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O antigo estado de coisas

História Revista

No início do século XIX, quartéis instalados às margens do recém ampliado caminho que ligava o porto de Itapemirim a região das Minas tentavam garantir a segurança dos fazendeiros e poucos aventureiros que ousavam atravessar a região dominada pelos índios Puri. O receio justificava-se pelo fato de que na Vila de Nova Benevente um grupo de indígenas havia assassinado o capitão-mor Francisco Xavier Pinto Saraiva, em 1833, dirigindo-se, em seguida, para a Vila de Piúma, de onde continuaram representando uma ameaça aos moradores da região. Entre Itapemirim e Muribeca os conflitos entre colonos e os índios Puri, mas também Botocudo, causavam mais e mais vítimas. Tentar compreender o porquê das animosidades entre índios e colonos estarem tão exaltadas no sul da Província do Espírito Santo naquela primeira metade do século XIX é o desafio que propomos neste artigo, mediante a análise de algumas petições, relatórios e documentos que expressam as tensões vividas naquela região desde o períod...

DOI: hr.v24i1.46582 ARTIGOS O ANTIGO ESTADO DE COISAS: APONTAMENTOS PARA A HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS NO SUL DA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO THE OLD STATE OF THINGS: APPOINTMENTS FOR THE HISTORY OF THE INDIGENOUS PEOPLES IN THE SOUTH OF THE PROVINCE OF ESPÍRITO SANTO Julio Bentivoglio juliobentivoglio@gmail.com RESUMO: No início do século XIX, quartéis instalados às margens do recém ampliado caminho que ligava o porto de Itapemirim a região das Minas tentava garantir a segurança dos fazendeiros e poucos aventureiros que ousavam atravessar a região dominada pelos índios Puri. O receio justificava‐se pelo fato de que na Vila de Nova Benevente um grupo de indígenas havia assassinado o capitão‐mor Francisco Xavier Pinto Saraiva, em 1833, dirigindo‐se, em seguida, para a Vila de Piúma, de onde continuaram representando uma ameaça aos demais moradores da região. Entre Itapemirim e Muribeca os conflitos entre colonos e os índios Puri e Botocudo causavam mais e mais vítimas. Tentar compreender o porquê das animosidades entre índios e colonos estarem tão exaltadas no sul da Província do Espírito Santo naquela primeira metade do século XIX é o desafio que propomos neste artigo, mediante a análise de algumas petições, relatórios e documentos que expressam as tensões vividas naquela região desde o período colonial, verificando seu conteúdo e sua relação com a história indígena do Espírito Santo. PALAVRAS‐CHAVE: Índios, Sul do Espírito Santo, Conflitos, Aldeamentos. ABSTRACT: At the beginning of the 19th century, quarters are installed on the banks of the recently enlarged road linking the port of Itapemirim to the Minas region tried to ensure the safety of the farmers and few adventurers who dared to cross the region dominated by the Puri Indians. The fear was justified by the fact that in Vila de Nova Benevente a group of Indians had assassinated the captain‐general Francisco Xavier Pinto Saraiva in 1833, and then went to the village of Piúma, where they continued to represent a threat to the region's residents. Between Itapemirim and Muribeca the conflicts between settlers and the Puri Indians, but also Botocudo, caused more and more victims. Trying to understand why the animosities between Indians and settlers were so exalted in the southern province of Espírito Santo in the first half of the nineteenth century is the challenge we propose in this article, through an analysis of some petitions, documents and expressions about the tensions experienced in that region since the colonial period, verifying its content and its relation with an indigenous history of Espirito Santo. KEYWORDS: Indians, South of Espírito Santo, Riots, Aldeamentos. Introdução Em 1833, amotinados em Piúma após assassinarem o capitão‐mor da vila – Francisco Xavier Pinto Saraiva – os moradores de Nova Benavente,1 em sua grande maioria índios, ameaçaram realizar novos ataques a antiga aldeia jesuítica de Iriritiba exigindo o restabelecimento do que denominavam de “o antigo estado de coisas” (APEES. Série 751,  Doutor em História. Professor no PPGHIS/PPGG da Universidade Federal do Espírito Santo. Na maior parte dos documentos do período colonial a localidade é denominada Benavente, no entanto, a partir do século XIX fixou‐se a grafia de Benevente. 1 Hist. R., Goiânia, v. 24, n. 1, p. 186-205, jan./abr. 2019 Recebido em 22 de novembro de 2018 Aprovado em 12 de janeiro de 2019 187 ARTIGOS Livro 163 A, 1/4/1834, p. 57 apud MOREIRA, 2009, p. 241). Para Vânia Maria Losada Moreira (2009) naquela reivindicação aqueles índios se referiam a um período anterior à expulsão dos jesuítas quando, apesar dos abusos dos inacianos denunciados pelos índios em documentos como o Auto da Devassa contra os jesuítas do Espírito Santo que ocorreu no ano de 1761, tiveram assegurados seus direitos sobre as terras do aldeamento. Além disso, antes da expulsão, os indígenas estiveram sob a proteção daquela ordem, que se recusava a ceder índios para muitos dos costumeiros recrutamentos para funções civis e militares, que se tornariam sistemáticos depois (LEITE, 1938‐1950). No mesmo período, nas terras ao sul de Benevente integrantes das etnias Puri e Botocudo reagiam aos sequestros, inclusive de crianças, que vinham sendo realizados por colonos estabelecidos na região entre os rios Itabapoana e Itapemirim e a fixação de sertanistas como os liderados por Manoel José Esteves de Lima que tentavam colonizar as margens do caminho que ligava o porto de Itapemirim à região das Minas Gerais, o qual havia sido ampliado no início do século XIX. Ambas as ações surgiam mediante novas alianças entre colonos e alguns aliados índios que tinham por finalidade assegurar o controle daquelas terras, que até aquele momento eram dominadas pelos grupos Puri, Tupiniquim, Coroado e