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Leviatã Hobbesiano: A Força Do Símbolo

2014

Este trabalho propoe uma reflexao sobre a origem do poder do Leviata hobbesiano, investigando ate que ponto este poder configura-se sagrado e ate que ponto configura-se profano na obra Leviata e em outras obras de Hobbes. O texto inicia-se com a analise da imagem utilizada por Hobbes para representar o Estado. Hobbes evoca o simbolo religioso Leviata para impor a obediencia aos suditos. O Leviata representa o povo com base no contrato social, um contrato impulsionado pelo medo da morte violenta e que e mantido com base no medo do poder coercitivo do Estado. O monstro Leviata inspira medo e temor, ja que so a razao nao e suficiente para que o povo aceite a soberania absoluta do Leviata. Ao lado da forca positivada do Estado e necessario recorrer a linguagem simbolica para reforcar o seu poder. Entende-se que as influencias teologicas presentes na obra O Leviata servem de fundamento para manter o poder do soberano.

  PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO MARCINA DE BARROS SEVERINO LEVIATÃ HOBBESIANO: A FORÇA DO SÍMBOLO GOIÂNIA 2014 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO MARCINA DE BARROS SEVERINO LEVIATÃ HOBBESIANO: A FORÇA DO SÍMBOLO Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás para obtenção do grau de Mestre. Orientadora: Profa. Dra. Irene Dias de Oliveira GOIÂNIA 2014     Dados Internacionais de Catalogação da Publicação (CIP) (Sistema de Bibliotecas PUC Goiás) S498l Severino, Marcina de Barros. Leviatã hobbesiano [manuscrito] : a força do símbolo / Marcina de Barros Severino. – 2014. 86 f. : 30 cm. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Programa de Mestrado em Ciências da Religião, 2014. “Orientadora: Profa. Dra. Irene Dias de Oliveira”. 1. Leviatã. 2. Poder (Ciências sociais). 3. Sinais e símbolos. 4. O Sagrado. I. Título. CDU 2-135(043) Dedico esta dissertação à memória de meu inesquecível irmão Júnior Carlos de Barros Severino, um anjo ímpar que veio para me proteger, somar e alegrar. Precocemente fez sua partida, deixando paz, segurança e confiança que me impulsionaram a esta conquista, que posso dizer que está apenas começando. Júnior foi um jovem que viveu intensamente, amou muito e também foi muito amado. Será eternamente lembrado. Desejo paz e bem para você, querido anjo! AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus pela inspiração de sempre. Agradeço aos meus professores e orientadores por, além de fornecerem o suporte teórico necessário para a elaboração desta dissertação, me motivarem a fazer sempre o meu melhor. Aos amigos, colegas e colaboradores pela contribuição generosa para que, de alguma forma, este trabalho se tornasse fecundo. Aos meus queridos pais, meus alicerces, por sempre terem acreditado em mim. Ao meu amado esposo e a minha querida filha pela força e coragem. Muito obrigada a todos e todas pelo apoio de todas as horas! Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito todas. Bebo água de todo rio [...]. Uma só para mim é pouca, talvez não me chegue [...]. Tudo me quieta e me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. (Guimarães Rosa) RESUMO SEVERINO, Marcina de Barros. Leviatã hobbesiano: a força do símbolo. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – PUC Goiás, Goiânia, 2013. Este trabalho propõe uma reflexão sobre a origem do poder do Leviatã hobbesiano, investigando até que ponto este poder configura-se sagrado e até que ponto configura-se profano na obra Leviatã e em outras obras de Hobbes. O texto inicia-se com a análise da imagem utilizada por Hobbes para representar o Estado. Hobbes evoca o símbolo religioso Leviatã para impor a obediência aos súditos. O Leviatã representa o povo com base no contrato social, um contrato impulsionado pelo medo da morte violenta e que é mantido com base no medo do poder coercitivo do Estado. O monstro Leviatã inspira medo e temor, já que só a razão não é suficiente para que o povo aceite a soberania absoluta do Leviatã. Ao lado da força positivada do Estado é necessário recorrer à linguagem simbólica para reforçar o seu poder. Entende-se que as influências teológicas presentes na obra O Leviatã servem de fundamento para manter o poder do soberano. Palavras-chave: Leviatã, poder, símbolo, sagrado. ABSTRACT SEVERINO, Marcina Barros. Hobbesian Leviathan: the power of symbol. Thesis (Master of Science in Religion) - PUC Goiás, Goiânia, 2013. This paper proposes a reflection on the origin of the power of the Hobbesian Leviathan, investigating to what extent this power set is sacred and to what extent is configured profane the work Leviathan and other works of Hobbes. The text begins with an analysis of the image used by Hobbes to represent the state. Hobbes Leviathan evokes the religious symbol to enforce obedience to his subjects. The Leviathan is the people based on the social contract, a contract driven by fear of violent death and is kept out of fear of the coercive power of the state. The Leviathan monster inspires fear and dread, since only the reason is not enough for the people to accept the absolute sovereignty of the Leviathan. Beside the power positively valued by the state is necessary to use symbolic language to strengthen his power. It is understood that the theological influences present in the work Leviathan underpinning to maintain the power of the sovereign. Keywords: Leviathan, power, symbol, sacred. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 9 1. LEVIATÃ HOBBESIANO ............................................................................ 12 1.1 CONTEXTO HISTÓRICO À ÉPOCA DE HOBBES ..................................... 13 1.1.1 A Vida de Hobbes ........................................................................................ 15 1.2 A PALAVRA LEVIATÃ ................................................................................. 19 1.2.1 Leviatã na Mitologia Fenícia ........................................................................ 21 1.2.2 Leviatã na Mitologia Babilônica ................................................................... 22 1.2.3 Leviatã na Mitologia Bíblica ......................................................................... 23 1.3 ELEMENTOS CARACTERÍSTICOS DO LEVIATÃ...................................... 25 1.3.1 “O Homem Lobo do Homem”....................................................................... 25 1.3.2 Origem do Estado ........................................................................................ 28 1.3.2.1 O Estado hobbesiano fora do alcance do domínio da Igreja ........................ 34 1.3.3 Direito Natural.............................................................................................. 37 1.3.4 Direito Divino dos Reis................................................................................. 38 1.3.5 Paixão versus Razão ................................................................................... 39 2 2.1 2.2 2.2.1 2.2.2 2.2.3 O PODER SAGRADO LEVIATÃ................................................................... 41 AS CATEGORIAS DE SAGRADO E DE PROFANO..................................... 43 A CONCEPÇÃO DE PODER E A PERSPECTIVA HOBBESIANA................ 46 O Poder que Obriga à Submissão ................................................................. 47 O Poder Simbólico ......................................................................................... 49 O Poder na Visão de Hobbes ........................................................................ 50 3 3.1 3.2 3.2.1 3.2.2 3.2.3 3.2.4 3.2.5 3.3 3.4 A LEGITIMAÇÃO DO PODER EM HOBBES ............................................... 55 AS CATEGORIAS IMAGENS, IMAGINÁRIO E REPRESENTAÇÃO ............ 57 IMAGENS DO LEVIATÃ NA BÍBLIA .............................................................. 58 Leviatã em Gênesis ....................................................................................... 60 Leviatã em Jó ................................................................................................ 60 Imagem do Leviatã nos Salmos..................................................................... 63 A Imagem do Leviatã no Apocalipse ............................................................. 63 Leviatã: símbolo do poder.............................................................................. 66 O SAGRADO COMO LEGITIMAÇÃO DO PODER EM HOBBES ................. 73 A FORÇA DO SÍMBOLO LEVIATÃ ............................................................... 76 CONCLUSÃO .......................................................................................................... 79 REFERÊNCIAS........................................................................................................ 82   9 INTRODUÇÃO O tema ou questão motivadora desta dissertação diz respeito à força do símbolo Leviatã na obra de Thomas Hobbes. Esta objetiva investigar a origem do poder do Leviatã proposta por Hobbes na obra O Leviatã. Para tanto, propõe-se a compreender o contexto histórico à época de Hobbes e analisar a imagem do monstro Leviatã utilizada por Hobbes para representar o Estado. Busca-se também investigar se e como a obra serviu para a separação da Igreja e Estado. Foi proposta nesta pesquisa uma reflexão sobre a origem do poder do Leviatã hobbesiano, procurando saber até que ponto esse poder configura-se sagrado e até que ponto configura-se profano, tomando-se por base a obra Leviatã, outras obras de Hobbes e a opinião de analistas desse autor, uma vez que Hobbes recorre à imagem do monstro bíblico para reforçar o poder do seu Leviatã. Desde o curso de graduação, sempre houve interesse pelo que leva as pessoas a obedecerem às leis. Então, após ler a obra de Thomas Hobbes Leviatã, tal interesse se transformou em inquietação. Uma curiosidade científica motivou a investigação da origem da força do Leviatã hobbesiano, um Estado todo poderoso que inspira temor e impõe obediência. Ao analisar a obra de Thomas Hobbes, nota-se que, além da filosofia e da teologia, outras áreas entram em diálogo formalizando a justificativa da formação inicial desta pesquisadora na área do Direito. O Estado tem origem num contrato social celebrado entre os indivíduos por livre vontade. Os indivíduos abdicam-se de liberdade em prol de segurança e paz. O Direito, ainda em nossos dias, baseia-se no princípio da soberania como fundamento do Estado Democrático de Direito, uma teoria que impera até hoje, resistindo aos séculos. De forma específica, ao conciliar olhares da Teologia, Filosofia, Direito e Política, espera-se contribuir de forma significativa para o aprofundamento humanístico das percepções e prática jurídicas, situando aqui o cunho humanístico desta investigação e motivação. Do ponto de vista acadêmico, a obra hobbesiana serve de referência para se repensar a realidade política e religiosa atual. Política e religião sempre se relacionaram buscando legitimidade uma na outra. Apesar de ter sido publicada em 1651, Leviatã é uma obra permanece atual. O Estado é o detentor exclusivo do 10 poder de punir. A vida em sociedade organizada foi possível por meio da criação de um Estado forte e poderoso. A harmonia hobbesiana é uma harmonia patriarcal. Os filósofos da época de Hobbes buscavam legitimidade para o monarca no plano divino. Hobbes aparentemente difere dos outros filósofos, pois fundamenta o poder do Leviatã no contrato social legitimado na anuência de todos. Porém, busca reforçar esse poder por meio do simbólico-religioso. Fica um questionamento a respeito disso: por que ele emprega um símbolo religioso para representar o Estado? Ele emprega o símbolo do monstro bíblico e passagens das Escrituras Sagradas para reforçar o poder do Estado hobbesiano, uma relação emblemática que retira o poder da Igreja e transfere para o Estado. Para Hobbes, o Estado seria uma construção humana capaz de garantir a segurança, protegendo os indivíduos da morte violenta. No passado, os indivíduos se conscientizaram de que a vida no estado de natureza é de guerra de todos contra todos. A saída mais racional foi a união e a transferência de poderes a uma autoridade capaz de garantir paz e segurança aos indivíduos. Hobbes insistentemente buscava paz para colocar fim ao contexto de morte que vivenciou nas guerras políticas e religiosas. “Levando em conta o movimento, o Estado é derivado de um comportamento voluntário, gerado, em seu início, por movimentos de atração e repulsa entre os corpos” (SOUZA, 2008, p. 168-9). O ser humano submetido à ideia de movimento tende a se aproximar daquilo que lhe dá prazer e a se afastar do que lhe provoque dor. Logo, decide abdicar de liberdade em prol de segurança. Da união de todos os indivíduos em um corpo político surge o gigante hobbesiano. O gigante de Hobbes é uma ressignificação do Leviatã bíblico. Diferentes culturas absorveram o mito do monstro Leviatã. O mito é uma narrativa que remete às origens. Ele serve de fundamentação para fornecer sentido para o que se vive atualmente. Na mitologia fenícia, o Leviatã apresenta-se como um monstro marinho de sete cabeças que representa as forças maléficas. Segundo a mitologia babilônica, o Leviatã representa o mar e foi vencido e submetido a Deus. Na mitologia bíblica, o Leviatã é o rei dos soberbos. Hobbes emprega a imagem do monstro bíblico Leviatã para simbolizar um Estado poderoso capaz de promover a preservação da vida. A intenção de Hobbes é apropriar-se do temor que inspira o monstro bíblico para impor a obediência dos indivíduos ao Estado soberano. Modernamente, pode-se ler Hobbes dizendo que seu Leviatã é secularizado. Hobbes separa as funções da Igreja das funções do Estado. 11 Esta pesquisa, portanto, propõe-se a investigar os poderes do Leviatã com enfoque nas Ciências da Religião. Pretende-se verificar a influência do simbolismo na teoria do Estado hobbesiano. Utilizar-se-á da técnica da pesquisa bibliográfica com objetivo de examinar o sentido do texto por um novo ponto de vista. Trata-se de documentação escrita encontrada nas obras de Hobbes e de estudiosos que analisam a relação entre religião e Estado com base no Leviatã. Estruturalmente, a dissertação divide-se em três capítulos. O primeiro intitula-se Leviatã hobbesiano e centra-se em apresentar algumas características relevantes do contexto histórico à época de Hobbes. Busca-se esclarecer as características do monstro Leviatã mitológico e do leviatã hobbesiano, imprescindíveis para entender a relação que Hobbes estabelece entre o Estado e a dimensão sagrada. O segundo capítulo trata especificamente do poder sagrado do Leviatã hobbesiano. Nele busca-se a origem desse poder. Num primeiro momento, trabalha-se com os conceitos de sagrado e de profano. Posteriormente, em um segundo passo, busca-se entender o poder simbólico do Leviatã hobbesiano. Já o terceiro capítulo procura desvendar como ocorre o processo de legitimação do poder hobbesiano, buscando entender como e por que a imagem do monstro bíblico serviu para reforçar o poder do soberano. Na sequência, trabalha-se os conceitos de representação, legitimação e símbolo. O poder, tal como aparece no Leviatã, é uma mescla do profano e do sagrado. A imagem do Leviatã bíblico inspira temor. Hobbes se apropria desse temor para dominar os súditos e lhes impor a obediência. A força do símbolo Leviatã serviu para reforçar o poder do Estado hobbesiano, transpondo um poder profano para a dimensão sagrada. O Estado adquire um poder capaz de promover a preservação do bem mais precioso, a vida. 12 1. LEVIATÃ HOBBESIANO Para compreender melhor o pensamento do filósofo político Thomas Hobbes é fundamental voltar-se o olhar para a Inglaterra do século XVII para se conhecer um pouco do contexto histórico e cultural no qual ele viveu e escreveu a obra Leviatã. Geertz (1989, p. 24) conceitua cultura como “sistemas entrelaçados de signos interpretáveis, a cultura não é poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos”. É um padrão de significados que são incorporados em símbolos e transmitidos historicamente. O ser humano está inserido em uma cultura. Por meio da cultura “os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento em relação à vida” (GEERTZ, 1989, p. 24). Ela permite a comunicação, que é feita de maneira simbólica. As práticas sociais são baseadas no sentido encontrado na cultura em que os indivíduos estão inseridos. Elas oferecem um modelo de comportamento a ser seguido pelos indivíduos e tornam inteligíveis os comportamentos. Segundo Berger (1985), o processo de construção do humano no mundo se dá pela exteriorização, pela objetivação e pela interiorização. A sociedade controla e pune a conduta individual. O ser humano tem de se comportar conforme a cultura em que está inserido. Mesmo sem perceber, o indivíduo aciona o conhecimento que foi incutido em seu subconsciente. A cultura é, sobretudo, adquirida por meio de símbolos. O centro de qualquer expressão cultural está no momento religioso (BELLO, 1988). A religião tem como uma de suas funções motivar o ser humano a modelar as informações disponibilizadas na cultura, já que ela lhe confere significado (Geertz, 1989). Ao conhecer um pouco da cultura que permeava o momento em que Hobbes viveu e escreveu sua principal obra, lança-se mão de dados relevantes para a interpretação de sua teoria. Mesmo sendo ele um empirista, acaba recorrendo à razão para construir sua teoria. A influência do simbolismo do Leviatã, que era recorrente na época, reforça o poder soberano do Estado hobbesiano. A legitimação ocorre conforme as leis, a cultura ou os deuses. Ao jogar a soberania do Estado para a dimensão simbólica, esconde-se que essa teoria foi uma construção humana. Agindo dessa maneira, o universo simbólico é recurso que 13 convence o povo de que essa teoria é a certa. As teorias de Hobbes tornam a verdade em um dito religioso, portanto, inquestionável. O período histórico no qual viveu Hobbes é fascinante, compreendendo a transição do feudalismo em crise à utopia da construção do Estado. Ao propor sua teoria política, Hobbes quer pôr fim ao clima de guerras religiosas e políticas que vivenciou, cuja continuidade pressentia que um poder absoluto não seria instituído. 1.1 CONTEXTO HISTÓRICO À ÉPOCA DE HOBBES A Inglaterra, no século XVII, estava em plena expansão, com destaque para o expansionismo colonialista ultramarino. Foi nesse mesmo período que a Marinha inglesa atingiu o status de maior e mais bem equipada marinha do mundo. Essa marinha tão poderosa contribuiu para o financiamento do expansionismo colonial. Embora seja um período regido pela razão e pelas descobertas da ciência, o medo do desconhecido relacionado à navegação permeia o imaginário popular, desencadeando o desenvolvimento de histórias e lendas que tinham como protagonistas monstros marinhos. Na Inglaterra desse período, eram muito comuns histórias de monstros marinhos, como o Leviatã, atacando embarcações. Segundo Chevalier (2007), o mar simboliza a dinâmica da vida, de onde surgem monstros das profundezas, é uma imagem do subconsciente. O Barroco deixou marcas nesse período e foi influenciado pela contrarreforma (RODRIGUES, 2013). A filosofia do barroco baseava-se no dualismo existente entre o hedonismo e o medo do pecado ou o fervor religioso, ao passo que a busca pelo essencialmente humano já havia começado no Renascimento. Havia o receio do divino sobrenatural, que poderia punir o terreno e o transitório (RODRIGUES, 2013). A quebra da unidade teológico-política da cristandade desencadeou conflitos religiosos (MACHADO, 1996). O século XVII foi marcado pela lembrança de massacres provocados por seguidores de credos conflitantes. A Inglaterra estava abalada pelos conflitos religiosos e políticos. O Rei Carlos I vinha perdendo gradativamente poder e se tornando impopular. O parlamento não suportava mais o Absolutismo e tornou-se a instituição de oposição. “A nação inglesa manifesta, desde o início da época moderna, o desejo de controlar o poder monárquico” (SOUKI, 2008, p. 110). A expressão “poder absoluto do monarca” refere-se aos 14 atributos do ofício de ser monarca. Já com o Rei Jaime I, ocorreu uma libertação do domínio papal. Hobbes vivenciou os conflitos entre a religião católica e o protestantismo. “No plano civil Hobbes aderiu à teoria católica da razão de Estado, na qual a religião torna-se civil, até mesmo legal, e não há autonomia religiosa em relação ao soberano” (SOUKI, 2008, p.114). Na obra Do Cidadão, Hobbes (2006, p. 23) menciona que o seu país neste período “já estava agitado com perguntas relativas aos direitos de domínio, e da obediência devido a estas questões, que são as verdadeiras precursoras de uma guerra se aproximando”. Hobbes sofreu influência da reforma anglicana que ocorreu em 1534. O Rei inglês Henrique VIII instituiu a Igreja Anglicana. O rompimento do rei com a Igreja Católica contribuiu para o fortalecimento do poder da monarquia. Nesse período, o rei passou a ser o chefe supremo da Igreja da Inglaterra. O clima de conflitos fez que a Espanha interviesse nos assuntos ingleses com o envio da Invencível Armada, um acontecimento que ficou na lembrança de Hobbes e foi narrado por ele em sua autobiografia, influenciando sua obra. Logo após o começo da guerra que se desenrolava no continente europeu, disputas políticas entre o rei inglês e o parlamento geraram a guerra civil na Inglaterra, que durou dez anos. Hobbes experimentou “guerras civis, religiosas e políticas, e via num Estado forte a resposta adequada contra a desordem e o caos” (MACHADO, 1996, p. 63). De acordo com Mattos (2011), na Inglaterra desse período, surge uma discussão a respeito do problema da representação e da legitimidade do Estado. Os integrantes da Câmara dos Comuns começaram a expressar apreensões consideráveis acerca do modo como a Coroa Inglesa utilizava-se de suas prerrogativas. Tais reivindicações chegaram ao seu ponto máximo no Parlamento de 1628, quando apresentaram a petição de direitos ao Rei Carlos I. Segundo Skinner (1999), a preocupação ao elaborar essa petição de direitos era se a causa do poder do Estado residiria no povo, na medida em que o seu poder era resultado da soma dos poderes transferidos ou renunciados de cada homem. Com base neste argumento, alguns teóricos sustentavam que o poder dos príncipes era derivativo e o poder do parlamento era de direito absoluto para intervir nos assuntos do Estado que ameaçassem a liberdade e a proteção do povo. Mais tarde, Hobbes cria a teoria do Estado, que põe fim à problemática da representação e da legitimidade do Estado nesse período. Ele forneceu a base para 15 o Estado moderno, um contrato baseado na anuência e legitimação de todas as vontades. 