SÉRIE MONOGRÁFICA
ALBERTO BENVENISTE
11
Garcia de Orta
Ciência, Religião e Cultura
Luís Filipe Barreto
Maria de Fátima Reis (Orgs.)
E D I Ç Ã O
C Á T E D R A
DE ESTUDOS
SEFARDITAS
A L B E R T O
BENVENISTE
lisboa, 2021
Série Monográfica Alberto Benveniste
Comissão Científica
António Andrade
Béatrice Perez
Bruno Feitler
Claude Stuczynski
Fernanda Olival
Filipa Ribeiro da Silva
Francesco Guidi-Bruscoli
François Soyer
Jaqueline Vassallo
© Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste
Design da capa: João Vicente
Paginação: Rodrigo Lucas
Tiragem: 100 exemplares
Impressão: LouresGráfica
Data de impressão: Dezembro de 2021
Depósito legal:
ISBN: 978-989-99625-9-0
Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Alameda da Universidade
1600-214 Lisboa
Telef. +351 21 792 00 00
cesab@letras.ulisboa.pt
http:// http://www.catedra-alberto-benveniste.org
Índice
Apresentação – Maria de Fátima Reis ...................................................
7
O Estado da Índia ao tempo de Garcia de Orta – Vítor Luís Gaspar
Rodrigues ..............................................................................................
9
A Inquisição de Goa e a família de Garcia de Orta – Miguel Rodrigues
Lourenço ............................................................................................... 27
Algumas notas sobre os herdeiros intelectuais de Garcia de Orta (15631596): Clusius, Fragoso, Costa e Linschoten – Rui Manuel Loureiro ...... 47
Dioscórides (e os seus debuxos) na biblioteca de Garcia de Orta – Carlos
A. Martins de Jesus .............................................................................. 83
“Errores… que dan enfado al que los lee”. Algumas considerações em torno
da errata de Coloquios dos Simples (Goa, 1563) de Garcia de Orta – Teresa
Nobre de Carvalho .............................................................................. 97
A Inquisição de Goa e a família de Garcia de Orta
Miguel Rodrigues Lourenço*
O reconhecimento histórico que Garcia de Orta adquiriu fez com que a
sua figura tenha transposto os confins usualmente herméticos do discurso
historiográfico para conquistar um lugar irredutível na memória colectiva
portuguesa e nos espaços públicos do país. É, por isso, um facto surpreendente
que a sua notoriedade actual contraste de forma tão marcante com o pouco
que de concreto se sabe sobre a sua vida para além dos episódios narrados
pelo 4.º conde de Ficalho, Francisco Manuel de Melo Breyner (1837-1903), no já
longínquo ano de 1886: do seu nascimento em Castelo de Vide ao redor de 1500
aos estudos em Salamanca e em Alcalá; do ensino na Universidade de Lisboa à
sua partida para a Índia em 1534; da publicação da obra que lhe valeria a fama
em 1563, à sua morte, cerca de 15671.
Os silêncios que medeiam estes marcos vitais, pontuados aqui e ali de pequenas
notícias documentais, puderam ser parcialmente colmatados com a leitura do
processo inquisitorial de Catarina de Orta, sua irmã, por Augusto da Silva Carvalho
(1861-1957), médico natural de Tavira, que em 1934 produziu, depois do conde de
Ficalho, um importante avanço na biografia de Garcia de Orta2. Não obstante,
apesar de volvidos quase 90 anos sobre o estudo de Carvalho, a vida do médico
(físico, na terminologia da época) e celebrado naturalista continua entrecortada
por vazios e silêncios que gerações de estudiosos não lograram preencher.
* Investigador do CHAM (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, FCSH, Universidade NOVA
de Lisboa, 1069-061 Lisboa), do Centro de Estudos de História Religiosa (Universidade Católica
Portuguesa) e da Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste (Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa).
1
Conde de Ficalho, Garcia da Orta e o seu tempo (Lisboa: Imprensa Nacional, 1886).
2
Augusto da Silva Carvalho, Garcia d’Orta. Comemoração do Quarto Centenário da sua Partida para
a Índia em 12 de Março de 1534 (Coimbra: Imprensa da Universidade, 1934). O autor publicou uma
síntese do processo inquisitorial de Catarina de Orta na ocasião, pp. 152-165.
MIGUEL RODRIGUES LOURENÇO
Este laconismo foi sentido por Carvalho, que não deixou de assinalar o seu
desagrado para com a atitude do próprio conde de Ficalho que, ao historiar
o percurso de Garcia de Orta, supriu os vazios documentais com descrições
idealizadas da sua vida3. De facto, Carvalho procurou fornecer um retrato mais
realista da vida de Orta, um desígnio que foi alimentado, em larga medida, pelos
novos dados biográficos que o médico algarvio recolheu. Conforme salientou
J. P. Nascimento e Silva, a constatação da origem judaica de Garcia de Orta por
Augusto da Silva Carvalho, veio alterar de forma substantiva a visão sobre a sua
figura, a começar pela do próprio autor4. Com efeito, esta revelação obrigava a
uma releitura das escolhas de vida tomadas pelo naturalista e do significado da
sua trajectória, assim como a repensar os caminhos a trilhar para se aprofundar
a sua biografia. Assim, a marcante descoberta de que vários dos seus familiares
tinham sido detidos pelo Santo Ofício e, em particular, a catástrofe inquisitorial
que se abateu sobre a sua família directa influenciaram de forma determinante
a análise da sua vida e do seu legado. Admirador da pessoa e obra de Garcia de
Orta, Carvalho não pôde aceitar que uma figura maior da História portuguesa
pudesse sofrer o indecoroso destino do esquecimento e da indiferença. O autor
encontrou a resposta a este desfecho sem sentido na experiência da família de
Orta com a Inquisição. Para Carvalho, a “morte de Garcia d’Orta foi envolvida
no maior mistério” e “[u]m silêncio de chumbo caiu sôbre a sua memória”5.
Carvalho não duvidava que Orta fora vítima de uma damnatio memoriæ, um
apagamento que teria, inclusivamente, resultado numa destruição deliberada
dos seus Colóquios6. O motivo, atribuía-o a um incómodo que a figura de Garcia
de Orta teria começado a gerar em Goa, à medida que mais e mais acusações
de judaísmo se reuniam contra a sua família, tanto no recém-instalado tribunal,
como no reino7. No seu entender, esta circunstância fora causa de algum
embaraço, atendendo ao facto de o inquisidor Aleixo Dias Falcão ter dado o seu
aval à impressão dos Colóquios dos simples, e drogas em 15638. Carvalho, que
Ibid., 55.
J. P. Nascimento e Silva, “Catarina de Orta (c. 1512-1569)”, in Identidade e Memória Sefardita: História
e Actualidade. Terra(s) de Sefarad 2017. Encontros de Culturas Judaico-Sefardita, ed. Maria de Fátima
Reis e Paulo Mendes Pinto ([Bragança]: Município Bragança, 2019), 235.
5
Carvalho, Garcia d’Orta, 64.
6
Ibid., 79.
7
Ibid., 72-73.
8
A folha de rosto dos Colóquios ostenta a indicação de que foram “visto pello muyto Reuerendo
senhor, ho liçençiado Alexos diaz: falcam desenbargador da casa da supricação inquisidor nestas
partes”. Desta forma, se bem que o estabelecimento do Santo Ofício em Portugal não tenha implicado
3
4
28
A INQUISIÇÃO DE GOA E A FAMÍLIA DE GARCIA DE ORTA
projectou na Inquisição portuguesa a imagem de uma instituição mecanizada e
infalível, defendeu que a proximidade de Garcia de Orta ao governo do Estado
da Índia9 o teria preservado, assim como à sua irmã, de uma detenção pelo
Santo Ofício, tanto mais que o tribunal de Lisboa conservava culpas anteriores
contra a própria Catarina de Orta, bem como contra outra irmã, Isabel de
Orta10. Deste modo, tanto Catarina como a sua filha, Filipa Gomes – sobre
quem, sustentava Carvalho, a Inquisição de Goa “estava bem informada”11 –,
teriam beneficiado directamente da notoriedade do irmão e tio, tendo o tribunal
movido um processo à primeira apenas após a morte de Garcia de Orta. Na
leitura de Carvalho, a prisão de Catarina em Outubro de 1568 entendia-se, antes
de mais, como uma consequência desta desconfortável situação, permitindo ao
inquisidor limpar a sua imagem diante da sua passividade face a Garcia e da
aprovação que dera aos Colóquios12.