Botocudo que ali viviam. Se esses Puri e Botocudo tivessem deixado registradas suas reivindicações, o que anotariam? Será que eles também desejavam o retorno ao passado? Em caso positivo, o que seria o restabelecimento de um antigo estado das coisas para aqueles povos? Quais seriam as diferenças entre os motivos e horizontes desejados pelo gentio bárbaro – tal como lhe assinalavam os documentos – que vivia entre Itapemirim e Muribeca e os índios de Benevente que se apresentavam às autoridades como súditos reais?2 Como viviam esses diferentes indivíduos às vésperas do século XIX e o que teria mudado a partir de então? Esse artigo busca analisar as relações estabelecidas no sul do Espírito Santo, na transição do período colonial para o início do Brasil Império, entre colonos e índios, ilustrando o processo complexo de construção de identidades, abalada pela chegada do 2 Entre as diferentes categorizações dos índios no século XIX Cunha (1992) destaca‐se a divisão em “bravos” e “domésticos ou mansos” e ainda em Tupi‐guarani de um lado e Botocudo de outro. Nós, no entanto, utilizaremos a definição idealizada pelos grupos que habitavam Benevente e seus arredores que na Petição enviada a Rainha de Portugal em 1795 se denominaram índios vassalos enquanto as demais tribos eram tratadas como gentio bárbaro (MATTOS, 2016). Júlio Bentivoglio.O ANTIGO ESTADO DE COISAS 188 ARTIGOS colonizador responsável pelo surgimento de uma fronteira cultural estabelecida entre índios vassalos e gentios bárbaros que, muitas vezes, colocou em lados opostos, índios que antes integravam um mesmo povo, da mesma etnia. Com esse intento nos debruçaremos sobre relatos de autoridades eclesiásticas como o bispo D. José Caetano da Silva Coutinho e de viajantes europeus como o príncipe Maximiliano de Wied Neuwied e Auguste de Saint Hilaire que percorreram a região nas primeiras décadas do século XIX. Utilizaremos ainda alguns Relatórios dos Presidentes da Província do Espírito Santo e ofícios reunidos no livro do Registro de correspondência relativa a colonização e catequese 1848 – 1860, todos eles acessíveis no Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (APES). Em outro documento, mais especificamente uma petição encaminhada no ano de 1795 pelos índios de Benevente para a Rainha de Portugal, teremos acesso ao depoimento daqueles autóctones, autodenominados índios vassalos, acerca de suas relações com os colonos e com os grupos autóctones independentes, por eles denominados gentios bárbaros. A ocupação dinâmica de um território em constante disputa Entre as inúmeras hipóteses quanto à data da migração e as fontes populacionais que habitaram o Sudeste brasileiro, Warren Dean (1996) acredita que o declínio dos grandes animais de caça no cerrado levou os grupos humanos que viviam naquele bioma a migrarem há aproximadamente 11 mil anos para as regiões cobertas pela Mata Atlântica. Seguindo o curso dos rios, alguns grupos chegaram às regiões litorâneas onde se depararam com uma variedade de ambientes ricos em proteínas e nutrientes, passando a sobreviver, sobretudo da pesca e da coleta (Cf. DEAN, 1996). Entre esses grupos, acabaram por se destacar os chamados sambaquieiros, indivíduos que viviam da coleta e consumo de crustáceos e mariscos. Esse tipo de cultura, comum em todo o litoral brasileiro, conheceu, ao longo dos séculos subseqüentes, a chegada de novas levas migratórias nas quais se introduziram novos povos pertencentes aos grupos Macro‐Jê e Tupi‐guarani. Assim, quando os europeus começaram a perscrutar o litoral da capitania do Espírito Santo a partir do início do século XVI sucessivos agrupamentos humanos já haviam ocupado com ou sem conflitos, alojando‐se ou sendo desalojados naquele território, como Hist. R., Goiânia, v. 24, n. 1, p. 186-205, jan./abr. 2019 189 ARTIGOS relatou o senhor de engenho, comerciante e cronista Gabriel Soares de Sousa acerca dos Papanase: Este gentio – os papanases ‐, como fica dito, viveu ao longo do mar entre a capitania de Porto Seguro e a do Espírito Santo, donde foi lançado, pelos tupiniquins, seus contrários, e pelos goitacases, que também o eram, e são hoje, seus inimigos, e uns e outros lhe fizeram tão cruel guerra que os fizeram sair para o sertão, onde agora têm sua vivenda, cuja linguagem entendem os tupiniquins e goitacases (SOUSA, 1851, p. 96). Relatos como o de Sousa corroboram para a tese defendida por autores como Hetzel, Negreiros e Magalhães (2007) que afirmam que a expansão dos povos do tronco linguístico Tupi, provenientes da Amazônia, sobre o litoral brasileiro, por volta do ano 1000, não conseguiu desalojar por completo os Goitacá do grupo Macro‐Jê que ainda ocupavam uma extensa faixa de terra que ia do rio Cricaré, norte do Espírito Santo atual, até o atual município carioca de Cabo Frio. No entanto, citações de José de Anchieta como no auto Na Aldeia de Guaraparim denominavam como Temiminó os povos Tupi que habitavam o sul capixaba (ANCHIETA, 2006, p. 181), e escavações arqueológicas recentes que localizaram sítios Tupi muito próximos ao litoral nos municípios capixabas de Anchieta, Piúma e Presidente Keneddy (SOUZA, 2010; RIBEIRO, JÁCOME, 2014) apontam para um quadro ainda mais complexo, no qual tribos Temiminó, Tupiniquim e Goitacá conviviam muito próximas umas das outras em constantes conflitos ou acomodações. No interior do atual território do Espírito Santo, apesar da escassez de registros, muitos indícios apontam para a existência numerosa de outras etnias Macro‐Jê como Puri e Coroado, além dos grupos genericamente denominados Botocudo, mais próximos à região central, mas também, em menor número, na porção sul, como podemos observar na figura 1. Júlio Bentivoglio.O ANTIGO ESTADO DE COISAS 190 ARTIGOS Figura 1 ‐ Localização dos povos indígenas no Espírito Santo. Fonte: BENTIVOGLIO, 2017, p. 09. Com a chegada de novos grupos humanos, agora europeus, a partir do século XVI, aquelas etnias reagiram