1.1.1 A Vida de Hobbes Thomas Hobbes (1588-1679) foi um filósofo contratualista inglês que nasceu na Renascença, em Wiltshire, Inglaterra. Suas reflexões políticas são de extrema relevância para o mundo contemporâneo, sendo um tema atual e atemporal. Limongi (2002, p. 7-8) apresenta Hobbes como “o criador da ideia de representação política [...]. A importância de Hobbes está, sobretudo, em ter reunido em torno do conceito de Estado os traços que em sua época começavam a apontar uma nova concepção política”. Suas reflexões derivam do contexto social da época em que viveu. Era um período de intenso conflito político, econômico e religioso na Inglaterra. Com relação ao aspecto religioso, Limongi (2002, p. 110) menciona que o século XVII foi uma época de intensa paixão teológica e de cerrada perseguição religiosa. Também foi marcado pela memória vivida de massacres e assassinatos por causas da fé e por guerra civil devastadora entre os aderentes e credos conflitantes. Em países como Inglaterra, Alemanha do Norte e Holanda – onde o protestantismo prevaleceu -, a Reforma foi vista como um corte após uma noite milenar de escuridão, ignorância e superstição. Em nome de Deus, cometiam-se atrocidades. Talvez seja por isso que Hobbes trabalhou tanto para retirar o poder político das mãos da Igreja. As Escrituras eram empregadas como instrumento de legitimação. Com isso, ações bárbaras eram justificadas. É curioso observar que, embora criticasse tanto o método simbólico utilizado pela Igreja, Hobbes acaba associando esse mesmo simbolismo à razão para conseguir a adesão dos súditos, na obra Leviatã. Hobbes menciona que sofreu a influência do medo desde o seu nascimento. Sua mãe teve um parto prematuro por causa da ameaça da invasão da Inglaterra pelos espanhóis. Aos três anos de idade, ficou órfão de mãe. Talvez a falta dos olhos da mãe para lhe mostrar o mundo o fez sentir-se perdido, propiciando a busca de respostas para sanar esse estado de guerras. A ausência materna pode ter favorecido a visão que Hobbes tinha a respeito da mulher, mais medrosa e menos capaz que o homem em situação de perigo. Seu pai era um vigário humilde de 16 Charton e Westport, cidades próximas de Malmesbury, que se envolveu em uma disputa com outro vigário, o que o levou a se mudar para Londres e deixar Hobbes na companhia de seu irmão Francisco (HOBBES, 1997). Acredita-se que a perda da mãe e do pai tão precocemente influenciou a visão de insegurança que Hobbes tinha com relação à sociedade de sua época. Seu tio Francisco pôde lhe proporcionar uma educação muito boa: Hobbes frequentou a escola paroquial de Westport. Aos oito anos, foi mandado para um estabelecimento de ensino dirigido pelo pastor de Malmesbury. Pouco tempo depois, retornou para uma escola particular de Westport, onde ficou sob a tutela do diretor Robert Latimer até os quatorze anos (SKINNER, 1999). Robert Latimer era versado na cultura clássica e pôde proporcionar a Hobbes sólidos conhecimentos em latim e grego. Essa cultura clássica pode ter sido o pano de fundo para a estruturação do pensamento político de Hobbes (HOBBES, 1997). Na infância de Hobbes, a Inglaterra era regida pela rainha Elizabeth I (15331603), que, embora sendo mulher, ocupou o trono. Elizabeth I restaurou a soberania do monarca como líder supremo. Com ela a Inglaterra tornou-se uma potência reconhecida mundialmente. Conseguiu avanços em diversos setores, inclusive nas artes. E até os dias atuais a Inglaterra tem a monarquia parlamentarista como forma de governo. Em 1590, quando Hobbes iniciou sua instrução formal, os humanistas já haviam colocado em circulação um modo de pensar característico de uma ciência social. A compreensão dos humanistas a respeito dessa ciência derivava basicamente dos teóricos clássicos da eloquência. Hobbes, no Leviatã, emprega o ideal humanista de união da razão e da retórica para ampliar e sublinhar as descobertas da razão e da ciência (SKINNER, 1999). Thomas Hobbes foi estudar em uma escola da Igreja e depois foi para uma escola particular. Quando completou 15 anos, dedicou seu tempo a ler livros que falassem de viagens e que possibilitassem analisar cartas e mapas. Entre 1603 e 1608, estudou a física e a lógica aristotélica em Magdalen-hall. Em 1608, tornou-se tutor de William II Cavendish, com quem se inscreveu na Universidade Cambridge (LIMONGI, 2002). Hobbes não demonstrava muito interesse pela escolástica de inspiração aristotélica. Em 1610, Hobbes viajou para a Europa continental em companhia de William Cavendisch, onde passou pela França, Itália e Alemanha. A sua pouca 17 admiração pela escolástica na época talvez se devesse já ao declínio desta. Tentou por muitas vezes criar caminhos para ampliar novos conhecimentos, o que culminou com o seu retorno à Inglaterra, com o intuito de aprofundar seus estudos clássicos. Por volta de 1620, morando na Inglaterra, trabalhou como secretário de Francis Bacon e o auxiliou na tradução latina de seus ensaios (LIMONGI, 2002). Dessa parceria surge uma nova linha de pensamento, com características próprias. “Bacon tinha Hobbes em alta conta, julgando-o capaz de compreender seu pensamento e chegando mesmo a autorizar que traduzisse algumas de suas obras para o latim” (HOBBES, 1997, p. 6). Quando Hobbes completou 30 anos, acontecia uma revolta na Boêmia contra a regência da Áustria. Rivalidades religiosas entre católicos e protestantes foram transformadas numa luta europeia que originou a Guerra dos Trinta anos. Mais tarde direcionou-se para a vida literária. Traduziu, em 1629, uma obra de Tucídides, um historiador grego analista da política e da moral da guerra do Peloponeso. Nesse momento, Hobbes iniciou seu interesse por política e diz, em sua autobiografia, da importância do livro, ao demonstrar as fraquezas da democracia ateniense, subvertida pela ambição de políticos demagogos (LIMONGI, 2002). No ano de 1631, a família nobre inglesa de Cavendish procurou Hobbes para que ele retornasse a ser guardião do terceiro Duque de Devonshire, e Hobbes fica nessa função, prestando serviços, até o ano de 1642. Junto com seu aluno, traduziu para o latim a Retórica de Aristóteles, livro que exerceu grande influência sobre ele na elaboração de sua teoria das paixões (LIMONGI, 2002, p. 12). Durante esse período, fez outra viagem ao continente, lá permanecendo de 1634 até 1637. Na França, entra em contato com o círculo intelectual de Padre Mersenne, mentor de Descartes, com quem estabeleceu uma grande amizade (RODRIGUES, 2013). Em 1640, escreveu as Terceiras objeções às meditações metafísicas de Descartes a pedido de Mersenne (LIMONGI, 2002). Normalmente, Hobbes era a favor da explicação mecanicista do universo, pensamento predominante nesse período e em oposição à teleológica defendida por Aristóteles e a Escolástica (RODRIGUES, 2013). Para o Rodrigues (2013), Hobbes também teve a oportunidade de conhecer Galileu durante uma viagem à Itália, em 1636 (seis anos antes de Galileu morrer), sob cuja influência Hobbes desenvolveu a sua filosofia social, baseando-se nos princípios da geometria e das ciências naturais. 18 Caixeta (2012) confirma o encontro com Galileu e complementa que ele também se encontrou com René Descartes, cuja ciência e filosofia o impressionavam. Limongi (2002) também menciona que Hobbes visitou Galileu entre 1634 e 1636. Hobbes escreveu sobre o cidadão, o corpo e o homem. Em 1640, ele redigiu a obra Os Elementos da Lei Natural e Política, primeira versão de sua teoria política, em inglês, que circulou em manuscrito (LIMONGI, 2002). Quando a possibilidade de uma guerra civil na Inglaterra já estava claramente definida, em 1640, Hobbes, conhecido defensor da monarquia, com medo e inseguro por sua vida, viajou de volta para Paris, onde mais uma vez foi recebido pelo círculo dos intelectuais franceses (RODRIGUES, 2013). Hobbes foi confrontado com a guerra civil inglesa quando já havia elaborado as grandes linhas do seu sistema. Agredido pelos acontecimentos, escreve a terceira parte de sua obra, De Cive, no ano de 1642, propondo que, para sair da guerra civil, era necessária a instauração de um poder absoluto (BOBBIO, 1998). Refugiado em Paris por temer por sua segurança após ter publicado De Cive, Hobbes escreveu sua obra-prima, Leviatã ou Matéria, Forma e Poder da Comunidade Eclesiástica e Civil, um estudo filosófico sobre o absolutismo político que sucedeu a supremacia da Igreja medieval (CAIXETA, 2012). Essa publicação custou-lhe a perda do apoio dos realistas refugiados na França (LIMONGI, 2002). Em 1651, dois anos depois da decapitação do rei Carlos I, Hobbes decide retornar para a Inglaterra, com o fim da guerra civil e o começo da ditadura de Cromwell. Nesse ano publicou Leviatã, o qual provoca o início de sua disputa com John Bramall, bispo de Derry. Seu principal acusador o apontava como um materialista ateu (RODRIGUES, 2013). Hobbes escreveu sua principal obra, Leviatã, já na maturidade. Em 1655, Hobbes publicou o De Corpore, a primeira parte de seu sistema, compreendendo uma lógica e uma física (LIMONGI, 2002). Nesse ano, ainda em Paris, torna-se professor de Matemática do Príncipe de Gales, o futuro Carlos II que também estava exilado em Paris por causa da guerra civil inglesa. Hobbes publica o De Homine, a segunda parte de seu sistema, em 1658. Seu sistema seria composto pelo De Corpore, o de Homine e o De Cive (LIMONGI, 2002). Com a restauração da monarquia inglesa, em 1660, Hobbes voltou a ser admitido na corte com uma pensão oferecida por Carlos II. Em 1666, sentiu-se 19 ameaçado com a tentativa de aprovação no Parlamento de uma lei contra o ateísmo, sendo que a comissão deveria analisar Leviatã. A lei não foi aprovada, mas Hobbes nunca mais pôde publicar algo sobre a conduta humana. Na Inglaterra, em 1666, as obras de Hobbes foram queimadas publicamente. Aos 63 anos, Hobbes retornou e permaneceu por mais vinte anos na Inglaterra, mantendo sua energia e combatividade, envolvendo-se em várias polêmicas no campo científico e religioso (CAIXETA, 2012). Nos seus últimos anos, Hobbes traduziu os clássicos: Odisseia (1675) e Ilíada (1676) (FERREIRA, 2012). Hobbes, filósofo e cientista político, faleceu em 04 de dezembro de 1679, aos 91 anos, e deixou diversas obras que hoje são objeto de estudo nas mais variadas disciplinas do conhecimento humano (FERREIRA, 2010). No século XVIII, seu pensamento ganhou nova importância, dada pelos utilitaristas seguidores de Jeremy Bentham. É hoje considerado um dos grandes pensadores políticos da Inglaterra (COBRA, 1997). Hobbes soube captar e descrever os problemas sociais de sua época e, levado pela paixão, pelo desejo de escapar dessa sensação de insegurança e de medo permanente, que lhe perseguiu desde o tempo de nascituro até maturidade, construiu, por meio da razão e de elementos simbólicos, uma teoria política que mais tarde serviu de base para a elaboração da teoria do Estado Moderno. 1.2 A PALAVRA LEVIATÃ Já se expôs o contexto histórico e a vida de Hobbes, agora faz-se necessário entender o significado da palavra Leviatã, utilizada por ele para ser o título de sua obra-prima, para melhor compreender sua intenção de optar por este termo. Após vivenciar o clima de tantas guerras e rivalidades, Hobbes era desejoso de paz. Percebeu que a vida em sociedade demonstrava problemas graves de relacionamento. Seu objetivo era o estabelecimento de segurança e de paz para a sociedade. Porém, o que a palavra Leviatã teria a ver com o esse objetivo? A palavra Leviatã está presente nas grandes mitologias e na língua portuguesa. Qual a intenção de Hobbes ao utilizá-la? Para tentar responder a essa pergunta é preciso entender a categoria mito. “O mito é o relato de um 20 acontecimento originário, no qual os Deuses agem e cuja finalidade é dar sentido a uma realidade significativa” (CROATTO, 2010, p. 211). Para Eliade (1992), o mito é uma narrativa natural que remete à origem de tudo que importa hoje. Narra uma história verdadeira sagrada. Nas sociedades onde o mito vige, pode-se diferenciar os mitos sagrados das histórias profanas. O mito refere-se sempre a uma experiência religiosa. Trata-se de uma história verdadeira porque fala de algo que realmente conta para as pessoas. O mito é uma narrativa que funda tudo que mais importa para os sujeitos naturais. Serve de fundamentação para o que se vive atualmente. O conteúdo do mito é o ethos das pessoas. Ethos é o fundamental, isto é, o que se concebe sobre si mesmo e sobre os outros. As fontes de acesso para conhecer o indivíduo são os mitos. O cosmo depende do mito fundante, pois os eventos são integrados no contexto do cosmo, em um universo dos deuses. Portanto, o mito do Leviatã colocou ordem no caos que encontrava a sociedade. Ele deu sentido e conferiu significado ao que mais importava para as pessoas naquele momento. Embora acusado no século XVII de ateísta, Hobbes era um conhecedor da Bíblia e dos mandamentos de Deus. Fez várias interpretações de diversas passagens bíblicas em sua obra Leviatã. Ele empregou o nome do monstro mitológico à sua obra com o intuito de buscar fundamentação para o problema da representação do poder civil. A concepção mítica remete aos primórdios. O crente precisa de mitos que justifiquem seus esforços. Os mitos são ricos de sentido e polissêmicos. O sentido do mito é o que mais se aproxima do ethos do indivíduo. Ao remeter-se para a dimensão sagrada, o objeto torna-se fundamental e indiscutível, na medida em que é a vontade dos deuses. O sentido que Hobbes buscou legitimar é o da soberania do poder civil: ele quer comparar o poder do Estado com o poder de Deus, baseando-se no mito do monstro bíblico Leviatã. Ao crer-se que o Leviatã é sagrado, os atos do Estado passam a ser vontade de Deus, sendo, portanto, inquestionáveis. Croatto (2010, p. 303) fala sobre a relação do mito com a história da seguinte forma: O mito tem ligação com a história, porém não a narra, interpreta-a. Para tal, recorre, por um lado, à linguagem simbólica e, por outro lado, a um paradigma originário; este sim é narrado. Portanto, podemos afirmar que todo mito, está relacionado com a história, e que todo fato histórico, para ser entendido religiosamente, tem que ser apresentado em alguma forma na linguagem simbólica ou mítica. 21 Quando se faz essa associação entre a história e o mito, não se pode deixar de pensar no Leviatã. Leviatã e Estado são categorias da história e, para serem entendidas religiosamente, é necessário recorrer à linguagem simbólica. A palavra Leviatã também aparece nos dicionários da língua portuguesa. Deriva do hebraico liwjathan e significa animal que se enrosca (FERREIRA, 1999). De acordo com o dicionário Houaiss, o Leviatã, por extensão, sob a perspectiva política, significa o Estado soberano com poder sobre os súditos. Chevalier (2007, p. 547), sob esse enfoque, acrescenta: Leviatã simboliza o Estado que se adjudica uma soberania absoluta, rival de Deus, e um direito absoluto, de vida e de morte, sobre todas as criaturas que ele submete. [...]. Em Thomas Hobbes, esta concepção absolutista deriva, como uma consequência lógica, de uma filosofia materialista, que tem a intenção de proteger os indivíduos e a coletividade, mas ao preço de toda liberdade e de uma obediência passiva ao poder. Chevalier (2007, p. 546) afirma que, na hipótese de se considerar o mar como símbolo do inconsciente, receptáculo de monstros obscuros e forças instintivas que só o poder de Deus é capaz de dominá-los, fica implícita uma teologia da graça, correlativa ao poder deste Leviatã, este monstro capaz de engolir o sol, que é, por sua vez, símbolo do divino. Diferentes culturas absorveram o mito do monstro Leviatã. Destaca-se aqui uma breve definição da palavra Leviatã nas mitologias fenícia, babilônica e bíblica. 1.2.1 Leviatã na Mitologia Fenícia Segundo Chevalier (2007, p. 547), “nas tradições fenícias, o Ros Shamara era símbolo da nuvem de tempestade que Baal derriba para trazer sobre a terra o aguaceiro benfeitor”. Para a mitologia fenícia, Leviatã é o monstro do caos (FERREIRA, 1999). Tiamat é a personificação do caos. Caos significa a desordem e o vazio. Simboliza “uma situação de anarquia, que precede a manifestação das formas e, no final, a decomposição de toda forma” (CHEVALIER, 2007, p. 183). A iconografia de Canãa apresenta um monstro marinho de sete cabeças, denominado de Lôtanu, combatendo o deus Môtu. O confronto entre Ba’lu e Lôtanu é narrado no poema poético El mito de la lucha – lucha entre Ba’lu y Môtu (LETE, 1981, p. 213): 22 Cuando aplaste a Lôtanu, la serpiente huidiza, Acaba com la serpente tortuosa, El tirano de siete cabeças, Se arrugaron (y) se aflojaran los cielos Como el ceñidor de tu túnica; (entonces) yo fui consumido hecho pedazo Esparcido (al viento) perecí. Ba’lu derrota Lôtan. Lôtan é designado como uma serpente tortuosa dominada e morta por Ba’lu, como referência ao Leviatã bíblico. Na mitologia semita, a serpente primordial foi vencida pelo deus principal de cada povo. A literatura cananeia pode ser relacionada com a literatura bíblica, em que Yahweh acaba por assimilar os mesmos traços e atributos divinos de Ba’lu – a vitória de Deus sobre as forças maléficas do mar, estabelecendo assim a ordem. 1.2.2 Leviatã na Mitologia Babilônica O monstro marinho evocado em Jó remete ao mito cosmogônico babilônico Tiamat. “Tiamat, o mar, após ter contribuído para o nascimento dos deuses, foi vencido e submetido por um deles” (CHEVALIER, 2007, p. 547). Tanto no imaginário popular como no imaginário poético, essa imagem de vitória é retomada e atribuída a Jeová (CHEVALIER, 2007). O poema cosmogônico Enuma elish (ELIADE, 1983) relata as origens do mundo para enaltecer Marduk. Algumas fontes especificam que Tiamat representa o mar. Apsu e Tiamat são a imagem do primeiro casal primordial. Tiamat é imaginada como mulher e como bissexuada. Da fusão deles são gerados mais casais divinos. As novas gerações de deuses perturbam o descanso de Apsu, que reclama com Tiamat. Quando o jovem Ea, neto do casal primordial, ficou sabendo da decisão de Apsu de destruí-los, ele lança um encantamento, acorrenta-o e mata-o. Ea torna-se o deus das águas. O caçula dos deuses, Anu, recomeça o ataque contra os mais velhos e perturba Tiamat com as ondas. Em resposta, Tiamat cria monstros destemidos. Fixa no peito de seu filho Kingu a tabuinha dos destinos e lhe confere o poder supremo. O único que aceitou enfrentar o combate foi Marduk, filho de Apsu. Tiamat tenta engolir Marduk, que projeta ventos furibundos para inchar o ventre de Tiamat, que permanece com a goela aberta; Marduk, então, arremessa uma flecha que lhe tira a vida. O corpo de Tiamat é cortado em dois pedaços; um foi transformado na abóbada celeste e o outro na terra. Tiamat aparece como criadora 23 de muitos monstros, uma criatividade negativa (ELIADE, 1983). De uma parte do corpo de Tiamat é criada a terra. Esse mito originário explica de onde viemos e por que somos assim, seres que trabalham, possuem sentimentos, sexualizados... O poema ocupa-se da cosmogonia, aproximando-se das ideias de Eliade e diferindo da intenção de Hobbes. Hobbes opta pelo livro de Jó, o qual apresenta características que ele busca enaltecer para reforçar o poder soberano do Estado. O poema Enuma elish era recitado no templo, no quarto dia da festa de Ano Novo. Para os suméricos, existia uma sacralidade no soberano mesopotâmico, “a realeza tinha descido do céu, possuía uma origem divina” (ELIADE, 1983, p. 97). O rei já era predestinado à soberania antes de seu nascimento. Uma luz sobrenatural brilhava em volta de sua cabeça. “O soberano representava o povo perante os deuses e era ele quem expiava os pecados dos seus súditos” (ELIADE, 1983, p. 97). Era um enviado de deus para instalar a justiça e a paz e possuidor de uma dupla natureza, divina e humana. Sua condição humana não chegava a ser transmudada, continuava sendo mortal (ELIADE, 1983). O emprego do mito babilônico para sacralizar os poderes do soberano manteve-se até o desaparecimento da civilização assírio-babilônica. Ao analisar-se aquele poema, verifica-se uma similitude com a teoria política de Hobbes, que emprega o mito do monstro Leviatã para sacralizar os poderes do Estado. 