidade”. Nesse plano, “longe de ‘aplicarem um princípio’, as ações 92 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI se organizam segundo condições internas de coerência, e a estrutura dessa organização constitui o fato do pensamento real, correspondendo ao que chamamos, no plano axiomático, de ‘princípio de [não] contradição’” (Piaget, 1958, p.56) No funcionamento da realidade psicológica do pensamento, podemos dizer que o princípio de não contradição não é o resultado de construções formais sobre proposições reguladas por princípios, e sim o resultado da realidade vivida pelo sujeito em toda a complexidade da sua vida psicológica e social. Piaget nos diz que, Efetivamente [do ponto de vista lógico], o princípio de [não] contradição limita-se a proibir a afirmação e a negação simultânea de dado caráter. A é incompatível com não-A. Mas, para o pensamento efetivo de um sujeito real, a dificuldade começa quando ele se pergunta se se tem o direito de afirmar simultaneamente A e B, pois jamais a lógica prescreve diretamente se B implica, ou não, não-A. (Idem, p.55) É da experiência que o sujeito vai tirar se B implica, ou não, não-A; logo, se B é contraditório a A. Nesse sentido, quando o autor diz que a Lógica “jamais prescreve diretamente se B implica, ou não, não-A”, ele quer dizer que o sujeito real se volta não para a dedução formal, mas para a coerência da realidade psicológica e social vivida por ele, da qual a Lógica não pode decidir, pois não é seu plano de análise. Isso significa que, se a Psicologia não pode intervir na decisão sobre uma validade de uma demonstração lógica, a Lógica não pode intervir na autonomia da Psicologia no que concerne às investigações dos fenômenos causais. Sobre essa reciprocidade, escreve Piaget, em Epistemologia Matemática e Psicologia: [...] a independência da atividade lógico-matemática em relação à psicologia é então inteiramente recíproca. Em compreensão, o domínio psicológico está bem delimitado porque parte exclusivamente do mecanismo real dos processos mentais, e isto é suficiente PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 93 [também] para impedir toda aplicação da psicologia a um problema de validade formal. (Beth & Piaget, 1961, p.145, tradução nossa) Citando um exemplo desta independência dos métodos, Piaget escreve no Ensaio: Se [por exemplo] a lógica é uma teoria formal das operações do pensamento, a psicologia e a sociologia, ou pelo menos certas partes destas disciplinas, constituem, ao contrário, uma teoria real das próprias operações: das operações efetuadas pelo indivíduo, ou permutadas graças à linguagem e efetuadas em comum. (Piaget, 1976, p.10) Embora haja independência dos métodos, isso não quer dizer, segundo Piaget (1958, p.57), que os esquemas lógicos não possam auxiliar nas análises psicológicas. “Não há dúvida que os esquemas lógicos tenham auxiliado, frequentemente, pelas sutilezas que apresentam, a análise dos psicólogos” (idem, p.57). Os estudos da Lógica podem auxiliar o psicólogo na esquematização das informações coletadas empiricamente, quando o psicólogo elabora, por exemplo, hipóteses e predição dos fenômenos que podem ser comprovados ou invalidados no contexto da teoria por ele aventada. Assim, voltando à discussão entre Beth e Piaget, podemos notar que Piaget não discorda de Beth quanto à autonomia da Lógica em relação à Psicologia, pois, como vimos, Piaget defende que temos dois métodos distintos para cada um dos domínios supracitados e que cada um desses domínios tem autonomia suficiente para investigar o recorte que eles fazem do pensamento operatório, seja o recorte formal ou real. Sobre essa autonomia e independência, em suma nos diz o autor no Ensaio que: [...] jamais um dado de fato, psicológico ou sociológico, poderia ser invocado na formalização lógica, a qual permanece autônoma mesmo com referência às normas mais comumente aceitas pelo 94 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI grupo social ou pelos indivíduos; jamais, em compensação, um raciocínio que se apoia num algoritmo formal poderia ter validade de um fato da experiência, em psicologia ou em sociologia do pensamento. É esta independência dos métodos apenas que assegura, aliás, a correspondência dos problemas. (Piaget, 1976, p.15) Em Psicologia da Inteligência, Piaget (1958, p.55) nos diz que, se a Lógica realiza uma análise formal e a Psicologia uma análise real, a correspondência que há entre elas é a mesma que há “entre um esquema e a realidade que ele representa”, isto é, entre a forma e o conteúdo de uma estrutura lógica. Sobre essa correspondência, diz-nos Piaget A correspondência dos problemas é clara. Primeiro, todos os problemas suscitados pela formalização lógica podem corresponder a problemas psicológicos e sociológicos. Assim, o emprego de um simbolismo logístico adequado corresponde ao problema dos signos; cada estrutura formalizada corresponde a uma estrutura real, no pensamento comum ou, na ausência deste, no espírito do próprio lógico, etc. Inversamente, toda estrutura atingida pelas operações mentais do indivíduo, ou por uma cooperação interindividual, suscita o problema lógico de sua formalização possível: é o caso da reversibilidade e dos diversos agrupamentos de conjunto constituído pelas operações concretas e abstratas. (Piaget, 1976, p.15) Piaget (1976, p.14) observa que entre a teoria formal da Lógica e a análise real da Psicologia ou da Sociologia, ocorre a mesma relação que há entre a geometria axiomática e a geometria dos objetos físicos: independência completa dos métodos e correspondência possível entre os problemas. Nesse sentido, podemos entender que a correspondência da Lógica com a Psicologia e a Sociologia é análoga ao que há entre um esquema e a realidade que ele representa, entre o formal e o real, entre a Aritmética dos matemáticos e os números “naturais” construídos antes de qualquer teoria, ou entre a PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 95 axiomática e a realidade dos fenômenos empíricos. Analogia que torna possível compreender [...] então as verdadeiras relações entre a lógica, de um lado, e a psicologia ou a sociologia das operações intelectuais, de outro: a lógica é a axiomática das estruturas operatórias, da qual a psicologia e a sociologia do pensamento estudam o funcionamento real. (Piaget, 1976, p.14, grifo do autor) Na Psicologia da Inteligência, diz-nos Piaget (1958, p.52) que uma axiomática é uma ciência exclusivamente hipotético-dedutiva, isto é, ela libera as estruturas operatórias de suas amarras intuitivas, da qual ela se originou, para reconstruir livremente um esquema teórico por meio de proposições indemonstráveis, os axiomas. Estes, combinados entre si, geram todas as possibilidades segundo as relações de necessidades no interior da dedução. Diz-nos, ainda, Piaget, que a axiomática [...] frente a realidades complexas e resistentes à análise exaustiva, permite a ela construir modelos simplificados do real, fornecendo, assim, ao estudo deste último, instrumentos de dissecção insubstituíveis. De modo geral, uma axiomática constitui, como o demonstrou F. Gonseth, um “esquema” da realidade e pelo próprio fato de que toda abstração conduz a uma esquematização, o método axiomático prolonga, no total, o da própria inteligência. (Piaget, 1958, p.52-3) Nesse sentido, Beth chega a concordar com Piaget que há uma certa complementaridade entre os domínios supracitados e que ela é necessária para uma pesquisa epistemológica. Ambos escrevem nas Conclusões Comuns, em Epistemologia Matemática e Psicologia, que Em suma, cada uma das duas respectivas atividades do lógico e do psicólogo se refere à outra, não porque elas seriam interdepen- 96 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI dentes, mas porque, cada uma permanecendo totalmente autônoma, são complementares. São então esta autonomia e esta complementaridade reunidas que tornam não somente possível, mas necessária a pesquisa de uma síntese epistemológica. (Beth & Piaget, 1961, p.332, tradução nossa) Desse modo, o problema epistemológico que Piaget se coloca consiste “[...] precisamente em explicar como os diversos tipos de conhecimento são possíveis (e possíveis no duplo sentido de sua validade normativa e de seu funcionamento real)” (Beth & Piaget, 1961, p.166, tradução nossa). Lembremos que a questão epistemológica que o autor coloca no Ensaio e que deu origem a ele é: em que medida as estruturas lógicas formalizadas com toda a autonomia pelo lógico derivam das estruturas operatórias construídas por um sujeito epistêmico e o ajudam a ordenar a realidade? Assim, em vista do que dissemos, se entendermos por psicologismo a tentativa de resolver um problema lógico ou matemático se utilizando de resultados emprestados da Psicologia, implicando, com isso, uma confusão de métodos e problemas, podemos entender que Piaget não é um psicologista. O Ensaio, assim, não é apenas uma análise formal das estruturas lógicas ao modo de um tratado de Lógica e, também, não é uma obra de pura Psicologia, mas um estudo de Epistemologia Genética. Nele se procura compreender como se constituem as estruturas necessárias aos aumentos de nossos conhecimentos, isto é, como as estruturas lógicas, estudadas com toda a autonomia pelo lógico, se constituem em um sujeito epistêmico e como elas se coordenam resultando em estruturas passíveis de formalização. 3 COMO O SUJEITO EPISTÊMICO USA E SE TORNA CAPAZ DE USAR FUNÇÕES PROPOSICIONAIS Uma das estruturas necessárias ao conhecimento lógico-matemático é a função proposicional, objeto de nosso livro. Nesse sentido, veremos, neste capítulo, na seção 1, a definição de função proposicional dada por Piaget no Ensaio.1 Procuramos mostrar, também, em que medida a função proposicional é importante como condição de uma lógica das classes e das relações e como ela se constitui em uma das pedras bases da Lógica Operatória. A partir disso reapresentamos e situamos, na seção 2, a questão central do livro em relação à definição de função proposicional e das discussões realizadas, nos capítulos anteriores, sobre a contextualização do Ensaio na Epistemologia Genética. Veremos que a função proposicional, estudada com autonomia pelo lógico, tem 1. Notemos aqui que toda função proposicional é uma função, mas nem toda função é uma função proposicional; em outras palavras, a função proposicional é um tipo de função. Apesar de a função proposicional ser uma função, limitamos o nosso estudo da função proposicional apenas ao Ensaio, no qual, como sabemos, ela é apresentada e definida. Não fizemos um estudo geral de sua gênese a partir da obra Epistemologia e Psicologia da Função (1968), em que é realizado um estudo sobre a gênese da noção de função em geral, pois tal estudo ultrapassaria os propósitos de nosso trabalho. Porém, fica registrado, aqui, que Piaget realiza, com seus colaboradores, um estudo detido da gênese da função em geral. 98 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI um correspondente na realidade psicológica que a torna possível: o esquema conceitual; é, então, o esquema conceitual que permite ao sujeito epistêmico usar as funções proposicionais. Por fim, na seção 3, investigamos a psicogênese da função proposicional e, consequentemente, dos esquemas conceituais, para responder como o sujeito se torna capaz de usar a função proposicional. 