Este ensaio analisa a forma como o narrador do conto Miss Dollar, de Machado de Assis, monitora e
até mesmo manipula a recepção do público leitor, ação que se expressa pelo chamamento direto do
leitor à participação na narrativa. A análise deste fenômeno estará centrada no início da produção
literária de Machado, ainda na sua fase romântica, em um recorte de obras pontuais entre os anos de
1864 e 1874. Com apoio de Lajolo e Zilberman (1998), observamos o comportamento do narrador
machadiano em relação ao leitor no conto Questão de vaidade, de 1864, e no romance A mão e a luva,
de 1874, que dão suporte à análise central do monitoramento do leitor desenvolvido por Machado,
aqui expressa por meio do conto Miss Dollar, do livro de estreia do autor no gênero, Contos Fluminenses.
Palavras-chave: Miss Dollar. Machado de Assis. Narrador. Leitor monitorado.
This essay examines how the narrator of Machado de Assis' short story Miss Dollar monitors and even
manipulates the reception of the reading public, an action that is expressed by the direct call of the
reader to participation in the narrative. The analysis of this phenomenon will be centered in the
beginning of the literary production of Machado, still in his Romantic phase, in a cut of punctual
works between the years of 1864 and 1874. With the support of Lajolo and Zilberman (1998), we
observe the behavior of the Machadian narrator in relation to the reader in the story of Questão de
vaidade, of 1864, and in the novel A mão e a luva, of 1874, which support the central analysis of the
reader's monitoring developed by Machado, expressed here through the short story Miss Dollar, from
the debut book of the author in the genre, Contos Fluminenses.
Keywords: Miss Dollar. Machado de Assis. Narrator. Monitored reader.
Fruto de uma colonização interessada em extrair as riquezas locais antes de qualquer
outra coisa, a formação, no Brasil, de grandes movimentos no mundo das letras andou por
caminhos sempre tortuosos. A grande dificuldade notada e debatida na atualidade em relação
à formação de um público que leia a literatura que aqui se produz provém, muito
provavelmente, desde antes da chegada da Família Real portuguesa, no início do século XIX,
fugida das tropas napoleônicas que ameaçavam invadir terras luso-ibéricas. Mesmo que aqui
se produzisse literatura nacional de qualidade, foi só depois da década de 1840, quase três
séculos e meio depois da chegada dos primeiros portugueses, que os passos iniciais foram
dados na direção da criação e manutenção de públicos leitores – ou permitidos, a partir da
implementação de ferramentas básicas, como a prensa, e à implementação das primeiras
escolas mantidas pelo Império.
Em meio à população amplamente analfabeta, restava aos escritores, formados em
escolas europeias, dividirem sua produção entre si – produção essa que, no suporte físico e
material, também advinha da Europa. Isso porque, obviamente, não havia interesse em
permitir acesso popular à escolarização, que era quase inexistente, principalmente porque
ainda se vivia sob o ritmo impiedoso de uma sociedade escravocrata, despreocupada com
qualquer formação educacional e/ou cultural dedicada às classes mais baixas, mesmo (ou
principalmente) nos grandes centros, como era o caso do Rio de Janeiro. Ato contínuo, não
havia público leitor que lesse a literatura nacional. Apesar dos pesares, o quadro começa a
tomar rumos diferentes nos anos 40 do século XIX, ainda que de modo bastante rudimentar
e precário:
Só por volta de 1840 o Brasil do Rio de Janeiro, sede da monarquia, passa
a exibir alguns dos traços necessários para a formação e fortalecimento de
uma sociedade leitora: estavam presentes os mecanismos mínimos para a
produção e circulação da literatura, como tipografias, livrarias e
bibliotecas; a escolarização era precária, mas manifestava-se o movimento
visando à melhoria do sistema. (LAJOLO; ZILBERMAN, 1998, p. 18)
Surge, nesse contexto, certa preocupação entre os escritores para com a formação de
seus públicos. Tem início, a partir daí, uma relação de cuidado quase paternalista entre
escritor e público, permeada por um diálogo que se estabelece, obviamente, na obra literária,
ponto de encontro da relação entre autor e leitor. Se a figura deste último ainda é frágil, é
preciso ser tolerante, de certa forma até permissivo, compreendendo e orientando o caminho
da leitura entre os nós do texto. Quem faz isso com maestria, no início dos anos 1850, é
Manuel Antônio de Almeida, conforme destacam Lajolo e Zilberman (1998, p. 19), por meio
de recursos como a retomada de informações anunciadas em capítulos anteriores, buscando
cativar a atenção do leitor à leitura, que corre o risco de ser posta de lado ao menor sinal de
dificuldade.