1.2.3 Leviatã na Mitologia Bíblica Segundo a Bíblia, o Leviatã é um animal aquático ou réptil (FERREIRA, 1999). Chevalier (2007) diz que o Leviatã é um monstro que exige cuidado para não acordá-lo. O Leviatã, na Bíblia, é representado pela serpente primordial, que, no relato do livro de Gênesis, é lembrada no tehu vavohu, uma expressão hebraica para definir a Terra, “informe e vazia com as trevas cobrindo o abismo” (Gênesis 1,2). Essa expressão é o que resta de um possível texto que pode descrever o mitológico Leviatã. O termo Leviatã, no entanto, aparece mais em textos poéticos, como em Jó e nos Salmos. De acordo com o Salmo 74, o Leviatã foi assassinado por Deus, Yahweh. Em Apocalipse, ele é capaz de engolir o sol, que simboliza o divino. Entende-se com isso que o Leviatã seja detentor de um poder equiparado ao poder de Deus. 24 Isaías 27,1 situa essa execução no fim dos tempos, fazendo referência ao Egito, à Babilônia. A profecia de Isaías 51,9 fala do Leviatã como o monstro cortado em pedaços por Deus. No Salmo 87,4 e em Isaías 30,7, Rahab é um monstro símbolo do poder político. E em Ezequiel 29,3s e 32,2-8, o faraó é apontado como um dragão. Rahab também é chamado de dragão em Isaías 51,9. Afinal, para Hobbes, o Leviatã foi morto e cortado em pedaços Is 51,9 ou está adormecido no mar Jó 41,10? Acredita-se que, para Hobbes, o mito do terrível monstro marinho adormecido no fundo do mar é um mal necessário. Sua presença é primordial para a harmonia hobbesiana, já que é o temor que ele provoca nos homens que os fará obedecer às leis do Estado. Ao analisar as categorias acima citadas, foram verificados pontos de aproximação. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Leviatã significa “animal que se enrosca”, podendo ser, pela lógica, uma cobra ou uma serpente. Na Bíblia também o Leviatã vem retratado como um réptil. Na mitologia babilônica, é denominado de Tiamat, uma deusa descrita como uma serpente marinha ou um dragão. Nas leituras realizadas, não se verificou uma associação clara entre Tiamat e Lotan. Porém, se Tiamat foi considerada serpente, então haverá ligação entre ela e Lotan. Ao associar as definições que Houaiss e Chevalier trazem sobre o Leviatã, conclui-se que o poder do Leviatã é colossal e pode ser comparado ao poder de Deus, que tem nas mãos a decisão de vida e de morte. Já a definição de Leviatã, de acordo com a mitologia fenícia, distancia-se da ideia de Hobbes. A mitologia fenícia designa-o como monstro do caos. E caos significa desordem, vazio. Logo, constata-se uma distância entre o Leviatã de Hobbes e o Leviatã fenício, pois o monstro de Hobbes não simboliza o caos, pelo contrário, fornecia forma e disciplina às paixões dos indivíduos com o objetivo de lhes proporcionar paz e segurança. Só incorpora a caracterização de monstro ao ser desobedecido. Hobbes acredita no poder do medo para impor a obediência civil. A literatura bíblica aproxima-se da literatura fenícia. Nas duas narrativas míticas, tanto Ba’al quanto Marduk instauram a ordem cósmica. Uma vez compreendido o significado da palavra Leviatã, é importante recorrer à definição que mais se aproxima das características que Hobbes quis ressaltar em torno do Leviatã. Hobbes compara o poder do Estado com o Leviatã evocado no capítulo 41 de Jó, “onde Deus, após ter estabelecido o grande poder do 25 Leviatã, lhe chamou rei dos soberbos” (HOBBES, 1997, p. 241). Conclui-se que, ao empregar o nome de um monstro mitológico bíblico, ele quer com isso apropriar-se do seu sentido simbólico. O sentido apropriado é a capacidade de governar as demais criaturas, já que o monstro não sente medo e não tem superiores. 1.3 ELEMENTOS CARACTERÍSTICOS DO LEVIATÃ Leviatã pode ser considerada a obra-prima de Thomas Hobbes e foi publicada, em 1651, na Inglaterra. Essa obra reforça o que Hobbes já havia discutido no seu primeiro tratado, Os Elementos da Lei Natural e Política, no ano de 1640. Hobbes formulou sua teoria política com fundamento no contrato social. O Estado é uma criação artificial que se origina do contrato. A obra defende o absolutismo político e o poder centralizado na pessoa do soberano ou em uma assembleia. Hobbes era um defensor da monarquia. No Leviatã, ele demonstra a necessidade de se criar um Estado forte capaz de colocar ordem no caos em que os indivíduos viviam no século XVII. Seu princípio hipotético era de que a vida no estado de natureza seria de guerra de todos contra todos. Para Hobbes, a ausência de um Estado forte para governar impediria o progresso e o avanço da ciência, já que o homem, no estado de natureza, teria que se preocupar o tempo todo em defender sua vida. O público-alvo de Leviatã era “[...] os simpatizantes republicanos” (RIBEIRO, 1984, p. 62). Essa obra caracteriza-se principalmente por se identificar como uma resposta para a confusão política e social que ocorria na época. As ideias centrais de Hobbes a respeito da natureza humana são: o homem lobo do homem, guerra de todos contra todos e emprego da força para validar o contrato. A seguir serão analisados alguns elementos importantes da obra que auxiliarão na comprovação do emprego da dimensão religiosa para legitimar o poder do soberano. 1.3.1 “O Homem Lobo do Homem” Hobbes fez uma análise muito interessante a respeito da natureza humana, a qual indica que ele estava muito atento aos problemas de sua época. Criou uma teoria das paixões, afirmando que “a direção dos movimentos humanos, os desejos inatos e adquiridos, as aversões e as aproximações são dadas pelos movimentos 26 naturais aos corpos. O orgulho e outras paixões obrigaram os indivíduos a se submeterem ao governo” (HOBBES, 1997, p. 241). Hobbes parte do pressuposto de que, no estado de natureza, os homens são extremamente egoístas, com o intuito de ressaltar a necessidade de se instaurar um poder para disciplinar as paixões humanas. Acredita-se que Hobbes não considerou o homem só lobo, pois acreditava em seu potencial para se tornar um ser humano social. O homem não tem só o aspecto negativo. Se assim fosse, não haveria Leviatã que conseguisse controlá-lo. Segundo Hobbes (1997), os homens são iguais, “a diferença entre eles não é suficientemente considerável para que qualquer um possa reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele”. Dessa igualdade surgem situações de conflitos. Por exemplo, quando dois indivíduos desejam a mesma coisa e ambos não podem dela gozar ao mesmo tempo, eles se tornam inimigos, tendem a se destruir ou a subjugar um ao outro. Hobbes parte de um princípio hipotético segundo o qual o homem, no estado de natureza, tem direito a tudo, o que gera um estado de guerra de todos contra todos. Hobbes destaca a natureza egoísta dos indivíduos, em que todos são preocupados com seus próprios interesses (HOBBES, 1997), em uma competição insustentável repleta de conflitos e rivalidade e perpétua desconfiança. Para Hobbes (1997), sem um poder comum capaz de impor obediência, os homens não conseguiriam tirar prazer algum da companhia uns dos outros. Hobbes elenca uma série de razões que demonstram a natureza não sociável da humanidade. Ele faz um estudo comparado entre o modo de vida das abelhas e formigas e o modo de vida humano. As abelhas e formigas não apresentam os mesmos apetites e a mesma capacidade de linguagem que os homens. A natureza humana apresenta as seguintes características, segundo Hobbes (1997, p. 143): 1 É competitiva, gerando disputa por honra e por dignidade. 2 A definição de felicidade só existe em comparação com os outros homens. 3 Um grande número de homens julga-se mais sábio e capacitado para o exercício do poder público, criando, assim, reformas e inovações que levam o país à desordem e à guerra. 4 Os homens têm a capacidade de linguagem, empregando a arte das palavras para deturpar o sentido. 27 5 Quanto mais satisfeito sente-se o homem, mais implicativo ele se torna. 6 O acordo entre os homens só surge por meio de um pacto. Segundo Hobbes (1997), a ausência de uma ordem comum para disciplinar as paixões humanas e apaziguar possíveis conflitos e rivalidades acarreta um constante estado de natureza, isto é, um estado de guerra. Mas “a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida” (HOBBES, 1997, p. 109). A natureza da guerra reside em todo tempo que não houver garantia de paz ou enquanto existir disposição para a luta. Essa disposição é a inferência a partir das paixões. Pode-se supor que o indivíduo se comporte de maneira a buscar cada vez mais poder para si próprio. A suposição já é a guerra, pois é dela que surge o direito de agir e de torná-la real e efetiva (LIMONGI, 2002). Na natureza do homem, encontramos três causas geradoras de conflito e discórdia: a competição, a desconfiança e a glória. A primeira leva os homens a atacar os outros, visando lucros; a segunda visa à segurança; e a terceira visa à reputação. Paradoxalmente, no Estado de natureza, ocorre a ausência de fruição da liberdade, pois, onde todos têm liberdade, essa liberdade não é gozada (PONTES, 2013). Segundo Macpherson (1979), Hobbes adverte: que maneira de vida haveria se não existisse um poder comum a temer? Assim, o homem deseja libertar-se a qualquer custo da desgraça. Para tanto, é necessário que ele faça um pacto no qual renuncie ao direito de governar a si mesmo e também à liberdade individual, a qual teria no estado de guerra. O estado de natureza é uma dedução oriunda das paixões. Para Ferreira (2010), a obra máxima de Hobbes apresentou suas ideias acerca da natureza humana e sobre a necessidade de governos e sociedades. Segundo Hobbes, o homem que é mais poderoso do que outro pode aproveitar-se dessa situação para dominar outros e impor os seus desejos, porém esse ciclo não se encerraria, o que acabaria por aniquilar a sociedade em uma guerra desmedida e infindável. O perigo da guerra está sempre rondando, inclusive na garantia de um Estado político. O Estado corre o risco de perecer. Para que isso não aconteça, Hobbes (1997, p. 243) afirma que, “embora nada do que os mortais fazem possa ser imortal [...], se os homens se servissem da razão da maneira como fingem fazê-lo, podiam pelo menos evitar que seus Estados perecessem devido a males internos”. 28 De acordo com Rodrigues (2013), no estado de guerra, em que todos estão contra todos, nada pode ser injusto. Não existe distinção entre o bem ou o mal, justiça ou injustiça. Onde não há bem comum, não há lei e onde esta não existe nunca haverá justiça. Hobbes enuncia que o homem, no Estado de Natureza1, tem direito a todas as coisas, vive na liberdade de cumprir seus objetivos e saciar seus desejos. Nesse estado, não existindo Estado ou Governo, os homens viveriam em constante conflito, visto que a igualdade quanto à busca de realizar os fins levaria os homens a disputarem e lutarem por seus objetos de interesse. Quando todos têm liberdade, na verdade, ninguém a possui, ao contrário, isso só geraria conflitos que levariam à guerra. Para sair do estado de natureza e ter a vida preservada, os homens se reuniriam e assinariam um contrato dando a um soberano, na figura do Estado, poderes ilimitados para a manutenção da segurança e da paz. Esse estado forte iria controlar e forçar os homens a respeitarem suas leis, permitindo a vida em sociedade. Nesse contexto, as pessoas, abdicariam de sua liberdade em favor de um Estado forte e protetor, garantidor de paz, e consequentemente, abdicariam de suas vidas. A liberdade consistiria apenas em revoltar-se contra o soberano quando este não cumprisse o fim de manutenção da paz e proteção da vida (PONTES, 2013). O medo leva à razão. O emprego do cálculo racional fez que o ser humano buscasse uma saída para o estado de guerra. A solução resultante é o contrato. Em prol da segurança, o ser humano abdicou da liberdade vigente no estado de natureza. 1.3.2 Origem do Estado Segundo Hobbes (2006, p. 44), contrato “é o ato em que dois ou mais transferem direitos mutuamente” como uma alternativa artificial para dirimir rivalidades e conflitos. A base para o contrato concentra-se no desejo de paz que supostamente é o de todos os homens. Limongi (2002, p. 28) fala sobre o contrato proposto por Hobbes da seguinte maneira:  1 Hobbes parte do princípio hipotético de que o Estado de Natureza seria uma condição de permanente guerra de todos contra todos. Nesse estado não haveria um poder comum instituído capaz de garantir vida segura e satisfeita. Cada ser humano usaria seu poder para saciar seu próprio desejo. Um estado de liberdade onde todos têm direito a tudo e ao mesmo tempo não há quem possa desfrutar de nada. 29 Por meio desse contrato, segundo o modelo de Hobbes, os homens se comprometem reciprocamente a submeter suas vontades à vontade de um homem ou assembleia de homens, que passa a ter poder para decidir acerca de todos os assuntos concernentes à paz. Para que todos cumpram o que foi contratado surge a necessidade da instauração de um poder comum com força suficiente para impor o cumprimento do pacto. Só as palavras não são suficientes para refrear as paixões humanas (HOBBES, 1997). Hobbes enfatiza que o principal elemento da soberania é a força, cujo monopólio constitui o poder soberano, sendo o único com condições de impor determinados comportamentos à coletividade. A coação representa o único meio adequado para garantir a obediência às leis e aos contratos (MATTOS, 2011). Para Limongi (2002), Hobbes, ao estabelecer um vínculo entre a potência do Estado e o medo da punição, possibilita entender que nenhuma união ou acordo firmado entre cada homem e cada um dos demais seria possível se não fosse a intervenção de um poder coercitivo suficientemente capaz de conter, por meio da lei ou do medo da espada, aquelas propriedades inerentes à natureza humana. O que sustenta o poder do Estado é uma obrigação jurídica, contratual (LIMONGI, 2002). No contrato está a justificativa do poder do Estado. Conforme Ferreira (2010), a paz somente seria possível quando todos renunciassem à liberdade que têm sobre si mesmos. Hobbes discorre sobre as formas de contratos e pactos possíveis em sua obra Leviatã, apontando ser o Estado o resultado do pacto feito entre os homens para, simultaneamente, todos abdicarem da liberdade, do estado de natureza. Segundo Hobbes (1997, p. 141), “os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém”. Com esta afirmação ele constata que, por ser a natureza humana movida pelas paixões, é necessário aliar-se à paixão mais poderosa, o medo. Só o medo da punição impediria a desobediência às leis. A origem do Estado hobbesiano encontra fundamentos no medo, na razão e na ressignificação da lei natural. Hobbes trabalha essas categorias sob uma nova configuração, convertendo-as nas categorias de contrato e de absoluto. Hobbes (1997, p. 144) assim define a essência do Estado: Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, [...]. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. [...] É 30 nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: ‘Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum’. Àquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos. A essência do Estado está no poder soberano. Todos os indivíduos, reunidos em num único corpo político, delegam voluntariamente todos os poderes ao soberano por meio do contrato – um representante todo poderoso capaz de instaurar a paz. Hobbes aproxima-se de Maquiavel e do seu empirismo radical, a partir de um método de pensar dedutivo. Em sua construção hipotética, partiu do contrário, ou seja, iniciou sua teoria a partir dos homens convivendo sem Estado para depois justificar a necessidade dele. Esse estágio do convívio humano sem autoridade recebe o nome de “estado natural”. Hobbes alega que o ser humano é egoísta por natureza, e com essa natureza tenderia a guerrear entre si, todos contra todos, razão pela qual há a necessidade de um contrato social que estabeleça a paz, construindo, assim, uma teoria contratualista de Estado. Os seres humanos, egoístas como são, necessitam de um soberano que puna aqueles que desobedecem ao contrato social (CAIXETA, 2012). No capítulo XVII do Leviatã, Hobbes (1997) expõe causas, geração e definição de um Estado. Segundo o autor, a preocupação com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita levaria o homem a submeter-se às restrições do Estado. A causa dessa submissão é o desejo de sair da mísera condição de guerra e alcançar a paz. O Estado é criado por Hobbes como uma advertência que o homem estabelece sobre si mesmo para pôr fim ao estado de guerra de todos contra todos. A igualdade entre os homens, na visão de Hobbes, gera ambição, descontentamento e guerra. A igualdade seria o fator que contribui para a guerra de todos contra todos, levando-os a lutar pelo interesse individual em detrimento do interesse comum. Obviamente, isso seria resultado da racionalidade do homem, que a ele concede um senso crítico quanto à vivência em grupo, podendo criticar a organização dada (FERREIRA, 2010). Para Hobbes, o Estado deveria ser a instituição fundamental para regular as relações humanas, dado o caráter da condição natural dos homens que os impele à 31 busca do atendimento de seus desejos de qualquer maneira, a qualquer preço, de forma violenta, egoísta, isto é, movida por paixões (RIBEIRO, 2013). Segundo Hobbes (1997), procurar a paz e segui-la é a primeira lei natural que dá início ao Estado. Existe uma necessidade urgente de um “poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que [...] possam alimentar-se e viver satisfeitos [...]” (HOBBES, 1997, p. 143). Para Hobbes, o acordo apropriado entre o homem e todos os outros homens seria promulgado como: “cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações” (HOBBES, 1997, p. 144). Assim nascia então o Estado na visão de Hobbes. Segundo Souki (2008), a instauração do Estado se dá quando uma multidão realiza um acordo e faz um pacto. O pacto concede-lhes vida pacífica e protegida. A multidão transforma-se em povo ao transferir todos os direitos ao soberano. Ela acrescenta que o soberano fica fora do contrato, por isso não corre o risco de ser injusto. Seria necessária a criação artificial da sociedade política, administrada pelo Estado, estabelecendo-se uma ordem moral para a brutalidade social primitiva. O Leviatã surge para colocar fim a essa brutalidade, como força de manutenção da ordem social e que exerce o seu poder sobre os seus subalternos. Segundo Hobbes, os homens só podem viver em paz se concordarem em submeter-se a um poder absoluto e centralizado. A Igreja cristã e o Estado cristão formavam um mesmo corpo, encabeçado pelo monarca, que teria o direito de interpretar as Escrituras, decidir questões religiosas e presidir o culto (FERREIRA, 2010). Hobbes (1997, p. 141) apresenta um contrato de guerra e paz em que há o “desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a consequência necessária das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimentos dos pactos”. Nos conflitos humanos, o medo e a esperança oscilam. O medo da morte funda a teoria política de Hobbes. Segundo Souki (2008), a vontade de evitar a morte e a esperança de reduzir o medo são fatores que levam o indivíduo a se sujeitar ao Estado. A autoridade do soberano e a abdicação de liberdade dos súditos têm por base o medo da morte (SOUKI, 2008). O desejo de escapar da terrível sensação do risco de morte iminente, do medo do imprevisível, faz que nasça o Estado. 