1. A função proposicional e a sua importância para a Lógica Operatória Apresentamos aqui a definição de função proposicional dada por Piaget no Ensaio e explicitamos como a função proposicional está relacionada à Lógica Operatória e, em especial, às operações intraproposicionais. Nesse sentido, mostramos como a função proposicional torna possível a lógica das classes e a lógica das relações, condição necessária para a Lógica Operatória. A função proposicional é definida por Piaget no §4 do Ensaio do seguinte modo: Definição 7. – Uma função proposicional ax é um enunciado nem verdadeiro nem falso, mas suscetível de adquirir um valor de verdade ou de falsidade segundo a determinação dos argumentos que substituem o argumento indeterminado x. (Piaget, 1976, p.45) No estudo da função proposicional, o termo argumento é usado para designar a própria variável x ou o que substitui a variável x na função. A variável x é chamada de argumento indeterminado e o que a substitui, se não for uma variável, de argumento determinado (cf. idem, p.45). Tomemos um exemplo simples para explicitar o uso desta função. Comecemos com a proposição “o cravo é vermelho”. Podemos substituir o sujeito dessa proposição por outro termo, resultando em uma nova proposição, por exemplo, “a rosa é vermelha”. PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 99 Essa substituição resulta em uma proposição com um valor de verdade ou de falsidade. Se expressarmos por x a possibilidade de substituição de um sujeito por outros sujeitos quaisquer no seio de uma proposição, temos então, no caso da proposição citada, a expressão “x é vermelho”. Se, ainda, designarmos também o predicado “é vermelho” pela letra a, podemos expressar, formalmente, a função proposicional por ax. Notemos que o enunciado ax não é uma expressão particular, mas uma expressão geral que indica a sua constituição a partir de seus elementos mais simples, os objetos (sujeitos) e a propriedade desses objetos (predicados). Nesse sentido, a substituição do argumento indeterminado pelo argumento determinado na função proposicional resulta em uma proposição à qual é possível atribuir um valor de verdade ou de falsidade. O termo a é, segundo o autor (1976, p.45), a função em si mesma. Embora Piaget (1976, p.45) escreva que a função proposicional teve origem em Russell, as primeiras noções já estavam presentes, como vimos na Introdução, em Frege, não sob o nome de função proposicional, mas sob o nome de conceito. Há diferenças nas definições de função proposicional dada por esses autores que não trataremos aqui, mas que podem ser relevantes em outros contextos, como uma discussão sobre o estatuto ontológico da função proposicional, por exemplo.2 Para os propósitos do livro, interessa-nos apenas que Russell trata a função proposicional como uma expressão e que Piaget, influenciado pelos trabalhos de Russell, o faz da mesma forma. 2. Sobre as diferentes abordagens da função proposicional por Frege e Russell, Bochenski (1966, p.336) escreve: “Russell, que conhece bem Frege, segue o pensamento desse grande lógico, senão com duas diferenças: não parte, como Frege, do conceito matemático de função, mas de análises aristotélicas das sentenças; mas logo parece interpretar a palavra ‘função’, segundo havia dito, como nome de uma expressão, de uma fórmula escrita”. Notemos que Frege não define função como uma expressão, pois, para ele, os entes matemáticos não são meras expressões, estas apenas os designam. 100 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI Segundo Piaget (1976, p.45-46), uma função proposicional também pode ser transformada em proposição de dois modos: podemos dizer que todos os x têm a propriedade a ou que ao menos um x tem tal propriedade. No primeiro caso, a notação dada por Piaget é (x)ax, e, no segundo caso, a notação é (∃x)ax. Notemos que tanto (x)ax ‫ׅ‬como (∃x)ax são possíveis proposições, pois, conforme a determinação do argumento x e do predicado a, terão seu valor de verdade ou de falsidade definidos. Sob influência de Russell, Piaget distinguirá funções proposicionais de classes lógicas. Consta nas referências bibliográficas do Ensaio, o livro de Russell, intitulado Introdução à Filosofia da Matemática, que é a principal referência de Piaget ao fazer a distinção supracitada (Piaget parafraseia partes dessa obra). Na Introdução à Filosofia da Matemática, Russell (1966, p.177) formula cinco condições, necessárias e suficientes, para a existência lógica de uma classe. Vejamos duas delas, que Piaget (1976, p.46) cita no Ensaio, particularmente no contexto da distinção entre função proposicional e classe, enquanto as outras condições elaboradas por Russell são, segundo Piaget, “[...] condições restritivas às classes matemáticas (conjuntos), que não nos interessam aqui”. (idem, p.46) A primeira das condições necessárias e suficientes para a existência lógica de uma classe é: toda classe é definida por uma função proposicional, tal que a proposição resultante na substituição na função é verdadeira para os membros da classe e falsa com relação aos que não são membros dessas classes (Russel, 1966, p.177). Por exemplo, a classe dos Homens é determinada a partir dos possíveis termos que venham a substituir a variável x na expressão H(x) e que tenham a propriedade H de ser homem, ou seja, que resultem em uma proposição verdadeira. Nesse sentido, diz-nos Russell: “Tudo o que estamos observando no momento é que uma classe é tornada determinada por uma função proposicional e que toda função proposicional determina uma classe apropriada” (Russel, 1966, p.177). PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 101 A segunda condição, dada por Russell é: “Duas funções formalmente equivalentes devem determinar a mesma classe, e duas que não são formalmente equivalentes devem determinar classes diferentes” (idem, p.177). Um exemplo de funções equivalentes é dado por Piaget no Ensaio é: “x é 4” e “x é 2 + 2”; nesse caso, essas funções são equivalentes, pois determinam a mesma classe, com um único elemento, o número 4. Assim, segundo Russell, É o fato de haver outras funções formalmente equivalentes a uma função dada o que impossibilita identificar uma classe com uma função; pois desejamos que as classes sejam tais que não haja duas classes distintas tendo exatamente os mesmos membros, e, portanto, duas funções formalmente equivalentes terão de determinar a mesma classe. (Ibidem, p.176) Com base nessa distinção de Russel entre função proposicional e classe lógica, Piaget define classes a partir da noção de função proposicional do seguinte modo: Definição 8. – Uma classe é o conjunto dos termos que podem ser substituídos uns pelos outros a título de argumentos conferindo um valor de verdade a uma função proposicional. (Piaget, 1976, p.49) Piaget denota por {x│ax} o conjunto dos elementos que podem ser substituídos uns pelos outros a título de argumentos, conferindo um valor de verdade a uma função proposicional. Ora, se uma classe pode ser definida a partir de uma função proposicional, então, como nos diz Piaget, “[...] a classe não se reduz a uma coleção física, mas resulta da substituição de um indivíduo por outro, no seio de uma proposição: a primeira condição da existência de uma classe é, pois, de fato, a construção de uma função proposicional” (idem, p.46). Piaget também argumenta que “uma classe lógica não poderia ser concebida, com efeito, como um simples amontoado de indivíduos: a melhor prova disto, diz Russell, é que uma classe pode ser vazia” (Piaget, 1976, p.46). 102 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI Essa condição da função proposicional como logicamente anterior à classe é, também, comentada por Russell (1966, p.175), que a considera “o equipamento final do mundo”. Sobre a importância da função proposicional para a existência lógica das classes, comenta Piaget: Ora, depois de ter sido objeto de uma organização admirável nos trabalhos de Russell, a lógica das classes foi abandonada por ele como o fundamento do edifício lógico [...] A noção capital, que se deve a Russell, e que associa do modo mais natural a noção de classe à da proposição [...] é a noção de “função proposicional”. (Piaget, 1976, p.45) Em suma, podemos dizer, então, que, para Piaget, a função proposicional é condição necessária para a constituição de uma classe e, por conseguinte, da construção de uma lógica das classes.3 Isso mostra a importância da função proposicional como a base do edifício lógico na hierarquia das estruturas, principalmente se a Lógica Operatória for vista pela perspectiva de uma lógica das totalidades operatórias, como Piaget quer mostrar no Ensaio. Piaget, no Ensaio, procura mostrar que as operações lógicas estariam interligadas como um todo, segundo o que ele chama de sistemas de conjunto (cf., por exemplo, idem, p.27) ou de uma lógica das totalidades operatórias (cf., por exemplo, ibidem, p.47). Uma lógica das totalidades seria semelhante às operações de conjunto ou de totalidade desenvolvida na Matemática, em que, como observa Piaget, “[...] as operações não existem em estado isolado, mas são solidárias com estruturas globais” (ibidem, p.25). 3. Em teoria de conjuntos, o princípio que expressa funções proposicionais como condição de constituição de classes é, em geral, o axioma da compreensão. Na teoria Zermelo-Fraenkel de conjuntos, o axioma da compreensão diz que, para todo conjunto A e para toda função proposicional P(x), corresponde um conjunto H, cujos elementos são exatamente aqueles x de A para os quais P(x) é verdadeira. Nesse caso, fica claro a importância da função proposicional para se definir conjuntos. PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 103 Um exemplo dado pelo autor são os “corpos”, “anéis” e outros sistemas algébricos que, a partir de leis de composição de seu conjunto, se constituem como um todo articulado. Segundo Piaget (1976, p.27), o mesmo ocorre na Psicologia. Entende o autor que, nesse domínio, as operações do pensamento não estão isoladas, mas apoiam-se em sistemas de conjunto. Nesse sentido, como vimos no capítulo 2, seção 1, as estruturas lógico-matemáticas, construídas pelo sujeito, estariam interligadas e ordenadas de modo que as estruturas se sucedem hierarquicamente, sendo a forma de uma estrutura de nível inferior o conteúdo de uma estrutura de nível superior. Sobre a visão de um sistema de conjunto tanto na Matemática quanto na Psicologia, escreve Piaget: Tanto em matemática quanto em psicologia, quer dizer, nas duas disciplinas entre as quais a lógica se coloca, o papel das totalidades operatórias, com suas propriedades de conjunto, tornou-se fundamental nas sistematizações das operações abstratas, bem como das operações reais em jogo no pensamento em ação. (Idem, p.25) Se a Lógica é, como vimos no capítulo 2, seção 1, a teoria formal das operações dedutivas, tal que essas operações estão “encarnadas” pela psicologia de um sujeito e são desenvolvidas no plano simbólico e formal das teorias lógico-matemáticas, Piaget (1976, p.25) pergunta-se, então, no Ensaio, se a Lógica, que se coloca entre a Psicologia e a Matemática, não seria, também, um sistema de conjunto, isto é, se a Lógica não poderia ser sistematizada segundo uma lógica das totalidades operatórias, assim como se faz na Matemática e na Psicologia. É nesse sentido que Piaget proporá uma lógica das totalidades operatórias “[...] do duplo ponto de vista da lógica das proposições e da lógica das classes e das relações” (idem, p.28). Antes de passarmos para as descrições das