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FE 301 - Árula votiva encontrada em Abrantes

UNIVERSIDADE DE COIMBRA FACULDADE DE LETRAS FICHEIRO EPIGRÁFICO (Suplemento de «Conimbriga») 67 (INSCRIÇÕES 300-304) INSTITUTO DE ARQUEOLOGIA 2001 ISSN 0870-2004 FICHEIRO EPIGRÁFICO é um suplemento da revista CONIMBRIGA, destinado a divulgar inscrições romanas inéditas da Península Ibérica. Solicita-se a colaboração de todos quantos tiverem directo conhecimento de achados. O comentário onomástico deve ser breve e pode mesmo omitir-se. Pretende-se, todavia, uma descrição correcta da peça, uma indicação das condições do achado, uma leitura e comentário paleográfico, bem como indicação do paradeiro actual. O FICHEIRO EPIGRÁFICO publica-se em fascículos de 16 páginas, cuja periodicidade depende da frequência com que forem recebidos os textos. As inscrições são numeradas de forma contínua ao longo dos vários fascículos, de modo a facilitar a preparação de índices, que serão publicados no termo de cada série de dez fascículos. FICHEIRO EPIGRÁFICO is a supplement of CONIMBRIGA whose objective is to make available previously unpublished Roman inscriptions of the Iberian Peninsula. Contributions from all finders are welcome. The onomastic and historic notes must, however, be very short. They can even been ommitted, in which case the note in question will consist merely of a description of the object, of the conditions of its discovery, of a reading and paleographic commentary, and reference to present location. FICHEIRO EPIGRÁFICO will be published in 16 page issues, of varying periodicity according to frequency of received notes. The inscriptions will be numbered, the numbering being continuous along the issues, so as to facilitate the preparation of indexes, which wili be published at the end of each group of ten issues. Toda a colaboração deve ser dirigida a: All contributions should be sent to the editors: José d’ENCARNAÇÃO Instituto de Arqueologia – R. de Sub-Ripas, P-3000-395 COIMBRA Maria Manuela Alves DIAS Av. Madrid, 24, 2º dtº, P-1000-196 LISBOA A publicação deste fascículo só foi possível graças ao patrocínio de FUNDAÇÃO PARA A CIÊNCIA E A TECNOLOGIA CONSELHO DIRECTIVO DA FACULDADE DE LETRAS DE COIMBRA Composto e impresso na G. C. – Gráfica de Coimbra, Lda. Depósito Legal Nº 21216/88 Ficheiro Epigráfico, 67, 2001 301 ÁRULA VOTIVA ENCONTRADA EM ABRANTES (Conventus Scallabitanus) Existe em depósito no Museu D. Lopo de Almeida (Abrantes), desde há pouco tempo (2001), não tendo ainda recebido número de inventário, uma árula, de mármore do tipo Estremoz / Vila Viçosa, cuja textura compacta e cristalina é visível na face posterior, uma vez que a superfície frontal, mais sujeita à erosão, lhe empresta a aparência de um granito acinzentado. Relativamente bem conservada no seu aspecto global, apenas com ligeiras escoriações nos bordos, apresenta-se-nos trabalhada nas quatro faces, base moldurada por um cordão de dois toros, enquanto o capitel, de duas faixas salientes separadas por um toro, culmina por um bem cavado fóculo rectangular. Não se lhe sabe, ao certo, a proveniência, embora se possa supor, pelas condições que levaram à sua identificação, que tenha tido origem na zona histórica da freguesia de S. Vicente, cujo contexto arqueológico terá necessariamente que se enquadrar no âmbito da histórica fortaleza de Abrantes. Dimensões: 28 x 15/12 x 11,5/10 x 14/12,5. Campo epigráfico: 12,5 x 11,5. I.(ovi) · O.(ptimo) · M . (aximo) · S(acrum) / […] (?) / VOT.VM Voto consagrado a Júpiter Óptimo Máximo [...]. Altura das letras: l. 1: 2,5 (O = 2); últ. l. 2: 2,0 (O = 1,5). Espaços: ? Em virtude do desgaste geral a que a inscrição foi sujeita, a leitura da l. 1 oferece dificuldades. Contudo, e sobretudo após a visualização das fotos obtidas por ampliação e pelo seu tratamento em Ficheiro Epigráfico, 67, 2001 suporte informático, em que o I inicial e o O seguinte parecem afirmar-se com bastante nitidez e o suposto M da tríade (bem marcado pelo final da haste direita) se impõe sem deixar alternativa, cremos terem-se, em princípio, dissipado as dúvidas. Torna-se, porém, impossível determinar se foi epigrafada, ou não, a parte central do campo epigráfico, onde se nota uma zona martelada e ligeiramente mais rebaixada; haveria espaço para, pelo menos, mais uma linha e aí se poderia registar, por exemplo, a identificação do dedicante. Apesar de tudo, a paginação crê-se não ter sido descuidada: houve preocupação de alinhamento à esquerda, procurando-se um eixo de simetria; o teónimo foi grafado em módulo maior, para melhor visibilidade e destaque; e os caracteres da palavra VOTVM, capitais actuários, conquanto algo irregulares (V oblíquo e assimétrico, OO de menores dimensões e não totalmente circulares, T encostado ao V e como que formando nexo, M com a última perna mais alongada), foram gravados em bisel e com ápices terminais levemente oblíquos, bem vincados, conferindo ao conjunto uma certa elegância e graciosidade. Lemos VOTVM; contudo, devido a uma eventual regravação posterior, o T encontra-se actualmente grafado como L; a leitura encontra justificação, por exemplo, numa ara