de múltiplas formas. Na região central e sul algumas tribos compostas por Tupiniquim e Goitacá optaram pelo embate direto com o novo forasteiro, alguns grupos autóctones inclusive estabeleceram uma aliança pontual que redundou no assassinato de inúmeros colonos, entre eles D. Jorge de Menezes e D. Simão de Castelo Branco que administraram, sucessivamente, a capitania em substituição ao capitão donatário Vasco Fernandes Coutinho que, desde o final da década de 1540 viajou para Portugal em busca de recursos (SOUSA, 1851). Outros grupos, por seu turno, selaram alianças esporádicas com os portugueses, como os liderados pelo cacique Goitacá Jupi‐Açu, reverenciado por José Teixeira de Oliveira como um dos grandes responsáveis pela derrota dos ingleses que liderados pelo corsário inglês Thomas Cavendish tentaram invadir a Vila de Vitória no final do século XVI (OLIVEIRA, 2008). No sul, após os embates iniciais, alguns Goitacá diante dos violentos ataques ordenados por Mem de Sá, que desejava vingar‐se da morte de seu filho Fernão de Sá ocorrida nas imediações do rio Cricaré, e que vinham Hist. R., Goiânia, v. 24, n. 1, p. 186-205, jan./abr. 2019 191 ARTIGOS acarretando sérios problemas aos povos do litoral capixaba, decidiram se refugiar no aldeamento jesuítico de Iriritiba, por entenderem que, naquele momento, esse seria um mal menor, bem como uma forma de se protegerem das violentas e constantes investidas dos colonizadores em busca de terras (ALMEIDA, 2003). Cientes da importância do apoio indígena naquele contexto, inclusive demograficamente desfavorável, alguns colonos portugueses, desde o início da colonização, optaram por estabelecer vínculos amistosos com os povos autóctones cedendo‐lhes algumas vantagens. Nesse sentido, foi emblemática a aliança estabelecida com os Temiminó da tribo liderada por Maracajaguaçu. Vivendo na atual Ilha do Governador na Baía da Guanabara (DAEMON, 1879), os índios liderados por Gato Grande estavam em sérios apuros no conflito contra os Tamoio, dessa vez apoiados pelos franceses que pretendiam estabelecer uma colônia na região. Diante de uma eminente derrota, a tribo de Maracajaguaçu estabeleceu, por intermédio dos padres Luiz de Grã e Brás Lourenço, um acordo com o donatário Vasco Fernandes Coutinho que os transportou em quatro navios para o Espírito Santo onde fundaram o primeiro aldeamento da capitania, a Aldeia de Nossa Senhora da Conceição localizada a doze léguas da Vila de Vitória.3 Em pouco tempo assumiram papel preponderante no projeto colonizador português nessa capitania, seja na luta contra outras nações indígenas, como os Goitacá e os Tupiniquim, seja na defesa do território contra as investidas de outros povos europeus. O sucesso desta aliança acabou atraindo outras tribos, como os Guará, que tinham como cacique o Guarauçú (Lobo ou Cão Grande), irmão de sangue de Maracajaguaçu, que se fixaram em Guarapari no final da década de 1550 (LEITE, 1938, p.78) e que, junto com grupos Tupiniquim que habitavam a região próxima ao rio Mucuri na divisa entre os atuais estados da Bahia e do Espírito Santo (Cf. DAEMON, 1879), constituíram o primeiro aldeamento no sul do Espírito Santo. Provavelmente, em 1580, José de Anchieta, então morador na capitania, fundou oficialmente esse aldeamento com a assistência regular de missionários. Tal núcleo foi ganhando expressão e, em 1679, o donatário Francisco Gil de Araújo elevou essa aldeia à categoria de vila, denominada Vila de Guarapari. 3 Não há consenso entre os historiadores quanto a localização precisa do aldeamento de Nossa Senhora da Conceição. Daemon (1879), por exemplo, localizou‐o em Santa Cruz, Oliveira (2008) no município da Serra, enquanto que Carvalho (1982) sugeriu que ficava na Ilha de Santo Antônio, no atual município de Vitória. Júlio Bentivoglio.O ANTIGO ESTADO DE COISAS 192 ARTIGOS Como se vê, aldeamentos missonários como os de Guarapari e Iriritiba constituem experiências singulares, cuja formação inicial é independente de quaisquer orientações vindas de Roma, construídas em torno das dinâmicas sociais e culturais dos antigos habitantes da própria América Portuguesa (POMPA, 2003). Aqueles espaços traziam desde sua formulação até seu funcionamento, uma série de características, práticas e condutas que confirmariam as hipóteses que os definem, não apenas como lugares de destruição das culturas nativas, mas, sobretudo, como territórios nos quais os diferentes grupos que ali se estabeleceram executavam estratégias e táticas, tendo ou obtendo instrumentais necessários para se adaptar, resistindo ou acomodando‐se, ao europeu4. Assim, todos os atores envolvidos ao longo da empresa colonizadora estavam, conforme palavras de Maria Regina Celestino de Almeida, “em busca dos seus próprios interesses, ‘transformando‐se, portanto, mais do que foram transformados’” (ALMEIDA, 2003, p. 136). Como exemplo dessa capacidade de se transformar, apresentamos um fato ocorrido no final do século XVIII na principal das aldeias jesuíticas estabelecidas pelos inacianos no sul da capitania do Espírito Santo. Em 1795, quando a aldeia de Iriritiba já havia sido elevada à vila e rebatizada com o nome português de Vila Nova de Benavente, os moradores do termo de Iriri, protocolaram um requerimento na câmara local denunciando a sistemática usurpação de suas terras por parte de portugueses e “pardos” (MOREIRA, 2014, p. 319). Encaminhada às autoridades da capitania a solicitação foi arquivada o que motivou os índios de Benevente a enviarem procuradores à Bahia, onde a recepção foi idêntica. Resolveram então enviar procuradores, dois irmãos índios, Antonio da Silva e Francisco Dias, a Lisboa onde, depois de uma série de percalços, conseguiram apresentar um requerimento a D. Maria I, rainha de Portugal. No documento os índios, apresentando‐se como vassalos, invocaram sua condição de súditos e pagadores de impostos para suplicarem à rainha que lhes favorecesse