totalidades operatórias das proposições, das classes e das relações, vejamos o que 104 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI Piaget entende por relação e como esta se coordena com as classes lógicas. Piaget define relação, em primeira aproximação, no §4 do Ensaio do seguinte modo: Definição 9. – Uma relação é o que caracteriza um termo por intermédio de um outro. (Idem, p.52) Tomemos como exemplo de uso de relação a proposição “a maçã é menor que a melancia”. Os termos “maçã” e “melancia” são relativos um ao outro, segundo o termo “é menor que”. Se expressarmos esse termo por a e a possibilidade de substituição dos termos “maçã” e “melancia” por outro, na referida proposição, pelas variáveis x e y, então obtemos uma expressão geral para proposições que expressam uma relação entre dois elementos, a saber: axy. Notemos que a relação axy é, também, uma função proposicional. Observa Piaget (1976, p.53-4) que toda função proposicional, seja na forma axy ou na forma ax, é uma relação. No caso de axy, a relação a está explicitada. Mas, também, em ax, pode-se admitir uma relação implícita (com exceção das classes vazias), pois, embora ax expresse que apenas um termo x tem a propriedade a, essa propriedade pode englobar o conjunto dos termos x1, x2 etc. que têm tal propriedade (e que podem substituir x na função, mantendo-a verdadeira). Por exemplo, embora expressemos a proposição “o cravo é vermelho” por ax, existem outros termos que têm a propriedade de ser vermelhos, o que nos leva a expressar a função ax por ax1, ax2 etc. Notemos que, nesse caso, a relação está implicitamente colocada, podendo ser assim explicitada: ax1x2; um exemplo de proposição expressa nessa forma é: “o cravo é vermelho como a rosa”. Sobre o caso de uma função proposicional ser um tipo de relação tanto na forma axy quanto na forma ax, escreve Piaget: PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 105 [...] toda função a, tanto na forma ax quanto axy, constituirá uma relação; a única diferença será que, em axy, a relação a é explicitamente colocada como relação [...] entre x e y, enquanto em ax trata-se de uma relação simétrica que permanece entre os argumentos x1 e x2, etc. substitutivos de x. (Piaget, 1976, p.53-4) Notemos, ademais, que uma relação não se confunde com uma classe. Segundo Piaget, enquanto “[...] uma classe é a reunião de termos individuais (ou uma reunião de outras classes cujas subclasses reúnem sempre, elas próprias, em definitivo, termos individuais) [...] uma relação é, ao contrário, o que permite reunir estes termos segundo suas equivalências, sua ordem, etc.” (idem, p.50). O autor nos diz que a noção de classe e relação corresponde ao que se entendia, tradicionalmente em Lógica, por extensão e compreensão de um conceito, respectivamente. Sobre isso, diz-nos: “A lógica tradicional, que não distinguia as classes e as relações, mas as reunia sob o termo indiferenciado de ‘conceitos’, opunha, por outro lado, cuidadosamente uma à outra, a extensão e a compreensão”. Diz-nos Bochenski (1966, p.265 e 272), em História da Lógica Formal, que a noção de extensão e compreensão de um conceito, desde já muito antiga, recebeu tratamento explícito somente no século XVII, com o manual de Lógica La Logique ou L’art de penser, também chamado de Logique du Port Royal, dos autores P. Nicole e A. Arnault. Em La Logique, a noção de extensão (étendue) de conceito é distinta da de compreensão (compréhension) de um conceito. A compreensão de um conceito são as características ou atributos que são próprios ao conceito de algo; sobre isso, Bochenski oferece-nos, como exemplo, a compreensão do conceito de triângulo, o qual abarca: figura, três linhas, três ângulos etc. A extensão de um conceito são os sujeitos que caem sob esse conceito; assim, a extensão do conceito de triângulo são todos os triângulos existentes. Ciente dessa distinção entre extensão e compreensão de um conceito, Piaget escreve: “[...] a extensão é, por definição, o conjunto dos indivíduos aos quais se aplica (justamente) o conceito [...]. Essa extensão corresponde assim ao que se chama hoje de 106 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI classe, e pode-se definir como classe todo conceito em extensão (cf. definição 8)” (Piaget, 1976, p.50). Por outro lado, “[...] a compreensão é o conjunto dos atributos que possuem em comum esses indivíduos” e que, nesse sentido, “[...] permite reunir os x, ou os x e os y, é a função ela mesma, a ou b, que é ‘compreensão’ e vamos ver que é ela que constitui, em todos os casos, a relação” (idem, p.50). Assim, como podemos notar, segundo a perspectiva de uma lógica das totalidades operatórias ou ainda de uma Lógica Operatória, como pretende Piaget que seja a Lógica, a função proposicional é o que há de mais fundamental, pois ela permite explicitar a forma e a constituição das operações elementares como as de classificação4 e relacionamento. Nesse sentido, a existência da função proposicional é condição das operações elementares de classificação e relacionamento. Em relação às operações intraproposicionais (ver capítulo 2, seção 1 deste trabalho), temos que, segundo Piaget, “é a passagem da proposição como tal à função proposicional que leva, portanto, ao estudo das operações intraproposicionais” (ibidem, p.45). As operações intraproposicionais (condição das operações sobre classes e relações) constituem, segundo Piaget (1976, p.28), “operações de primeira potência”, pois elas formam um todo e são, na hierarquia das estruturas, construções de níveis mais elementares. Já as operações interproposicionais (operações de negação, conjunção, condicional etc.) são “operações de segunda potência”, pois uma proposição qualquer pressupõe como conteúdo uma operação de classes e relações. 4. As operações elementares de classificação e seriação são estudadas em detalhes na obra Gênese das estruturas lógicas elementares (1959), que é o resultado de estudos que Piaget realizou em parceria com sua colaboradora Bärbel Inhelder. Não trataremos desse estudo por fugir do foco de nosso trabalho, mas cabe observar que, nessa obra, é realizado um estudo experimental profundo sobre os “mecanismos” que se encarregam da evolução e são condições necessárias a tais operações elementares. PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 107 O Ensaio propriamente dito é, então, dividido em duas grandes partes. Na parte I, o autor nos apresenta um estudo das operações intraproposicionais, mostrando como as classes e as relações se articulam como um todo a partir das operações sobre funções proposicionais. Na parte II, é realizado um estudo das operações interproposicionais, no qual o autor mostra que são “[...] ao mesmo tempo superiores às precedentes e influenciando sobre seu resultado (já que uma proposição é, quanto a seu conteúdo, uma operação de classes e de relações)” (Piaget, 1976, p.28). Veremos, nas seções seguintes, como a função proposicional tem um correspondente psicológico na realidade do sujeito e como esse sujeito dará condições para o surgimento da função proposicional. Será feita uma análise de condições psicológicas necessárias ao surgimento da função proposicional em um sujeito psicológico e, por conseguinte, em um sujeito produtor de conhecimento, o sujeito epistêmico. 2. Uma questão de fato: como o sujeito epistêmico usa e se torna capaz de usar funções proposicionais? Com base nas discussões de princípio realizadas nos capítulos anteriores e dada a definição de função proposicional, reapresentamos, nesta seção, a questão central deste livro. Em face da presente questão, perguntamo-nos qual é a correspondência entre função proposicional, estudada com autonomia pelo lógico, e as estruturas do sujeito psicológico. Veremos que à função proposicional corresponde, psicologicamente, o esquema conceitual. Vimos, no capítulo anterior, que Piaget considera que a Lógica é uma axiomática das estruturas operatórias da qual a Psicologia e a Sociologia do pensamento estudam o funcionamento real. Se aceitarmos tal posição, temos que as estruturas elementares de classes, de relações, de proposições etc., formalizadas com toda a independência e autonomia pelo lógico, têm correspondências com as 108 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI “operações” do pensamento natural; logo, uma das questões de fato que surgem é a de compreender qual é a correspondência entre o uso da função proposicional e as estruturas do sujeito psicológico. Nesse sentido, assentado o terreno das discussões de princípio, nos capítulos anteriores, podemos, agora, reapresentar a questão central de nosso livro, nos termos já mencionados na Introdução, para analisá-la mais detalhadamente: Como o sujeito epistêmico usa e se torna capaz de usar funções proposicionais na estruturação lógico-matemática que ele faz da realidade? Comecemos nosso estudo da correspondência entre a função proposicional e as estruturas do sujeito epistêmico, a partir da sua relação com a construção das classes, apresentada por Piaget no § 8 do Ensaio (1976, p.74). Consideremos, então, uma operação de substituição simples: se ax1 significa, por exemplo, para o sujeito epistêmico, a proposição “x1 é de madeira”, ele pode substituir x1 por x2, x3 etc., (sendo que esses objetos têm a propriedade de ser madeira), conservando o valor de veracidade das proposições resultantes dessa substituição. Essa operação, diz-nos Piaget (1976, p.74), tem um correspondente psicológico na realidade. Nesse sentido, escreve ele: “Do ponto de vista das operações reais do sujeito, quer dizer, do ponto de vista psicológico, a substituição simples corresponde a um mecanismo perfeitamente geral da ação e do pensamento, que é o da identificação dos objetos a um esquema de atividade”. Podemos entender a expressão “esquema de atividade” aqui como se estendendo a noção de esquema de ação, ou seja, a estrutura ou a organização dessa atividade, a qual se transfere ou generaliza no momento da repetição da atividade, em circunstâncias semelhantes ou análogas.5 Notamos, então, uma semelhança entre uma função proposicional e um esquema de ação. Qual seria o seu 5. Lembremos que, como vimos no capítulo 1, seção 1, “um esquema [de ação] é a estrutura ou a organização das ações, as quais se transferem ou generalizam PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 109 significado? Será que a função proposicional tem origem em um esquema de ação? Piaget, em O nascimento da inteligência na criança, diz-nos que existe uma analogia de ordem funcional entre um esquema de ação e um esquema conceitual. Escreve ele: No tocante, em primeiro lugar, às classes ou aos gêneros é evidente que o “esquema móvel”, apesar de todas as diferenças de estrutura que o separam desses seres lógicos, é-lhes funcionalmente semelhante. Como eles, de fato, o “esquema móvel” denota sempre um ou mais objetos, por “pertença”. (Piaget, 1975b, p.228) Nesse sentido, de forma geral, quando uma criança aplica um esquema de ação a um objeto – por exemplo, suga seu polegar –, existe uma espécie de identificação prática de um objeto a um esquema de ação – por exemplo, o polegar (objeto) é considerado pelo sujeito como “sugável”, relativo ao esquema de sugar. Tendo em vista tais semelhanças, segundo Apostel et al., em As ligações analíticas e sintéticas no comportamento do sujeito, podemos definir a extensão e a compreensão de um esquema de ação: “Df. 8. A extensão de um esquema é a reunião das extensões de ações das quais ele é o esquema. A compreensão de um esquema é o esquema em si mesmo” (Apostel et al., 1957, p.48, tradução nossa). Em seguida, ainda nos diz: “Df. 8 bis. A extensão de uma ação é a reunião de objetos sobre os quais ela porta” (idem, p.48, tradução nossa). Nesse sentido, podemos notar que um esquema de ação, assim como um esquema conceitual, reúne objetos (extensão) por meio de uma propriedade comum (compreensão). Porém, no período sensório-motor, a criança não consegue, ainda, conceber a extensão da sua ação ou, como nos diz Piaget: “[...] a assimilação sensório-motora, que conhece a compreensão no momento da repetição da ação, em circunstâncias semelhantes ou análogas” (Piaget, 1990, p.15). 