32 Assim, o cidadão, para assegurar a sua própria sobrevivência, restringe as suas liberdades naturais e passa a viver sob a proteção do Estado. O Leviatã é o Estado, representado pelo monarca ou por uma assembleia, possuidor de todos os poderes, inclusive religioso. O Estado surge para garantir a segurança dos indivíduos, consequentemente, uma vida plena. Algumas categorias incidiram na elaboração da teoria contratual do Estado hobbesiano, tais como: medo, razão, direito natural e leis de natureza. Qual a origem da sensação de medo que Hobbes insistentemente empregava? Para responder a essa questão, é preciso tentar compreender de onde surgiu esse termo. Na idade média, a culpa moral era sinônimo de culpa religiosa. O Cristianismo encontrou terreno fértil para prosperar nesse período. A Igreja expandiu-se e ditou as doutrinas. O papado era representante oficial de Deus. A culpa religiosa fica associada ao pecado e ao erro. Nessa época, Deus era visto como juiz misericordioso. Já na Renascença, período em que viveu Hobbes, a culpa transforma-se em confissão da fé. Deus é visto como terrível, temível, pavoroso; descobre-se que Deus está distante, consequentemente, o temor se dissemina. Os sermões dos puritanos da Nova Inglaterra assustavam literalmente as crianças ao descreverem o inferno com choro e ranger de dentes. O sermão do teólogo luterano Tileman Heshusius (1588) afirmava que a morte era de todos os males o mais terrível. Tanto a pastoral de Roma quanto a pastoral da Reforma insistiam na terrível morte dos pecadores. O protestantismo inseriu a morte na lógica do pecado original (DELUMEAU, 2003). O medo passa a ser experimentado por meio da categoria do imaginário. O temor pelo inferno permeia o imaginário das pessoas. Na Renascença, o rei passa ser a única figura que garantia coesão ao Estado. A mediação do divino passou a se concentrar na pessoa do rei. Hobbes, na elaboração da teoria do contrato, é influenciado por esse conceito. Esse período é marcado pelo reinado do medo e da condenação. Nasce uma doutrina focada no medo – medo retroalimenta medo. Na religião, surge uma ampla pastoral voltada para o medo: confissão e penitência. O humanismo formou-se pelo viés da mediação religiosa, baseado na doutrina e na pedagogia do medo. Atribui-se ao indivíduo culpa e castigo. Nesse contexto de medo mediado pela religião, o Leviatã pode representar a salvação dos homens. O que Hobbes alegava ser a maior das paixões humanas era o medo da morte 33 violenta, contra a qual, segundo ele, só o Estado soberano poderia garantir segurança e paz. O que convenceu o indivíduo à submissão ao Estado soberano? Segundo Ribeiro (1984, p. 70), é o medo da morte violenta, fundamental para a socialidade: “o temor veste o pacto, que nu não passava de palavreado; mas não basta para exorcizar a morte para encaminhar os homens à paz”. Ribeiro acrescenta que, além do medo, é necessário haver esperança para a socialidade fluir. O medo de outro ser humano faz que os indivíduos optem pelo contrato. O medo da morte violenta provocaria um estado de alerta constante. Aquele que se submete a outro por medo se submete àquele que teme ou a outro no qual detenha confiança em sua proteção (HOBBES, 2006). Sentir medo é reconhecer um poder (HOBBES, 2006). O medo é a paixão que menos leva o indivíduo à prática de violação das leis. E é a única paixão que leva o indivíduo de natureza não tão generosa a respeitar as leis (HOBBES, 1997). Quando Hobbes remete o Estado ao mito de origem, busca apropriar-se de seu sentido de provocar terror. Então, é pelo medo da punição que Hobbes encontra o caminho para a submissão ao Estado. O Estado hobbesiano seria marcado pelo medo, sendo o próprio Leviatã um monstro cuja armadura é constituída de escamas, as quais remetem ao mito do monstro marinho, que tem a forma de seus súditos, brandindo ameaçadora espada, governando de forma soberana por meio deste temor que inflige aos súditos. Em suma, este Leviatã vai concentrar uma série de direitos indivisíveis para poder deter o controle da sociedade, em nome da paz, da segurança e da ordem social, bem como para defender a todos de inimigos externos (FERREIRA, 2013). O medo encurralou o indivíduo a tomar uma decisão racional. Quando alguém raciocina está fazendo uma soma total. Essa operação não se restringe apenas a números, pode-se utilizar o cálculo a toda espécie de coisa: “[...] seja em que matéria for que houver lugar para a adição e para a subtração, há também lugar para razão, quando a contamos entre as faculdades do espírito” (HOBBES, 1997, p. 51). Hobbes define razão como o cálculo das consequências de nomes gerais estabelecidos para marcar e significar pensamentos. Segundo ele, a razão não é inata ao indivíduo nem é adquirida apenas pela experiência, mas é obtida com esforço, por meio de uma adequada imposição de nomes e do emprego de um método bom e ordenado de passar dos elementos até 34 chegar a um conhecimento de todas as consequências de nomes referentes ao assunto em questão (HOBBES, 1997). É a razão que dita a cada homem que procure a paz à medida que haja esperança de alcançá-la (HOBBES, 2002). 1.3.2.1 O Estado hobbesiano fora do alcance do domínio da Igreja Hobbes não admite a submissão do Estado a nenhuma outra instituição, principalmente à Igreja, que, na época, era sua maior rival, já que era uma instituição organizada em nível universal. Segundo Hobbes (1997), o Estado deve submissão apenas ao Deus Imortal. Ao comparar o Estado ao Leviatã do livro de Jó, ele ressalta que, no plano terreno, o Estado é uma instituição incomparável e que não tem nada a temer. Entretanto, Hobbes (1997, p. 241) afirma que o Estado é uma autoridade mortal e que “no céu há algo que o Estado deve temer obedecer”. Acredita-se que, com a afirmação de que o Estado é submisso ao poder do Deus Imortal, Hobbes busca legitimidade junto ao poder no Deus. Nessa perspectiva, o soberano pratica ações em conformidade com as leis de Deus. O Estado não precisa mais da Igreja como mediadora para assuntos divinos. O objetivo de Hobbes é impedir a concorrência entre as instituições Igreja e Estado. Hobbes inova ao livrar o Estado do domínio da Igreja. Ele percebe que essas instituições têm funções distintas. O Reino de Deus ainda estava para vir, num novo mundo, de modo que não podia haver em nenhuma igreja uma autoridade capaz de obrigar, antes de o Estado haver abraçado a fé cristã, e assim não podia haver diversidade de autoridade, embora houvesse diversidade de funções (HOBBES, 1997, p. 378). Assim, acaba subordinando a Igreja ao Estado. Percebe-se que Hobbes combate a Igreja com as mesmas armas, faz uso dos mesmos argumentos, retira da própria Escritura e acaba sacralizando os poderes do Estado. Hobbes (1997, p. 347) cita um exemplo da Escritura para comprovar que, “desde a primeira instituição do reino de Deus até o cativeiro, a supremacia da religião estava nas mesmas mãos que a da soberania civil”. Segundo Hobbes (1997), o soberano teria nas mãos o poder religioso. Seria também uma espécie de papa. Ao comparar o poder do soberano com o do papa, ele proclama a independência do soberano em relação à Igreja. O próprio soberano 35 seria uma espécie de mediador entre a divindade e o povo. Castelo Branco (2004) ressalta a importância de se conceituar secularização para melhor se compreender as teorias do Estado Moderno. Analisou a impossibilidade de se separar o poder espiritual do poder material no Leviatã, porque, segundo ele, isso geraria um conflito político de poderes, dificultando a compreensão de quem os governa. Ele demonstra que o significado de secularização nessa obra pode ser interpretado como a transformação de um Deus todo-poderoso na imagem de um soberano intramundano, surgindo um indivíduo que representaria o Estado. Segundo Carvalho (2012), a obra Leviatã é libertadora das consciências que eram controladas pelo domínio do papado. O papa alegava ser o substituto de Cristo. A pretensão da Igreja era ser guardiã e única intérprete das Escrituras. Os papas ameaçavam com as penas eternas, e todos, inclusive o soberano civil, estavam sujeitos à excomunhão. O descontentamento com a corrupção na Igreja, com as vendas de indulgências e do perdão divino, provoca a decadência da instituição. Hobbes mostra que o cargo de chefe dos pastores, segundo as Escrituras, é do soberano civil. Aqueles a quem Deus não falou imediatamente devem receber de seu soberano as ordens positivas de Deus. Para comprovar essa afirmação, ele cita como exemplo a família e os descendentes de Abraão, que não receberam as ordens de Deus diretamente, e precisaram de Abraão para interpretálas (HOBBES, 1997). Hobbes (1997, p. 341) conclui que “os que ocupam o lugar de Abraão num Estado são os únicos intérpretes daquilo que Deus falou”. Por Moisés ter sido chamado sozinho até Deus, ele era único que representava para os israelitas a pessoa de Deus, isto é, era seu único soberano sob Deus (HOBBES, 1997). Nesse contexto, Hobbes diz que todo aquele que num Estado ocupar o lugar de Moisés é o único mensageiro de Deus e intérprete de suas ordens. Com base no Antigo Testamento, Hobbes (1997, p. 348) conclui que “quem tinha a soberania do Estado entre os judeus tinha também a suprema autoridade em matéria de culto exterior de Deus, e representava a pessoa de Deus”. Para que os reis se tornassem cristãos, precisavam submeter seus cetros a Cristo e prometer guardar e defender a fé cristã. Embora os reis cristãos fossem súditos de Cristo, equivaleriam aos Papas. Sobressalta que o papa, em momento algum, é mais do que rei (HOBBES, 1997). Entende-se que a preocupação de Hobbes era afastar a influência da Igreja sobre o Estado, pois ele sabe muito bem que a Igreja é uma instituição poderosa, que tem nas mãos instrumentos de dominação e legitimação 36 incomparáveis. Inteligentemente, Hobbes apropriou desse poder. Parece que ele teve consciência de que, sem esses elementos de convencimento, o Estado soberano pereceria antes de se instaurar definitivamente. A categoria “secularização” não é do período de Hobbes, embora tenha pontos de aproximação relacionados com sua teoria política. O termo “secularização” pode ser entendido como “[...] o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos” (BERGER, 1885, p. 119). A religião passa a se restringir ao âmbito privado, relacionada diretamente com as escolhas do indivíduo. Modernamente pode-se dizer que o Leviatã é secularizado. Isso possibilitou a separação da religião pública da individual. O contratualismo jusnaturalista de Hobbes “contribuiu para a diferenciação dos espaços discursivos político e religioso, estabelecendo assim bases sólidas sobre as quais o direito à liberdade religiosa viria a ser edificado” (MACHADO, 1996, p. 73): A regra, na República Cristã preconizada por Hobbes, era a da conformidade absoluta com os desígnios do Monarca, centro unificador de todo o corpo político. Ele é, simultaneamente, cabeça do Estado e da Igreja. A ele deve ser reconduzido todo o poder espiritual e temporal. Neste contexto, o espaço reservado à liberdade religiosa coincide exatamente com o espaço reservado pela natureza das coisas ao foro interno (MACHADO, 1996, p. 73). Acredita-se que a intenção de Hobbes, ao concentrar nas mãos do monarca o poder espiritual e o poder material, era de preservar a harmonia social. O soberano tomaria as decisões religiosas que mais lhe conviessem. Isso em razão do medo de guerras religiosas, já que Hobbes viveu num período de intensas disputas entre o catolicismo romano e o protestantismo. Talvez ele não acreditasse na possibilidade de as diversas religiões conviverem pacificamente. Percebe-se que ocorreu uma laicização parcial do Estado, pois Hobbes utilizou as Escrituras Sagradas como instrumento de legitimação da soberania do Estado, permanecendo em parte o religioso imbricado no político. O propósito deste texto é investigar de onde provém o poder do Leviatã e se todo esse poder realmente proporciona paz e segurança a todos. Ao atribuir ao Estado competência exclusiva para todos os atos, não aceitando concorrência e interferência de nenhuma outra instituição e submetendo-se somente a Deus, o poder pode se tornar arbitrário. Fica claro um aspecto negativo da teoria do Estado hobbesiano: as leis só valem para o povo, o soberano está acima da lei. 37 1.3.3 Direito Natural Hobbes (1997, p. 264-5) define direito natural como o direito de natureza, pelo qual Deus reina sobre os homens, e pune aqueles que violam suas leis, deve ser derivado não do fato de tê-los criado, como se exigisse obediência por gratidão por seus benefícios, mas sim de seu poder irresistível. [...] Para aqueles portanto cujo poder é irresistível, o domínio de todos os homens é obtido naturalmente por sua excelência de poder; e por consequência é por aquele poder que o reino sobre os homens, e o direito de afligir os homens a seu prazer, pertence naturalmente a Deus todo-poderoso, não como criador e concessor de graças, mas como onipotente. [...] o direito de fazer sofrer nem sempre resulta dos pecados dos homens, mas sim do poder de Deus. Com essa definição, percebe-se que Hobbes esclarece que é natural o dever de obediência dos homens ao estado civil, já que o poder do Estado é irresistível. A razão auxilia na preservação da vida. É natural a obrigação de obediência ao poder soberano. “O súdito é obrigado a obedecer antes de tudo às leis civis” (BOBBIO, 1998, p. 44). Só o soberano fica isento de limites; a lei civil vem em primeiro lugar. Hobbes dedicou-se ao estudo do direito natural e adotou essa doutrina para reforçar o poder civil. Ele faz uma distinção entre lei divina e humana. A divina é subdivida em natural e positiva (BOBBIO, 1998). Segundo Hobbes (2006, p. 187), a lei divina natural é aquela “que Deus manifestou a todos os homens por meio da palavra eterna, nascida juntamente com eles, por meio da razão natural”. A positiva é “aquela revelada por Deus através da palavra do profeta, pela qual como homem ele falou aos homens” (HOBBES, 2006, p. 187). O direito natural é aquele que Deus comunica aos homens por meio da razão e vige no estado da natureza; o direito positivo – o humano deixando de lado o divino – é proposto pelo Estado por meio da pessoa ou das pessoas que detêm, no Estado, o sumo poder – ou soberania – e tem vigência no contexto da sociedade civil. O que coloca Hobbes contra a tradição do jusnaturalismo é o modo como concebe a relação entre as leis naturais e as leis civis, a validade das leis naturais e as leis civis, a validade da leis naturais em comparação com a das leis civis (BOBBIO, 1998, p. 41-2). Segundo Machado (1996), o poder político do Estado procura a sua fonte de legitimidade num plano imanente, de direito natural. 38 1.3.4 Direito Divino dos Reis Embora o livro Leviatã (2009), afirme, em seu resumo, que Hobbes defende o absolutismo político sem recorrer à noção de direito divino, e outros analistas de Hobbes, como Caixeta (2012), compartilhem da mesma visão, há características que sinalizam a incidência desse direito. Hobbes ofereceu uma nova configuração ao direito divino dos reis, ele foi ressignificado, introduzindo o contrato social. Ele lança mão de instrumentos simbólicos para convencer os súditos de que só a razão não era suficiente para que as pessoas transferissem sua liberdade para o Estado. A aceitação da Doutrina do Direito Divino por grande parte do povo devia-se às causas psicológicas muito profundas que deixavam raízes nos tempos dos reis bíblicos. Acreditava-se que eles operavam milagres. A prática dos reis que realizavam curas era muito comum em meio à população francesa na época da Idade Média, havendo então a crença de que os óleos sagrados de Reims, local onde os reis franceses eram coroados, serviam como um bálsamo às feridas dos doentes. Em dias festivos, os soberanos organizavam cerimônias para tocar nos doentes, livrando-os das chagas que os atormentavam. Esse tipo de prática de cura coletiva contribuiu para o fortalecimento do prestígio do rei perante o povo. Na França, o reinado de Luís IX, entre 1226 e 1270, foi marcado por uma política baseada no direito divino do rei. A teoria do Direito Divino impôs transição de poder, o direito do rei contra o direito da Igreja. Com base nessa teoria, o rei adquiria um estatuto de autonomia perante o Papado Sagrado e a Aristocracia de Sangue. Enquanto os teocratas do Vaticano defendiam a submissão de todos ao bispo de Roma, na França, os estatocratas e teóricos do Direito Divino exigiam o mesmo em relação ao seu rei. Eles defendiam a possiblidade de um príncipe convertido ao luteranismo ou ao calvinismo resistir a um imperador da antiga fé (SCHILLING, 2010). As lutas religiosas aceleraram a crise do sistema feudal europeu. A sociedade europeia foi sacudida por todo tipo de rebelião. Isso contribuiu para o surgimento de um discurso cada vez mais a favor da ordem geral e da necessidade de paz interna que somente poderia ser obtida num regime forte, no qual o rei era tudo e poderia tudo. Somente um monarca muito poderoso poderia evitar o império da desordem e da dissolução (SCHILLING, 2010). A teoria do Direito Divino serviu de mecanismo de transição da política do medievo para a política moderna, apresentando a necessidade do Estado se libertar da influência clerical (SCHILLING, 2010). 39 No fim do século XVII, a teoria do direito divino dos reis cedeu espaço à liberdade natural e ao pacto social, e o direito divino da Igreja deu lugar ao princípio da tolerância. Cinquenta anos mais tarde, a origem divina e a voz absoluta do dever deram lugar aos cálculos de utilidade. Através de Locke e Hume, tais doutrinas fundaram o individualismo. O pacto social pressupunha direitos individuais. Essa nova ética, que se limitava ao estudo científico das consequências do interesse próprio racional, colocou o indivíduo no centro das atenções (KEYNES, 1926). Apesar de a teoria de Hobbes sinalizar para uma distinção dos discursos político e teológico, as influências do direito do monarca, de inspiração sacerdotal, davídica e constantinista continuam a ter valor extremamente significativo (MACHADO, 1996). No prefácio da obra Do Cidadão, Hobbes (2006, p. 22), demonstra que “não repugna o Direito Divino, já que Deus é tutor de todos os governantes por natureza, conforme argumentam os ditames naturais”. Com essa afirmação, ele confessa não repugnar a teoria e acaba empregando-a na elaboração de sua teoria do contrato, já que era muito conveniente para ele retirar esse papel da Igreja de mediadora de assuntos divinos. O Ideal para Hobbes foi concentrar todos os poderes nas mãos do Estado. 1.3.5 Paixão versus Razão Hobbes constrói sua teoria política após um longo caminho marcado pelo medo e pela insegurança provocados pelas guerras. Desde o nascimento até a maturidade, conviveu com a guerra ou com sua iminente ameaça. Percebeu que o ser humano é possuidor de paixões que o impulsionam a saciá-las a qualquer custo. A busca constante por poder é uma característica humana que acarreta conflitos e guerras. Para atingir seu fim, o ser humano é capaz de destruir seu próprio semelhante. Preocupado com as relações sociais de sua época, Hobbes cria um artifício para controlar as paixões dos seres humanos, o contrato. A paixão de Hobbes leva-o à razão. A razão opta por um medo razoável e justificado. O indivíduo prefere temer ao Estado a viver em constante risco de morte violenta. No plano terreno, o Estado é como um Deus para o homem. Todo o poder é delegado a ele e é legitimado na anuência das partes. Percebe-se aí que, a intervenção é humana, baseada na vontade das partes. Contudo, verifica-se 40 também que o uso do mito bíblico do monstro rei dos soberbos serve para reforçar este poder. Hobbes propôs uma nova configuração à categoria de direito divino dos reis. A aliança transforma-se em um dado concreto, em um contrato assegurado pelo poder do Estado, um poder visível. O não cumprimento das leis civis implica desobediência a Deus, já que o Estado segue as leis divinas. O indivíduo, ao temer o Estado, teme também a Deus. Neste capítulo buscou-se entender a cultura vivenciada por Hobbes, a pessoa humana nos seus conflitos e o emprego da mitologia para melhor compreender as teorias de Hobbes. Entender estes elementos que marcaram o pensamento de Hobbes foi imprescindível para verificar se o símbolo religioso é empregado para legitimar ou não o poder do Estado hobbesiano. No próximo capítulo, investigar-se-á sobre o poder sagrado do Leviatã. 41 2 O PODER SAGRADO LEVIATÃ O objetivo deste capítulo é apresentar as características do Estado hobbesiano a partir do uso do nome e da imagem mítica do Leviatã para instituir e sustentar a soberania absoluta. Busca-se analisar a origem do poder do Leviatã hobbesiano. Que poder é esse? Por que o uso de tanto poder? Para responder a tais questionamentos a análise da iconografia poderá revelar uma forma de linguagem que possibilitará a abertura de interpretações no campo religioso. A análise iconográfica é feita a partir da identificação, da descrição e da classificação das imagens. A iconografia parte do levantamento e da organização de modelos de representação. Seu estudo possibilita acessar o conhecimento contido nos pensamentos e gestos coletivos que permeiam a vida cotidiana do ser humano. As fontes visuais são portadoras de uma dimensão da vida social e dos processos sociais construídos pelo ser humano. No Renascimento é abundante o número de imagens em que se percebe o predomínio do afetivo e ideológico. Nesse período, houve um esforço humano para coletar, organizar imagens e decodificar significados (MENEZES, 2003). Acredita-se que Hobbes não fundamenta o poder do Estado apenas no contrato social. Ele emprega a imagem do monstro bíblico do livro de Jó para dar sustentação à crença de que o Estado é uma “autoridade espiritual e mundana, cujo poder não há igual sobre a Terra” (VILLANOVA, 2007, p. 52). A imagem é transformada em símbolo somente quando os objetos do mundo externo começam a distanciar-se, podendo ser vistos e reconhecidos várias vezes, sempre que apareçam (AVENS, 1993). No período em que Hobbes viveu, ocorreu um desenvolvimento das imagens de monstros marinhos. O monstro vive no imaginário humano desde os tempos mais remotos. Cada povo e cultura têm uma maneira de perceber o monstro. Conforme o contexto, esse monstro se configura com características compatíveis com a realidade experimentada. Ao analisar a trajetória do monstro nas passagens bíblicas de Gênesis, de Jó, dos Salmos e do Apocalipse, iniciando sua aparição sob a forma de uma serpente em Gênesis 3,15 e finalizando no Apocalipse 12, 15-17 sob a forma de um dragão terrível, verifica-se um grande desenvolvimento do animal, tanto em tamanho quanto em poderes. Há a possibilidade de que esse crescimento tenha sido proporcional ao crescimento do mal que contextualizou cada período. 