distribuindo justiça Soberana Senhora, Aos Reais pés de Vossa Majestade se portam os Índios e mais moradores da Vila Nova de Benavente da Comarca do Espírito Santo, pedindo a Vossa Real Majestade que como lhe é comum, tenha por bem, por os seus reais olhos nestes seus pobres vassalos, pois esperam que Vossa Real Majestade lhes favoreça e lhes distribua justiça na forma que os 4 No século XIX ainda restavam quatro aldeamentos indígenas, que eram dotados de verba e corpo administrativo pelo governo provincial: Mutum, Afonsino, Santa Cruz e Piúma, cuja documentação encontra‐se ainda inexplorada junto ao acervo do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Hist. R., Goiânia, v. 24, n. 1, p. 186-205, jan./abr. 2019 193 ARTIGOS vassalos de Vossa Real Majestade o requerem que é o seguinte: somos moradores próximos da mesma Vila de Benavente, dentro dos marcos da mesma Vila, de o lugar chamado Maymba, que compreende desde o mesmo lugar até o mesmo do Iriri, mais de sete léguas de terra; todas estas se acham cheias de sítios em que moram mais de 400 pessoas, tanto casados com casas de vivenda, família, agricultura, plantações, de legumes, serrarias e de que pagam de tudo o direito a Vossa Real Majestade e, há também muitas pessoas solteiras que nas mesmas terras trabalham e pagam também os mesmos direitos naqueles lugares e, dentro das ditas sete léguas que de uma parte a outra tem de circunferência; estão de posse os mesmos moradores, pacificamente, há mais de 40 anos por ali e sem ante possuidores, sem serem estorvados nem impedidos de portugueses alguns porque naquele tempo se não consentia por ali aforarem as terras dos Índios conforme os Decretos das Majestades em que mandavam que as terras dos Índios não se aforavam a Portugueses (apud MATTOS, 2009, p. 27‐28). Mostrando‐se conhecedores de seus deveres e direitos, uma vez que “já não são mais gentios, mas sim observadores da verdadeira religião da Igreja Romana”, denunciavam o conluio das autoridades locais e os invasores de suas terras agora se tem introduzido tanta avição nos portugueses tanto brancos e pardos e de outras nações por haverem aforado a Câmara da mesma Benavente, terras por mandado de um Domingos Pereira Portela que é Governador dos Direitos do Índios por consentimento; outrossim do ouvidor que agora serve e é chamado José Pinto Ribeiro, que tem os mesmos Portugueses tomado posse à terra dos mesmos Índios e não tem mais onde possam trabalhar para o sustento de suas famílias por os ditos portugueses lhes terem tomado com medições feitas com dolo e malícia, fincando marcos e entrando por partes que impedem os Índios a não prosseguirem adiante por estarem impedidos dos ditos Portugueses, por estarem estes estabelecendo sítios para erigir fazendas e engenhos de fábricas de açúcar assim que nunca se praticou naqueles lugares só a fim de quererem perturbarem os ditos Índios que há tantos anos estavam na sua tranqüilidade e sossego, como também (apud MOREIRA, 2014, p. 39). O que aconteceu em Iriritiba foi semelhante ao ocorrido em outras zonas de povoamento mais antigo, em que a estratégia era restringir o acesso de libertos, índios, negros e brancos pobres à propriedade fundiária convertendo‐os em prestadores de serviços (CUNHA, 1992), que passavam a viver em condições deploráveis estamos expostos para tudo quanto é do serviço de Sua Real Majestade, já serrando madeiras pelos sertões para carretas daquelas da guarnição e dos serviços das suas Fortalezas, prontos para os destacamentos de entrar nos sertões chamados Icoanha e Santa Maria, expostos a morrerem nas mãos do Gentio Bárbaro e outros mais serviços que a cada instante estão removendo os ditos índios para largarem suas casas, mulheres e filhos para tudo cumprirem exatamente. E ainda a poder de despesas dos ditos Índios e os Portugueses, descansados, sem trabalho algum somente cuidando, Júlio Bentivoglio.O ANTIGO ESTADO DE COISAS 194 ARTIGOS indagarem modos de porem os ditos Índios em pobreza, tanto assim que, os pobres, alguma camisa que tem levam para os ditos destacamentos e não são munidos de outras e os mantimentos muito diminutos que não chegam para o sustento dos suplicantes e de suas famílias; enquanto também não podem resistir com tanto trabalho, pois para ser justo e de razão um corpo não pode ser duas pessoas. (...) o Capitão Mor e Governador da capitania mandam a ficarmos a nós Índios, Índios nos senhores de nossas ações ‐ sermos livres dos nomes do cativeiro só para nos mandar trabalhar em partes imundas ou onde lhe quer esse ou por pititórios de seus amigos para fazer umas roças nas suas fazendas e o pagamento que dão aos ditos Índios quando lhes pedem as diárias é chamar caboclo, pancadas, destacamentos e serras para a sua conveniência (apud MATTOS, 2009, p. 17‐18). A insatisfação com o capitão‐mor e com o governador da capitania confirma a piora nas condições dos índios vassalos a partir da expulsão dos jesuítas. Até então, apesar dos pesares, os jesuítas compunham o único grupo, ao lado de algumas autoridades coloniais, que se opunha ao esbulho das terras dos aldeados e à exploração de sua mão de obra. Com a saída de cena dos inacianos, as autoridades locais passaram a conduzir suas ações em relação aos indígenas sempre em consonância com os interesses dos colonos. No Espírito Santo, o governador Antônio Pires da Silva Pontes, aproveitando‐se que a Carta Régia de 12 de maio de 1798 havia extinguido o Diretório dos Índios permitindo o alistamento de índios em milícias, criou um Corpo de Pedestres distribuídos em quartéis e destacamentos localizados em áreas estratégicas (MOREIRA, 2012) como nos sertões de Iconha e Santa Maria, onde os índios de Benevente estavam expostos a morrerem nas mãos do gentio bárbaro. Como se vê, aqueles índios foram instruídos seja por religiosos, seja por colonos ilustrados em sua petição à rainha e, de algum modo, articularam‐se com os portugueses a fim de conseguirem