110 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI não comporta extensão do ponto de vista do sujeito”. Assim, existe um longo percurso do surgimento dos esquemas sensório-motores à possibilidade de o sujeito epistêmico ser capaz de usar a função proposicional. Sendo assim, qual seria, então, o correspondente psicológico da função proposicional? No § 4 do Ensaio, Piaget (1976, p.46) nos diz que a função proposicional, como primeira condição da existência da lógica das classes, tem um equivalente psicológico: um esquema de identificação conceitual. Notemos que um esquema de identificação conceitual implica, primeiramente, que um sujeito seja capaz de atribuir uma mesma propriedade a diferentes objetos, analogamente, como vimos, ao esquema de ação sensório-motor. Mais ainda, voltando ao exemplo supracitado, vemos que o sujeito consegue determinar não apenas que um objeto x1 tem a propriedade a, (por exemplo, ser de madeira), mas que também os objetos x2, x3 etc. têm a propriedade a, por meio da substituição simples, já mencionada. Essa ligação dos esquemas de identificação conceitual com o sistema de esquemas de ação é o que nos permite dizer que há uma significação concreta associada aos esquemas conceituais. Nesse sentido, escreve Piaget que No exemplo escolhido, se uma ação, que se refere a um pedaço de madeira x1, é repetida em outros objetos que poderão ser igualmente cortados, talhados, etc., estes objetos x2, x3, etc., serão então comparados com o primeiro, do ponto de vista do esquema da ação considerada, e é a formalização deste cotejo que constitui a operação lógica elementar da substituição. Por outro lado, o próprio esquema destas ações, ou dos juízos emitidos a seu respeito, corresponde ao predicado a. (Piaget, 1976, p.74-5) Se, de fato, “o próprio esquema destas ações, ou dos juízos emitidos a seu respeito, corresponde ao predicado a”, cabe se perguntar, então, por que a assimilação de um dado por um esquema sensório-motor não é condição suficiente para a existência de es- PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 111 quemas de identificação conceitual. Mais ainda, considerando os “juízos emitidos a seu respeito”, cabe perguntar se as verbalizações feitas pelas crianças, por exemplo, “este besouro é um bicho”, não seriam, ainda, evidências da existência de um esquema de identificação conceitual? Veremos que não, pois a aquisição dos esquemas conceituais não supõe apenas que a criança verbalize o reconhecimento de certas propriedades dos objetos, mas, também, que ela seja capaz de coordenar suas extensões, em especial, seja capaz de coordenações reversíveis parte-todo. Segundo Piaget, no capítulo VIII de A formação do símbolo na criança, [...] para que a criança pudesse tomar uma decisão sobre isso [de decidir se um besouro e pequenas minhocas são bichos, por exemplo], [seria preciso] que ela soubesse reunir as partes num todo segundo um modo de composição reversível [...]. (Piaget, 1975a, p.291) Para citar um caso de irreversibilidade, consideremos o experimento de transvasamento dos líquidos no qual se apresentam dois recipientes para uma criança, os recipientes A e B, sendo este último mais estreito e mais alto. Os recipientes apresentam volumes iguais, variando apenas no formato. A intenção é passar o volume de água de um recipiente a outro de modo a observar se a criança consegue perceber a conservação do líquido, embora os recipientes tenham formas diferentes. A pergunta que é feita a elas antecipadamente é se haverá ou não conservação do líquido transvasado de um recipiente a outro. O experimento mostra que crianças do período pré-operatório são incapazes ainda de perceber a conservação do líquido. Experimentos como esses mostram que as crianças do pré-operatório raciocinam, segundo Piaget, […] somente sobre estados ou configurações estáticas, negligenciando as transformações como tais. Para atingir a estas últimas, ao 112 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI contrário, é preciso raciocinar por meio de “operações” reversíveis e estas só se constroem pouco a pouco, por uma regularização progressiva das compensações em jogo. (Piaget, 2002, p.72, grifo do autor) Nesse sentido, na medida em que a criança é capaz de antecipar suas ações e reconstituí-las, há, segundo Piaget, a preparação da reversibilidade, “[...] bastando [pois] prolongar esta ação interiorizada, no sentido da mobilidade reversível, para transformá-la em ‘operação’” (idem, p.36). Visando a esse momento crucial de preparação da reversibilidade, centramos a nossa investigação no início das primeiras operações lógicas realizadas pelo sujeito, ou seja, no nível que Piaget chama de “período operatório concreto”, aproximadamente entre 7-8 a 11-12 anos; marco que podemos considerar crucial para a construção das operações, pois, segundo Piaget, como já citado, “[...] as operações concretas estabelecem, portanto, muito bem a transição entre a ação e as estruturas lógicas mais gerais [...]” (Piaget, 1990, p.86). É, pois, nesse nível que surge a coordenação reversível parte-todo. Retomando a noção de reversibilidade mencionada, brevemente, na seção 1 do capítulo 2, temos que uma transformação reversível é a possibilidade de desenvolver uma ação não apenas em um sentido, mas também no sentido contrário. Em outras palavras, é a possibilidade de coordenar uma ação a, que parte de um estado A e resulta no estado B, com uma ação b, que parte do estado B e resulta no estado A, de forma a anular a ação, resultando a inversa dessa coordenação. Nesse sentido, no caso da coordenação reversível parte-todo, a criança tem a possibilidade de coordenar uma ação a de comparação que vai da parte A ao todo B, com uma ação b de comparação que vai do todo B à parte A, de forma a saber que a parte compõe o todo e que o todo é composto pela parte. Existem inúmeros experimentos que evidenciam essa capacidade da criança de coordenação parte-todo através de uma coordenação reversível, e mostram, por si, como ela é, de fato, gradual e PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 113 necessária à aquisição do esquema conceitual. Dentre eles, consideremos, por exemplo, o experimento das contas de madeira, descrito por Piaget na obra A gênese do número na criança (Piaget & Szeminska, 1975, capítulo VII). Nesse experimento, tem-se uma caixa com várias contas de madeiras, sendo a grande maioria da cor castanha e apenas duas da cor branca. Algumas das perguntas que são feitas à criança são: “Há mais contas de madeira ou contas castanhas?”; “que colar seria mais comprido, o que se poderia fazer com contas de madeira ou com as contas castanhas?” (pede-se, inclusive, para a criança desenhar um e outro colar, antes de se fazer essa pergunta). Nesse caso, a coordenação reversível parte-todo possibilita à criança coordenar uma ação a de comparação da parte A (contas castanhas) com o todo B (contas de madeira), com uma ação b, de comparação do todo B (contas de madeira) com a parte A (contas castanhas), de forma a saber que, no caso, existem mais contas de madeira (todo) do que contas castanhas (parte). Vejamos um exemplo de como as crianças respondem aos questionamentos de Piaget: Stro (6 anos): “Existem nesta caixa mais contas de madeira ou mais contas castanhas? – Mais contas castanhas. – Por quê? – Porque das de madeira só há duas. – Mas as castanhas não são também de madeira? – Ah, sim. – Então, há mais castanhas ou mais de madeira? – Mais castanhas. (Piaget & Szeminska, 1975, p.227) Oli (5;2): “Estas contas são todas castanhas? – Não, há duas brancas. – Elas são todas de madeira? – Sim. – Se se despejasse todas as contas de madeira aqui, sobraria alguma? – Não. – Se se despejasse ali todas as castanhas, sobraria alguma? – Sim, as duas brancas. – Então, que colar seria mais comprido, o que se poderia fazer com as castanhas desta caixa ou o que se poderia fazer com as contas de madeira desta outra caixa? – O das castanhas. (Piaget & Szeminska, 1975, p.228) 114 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI Notemos que a criança, muito embora diga que uma determinada conta tem a propriedade de ser de madeira (todo), de ser castanha (parte) ou de ser branca (parte), ela não compreende que há mais contas de madeira (todo) do que castanhas ou brancas (parte). Sobre essa incapacidade de coordenar reversivelmente a parte e o seu todo, Piaget e Szeminska escrevem: Tudo se passa como se a criança, pensando na parte, esquecesse o todo e vice-versa. Ou melhor, a criança, quando pensa no todo, consegue bem se representar as partes ainda não dissociadas (pois, por exemplo, desenha corretamente o colar correspondente ao todo e distingue muito bem nesse todo uma vintena de contas castanhas e duas contas brancas), mas, quando procura dissociar uma das partes, não consegue mais se lembrar do todo ou levá-lo em consideração, limitando-se a comparar a parte de que se ocupa com a parte restante, ou seja, ao resíduo do todo primitivo. Assim, se pensa nas contas castanhas, a criança não as compara, com efeito, senão às contas brancas, e não mais ao conjunto das contas de madeira. (Piaget & Szeminska, 1975, p.235) Casos semelhantes podem ser encontrados não apenas em experimentos psicológicos controlados, mas também em observações dos comportamentos espontâneos das crianças desse nível. No capítulo VIII de A formação do símbolo na criança, encontramos um caso particularmente interessante para os propósitos aqui apresentados: Aos 2;1 (13), J. quer ir ver um pequeno vizinho corcunda que ela encontra a passeio. Alguns dias antes, J., depois de minhas explicações sobre o porquê dessa corcunda, que queria saber, disse: “Pobre rapaz, ele é doente, tem uma corcunda.” Na véspera, J. já tinha desejado revê-lo, mas estava gripado, o que J. chamava de estar “doente de cama”. Saímos então a passeio e, a caminho, J. pergunta: “Ele ainda está doente de cama?” – Não, eu o vi hoje de manhã, não está mais de cama. (Piaget, 1975a, p.296) PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 115 Relata Piaget que Jaqueline, uma de suas filhas, ao observar o corcunda com gripe, insere todas as doenças em uma mesma classe e raciocina que, se o corcunda se cura da gripe, então deixa de ser corcunda. Piaget chama esse tipo de raciocínio, presente no pré-operatório, de transdução. Segundo ele, [...] a transdução é um raciocínio sem imbricações reversíveis de classes hierárquicas, nem de relações. Sendo sistema de coordenações sem imbricações, por conexão direta entre esquemas semissingulares, a transdução será, pois, uma espécie de experiência mental que prolonga as coordenações de esquemas sensório-motores no plano das representações; como não constituem conceitos