Essa é uma opção do autor, explícita por meio do seu narrador. É frequente, portanto,
que as relações do leitor com o texto sejam gradualmente simuladas e legitimadas na
superfície do próprio texto literário, “dando-lhe razão, sugerindo indiretamente sua
competência e, às vezes, até mesmo sua superioridade” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1998, p.
19). Estratégia inteligente: cabe ao autor – e somente a ele – a responsabilidade de decidir se
será mais ou menos tolerante, se permitirá ou não que seu leitor se sinta superior, mais ou
menos capaz de “dominar” o texto que lê. Dado que os principais textos circulavam antes
nos folhetins do que nos livros, a estratégia aparentemente deu certo, contribuindo para a
gênese de uma cultura leitora na sociedade – e no sistema literário conhecido por
romantismo, em que se espelha pela primeira vez uma identidade nacional na literatura
brasileira, como destaca Antonio Candido (2013); o público alvo, por sua vez, centrava-se
quase predominantemente nas mulheres, a quem incumbia a administração das tarefas
domésticas e até mesmo a escolarização.
É nessa mesma época, nesse mesmo início de formação de um público leitor nacional
que nasce Machado de Assis (mais precisamente, 1839). Sua produção literária começou
quando ainda tinha rasos 16 anos, ao publicar, em 1955, o poema Ela; mas é somente na
prosa, por meio do conto e do romance, que Machado vai deixar clara a sua posição junto a
esse público – com quem dialoga diretamente por meio de seus narradores. Lajolo e
Zilberman destacam a relação do Machado autor com o público leitor em dois momentos
do início de sua carreira: com a publicação do conto Questão de vaidade, de 1864, e com o
romance A mão e a luva, de 1874. No meio dessas duas publicações encontra-se o seu primeiro
livro de contos: Contos fluminenses, de 1970. Do conjunto de textos dessa obra, deteremos
nossa análise, mais adiante, ao conto de abertura, Miss Dollar, curiosamente o único entre os
escolhidos para a antologia que não foi previamente veiculado em folhetins, mas que revela
de maneira bastante significativa o modo como o autor monitora (para não usar desde cedo
outro termo: manipula) o leitor ao longo do texto. Machado, por meio do seu narrador em
terceira pessoa, deixa clara a sua posição em meio ao debate que sugere superioridade do
leitor em relação à obra, como que facilitando os caminhos para o público. Nos dedicaremos,
neste ensaio, a verificar tais posições, explícitas nos pontos em que o narrador machadiano
fala abertamente com o seu interlocutor.
Se Manuel Antônio de Almeida é mais tolerante e permissivo, Machado é quem eleva
o status do leitor por meio da “caracterização refinada e intelectual do ambiente e das
atitudes, inscrevendo o interlocutor do narrador entre os membros da elite” (LAJOLO;
ZILBERMAN, 1998, p. 21). O fato é notado já em Questão de vaidade, um dos seus primeiros
contos, publicado originalmente no Jornal das Famílias, em novembro de 1864: em diálogo
aberto com o interlocutor – ao qual se dirige por chamá-lo propriamente de leitor –, o
narrador de Machado busca um clima de intimidade desde o início do conto:
Suponha o leitor que somos conhecidos velhos. Estamos ambos entre as
quatro paredes de uma sala; o leitor sentado em uma cadeira com as pernas
sobre a mesa, à moda americana, eu a fio comprido em uma rede do Pará,
que se balouça voluptuosamente, à moda brasileira, ambos enchendo o ar
de leves e caprichosas fumaças, à moda de toda gente. (ASSIS, 2017
[1864], p. 1)
O diálogo intimista segue quando adota a primeira pessoa do plural, como que
simulando certo abuso de verossimilhança ao propor que o leitor participa da cena da mesma
maneira que o faz o autor/narrador, partindo do pressuposto de que ambos compartilham
vivências semelhantes:
Do passado vamos ao presente, e as nossas mais íntimas confidências se
trocam com aquela abundância de coração própria dos moços, dos
namorados e dos poetas. (ASSIS, 2017 [1864], p. 2)
Considerando que o primeiro capítulo do conto funciona como um chamamento à
leitura, em que tanto autor quanto leitor se encontram nas condições ideais para
compartilharem o movimento de uma história, o narrador atinge o ápice de elevação do
interlocutor, caracterizando-o por sua perspicácia e aptidão à leitura da literatura:
Então, o leitor, que é perspicaz e apto para sofrer uma narrativa de
princípio a fim, descobre que eu também me entrego aos contos e novelas,
e pede que lhe forje alguma coisa do gênero. (ASSIS, 2017 [1864], p. 2)
Uma vez que narrador e leitor estão em posição de suposta paridade, não é preciso
descer ao nível de um leitor iniciante, que precisa de índices e retomadas que lhe garantam a
compreensão contínua da obra sem dificuldade ou grande esforço, digamos, intelectual; esse
movimento quase paternalista, quase afetuoso de tratar o leitor, busca amadurecer a sua
leitura à medida que lhe conforta, como destacam Lajolo e Zilberman ao leitor/interlocutor
de Manuel Antônio de Almeida. Machado, por sua vez, supera o nível iniciante e coloca seu
narrador entre a elite, como um ser “sofisticado, frequentador assíduo das mais seletas rodas
do segundo império brasileiro” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1998, p. 21), com quem qualquer
leitor sentir-se-ia honrado em compartilhar experiências e confidências por meio da narrativa.