Como se pode compreender, trata-se de uma interpretação social, derivada
da projecção que o próprio Carvalho reconhecia em Garcia de Orta e que,
a seu ver, estaria na origem do apagamento que o naturalista viria a sofrer
a implementação de um sistema exclusivo de censura, a alusão expressa à revisão da obra pelo
inquisidor de Goa cumpria, no Estado da Índia, com o desígnio de D. Henrique de afirmar a supremacia
do Santo Ofício neste domínio. Veja-se, a este respeito, José Pedro Paiva, “Bispos, imprensa, livro e
censura no Portugal de Quinhentos”, Revista de História das Ideias 28 (2008): 713-717.
9
Garcia de Orta foi dado por Diogo Barbosa Machado (1682-1772) como “doméstico” da família
de Martim Afonso de Sousa, fidalgo que, no mesmo ano em o físico viticastrense partiu para a
Índia, seguiu também como capitão-mor do mar. O Conde de Ficalho acreditou que Garcia de Orta
acompanhou Martim Afonso de Sousa em algumas das suas jornadas marítimas. A ele viria a dedicar
a sua obra impressa em Goa em 1563. Sustentou, mais, que Orta “frequentava a camara dos vicereis”, dos quais um teria sido D. Pedro Mascarenhas, e que “viveu na companhia de todos os homens
illustados, e alguns illustres, que então assistiram na capital da India portugueza”. Ficalho, Garcia de
Orta, 2, 134, 138, 143, 196-197, 213-214.
10
Carvalho, Garcia d’Orta, 72-73. Sobre estes processos e a experiência das duas irmãs em Lisboa,
leia-se Miguel Rodrigues Lourenço, “De Castelo de Vide ao Mandovi: Catarina de Orta entre duas
inquisições”, Misericórdia de Braga 14 (2018): 226-232; Miguel Rodrigues Lourenço, Susana Bastos
Mateus e Carla Vieira, O processo de Catarina de Orta na Inquisição de Goa (1568-1569), 2.a ed. (Lisboa:
Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, 2019), 29-35; Silva, “Catarina de Orta (c. 15121569)”, 237-239.
11
Na realidade, a base de Augusto da Silva Carvalho para sustentar uma tal opinião consiste numa
denúncia datada de 1557 contra três cristãos-novos, um dos quais Sebastião Mendes, “que agora he
casado com hũa sobrinha do doutor horta”, por comer carne às sextas-feiras e no Sábado durante uma
Quaresma. Não só a denúncia não implica directamente Filipa Gomes, como esta nunca veio a ser,
sequer, processada pela Inquisição de Goa, ao contrário da sua mãe. Cf. Carvalho, Garcia d’Orta, 72-73;
Denúncia de Henrique Mendes diante de D. António Rangel de Castelo Branco, provisor do bispado de
Goa, de 2 de Novembro de 1557, em Goa, copiada no processo de Sebastião Mendes na Inquisição de
Lisboa, de 1571. ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. n.º 12081, fol. 3.
12
Carvalho, Garcia d’Orta, 73.
29
MIGUEL RODRIGUES LOURENÇO
em Portugal nos tempos vindouros ou, para recorrer às palavras do autor,
o “silêncio em que se quis sepultar” o seu nome13. O problema da dimensão
social de Garcia de Orta, conforme entendida por Carvalho, está presente na
interpretação que fez da documentação inquisitorial. Precisamente, uma das
suas propostas foi a de que os processos instaurados em Lisboa a Isabel de Orta
e a Catarina de Orta em 1547, assim como o de Goa a esta última, teriam sido
propositadamente mutilados para evitar a rememoração do seu irmão Garcia,
personagem que, vale a pena reforçar, se teria tornado incómoda no Estado da
Índia14. A “importância excepcional” de Garcia de Orta em Goa teria, por fim,
justificado “outro promenor [sic] raríssimo neste caso, é terem as cópias do
processo [de Catarina] vindo em duplicado” a Lisboa15.
Como consequência de uma análise centrada no prestígio do naturalista e
numa ideia de eficácia absoluta do Santo Ofício enquanto instituição, Augusto
da Silva Carvalho inscreveu os procedimentos inquisitoriais contra a família
de Garcia de Orta em Goa num quadro operativo amplo, mas condicionados
a uma leitura personalista dos acontecimentos. Em conformidade, por um
lado, as decisões do inquisidor de Goa estariam informadas pelo conjunto dos
elementos recolhidos por outros tribunais a respeito dos Orta. Por outro lado,
a abertura tardia de um processo a Catarina de Orta e o seu marido, diante
de indícios de antecedentes judaizantes que o inquisidor teria, forçosamente,
que conhecer, só se podia justificar pelo peso do irmão Garcia na sociedade de
Goa. O resultado deste entendimento foi uma apreciação desigual e restrita da
actuação da Inquisição de Goa sobre os familiares de Orta, bem como a fixação
de uma cronologia igualmente estreita dos procedimentos inquisitoriais que
Carvalho, Garcia d’Orta, 73.
Augusto da Silva Carvalho acreditou que Catarina e Isabel teriam sido alvo de uma “benignidade
de tratamento”, além de terem desaparecido as respectivas sessões de genealogia, algo que atribuía
a um esforço de silenciar a memória de Garcia de Orta. O que os estudos inquisitoriais ao tempo
da publicação da sua obra não haviam ainda esclarecido é que a estrutura do processo inquisitorial
conforme Carvalho a concebia – uma cópia das denúncias a preceder as sessões de interrogatórios aos
réus e, entre estas, uma sessão de genealogia – não era uma realidade ainda nos anos 40 do século XVI,
quando Catarina e Isabel foram processadas em Lisboa. A ausência de sessões de genealogia é comum
aos demais processos deste período e não deve ser sentida como uma anomalia da qual se deva inferir
uma acção direccionada a apagar qualquer vestígio da vida de Garcia de Orta. Quanto ao processo de
Goa, não é verdade que falte “tudo o que antecede os interrogatórios de 4 e 18 de Novembro de 1568,
não se podendo portanto saber a data de prisão, o que seria muito mais curioso, todos os nomes dos
denunciantes e suas declarações, nem a genealogia”. Na realidade, a data de prisão consta do processo
(fólio 2 da primeira via), bem como a denúncia contra Catarina, como veremos adiante. Carvalho,
Garcia d’Orta, 34, 39, 73, 79; Lourenço, Mateus e Vieira, O processo de Catarina de Orta, 68.
15
Carvalho, Garcia d’Orta, 73.
13
14
30
A INQUISIÇÃO DE GOA E A FAMÍLIA DE GARCIA DE ORTA
os afectaram. Com efeito, Carvalho centrou-se na prisão do casal GonçalvesOrta, desvalorizando os processos anteriores contra as cunhadas da filha, bem
como os que foram movidos contra os maridos destas, os quais não chegou
a mencionar16. Consequentemente, a sua análise permaneceu focada nos anos
de 1568-69 e na família de sangue de Garcia de Orta, sem que se lhe ocorresse
considerar que, do ponto de vista dos laços familiares estabelecidos por via
matrimonial, indivíduos próximos ao naturalista já se encontravam na órbita do
tribunal sem que este nada tivesse podido fazer para o contrariar. Assim, impõese determinar até que ponto o estatuto de Garcia de Orta poderia condicionar
a evolução dos procedimentos inquisitoriais, atendendo, aliás, a que uma parte
significativa do núcleo das suas solidariedades familiares se encontrava a sofrer
processos no Santo Ofício. Com esse fim em vista, procuraremos, neste estudo,
precisar os ritmos da actuação da Inquisição de Goa contra delitos de judaísmo
de forma a posicionar a família de Garcia de Orta nessa dinâmica e aferir se a
evolução dos actos do tribunal é compatível com a ideia de um favorecimento
derivado da projecção social do cristão-novo.