gerais, e sim meros esquemas de ações evocados mentalmente, essas representações ficarão a meio-caminho entre o símbolo-imagem e o próprio conceito. (Idem, p.300) A transdução é um raciocínio típico do período pré-operatório, sendo, grosso modo, uma inferência do particular para o particular. Ela nos revela quais as estruturas que estão subjacentes às condutas verbais das crianças. Tanto o experimento das contas, quanto a observação do corcunda apresentados são, como facilmente podemos observar, casos de raciocínios transdutivos, e mostram que as crianças do pré-operatório, embora digam que esse ou aquele objeto tem essa ou aquela propriedade, são incapazes, ainda, de coordenar de modo reversível parte-todo. No experimento das contas, ela é incapaz de compreender não apenas que toda conta castanha e branca é uma conta de madeira, mas, igualmente, de compreender o seu inverso. Também, na observação do corcunda, a criança identifica as duas doenças e as insere em uma única classe, em vez de distingui-las em classes separadas e inseri-las segundo uma relação reversível de parte-todo, em que estar gripado e ser corcunda são duas doenças dentre outras, na classe das doenças em geral. Por que, então, isso acontece? Por que a criança, mesmo verbalizando que um objeto tem ou não uma determinada propriedade 116 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI ainda não é capaz de coordenar parte-todo? Em outras palavras, quais são os esquemas necessários para as coordenações reversíveis parte-todo e como ocorre, em detalhes, a passagem do raciocínio transdutivo ao raciocínio lógico-matemático usual? Quais as estruturas determinantes para a aquisição do esquema conceitual? É o que veremos na próxima seção. 3. Da ação sobre a experiência sensível à estruturação lógico-matemática do real: análise de condições necessárias ao uso da função proposicional Nesta seção veremos como surge uma das condições necessárias aos primeiros raciocínios lógico-matemáticos. Veremos, em detalhes, como se dá a passagem das ações sobre a experiência sensível, do final do período pré-operatório, às primeiras estruturações lógicas do real, no início do período operatório concreto. Em especial, detalharemos como as estruturas desse período darão condição para o surgimento dos esquemas conceituais e, com efeito, para o uso pleno da função proposicional no período operatório formal. No capítulo VIII de A formação do símbolo na criança, todo consagrado à passagem dos esquemas sensório-motores aos esquemas conceituais, Piaget analisa a progressiva e lenta constituição dos esquemas conceituais. Segundo ele (1975a, p.278), os esquemas conceituais se constituem a partir dos esquemas sensório-motores, não se dispensando, com isso, a importância da socialização e da linguagem, que são dimensões de sua interação com o meio, influenciando a construção de seu sistema de esquemas de ação. Nesse mesmo capítulo, em um parágrafo intitulado “Da inteligência sensório-motora à representação cognitiva”, diz-nos Piaget (1975a, p.304-5) que, para passarmos da inteligência sensório-motora ao pensamento conceitual, seriam necessárias, em resumo, as seguintes condições: PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 117 A) “[...] um sistema de operações que transponha as ações exteriores de sentido único para ações mentais móveis e reversíveis” (idem, p.305). Em outras palavras, que o sujeito seja capaz de realizar ações mentais e que, com isso, ele seja capaz de antecipar um ato, não atrelado, necessariamente, a um esquema sensório-motor em curso. Mais do que isso, que o sujeito seja capaz de, por meio de ações mentais, realizar uma ação reversível, de sentido contrário à ação inicial, isto é, de saber, por exemplo, que as partes compõem o todo e que o todo é composto pelas partes; B) “[...] uma coordenação interindividual das operações, que assegure, ao mesmo tempo, a reciprocidade geral dos pontos de vista e a correspondência do pormenor das operações e dos resultados respectivos”(ibidem, p.305). Consequentemente, que o sujeito seja capaz de utilizar-se de sistemas de signos verbais e que, reciprocamente, esses signos verbais permitam a comunicação entre os sujeitos, ou seja, a coordenação interindividual das operações realizadas pelos sujeitos. Segundo Piaget (1975b, p.282) o “[...] conceito anuncia o elemento característico de comunicação, porquanto são designados por fonemas verbais que os colocam em relação com a ação de outrem”. Em uma outra passagem, diz-nos ainda (1975b, p.282): “[...] o conceito supõe uma definição fixa, a qual corresponde, ela própria, a uma convenção estável que atribui sua significação ao signo verbal”. Por entendermos que ambas as condições são por demais complexas para serem tratadas no espaço deste livro, decidimos aprofundar nosso estudo, como dissemos na seção anterior, na condição descrita pelo termo A, isto é, a capacidade do sujeito de coordenar reversivelmente a parte e o todo. Em Tassinari (1998), encontramos elementos que nos ajudam a compreender melhor as estruturas subjacentes às primeiras coordenações reversíveis parte-todo tratadas por Piaget. Tassinari, nessa dissertação de mestrado, explicita-nos, na obra de Piaget, uma noção fundamental para compreendermos o momento crucial da passagem das ações sobre a experiência sensível (do período pré- 118 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI -operatório) às operações do operatório concreto: a noção de transfiguração. Essa noção foi proposta por Tassinari no contexto de sua orientação com a professora Zélia Ramozzi-Chiarottino. Na época, Ramozzi-Chiarottino respondia a uma crítica de Gilles-Gaston Granger a Piaget. Segundo Granger, haveria uma ruptura na obra de Jean Piaget, em particular na explicação da passagem da ação sobre a experiência sensível ao aparecimento (para a consciência) das estruturas lógico-matemáticas. Desse ponto de vista neo-empirista, a passagem do operatório ao formal é muito bem descrita por Piaget. Mas sempre nos pareceu que a ruptura decisiva com a experiência sensível realizada pelo aparecimento das estruturas lógico-matemáticas, que ele qualifica de formais, foi por ele minimizada. É que, para ele, o simbolismo é sempre apenas a notação ou o apoio de um comportamento, jamais um sistema de objetos interessantes em si mesmos e suscetíveis de reagir sobre o comportamento, em retorno. Língua natural ou signos matemáticos, tudo se passa aparentemente como se fossem apenas as codificações transparentes e neutras de uma atividade que somente preocuparia o psicólogo e o epistemólogo, cujo objeto é descrever a gênese de sua organização. (Granger, 1979, p.62, tradução nossa) Parece-nos que Granger busca apontar que Piaget não considera as formas puras das operações sobre signos realizadas pelos matemáticos como “um sistema de objetos interessantes em si mesmos”. Para Granger, Piaget considera que as operações sobre signos seriam apenas a “notação ou o apoio de um comportamento”, isto é, estariam atreladas a uma psicologia do sujeito e somente a ela. Nesse sentido, haveria uma ruptura entre o simbolismo que serve de notação, ou o apoio a um comportamento psicológico (de interesse a uma Psicologia e a uma Epistemologia), e o forma- PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 119 lismo das estruturas matemáticas que aparecem no jogo sobre signos realizado pelo matemático na construção da sua ciência. Ramozzi-Chiarottino, em resposta às críticas de Granger, diz que os textos de Piaget, de fato, permitem uma interpretação tal como feita por Granger. Mas também considera que uma outra é possível, com base nos escritos menores de Piaget sobre a imagem mental. Sua interpretação encontra-se nos textos: L’Image mentale et la question de la rupture de la raison (ou intelligence) avec l’expérience sensible e “Logique, Biologie et société dans le modèle piagetien de la connaissance”. Segundo Tassinari (1998, p.3) a interpretação de Ramozzi-Chiarottino “[...] explicita tal passagem, cujos principais resultados acabam por mostrar o papel da imagem na elaboração do sistema de operações; dentre eles [...] o de representante dos estados sobre os quais o sujeito opera”. Nesse caso, parece-nos que a ruptura apontada por Granger encontraria no sistema de operações sobre imagens mentais uma passagem gradual das ações sobre a experiência sensível ao aparecimento das estruturas lógico-matemáticas. Não nos interessa aqui, propriamente, retomar essa discussão sobre a qual, no nosso entender, são possíveis diversas visões. Interessa-nos sim, que essa questão levou a novas explicitações sobre o pensamento do autor, principalmente explicitações sobre a construção da capacidade operatória do sujeito, sobre a qual versa a dissertação de Tassinari, na qual encontramos a noção de transfiguração que utilizaremos neste trabalho e que nos ajudará a melhor compreender como o sujeito torna-se capaz de coordenar reversivelmente a parte e o todo. No que se refere a essa noção, segundo Tassinari, Uma transfiguração é uma ação virtual, reversível, realizável em pensamento (endogenamente) pelo sujeito, que permite comparar duas representações de objetos ou situações – tendo então a imagem mental o papel do símbolo que permite evocá-los – através da passagem de uma das representações (que chamaremos estado 1) a outra representação (estado 2), sem fundi-las em uma 120 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI representação imagética única, ou seja, tendo consciência de que se trata de dois objetos ou situações diferentes que são ligados pela própria ação que os compara. (Tassinari, 1998, p.6) O termo “transfiguração”, cunhado por Tassinari, permite-nos, segundo ele (1998, p.6-7), designar as ações interiorizadas pelo sujeito na forma de ações interiorizadas sobre imagens, em que “trans” significa “movimento para além de” e “figura” significa “imagem”. Assim, segundo essa noção de transfiguração, o que será determinante para a coordenação reversível parte-todo é a capacidade que o sujeito terá para pensar sobre imagens mentais. Segundo Piaget, Essa facilidade de pensar por imagens, juntamente com o parentesco estrutural que acabamos de notar entre as assimilações próprias ao símbolo lúdico e ao pré-conceito, leva-nos a inquirir se este não participa ainda do esquema imagístico mais que o conceito propriamente dito, o qual se destacará dele precisamente quando atingir o nível operatório. (Piaget, 1975a, p.292) A coordenação do esquema imagístico é marcante no período operatório concreto, no qual, como dissemos, surgem as primeiras coordenações reversíveis parte-todo. Porém, o papel das imagens mentais no pré-conceitual é diferente do papel das imagens mentais no operatório concreto, sobretudo no que se refere à aquisição mais aproximada do esquema conceitual. Segundo Piaget (1975a, p.310-1), no nível pré-conceitual, a imagem individual é predominante nos raciocínios. É marcante, nesse nível, como vimos, o raciocínio transdutivo. Tais raciocínios evidenciam estar centrados na existência de um indivíduo tipo, que como veremos a seguir, surge quando o sujeito elege uma imagem mental que serve de representante da coisa significada, mas não uma representação geral, como um conceito, mas ainda individualizada. PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 121 A título de exemplo, recorramos à observação 107 do capítulo VIII de A formação do símbolo na criança. Relata Piaget (1975a, p.289) que