A forma de diálogo é retomada por Machado em A mão e a luva, seu segundo romance,
publicado em 1874, dez anos depois de Questão de vaidade. Aqui a relação com o leitor pode
até parecer, de início, dotada de certo tom paternalista e permissivo, explícito na voz de quem
pretende agradar ao leitor, e que de antemão justifica um trabalho que o próprio autor parece
caracterizar como “fora de seus hábitos”. Isso fica claro na Advertência de 1874, que serve
de prefácio ao livro:
Esta novela, sujeita às urgências da publicação diária, saiu das mãos do
autor capítulo a capítulo, sendo natural que a narração e o estilo
padecessem com esse método de composição, um pouco fora dos hábitos
do autor. Se a escrevera em outras condições, dera-lhe desenvolvimento
maior, e algum colorido mais aos caracteres, que aí ficam esboçados. [...]
Mas talvez estou eu a dar proporções muito graves a uma coisa de tão
pequeno tomo. O que aí vai são umas poucas páginas que o leitor esgotará
de um trago, se elas lhe aguçarem a curiosidade, ou se lhe sobrar alguma
hora que absolutamente não possa empregar em outra coisa, — mais bela
ou mais útil. (ASSIS, 1973, p. 7)
No entanto, a modéstia simulada, de acordo com Lajolo e Zilberman, não é
permanente; logo adiante o narrador voltará a colocar o interlocutor no seu mesmo patamar
– vale repetir, ocupante do mesmo ambiente social, compartilhando dos mesmos requintes
que permitem ao segundo interessar-se pela história daquele que narra. Assim como em
Questão de vaidade, a relação entre narrador e leitor tem seu ponto alto quando a narrativa
parece sugerir que tanto um quanto o outro compartilham do mesmo ponto de vista na
história, o que constitui, de fato, o sucesso do recurso de monitoramento do leitor
empreendido pelo autor. A relação sai fortalecida para ambos os lados, muito embora o
monitoramento não seja perceptível aos olhos do lado mais fraco. Como se fossem
cúmplices, o espaço dividido entre autor e leitor na superfície do romance beira a
“promiscuidade, já que o primeiro tem prazer em lembrar o segundo de que, graças à sua
posição privilegiada, ambos têm acesso a informações de outra maneira inalcançáveis”
(LAJOLO; ZILBERMAN, 1998, p. 23). Exemplificando essa relação que é sintomática no
uso da terceira pessoa do plural, Lajolo e Zilberman destacam os seguintes trechos da obra:
Estevão, da distância e na posição em que se achava, não podia ver todas
estas minúcias que aqui lhes aponto, em desempenho deste meu dever de
contador de histórias. (ASSIS, 1973, p. 19)
Guiomar havia já alguns minutos que não atendia à interlocutora; tinha o
ouvido afiado e assestado sobre o grupo da madrinha. Ninguém a
observava; mas é privilégio do romancista e do leitor ver no rosto de uma
personagem aquilo que as outras não veem ou não podem ver. No rosto
de Guiomar podemos nós ler, não só o tédio que lhe causava aquela
opinião unânime contra o projeto da baronesa, mas ainda a expressão de
um gênio imperioso e voluntário. (ASSIS, 1973, p. 63)
Apesar do sucesso do uso desses recursos para aproximar o leitor da leitura, é bastante
provável que a forma como a aproximação deste com a narrativa, uma vez que ocorre
mimetizada no interior dela própria, seja, na verdade, uma projeção de leitor idealizado pelo
autor. No caso de Machado, a projeção do leitor serve senão para monitorar a leitura e
conduzir a compreensão do seu interlocutor direto, pelo menos para exemplificar a recepção
– e aí, sim, manipulá-la, doutriná-la – de acordo com o que o próprio autor espera do seu
público. Já que Machado não desce ao nível do leitor mais iniciante, mas, pelo contrário,
eleva a condição do seu público a uma posição parelha à do narrador, parece claro que o
mesmo Machado não deseja curvar-se diante da deficiência leitora da ampla maioria da
população. Em confronto à situação, o autor age, pelo menos nesse primeiro momento de
sua produção – que é praticamente concomitante ao desenvolvimento das primeiras letras
no Brasil – para aparentemente amadurecer o senso estético do seu interlocutor para obras,
digamos, mais maduras, o que culminará anos mais tarde com a publicação de Memórias
póstumas de Brás Cubas. Em uma palavra, “Machado parece estar querendo criar certo padrão
de leitura e de leitor que não se deixa consumir pela febre romântica” (LAJOLO;
ZILBERMAN, 1998, p. 26).