O desaparecimento do cartório do Santo Ofício de Goa nos inícios do
século XIX dificulta, em larga medida, o estabelecimento de uma cronologia
fiável da actuação inquisitorial nestes anos. A perda dos processos impede-nos
de acompanhar, dia a dia, a sucessão dos interrogatórios, confissões dos réus,
determinações dos inquisidores e respectivas bases legais para reconstituir
com clareza os momentos em que os diferentes membros da família (alargada)
de Garcia de Orta vieram a ser detidos, julgados e – como foi o caso da irmã
Catarina – executados. Não obstante o quadro documental profundamente
fragmentário legado pelo Santo Ofício de Goa, beneficiamos de um reportório
de causas elaborado em 1623 pelo então promotor do tribunal, João Delgado
Figueira, o qual nos revela, por ordem alfabética e cronológica, uma lista de
todos os processos que então se conservavam no cartório desde 156117. Nesta
Tal como notou Augusto da Silva Carvalho, Catarina de Orta referiu-se, no decurso do seu juízo, às
duas irmãs do seu genro, Violante e Francisca Pimentel. Ibid., 74.
17
O Reportorio Geral de tres mil oitocentos processos, que sam todos os despachados neste Sancto Officio de
Goa, & mais partes da India [...], hoje à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal, tem sido objecto de
um interesse crescente por parte da historiografia, não só enquanto fonte de informação, mas ainda do
ponto de vista metodológico e conceptual. Leia-se, a respeito deste documento: José Alberto Rodrigues
da Silva Tavim, “Um inquisidor inquirido: João Delgado Figueira e o seu Reportorio, no contexto da
‘documentação sobre a Inquisição de Goa’”, Leituras: Revista da Biblioteca Nacional 1 (1997): 183-193;
José Alberto Rodrigues da Silva Tavim, “‘O culto ao diabo’ na Inquisição de Goa, segundo o Reportório
de João Delgado Figueira (1623)”, Anais de História de Além-Mar 17 (2016): 271-301; Miguel Rodrigues
16
31
MIGUEL RODRIGUES LOURENÇO
listagem, para além dos nomes dos processados, consta ainda uma variedade de
informação relativa ao local de nascimento, ascendentes directos, matrimónio,
condição religiosa, espaço(s) de vinculação social, tipologia de delito, pena
aplicada, bem como a data de saída em auto-da-fé. Deste modo, é possível
determinar uma evolução cronológica dos casos de judaísmo, categoria de
acusação que, em particular, importa ao caso da família de Garcia de Orta.
O carácter sumário de cada registo do Reportorio impõe limites à
interpretação dos dados levantados. Com efeito, cada registo indica o dia da
saída em auto-da-fé ou – se esse não foi o caso – da abjuração privada do réu,
mas nada nos informa acerca do seu início ou duração. A reconstituição obtida
por esta via é, no mínimo, incompleta, no limite, enganadora, pois nada nos
garante que muitos destes processos não se encontrassem já em curso há vários
anos quando foram finalizados. A cronologia proporcionada pelo Reportorio é,
por conseguinte, enviesada. Nos casos em que – como sucede com a família
alargada de Garcia de Orta – é possível estabelecer laços de parentesco ou
ligações matrimoniais entre os réus, a proximidade temporal das causas pode
sugerir um encadeamento entre as mesmas, o que não é, de todo, forçoso.
No caso em apreço, a excepção a este panorama pouco palpável é Catarina
de Orta. Em 1583, o inquisidor-geral D. Jorge de Almeida requisitou o envio de
uma cópia do juízo de que esta fora alvo na Inquisição de Goa18. Desta forma,
procurava dar resposta a um pedido do cardeal Giacomo Savelli, secretário da
Congregação do Santo Ofício, que em 1582 informara a Inquisição portuguesa
de que em Roma se mantinha uma causa aberta contra Filipa Gomes, filha de
Catarina19. O processo de Catarina de Orta foi enviado em duas vias, muito
provavelmente, em Janeiro de 1584, mês em que as naus da carreira da Índia
Lourenço, “Macau, porto seguro para os cristãos-novos? Problemas e métodos sobre a periferia da
Inquisição de Goa”, Cadernos de Estudos Sefarditas 10-11 (2011): 451-500; Bruno Feitler, “João Delgado
Figueira e o Reportorio da Inquisição de Goa: Uma base de dados. Problemas metodológicos”, Anais
de História de Além-Mar 13 (2012): 531-537; Bruno Feitler (coord.), Reportorio. Uma base de dados dos
processos da Inquisição de Goa (1561-1623). Disponível em <http://www.i-m.co/reportorio/reportorio/
home.html> Data da consulta: 21 de Julho de 2015; Luiza Tonon da Silva, “Inquisição e Mestiçagem
Cultural no Estado da Índia (1560-1623)” (Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção
do título de Mestra em História, Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2018).
18
Minuta da carta de D. Jorge de Almeida, inquisidor-geral de Portugal, a frei Gaspar de Melo, OP,
inquisidor de Goa, de 24 de Março de 1583, em Lisboa, in Lourenço, Mateus e Vieira, O processo de
Catarina de Orta, 171.
19
Carta do cardeal Giacomo Savelli a D. Jorge de Almeida, inquisidor-geral de Portugal, de 20 de
Dezembro de 1582, em Roma, in Ibid., 21-22, 169.
32
A INQUISIÇÃO DE GOA E A FAMÍLIA DE GARCIA DE ORTA
partiram para o reino20. Por esse motivo, podemos, para o caso da irmã de Garcia
de Orta, determinar com exactidão o momento do princípio e da conclusão dos
seus autos21. Com efeito, a leitura deste documento não só permite estabelecer
uma cronologia do seu próprio processo, mas ainda recuperar informação sobre
a família à qual os Orta passaram a estar ligados por meio do casamento de
Filipa Gomes com o mercador Sebastião Mendes.
A prisão de Catarina de Orta, ocorrida a 28 de Outubro de 1568, é o indicador
mais fiável para determinar o início de uma acção judicial da Inquisição de Goa
contra um membro da família de Garcia de Orta. No mesmo ano em que Catarina
foi sentenciada pelo tribunal, também o foram Leonel Gonçalves, seu marido,
e Duarte Gonçalves, filho do casal: o primeiro, por judaísmo, e o segundo por
interferir com o procedimento do tribunal. O processo permite-nos propor uma
cronologia quanto à prisão dos dois homens, em ambos os casos, posterior à
de Catarina. O seu filho foi detido por fazer chegar bilhetes aos seus pais num
momento em que estes já se encontravam presos nos cárceres do Santo Ofício22.
Quanto a Leonel Gonçalves, também o seu encarceramento terá decorrido apenas
após a primeira sessão de Catarina de Orta. No processo desta, encontram-se os
interrogatórios de duas das sessões de Leonel Gonçalves na Inquisição, de 21 de
Janeiro e de 4 de Fevereiro de 156923. Apesar de Aleixo Dias Falcão ter indícios
contra Gonçalves, conforme encontramos registado em outro processo enviado
ao Conselho Geral do Santo Ofício24, a verdade é que Catarina de Orta, quando
20
Paulo Guinote, Eduardo Frutuoso, e António Lopes, As armadas da Índia, 1497-1835 (Lisboa: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2002), 137.