Jaqueline, sua filha, aos 2;6(3), ao caminhar no jardim, vê uma lesma e, alguns metros adiante, vê outra lesma, designando todas as lesmas que vê pelo termo “a lesma”. Porém, quando questionada por Piaget se é ou não a mesma lesma que ela vê durante o passeio, ela diz que é e não é; quando Piaget insiste na pergunta, ela não responde. [...] mais ou menos aos 2;6, designa pelo termo “a lesma” as lesmas que vamos ver, todos os dias de manhã, ao longo de certo caminho. Aos 2;7(2), exclama: “Olhe ela ali!”, quando vê uma; dez metros adiante, vemos outra e J. diz: “Outra vez a lesma.” Repondo: “Mas não é outra?” J. volta então para ver a primeira: “Então é a mesma?” – “É.” – “Outra lesma?” – “É.” – “Outra ou a mesma? – ...” É claro que a pergunta não tem sentido para J. (Idem, p.289) Constatações como essas nos indicam que Jaqueline ainda associa o termo “a lesma” a um único indivíduo tipo, o que nos leva a pensar que ela usa uma única imagem mental como símbolo para todas as lesmas que vê. Nesse sentido, ela não consegue, ainda, elaborar duas imagens mentais correspondentes a cada uma das lesmas que vê sem fundi-las uma na outra. Podemos concluir, então, que a criança, nesse período, não é capaz de executar transfiguração, como definida anteriormente. No entanto, quando a criança torna-se capaz de realizar transfigurações, ela torna-se capaz de representar cada uma das lesmas, separadamente, em imagens, sem fundir a representação da primeira lesma com a da segunda, fazendo-as corresponderem a situações distintas. Quando uma transfiguração se generaliza a situações semelhantes, tal que o sujeito passa a ser capaz de, voltando ao exemplo da lesma, identificar uma lesma a partir de outra e de aplicar essa identificação a situações semelhantes, não apenas em um jardim, 122 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI mas em sua casa, no quarto etc., então, diz Tassinari (1998, p.7), esse sujeito adquire um esquema de transfiguração. Nesse sentido, de modo análogo ao esquema de ação definido por Piaget, Tassinari (1998, p.7) define um esquema de transfiguração como “[...] o conjunto de qualidades gerais de uma transfiguração, ou seja, daquilo que permite repetir a mesma transfiguração ou de aplicá-la a novos conteúdos”. Tassinari (1998, p.8) busca justificar a validade experimental do conceito de transfiguração a partir dos dados e resultados experimentais e teóricos alcançados por Piaget e Barbel Inhelder na obra A imagem mental na criança. Dentre os tipos de imagens estabelecidos pelos autores da obra, Tassinari nos chama a atenção para o que Piaget designa de imagens antecipadoras. Diz-nos Tassinari (1998, p.8) que uma imagem antecipadora ocorre, segundo a concepção de Piaget, quando um modelo, que não é conhecido, é antecipado pelo próprio sujeito em imagens. Segundo Piaget (1990, p.62), ocorrem imagens antecipadoras quando, por exemplo, a criança consegue imaginar transformações de uma figura geométrica sem que ela tenha realizado essa transformação na experiência. Ora, se, nesse caso, a criança é capaz de realizar, em pensamento, com imagens, transformações de uma figura geométrica, então ela é capaz de construir e comparar uma imagem referente a uma situação anterior de uma determinada figura geométrica com a imagem atual dessa figura; ou seja, por definição, ela realiza uma transfiguração. Inversamente, se a criança é capaz de realizar transfiguração, então ela é capaz, por exemplo, de imaginar transformações de uma figura geométrica nos seus diferentes estados sem recorrer à experiência, ou seja, o sujeito possui imagens antecipadoras. Nesse sentido, Tassinari (1998, p.10) diz-nos que “[...] o sujeito será capaz de realizar transfiguração se, e somente se, conseguir construir imagens antecipadoras”. Assim, a transfiguração é condição necessária e suficiente às imagens antecipadoras (idem, p. 8). Sobre isso, nos diz: PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 123 [...] se a transfiguração é uma ação virtual que permite comparar duas representações de objetos ou situações sem fundi-los em uma representação imagética única, ela é condição necessária à antecipação de evocação; por outro lado, ela é condição suficiente na medida em que essa ação interiorizada permite a construção e comparação da nova imagem com a situação anterior, sendo que as características de distinção e identificação utilizadas na comparação são as mesmas usadas para a construção da nova imagem. Assim, há transfiguração se, e somente se, houver “antecipação de evocação” [imagens antecipadoras]. (Ibidem, p.8) Notemos, então, que os esquemas de transfiguração permitem ao sujeito agir sobre objetos no plano virtual das representações. A ação sobre imagens antecipadoras dá ao sujeito condições para realizar operações sobre elas. Nesse sentido, há uma relação intrínseca entre transfiguração e operação, a qual é explicitada por Tassinari. O autor (1998, p.10) procura sustentar a hipótese de que “[...] estas [operações] seriam schèmes [esquemas] de transfigurações ou resultaria da coordenação destes”. Para verificar a sua hipótese, Tassinari apresenta-nos sete razões sustentadas nos resultados experimentais de Piaget em A imagem mental na criança que não discutiremos aqui. Se assumirmos a hipótese de Tassinari de que as operações concretas seriam esquemas de transfigurações, então podemos compreender que as operações de classes e de relacionamento seriam, inicialmente, esquemas de transfigurações. Segundo Tassinari (1998, p.6), “a transfiguração é condição tanto das classes individuais (pois ela estabelece a individualidade estrita da representação dos objetos), quanto da representação precisa de uma transformação do real (já vivida ou não pela criança)”. Nesse sentido, a capacidade de fixar duas imagens sem fundi-las dá ao objeto representado uma identidade tal que o objeto representado seja um objeto determinado pelos outros objetos que lhe servem como comparação. 124 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI Ora, a existência de individualidade está diretamente relacionada à constituição das classes e vice-versa. O problema da ausência de individualidade e de classe geral, apontado por Piaget, é então solucionado, pois, segundo ele, [...] esses dois caracteres de ausência de identidade individual e de ausência de classe geral na realidade são um só: é à falta de classes de generalidade estável que os elementos individuais, não estando reunidos num todo real que os enquadre, participam diretamente uns dos outros sem individualidade permanente, e é à falta dessa individualidade das partes que o conjunto não pode ser construído como classe imbricante. (Piaget, 1975a, p.290) A possibilidade de comparar imagens e extrair dessa comparação uma propriedade ou um conceito, unindo os objetos pelo que há de comum entre eles e separando-os pelas suas diferenças, é, se assim o podemos dizer, o germe da constituição das operações de classes e de relacionamento. Diríamos, então, que a constituição de um esquema de transfiguração é condição da coordenação reversível parte-todo e, consequentemente, condição necessária do esquema conceitual e do uso da função proposicional pelo sujeito, nos casos concretos. Com efeito, voltando ao experimento das contas de madeira, podemos observar que, quando a criança se torna capaz de realizar transfiguração, ela se torna capaz de comparar os elementos da percepção atual com outros imaginados. Em específico, ela é capaz de passar de uma imagem mental (que, por exemplo, representa o conjunto das contas castanhas distribuído espacialmente) a outra imagem mental (que, por exemplo, representa o conjunto das contas de madeiras distribuído espacialmente) e comparar seus significados entre si sem que uma exclua a outra e sem fundi-las em uma única imagem, entendendo que se trata de duas coisas diferentes que são ligadas por essa própria ação endógena que as compara. Ao mesmo tempo, ela consegue coordenar parte e todo, pois as imagens mentais servem na comparação para que ela se lembre do todo (fixando-o em uma imagem mental) quando ela o compara PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 125 com as partes que o compõem (cada uma dessas partes está, também, associada às imagens mentais). Assim, se a criança pensa nas contas castanhas, ela as compara, com efeito, com as contas brancas, e, também, com o conjunto das contas de madeira, não se esquecendo de nenhuma delas no momento da comparação. Portanto, ela é capaz de, simplesmente operando com imagens mentais, fazer relações do tipo: “toda conta castanha é uma conta de madeira”, “nem toda conta de madeira é conta castanha” e “tanto a conta castanha quanto a conta branca são contas de madeira”. A Figura 1 explicita esses encaixes e relações de classes: Figura 1 Nessa figura, os círculos negros representam as contas castanhas e os círculos brancos representam as contas brancas. O quadrado do lado esquerdo representa quando a criança considera apenas as contas castanhas (círculos negros) e o do lado direito representa quando a criança considera todas as contas (as de madeira). As setas indicam as possíveis coordenações que ela é capaz de fazer com o uso de transfigurações.6 6. Tassinari (2011a) usa a estrutura matemática de dígrafo para interpretar os sistemas de esquemas de transfiguração. Segundo ele, os dígrafos parecem se relacionar de uma forma bem mais natural com os sistemas de esquemas de transfiguração e os propõe como uma única estrutura fundamental para a Lógica Operatória Concreta. No artigo “Sobre uma Estrutura Fundamental para a Lógica Operatória Concreta”, Tassinari expõe a forma lógico-matemática da estrutura matemática de dígrafo para os sistemas de esquemas de transfiguração e discute sua relação com o surgimento das operações concretas de 126 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI No caso da observação do corcunda, a criança capaz de usar o esquema de transfiguração é também capaz de comparar a imagem de um indivíduo corcunda e gripado com a imagem de um indivíduo corcunda e não gripado, de modo que tem condições de saber que são doenças distintas. Se percebe que as doenças são distintas, ela percebe, também, por comparação, que tanto o estado de ser corcunda quanto o de estar com gripe são duas dentre outras doenças. Desse modo, ela torna-se capaz de pôr sob uma mesma classe o que é semelhante (estar doente) e de separar, em classes distintas, o que é diferente (ser corcunda e estar gripado). Isso permite à criança compor e decompor classes segundo uma relação reversível de parte-todo, de modo que ela se torna capaz de saber que nenhum corcunda gripado, quando se cura da gripe, deixa de ser corcunda e continua sendo um doente. Assim, reconhece que nem todo doente é um corcunda. Surge, então, com os esquemas de transfiguração, a possibilidade de uma lógica das classes e de relações, condição, como vimos na seção 1 deste capítulo, das operações intraproposicionais da Lógica Operatória. Se existem conceitos, vistos também na seção 1 deste capítulo, existem compreensão e extensão de um conceito. E aqui se torna claro por que, apesar de podermos definir a compreensão e a extensão de um esquema de ação sensório-motor como análogas à de um esquema conceitual, elas se diferenciam, já que, no caso do esquema de ação, como vimos, na seção 2 deste capítulo, a criança não consegue conceber a extensão da sua ação, mas consegue se representar e compreender