a manutenção do território em que viviam. Tempos depois, novos movimentos populacionais ocorreriam naquela região, relacionados com novas migrações européias, agora não mais exclusivamente de portugueses ou de franceses (estes frustrados em sua tentativa de fixação no litoral capixaba), mas, sobretudo de italianos e germânicos, estimuladas pelos governos provinciais, quando alguns índios foram deslocados para quartéis como, por exemplo, nas proximidades do atual município de Viana, a fim de auxiliar na garantia de segurança da colônia de açorianos – contra outros índios, que ainda viviam nas matas resistindo à colonização –, sendo Hist. R., Goiânia, v. 24, n. 1, p. 186-205, jan./abr. 2019 195 ARTIGOS empregados nos diversos trabalhos. Tirava‐se de Benevente certo número deles, revesados de três em três meses; eram mandados a trabalhar bem longe de sua habitação; alimentavam‐se mal e, ao cabo do trimestre, só lhes davam 4 mil‐réis, mesmo assim sem regularidade. (SAINT‐HILAIRE, 1974, p. 32). Outros eram enviados para servirem no Arsenal da Marinha, na Corte, graças a uma suposta aptidão natural para a navegação, conforme assinalam documentos da época (CUNHA, 1992). No entanto, a maioria deles eram deslocados com grande freqüência para o vale do Rio Doce em campanhas contra os Botocudo, diminuindo consideravelmente a população das antigas aldeias (COUTINHO, 2002; WIED‐NEUWIED, 1989). Em 1808, esse tipo de iniciativa tornou‐se política oficial do Estado português quando D. João VI, recém instalado no Rio de Janeiro, através da Carta Régia de 13 de maio de 1808, declarou guerra aos índios Botocudo, o que tornou os recrutamentos ainda mais constantes e penosos para as populações das vilas de índios, como se depreende da petição abaixo: Diz Domingos Freitas, índio nacional da Vila de Benevente, que ele suplicante é viúvo e tem 3 filhos de menores e um filho de nome Modesto, único e de menor de 15 anos, e porque o suplicante é doente e surdo [?] dos pesados serviços que fez da virtude da estrada de Minas e o suplicante nunca foi premiado e por isso humildemente se curva aos respeitáveis pés de V. Exa. para fim de atender a justa razão de um pobre pai de família, pobre que pelo trabalho de seu filho se nutre o suplicante e suas inocentes filhas; acontece o Juiz de Paz desta Vila recrutar o filho único do suplicante, talvez por se doer dos ricos e não dos pobres (apud MARINATO, 2011, p. 06). Mas, esse não foi o único reflexo no sul do Espírito Santo da intitulada guerra justa declarada por D. João VI. Pressionados, vários grupos Botocudo migraram para regiões como o vale do Itapemirim, território tradicionalmente ocupado por seus inimigos, os Puri (MARINATO, 2008). Além dos embates com estes últimos, os Botocudo enfrentariam sérias contendas com colonos da região, como a desferida contra o fazendeiro de Muribeca que teve sua propriedade invadida em represália ao sequestro de filhos e outros parentes dos índios (MARINATO, 2008, p. 54). Os ataques eram direcionados ainda a índios mansos, ou seja, aldeados, como os Puri que viviam em Piúma, provocando a fuga de muitos deles para o sertão (SAINT‐HILAIRE, 1974). Na vila de Benevente, os ataques proferidos pelos índios vassalos ao Botocudo Firmino que acompanhava a comitiva de Saint‐Hilaire confirmam a latente animosidade entre os dois grupos. Aliás, a história do sul capixaba, a exemplo de outras regiões da America Portuguesa, está repleta de casos de embates entre os chamados índios vassalos, aliados da colonização, e os chamados gentios bárbaros, como no Júlio Bentivoglio.O ANTIGO ESTADO DE COISAS 196 ARTIGOS traumático episódio ocorrido no Espírito Santo em 1834, quando as aldeias de Itaoca e Itaipava “foram queimadas por índios inimigos” (CASAGRANDE; BARBIEIRO, 2012). Aproveitando‐se de rivalidades ancestrais entre algumas etnias, os colonos insuflaram conflitos, como o ocorrido em 1817 quando índios de Benevente promoveram uma bandeira contra grupos que viviam no sertão de Iconha, descritos como “‘bárbaros gentios’ que não perdiam ocasião de atacar e matar, destruindo e roubando” (ROCHA, 1971, p. 68 apud CAPRINI, 2007, p. 40). Os embates deixaram ainda, conforme ofício de Francisco Antonio da Fonseca ao governador Rubim, seis mortos, aos quais foram cortadas às orelhas, enquanto a bandeira teve a baixa de cinco feridos, dois gravemente flechados no peito. E eis os troféus: ‘Tomamos muita roupa, como saias, facões, muitas facas que entre os do ataque se repartiram, e fizeram uma fogueira onde lançaram sessenta e tantos arcos e muitas dúzias de flechas’ (ROCHA, 1971, p. 68 apud CAPRINI, 2007, p. 40). No ano seguinte D. João VI distribuiu as terras tomadas ao gentio, prática, segundo Manuela Carneiro da Cunha (1992), comum no início do século XIX. Entre os beneficiados encontramos o pároco local, Felipe que dividiu as terras recebidas como butim entre quatro índios moradores de Benevente (CAPRINI, 2007). A lista de beneficiados trazia ainda outros personagens como Francisco Xavier Pinto Saraiva, que seria assassinado em 1833, e sua esposa Dona Ana Maria dos Santos Pinto Saraiva. Naquele momento, o capitão‐mor já possuía um histórico de conflitos com o gentio bárbaro (Cf. REINO DE PROTUGAL. Ofícios sobre auxílio para combater os índios, cobrança de algumas contas, atestado contra o capitão Francisco Antônio da Fonseca e um mandado recebido, 1819) e também com os índios vassalos como verificamos no adendo que finaliza a petição de 1795 encaminhada pelos índios de Benevente para a Rainha de Portugal, na qual apresentavam mais provas do que expusemos a Vossa Real Majestade aproveitamos o requerimento junto para Vossa Real Majestade ver a malícia do Escrivão Diretor da mesma Vila de Benavente, por ser inimigo capital dos Índios não quis dar cumprimento do pacto do Ouvidor da Comarca do Espírito Santo que junto se acham e que vive coligado com Domingos Vaz que servia de Juiz Ordinário