42 Quando Hobbes denomina o Estado hobbesiano de Leviatã, entende-se que ele desejava retomar a mesma ideia expressa no pensamento anteriormente estabelecido no Leviatã do Livro de Jó. Hobbes, ao evocar os nomes dos monstros bíblicos – Leviatã e Behemoth - como títulos de suas duas obras políticas, tinha a intenção de utilizar uma linguagem que na época era significativa tanto para ele quanto para o público que ele desejava atingir (SOUKI, 2008). Segundo Souki (2008), na Inglaterra do século XVII a Bíblia era um recurso que todos os partidos recorriam para justificar qualquer coisa que alguém afirmasse. Para Hobbes, o nome representa a imagem que temos a respeito da coisa. Um nome é a voz humana que traz à mente a concepção da coisa a qual é impressa por uma marca (HOBBES, 2002). O nome Leviatã aparece na Bíblia em diversos Livros. Outras denominações também retomam a mesma essência do monstro Leviatã de origem. Tiamat e Raab remetem ao monstro Leviatã. O nome Leviatã na Bíblia não vem configurado sempre com a mesma imagem. O monstro aparece nas formas de baleia, crocodilo, hipopótamo, peixe, dragão, serpente, animais pertencentes a reinos diferentes. Às vezes aparece como um animal mamífero, como réptil, como peixe ou como um animal pré-histórico. Chevalier (2007, p. 547) cita passagens bíblicas que descrevem o Leviatã apresentando formas de diferentes animais: O dragão do Apocalipse 21,3, que encarna a resistência do poder do mal contra Deus, reveste-se de certos traços desta serpente caótica, que, provocada, era capaz de engolir momentaneamente o Sol. Em Jó, 15,13, é chamado de a serpente fugitiva. Em Jó 40, 41, dão uma descrição aterrorizadora dele. Está sempre vivo no mar, onde repousa adormecido, se não é provocado. Se numa passagem de Jó, é historicamente relacionado com o crocodilo, símbolo do Egito, que deixara nos hebreus lembranças tão cruéis, ele evoca também a imagem do monstro vencido por Jeová nas origens, ele próprio modelo das forças hostis a Deus. O monstro Leviatã representa a encarnação da força do mal. Trabalhar as categorias imagem, representação e símbolo contribuirá para construir a hipótese em questão: símbolo Leviatã reforça o poder do Estado. O ser humano sempre esteve ligado à atividade religiosa. O campo simbólico religioso articula-se com os campos simbólicos. O símbolo é uma linguagem fundante da experiência religiosa. Na experiência humana religiosa, o transcendente é percebido como mistério. E essa mediação entre o ser humano e o transcendente é feita por meio da infinita variedade de coisas que integram a vivência comum. A riqueza do símbolo se deve a essa variedade de coisas vivenciadas pelo ser humano (CROATTO, 2010). 43 O sagrado é caracterizado pelas linguagens simbólicas. O símbolo fornece o ethos de um povo. O sagrado pode provocar sentimentos diversos, como devoção e amor, repulsa e ódio. A partir desses sentimentos surge um outro: o respeito fundamentado no temor. A origem do sentimento religioso e da experiência religiosa ocorre com base nesses sentimentos (CHAUÍ, 2000). O poder do Leviatã hobbesiano é regido pelo temor. As pessoas temem tamanho poder comparado com o poder do Leviatã descrito no Livro de Jó. Hobbes, ao viver num contexto de morte, apropria-se do sentido do símbolo do monstro bíblico Leviatã para tentar consagrar o poder da soberania absoluta e garantir a vida. O Estado hobbesiano é uma construção humana para proporcionar a paz. Hobbes transferiu sua máquina estatal para a dimensão sagrada. Para realizar essa transposição, primeiro apropriou-se do nome e do sentido do monstro religioso Leviatã. Nesse caso, ao aplicar a ideia de religião como estruturante das mais diversas dimensões da sociedade definida por Bourdieu (1998), verifica-se que a máquina estatal criada por Hobbes adquire um caráter sagrado quando é relacionada a uma cosmogonia, retomando a mesma ideia de criação e nascimento da ordem cósmica. O monstro bíblico Leviatã é um símbolo religioso. Segundo o mito cosmogônico, de uma parte do corpo de Tiamat é criada a terra. O Leviatã bíblico forneceu forma à vida da humanidade. Portanto, Hobbes busca a mesma ideia para tentar estabelecer uma coesão social entre os indivíduos. O terrível e temível monstro religioso é responsável pela harmonia social, impondo ao ser humano uma obediência quase total. A religião reveste as práticas humanas com um caráter sagrado. 2.1 AS CATEGORIAS DE SAGRADO E DE PROFANO Para analisar a origem do poder do Leviatã de Hobbes, é necessário entender as categorias de sagrado e de profano. Ao se recorrer a Eliade (1992), entende-se a palavra sagrado como oposto ao profano. Ele aborda o sagrado numa perspectiva mais ampla, na sua totalidade. A manifestação do sagrado é vista como algo “absolutamente diferente do profano”. Segundo Eliade (1992, p. 16), “[...] para o homem de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado equivale a poder e, em última análise, à realidade por excelência. O sagrado está saturado de ser”. O sagrado fornece sentido e confere significado à vida humana. O profano é o oposto, já que promove a diluição dos significados. Logo, há dois modos de ser no mundo: 44 sagrado e profano, que dependem das diferentes posições que o ser humano conquistou no Cosmos. O sagrado, a priori, dá-se a conhecer e o faz através da hierofania. Esta é algo diferente do natural (ELIADE, 1992). O espaço sagrado destaca-se do resto do existir. Para Croatto (2010, p. 59), o sagrado é “em si mesmo, parte do profano [...], mas é recebido pelo homo religiosus como mediação significativa e expressiva de sua relação com o divino”. O profano é o que não está associado ao divino, pois só se ascende ao divino por meio de sua sacralização. “O objeto sagrado é mundano, está ao lado do ser humano, mas a hierofania (teofania) sacraliza-o” (CROATTO, 2010, p. 60). Croatto (2010, p. 61) associa a noção do sagrado à ideia de relação: O sagrado é essencialmente uma relação entre o sujeito (o ser humano) e um termo (Deus), relação que se visualiza ou se mostra em um âmbito (a natureza, a história, as pessoas) ou em objetos, gestos, palavras etc.. Sem essa relação nada é sagrado. Em sua estrutura essencial, o sagrado é sempre o mesmo ato misterioso, a manifestação de algo ‘totalmente Outro’, que não pertence a esta ordem natural e profana (CROATTO, 2010). No capítulo XXXV do Leviatã, Hobbes (1997, p. 303-4) define o que é sagrado e o que é profano: [...] a palavra profano geralmente é usada nas Escrituras com o sentido de comum, consequentemente seus contrários, santo e próprio, no Reino de Deus devem significar também o mesmo. Mas em sentido figurado também se chama santos àqueles homens cujas vidas foram tão retas como se eles tivessem renunciado a qualquer propósito mundano, e se dedicado e dado inteiramente a Deus. Em sentido próprio, do que é tornado santo quando Deus de tal se apropria e separa para seu próprio uso diz-se que é santificado por Deus, como o sétimo dia no quarto mandamento, tal como se diz no Novo Testamento que os eleitos são santificados no momento em que são ungidos pelo espírito de piedade. E o que é tornado santo pela dedicação dos homens, e entregue a Deus, a fim de ser usado unicamente em seu serviço público, é também chamado sagrado, e diz-se está consagrado, como os tempos e outras casas de oração pública, assim como seus utensílios, padres e ministros, vítimas, oferendas e a matéria externa dos sacramentos. Para Hobbes, a dedicação dos humanos entregue a Deus a fim de ser usada unicamente em seu serviço público é considerada sagrada, será consagrada para o serviço de Deus. Percebe-se, assim, que Hobbes considera o Estado hobbesiano como sagrado. O sagrado, para existir, necessita do crente. Hobbes (1997), no capítulo XXXI, fala do reino natural de Deus e explica a necessidade de conhecer as 45 leis de Deus para o completo conhecimento do dever civil. Segundo o autor, os súditos de Deus não podem ser ateus, pois não reconheceriam suas palavras, nem acreditariam em suas recompensas e assim não temeriam suas ameaças. Só os que acreditam haver um Deus que governa o mundo são considerados súditos; o restante é compreendido como inimigo. O caráter sagrado não está restrito a determinados grupos e objetos. Por mais indiferente que seja o ser, ele pode ganhar participação na característica do sagrado. É o mito que tem a capacidade de introduzir nesse ser determinadas diferenças de valor (CASSIRER, 2004). Todo ser e acontecer, ao ser projetado sobre a oposição fundamental entre o sagrado e profano, ganha nessa mesma projeção um novo teor – um teor que simplesmente não tem desde sempre, mas que só lhe surge nessa forma de consideração, de certa maneira nessa iluminação mítica (CASSIRER, 2004, p. 139). A definição que Hobbes faz de profano e de sagrado se aproxima dos conceitos expostos de Croatto (2010) e de Eliade (1992). O Leviatã é sagrado porque é algo separado dos demais, isto é, não é subordinado a nenhuma lei civil. Todos os súditos devem obediência às leis civis. Somente o Leviatã não deve tal obediência. Segundo Villanova (2007), o sentido do direito natural é deturpado. O pacto em direção ao todo-poderoso Estado consiste no pacto de parceria e sujeição. Para o soberano, esse pacto representa direitos e poderes, e, para o cidadão, é apenas de obrigação. O soberano está acima dos demais. Ele dita as regras para que os outros obedeçam. É uma autoridade mundana que se sacraliza ao apropriarse do sentido do mito do Leviatã. No livro de Jó, ele é descrito como rei dos soberbos, uma autoridade com poderes de proporções gigantescas, separados dos demais. Hobbes considera o Leviatã um deus mortal. Hobbes compara a obediência a Deus à obediência ao poder civil. Ao tratar do emprego de citações bíblicas por Hobbes, Ribeiro (2003, p. 18) afirma que: O uso frequente da metáfora e citações bíblicas deve ser levado muito a sério na obra de Hobbes – a sua ambição compara-se à missão de Cristo e consiste em trazer aos homens esta espécie de salvação terrena que é a paz dentro do Estado. Concorda-se com Ribeiro (2003) que Hobbes fez uma tentativa de comparar a missão do Leviatã com a de Cristo. Acredita-se que sua intenção foi buscar 46 legitimidade junto aos súditos por meio do emprego de citações bíblicas. Ao tentar comparar o poder de salvação do Estado e de Cristo, percebe-se sua intenção de apropriar-se do caráter divino de Cristo. Segundo Hobbes, o Estado deve obediência apenas ao deus imortal. Com essa afirmação, ele transmite a ideia de que o Estado é um mediador do ente divino. Além do medo da punição civil, fica implícito um temor ao Deus Imortal. 2.2 A CONCEPÇÃO DE PODER E A PERSPECTIVA HOBBESIANA  Hobbes busca fundamentação para o poder na passagem bíblica do Livro de Jó. A descrição do grande poder do Leviatã em Jó 41 se contrapõe à denuncia do mau uso do poder em outras passagens bíblicas, tais como no Salmo 87,4 e em Isaías 30,7. O poder dos dirigentes é visto como opressor, denunciado e comparado ao monstro Leviatã Sl 87,4; Is 30,7. Na Bíblia, também existem experiências de uma nova forma de poder. O poder na visão bíblica é caracterizado pelo serviço. O poder político, econômico ou religioso é apenas um aspecto do poder. Samuel testemunha em 1Sm 12, 1-5 2 como exerceu o poder. O seu testemunho denuncia os que, naquele tempo, abusavam do poder em próprio proveito. Jesus, por exemplo, tinha muito poder3, porém posicionou-se como servo, realizando o trabalho próprio de um empregado da época. Fez-se empregado, colocando-se a serviço até dos adversários. E em diversas ocasiões ele chama atenção dos seus ouvintes para não assumirem as mesmas posturas dos políticos que exploravam o povo e ainda se apresentavam como benfeitores4 (MESTERS; OROFINO, 2013). Na atualidade, a palavra poder está relacionada com a palavra direito. Ter e usar o poder, inclusive o poder coercitivo. O poder descrito por Samuel é um poder simbólico e o poder de Hobbes é exercido por meio da força, da espada. A  2 3 4 “Vejam, disse Samuel: Fiz conforme vocês pediram e coloquei um rei sobre vocês. Agora vocês têm um rei que os conduzirá. Quanto a mim, estou velho e de cabelos brancos, e meus filhos estão com vocês. Sou um homem que estive a serviço público, desde a minha mocidade. Agora me digam, enquanto estou diante do Senhor e diante do rei ungido de Deus, se tomei um boi ou um jumento de alguém, se dei prejuízo a alguém, se oprimi alguém, ou se aceitei suborno, para encobri-lo com os meus olhos, digam-me, e restituirei se fiz uma dessas coisas. E eles responderam: o senhor nunca nos explorou nem nos oprimiu. O senhor não tirou coisa alguma de nenhum de nós. O senhor e o ungido de Deus são testemunhas minhas diante de vocês, declarou Samuel, de que vocês não podem me acusar de qualquer culpa (roubo)” (1Sm 12,1-5). “Todo o poder me foi dado no céu e na terra” (Mt 28,18). “Entre vocês não deve ser assim. Ao contrário, o maior entre vocês deve ser como o menos importante. E o que manda deve ser como o que é mandado, ou que serve, pois, quem é o maior, o que se acomoda à mesa e é servido. Entre vocês, eu estou como aquele que serve” (Lc 22,25-27). 47 concepção atual de poder se desenvolveu com as contribuições dos autores: Max Weber, Michel Foucault e Bourdieu. Com suas ideias, o conceito de poder vem sendo ampliado. No próximo item, pretende-se contrapor a noção de poder de Hobbes com Bourdieu e Weber para definir a origem do poder em Hobbes. 2.2.1 O Poder que Obriga à Submissão De acordo com Teixeira (2003, p.87) “conflito de interesses, de valores e os embates em busca da dominação são centrais na sociologia da religião de Weber e em toda sua obra”. Para Weber (1991), a luta pelos interesses e necessidades materiais é o que move a sociedade. O direito e o poder regem a sociedade. Poder é um dado que está presente nas relações sociais. Poder é “toda a probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade” (WEBER, 1991, p. 33). Dominação “é a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis” (WEBER, 1991, p.33). A dominação necessita de argumentação convincente. A dominação é uma forma camuflada de poder, necessita de legitimação. Para Weber (1991), existem três tipos puros de dominação legítima: a) dominação legal- aciona uma lei; b) dominação tradicional- baseada em hábitos costumeiros; c) dominação carismática- baseada na veneração. Na concepção de sociedade de Weber (1991), predomina o coletivo. Os interesses materiais regem as ações dos indivíduos. O desencantamento do mundo e a obsessão pela racionalidade reduzem as paixões. Para Weber (1991), no início, da civilização tudo era mágico, mas, com o crescimento da racionalização na sociedade, houve a redução das paixões e do encantamento. O caminho que a sociedade percorre vai do encantamento para a racionalização, do polo irracional para o polo racional. Segundo Weber (1991), na passagem para a racionalidade, os valores mais sublimes do mundo foram retirados da vida pública. Na sociedade racionalizada, o encantamento do mundo se reduziu drasticamente. 48 Quanto mais racionalizada a sociedade, mais burocrática ela se torna. A sociedade racionalizada tem por fundamento os contratos e não as crenças. O que rege a sociedade racionalizada é a burocracia legal e a disciplina. Esse aspecto se aproxima muito da ideia de Hobbes, de que a delegação do poder tem origem no contrato. Segundo Weber (1991), burocracia é uma forma de organização e cooperação permanente e duradora entre numerosos indivíduos. É uma forma de organização social que torna possível a convivência dos diferentes. A vida em sociedade se torna viável por meio dos códigos. São regras e normas que regem determinado comportamento, baseadas em valores e ações. Assim, os indivíduos se tornam mais racionais em suas ações. O uso de contratos e negociações faz nascer a burocracia. Ela descreve basicamente o universo onde se vê materializadas ações racionalizadas. A impessoalidade é essencial à burocracia. Para Hobbes, em razão de a natureza humana possuir características negativas, o estabelecimento de um poder comum é essencial para a harmonia social. Percebe-se que o pensamento de Weber pode ser aplicado à teoria de Hobbes por analogia. A burocracia é um instrumento de dominação. O aparato burocrático estatal administra as questões de forma objetiva. Segundo Weber (1982), a finalidade absoluta do Estado é salvaguardar a distribuição externa e interna de poder. É fundamental para o Estado recorrer à violência dos meios coercitivos perante os inimigos. “O Estado é uma associação que pretende o monopólio do uso legítimo de violência, e não pode ser definido de outra forma” (WEBER, 1982, p. 383). Primeiramente, domina-se de forma legal, tradicional ou carismática, em último caso aciona-se a força policial. Assim, força e ameaça se retroalimentam. Essa ideia corresponde ao pensamento de Hobbes, que acreditava que o pacto sem a espada não passa de palavras sem força. O Estado declara: Deves ajudar o direto a triunfar pelo uso da força, pois se assim não for também serás responsável pela injustiça [...] As razões de Estado seguem, assim, suas próprias leis externas e internas. O êxito mesmo da força, ou da ameaça de força, depende em última análise das relações de poder e não do direito ético, mesmo que julgássemos possível descobrir critérios objetivos para esse direito (WEBER, 1982, p. 383). A partir dos conceitos expostos, percebe-se que Hobbes utiliza as técnicas de dominação para convencer o povo da necessidade de submissão ao Estado para o estabelecimento da paz nas relações humanas. Os argumentos de Hobbes são 49 muito convincentes. Um poder que domina pelo temor e que é maquiado como um poder virtuoso. 2.2.2 O Poder Simbólico Bourdieu (2011, p. 14), conceitua poder simbólico como um poder invisível o qual só pode ser exercido se for reconhecido. Esse poder é quase mágico e permite obter o mesmo que é obtido pelo uso da força física ou econômica; pelo seu efeito de mobilizar. O poder simbólico serve de instrumento de legitimação dos interesses da classe dominante. A classe dominante, para impor seus interesses, utiliza-se da sua própria construção simbólica. Os sistemas simbólicos se diferenciam conforme sua produção: “a história da transformação do mito em religião (ideologia) não se pode separar da história da constituição de um corpo de produtores especializados de discursos e de ritos religiosos” (BOURDIEU, 2011, p. 12). O poder simbólico reside “na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença” (BOURDIEU, 2011, p. 14). A crença na legitimidade das palavras daquele que as pronuncia é que o que faz manter a ordem ou subvertê-la (BOURDIEU, 2011). O poder simbólico como instrumento de conhecimento e comunicação é um poder estruturado e estruturante. É um poder de construção da realidade que visa estabelecer um sentido imediato do mundo. As relações de comunicação são relações de poder que dependem do poder material ou simbólico reunido pelos agentes ou pelas instituições (BOURDIEU, 2011). É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a domesticação dos dominados (BOURDIEU, 2011, p. 11). A eficácia do campo simbólico consiste em ordenar o mundo natural e social por meio de representações em forma de alegorias que imitam as relações sociais (BOURDIEU, 2007). As produções simbólicas legitimam as ideologias da classe dominante. Assim, consegue-se transformar algo arbitrário baseado no sistema de dominação vigente em legítimo: algo transferido para uma cosmogonia que passa a ser vontade dos deuses. Portanto, a eficácia política depende da eficácia simbólica 50 de inculcar-se algo na mentalidade das pessoas e, assim, formatar um projeto ideológico. A relação entre a religião e outras dimensões da sociedade envolve um jogo de forças em que prevalece a mais forte. Segundo Bourdieu (2007) a Igreja contribui para o reforço simbólico das divisões da ordem política impondo a inculcação das estruturas políticas conferindo a legitimação suprema, ou seja, a naturalização, “capaz de instaurar e restaurar o consenso acerca da ordem do mundo mediante a imposição e a inculcação de esquemas de pensamento comuns” (BOURDIEU, 2007, p. 70). Ela também lança mão da autoridade religiosa para combater as tentativas de subversão da ordem simbólica. Hobbes apropria-se do poder simbólico do Leviatã tornando natural a soberania do Estado. Ele representa o Estado por meio de um gigante forte que simula ser o único capaz de manter a paz entre os seres humanos. Com isso, ele fornece um sentido imediato para o problema das guerras vividas na época e mediante uma autoridade com poderes ilimitados que tem seus atos legitimados pela força da dimensão sagrada. O poder simbólico mobiliza as pessoas e inculca em suas mentalidades os interesses da classe dominante. A crença na legitimidade do mito Leviatã mantém o poder soberano do Leviatã hobbesiano. Em seguida serão apresentados apontamentos sobre o poder na visão de Hobbes. 