Exemplo marcante da relação de monitoramento do leitor por meio da representação
deste na narrativa é verificável no conto Miss Dollar, que abre o primeiro livro do gênero de
Machado, Contos Fluminenses. José Galante de Souza, em prefácio à edição crítica do livro,
publicada em 1975 pela Civilização Brasileira, destaca o fato de que, apesar de ser uma
antologia de contos, não se trata da estreia de Machado no gênero, já que, com exceção de
Miss Dollar, “as outras seis histórias apareceram antes no Jornal das Famílias, entre abril de
1865 e janeiro de 1869” (SOUZA, 1975, p. 11). Apesar de indicar que Miss Dollar tenha sido
produzido em momento que “já não permitiu o seu aproveitamento no periódico” (SOUZA,
1975, p. 12), condicionamo-nos a acreditar que a escolha desse conto para abrir o volume
não seja de todo em vão, muito pelo contrário: entre os sete contos da coletânea, do total de
vezes em que o narrador machadiano se dirige ao interlocutor por meio do chamamento
direto – ou seja, evocando-o pelo uso de “leitor” ou “leitores”, quando no plural, mais da
metade das ocorrências se dá em Miss Dollar.
Um ponto a ser destacado, e que nosso leitor talvez já questione, se for conhecedor do
Jornal das Famílias, é o tratamento sempre no masculino (leitor, leitores) que o narrador
machadiano dedica ao seu interlocutor, quando o periódico era destinado quase
predominantemente à leitura feminina, trazendo, além de contos, receitas culinárias,
bordados, entre outros itens. O tratamento talvez revele certa desconfiança de Machado em
relação ao seu público, colocando-o em posição dupla: de um lado, evoca a participação do
leitor (que é, também, a leitora), inserindo-o no mesmo nível do narrador e convidando-o a
partilhar da companhia do narrador; de outro, ainda mantém sua superioridade ao generalizar
o público pelo substantivo masculino, de modo mais marcante quando usado no singular.
Efeito que aos nossos olhos pode parecer um tanto machista, mas que, se o é de fato, não
dura muito tempo: o quadro vai mudar ao longo da obra de Machado, e já aparece em Papeis
Avulsos, de 1882, seu terceiro volume de contos, ainda que em um único momento, no
segundo capítulo de Dona Benedita. Também volta a aparecer uma única vez em Cantiga de
esponsais, logo na abertura do conto, na antologia Histórias sem data, de 1884; e também em
uma única ocasião de O cônego, do livro Várias histórias, de 1896. Ocasiões simplórias e únicas,
é verdade, mas significativas se observarmos que Machado passa a considerar abertamente a
existência da leitora, não apenas do leitor. Ainda assim, como pode ser visto pela ordem
cronológica, isso só começa a ocorrer quase dez anos depois do recorte temporal que
propomos neste ensaio, a saber, entre 1864 e 1874. Voltemos, então, ao nosso foco, de modo
que o nosso leitor – ou a nossa leitora – não nos denuncie a digressão excessiva.
Dizíamos anteriormente que mais da metade das ocorrências em que o narrador chama
o leitor, nos Contos fluminenses, se dá em Miss Dollar. Estatisticamente, o fenômeno ocorre 24
vezes, em praticamente todo o volume: três delas em Luís Soares; duas em O segredo de Augusta;
uma única vez em Confissões de uma viúva moça; e cinco vezes em Linha reta e linha curva. Como
se percebe, nos contos A mulher de preto e Frei Simão não há chamada à participação do leitor
em nenhum momento. Já Miss Dollar, por sua vez, traz impressionantes treze ocorrências em
que o interlocutor é chamado à narrativa, no singular ou no plural. O conto, permeado por
marcas do Romantismo, inicia pela indagação sobre quem seria a Miss Dollar do título. É
óbvio que a indagação é dirigida ao público, como se fosse ele quem de fato questionasse a
identidade da heroína. O narrador sugere, então, distintas possibilidades, cada uma
relacionada a um tipo de leitor idealizado, mas não sem antes dar a entender certa
superioridade do narrador/autor em relação à identidade de Miss Dollar, por meio de uma
suposta hesitação em relação à revelação direta. Eis que o narrador decide, por fim, dar cabo
da hesitação e ser um tanto tolerante:
Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber
quem era Miss Dollar. Mas por outro lado, sem a apresentação de Miss
Dollar, seria o autor obrigado a longas digressões, que encheriam o papel
sem adiantar a ação. Não há hesitação possível: vou apresentar-lhes Miss
Dollar. (ASSIS, 1975, p. 53)