21
As duas vias, enviadas em naus diferentes para evitar que, em caso de naufrágio, ao menos uma
chegasse ao destino – e não devido à especial relevância do caso, como chegou a aventar Augusto
da Silva Carvalho – ainda se conservam no Arquivo Nacional/Torre do Tombo entre os processos do
sub-fundo Inquisição de Lisboa, com os números 1282 e 1283.
22
BNP, Cód. 203, fols. 237 e 441v.
23
Sessões de Leonel Gonçalves na Inquisição de Goa, 21 de Janeiro e 4 de Fevereiro de 1569, copiadas
no processo de Catarina de Orta, in Lourenço, Mateus e Vieira, O processo de Catarina de Orta, 100-105.
24
Em 1569, Aleixo Dias Falcão questionou o cristão-novo Gonçalo Rodrigues sobre se este havia
falado com Leonel Gonçalves em matérias de fé. Sabemos que o inquisidor o fez por estar na posse de
informação prestada em 1568 pelo também cristão-novo Álvaro Gomes de que Rodrigues e Gonçalves
teriam discutido “coussas da ley dos Judeus” na casa de Jácome Lopes, tendo Gonçalves concordado
com a ideia de que Jesus morrera de velho. Já em 1565, Francisco Rodrigues, outro cristão-novo, tinha
declarado que Leonel Gonçalves “Christão nouo parente e vyzinho Do doutor orta” era pessoa “errada
na fé”, muito embora só o afirmasse por ser essa a opinião do seu pai. Cf. Sessões de António Gomes na
Inquisição de Goa de 23 de Abril e de 27 de Setembro de 1568, de Francisco Rodrigues na Inquisição de
Goa de 15 e de 20 de Dezembro de 1565, copiadas no processo de Gonçalo Rodrigues, “o da Cutilada”,
na Inquisição de Goa, de 1568-1569, e sessão de 1 de Fevereiro de 1569 do próprio Gonçalo Rodrigues.
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. n.º 12803, fols. 5v, 20, 25, 29-30.
33
MIGUEL RODRIGUES LOURENÇO
questionada “se foi algum seu amiguo destreyta amizade prezo por cullpas da
fee”, não mencionou Leonel Gonçalves, esclarecendo que nenhum dos seus
parentes tinha sido preso, apenas as irmãs do seu genro, Sebastião Mendes25.
O mercador com quem Catarina casara a sua filha Filipa Gomes, era também
cristão-novo, tendo-se transferido para a Índia por volta de 154026. Mendes fora
feitor de D. Antão de Noronha enquanto este servira como capitão de Ormuz
na década de 155027. A relação de confiança parece ter-se mantido quando,
em 1564, após uma curta estadia no reino, Noronha regressou ao Índico para
assumir o governo do Estado da Índia como vice-rei, funções que exerceu até
156828. Precisamente, durante estes anos, Mendes sofreu o infortúnio de assistir
à prisão das suas irmãs (Violante Pimentel e Francisca da Costa Pimentel) e
cunhados (António Dias de Campos e Carlos Fernandes), todos por acusação
de judaísmo. Com excepção de António Dias de Campos, relaxado à justiça
secular em 1567, os demais saíram em auto-da-fé em Abril de 1568, abjurando
de apartado, com cárcere e hábito perpétuo29.
A questão que licitamente devemos colocar é se os processos movidos
à família de Sebastião Mendes e à de Catarina de Orta pertencem a um só
movimento judicial, isto é, a uma sequência de averiguações relacionadas, ou
se a coincidência entre o ano do despacho final das Pimentel e o da prisão de
Catarina (1568) não terá sido mais do que isso mesmo – uma coincidência –,
correspondendo, na realidade, a etapas diferentes e indissociáveis na dinâmica
judicial da instituição.
A informação recolhida no processo de Catarina de Orta sugere que, apesar da
brevidade do tempo (menos de dez anos) em que se desenrolaram os sete processos
– oito, se contarmos com o de Sebastião Mendes em 1571 pela Inquisição de Lisboa
– a detenção e condenação dos familiares de Garcia de Orta terá decorrido, não de
um único conjunto de acções judiciais relacionadas entre si, mas de três.
Processo de Catarina de Orta na Inquisição de Goa, sessão de 28 de Outubro de 1568, in Lourenço,
Mateus e Vieira, O processo de Catarina de Orta, 51-52, 71.
26
Processo de Sebastião Mendes na Inquisição de Lisboa, de 1571, sessão de 11 de Outubro de 1571.
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. n.º 12081, fol. 20v.
27
Denúncia de Manuel Rodrigues na Inquisição de Goa de 5 de Novembro de 1561, copiada no processo
de Sebastião Mendes na Inquisição de Lisboa, de 1571. ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de
Lisboa, proc. n.º 12081, fol. 4v.
28
Sobre D. Antão de Noronha leia-se Nuno Vila-Santa, D. Afonso de Noronha, Vice-Rei da Índia :
perspectivas políticas do Reino e do império em meados de Quinhentos (Lisboa: CHAM, 2009); Nuno
Vila-Santa, “O vice-reinado de D. Antão de Noronha (1564-1568) no contexto da crise do Estado da
Índia de 1565-1575”, Anais de História de Além-Mar 11 (2010): 63-101.
29
BNP, Cód. 203, fols. 99v, 213, 304v e 639.
25
34
A INQUISIÇÃO DE GOA E A FAMÍLIA DE GARCIA DE ORTA
Quadro 1 – Processos contra os familiares de Garcia de Orta nas
Inquisições de Goa e de Lisboa distribuídos por acções judiciais correlativas
Movimento A (c. 1565-1568)
Movimento B (1568-1569)
Movimento C (1557-1570)
António Dias de Campos (AdF 1567)
Carlos Fernandes (AdF 1568)
Francisca da Costa Pimentel (AdF 1568)
Violante Pimentel (AdF 1568)
Catarina de Orta (AdF 1569)
Leonel Gonçalves (AdF 1569)
Duarte Gonçalves (AdF 1569)
Sebastião Mendes (f. 1571)
Fontes: BNP, Cód. 203; ANTT, TSO, IL, 12081; Legenda: AdF = Auto-da-fé
No processo instaurado a Catarina de Orta, formalmente iniciado em Outubro
de 1568, Aleixo Dias Falcão não incorporou quaisquer peças provenientes de
outros autos judiciais anteriores a Maio desse mesmo ano. É certo que Catarina
foi convocada a comparecer perante o Santo Ofício em data anterior, conforme
a própria o referiu durante uma das audiências decorridas em 1569. Mas, na
ocasião, “ha quatro anos pouco mays ou menos”, apenas tinha sido citada para
testemunhar se Francisca da Costa Pimentel e Violante Pimentel guardavam
os sábados30. As causas das duas irmãs de Sebastião Mendes estariam, por
conseguinte, já em curso em 156531. Infelizmente, nada mais sabemos de concreto
sobre este primeiro movimento, permanecendo, mesmo, a dúvida se as causas
instauradas às duas Pimentel e aos respectivos maridos estavam, judicialmente,
relacionadas. O que é certo é que o inquisidor nada aproveitou destes autos
para formar as culpas contra Catarina de Orta. Augusto da Silva Carvalho
supôs que a prisão de um Francisco de Orta, filho de um meio-irmão de Garcia
de Orta, teria sido comunicada à Inquisição de Goa, em virtude de o réu o ter
mencionado no decurso da sua sessão genealógica32. Também admitira, como
vimos, que os tribunais de Lisboa e de Goa se encontravam bem informados
dos processos de que Catarina e Isabel de Orta haviam sido alvo na primeira
destas sedes em 154733. Todavia, uma simples alusão em sessão genealógica não
Sessão de Catarina de Orta na Inquisição de Goa, de 2 de Maio de 1569, in Lourenço, Mateus e
Vieira, O processo de Catarina de Orta, 81.