2.2.3 O Poder na Visão de Hobbes O poder humano consiste “nos meios de que presentemente dispõe para obter qualquer visível bem futuro” (HOBBES, 1997, p. 83). Como no estado de natureza hobbesiano, todos têm direito a tudo e cada pessoa usa de seu poder para saciar suas paixões. Logo, para a transposição do estado de natureza para o Estado organizado, é necessário delegar poderes a uma autoridade ou assembleia. Esta autoridade ou assembleia deve ser poderosa o suficiente para garantir paz e segurança a todos. Hobbes (1997, p. 83) afirma que a “reputação do poder é poder, pois com ela se consegue a adesão daqueles que necessitam proteção”. Com isso, entende-se que Hobbes institui um Estado poderoso comparado aos poderes do monstro Leviatã para conseguir a adesão do povo e, consequentemente, sua obediência e submissão. As diferenças de talentos são provocadas pelo maior ou 51 menor desejo de poder. A riqueza, o saber e a honra são formas de desejo de poder. Hobbes (1997) diz que o maior dos poderes humanos é o poder do Estado. Este poder é constituído pela união dos poderes de vários homens numa única pessoa natural e civil. Segundo o autor, a união das forças representa poder. Ser honrado, amado ou temido por muitos é prova de poder (HOBBES, 1997). O poder absoluto deriva da vontade entre as partes em aderir ao contrato social. Os membros da sociedade concordam em transferir seus direitos a um soberano ou assembleia encarregado de manter a ordem entre as relações humanas. O poder é adquirido e conservado pelas virtudes: sabedoria, humildade, clareza de doutrina e sinceridade de linguagem (HOBBES, 1997). Hobbes estabelece o poder soberano a partir das paixões. Primeiro, pelo medo e, depois, pela razão. O ser humano acuado pelo medo permanente se vê obrigado a fazer um cálculo e a encontrar uma solução mais razoável. O medo da morte violenta rege a vontade dos humanos em busca da paz que a instituição desse poder garantiria. A instituição de um poder comum, segundo Hobbes, é a única forma de garantir segurança suficiente para a humanidade viver satisfeita. A multidão precisa de um poder comum que a coloque ordem (HOBBES, 1997). É preciso delegar todo o poder a uma autoridade capaz de controlar as paixões humanas. O controle ocorre por meio do medo da punição. Existem duas formas de aquisição do poder, segundo Hobbes (1997): pelo Estado por aquisição (por força natural) ou pelo Estado por instituição (por vontade das partes). Para Hobbes, o imenso poder do Leviatã suscita terror e pode condicionar as vontades individuais à unidade e à concordância. Percebe-se nesse poder uma relação de dominação e submissão. “Tal poder e direito de comandar consiste na transferência da força e poder de cada homem àquele conselho” (HOOBES, 2006). A intenção de Hobbes é estabelecer a paz por meio da razão. Troca-se o medo da morte violenta pelo medo da punição do Estado. O que rege a delegação de poderes ao soberano é, e continua sendo, o medo, que é mantido em todo o processo de organização estatal. O medo da punição por parte do Estado faz que todos os indivíduos se tornem sociáveis, ou melhor, obedientes. Hobbes tece uma estrutura enredada em dados religiosos para reforçar a soberania absoluta. Segundo Hobbes (2006), a obediência devida a Deus é a mesma devida ao Estado. 52 Hobbes (2006, p. 214) ressalta o valor da obediência afirmando que a obediência “é mais aceita que todos os sacrifícios”. O direito de punir ou fazer morrer não depende do poder divino, mas deriva do pecado do homem. O dever dos súditos é executar as ordens dos superiores (HOOBES, 2006). Hobbes utiliza o nome do monstro Leviatã para representar o Estado, simbolizando um poder soberano, capaz de impor a todos a obediência e a submissão. O Leviatã é detentor de um poder soberano, a materialização de um “deus mortal”. Esse homem, superior em força e tamanho, seria o único capaz de tomar as decisões em nome de todos os cidadãos, sem correr o risco de ser injusto. Seria um homem separado dos demais cidadãos, que utiliza o poder disciplinar para fazer com que suas vontades prevalecessem. O Leviatã causa temor; todos dirigem seus olhares a ele. Ao mesmo tempo em que é um único individuo é também muitos. Hobbes diz que o Leviatã não corre risco de ser injusto, justificando que suas decisões são como se fossem as do próprio povo. No entanto, uma única mente para decidir o que é melhor para todos pode se caracterizar como uma arbitrariedade. E mais, mesmo que o próprio povo, como diz Hobbes, que o decidisse, ainda seria passível de erro. Portanto, um poder ilimitado nas mãos de uma única autoridade precisaria de um sistema de controle e fiscalização. Porém, percebe-se que, em contrapartida, Hobbes faz uso de exemplos e testemunhos das Sagradas Escrituras para legitimar o poder absoluto do Leviatã. Ele tenta inserir o Leviatã no universo do sacralizado. Ao aplicar os conceitos de Weber, verifica-se nisso uma dominação tradicional. Fica claro, assim, que o poder religioso permanece imbricado ao poder político. Para Hobbes (1997), o desejo e a esperança de conseguir acesso às condições necessárias para uma vida confortável levam à busca de racionalidade. “E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo” (HOBBES, 1997, p.111). Segundo Hobbes (1997), essas normas são as leis de natureza. No passado, os indivíduos se conscientizaram de que a vida no estado de natureza é de guerra de todos contra todos. A saída mais racional foi a união e a transferência de poderes a uma autoridade capaz de garantir a segurança dos indivíduos. Um indivíduo coopera com outro, pois faz um cálculo racional que lhe mostra ser mais vantajoso para ele cooperar do que não cooperar. Esse cálculo racional é um dispositivo teórico muito presente nas teorias do contrato social. 53 Hobbes (1997) e Weber (1991) partem do mesmo princípio, do desencantamento do mundo. O indivíduo passa a fazer uso da razão para resolver as demandas cotidianas. A respeito do contrato, os dois autores se assemelham, estipulando que, a partir do contrato, a vida em sociedade se torna viável. Em Hobbes, aplicou-se o conceito de dominação de Weber. A dominação é uma forma de poder camuflada. O Leviatã de Hobbes detentor do poder absoluto não seria soberano se não fizesse uso dos instrumentos de dominação que Weber enumera. Já foi dito acima que Hobbes busca legitimação no universo sacralizado e pode-se complementar que, além da dominação por meio das leis, ocorre, simultaneamente a dominação carismática. Para ser um rei, não basta só a delegação do poder, pois o que predomina são as relações de poder. Ser rei é aura, prestígio e confiança. Se os súditos não acreditam na imagem que está à frente do governo não vão se submeter às suas leis, e a tendência é se rebelarem. O carisma do rei cativa e estimula o povo a lutar por ele. Weber (1982) aborda ainda o monopólio estatal do uso legítimo da violência. O Estado detém o poder disciplinador. O Leviatã de Hobbes pode assumir proporção monstruosa, literalmente, ao ser relacionado à vontade do soberano. O que rege não são as leis, mas as relações de submissão. As relações de poder no Leviatã são de dominação. Desde os primórdios da humanidade, o poder vem revelando paixões nos seres humanos. Com um olhar especial sobre a história do povo bíblico, é comum encontrar citações que denunciam o abuso de poder de alguns governantes. Jesus não concorda com o jeito como a vida era organizada na Galileia através da política e da economia do Império Romano e até mesmo da religião oficial da época, no Sermão da Montanha Mt 5,1ss, ele propõe um novo jeito de conviver e ter paz. Os primeiros cristãos At 2,42-47 arriscaram um novo modo de vida que produziu uma cultura de fraternidade, justiça e igualdade, criando uma nova cultura de poder (MESTERS; OROFINO, 2013). Hobbes cria sua teoria política para tentar por fim às guerras. Para isso, instituiu um poder soberano que utiliza os mecanismos de repressão e de dominação. Os sistemas simbólicos tornam o poder arbitrário do Leviatã hobbesiano em algo natural e, portanto, aceitável. Legitimado pelo poder simbólico, o Estado reflete os interesses da classe mais forte, vencedora da luta de forças. O Estado 54 adquire um caráter sagrado quando é relacionado a uma cosmogonia. Ele se torna uma espécie de mediador do ente divino. No próximo capítulo, será desenvolvida uma investigação a respeito da legitimação do poder em Hobbes para esclarecer a emblemática relação entre as dimensões política e sagrada presentes em Leviatã. 55 3 A LEGITIMAÇÃO DO PODER EM HOBBES Propõe-se neste capítulo desvendar a emblemática relação entre as dimensões política e sagrada existentes na obra Leviatã. Hobbes, além de se render à arte da retórica e da eloquência, nessa obra, faz uso da imagem do monstro Leviatã para legitimar o poder do soberano. O tema relativo a essa imagem pode revelar dados que estão além das palavras impressas. A imagem pode dizer muito sobre determinada cultura. Ao analisar a imagem da capa da obra Leviatã, pretendese comprovar que o uso dessa imagem religiosa reforça a soberania absoluta do Estado hobbesiano. O poder é exercido pela legitimação ou pela força. Legitimação é o processo que torna algo aceitável para o povo. Nas sociedades hierarquizadas, alguém manda e o povo aceita. A legitimação é simbólica quando faz uso de símbolos para estruturar conceitos. Segundo Weber (1991), os diferentes tipos de dominação (legal, tradicional e carismática) necessitam de legitimação. Hobbes utiliza o símbolo Leviatã para fazer o povo aceitar uma autoridade soberana. Quando o povo se opõe a esse poder, entra em cena a força. A força é um atributo que faz com que o poder se mantenha. Para Hobbes (1997), o uso da força simbolizado pela espada é essencial para validar o contrato, pois só a força da espada é capaz de fornecer a segurança desejada pelos indivíduos. E o medo do castigo faz que o contrato seja cumprido (HOBBES, 1997). Dessa maneira, legitimação acarreta obediência. O tema medo versus razão é muito atual. O indivíduo moderno minimiza sua liberdade e maximiza sua segurança. As pessoas aceitam essa troca porque entendem que essa solução seja razoável. Tanto atualmente quanto no século XVII essa discussão já ocorria. O ser humano, desde que se entende como tal, começou a fazer para si imagens articuladas para representar a realidade. Por meio dessas imagens, interpretava as suas próprias experiências e buscava um sentido ordenador que reproduzia por meio de um modelo discursivo. O mito, ao apreender hermeneuticamente toda a realidade, desenvolve “uma íntima relação entre o sagrado e o profano” (MACHADO, 1996, p. 14). A realidade imediata nada mais é que imagens bem configuradas. Pode-se perceber as coisas olhando apenas para o mundo exterior ou aceitando a existência de uma realidade interna que só pode ser comunicada por meio da linguagem visual. 56 A imagem é uma representação imediata que se expressa de maneira súbita. A imagem interna constitui uma unidade e expressa a situação do consciente e do inconsciente, “constelados por experiências vividas pelo indivíduo” (SILVEIRA, 1992, p. 82). A imaginação, no ocidente, é inseparável da ideia de perceber uma coisa de, pelo menos, duas formas simultâneas. A percepção e os poderes da imaginação humana avançam além dos limites da natureza. A imaginação, em certo nível, ordena o caos da experiência dos sentidos e, em outro nível, a imaginação pode ser usada para aproximar os objetos de uma experiência inusitada e misteriosa (AVENS, 1993). [...] a imaginação, além de sua função reprodutiva, comumente aceita, tem a misteriosa habilidade de enxergar o lado interior das coisas e de nos assegurar de que há mais em nossa experiência do mundo do que imaginamos; [...] (AVENS, 1993, p. 34-5). A imaginação é uma válvula de escape para a racionalidade. Racionalidade não é tudo; antes dela, vem a imaginação. O processo de construção de identidade se dá também por meio de imagens significativas. O simbolismo é fruto da imaginação, que se expressa por meio da linguagem do mito, do rito e do símbolo e se organiza com o auxílio da razão. O sentido é a organização do pensamento e da realidade. O mito é uma forma de conhecimento que torna mais clara a compreensão de um determinado grupo de indivíduos. Fica na fronteira entre o subjetivo e o objetivo. A imagem mítica é exatamente o objeto, e não sua representação, pois é mais que representação, tornando-se uma encarnação. Para o ser humano primitivo, o “mundo está totalmente presente no modo de sua aparência” (AVENS, 1993, p. 78). O significado das imagens está contido nas próprias imagens. O mito tem a capacidade de “unificar o interno e o externo, para ver o universal no particular, continua a viver e a se afirmar em todo o campo da consciência” (AVENS, 1993, p. 81). É por meio dos deuses que se pode imaginar o passado, o presente e o futuro (AVENS, 1993). As imagens míticas “servem de substitutos para as coisas e eventos do mundo físico” (AVENS, 1993, p. 117). O mito do Leviatã bíblico é um exemplo de representação simbólica no qual se destacam os elementos que darão sentido às expectativas de parte da humanidade. O mito Leviatã remete a um animal marinho de origem com poderes 57 irresistíveis. A imagem propõe, portanto, uma realidade velada (DURAND, 2001). Isto é, uma realidade que se deixa mostrar fornecendo significado para as pessoas que desejavam por fim às constantes guerras. Leviatã possui um poder irresistível capaz de impor a obediência aos seres humanos. 3.1 AS CATEGORIAS IMAGENS, IMAGINÁRIO E REPRESENTAÇÃO A imagem expressa somente conteúdos inconscientes que estão temporariamente presentes na consciência. Ela expressa a situação atual tanto do inconsciente como consciente (AVENS, 1993). Segundo Ruiz (2004), o imaginário tem aspecto insondável e criativo. É o ‘sem-fundo’, assim, não é conceito acabado e se torna sinônimo de indeterminação. E Richter Reimer (2008, p. 43) elucida que a representação é “[...] portadora também do poder simbólico que mobiliza e controla a vida social através do dizer e do fazer crer”. No século XVII, o imaginário é excluído dos processos intelectuais. A imagem é substituída pela arte de persuasão de pregadores, poetas e pintores (DURAND, 2001). O pensamento científico atual se vê constrangido a pedir auxílio ao imaginário que, no século XVII, foi tão reprovado pelo iconoclasmo das teorias originárias. A ciência necessita de uma realidade velada, em que os símbolos servem como modelo (DURAND, 2001). Durand (2001) menciona que a ruptura definitiva com a cristandade medieval, as guerras das religiões e a guerra dos 30 anos levaram ao surgimento de um imaginário autônomo desvinculado da instituição religiosa. Na projeção imaginária, existe uma convivência dos contrários, uma interdependência de um em relação ao outro. O herói depende do monstro ou do dragão para se tornar herói. Quando o monstro é minimizado, o herói deixa de ser herói (DURAND, 2001). No caso de Hobbes, o terrível Leviatã é o herói da história e os seres humanos, no estado de natureza, são lobos ferozes. O dualismo se torna consciente e transforma-se numa dualidade na qual cada termo antagonista precisa de outro para existir e para se definir (DURAND, 2001). Portanto, Hobbes representou o Estado hobbesiano utilizando a imagem do mito do Leviatã bíblico com uma nova configuração; agora como um herói poderoso que disciplina a natureza egoísta dos seres humanos. “Todas as grandes comunidades clássicas se consideravam cosmicamente centrais, através de uma língua sagrada ligada a uma ordem supraterrena de poder” 58 (ANDERSON, 2008, p. 40). “Toda a natureza ontológica do homem é maleável ao sagrado” (ANDERSON, 2008, p. 42). Hobbes tinha escrito na língua-verdade, por isso, era uma figura de renome continental. O Texto Sagrado fornecia coesão social no período do domínio divino do rei. A legitimidade do rei deriva da divindade. Durante o século XVII, a legitimidade sagrada do rei começou a entrar em declínio na Europa Ocidental com a decapitação de Carlos Stuart. Os representantes monárquicos Anne Stuart, Luís XV e Luís XVI realizaram a prática da taumaturgia (ANDERSON, 2008). Essa relação entre sagrado e profano, remete a teoria do Estado hobbesiano, em que as leis do Leviatã também são baseadas nos Textos Sagrados. Uma vez que o sagrado dava sentido às expectativas de um povo cansado de guerras. Em razão disso, a coesão social no Estado hobbesiano é fornecida por meio do sagrado. O monarca de Hobbes também é legitimado pelo ente sagrado. Suas leis se tornam legítimas e o povo as aceita. Segundo Anderson (2008), os produtos materiais de um mundo sociohistórico só podem existir no mundo simbólico, pois o simbólico se encontra na linguagem e num outro grau nas instituições. “As instituições não se reproduzem ao simbólico, mas elas só podem existir no simbólico, são impossíveis fora de um simbólico em segundo grau e constituem cada qual sua rede simbólica” (ANDERSON, 2008, p. 142). Ligam os símbolos aos significados. A religião está centrada num imaginário (ANDERSON, 2008). “As visões antigas sobre a origem divina das instituições eram em seus invólucros míticos bem verdadeiras” (ANDERSON, 2008, p. 159). O reforço que Hobbes busca no mito Leviatã revela uma história verdadeira que fornece sentido às pessoas que creem que o Leviatã seja um ser com poderes irresistíveis. Assim, ele seria capaz de sanar as ansiedades de uma realidade imediata. 3.2 IMAGENS DO LEVIATÃ NA BÍBLIA  A abordagem das imagens do Leviatã em algumas passagens da Bíblia evidencia as características do monstro que servem de fundamento para o poder do Estado hobbesiano. O poder político é sacralizado por meio do uso da imagem bíblica. Segundo Gonçalo Junior (2008), o Leviatã é considerado um monstro que depende do período histórico e da cultura em que foi formulado ou retomado no 59 caso da Bíblia. Cada cultura, em cada época, cria seus monstros. Cada monstro somente pode nascer, crescer e gerar descendentes em uma cultura que o alimente e o sustente, seja com carinho e cuidado, seja com medo e rejeição. O monstro geralmente é imaginário e é tão antigo quanto o pensamento. A história da civilização é povoada de monstros que jamais foram vistos ou comprovadamente testemunhados, mas que estão presentes no imaginário popular ou FORAM registrados em pedras, pinturas, jarros e papiros. Desta forma, pode-se dizer que monstros são criaturas religiosas, mitológicas ou lendárias (GONÇALO JUNIOR, 2008). Para compreender o fenômeno do monstro, faz-se necessário voltar o olhar ao passado, pois eles fazem parte de uma história tão antiga quanto as primeiras sociedades humanas. Por meio dessas criaturas imaginadas e idealizadas fisicamente, tornou-se possível compreender e explicar o ritmo das estações, o desaparecimento do sol no crepúsculo, as enchentes, a morte terrível, a cólera de um vulcão. Assim, os humanos aprenderam a ter menos medo. Outro aspecto interessante é que, dessa ordem espiritual, nasceram as histórias de deuses e deusas e as aventuras excepcionais mais antigas de que se tem notícia, precursores dos mitos do cinema, do rádio e das histórias em quadrinhos do século XX. Eles enfrentavam as situações mais perigosas, auxiliados por divindades, ou mesmo por monstros amigáveis. Essas histórias foram narrativas criadas e difundidas para serem contadas no fim da tarde ou à noite, após o trabalho, ao redor da mesa de refeição ou de uma fogueira. Com sentimentos humanos, os deuses egípcios, gregos e romanos, mesmo imortais, alimentavam de humanismo a fantasia dos textos mitológicos (GONÇALO JUNIOR, 2008). Os monstros são figuras antigas que datam de mais ou menos 3100 a 800 a.C., relacionadas a deuses, demônios e dragões. Em geral, esses monstros eram apresentados, ou imaginados com cabeça de seres humanos e corpo de animais e vice-versa (GONÇALO JUNIOR, 2008). Inspirado na história desses seres, Hobbes designou o Estado com o nome do monstro bíblico Leviatã. Na Bíblia, o Leviatã não possui uma imagem única. Cada autor o descreve de uma forma. Para uma maior compreensão do Leviatã em algumas passagens bíblicas, explanar-se-á sobre algumas das diferentes imagens desse monstro. As menções referentes ao Leviatã na Bíblia não chegam a um consenso quanto à forma do animal. No próprio Livro de Jó, no qual Hobbes busca 60 fundamento para a soberania absoluta, o Leviatã é descrito como uma serpente fugitiva e, também como um crocodilo. Hobbes não emprega a mesma imagem descrita na Bíblia. Ao contrário, ele cria um gigante humano de porte atlético e com feições aristocráticas. Ele se apropria do terror que o Leviatã bíblico provoca para conseguir a adesão do povo. O monstro bíblico é possuidor de um poder rival a Deus, ou melhor, quase tão poderoso quanto Ele. 3.2.1 Leviatã em Gênesis A expressão a terra “era vazia e sem forma definida” relatada no Livro de Gênesis 1,2 parece descrever o ambiente mitológico do Leviatã. O Livro do Gênesis5 também relata que Deus colocou inimizade entre a mulher e a serpente e entre a serpente e os descendentes da mulher. Considerando ser a serpente o mesmo Leviatã ou o dragão, percebe-se que há uma batalha histórica entre aqueles e aquelas que são fiéis a Deus e aqueles e aquelas que não são fiéis a Deus (FERRAZ, 2011). Leviatã, em Gn 3,15, está configurado com a forma de uma serpente. O símbolo da serpente fixou, na memória coletiva humana, a ideia de monstro anfíbio pré-histórico. A serpente surge como anticristo no primeiro e no último livro da Bíblia, significando a concentração do negativo (MOHR-HEINZ, 1991). A imagem do Leviatã em Gênesis 3,15 está configurada pela forma de uma serpente que representa um poder contrário ao poder de Deus. Em outras passagens bíblicas, a imagem do Leviatã recebe outras configurações. 