Os possíveis leitores do conto começam a ser elencados a seguir, iniciando por aquele
que é jovem e melancólico, capaz de imaginar imediatamente Miss Dollar como uma jovem
inglesa, típica personagem romântica:
Se o leitor é rapaz e dado ao gênio melancólico, imagina que Miss Dollar
é uma inglesa pálida e delgada, escassa de carnes e de sangue, abrindo à
flor do rosto dois grandes olhos azuis e sacudindo ao vento umas longas
tranças loiras. A moça em questão deve ser vaporosa e ideal como uma
criação de Shakespeare; deve ser o contraste do roastbeef britânico, com
que se alimenta a liberdade do Reino Unido. Uma tal Miss Dollar deve ter
o poeta Tennyson de cor e ler Lamartine no original; se souber o
português deve deliciar-se com a leitura dos sonetos de Camões ou os
Cantos de Gonçalves Dias. O chá e o leite devem ser a alimentação de
semelhante criatura, adicionando-se-lhe alguns confeitos e biscoitos para
acudir às urgências do estômago. A sua fala deve ser um murmúrio de
harpa eólia; o seu amor um desmaio, a sua vida uma contemplação, a sua
morte um suspiro. (ASSIS, 1975, p. 53)
A possibilidade de leitura, embora digressiva, é desmentida pelo narrador logo a seguir:
“A figura é poética, mas não é a da heroína do romance” (ASSIS, 1975, p. 53). O próximo
leitor seria então o oposto do primeiro, avesso aos “devaneios e melancolias”, imaginando
inclusive uma heroína proveniente do outro oposto do Atlântico – não mais inglesa, agora
americana:
Suponhamos que o leitor não é dado a estes devaneios e melancolias; nesse
caso imagina uma Miss Dollar totalmente diferente da outra. Desta vez
será uma robusta americana, vertendo sangue pelas faces, formas
arredondadas, olhos vivos e ardentes, mulher feita, refeita e perfeita.
Amiga da boa mesa e do bom copo, esta Miss Dollar preferirá um quarto
de carneiro a uma página de Longfellow, coisa naturalíssima quando o
estômago reclama, e nunca chegará a compreender a poesia do pôr-dosol. Será uma boa mãe de família segundo a doutrina de alguns padres
mestres da civilização, isto é, fecunda e ignorante. (ASSIS, 1975, p. 54)
A crítica ao final do parágrafo deixa claro que também não será essa a heroína da
história. O narrador parte, então, a um leitor mais velho, veterano nas experiências da vida e
diante de “uma velhice sem recurso”:
Já não será do mesmo sentir o leitor que tiver passado a segunda mocidade
e vir diante de si uma velhice sem recurso. Para esse, a Miss Dollar
verdadeiramente digna de ser contada em algumas páginas, seria uma boa
inglesa de cinquenta anos, dotada com algumas mil libras esterlinas, e que,
aportando ao Brasil em procura de assunto para escrever um romance,
realizasse um romance verdadeiro, casando com o leitor aludido. Uma tal
Miss Dollar seria incompleta se não tivesse óculos verdes e um grande
cacho de cabelo grisalho em cada fonte. Luvas de renda branca e chapéu
de linho em forma de cuia, seriam a última demão deste magnífico tipo de
ultramar. (ASSIS, 1975, p. 54)
O indício do leitor ideal é trazido logo a seguir, superando as suposições anteriores
inclusive na redução da digressão:
Mais esperto que os outros, acode um leitor dizendo que a heroína do
romance não é nem foi inglesa, mas brasileira dos quatro costados, e que
o nome de Miss Dollar quer dizer simplesmente que a rapariga é rica.
(ASSIS, 1975, p. 54)
O narrador aproxima-se de dar razão ao leitor, mas nem mesmo o mais próximo do
seu ideal de público é capaz de acertar com exatidão a identidade de Miss Dollar. Como ele
próprio é conhecedor da verdade sobre a narrativa, e como é ele quem convida o leitor a
participar da história, apenas a ele cabe revelar a verdadeira identidade de Miss Dollar:
A descoberta seria excelente, se fosse exata; infelizmente nem esta nem as
outras são exatas. A Miss Dollar do romance não é a menina romântica,
nem a mulher robusta, nem a velha literata, nem a brasileira rica. Falha
desta vez a proverbial perspicácia dos leitores; Miss Dollar é uma cadelinha
galga. (ASSIS, 1975, p. 54)
Revelada a heroína, o narrador parte para a defesa da sua importância à narrativa,
introduzindo a informação do desaparecimento da cadela, cujo paradeiro, se localizado, seria
recompensado com o valor de duzentos mil réis. Miss Dollar não é propriamente a heroína
rica, mas não deixa de pertencer a uma classe superior, na qual tanto o narrador quanto o
leitor serão inseridos para observar mais de perto o desenrolar da história.