31
Ibid., 81.
32
Carvalho, Garcia d’Orta, 40; Processo de Francisco de Orta na Inquisição de Évora, de 1561-1563,
sessão de 10 de Maio de 1561. ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Évora, n.º 5217, fol. 3.
33
Carvalho, Garcia d’Orta, 72-73.
30
35
MIGUEL RODRIGUES LOURENÇO
constituía, na praxis inquisitorial, motivo para justificar o envio de informação
a uma sede inquisitorial, nem os autos contra Catarina de Orta contêm peças
provenientes de processos seguidos por outros tribunais que não o de Goa. De
facto, se o processo desta foi integralmente copiado – e nada sugere o contrário
–, o motivo da sua prisão residiu no testemunho de um único indivíduo, o seu
conterrâneo António Gomes, que a 4 de Maio e a 27 de Setembro de 1568 a
acusou de sustentar que a lei judaica era a verdadeira em algumas conversas
que mantivera com ela34. Assim, as prisões de Catarina, de Leonel Gonçalves
e de Duarte Gonçalves correspondem a um momento distinto da história da
família de Garcia de Orta com o tribunal.
Um terceiro momento diz respeito a Sebastião Mendes, o qual regressou ao
reino em 156935. Para seu infortúnio, o tribunal remeteu, no ano seguinte, um
conjunto de denúncias reunidas contra si ao longo de 13 anos, cobrindo um
período (1557-1570) anterior, em parte, à própria existência do tribunal. Com
efeito, o Santo Ofício de Goa apenas foi estabelecido definitivamente em 1560,
no seguimento de uma devassa eclesiástica levada a cabo contra os cristãosnovos de Cochim e de Goa em 1557-155936. Nesta cidade, a 2 de Novembro de
1557, Henrique Mendes denunciou Sebastião Mendes por ver que comia carne
às sextas-feiras e sábados durante a Quaresma, sem que nada indiciasse ter
dispensa para o fazer37. A cópia desta denúncia é de grande importância para
o conhecimento do período de organização inicial do Santo Ofício, pois atesta
que o tribunal teve à sua disposição a documentação exarada durante a devassa,
seja por esta ter permanecido, em cópia, no auditório eclesiástico, ou por ter
sido copiada em Lisboa e trazida pelos inquisidores em 156038.
Por ordem de Aleixo Dias Falcão, o notário António Lopes juntou à denúncia
de 1557, outras realizadas em 1561, 1567, 1569 e 1570, quando a Inquisição já
Sessões de 4 de Maio e a 27 de Setembro de 1568 de António Gomes na Inquisição de Goa, copiadas
no processo de Catarina de Orta, in Lourenço, Mateus e Vieira, O processo de Catarina de Orta, 96-100.
35
Sobre esta figura e, em especial, a sua descendência, leia-se I. S. Révah, “La famille de Garcia de
Orta”, Revista da Universidade de Coimbra XIX (1960): 407-420.
36
Ana Cannas da Cunha, A Inquisição no Estado da Índia. Origens (1539-1560) (Lisboa: Arquivos
Nacionais/Torre do Tombo, 1995), 151-226.
37
Denúncia de Henrique Mendes diante de D. António Rangel de Castelo Branco, provisor do bispado
de Goa, de 2 de Novembro de 1557, em Goa, copiada no processo de Sebastião Mendes na Inquisição
de Lisboa. ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. n.º 12081, fols. 3-3v.
38
O Reportorio de João Delgado Figueira dá conta de um processo realizado no auditório eclesiástico
que transitou para o cartório do Santo Ofício, pelo que é admissível que o mesmo tenha sucedido com
a documentação da devassa, se acaso não foi integralmente enviada para Lisboa.
34
36
A INQUISIÇÃO DE GOA E A FAMÍLIA DE GARCIA DE ORTA
se encontrava em funcionamento em Goa39. Precisamente, em Dezembro deste
ano Lopes terminou de trasladar as culpas contra Sebastião Mendes para as
enviar à Inquisição de Lisboa40. Os seus inquisidores avaliaram as denúncias em
Setembro de 1571, decidindo-se pela prisão do cristão-novo no dia 10. Mendes,
que abandonara Goa com as irmãs e o cunhado sobrevivente, Carlos Fernandes,
para se fixar em Lisboa, residia, então, na rua dos Escudeiros (freguesia de S.
Nicolau)41. Viria a morrer no cárcere em Dezembro do mesmo ano42.
Para efeitos da questão em apreço, o que gostaríamos de sublinhar é o facto
de as culpas reunidas contra Sebastião Mendes não se encontrarem relacionadas
com os processos movidos contra os seus familiares. De outra forma, as sessões
correspondentes teriam sido copiadas, apensas às demais denúncias e enviadas
a Lisboa. Podemos admitir, com Augusto da Silva Carvalho, que a proximidade
em relação a D. Antão de Noronha, em cuja companhia, de resto, abandonou
Goa, o terá preservado da acção inquisitorial43. Afinal, Mendes já havia sido
referenciado em cinco denúncias antes de 1569: duas por consumo de carne
durante a Quaresma e por incumprimento de preceitos devocionais (não se
persignar, nem rezar a Ave Maria), uma por familiaridade com um judeu em
Ormuz e duas que o responsabilizavam por ter levado um abexim convertido
para oferecer ao Adil Shah. Por acumulação de indícios, tratando-se Sebastião
Mendes de um cristão-novo, não seria de estranhar a abertura de um processo
por parte do tribunal, fosse por judaísmo, fosse por impedimento ao esforço
de conversão, tipologia de delito a que a Inquisição de Goa dedicou especial
atenção44. Ao mesmo tempo, é certo que as culpas que mais enfaticamente
Ibid., fols. 3v-16. Augusto da Silva Carvalho resumiu estas denúncias nas “Provas” que formaram o
apêndice do seu estudo sobre Garcia de Orta. Carvalho, Garcia d’Orta, 176-178.
40
Declaração de António Lopes, notário da Inquisição de Goa, de 9 de Dezembro de 1570, processo
de Sebastião Mendes na Inquisição de Lisboa, de 1571. ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de
Lisboa, proc. n.º 12081, fol. 16.
41
Mandado de prisão contra Sebastião Mendes pela Inquisição de Lisboa, de 10 de Setembro de 1571,
processo de Sebastião Mendes na Inquisição de Lisboa, de 1571. ANTT, Tribunal do Santo Ofício,
Inquisição de Lisboa, proc. n.º 12081, fol. 2.
42
Declaração de João Velho, notário da Inquisição de Lisboa, de 5 de Dezembro de 1571, processo de
Sebastião Mendes na Inquisição de Lisboa, de 1571. ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de
Lisboa, proc. n.º 12081, fols. 39-39v.
43
Carvalho, Garcia d’Orta, 73.
44
A política de favorecimento da cristianização no contexto do espaço da Índia motivou a monarquia
portuguesa a implementar um conjunto de medidas destinadas a estimular a conversão e a
permanência dos neófitos na fé católica. Em 1568, uma consulta da Mesa da Consciência e Ordens
manifestou a conveniência de os inquisidores se ocuparem em julgar os gentios, cujas acções “por si,
ou por outro, directè, ou indirectè, por obra, ou por palavra, impedem o negocio da conversão”. Como
39
37
MIGUEL RODRIGUES LOURENÇO
configuravam uma suspeita de judaísmo “obrigatória a prisão” – observância de
jejuns, declaração de judaísmo com outros cristãos-novos, guarda dos Sábados45 −,
foram apuradas apenas em Malaca em Junho de 156946. Precisamente, Sebastião
Mendes zarpou na companhia de D. Antão de Noronha em Janeiro desse ano,
pelo que Aleixo Dias Falcão não se encontrava na posse destas declarações à
data da sua partida47.