e que vão metade para o escrivão e metade para o Juiz Ordinário. O mesmo conselho deram Francisco Xavier Pinto Saraiva, Marciano Pereira, José da Silva Pereira, Antonio de Oliveira, por todos estes são opostos os Índios a terem lavoura no dito lugar (apud MATTOS, 2009, p. 28‐30, grifos nossos). Os índios, no entanto, não eram os únicos inimigos de Saraiva. Em 1819, seu caráter, ou a falta dele, havia chamado a atenção do bispo D. José Caetano da Silva Coutinho Hist. R., Goiânia, v. 24, n. 1, p. 186-205, jan./abr. 2019 197 ARTIGOS que, em visita à vila de Benevente, classificou‐o como um “charlatão atrevido que já me enfastiou da primeira visita” (COUTINHO, 2002. p. 145). Em 1824, ocupando o cargo de capitão‐mor, Saraiva entrou em conflito com o juiz Antônio Rodrigues Cardoso disseminando a discórdia na localidade e obrigando Inácio Acióli de Vasconcelos, então presidente da província, a tomar providências a fim de conciliar os habitantes (DAEMON, 1879). No caso específico dos índios vassalos, além do apoio aos portugueses e pardos que tomavam suas terras, característica comum de quase todos os homens que aceitaram administrar aldeias e vilas de índios nesse período (DEAN, 1996), era Saraiva, na função de capitão‐mor da vila, que distribuía os índios ali residentes e alistados para atender as demandas estatais e particulares. Portanto, parece‐nos razoável que os índios despejassem seu ódio contra Francisco Xavier Pinto Saraiva assassinando‐o. Afinal, era ele o representante direto de um governo que os havia abandonado, ou fingido esquecer, como sinaliza a primeira Constituição que sequer os mencionou (CUNHA, 1992). Até mesmo o autogoverno dos índios, regulamentado entre 1798 e 1845, de fato caiu em desuso na política indígena imperial, sobretudo a partir do Segundo Reinado, sendo que seus líderes não eram sequer ouvidos em tribunais e palácios do governo (CUNHA, 1992). No que tange à questão do gentio bárbaro, desde o período colonial a legislação e a política para os povos indígenas era dividida em duas linhas mais ou menos estáveis, sendo uma voltada para os índios aliados que sempre tiveram garantidos a liberdade e o senhorio de suas terras nas aldeias, e a outra para o gentio bárbaro inimigo, a quem se dispensava a escravidão ou a morte (PERRONE‐MOISÉS, 1992, p. 117). Com a ascensão de Pombal, primou‐se pela integração dos povos indígenas à sociedade colonial – transformando os silvícolas em súditos, incentivando‐se os casamentos mistos e alterando‐se os topônimos de origem indígena – estratégia mantida pelo governo brasileiro após a Independência (COSTA, 2013). Diante da ausência de uma diretriz clara apontada pelo Estado nacional, a questão indígena foi adequada de acordo com a realidade de cada capitania. Dessa forma, na província do Espírito Santo em 1826, a recomendação do presidente para as terras indígenas eram taxativas: “[concedam‐se] sesmarias e roteiem‐se as matas para se lhes tirarem os coutos, e que isolados busquem os recursos entre nós, e se amoldem aos nossos costumes” (Ignácio Accioli de Vasconcelos ao visconde de São Leopoldo, Vitória, 04/08/1826, apud Júlio Bentivoglio.O ANTIGO ESTADO DE COISAS 198 ARTIGOS CUNHA, 1992, p. 14). Prática que já vinha ocorrendo há alguns anos, como em 1820 quando o sargento‐mor Manoel José Esteves de Lima, possuidor da concessão de exploração da estrada Minas‐Itapemirim assentou seus companheiros de empreitada, a maioria índios, negros libertos, escravos e mestiços, às margens da estrada. O liberto Flores, por exemplo, recebeu as terras da Cachoeira das Flores (hoje município de Jerônimo Monteiro), o mulato João Teixeira da Conceição ficou com as terras do Alegre; e o sargento‐mor nas cercanias do Caparaó, junto ao rio Preto, ponto estratégico para a vigilância do tráfego da região, estabeleceu a sede da sua principal fazenda (Cf. CASAGRANDE, 2012, p.23). A estrada e a colonização de suas margens estavam inseridas em mais uma tentativa dos colonizadores e autoridades locais de obterem o controle no sul do Espírito Santo, que no século XIX ainda era dominada pelos Puri. Até aquele momento as incursões para exploração do ouro no interior daquela região haviam fracassado. Nas Minas do Castelo, apesar de algumas fontes apontarem uma exploração aurífera desde o estabelecimento dos jesuítas na segunda metade do século XVI, a versão mais aceita é que foi o minerador Pedro Bueno Cacunda, no início do século XVIII, que deixou os sertões de Cataguases, Minas Gerais, estabelecendo‐se na região de Castelo à procura de ouro (ARARIPE, 1979 apud CASAGRANDE; BARBIERO, 2012, p. 20). Novos migrantes se instalaram na região e o estabelecimento resistiu aos ataques dos Puri até o ano de 1771 quando uma investida triunfante levou os mineiros a abandonarem suas atividades refugiando‐se na foz do rio Itapemirim. No litoral sul a situação não era diferente, como testemunharam viajantes como o príncipe Maximiliano ou Saint‐Hilaire, que percorreram a região na segunda década do século XIX. Em seus relatos os viajantes descrevem casas ”cujos habitantes haviam sido mortos pelos selvagens” (SAINT‐HILAIRE, 1974, p. 21). Quartéis, como o de Boa Vista instalado depois que os índios começaram a fazer devastações nesta província. Compõe‐se de vinte homens comandados por um subtenente (alferes) e alguns deles são continuamente destacados para defender as margens do Rio Cabapuana e outros pontos igualmente ameaçados (SAINT‐ HILAIRE, 1974, p. 20). Localidades como a de Siri, que, nas palavras de Maximiliano (1989, p. 131), estava “inteiramente abandonada”, pois, segundo o viajante germânico, os Puris, ou outros tapuias, atacaram subitamente esse lugar, mataram três pessoas na primeira casa e espalharam tal pavor, que todos os habitantes fugiram sem demora”. Confirmando os conselhos que Hist. R., Goiânia, v. 24, n. 1, p. 186-205, jan./abr. 2019 199 ARTIGOS ouviram desde o Rio de Janeiro sobre “os perigos que