Eis que Miss Dollar é encontrada por Dr. Mendonça, jovem médico retirado e
colecionador de cachorros. A evocação ao leitor, pressupondo um determinado
comportamento por parte deste, é retomada no segundo capítulo do conto, quando
apresenta Mendonça, não sem subjugar e negar a posição desse provável leitor:
O leitor superficial conclui daqui que o nosso Mendonça era um homem
excêntrico. Não era. Mendonça era um homem como os outros; gostava
de cães como outros gostam de flores. Os cães eram as suas rosas e
violetas; cultivava-os com o mesmíssimo esmero. De flores gostava
também; mas gostava delas nas plantas em que nasciam: cortar um jasmim
ou prender um canário parecia-lhe idêntico atentado. (ASSIS, 1975, p. 55)
Ao ver o anúncio sobre o paradeiro de Miss Dollar, Mendonça decide devolver a cadela
aos donos. Nesse cruzamento, acaba por conhecer Margarida, jovem viúva e dona de Miss
Dollar, e sua tia, D. Antônia. Apaixona-se quase que instantaneamente pela moça, embora a
informação não seja explícita ao leitor: como afirmará o narrador logo a seguir, a
singularidade da expressão de Mendonça fica a critério de quem lê, já possivelmente capaz,
nesse ponto da narrativa, de depreender a paixão em desenvolvimento.
Mendonça levantou-se justamente quando entrava na sala a sobrinha em
questão. Era uma moça que representava vinte e oito anos, no pleno
desenvolvimento da sua beleza, uma dessas mulheres que anunciam
velhice tardia e imponente. O vestido de seda escura dava singular realce
à cor imensamente branca da sua pele. Era roçagante o vestido, o que lhe
aumentava a majestade do porte e da estatura [...] A extrema brancura da
pele não tinha o menor tom cor-de-rosa que lhe fizesse harmonia e
contraste. A boca era pequena, e tinha uma certa expressão imperiosa. Mas
a grande distinção daquele rosto, aquilo que mais prendia os olhos, eram
os olhos; imaginem duas esmeraldas nadando em leite.
Mendonça nunca vira olhos verdes em toda a sua vida; disseram-lhe que
existiam olhos verdes, ele sabia de cor uns versos célebres de Gonçalves
Dias; mas até então os olhos verdes eram para ele a mesma coisa que a
fênix dos antigos. Um dia, conversando com uns amigos a propósito disto,
afirmava que se alguma vez encontrasse um par de olhos verdes fugiria
deles com terror.
— Por quê? perguntou-lhe um dos circunstantes admirado.
— A cor verde é a cor do mar, respondeu Mendonça; evito as tempestades
de um; evitarei as tempestades dos outros.
Eu deixo ao critério do leitor esta singularidade de Mendonça, que de mais
a mais é preciosa, no sentido de Molière. (ASSIS, 1975, p. 58, grifo do autor)
Após o primeiro encontro com Margarida, Mendonça sai visivelmente perturbado,
“impressionado pela interessante Margarida” (ASSIS, 1975, p. 59), embora tema justamente
os olhos verdes da moça. O narrador passa a criticar a situação e o próprio personagem,
demarcando a sua posição superior inclusive em relação à narrativa – afinal, não esqueçamos
que se trata de um narrador em terceira pessoa, onisciente. Evoca, contudo, a participação
do leitor, com quem compartilha não só a narrativa, mas já nessa altura o seu próprio ponto
de vista. No entanto, não deixa de lado o tom paternalista, como que aconselhando – ou
mesmo educando, doutrinando – a percepção daquele que o lê, visível na segunda metade
do trecho a seguir:
Algum leitor grave achará pueril esta circunstância dos olhos verdes e esta
controvérsia sobre a qualidade provável deles. Provará com isso que tem
pouca prática do mundo. Os almanaques pitorescos citam até à saciedade
mil excentricidades e senões dos grandes varões que a humanidade admira,
já por instruídos nas letras, já por valentes nas armas; e nem por isso
deixamos de admirar esses mesmos varões. Não queira o leitor abrir uma
exceção só para encaixar nela o nosso doutor. Aceitemo-lo com os seus
ridículos; quem os não tem? O ridículo é uma espécie de lastro da alma
quando ela entra no mar da vida; algumas fazem toda a navegação sem
outra espécie de carregamento. (ASSIS, 1975, p. 60)
A narrativa que segue trata de introduzir à história o personagem Andrade, amigo de
Mendonça, que revela a este a viuvez precoce de Margarida e a recusa consecutiva dela a
outros cinco pretendentes. Mais adiante se revelará que também Andrade tentara desposar a
moça; ficará clara, também, a paixão de Mendonça, que já nesta altura torna-se íntimo da
família de Miss Dollar e passa a cortejar Margarida, sem sucesso em suas investidas. Ainda
assim, “amor repelido é amor multiplicado”, como afirma o narrador; “cada repulsa de
Margarida aumentava a paixão de Mendonça” (ASSIS, 1975, p. 65).