Estamos, por conseguinte, perante movimentos institucionais completamente
autónomos entre si. Contra Catarina de Orta não penderiam culpas anteriores
às que António Gomes apontou. De outra forma, teriam certamente sido
incorporadas para substanciar a sua causa. O mesmo poderíamos dizer de Leonel
Gonçalves, contra quem apenas conhecemos denúncias concretas a indiciar
crença na “lei de Moisés” a partir de 156848. Como tal, não é lícito imaginar que
o estatuto de Garcia de Orta teria sido um factor de entrave nos procedimentos
do Santo Ofício, pois, enquanto viveu, nenhum indício aponta para que estivesse
iminente uma acção do tribunal sobre a sua família. Mais razões teríamos para
admitir que uma personagem como Sebastião Mendes, próxima do vice-rei em
funções, D. Antão de Noronha, procurasse a sua intercessão na causa das irmãs
e cunhados: como vimos, se tal aconteceu, de nada serviu, pois todos foram
o Reportorio deixa entender, o juízo de tais comportamentos não permaneceu circunscrito aos gentios,
mas foi extensível a cristãos, o que faz com que Mendes poderia ter respondido pela sua participação
na ida do cristão abexim para o sultanato de Bijapur. Veja-se o teor da consulta em Francisco de
Sousa, SJ, Oriente Conquistado a Jesu Christo pelos Padres da Companhia de Jesus da Provincia de Goa,
vol. 2 (Lisboa: Na Officina de Valentim da Costa Deslandes, 1710), 40; Giuseppe Marcocci, “A fé de
um império: a Inquisição no mundo português de Quinhentos”, Revista de História 164 (2011): 85-86;
Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva, História da Inquisição Portuguesa (1536-1821) (Lisboa: A Esfera
dos Livros, 2013), 113-114.
45
Não obstante, não é inaudito a abertura de processos com base na primeira denúncia de que
Sebastião Mendes foi alvo, nomeadamente, a ingestão de carne durante a Quaresma sem justificação.
São vários os processos registados no Reportorio de João Delgado Figueira por ingestão de carne em
dias proibidos. Durante os anos em que Sebastião Mendes permaneceu no Estado da Índia foram
julgados por este acto o cristão católico romano francês Mestre Bernardo (1563), o meio cristão-novo
Vicente Pinto (1563), o cristão-novo Henrique Castanho (1565) e António Ribeiro (1569) BNP, Cód.
203, fols. 97v, 101v, 480v, 638-638v.
46
Confissão de Manuel de Moura diante de D. frei Jorge de Santa Luzia, OP, bispo de Malaca, de 8 de
Junho de 1569, copiada no processo de Sebastião Mendes na Inquisição de Lisboa, de 1571. ANTT,
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. n.º 12081, fols. 10-11.
47
É o próprio Manuel de Moura que refere que “estando em ormuz o ano de sincoenta E tres veo tomar
conhecimento com bastião mendez que então estaua por feitor de dom antão E ag[o]ra he hido pera
o Reino com elle”. Ibid., fol. 10.
48
Veja-se, supra, nota 24.
38
A INQUISIÇÃO DE GOA E A FAMÍLIA DE GARCIA DE ORTA
penitenciados, tendo António Dias de Campos sido, inclusivamente, relaxado à
justiça secular49.
Pelo processo de Catarina de Orta sabemos, ainda, que esta imputou ao
irmão parte da responsabilidade em manter a observância de certos preceitos
do judaísmo50. Mas é verdade que o inquisidor Aleixo Dias Falcão não fez
evoluir estas denúncias no sentido de um processo formal, tendo tal iniciativa
cabido, como escreveu Augusto da Silva Carvalho, a Bartolomeu da Fonseca51.
O despacho do naturalista ocorreu em 1580, mas os autos lavrados em Goa,
infelizmente, não tomaram nunca o caminho de Lisboa. É de admitir que as
sessões de Catarina de Orta tenham acabado por alimentar a causa movida
contra a sua memória, mas é pouco crível que tenham constituído o seu móbil,
ainda que, como notou Carvalho, o nome do naturalista constasse entre o rol
das pessoas mencionadas no processo52.
Gráfico 1 – Processos por delito de judaísmo movidos
pela Inquisição de Goa (1561-1582)
Fonte: BNP, Cód. 203. NB: Este gráfico inclui cinco casos em
que a acusação incluiu mais do que a acusação de judaísmo.
BNP, Cód. 203, fol. 99v.
Processo de Catarina de Orta na Inquisição de Goa, sessão de 4 de Novembro de 1568, in Lourenço,
Mateus e Vieira, O processo de Catarina de Orta, 68-71.
51
Carvalho, Garcia d’Orta, 76-77.
52
Ibid., 76.
49
50
39
MIGUEL RODRIGUES LOURENÇO
Durante os séculos XIX e XX, os dados recolhidos pela historiografia
insinuaram que o naturalista não teria constituído, verdadeiramente, uma
figura de interesse para a Inquisição de Goa. O Conde de Ficalho susteve que
Garcia de Orta havia passado a sua existência em Goa como um “simples e
desinteressado expectador” dos mais mediáticos episódios da vida portuguesa
na cidade, de entre os quais chegou a mencionar a vinda dos cristãosnovos de Cochim, presos para serem remetidos ao reino53. Augusto da Silva
Carvalho corrigiu-o nesse particular, notando que Orta fora apresentado como
testemunha abonatória durante a devassa eclesiástica, tendo inclusive sido
chamado a depor na causa de Diogo Soares em 155854. A realidade, contudo,
deverá ter sido menos linear do que o considerado pelos dois autores. Por um
lado, entre a documentação preparada para ser enviada ao reino nas décadas de
1560 e 1580, é possível recolher indícios da partilha de sensibilidades oriundas
de um substrato cultural judaico por parte de Garcia de Orta; por outro lado,
testemunhos recolhidos pela Inquisição de Goa sugerem graus diferenciados de
proximidade do naturalista a indivíduos considerados judaizantes pelo tribunal
ou de inscrição em grupos que o Santo Ofício sabia terem acompanhado a
evolução da devassa com preocupação.
Assim, a título de exemplo, as mulheres de serviço do mercador e lapidário
cristão-novo Álvaro Mendes, questionadas na Inquisição de Goa, mencionaram
que o seu amo se recolhia na sua câmara durante o Sábado, fazendo alguns
jejuns, e que dissimulava com a comida durante o tempo em que pousou “nas
casas do doutor Orta”55. No entanto, os termos dos testemunhos não são claros
se Garcia de Orta residia no mesmo espaço, nem referiam a sua participação
nestes jejuns, nada informando, ainda, sobre a qualidade do seu relacionamento
com Álvaro Mendes. Os quatro testemunhos foram realizados diante de
Aleixo Dias Falcão em 1566, num momento em que Orta ainda se encontrava,
presumivelmente, vivo. Contudo, não consta que o inquisidor tenha convocado
o médico viticastrense para depor acerca dos comportamentos de Mendes na
Ficalho, Garcia da Orta e o seu Tempo, 161, 196.
Carvalho, Garcia d’Orta, 47-49; Testemunho de Garcia de Orta pela defesa de Diogo Soares, de 28
de Fevereiro de 1558, em Goa, apud Processo de Diogo Soares na Inquisição de Lisboa, de 1558-1561.
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, n.º 185, fol. 39v.
55
Testemunhos de Francisca “Guzerate”, Madalena “Cafra”, de Constança “Cafra” e de Antónia
“Canará” na Inquisição de Goa, de 3, 5, 6 e 12 de Dezembro de 1566, apud Traslado das culpas contra
Álvaro Mendes, “o do arreio”, na Inquisição de Goa entre 1557 e 1567. ANTT, Inquisição de Lisboa,
Cadernos do Promotor, livro 193, fols. 148v, 152v, 161, 166v e 167v.