se corria, entre Muribeca e Itapemirim, por parte dos índios selvagens, que induziram‐me, por toda parte, a fazer‐me acompanhar por homens bem armados” (SAINT‐HILAIRE, 1974, p. 41). Cenário que levou Saint‐Hilaire (1974, p. 22) a concluir: “Deste modo, o vasto Império do Brasil, que em outra parte apresenta uma extensão de 36 graus de Oriente a Ocidente, é aqui, na verdade, limitado a uma praia estreita e despida de vegetação”. O domínio dos Puri, que no século XIX ocupavam uma grande área entre o Vale do Paraíba, em São Paulo e Rio de Janeiro e o alto curso do Rio Doce, entre Minas Gerais e o sul do Espírito Santo, foi enfraquecido pelo avanço dos cafezais e da criação de gado que, somados à guerra ofensiva de D. João VI no vale do Rio Doce,5 trouxeram sérios transtornos para aqueles povos reduzindo drasticamente seus territórios. Acuados, alguns membros dessa etnia procuraram abrigo junto aos colonos, como os que auxiliaram Esteves de Lima na manutenção da estrada. A iniciativa, por outro lado, contemplava o interesse de parte das elites locais que entendia que os Puri seriam “de grande utilidade a esta província, e ao império o serem aldeados, pelo número de braços que se acham dispersos, que mesmo agora servem‐se de utilidade no arrancamento de Ipecoanha” (VASCONCELLOS, 1858, p. 121). Apesar de algumas tentativas, como o agrupamento de índios em Barcelos, no atual município de Domingos Martins, a iniciativa mais importante no sul capixaba no século XIX foi o aldeamento imperial Afonsino. Nos moldes jesuíticos, os aldeamentos daquele período eram estabelecidos nas regiões onde havia disputas por frentes pastoris e agrícolas, objetivando tornar os membros das tribos locais indivíduos úteis e civilizados (CUNHA, 1992, p. 144). Para a concretização desse projeto o governo central convidou capuchinhos italianos que já atuavam em território brasileiro e criou o Serviço de Catequese e Civilização (DEAN, 1996), que no Espírito Santo foi dirigido por Joaquim Marcelino da Silva, futuro barão de Itapemirim. Sob sua administração de Joaquim Marcelino o aldeamento São Pedro de Alcântara, fundado em 1829, foi reorganizado e passou a ser denominado Aldeamento Imperial Afonsino em 1845. Deste empreendimento, localizado à margem esquerda do Rio Castelo, 5 O sul da Bacia do Rio Doce fica há poucos quilômetros das cabeceiras de alguns rios que formam a Bacia do Itapemirim. Júlio Bentivoglio.O ANTIGO ESTADO DE COISAS 200 ARTIGOS afluente do Rio Itapemirim, e nas proximidades da Estrada de São Pedro de Alcântara o presidente da província do Espírito Santo, Luiz Pedreira do Coutto Ferraz, em 1848, nos toruxe as seguintes notícias está sendo ali construída uma capella (...) para o serviço do culto divino, actualmente celebrado pelo padre missionário Fr. Daniel de Napoles, encarregado de dar aos índios que o habitão, a educação religiosa. Quasi todos os Indios estão vaccinados, vão adquirindo lenta mas gradualmente, com algum esforço, mas com proveito, os hábitos da vida social, e preparando‐se para os gozos próprios de nossos costumes, que sollicitão e já principiao a apreciar. (ESPÍRITO SANTO, 1848, p. 30‐31)6. Apesar do otimismo de Coutto Ferraz, outras fontes indicam uma constante instabilidade nas relações entre os Puri e os administradores do aldeamento. No mesmo ano da leitura do relatório de Couto Ferraz, outro ofício relata que nos sertões denominados de Moqui e nos das minas do Castello, devagão presente aquelles mesmos Puris, que noutra ocasião e a esforços de V. Exa. forão remethidos a esta Presidência, a fim de seguirem para o Aldeamento Imperial Affonsino (APE‐ES, Registro de correspondencia relativa a colonização e catequese 1848 – 1860, fl.10). Ofícios no livro do Registro de correspondências relativas à colonização e catequese 1848 – 1860 revelam ainda esforços do governo provincial para o envio de soldados, professores, alimentos e recursos financeiros para aquele aldeamento, porém, eles não supriram a demanda exigida para o estabelecimento. Dessa forma, em 1861, restavam no Imperial Afonsino, “quanto muito de 15 a 18 índios que se entregam à lavoura e à caça, habitão por 3 ou 4 casas já arruinadas” no (ESPÍRITO SANTO, 1861, fl.09). Pouco tempo depois as terras do aldeamento foram invadidas por colonos, muitos deles índios e caboclos, originando um núcleo populacional que deu origem ao atual município de Conceição do Castelo. Se a recusa dos Puri em permanecerem no Aldeamento Imperial Afonsino confirma a insatisfação daqueles indivíduos diante das transformações provocadas pelas investidas de colonos e autoridades no sul do Espírito Santo, o que revelaria o fato de outros indígenas posteriormente invadirem aquelas terras? No nosso entender essas e as outras atitudes aqui relatadas confirmariam a imensa capacidade indígena de se adaptar e sobreviver a todas aquelas transformações, reinventando‐se repetidas vezes, criando e assumindo diferentes identidades. 6 As citações em itálico reproduzem os arcaísmos de grafia conforme se encontravam nas fontes utilizadas. Hist. R., Goiânia, v. 24, n. 1, p. 186-205, jan./abr. 2019 201 ARTIGOS Considerações Finais Em meados do século XVIII, dois séculos após a chegada dos primeiros europeus, os grupos humanos que viviam no sul do Espírito Santo haviam estabelecido um cenário mais ou menos estável. Naquele arranjo, os colonizadores, restritos ao litoral, estabeleceram pequenos núcleos coloniais, mais semelhantes a aldeias indígenas do que a vilas européias, compostas por uma população majoritariamente de índios e mestiços que, vez ou outra era atacada pelos chamados gentios bárbaros. Os moradores dos antigos aldeamentos jesuíticos do sul do Espírito Santo, após longo convívio sob as regras da sociedade colonial, acabaram por assimilar certos preceitos e procedimentos jurídico‐administrativos mais elementares utilizados pelos portugueses, valendo‐se de certos instrumentos que regulavam o