O leitor será chamado diretamente somente em outros dois momentos do conto,
ambos no sexto capítulo. Na introdução deste, o narrador parte a julgar o comportamento
do leitor que não concorde com a cortesia frequente de Mendonça à Margarida, consoante a
um comportamento também criticado à sociedade da época, visível nos possíveis
comentários que a cidade poderia tecer quanto à relação do médico com a jovem viúva:
Correram assim três meses. A corte de Mendonça não adiantava um passo;
mas a viúva nunca deixou de ser amável com ele. Era isto o que
principalmente retinha o médico aos pés da insensível viúva; não o
abandonava a esperança de vencê-la.
Algum leitor conspícuo desejaria antes que Mendonça não fosse tão
assíduo na casa de uma senhora exposta às calúnias do mundo. Pensou
nisso o médico e consolou a consciência com a presença de um indivíduo,
até aqui não nomeado por motivo de sua nulidade, e que era nada menos
que o filho da Sra. D. Antônia e a menina dos seus olhos. Chamava-se
Jorge esse rapaz, que gastava duzentos mil-réis por mês, sem os ganhar,
graças à longanimidade da mãe [...] A presença deste gentil pimpolho,
achava Mendonça que salvava a situação. Mendonça queria dar esta
satisfação ao mundo, isto é, à opinião dos ociosos da cidade. Mas bastaria
isso para tapar a boca aos ociosos? (ASSIS, 1975, p. 65-66)
Mesmo com a participação de Jorge às visitas, Mendonça continuava sendo recebido
com aparente indiferença por parte de Margarida. O narrador, no entanto, sugere que a moça
recebia o médico com certo contentamento, embora não deixe de considerar a suposta
desilusão sofrida por Mendonça, já nessa altura visivelmente apaixonado:
Quando Mendonça aparecia lá, Margarida recebia-o com visível
contentamento. O médico iludia-se sempre, apesar de já acostumado a
essas manifestações. Com efeito, Margarida gostava imenso da presença
do rapaz, mas não parecia dar-lhe uma importância que lisonjeasse o
coração dele. Gostava de o ver como se gosta de ver um dia bonito, sem
morrer de amores pelo sol. (ASSIS, 1975, p. 66)
Após tentar sem sucesso cortejá-la, Mendonça decide por escrever uma carta a
Margarida, revelando seus sentimentos, ainda que de modo rebuscado e pouco sentimental:
Qualquer que seja a causa da sua esquivança, respeito-a, não me insurjo
contra ela. Mas, se não me é dado insurgir-me, não me será lícito queixarme? Há de ter compreendido o meu amor, do mesmo modo que tenho
compreendido a sua indiferença; mas, por maior que seja essa indiferença
está longe de ombrear com o amor profundo e imperioso que se apossou
de meu coração quando eu mais longe me cuidava destas paixões dos
primeiros anos. Não lhe contarei as insônias e as lágrimas, as esperanças e
os desencantos, páginas tristes deste livro que o destino põe nas mãos do
homem para que duas almas o leiam. É-lhe indiferente isso.
Não ouso interrogá-la sobre a esquivança que tem mostrado em relação a
mim; mas por que motivo se estende essa esquivança a tantos mais? Na
idade das paixões férvidas, ornada pelo céu com uma beleza rara, por que
motivo quer esconder-se ao mundo e defraudar a natureza e o coração de
seus incontestáveis direitos? Perdoe-me a audácia da pergunta; acho-me
diante de um enigma que o meu coração desejaria decifrar. Penso às vezes
que alguma grande dor a atormenta, e quisera ser o médico do seu coração;
ambicionava, confesso, restaurar-lhe alguma ilusão perdida. Parece que
não há ofensa nesta ambição.