de Caparide (Cascais) em que uma palavra de conotação semelhante – DONVM – está colocada no final, a assinalar a oferenda de dois sacerdotes (FE 24). Este facto leva-nos a pensar na função primordial do monumento. Na verdade, as características formais do seu foculus, perfeitamente demarcado e amplo, mostram bem a adequação da peça a actos sacrificiais ou oferendas. Ou seja, enquanto que habitualmente a presença do fóculo mostra uma intenção de perpetuar cerimónias inexistentes, aqui, a função seria exercida de facto: a ara servia mesmo! Tal circunstância incita-nos, por seu turno, a sugerir que – a estar mencionado na pedra (podia não estar, embora pareçam existir, como se disse, sinais de martelamento) – o dedicante, mais do que um indivíduo, poderá ter sido uma comunidade, a comunidade que se reunia no monte sagrado onde Abrantes teve origem. O altar comunitário para receber preitos de homenagem de todos. Aliás, com esta inscrição aproxima-se das 70 o número de aras conhecidas em Portugal com dedicação a esta divindade (Júpiter Óptimo Máximo), quando, ao nível da área peninsular, o número das epígrafes respectivas ultrapassou há muito as duas centenas, Ficheiro Epigráfico, 67, 2001 representando as da Lusitânia cerca de 30% do total1. E é de notar também a coincidência de monumentos desta natureza aparecerem quase sempre em locais onde depois surgiram templos cristãos (igrejas ou capelas), denotando assim uma tendência para a continuidade de funções dos mesmos espaços até aos nossos dias. No caso vertente, é possível estabelecer uma relação entre o morro (castellum) de Abrantes com as igrejas de S.ta Maria do Castelo ou de S. Vicente, ali instaladas desde os primeiros tempos da monarquia portuguesa. Com efeito, na área do mesmo castelo tinham aparecido já, entre muitos outros vestígios que cobrem praticamente todas as épocas desde o Calcolítico, outra árula anepígrafa (ex-voto)2 e uma estátua acéfala romana, de excelente factura3. Escavações sistemáticas precisam-se, em toda a área da fortaleza, pois os indícios são já deveras e de há muito significativos... Trata-se, em suma, de uma epígrafe do maior interesse para a história de Abrantes. É certo que já se conhecia o Iusiurandum Aritiensium, documento hoje desaparecido mas que se considerou proveniente da freguesia de Alvega, a cerca de 15 km, onde se registava uma das mais antigas referências a Júpiter Óptimo Máximo da Península4 ; mas o presente achado não é apenas mais um testemunho do culto a I. O. M., mas a sua tipologia excepcional abre todo um conjunto de perspectivas, assumindo desde já particular relevância a questão do papel desempenhado pela fortaleza (oppidum) de Abrantes como sentinela fundamental do Tejo, a remeter de imediato para a problemática localização de Aritium Vetus5. 1 Cf. Jorge de ALARCÃO, O Domínio Romano em Portugal, Mem Martins, 1988, p. 167; J. Cardim RIBEIRO, Sintria, 1-2, 1982-1983, p. 256 (mapa carecido de actualização); e A. M. VÁZQUEZ HOYS, «El culto a Júpiter en Hispania», Cuadernos de Filologia Clásica, XVIII, 1983-1984, p. 94. 2 José d’ENCARNAÇÃO e Joaquim Candeias SILVA, «Catálogo da epigrafia romana de Abrantes», 1982, Abrantes – Cadernos para a História do Município, ed. ADEPRA, inscr. 6, p. 33-34. Duas outras epígrafes, “ditas” desaparecidas e alegadamente daqui provenientes, foram entretanto por nós postas de lado, por sobre elas recair a suspeição de terem sido forjadas («Epigrafia romana de Abrantes – Quatro textos em questão», Trebaruna, I, Castelo Branco, 1981, p. 9-24). 3 J. M. Bairrão OLEIRO, «A propósito de alguns materiais arqueológicos recolhidos no castelo de Abrantes», Vida Ribatejana, Janeiro de 1951. 4 Cf. José d’E NCARNAÇÃO , Inscrições Romanas do Conventus Pacensis, Coimbra, 1984, p. 703-706. 5 Com efeito, tem-se localizado Aritium Vetus em Alvega, quase exclusivamente em função daquela famosa placa, que foi gravada «in aritiense oppido Ficheiro Epigráfico, 67, 2001 Não dispomos de muitos elementos susceptíveis de nos fornecerem indícios claros para uma datação. Os poucos caracteres existentes, embora claramente actuários como se disse, não são paleograficamente significativos; a tipologia é, porém, inusitada, primando pela simplicidade e solidez, o que nos incitaria a apontar globalmente para o século I da nossa era6. JOAQUIM CANDEIAS SILVA JOSÉ D’ENCARNAÇÃO 301 veteri», no ano 37 d. C., e que apareceu por ali, junto ao Tejo. A verdade é que não existe nas proximidades daquela aldeia nenhum ópido, ao contrário do que se verifica em Abrantes, e o juramento dos Aricienses poderia ter sido colocado em sítio visível, não no centro do ópido, mas num ponto estratégico do seu limite territorial... 6 O estudo deste monumento integra-se num trabalho de conjunto das Estações Arqueológicas do Concelho de Abrantes, que há vários anos aguarda publicação pela Câmara Municipal de Abrantes (com prefácio de Jorge de Alarcão) e cujo levantamento de base foi efectuado por J. Candeias da Silva em colaboração com Álvaro Batista, a quem se agradece a quota parte de intervenção para que os resultados desta ficha de trabalho fossem possíveis. Ficheiro Epigráfico, 67, 2001