convívio social dos colonizadores, tal como na ocasião da petição de 1795 discutida neste artigo. Procuramos demonstrar que mais que o contato e a convivência estabelecidos na franja litorânea, havia um dinâmico universo social no interior capixaba com um grande contingente de grupos e etnias que viviam de forma tradicional, apartados desse espaço compartilhado por índios e colonizadores. Nessas serras e florestas densas de Mata Atlântica, o chamado gentio bárbaro, passadas as tentativas fracassadas de dominar a região litorânea, tanto no passado remoto quanto no mais próximo da chegada dos portugueses, continuavam vivendo de modo muito semelhante ao período anterior a chegada de Vasco Fernandes Coutinho e de seus contemporâneos, usando seus próprios códigos de aproximação, contato, assimilação ou resistência frente a outros povos e etnias. Esse quadro seria alterado com a colonização, sobretudo, desde a expulsão dos jesuítas, deteriorando‐se no decorrer dos séculos XVIII e XIX quando as investidas para colonizar a região e ocupar tanto as terras do litoral quanto algumas localizadas mais no sertão capixaba, desestruturaram o frágil equilíbrio que ali havia. Sentindo‐se desamparados, os índios vassalos reagiram das mais diversas formas diante dos seguidos e degradantes recrutamentos realizados para conter ou atacar os índios que habitavam no interior e que, vez ou outra, desciam para o litoral, além dos invasores ingleses e franceses. Reagiram também ao reconhecimento de que lentamente perdiam a autoridade sobre suas terras, seja as do interior, seja as do litoral, que cada vez mais eram ocupadas pelos colonos portugueses e seus descendentes, sob a aquiescência das autoridades locais. Dentre esses índios haviam integrantes de variadas etnias, Puri, Tupiniquim, Goitacá e até Botocudo, estes Júlio Bentivoglio.O ANTIGO ESTADO DE COISAS 202 ARTIGOS últimos em menor número. Escreveram petições contra essas usurpações dos colonos brancos, mas também tiveram que continuar lutando contra seus inimigos antigos, que por não manterem contato com os portugueses e colonos eram chamados de gentios bárbaros, na tentativa de preservar suas terras ou mesmo parte delas. Na impossibilidade disso, fugiram, mas também se rebelaram em diversas oportunidades, como nos episódios aqui tratados, quando acabaram por matar o capitão‐mor. O gentio bárbaro, por sua vez, era composto em sua maioria por índios Puri e Botocudo, cujos grupos se localizavam em sua quase totalidade no interior e bem pouco na costa. Devido aos conflitos verificados no vale do Rio Doce por conta da expansão do povoamento de portugueses e colonos desde a descoberta das minas na região de Ouro Preto, grupos destas duas etnias migraram para o interior do estado atual do Espírito Santo para fugir das ofensivas naquela região. Assim, além do conflito aberto contra o colonizador, alguns procuraram se aldear ou servir como mão de obra nas fazendas da região ao lado inclusive de índios de outras etnias, modificando sensivelmente seus costumes. E não raro esses índios vassalos foram atacados por indivíduos de sua própria etnia, identificados como gentios bárbaros. Como se vê, as fronteiras da identidade, do início da colonização até as primeiras décadas do Império, passaram por uma alteração tão radical que acabou por tornar estranhos povos da mesma etnia e semelhantes povos de origens bastante diversas. Foi o reconhecimento daquela situação adversa que fez com que muitos dos índios da porção sul do território capixaba, em diversas ocasiões, manifestassem o desejo pelo antigo estado das coisas, ou seja por um retorno ao período em que seus aldeamentos eram administrados pelos jesuítas. No entendimento dos indígenas, apesar de instável e por muitas vezes conflituosa, a relação com os inacianos lhes assegurava direitos sobre as terras do aldeamento e proteção contra os recrutamentos para funções civis e militares. O que esse rápido estudo sobre o sul do Espírito Santo parece confirmar é que, um padrão binário de alteridade foi se constituindo desde o início da colonização e do contato entre aqueles diferentes povos, entre tupis e não‐tupis (também chamados pejorativamente de tapuias pelos primeiros e pelos colonos), entre aldeados e não‐aldeados, entre civilizados (os moradores das vilas ou dos aldeamentos) e não‐civilizados (os habitantes do sertão), entre catequizados e indomáveis, entre mansos e bárbaros, termos bastante recorrentes tanto na documentação como na historiografia, que ao fim e ao cabo não impuseram as Hist. R., Goiânia, v. 24, n. 1, p. 186-205, jan./abr. 2019 203 ARTIGOS linhas étnicas como um fundamento na construção das identidades, mas, sobretudo, a adesão ou não à cultura e as práticas do colonizador europeu. Com isso não foi incomum a separação em pólos opostos de indivíduos de uma mesma etnia em face da luta pelo controle de porções do solo capixaba. Como se viu brevemente neste artigo, índios Puri, Coroado ou Botocudo, sobretudo, não raro viram seus próprios integrantes lutando entre si e uns contra os outros em função dos projetos de ocupação do território embalados pelo colonizador. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FONTES ESPÍRITO SANTO (Província). Presidente Dr. Luiz Pedreira do Couto Ferraz. Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial do Espírito Santo, no dia 1º de março de 1848 na abertura da sessão ordinária de 1861, pelo presidente Luiz Pedreira do Couto Ferraz. Rio de Janeiro: Typographia do Diário, 1848. ESPÍRITO SANTO (Província). Presidente José Fernandes da Costa Pereira Júnior. Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial do Espírito Santo, no dia 23 de maio de 1861, na abertura da sessão ordinária de 1861, pelo presidente José Fernandes da Costa Pereira Júnior. Vitória: Typographia Capitaniense de Pedro Antônio D’Azeredo, 1861. ESPÍRITO SANTO (Província). 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