a extensão de um esquema conceitual. O esquema de transfiguração pode ser considerado, nesse sentido, como condição necessária para o surgimento das operações, marcando o surgimento do nível operatório concreto. Tassinari (1998, p.7) nos diz que “[...] as operações concretas são schèmes [esquemas] de transfiguração ou resultam da coordenação destes”. seriação e classificação, indicando como dela decorrem as estruturas de agrupamento e a estruturação lógica da realidade pelo sujeito epistêmico. PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 127 Assim, o nível operatório concreto tem como característica a possibilidade de o sujeito realizar ações internas sobre imagens mentais, permitindo-lhe operar logicamente sobre essas imagens. Para finalizar nossa análise, vejamos com mais detalhe o papel da imagem mental no sistema de esquema de transfiguração. Cada imagem mental tem um significado para o sujeito e, consequentemente, estabelece uma significação. Ora, se há significação, então, segundo Piaget, “[...] é preciso distinguir, em todo e qualquer dado mental, dois aspectos indissoluvelmente unidos, cuja relação constitui, precisamente, a significação: o significante e o significado” (Piaget, 1975b, p.185). De modo bem amplo, podemos dizer que o significante é o meio pelo qual se representa algo e o significado é o que é representado, que, nesse caso, é a própria imagem mental. No uso corrente da linguagem verbal, presente nos quadros sociais da vida adulta, essa distinção entre significante e significado é bem clara, pois, por exemplo, percebemos facilmente que “[...] o significante é o signo verbal, isto é, certo som articulado a que se convenciona atribuir um sentido definido; e o significado é o conceito em que consiste o sentido do signo verbal” (Piaget, 1975b, p.184). Temos também que, à medida que a criança é capaz de usar um significante para evocar um significado na ausência deste, ela torna-se capaz de diferenciar o significante de seu significado. Quando essa novidade surge na conduta da criança, Piaget fala de “função semiótica”. A função semiótica “[...] consiste numa diferenciação dos significantes (signos e símbolos) e dos significados (objetos ou acontecimentos, uns e outros esquemáticos ou conceitualizados” (Piaget, 2002, p.79). Um símbolo, segundo Piaget, é “[...] uma imagem evocada mentalmente ou um objeto material escolhido intencionalmente para designar uma classe de ações ou objetos” (1975b, p.185). Por exemplo, como vimos na seção anterior, a imagem da lesma simboliza todas as lesmas existentes. Já um signo, é “[...] um símbolo coletivo e por isso mesmo ‘arbitrário’” (idem, p.185), ou 128 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI seja, é a linguagem verbal construída e convencionada pela sociedade para uso coletivo. O aparecimento de ambos ocorre, em geral, durante o segundo ano de vida da criança e ambos são “[...] dois polos, individual e social, de uma mesma elaboração de significações” (ibidem, p.185) Notemos que o surgimento da função semiótica é também condição necessária para a passagem da ação sobre a experiência sensível às primeiras estruturações lógico-matemáticas da realidade, tendo o símbolo, em especial a imagem mental, papel decisivo nessa passagem, já que a imagem mental é condição imprescindível para o esquema de transfiguração e, por conseguinte, para a coordenação reversível parte-todo. A Figura 2 representa essa capacidade de operação (transfiguração) sobre símbolos (que em nosso caso são imagens mentais). Figura 2 Como está expresso na figura, cada símbolo pode ter um correspondente semântico na realidade. A criança passa a operar sobre objetos mediante a operação sobre símbolos. Dentre essas operações está a substituição simples introduzida na seção 2 deste capítulo: se ax1 significa, por exemplo, para o sujeito epistêmico, a proposição “x1 é de madeira”, ele pode substituir x1 por x2, x3 etc. (desde que estes sejam objetos que tenham a propriedade de ser de madeira), conservando o valor de veracidade das proposições resultantes dessa substituição. Nesse sentido, podemos entender mais precisamente as palavras de Piaget (1976, p.74): “Do ponto de vista PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 129 das operações reais do sujeito, quer dizer, do ponto de vista psicológico, a substituição simples corresponde a um mecanismo perfeitamente geral da ação e do pensamento, que é o da identificação dos objetos a um esquema de atividade”. Assim, o esquema de atividade não é mais apenas um esquema de ação sensório-motor (que é uma de suas condições), mas um esquema de uma atividade ampliada, um esquema conceitual, que possibilita à criança conceituar e classificar os objetos de sua realidade e, consequentemente, ser capaz de usar funções proposicionais relativas a elementos concretos dessa realidade. Logo, a operação sobre símbolos permite coordenar os esquemas conceituais. Neste ponto, podemos vislumbrar como a condição B introduzida no início desta seção (p.115), de “coordenação interindividual das operações”, a partir da utilização de sistemas de signos verbais sociais que permitem a comunicação entre os sujeitos, é importante na construção dos esquemas conceituais; mas, como já dissemos, não será analisada aqui. Notemos, na Figura 2, a representação dos dois aspectos do conhecimento: o aspecto figurativo e o operativo. Segundo Piaget, “sem dúvida, se chama ‘operativo’ (Df.) esse aspecto do conhecimento que é relativo às ações e às operações, e existe igualmente um aspecto ‘figurativo’, quer dizer (Df.) relativo às configurações sensíveis (por exemplo, à percepção e à imagem mental)” (Beth & Piaget, 1961, p.169, tradução nossa). Nesse período, as percepções e símbolos (incluindo a imagem) correspondem ao aspecto figurativo e as ações e transfigurações ao aspecto operativo do conhecimento. Sem entrarmos nos pormenores do período operatório formal ou hipotético-dedutivo, diremos apenas que, nesse caso, podemos considerar o diagrama da Figura 2 em relação não mais apenas a operações sobre símbolos, mas representando também operações sobre signos, possibilitando então um raciocínio hipotético-dedutivo geral, como o presente nas ciências e na Filosofia. Em especial, temos nesse período a possibilidade de consideração do simbolismo como requerido por Granger, na sua visão crítica do sistema de Piaget. 130 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI No caso de raciocínio sem imagem, o signo verbal servirá como o significante fixo sobre o qual se realizam operações sobre o real e o sujeito terá todas as condições para o uso da função proposicional que, como vimos, é definida por Piaget como um enunciado do seguinte modo: Definição 7. – Uma função proposicional ax é um enunciado nem verdadeiro nem falso, mas suscetível de adquirir um valor de verdade ou de falsidade segundo a determinação dos argumentos que substituem o argumento indeterminado x. (Piaget, 1976, p.45). É, portanto, no plano do enunciado verbal que a função proposicional é definida no Tratado e no Ensaio e, também, formalizada com toda a independência pelo lógico. Nesse nível, a linguagem passa a assumir papel crucial na realização das operações, que são operações realizadas basicamente sobre proposições e signos em geral e não propriamente sobre imagens mentais, que passarão a ter, progressivamente, apenas um caráter acessório ao signo verbal. Podemos observar, então, como, para Piaget, as estruturas elementares da Lógica, em especial a função proposicional, possuem uma correspondência com as “operações” do pensamento “natural” e como, segundo sua teoria, o sujeito epistêmico usa e se torna capaz de usar a função proposicional. É o que procuramos explicitar neste livro. CONSIDERAÇÕES FINAIS De espírito científico-filosófico, o pensamento piagetiano se constitui como um pensamento essencialmente inter e multidisciplinar. Diz-nos Piaget (1983b, p.88) que, para praticar a Epistemologia Genética, “[...] não basta ser psicólogo um pouco a par da filosofia e um pouco biólogo: é preciso ainda mais ser lógico, matemático, físico, cibernético e historiador de ciências, para só falar do essencial”. No entanto, em vista da má compreensão desse caráter essencial da Epistemologia Genética, é comum dizer que Piaget é simplesmente um “biólogo” que aplica conceitos da Biologia para compreender a cognição humana, ou que ele é apenas um “psicólogo” que estuda o desenvolvimento das crianças. Piaget recebe outras caracterizações, como “pedagogo”, pois teria se debruçado sobre questões de ensino e aprendizagem, área em que a sua teoria parece ser mais conhecida e aplicada. No meio filosófico, no qual há intelectuais que deveriam olhar com mais cautela os princípios dessa teoria, seu ofício por essência, encontramos afirmações de que Piaget é um “cientista” que desprezou o papel da Filosofia como conhecimento e que, portanto, sua teoria não é filosófica, mas científica. Já entre aqueles que o consideram filósofo, chamam-no, com vimos no capítulo 1, seção 1, de “positivista”, caracterização que mostramos não se justificar, pois o sujeito tem papel 132 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI central na sua teoria. Entre os lógicos, parcela dos intelectuais com quem Piaget teve mais dificuldade de diálogo durante sua vida, ele é acusado, como vimos, no mesmo capítulo, de “psicologista”, denominação que também vimos não se justificar, dado que Piaget, assim como Frege, sabe da importância de distinguir a questão de como chegamos ao conteúdo de um juízo (objeto da Psicologia) da questão de como se justifica uma asserção (objeto da Lógica). Por que a teoria piagetiana é tão malvista, principalmente entre filósofos e lógicos, sendo mais estudada, ao menos aqui no Brasil, em departamentos de Educação e de Psicologia, sendo raramente estudada em departamentos de Filosofia? No que concerne à receptividade da teoria piagetiana no meio acadêmico, em especial no meio filosófico, diz-nos Lourenço que Piaget [...] teve a pouca sorte de escrever numa época dominada pelo programa epistemológico da separação genético/normativo, descoberta/justificação do positivismo lógico que dificultou, em grande parte, o reconhecimento da sua visão de epistemologia, muito mais generosa, na filosofia. (2008a, p.247) Segundo essa visão, dominante na época, o conhecimento científico, centrado na descoberta/justificação, deve ser separado das questões puramente epistemológicas e filosóficas. Segundo essa visão, escreve M. Boden (1979 apud Lourenço, 2008a, p.247) que “[...] a psicologia teorética, empiricamente baseada, não é relevante para questões puramente epistemológicas e filosóficas”. Nesse sentido, talvez sob o véu da doutrina positivista, o pensamento piagetiano não tenha encontrado no meio acadêmico-filosófico brasileiro o espaço amplo de debates a que a teoria se propõe. Na visão de Ramozzi-Chiarottino,1 o pensamento piagetiano teve e tem pouca receptividade no meio acadêmico porque sua 1. Essa hipótese de Ramozzi-Chiarottino nos foi apresentada na ocasião da defesa da dissertação que serviu de base para o presente livro. PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 133 teoria chegou, ao menos aqui no Brasil, pela via da Psicopedagogia. Segundo ela, os psicopedagogos, de forma geral, com uma visão de cunho ingênuo e não epistemológico, aplicaram a teoria de Piaget, necessariamente, à Pedagogia e a uma Psicologia de um empirismo ingênuo, muito