3.2.2 Leviatã em Jó O Livro de Jó apresenta dois monstros: o Behemot e o Leviatã. O primeiro monstro Jó 41,1-26 causa medo e insegurança. Basta alguém vê-lo para ficar com medo. Ninguém é tão corajoso ou corajosa para provocá-lo, pois sua força é incomparável. Possui sinais externos de poder: seu corpo é provido de couraça; sua cabeça é rodeada de dentes; em suas costas, há fileiras de escudos ligados com lacre de pedras; seus espirros lançam faíscas e seus olhos são como a cor rosa da aurora; de sua boca irrompem tochas acesas e saltam centelhas de fogo; de suas narinas jorra fumaça, como de caldeira fervente; seu bafo queima como brasa, e sua  5 “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela” (Gn 3,15). 61 boca lança chamas; em seu pescoço reside a força e diante dele dança o terror; seus músculos são compactos, sólidos e imóveis; seu coração é duro como a rocha e sólido como pedra de moinho. Quando esse monstro se ergue, até os heróis fogem apavorados. Nada o atinge. Para ele, o ferro é como a palha e o bronze como a madeira podre. Seu ventre, coberto de escamas pontudas, é como uma grade de ferro que se arrasta sobre o lodo. Ele faz ferver o fundo do mar como caldeira, e a água fumegar como vasilha quente cheia de unguentos. Atrás de si, deixa uma esteira brilhante e a água parece cabeleira branca. Na terra, nada nem ninguém se iguala a ele, pois foi criado para não ter medo. Ele se confronta com os seres mais altivos e é rei das feras soberbas (ROSSI, 2005). Para Storniolo (2008), Behemot Jó 40,15-24 era o nome dado pelos antigos ao hipopótamo, animal considerado como símbolo da força bruta que o ser humano é incapaz de domesticar. No entanto, esse animal foi criado da mesma forma que os humanos e é apresentado como obra-prima da criação. O autor do Livro de Jó apresenta, assim, a reflexão sobre o mal, mostrando que somente Deus domina soberanamente as forças que o ser humano não consegue controlar. O segundo monstro é apresentado com o nome de Leviatã. Sua armação e seus dentes são terríveis. Sua capacidade para agitar as águas sugere que o animal no qual se baseia essa representação pode ser o crocodilo. No entanto, neste caso, como no caso do Behemot, é claro que se trata de animal mitológico. Por sua boca e narinas lança fogo e até os deuses têm medo de sua aparência. No termo hebraico, significa um animal de tal grandeza que se move e se vira. Um monstro desse tipo significa profunda hostilidade à vida tranquila e em paz. O Leviatã sempre representará espaço de poder e de ameaça à vida. Porém, mesmo assim, o texto de Jó 40,29 afirma que Deus pode brincar com ele ou fisgá-lo sem dificuldades (ROSSI, 2005). Os monstros Behemot e Leviatã representam e enfatizam o terror tal que eles o inspiram até mesmo aos deuses. É um guerreiro poderoso com quem o ser humano não é capaz de medir forças. Pode sugerir também uma descrição de Deus, que, nos longos discursos de Jó, aparecia descrito como um inimigo terrível Ele é um tipo de força que interfere e perturba as relações históricas no cotidiano (ROSSI, 2005). O Leviatã, muitas vezes, representado pelo crocodilo, é um dragão mítico que simboliza o poder do mal que ameaça a criação. Deus o havia derrotado 62 condenando-o a viver na água. Jó se vê desafiado a vencer o mal como Deus o venceu Jó 40,25-32. Para além do desafio, abre-se o apelo para o ser humano reconhecer as suas limitações e, a partir delas, confiar em Deus, que triunfa sobre todo tipo de mal (STORNIOLO, 2008). Essas descrições do Leviatã se tornaram a matriz da metáfora hobbesiana do Estado totalitário (ROSSI, 2005). No Livro de Jó o próprio Jó “é o herói principal que está afligido de males: enfermo ou coberto de micoses e tumores, tendo um aspecto repugnante ou descuidado, [...]” (DURAND, 2002, p. 364). Jó tem que suportar sua própria doença. O sentido moral é que, apesar da aparência repugnante de Jó, ele conserva no seu interior uma essência preciosa. O personagem Jó foi atingido por diversos males como por exemplo, empobrecimento, enfraquecimento, miséria, abandono, da marginalização, difamação, ou seja, males concretos. Jó é vítima do Behemot, a personificação da força bruta, e do Leviatã, a personificação do poder do mal. Contudo, Deus estende a mão para Jó e convida-o para vencer a força bruta e o mal que o vitimou (STORNIOLO, 2008). Os personagens bíblicos Jó e Leviatã se encaixam perfeitamente no propósito de Hobbes. Ao denominar o Estado com o nome Leviatã, Hobbes se apropriou do poder irresistível do monstro mitológico e do medo que este poder pode provocar nos demais seres. Jó serve de modelo de obediência e submissão ao poder irresistível. Hobbes (1997) utiliza os fundamentos do direito natural para elaborar sua teoria do Estado. Segundo esse autor, quando existe um poder irresistível, é natural a obrigação de obediência. Hobbes recorre à Sagrada Escritura para reforçar a onipotência do poder do Estado hobbesiano. Em contexto de predomínio e povo subjugado, a Sagrada Escritura costuma comparar o poder dominante, opressor e usurpador com feras devoradoras da vida do povo6. As autoridades cometem delitos Am 6,1-6, mas levam boa vida despreocupados com os indefesos Is 5,11-12.22-23; Am 4,1; Is 22,13. A cobiça é o vício capital que corrompe a justiça Jr 6,13; 8,10; 22,17; Ez 22,13.27 e cega as autoridades em busca de seu próprio crescimento e enriquecimento. Desta forma, pastores, governantes e todas as autoridades que não cuidam da vida do povo são considerados monstros e feras selvagens de diversas formas: javalis devastadores Sl 80,13; Is 5,5; lobos que  6 “Feras selvagens, vinde comer. Feras todas da relva: pois os guardiões estão cegos e não percebem nada, são cães mudos incapazes de latir, vigias caídos, amigos do sono. São cães com fome insaciável, são pastores incapazes de compreender. Cada qual vai por seu caminho e para seu interesse, sem exceção. Grita por vinho, embriaguemo-nos de bebida. E amanhã o mesmo que hoje, há provisão abundante” (Is 56,9-12). 63 derramam sangue e matam gente para obter ganhos injustos Ez 22,27, raposas que matam profetas e apedrejam os enviados de Deus Lc 13,32-34. São também como leões que saem da toca e ficam à espreita, na emboscada para apanhar o necessitado e o arrasta para sua rede Sl 10,9; Sl 16,11-12; Jr 25,38, cães que rosnam e rondam a cidade Sl 59,6, cavalos com cabeça de leão, que lançam fogo, fumaça e enxofre, e suas caudas são como cobras que ferem as pessoas Ap 9,16-19. Eles se entregam à bebida por não terem nenhum interesse em sua obrigação em relação ao povo Is 56,12. Tais símbolos de feras e monstros servem para proclamar que Deus reina sobre o mundo, que Jesus é o Rei e Senhor da história e o único vencedor junto ao povo de todos os monstros ou feras que ameaçam a humanidade. 3.2.3 Imagem do Leviatã nos Salmos No Salmo 74,14, o nome do monstro marinho Leviatã é citado. O Leviatã nessa passagem apresenta várias cabeças (ROSSI, 2005). Suas cabeças são destruídas e servidas de alimento para os animais do deserto. Ao analisar a imagem do Leviatã descrita nos Salmos, verifica-se que ele configurava as forças do mal que foi destruído por Deus. A destruição do Leviatã representa a destruição do poder do Egito. O Salmo 82 apresenta forte convite para se criar uma nova cultura que seja contrária à cultura dominadora dos reis da época. E por isso expressa até hoje o compromisso de luta por uma sociedade justa, sororal e igualitária. O Salmo 101 sugere compromisso político com a sociedade. O Salmo 58 condena o poder corrompido tendo em vista uma sociedade pautada pela justiça e pelo bem-estar (MESTERS; OROFINO, 2013). Com base no Salmo 74,14, o Leviatã é um monstro de sete cabeças e simboliza as forças do mal. Em todas as passagens bíblicas analisadas, o Leviatã representa o mal e é derrotado por Deus. 3.2.4 A Imagem do Leviatã no Apocalipse Chevalier (2007, p. 547) cita a passagem bíblica do Apocalipse que descreve o Leviatã como um dragão “que encarna a resistência do poder do mal contra Deus, reveste-se de certos traços desta serpente caótica, que, provocada, era capaz de engolir momentaneamente o Sol". 64 Dragão é um termo que vem do grego drakón. O hebraico bíblico não possui equivalência. Segundo Girard (1997), quando se quer falar de um animal irredutível à imagem da serpente, chama-o de monstro tannîn, um termo vago e genérico, que significa serpente enganadora Is 27,1, que encarna as forças hostis da opressão, do mal e da morte. Este animal hostil representa o mal humano, político, social e/ou religioso. O termo monstro pode designar uma situação má ou um rei-imperador tirano, adversários ou ainda um povo inimigo. É aquele que contamina em profundidade a gestão humana da história (GIRARD, 1997). Merecem atenção particular os nomes dados ao dragão, diabo ou satanás, sedutor de toda a terra habitada Ap 12,9 (ROTEIROS DE REFLEXÃO IX, 2008). O dragão é a grande mentira que gera e conserva a sociedade injusta. Impressiona por sua violência e arrogância. É violento e sanguinário. Domina o mundo inteiro e se arroga prerrogativas divinas. Possui dez chifres, que são sinônimos de força e poder (BORTOLINI, 2008). O dragão é também sinal da manifestação do poder de Deus, que condena e destrói seus intentos de morte e subtrai, através de intervenções, a humanidade de sua dominação. O dragão persegue e mata (CORSINI, 1984). A luta por libertação é uma tarefa progressiva. A liberdade é uma conquista que se constrói pelo testemunho, que consiste em lutar contra os poderes do mal que se manifestam nas garras do poder imperial e perseguidor. A liberdade se opõe às estruturas de dominação (GORGULHO; ANDERSON, 1977). No Apocalipse, o dragão lembra Raab, Leviatã, Beemont e outros monstros aquáticos do Antigo Testamento. A imaginação parece construir o arquétipo do dragão ou da Esfinge a partir dos terrores fragmentares, nojos, sustos, das repulsões instintivas ou experimentadas, e finalmente ergue-o medonho, mais real que o próprio rio, fonte imaginária de todos os terrores das trevas e das águas. O arquétipo vem resumir e clarificar os semantismos fragmentários de todos os símbolos secundários (DURAND, 2002, p. 98). Leviatã é o monstro do mar Is 25,1; Sl 74,14; 104,26; Jó 3,8; 40,25ss mais conhecido no Antigo Testamento, mas aparece também em Apocalipse 13,1-27.  7 “E agora, em minha visão, eu vi uma besta se levantando mar. Tinha sete cabeças e dez chifres. E em cada cabeça estavam escritos nomes insultuosos, cada um deles blasfemando contra Deus. Esta besta parecia um leopardo, mas tinha pés como os de urso e a boca como a de leão! E o dragão deu à besta o seu próprio poder, o seu trono e a grande autoridade [...]” (Ap 13,12). 65 Behemot8 é o monstro da terra Jó 40,15. Como monstro do mar representa poderes do caos, e por isso, é chamado de dragão Is 51,9; Ez 29,3; 32,2; Sl 74,13; Jó 7,12. Em Apocalipse 12,15-179, encontra-se a serpente-dragão que se irritou contra a mulher e fez guerra ao resto de sua descendência (Ap 12,17). Os descendentes da mulher são os que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus Ap 12,17 (FERRAZ, 2011). A serpente-dragão vê-se desesperada e se vale de um último recurso, que é o poder das águas que ninguém pode conter. Contudo, o vômito da serpente é sugado pela terra como as enxurradas desaparecem na areia ressequida do deserto (CASTRO, 1989). A visão quer servir de consolo e estímulo diante da força do poder do Império Romano (MAZZAROLLO, 2000). O dragão simboliza o poder do mal, a morte e os sistemas políticos e econômicos que oprimem e sufocam as pessoas (MESTERS; OROFINO, 2003). Porém, Deus protege e sustenta as comunidades em tempo de perseguição pelo poder do Império (BORTOLINI, 2008). O dragão e a mulher são dois mitos que representam a luta entre a vida e a morte. A mulher encontra-se grávida e a ponto de dar à luz. O monstro é sinal de morte e está para matar o filho da mulher. O sentido fundamental aqui é o confronto entre a vida e a morte. A vida aparece formosa e majestosa, porém, frágil. A morte se apresenta com força e poder total. No entanto, no confronto entre a vida e a morte, a vida é a vencedora. A mensagem destes mitos é a esperança perante o poder do Estado imperial (RICHARD, 1999). Foi descrita a imagem do Leviatã em Gênesis, em Jó, nos Salmos e no Apocalipse. Em Gênesis 3,15, o Leviatã apresenta-se com uma serpente; em Jó 40,29, como um dragão mítico que lança chamas pela boca, no Salmo 74,14, um dragão de sete cabeças; e, no Apocalipse, como uma serpente dragão. Percebe-se certo consenso a respeito dessa imagem nas passagens expostas, em que aparece como serpente, ora como dragão. No Salmo 74,14, em Jó 3,8 e em Apocalipse 12, 15-17, ele é um monstro do mar. A imagem do Leviatã que mais se aproxima do pensamento de Hobbes parece ser a de monstro marinho, pois o corpo do Leviatã de Hobbes é coberto de escamas. Percebe-se que Hobbes tenta enfatizar o poder  8 9 Behemot é um monstro masculino e Leviatã feminino. E por vezes aparecem juntos (Jó 40,15— 41,26). “A serpente vomitou contra a mulher um rio de água, para fazê-la submergir. A terra, porém, acudiu à mulher, abrindo a boca para engolir o rio que o dragão vomitara. Este, então, se irritou contra a mulher e foi fazer guerra ao resto de sua descendência, os que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus” (Ap 12,15-17). 66 que a imagem evoca. Nas passagens expostas, o monstro Leviatã apresenta um poder muito grande e representa a manifestação do poder de Deus. Em Jó 40,29, Deus pode dominá-lo sem dificuldades. Com isso, entende-se que, embora o monstro simbolize o poder do mal, ele é subordinado a Deus. Portanto, o sentimento que o poder do Leviatã bíblico inspira é de medo e de temor. Paixões essas que, segundo a teoria de Hobbes, fundamentam e legitimam a origem do Estado hobbesiano. 3.2.5 Leviatã: símbolo do poder A imagem que Hobbes utilizou para representar o Estado está impressa na capa da edição de 1651 da obra Leviatã. Pretende-se neste item captar dados que poderão ser revelados a partir da análise da imagem da capa dessa obra. Primeiramente observa-se a posição em que foram colocados o poder religioso e o poder político. O poder político foi posicionado ao lado direito da imagem e o poder religioso ao lado esquerdo. Diante disso, buscar-se-á investigar a intenção do autor ao definir essa forma de posicionamento. Figura 1: Capa do livro Leviatã, de Thomas Hobbes 67 O autor da ilustração foi Abraham Bosse, um célebre artista francês. Thomas Hobbes conheceu Abraham em sua estada em Paris. Foi feita uma ilustração de um gigante constituído por inúmeras pessoas em que ele empunha na mão direita uma espada e na mão esquerda um cetro. Esses símbolos representam os poderes político e religioso. Essa imagem transmite a ideia de um poder gigantesco que é reforçada com o argumento de Menezes (2003), segundo o qual, na Idade Média, não havia traços de usos cognitivos da imagem, sistemáticos e consistentes. O que dominava era o valor afetivo envolvendo, sobretudo, a autoridade intrínseca da imagem. Menezes (2003, p. 12) fala o seguinte sobre a autoridade do objeto visual: Autoridade independente do conhecimento, mas derivada do poder que atribuía efeito demiúrgico ao próprio objeto visual. Daí ser ele relevante em contextos religiosos ou de poder político e com funções pedagógicas e edificantes. Menezes (2003, p. 12) propõe a análise “da visualidade como objeto detentor de historicidade e como plataforma estratégica de elevado interesse cognitivo”. Hobbes fez uso de símbolos religiosos e do mito do monstro bíblico Leviatã para legitimar sua teoria. Para compreender um pouco melhor o pensamento de Hobbes, buscar-se-á nos símbolos respostas. Símbolos, na verdade, velam e revelam a um só tempo. Por isso, permanece e sempre permanecerá certa margem de divergência em sua interpretação, sem que se venha a questionar a constatação e a importância do todo (HEINZ-MOHR, 1994). Uma das possíveis interpretações que se pode fazer da imagem da capa do Leviatã de 1651 é a contraposição dos símbolos do sagrado com os do profano, ou seja, as correspondências do imaginário que servem de reforço para o poder do Estado Hobbesiano. Hobbes não abre mão dessas correspondências e faz do medo um aliado do poder soberano. Verifica-se que, na parte superior da imagem, tem um gigante que consegue alcançar todo o espaço habitado. O corpo do Leviatã tem uma proporção imensa que alcança todo o território. É uma figura elegante e soberba, portando coroa e armadura. Embora seu semblante seja de um nobre, seu corpo é forte, corpo de um guerreiro que vence batalhas. Seu corpo é coberto por uma espécie de armadura que se assemelha a escamas de um monstro marinho. Contudo, olhando mais 68 atentamente, percebe-se que essa espécie de armadura é composta dos corpos dos indivíduos que compõem aquele Estado. Além disso, todos os indivíduos estão de costas com as cabeças inclinadas. Todos direcionam os olhares para o grande soberano, como se ele fosse um rei sol. O simbolismo do sol, para muitos povos, é uma manifestação da divindade ou é o próprio deus (CHEVALIER, 2007). Segundo Heinz-Mohr (1994, p. 32), armadura é atributo de generais, juízes e reis do Antigo Testamento, assim, ao fazer ”uma interpretação simbólica cristã da armadura considera em particular na espada uma alusão à cruz [...]”. E a cruz para ele é o símbolo universal da mediação e do mediador, antes mesmo de ser usada na linguagem simbólica cristã. Armas são utilizadas nas duas mãos para manter a ordem e a paz. Na parte inferior da imagem, há a exposição dos símbolos pertencentes ao soberano do lado direito da imagem e, do esquerdo, os símbolos que representam a Igreja. Nesta exposição, fica claro que o soberano, representado pelo gigante, tem nas suas mãos os poderes civis e religiosos. Figura 2: gigante de Hobbes com uma espada em sua mão direita Na mão direita, o gigante de Hobbes empunha uma espada. Hobbes (1997, p. 141) fala da necessidade do emprego da espada da seguinte maneira: E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar a menor segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis naturais (que cada um respeita quando tem vontade e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para garantir sua segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros. 69 Para Hobbes, o emprego da força coercitiva é necessário para que todos se sintam seguros, e dessa forma, não seja preciso que cada um utilize sua própria força. A força irresistível do Leviatã, como citado em Jó 41,18-34, faz que ele reine soberano sobre todas as demais criaturas. Na mão esquerda, o Leviatã empunha um cetro episcopal. Para Hobbes (1997), os reis necessitam submeter seus cetros a Cristo. Os reis cristãos equivalem aos papas, porque são supremos pastores de seus próprios súditos. O cetro significa, então, que o rei é detentor também do poder espiritual. Toda autoridade religiosa está nas mãos do rei. Hobbes desenvolve a ideia do rei cristão conhecedor das leis de Deus. Na obra Do cidadão, Hobbes (2006) parte do princípio de que Igreja e Estado se fundem num só corpo e são direcionados pelo monarca. O monarca concentraria em si todos os poderes, religioso e político. A autoridade para interpretar a palavra de Deus estava também nas mãos dos reis (HOBBES, 2006). Hobbes afirma que o poder de interpretar a palavra de Deus pertence ao poder civil. Isto porque ele temia outra instituição organizada concorrendo com o poder do Estado. Na época, a Igreja Católica era a maior rival do Estado. Ao observar a direita e a esquerda da imagem, recorre-se a Chevalier para analisar o que Hobbes quis transmitir: “Na Bíblia, olhar à direita Salmos, 142,5 é olhar para o lado do defensor; [...]. A esquerda é a direção do inferno; à direita, a do paraíso” (CHEVALIER, 2007, p. 341). Alguns comentários rabínicos apontam que Adão seria homem do lado direito e a mulher do lado esquerdo. Valendo dessa mesma explicação, pode-se entender que o lado esquerdo seria o lado feminino em oposição ao lado direito, que seria o lado masculino. Entre os gregos e os celtas, a mão direita é favorável, simbolizando força, destreza e sucesso ao passo que a esquerda é nefasta. Para os bambaras, na África, a mão direita é símbolo de ordem e a esquerda de desordem. No ocidente, segundo a tradição cristã, a mão direita tem um sentido ativo e também significa futuro, e a esquerda tem um sentido passivo e também significa passado. Na política, direita simbolizaria a ordem e a esquerda insatisfação (CHEVALIER, 2007). Com base nessas interpretações, pode-se concluir que ao colocar na mão direita o símbolo civil e na mão esquerda um símbolo religioso, Hobbes quer destacar a sobreposição do civil em relação ao religioso. O civil representa a retidão, a ordem, o trabalho e a fidelidade e o religioso representa o seu oposto. Parece ser possível dizer que Hobbes se apropria dos símbolos da dimensão religiosa para reforçar o poder do Estado em sua teoria. 