53
54
40
A INQUISIÇÃO DE GOA E A FAMÍLIA DE GARCIA DE ORTA
sua residência ou para averiguar se acaso o próprio Orta se teria associado
ao cristão-novo. Em sentido estrito, nada nos depoimentos sugeria uma
coincidência de ambos no espaço e momento dos jejuns e reclusões de Álvaro
Mendes – figura que, em 1585, viria mesmo a assumir uma identidade judaica
no império Otomano56 –, o que faz com que, do ponto de vista processual, a
decisão de Falcão não possa ser considerada irregular.
Entretanto, em 1568, o inquisidor instruíra o seu notário para reunir,
igualmente, as culpas recolhidas contra a cristã-nova Joana Lopes, que
abandonara o Estado da Índia de regresso ao reino. Entre os depoimentos
recolhidos, encontra-se um datado de Novembro de 1557, realizado por um
escravo de Diogo Soares, chamado Pedro, no qual referia que
seus senhores E seus amigos E parentes depois que veo a noua da prisão dos
cristãos nouos de cochim se perturbarão E se ajuntauão todos scilicet seu senhor
com francisco lopez o doutor orta Jeronimo pardo mestre manoel symão fernandez
medico aluaro gomez curugião por muitas vezes falando soos E a elle denunciante
lhe parecia que era sobre este negocio57.
Pedro viria a ser convocado por Aleixo Dias Falcão em 1566, repetindo, como
fizera quase uma década antes, que Diogo Soares se reunira com os mesmos
homens em mais de uma ocasião, tendo esses encontros tido lugar “ora Em casa
do doutor orta ora Em casa do Licenciado fernão perez”58. Mais tarde, em 1569,
o mercador Jorge Vaz também testemunhou diante de Aleixo Dias Falcão que
pessoas como Henrique de Solis e Garcia de Orta consideravam o viticastrense
António Gomes como “malsim”59, o que insinuava uma solidariedade de grupo
entre cristãos-novos que este último teria atraiçoado60.
José Alberto Rodrigues da Silva Tavim, “Conversos: “A península desejada”. Reflexões em torno de
alguns casos paradigmáticos (séculos XVI-XVII)”, Cadernos de Estudos Sefarditas 6 (2006): 266-268.
57
Testemunho de Pedro “Guzerate” diante de D. Gonçalo da Silveira, SJ, de 9 de Novembro de 1557, em
Goa, copiado no processo de Joana Lopes na Inquisição de Lisboa, de 1569-1571. ANTT, Santo Ofício,
Inquisição de Lisboa, proc. n.º 9905, fol. 21v.
58
Testemunho de Pedro “Guzerate” na Inquisição de Goa, de 3 de Agosto de 1566, copiado no processo
de Joana Lopes na Inquisição de Lisboa, de 1569-1571. ANTT, Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc.
n.º 9905, fol. 23; Cunha, A Inquisição no Estado da Índia, 137.
59
Do hebraico malsin, delator, denunciante. Veja-se Elias Lipiner, s.v. “Malsim”, Terror e Linguagem.
Um Dicionário da Santa Inquisição (Lisboa: Contexto Editora, 1998), 165.
60
Testemunho de Jorge Vaz na Inquisição de Goa, de 20 de Abril de 1569, processo de Gonçalo
Rodrigues, “o da Cutilada”, na Inquisição de Goa, de 1568-1569. ANTT, Tribunal do Santo Ofício,
Inquisição de Lisboa, proc. n.º 12803, fol. 55.
56
41
MIGUEL RODRIGUES LOURENÇO
Em conformidade com a leitura social que fez dos juízos inquisitoriais
instaurados à família de Garcia de Orta, Carvalho acreditou que Aleixo Dias
Falcão optou por não dar seguimento aos indícios que tinha contra o naturalista61.
Contudo, cabe dizer que, estritamente, nenhuma destas deposições o implicava
em qualquer comportamento de índole transgressora. Se outras denúncias não
o identificaram directamente como judaizante, algo que autorizaria a tese de
um favorecimento de Garcia de Orta por motivo do seu estatuto social, é de
admitir que a sua figura tenha sido encarada, ao menos, com alguma expectiva
por parte do tribunal recém-criado. No entanto, o único testemunho que
conhecemos, dentro do corpus disponível até o momento, a imputar a Garcia
de Orta uma atitude contra a fé católica é o processo movido contra a irmã
Catarina, já depois de falecido o naturalista62.
Conforme salientou Carvalho, é evidente que Aleixo Dias Falcão não
se quis ocupar em mover um processo póstumo a Garcia de Orta. O motivo
por detrás da sua decisão não é claro. Carvalho vinculou-a, como vimos, à
vontade de o inquisidor salvaguardar a sua própria reputação, em que, ao
proceder judicialmente contra a família directa de Garcia de Orta, se redimia
da licença dada para a impressão dos Colóquios. No entanto, a questão poderá
ser menos pessoal do que o sugerido. Com efeito, a abertura de processos
póstumos não parece ter feito parte da cultura institucional de Aleixo Dias
Falcão63. Ao invés, Bartolomeu da Fonseca, conforme a sua correspondência
Carvalho, Garcia d’Orta, 76.
Tradicionalmente, a historiografia fixa a data de morte de Garcia de Orta em 1568, para o que muito
tem contribuído, por um lado, a declaração de Cristóvão da Costa (mais conhecido por Cristóbal
Acosta) de que o teria conhecido em Goa e, por outro lado, a notícia veiculada por Diogo Barbosa
Machado, de que Costa partiu para o Estado da Índia na armada de D. Luís de Ataíde, portanto,
precisamente, em 1568. As investigações de Paulo Guinote, Eduardo Frutuoso e António Lopes
determinaram que a armada que trouxe o vice-rei aportou a Goa a 12 de Setembro, o que daria a
Costa cerca de dois meses para contactar com Orta antes do dia 4 de Novembro, quando Catarina de
Orta declara, na sua primeira sessão na Inquisição de Goa, que o irmão já havia falecido. No entanto,
na denúncia de D. Álvaro de Castro à Inquisição de Goa de 11 de Maio de 1569, este refere-se a uma
conversa mantida entre a sua mulher e filha e uma “negra bengualla” “auera dous anos pouquo
mais ou menos”, logo, em 1567, na qual se referia Garcia de Orta como pessoa que já havia falecido.
Cristóbal Acosta, “Al lector”, Tractado de las drogas, y medicinas de las Indias Orientales [...] (Burgos:
Por Martín de Victoria, 1578); Diogo Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana Historica, Critica, e
Chronologica, t. 1 (Lisboa Ocidental: Na Officina de Antonio Isidoro da Fonseca, 1741), 572; Ficalho,
Garcia de Orta, 386; Guinote, Frutuoso e Lopes, As armadas da Índia, 1497-1835, 129; Lourenço, Mateus
e Vieira, O processo de Catarina de Orta na Inquisição de Goa, 48n121.
63
Em 1565, Aleixo Dias Falcão entregou os ossos de Pedro Manrique à justiça secular, mas a sua causa
já se encontrava em curso quando o réu se enforcou. BNP, Cód. 203, fol. 557.
61
62
42
A INQUISIÇÃO DE GOA E A FAMÍLIA DE GARCIA DE ORTA
o deixa entender, terá sido um inquisidor ao qual o judaísmo suscitava uma
reacção visceral e escrúpulos de consciência. Dos 185 réus que acusou de
judaísmo, 19 foram relaxados em ossada durante as cerimónias dos autos-dafé64. Deste número, 11 foram-no durante o ano de 1578. Ainda assim, importa
notar que tinham decorrido 11 anos entre o processo a Catarina de Orta e a
condenação do seu irmão em 1580. Durante o tempo em que Bartolomeu da
Fonseca permaneceu em funções – de finais de 1571 ao início de 1582 –, o
Reportorio de João Delgado Figueira dá conta de anos em que o número de
processos concluídos por judaísmo foi reduzido ou nulo (1572-1573, 1576).