embora o próprio Piaget diga, como vimos e é ressaltado por Ramozzi-Chiarottino, em Biologia e conhecimento, que seu trabalho não consistiu apenas em identificar condutas observáveis, mas sim em captar indícios de transformações sucessivas na construção do próprio funcionamento das estruturas mentais do sujeito epistêmico, cujos “sintomas” se refletem nas ações que visam ao conhecimento do mundo, seja na vida infantil, seja na adolescência, seja na vida adulta. Somado a isso, notemos que a crescente fragmentação do conhecimento talvez seja um outro fator que limita a visão dos estudiosos no sentido de que é possível articular as especialidades para uma compreensão mais ampla do conhecimento humano. Ora, embora as diversas especialidades tenham princípios, métodos e objetos de investigação distintos, com planos de análises diferentes, cada uma delas pode trazer contribuições fundamentais acerca de temas comuns. A Epistemologia Genética nos ensina que é possível, muito proveitoso para o conhecimento, uma coordenação entre os domínios de investigação, sem que isso implique confusões de planos de análises (como um psicologismo em Lógica) ou de questões de fato com questões de princípio. Essa noção de coordenação entre os domínios, preservando-se os planos de análises, parece-nos muito atual, principalmente em face da fragmentação que vive o conhecimento. Piaget encontrou no Centro Internacional de Epistemologia Genética uma fecunda integração e continuidade entre os domínios científico e filosófico, com interlocuções e debates profícuos, apesar das barreiras de linguagens especializadas presentes nas diversas áreas. Essa característica interdisciplinar é marcante no pensamento piagetiano e encontra repercussões em diversas áreas do conhecimento, não apenas na Educação, área na qual sua teoria ficou mais conhecida, mas essencialmente na Filosofia e nas ciências, como a Biologia, 134 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI Psicologia, Física, Química etc; com contribuições inclusive para temas interdisciplinares, como os relacionados à noção de auto-organização, citado na nota 9 da seção 1 do capítulo 1. No artigo de Debrun “A ideia de auto-organização”, por exemplo, encontramos uma passagem que traduz bem a importância da teoria de Piaget para a compreensão dos processos auto-organizados. A passagem está na seção em que Debrun se refere aos processos auto-organizados que ocorrem nos organismos, como um caso do que ele chama de “auto-organização secundária”. No âmbito da auto-organização secundária, as estruturas do organismo se constituem em um nível de alta complexidade que emerge de seus próprios processos, considerados criativos e construtivos, não sendo, pois, segundo Debrun, estruturas inatas. Nesse contexto, escreve ele: “Só que, nesse caso (se considerarmos as estruturas como dadas), temos ou teríamos que abandonar a ideia de auto-organização, cujos arautos – Piaget (1979) em particular – destacam o caráter criativo ou construtivo” (Debrun, 1996, p.11, grifo nosso). Do ponto de vista metodológico, a coordenação entre os domínios proposta pela Epistemologia Genética parece-nos ficar mais clara. Como vimos na seção 1 do capítulo 1 com a análise de casos da Psicologia no que concerne às questões de fato sobre o conhecimento humano, os estudos de Epistemologia deixam, por um lado, o isolamento das idéias metafísicas da Filosofia para assumirem uma perspectiva com certo controle. Por outro lado, a partir dos resultados da Psicologia Genética, o epistemólogo genético tem embasamento científico para se posicionar diante das questões de princípio da Filosofia, podendo trazer contribuições às questões clássicas da Epistemologia e da Teoria do Conhecimento. Notemos, também, como vimos no mesmo capítulo, que a Psicologia Genética é a ciência que estabelece uma “ponte” entre os conhecimentos da Biologia e da Epistemologia Genética. Nesse sentido, a Epistemologia Genética é caracteriza pelo próprio Piaget como “epistemologia biológica”. PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 135 Assim, embora à Epistemologia Genética pertença um tratamento empírico, ela não deixa de ser filosófica. Como vimos na Introdução, com a análise etimológica da expressão, em face de nossa exposição até aqui e se assumirmos as caracterizações de Lalande, podemos dizer, então, que a Epistemologia Genética é, ao mesmo tempo, Epistemologia e Teoria do Conhecimento e que as questões centrais de sua obra são fundamentalmente epistemológicas e de Teoria do Conhecimento e não exclusivamente psicológicas ou científicas. Notemos, também, que, na coordenação entre Filosofia e ciência, é notável a distinção entre questões de fato e questões de princípio. As questões de fato, testáveis empiricamente, contribuem, no caso da Psicologia Genética, para a constituição dos modelos científicos de explicação psicológica da cognição humana. Subsidiado pelas constatações científicas da Psicologia, Piaget se sente “mais à vontade” para se posicionar diante dos princípios de uma filosofia, conjecturando reflexões heurísticas no cenário dos debates cultivados na tradição filosófica. Um dos resultados, nesse sentido, foi que Piaget constatou que a Lógica não se origina das estruturas da língua, mas que ela tem suas raízes nas ações sensório-motoras, pois, como pudemos notar no estudo que fizemos, aqui, da função proposicional, os esquemas de ação e as imagens mentais têm um papel preponderante em seu processo de formação. A própria questão colocada pela Epistemologia Genética traduz a intenção de Piaget de constituir, também, uma “Epistemologia científica”, motivada, como vimos, pelos métodos da Psicologia Genética. Piaget não se pergunta “o que é o conhecimento?”, por exemplo, o que implicaria mais uma conceituação do conhecimento que propriamente uma questão de fato, mas a questão de “como aumentam os (e não o) conhecimentos?”. A pergunta sobre o “como” envolve uma pergunta sobre o processo, e isso não é necessariamente uma posição de princípio, mas uma questão que pode ser levada à empiria. 136 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI De modo semelhante, a questão central de nosso livro, “como o sujeito epistêmico usa e se torna capaz de usar funções proposicionais?” é, também, uma questão de fato e não, apenas, de princípio. E a questão ganha um caráter propriamente filosófico na medida em que pressupõe um conjunto de questões de princípio, como as questões discutidas principalmente no capítulo 2 (Qual é o objeto e a definição de Lógica? O que quer dizer psicologismo em Lógica e o que significa, na perspectiva da Epistemologia Genética, dizer que é possível uma certa relação ou coordenação entre Lógica e Psicologia sem que isso implique um psicologismo?) Em particular, vimos como a função proposicional, uma das noções centrais da Lógica Moderna, estudada com toda a autonomia pelo lógico, coordena-se com as (ou corresponde às) estruturas do sujeito epistêmico. Vimos que a função proposicional tem um equivalente psicológico na realidade, o esquema de identificação conceitual, sobre o qual nos debruçamos no capítulo 3, seção 1, e buscamos sua gênese. Elementos da teoria piagetiana nos levam à constatação de que o uso da função proposicional está funcionalmente presente em todos os níveis do desenvolvimento humano, desde a constituição dos primeiros esquemas conceituais às estruturas mais abstratas. Já o acabamento estrutural, finda-se ao longo de um processo, no nível que Piaget chama de operatório formal ou hipotético-dedutivo, em média, dos 11-12 anos em diante. Nesse nível, a linguagem passa a assumir papel crucial na realização das operações (por isso, as chamamos de hipotético-dedutivas), que são operações realizadas basicamente sobre proposições e signos em geral e não propriamente sobre imagens mentais, que passarão a ter, progressivamente, um caráter acessório ao signo verbal. É notável a importância de uma investigação da gênese da função proposicional para o conhecimento da origem e construção do conceito no ser humano, tanto do ponto de vista psicogenético quanto do ponto de vista histórico-crítico. Sabemos que o conceito é um dos elementos centrais na condução do homem às mais elevadas abstrações nos domínios científicos e filosóficos. Análogo a PIAGET E A PREDICAÇÃO UNIVERSAL 137 um esquema de ação, o conceito é uma generalização que permite ao homem não se limitar aos casos particulares, e sim alçar voos no plano das generalizações e, por conseguinte, realizar abstrações, onde são possíveis as ciências e a Filosofia. Assim, um estudo da gênese da função proposicional pode se constituir em um dos estudos centrais no sentido de buscar os fundamentos de nosso conhecimento. Sendo nossa pergunta pelo uso e pelas condições de uso das funções proposicionais que tornam possível a estruturação lógico-matemática pelo sujeito epistêmico de sua realidade um tanto ampla para uma investigação de gênese, centramos nossa investigação no início das operações lógicas realizadas pelo sujeito, propriamente no nível que Piaget chama de período operatório concreto, em média, entre 7 a 10 anos, marco considerado crucial na construção das operações. Procurando captar o momento mais preciso dessa passagem, recorremos à noção de esquema de transfiguração, apresentada e discutida no capítulo 3, seção 2. Os esquemas de transfiguração mostram-nos o quanto é importante a imagem mental para a criança no final do período pré-operatório e o início do período operatório concreto. Essa noção mostra-nos, em detalhes, como ocorre a passagem das ações sobre a experiência sensível à estruturação lógico-matemática da realidade. Em especial, esforçamo-nos para explicar como surgem os esquemas conceituais a partir do esquema de transfiguração, pois, como afirma Piaget, no Ensaio, o esquema conceitual é o equivalente psicológico da função proposicional. Nesse sentido, explicar como surge a função proposicional, condição das operações de relacionamento e classificação, é mostrar um caso de como é possível, de um modo mais amplo, uma coordenação entre Lógica e Psicologia. Isso implica dizer, também, que as estruturas lógicas, na perspectiva da teoria piagetiana, estão “encarnadas” em um sujeito. Podemos entender, desse modo, que tanto o sujeito psicológico quanto o sujeito epistêmico são dimensões de um mesmo sujeito: o sujeito-organismo. Como vimos no capítulo 1, seção 1, a inteli- 138 RAFAEL DOS REIS FERREIRA • RICARDO PEREIRA TASSINARI gência é um caso especial de adaptação biológica. Ela estrutura a realidade, assim como o organismo estrutura o meio. Isso implica dizer que há uma continuidade profunda entre natureza e homem, entre Biologia e Epistemologia, entre conteúdo e forma, e entre Psicologia e Lógica. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APOSTEL, L., MAYS, W., MORF, A., PIAGET, J. Les liaisons analytiques et synthétiques dans les comportements du sujet. Paris: Presses Universitaires de France, 1957. BERGSON, H. A evolução criadora. São Paulo: Abril Cultural, 1979. BETH, E. W., PIAGET, J. Épistemologie Mathématique et Psychologie: essai sur les relations entre la Logique Formelle et la pensée réelle. Paris: Presses Universitaires de France, 1961. BLANCHÉ, R. História da Lógica. Lisboa: Edições 70, 1996. BOCHENSKI, I. M. História de la Lógica Formal. Madri: Gredos, 1966. DEBRUN, M. A ideia de auto-organização. 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