70 O Leviatã traz no alto da cabeça uma coroa. A coroa assinala um dom, o caráter transcendente de uma realização bem-sucedida (CHEVALIER, 2007). Segundo Chevalier (2007, p. 289), “a coroa simboliza a dignidade, o poder, a realeza, o acesso a um nível e a forças superiores. Quando ela termina em forma de domo, afirma uma soberania absoluta”. Logo, conclui-se que a coroa do Leviatã simboliza um poder soberano. Localizado bem no centro da parte inferior da capa da obra Leviatã (1651) encontra-se em destaque o título da obra - Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Figura 3: Título centralizado na capa A obra é conhecida comumente como Leviatã, mas, ao analisar seu título oficial percebe-se que o discurso impresso tem algo a mais a revelar. Foucault 71 (2008) faz uma reflexão sobre a obra de René Magritte (1897-1967), que revela questões fundamentais a respeito da relação entre o texto e a imagem e a representação visual: “o signo verbal e a representação visual não são jamais dados de uma vez só” (FOUCAULT, 2008, p. 40). Há sempre uma ordem de hierarquização que vai da forma ao discurso ou vice-versa. O título apresenta um Estado materializado na forma de uma autoridade soberana com poder religioso e civil. A imagem reforça o título, revelando um gigante detentor destes poderes. O princípio da equivalência entre o fato da semelhança e a afirmação de um laço representativo regeu sobre a pintura ocidental até o século XX. Não importa o sentido da relação de representação, se o visível parece com uma coisa que remete a um invisível semelhante (FOUCAULT, 2008).  Figura 4: Castelo Figura 5: Igreja Passando para os símbolos expostos na parte inferior da capa da obra, temos alguns elementos pertencentes aos poderes civil e religioso. Primeiramente, no lado inferior direito, tem-se um castelo, e se contrapondo a ele uma Igreja. O castelo simboliza, tanto na vida real quanto nos contos e sonhos, uma construção sólida e de difícil acesso (CHEVALIER, 2007). O castelo exposto por Hobbes está localizado no topo de uma colina simbolizando um lugar inacessível e, consequentemente, seguro. Em confronto com a imagem do castelo, no lado esquerdo aparece, a imagem de uma Igreja. A Igreja está localizada em um terreno plano, logo se diferencia da inacessibilidade e segurança demostrada na imagem do castelo. A Igreja cristã simboliza a imagem do mundo (CHEVALIER, 2007). 72  Figura 7: Mitra Figura 6: Coroa O próximo símbolo é a coroa de rei. Heinz-Mohr (1994) elucida o caráter simbólico da coroa de rei. Se posicionada no alto da cabeça, evidencia transcendência. Quando apresenta forma arredondada significa perfeição. Quanto à sua constituição, pode ser de material precioso ou material de cunho sacrifical. A coroa é símbolo de honra e glória. A coroa retratada na parte inferior difere da coroa portada pelo gigante, a do Leviatã termina em forma de domo afirmando soberania absoluta. A outra coroa é constituída de material precioso simbolizando honra (HEINZ-MOHR, 1994). Do lado oposto da coroa, tem-se a mitra, um ornamento que os bispos usam em suas cabeças nos momentos de celebração. “Aparece como atributo em figuras dos santos canonizados do Ocidente que foram bispos [...]” (HEINZ-MOHR, 1994, p. 251).   Figura 8: Armas de fogo Figura 9: Forcado e Chifre A arma é um símbolo ambíguo, pois simboliza, a um só tempo, o instrumento da justiça e o da opressão, a defesa e a conquista. A arma materializa a vontade dirigida para um objetivo (CHEVALIER, 2007). Do outro lado, tem-se o 73 forcado e o chifre. O forcado é o emblema do diabo: uma flecha das trevas, a imagem do poder mágico, do dinamismo da afetividade e das forças inconscientes (CHEVALIER, 2007). Já o chifre, na Bíblia, simboliza salvação. O forcado e o chifre são instrumentos com os quais a Igreja conseguia manipular os féis, fazendo com que eles se comportassem da maneira desejada. A promessa de salvação ou a punição eterna eram armas muito poderosas a favor da subjugação dos fiéis.  Figura 10: Batalha Figura 11: Tribunal eclesiástico Por último, está retratada a imagem de cavaleiros em batalha, um exército armado. Contrapondo-se à imagem do exército em batalha, observa-se o tribunal eclesiástico, a alta cúpula da Igreja. De um lado, há a força bruta do outro, a força da meditação. Os símbolos são fontes inesgotáveis de significado. Eles possuem um significado genérico e um significado particular. O significado do símbolo vai além do aparente. Por mais que se aproxime de um significado do símbolo, ele vai além. A imagem, o rito e mito servem de suporte materiais para o símbolo. Os símbolos religiosos contrapostos no lado esquerdo da imagem transmitem a ideia de submissão ao poder civil. Hobbes pretendia manter a Igreja sobre controle. A força profana do Estado hobbesiano recebeu um reforço do poder sagrado. Hobbes recorreu aos símbolos sagrados para reforçar a força de seu Leviatã. O que ele combatia era a hierarquia da Igreja. 3.3 O SAGRADO COMO LEGITIMAÇÃO DO PODER EM HOBBES Segundo Bourdieu (2007), a religião é um conjunto de práticas e representações revestidas de caráter sagrado. É uma linguagem simbólica de 74 comunicação e pensamento. Faz parte do mundo natural e social formando um todo organizado. Hobbes (1997, p. 97) verifica que a religião é uma construção humana, aproximando do conceito de Bourdieu: [...] só no homem encontramos sinais, ou frutos da religião, não há motivo para duvidar que a semente da religião se encontra também apenas no homem, e consiste em alguma qualidade, que não se encontra nas outras criaturas vivas. Hobbes (1997, p. 61) conceitua religião como: o medo dos poderes invisíveis, inventados pelo espírito ou imaginados a partir de relatos publicamente permitidos, chama-se religião; quando esses não são permitidos, chama-se superstição. Quando o poder imaginado é realmente como imaginamos, chama-se verdadeira religião. Diante do conceito hobbesiano, percebe-se o que é autorizado pelo Estado, para ser chamada de verdadeira religião tem que ser reconhecido pelo poder civil. Para Hobbes (1997, p. 101), a semente da religião consiste “na crença nos fantasmas, a ignorância das causas segundas, a devoção pelo que se teme e a aceitação de coisas acidentais como prognósticos”. Logo, percebe-se que a utilização da imagem de um terrível monstro marinho citado no livro de Jó revela que pelo temor se consegue devoção. A dominação se dá por meio do medo provocado pelo elemento religioso, isto é, como o sagrado sacralizando o profano. As Escrituras, segundo Hobbes (1997, p. 78), foram escritas para: mostrar a crença no movimento de Deus, e preparar seus espíritos para se tornarem seus súditos obedientes; deixando o mundo, e a filosofia a ele referente, às disputas dos homens, pelo exercício de sua razão natural. Que o dia e a noite provenham do movimento da Terra, ou do sol, ou que as ações exorbitantes dos homens derivem da paixão ou do diabo (desde que não adoremos a este último), nenhuma diferença faz quanto a nossa obediência e sujeição a Deus todo-poderoso, que é o fim para que se escreveram as Escrituras. Segundo Hobbes (1997, p. 61), o medo/terror pânico é uma paixão que só ocorre numa turba ou multidão de pessoas. Inicialmente, um indivíduo sente esse medo e compreende sua causa e os demais fogem, por causa do exemplo do primeiro, supondo que ele tenha consciência do por quê. Acredita-se que a intenção de Hobbes, ao utilizar essas imagens, foi mostrar a superioridade do soberano, possuidor de todos os poderes, tanto os poderes materiais e quanto os imateriais. Hobbes apropria-se das armas da Igreja para legitimar os poderes do Leviatã. 75 Foucault (1979, p. 183) comenta sobre a imagem do Leviatã que [...] enquanto homem constituído, o Leviatã não é outra coisa senão a coagulação de um certo número de individualidades separadas, unidas por um conjunto de elementos constitutivos do Estado: mas no coração do Estado, ou melhor, em sua cabeça, existe algo que o constitui como tal e este algo é a soberania, que Hobbes diz ser precisamente a alma do Leviatã. Segundo esse autor, embora a alma central do Leviatã seja a soberania, para a análise do poder, é necessário o estudo dos sujeitos periféricos que constituem o corpo do Estado. Neste sentido, percebe-se que Hobbes representa o Estado na pessoa do monarca, um homem de estatura maior do que o normal e com poder para garantir a defesa de todos os demais. Por que Hobbes não representou o Estado com a imagem de uma mulher? Hobbes (1997, p. 160) supunha que os homens favoreciam mais os filhos do sexo masculino porque “[...] os homens são naturalmente mais capazes do que as mulheres para as ações que implicam esforço e perigo”. Hobbes acreditava que o homem por natureza estaria mais qualificado para governar. O Leviatã de Hobbes foi criado para garantir paz e segurança. No entanto, para controlar os seres humanos que se movimentam em função das paixões e desejos, é preciso abdicar de liberdade em prol de segurança. Segundo Hobbes, troca-se o medo da morte violenta pelo respeito e observância às leis, também pelo medo da punição imposta pelo Leviatã a quem as violar. A obediência às leis é condição para uma vida plena. O Leviatã bíblico é o monstro do caos, diferindo, portanto, da intenção de Hobbes, que quer comparar a missão de Cristo com a do Leviatã, a de messias. Ele utiliza o termo Leviatã alegoricamente. A alegoria traduz um segundo sentido para um primeiro sentido, que é o sentido da forma literária. Ela parte de algo conhecido para terminar em uma figura que remete a algo anteriormente conhecido, mas lido a partir da imagem (CROATTO, 2010). Segundo Croatto (2010, p. 96), “a alegoria [...] ‘traduz’ parte do conhecido, embora seja uma realidade transcendente”. No aspecto descrito na Bíblia, o fato de o Leviatã ter poder irresistível coincide com a ideia de Hobbes de um Estado soberano. Hobbes (1997, p. 241) determina o poder do governante fazendo uma comparação com os dois últimos versículos do capítulo 41 de Jó: “não há nada na Terra, disse ele, que se lhe possa comparar. Ele é feito de maneira a nunca ter medo. Ele vê todas as coisas abaixo dele, e é o Rei de todos os Filhos da soberba”. Com isso, entende-se que o governante seja um ser superior aos demais. 76 O Leviatã hobbesiano simboliza um poder absoluto, o único capaz de manter a paz. Hobbes, ao empregar citações bíblicas, demonstra ter tido a intenção implícita de buscar fundamentação bíblica para o poder do Leviatã, um poder de proporções gigantescas. O Leviatã sai do mar, ambiente com propriedade de dar e tirar a vida, para garantir a vida. Embora esse poder exclusivo e ilimitado tenha sido um ato voluntário e racional da sociedade, ele busca nas Escrituras razões plausíveis para obter obediência e submissão do povo. Hobbes utiliza a figura de um dos monstros bíblicos para representar o Estado evocando um poder irresistível. O Leviatã bíblico é um monstro do caos que se apresenta de formas variadas e o Leviatã de Hobbes é um homem artificial com força e estatura maior que o homem natural, capaz de proteger e defender o povo. Essa ressignificação traz de volta a imagem do caos. No aspecto de provocar temor, o Leviatã de Hobbes coincide com o texto bíblico, para expressar um Estado detentor de todo o poder político e religioso que o próprio povo delegou a ele, utilizando da força coercitiva para os insubmissos. Com essa teoria do Estado surge uma sociedade organizada. Souki (2008) menciona que, no século XVII, a Bíblia, na Inglaterra, não estava restrita à religião, servindo de fundamento para todos os aspectos da cultura inglesa. A Bíblia podia justificar tudo o que uma pessoa ou grupo quisesse. Souki (2008) menciona que o Livro de Jó era o favorito de Hobbes entre os livros da Escritura. Conforme essa autora, a utilização do nome do monstro bíblico para o título da obra de Hobbes “representa o poder incontestável da soberania absoluta” e o “Leviatã parece evocar a força da ordem” (SOUKI, 2008, p. 14). Já que o personagem bíblico Jó era modelo de obediência a ser seguido. Em Jó 41,10, o Leviatã parece estar dormindo ou em descanso, pelo menos na maior parte do tempo. Portanto, o Leviatã só é terrível se despertado. Logo, o poderoso Leviatã hobbesiano é um mal necessário para manter a harmonia desejada por Hobbes. Dessa maneira, se ninguém infringir a lei, ele continuará adormecido. 3.4 A FORÇA DO SÍMBOLO LEVIATÃ O símbolo refere-se à união de elementos que se inter-relacionam. Ele é remissivo, pois envia para outra realidade, que é a que importa existencialmente. As 77 coisas deste mundo são captadas e vivenciadas analogicamente, que, por algum motivo são elevadas ao plano simbólico, à vivência do sagrado mediando uma relação com o objeto mundano (CROATTO, 2010). Segundo Croatto (2010), o símbolo é uma espécie de lente que possibilita ver o que sem ela não se vê. Esse autor diz que as palavras que expressam a experiência convertem-se em palavras simbólicas. Falar de Deus, que ‘está no céu’, não é usar uma linguagem objetiva, nem uma metáfora, mas um símbolo da transcendência e da soberania que ‘diz’, uma maneira de experimentar Deus religiosamente. Está-se expressando a percepção do transcendente mediante uma de suas manifestações cósmicas (uma hierofania), porém a vivência é humana e histórica (CROATTO, 2010, p. 90). Hobbes emprega a palavra Deus como instrumento para sacralizar o poder do Estado. Embora diferencie o reino de Deus do reino da terra, deixa que o próprio Deus diga que não é deste mundo. Logo, esse pensamento induz as pessoas a pensarem que, aqui na terra, o rei cristão é um Deus mortal. Segundo Terrin (2004), a história da humanidade e os mundos simbólicoreligiosos estão em mútua dependência e em recíproca interação. Para Geertz (1989), a cultura é composta por um conjunto de símbolos que permitem interpretar a realidade. Os símbolos articulam e veiculam uma rede de significados. Os símbolos religiosos são uma modalidade específica. Eles funcionam produzindo uma visão realista do mundo e um estilo premente de vida. Os símbolos culturalmente construídos modelam disposições e motivações religiosas e inserem tais disposições e motivações em um arcabouço cosmológico. Ao interpretar os símbolos, entendese a própria cultura em questão. “Os seres e espíritos sagrados, [...] serão tomados como expressão simbólica de relações sociais a serem remetidas às estruturas sociais e aos sistemas culturais de cada sociedade singular” (TEIXEIRA, 2003, p. 150-1). Segundo Terrin (2004, p. 47) o símbolo quer ser “algo além do racional, mas não além do razoável”. Racionalidade concebida como um conceito aberto que não pode se explicitar de uma vez por todas. Ora, somente neste quadro têm possibilidade de existência também o rito e mito, como explicações em igualdade de direitos com outras visões do mundo e como vetores de uma racionalidade que lhes é própria, não sempre nem imediatamente possível de verificar (TERRIN, 2004, p. 47). 78 Quando a imagem adquire o papel de representação, nasce o símbolo. Os símbolos são parte do mundo humano de significado e racionalidade. A partir da consciência religiosa, as imagens míticas se tornam expressões simbólicas da realidade espiritual (AVENS, 1993). A imagem do Leviatã bíblico representa o poder soberano, um símbolo do poder. O símbolo sagrado permitiu a passagem para uma realidade que realmente importava para as pessoas, uma realidade de ordem e paz. A vivência do símbolo sagrado revelou a possibilidade de coesão social. 79 CONCLUSÃO Esta pesquisa assumiu como objetivo analisar a origem do poder do Leviatã hobbesiano. Para tal, esta análise apoiou-se em ferramentas da fenomenologia da religião e da antropologia. No transcurso deste trabalho, foi-se constatando que o símbolo religioso Leviatã é uma das fontes do poder do Leviatã hobbesiano. Assim, é o Livro de Jó que inspira Hobbes. Este Livro se encaixa perfeitamente com o que Hobbes busca reforçar. Na época de Hobbes, Jó era visto como símbolo de paciência e obediência. O monstro em Jó representa o rei de todos os soberbos. É um ser capaz de governar todas as demais criaturas. As características do monstro bíblico servem de fundamento para o poder do Estado. Realizou-se, em primeiro lugar, uma leitura da obra Leviatã e de outras obras de Hobbes, procurando compreender o contexto histórico e os fatores que influenciaram o pensamento do autor. No momento histórico em que Hobbes cria o Leviatã, o importante era a preservação da vida humana. Era um período de intensos conflitos civis e religiosos. Com o emprego da reta razão, os indivíduos chegam à conclusão de que é melhor delegar todos os poderes a uma autoridade com capacidade de garantir a segurança de todos. Acredita-se que Hobbes recorreu ao mito para reforçar o poder do soberano. Hobbes utiliza o nome do monstro bíblico Leviatã para representar o Estado, simbolizando um poder terrível, capaz de impor à humanidade obediência e submissão. Este poder é legitimado pelo contrato social, mas não apenas por ele. O contrato social ameniza o temor que prevalece no estado de natureza. O medo constante no estado hipotético de natureza de Hobbes é maior que o medo provocado pelo Estado. Tal dominação se dá por meio do medo, da morte violenta e do símbolo Leviatã, consequentemente, o medo do castigo tanto civil quanto divino. Verificou-se que, em geral, o uso do nome e da imagem do monstro bíblico serviu para reforçar o poder do soberano. O poder monstruoso que a imagem inspira gera medo, mas também a adesão do povo. As teorias do direito natural e do direito divino do rei fazem que o povo obedeça às leis imposta pelo Leviatã hobbesiano. Assim, conclui-se que, ao empregar o nome de um monstro mitológico bíblico, ele quis, com isso, apropriar-se do seu sentido simbólico. O sentido apropriado é a capacidade de governar as demais criaturas, já que o monstro não sente medo e não tem superiores na Terra. Acredita-se que, para Hobbes, o mito do terrível 80 monstro marinho adormecido no fundo do mar é um mal necessário. Sua presença é primordial para a harmonia hobbesiana, pois o temor que ele provoca faz os humanos obedecerem as leis do Estado. Nesta investigação, constatou-se que Hobbes propôs uma nova configuração à categoria de direito divino dos reis. A aliança transforma-se em um dado concreto, em um contrato assegurado pelo poder do Estado, um poder visível. O não cumprimento das leis civis implica também desobediência a Deus. O indivíduo, ao temer o Estado, teme também a Deus. Logo, conclui-se que há um temor relacionado à imagem Deus, mas que não é necessariamente maior que o poder que se propõe laico balizado pela força e anuência de todos. Nas passagens bíblicas analisadas, o monstro Leviatã apresenta um poder fortíssimo e representa a manifestação do poder de Deus. Em Jó 40,29, Deus pode dominá-lo sem dificuldades. Com isso, entende-se que, embora o monstro simbolize o poder do mal, ele é subordinado a Deus. Portanto, o sentimento que o poder do Leviatã bíblico inspira é de medo e de temor, paixões essas que, segundo a teoria de Hobbes, fundamentam e legitimam a origem do Estado hobbesiano. Percebe-se ainda que Hobbes define as funções do Estado e da Igreja. Embora esse autor separe Estado e Igreja, verifica-se que ocorreu uma laicização parcial do Estado, pois Hobbes utilizou as Escrituras Sagradas e os símbolos religiosos como instrumentos que reforçam a soberania do Estado, permanecendo em parte o religioso imbricado no político. Foi também possível concluir que o poder do Leviatã hobbesiano é uma mescla de profano e sagrado, legitimado de alguma maneira na anuência de todas as pessoas. O poder se configura das duas maneiras. Inicia-se pela delegação voluntária de poder, em que as pessoas livremente optam pelo contrato social, configurando-se como um poder profano. Posteriormente, esse ato é sacralizado por meio do mito e do símbolo. O símbolo atua fornecendo o que é realmente essencial à pessoa humana. As pessoas buscavam a paz e a segurança que o símbolo Leviatã poderia lhes proporcionar. O poder do Leviatã hobbesiano se configura sagrado por ser um poder separado dos demais. Seu poder é superior aos demais seres humanos, pois não é subordinado a nenhuma lei civil. Todas as pessoas devem obediência às leis civis; somente o Leviatã não deve tal obediência. O Estado, segundo Hobbes, deve obediência apenas ao deus imortal. Com essa afirmação, ele transmite a ideia de que o Estado é um mediador do ente divino. Além 81 do medo da punição civil, fica implícito também um temor ao Deus Imortal. A manutenção do poder do Leviatã hobbesiano foi estabelecida pelo medo e pelo temor que o Leviatã de origem provoca. Hobbes apropria-se do poder irresistível do mito do Leviatã de Jó para reforçar o poder do soberano. Para finalizar, o uso do símbolo religioso permitiu que Hobbes estruturasse os conceitos que refletiam os interesses da classe que dominava em sua época. Para tornar sua teoria viável, ele buscou reforço na dimensão sagrada: nos mito, nos símbolos e nas Escrituras Sagradas. Quando Hobbes recorre ao sagrado para reforçar o poder do Estado, ele consegue a obediência dos súditos. Logo, a imagem do Leviatã bíblico tem importante papel na teoria hobbesiana, na medida em que ela serve de reforço no controle da ordem social. 82 REFERÊNCIAS ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução Denise Bottman. 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