Não foi, por conseguinte, por falta de causas que Bartolomeu da Fonseca
acabou por se ocupar de Garcia de Orta. De outra forma, tê-lo-ia feito pouco
depois de ter chegado a Goa. Assim, a explicação para Bartolomeu da Fonseca
se ter decidido a abrir uma causa contra o viticastrense deverá residir nos
processos decorridos na década de 1570, e não antes.
Em 1579 foi processada, também por judaísmo, Beatriz Solis, irmã da
viúva de Garcia de Orta, Brianda de Solis65. O irmão de ambas, Manuel Solis,
foi processado em 1575 por palavras malsoantes66. Os dois Solis, filhos de
Henrique de Solis, foram os únicos elementos com uma ligação familiar, ainda
que indirecta, a Garcia de Orta a terem sido condenados pelo Santo Ofício em
datas próximas às da abertura do processo contra o defunto naturalista. Não
obstante, é possível que o encadeamento de provas a conduzir Bartolomeu
De resto, Bartolomeu da Fonseca chegou mesmo a reportar ao cardeal D. Henrique, com brio evidente,
que era malquisto dos cristãos-novos, “a quem queymey pays e avoos desenterey osos”. Foram os
casos de António Fernandes (1577), André Marques (1577), Gaspar Dias (1577), Ana Lopes (1578),
António Dias (1578), Duarte Fernandes (1578), Fernão Peres (1578), Florença Pires, alias, Lopes (1578),
Francisco Rodrigues (1578), Grácia Rodrigues (1578), Leonor Lopes (1578), Leonor Rodrigues (1578),
Jerónimo Pardo (1578), Maria Mendes (1578), Jorge Vaz (1579), Branca Rodrigues (1580), Fernão Pardo
(1580), Manuel Vaz (1580), para além, claro, de Garcia de Orta (1580). Em 1578, o inquisidor abriu uma
causa contra a defunta Madalena Lopes, mas do processo não resultou qualquer condenação póstuma
por falta de provas, tendo-a declarado absolvida. Bartolomeu da Fonseca também entregou as ossadas
de Ana Gomes (1574), Catarina Gomes (1575), Francisca Coelha (1575), Isabel de Arias (1575), Mécia
Rodrigues (1575), João Rodrigues (1578) e Maria Gomes (1579) à justiça secular, mas estes faleceram
no cárcere, como consequência da prisão, ou fora dos domínios portugueses. Contudo, as causas
foram instauradas ainda em vida dos réus. BNP, Cód. 203, fols. 104, 107, 108, 185, 215, 240v, 306v, 308,
309v, 358v-359, 360v, 390, 393v, 395, 445v, 486v, 489, 490, 491, 493v; carta de Bartolomeu da Fonseca,
inquisidor de Goa, a D. Henrique, inquisidor-geral de Portugal, de 25 de Novembro de 1578, em Goa,
in António Baião, A Inquisição de Goa. Correspondência dos Inquisidores da Índia (1569-1630), vol. 2
(Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930), 63.
65
BNP, Cód. 203, fol. 184.
66
BNP, Cód. 203, fol. 486.
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MIGUEL RODRIGUES LOURENÇO
da Fonseca à figura de Garcia de Orta tenha a sua origem em outro núcleo
familiar que não os Solis. Já vimos que a documentação originária da devassa
de 1557-1559 tinha colocado Orta entre os cristãos-novos de Goa que se haviam
mostrado profundamente inquietos com os acontecimentos, e que de entre
estes foi igualmente identificado Jerónimo Pardo, também físico. De resto, a
crer no testemunho de Pedro “Guzarate” de 1557, os dois homens ter-se-iam
reunido com o licenciado Fernão Peres para discutir a gravidade da situação.
Precisamente, Jerónimo Pardo e Fernão Peres foram ambos alvo de processos
póstumos concluídos em 1578. Não repugna pensar que o aprofundar da devassa
contra os Pardo, cuja família foi sistematicamente processada pela Inquisição de
Goa entre 1578 e 1582, tenha colocado em evidência o defunto Garcia de Orta.
Assim, mais do que nos indícios vagos da década de 1550, nas deposições
circunstanciais das escravas de Álvaro Mendes em 1566, ou mesmo na primeira
audiência de Catarina de Orta em 1568, terá sido na actividade de Bartolomeu da
Fonseca durante os seus últimos anos à frente da Inquisição de Goa que residiu a
justificação para a abertura da causa contra Garcia. Fosse como fosse, as razões
que estiveram na base do último processo contra os Orta de Castelo de Vide na
Inquisição de Goa permanecem, ainda, um mistério. Entre os juízos decorrentes
da devassa aos cristãos-novos de Goa, as denúncias remitidas na década de 1560
e os processos que foram enviados em 1584 a pedido de D. Jorge de Almeida,
escasseiam as referências ao naturalista. Com os dados actuais, é problemático
afirmar, sem margem para dúvidas, o grau de protecção de que Garcia de Orta
poderá ter beneficiado face ao Santo Ofício e – mais ainda – se a sua circunstância
a permitiu estender a outrem. Do ponto de vista estritamente procedimental,
não encontrámos indícios que justifiquem afirmar que o prestígio de Garcia de
Orta o teria eximido da justiça inquisitorial, apesar de ser admissível que o seu
nome tivesse surgido na devassa ou em denúncias posteriores com uma maior
frequência do que os elementos disponíveis permitem quantificar. De acordo
com o estado presente da investigação, parece inegável que Orta era uma figura
de interesse para a Inquisição de Goa. Menos provável é que o processo contra a
irmã tenha sido uma consequência inevitável do seu desaparecimento e do final
da sua aura protectora, uma vez que as denúncias que estão base do juízo são
posteriores à morte do naturalista.
Mais razões teríamos para crer que a ligação de Sebastião Mendes ao vicerei em funções pudesse poupar este cristão-novo a maiores dissabores, como o
sugerem as cinco denúncias registadas contra si antes de ter abandonado Goa.
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A INQUISIÇÃO DE GOA E A FAMÍLIA DE GARCIA DE ORTA
Claramente, no entanto, havia limites ao favor que mesmo um vice-rei poderia
dispensar ou ao retraimento que um inquisidor poderia sentir diante da decisão
de proceder contra um favorito do lugar-tenente do monarca. O infortúnio em
que se viu a família de Mendes (irmãs, cunhados e sogra) entre 1567 e 1569
é revelador do pouco espaço de manobra que, no Estado da Índia, o jovem
tribunal deixava a interferências na sua vida judicial. Sebastião Mendes, figura
que aparentemente se manteve próxima de D. Antão de Noronha até ao final da
experiência indiana de ambos, viu o seu núcleo familiar, parcialmente partilhado
com Garcia de Orta, ruir diante do Santo Ofício. Contudo, quaisquer que fossem
as valências sociais de Mendes e Orta durante a vaga repressiva protagonizada
por Aleixo Dias Falcão contra os cristãos-novos do Estado da Índia, não é crível
que fosse extensível aos seus familiares imediatos.
A reconstituição das etapas de procedimento do tribunal contra os familiares
de Garcia de Orta – compreendendo, aqui, o nexo familiar constituído com
Sebastião Mendes por vínculo matrimonial – indicia momentos judiciais
desconexos entre si. Se Mendes foi, notoriamente, incapaz de eximir os seus
familiares da justiça inquisitorial, Garcia de Orta não parece, sequer, tido essa
oportunidade no que diz respeito à sua irmã. A força de um prestígio social
como a que Augusto da Silva Carvalho reconheceu em Orta, ao ponto de ter
adiado o embate entre o Santo Ofício e os Gonçalves-Orta não encontra, ainda,
elementos que a comprovem.
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