Se, porém, essa esquivança denota simplesmente um sentimento de
orgulho legítimo, perdoe-me se ousei escrever-lhe quando seus olhos
expressamente mo proibiram. Rasgue a carta que não pode valer-lhe uma
recordação, nem representar uma arma. (ASSIS, 1975, p. 67-68)
A noção do pouco sentimentalismo é notada pelo narrador, que compartilha a
informação com seu interlocutor. Vem nessa direção o último chamamento direto ao leitor
encontrado no conto, quando o coloca em posição semelhante à sua, pela primeira vez
deixando de subjugar com superioridade a ação de quem lê:
A carta era toda de reflexão; a frase fria e medida não exprimia o fogo do
sentimento. Não terá, porém, escapado ao leitor a sinceridade e a
simplicidade com que Mendonça pedia uma explicação que Margarida
provavelmente não podia dar. (ASSIS, 1975, p. 68)
Margarida, enfim, responde a carta, mesmo sob o protesto de Andrade, que já acusava
Mendonça de ter posto tudo a perder, dizendo-lhe que os casamentos rejeitados pela moça
também partiram de declarações expressas por meio cartas. Dizia a resposta:
Perdoo-lhe tudo; não lhe perdoarei se me escrever outra vez. A minha
esquivança não tem nenhuma causa; é questão de temperamento. (ASSIS,
1975, p. 69)
O médico, em resolução trágica, até cogita desistir da moça, mas é surpreendido pela
visita de D. Antônia, que revela-lhe ter lido o diário de anotações de Margarida e encontrado
a informação de que a sobrinha o ama e que o evita por temer que Mendonça esteja
interessado em sua fortuna, como havia sido com os pretendentes anteriores. Superado o
temor a ambos os lados, mas não sem antes algumas atribulações, o desfecho romântico
sugere a obviedade do happy ending:
A doença de Margarida durou dois dias, no fim dos quais levantou-se a
viúva um pouco abatida, e a primeira coisa que fez foi escrever a
Mendonça pedindo-lhe que fosse lá à casa.
Mendonça admirou-se bastante do convite, e obedeceu de pronto.
— Depois do que se deu há três dias, disse-lhe Margarida, compreende o
senhor que eu não posso ficar debaixo da ação da maledicência... Diz que
me ama; pois bem, o nosso casamento é inevitável.
Inevitável! amargou esta palavra ao médico, que aliás não podia recusar uma
reparação. Lembrava-se ao mesmo tempo que era amado; e conquanto a
idéia lhe sorrisse ao espírito, outra vinha dissipar esse instantâneo prazer,
e era a suspeita que Margarida nutria a seu respeito.
— Estou às suas ordens, respondeu ele. [...]
Foi modesta e reservada a cerimônia do casamento. [...] Quando
Mendonça se achou a sós com Margarida, disse-lhe:
— Casei-me para salvar-lhe a reputação; não quero obrigar pela fatalidade
das coisas um coração que me não pertence. Ter-me-á por seu amigo; até
amanhã.
Saiu Mendonça depois deste speech, deixando Margarida suspensa entre o
conceito que fazia dele e a impressão das suas palavras agora.
Não havia posição mais singular do que a destes noivos separados por
uma quimera. O mais belo dia da vida tornava-se para eles um dia de
desgraça e de solidão; a formalidade do casamento foi simplesmente o
prelúdio do mais completo divórcio. Menos ceticismo da parte de
Margarida, mais cavalheirismo da parte do rapaz, teriam poupado o
desenlace sombrio da comédia do coração. Vale mais imaginar que
descrever as torturas daquela primeira noite de noivado.
Mas aquilo que o espírito do homem não vence, há de vencê-lo o tempo,
a quem cabe final razão. O tempo convenceu Margarida de que a sua
suspeita era gratuita; e, coincidindo com ele o coração, veio a tornar-se
efetivo o casamento apenas celebrado. (ASSIS, 1975, p. 76-77)
Note-se que o desfecho já não conta com o chamamento do leitor à narrativa, nem
com a simulação do seu suposto julgamento. Como no último caso o narrador já
pressuponha um leitor consoante ao seu posicionamento, presume-se que, a partir de agora,
o leitor já é capaz de acompanhar a narrativa no mesmo nível do narrador, deixando-se
conduzir e compreender. Não deixará de ser monitorado, posto que dele não depende o
andamento da narrativa; seus julgamentos, quando simulados ou pré-concebidos pelo
narrador, também não passarão em branco – o que não deixa de ocorrer em momentos
pontuais dos contos seguintes da obra. Machado, no entanto, parece deixar, a partir de agora,
que o seu interlocutor seja supostamente mais livre para mover-se ao longo da narrativa, já
elevado à mesma posição ocupada por ele na elite intelectual. Como o fenômeno será
recorrente, o comportamento também é manifesto e igualmente pressuposto para os demais
contos da obra. Ainda assim,
julgamentos equivocados são desmentidos apenas pelo narrador que, ao
usar e abusar da onisciência, torna o leitor testemunha privilegiada.
Privilégio, no entanto, que depende sempre do gesto tutelar do narrador,
já que o leitor, deixado a seu próprio critério, toma inevitavelmente o
bonde errado; cabe àquele, pois, corrigi-lo, direcionando-o para a
conclusão correta. A desigualdade da interlocução vai, assim, se impondo
de uma forma sutil, embora ainda coexista com continuadas, mas cada vez
menos convincentes, deferências do narrador que sempre se coloca em
posição superior, de intérprete indiscutível da história. (LAJOLO;
ZILBERMAN, 1998, p. 37)
O monitoramento do leitor por parte do narrador machadiano parece ficar claro pelo
modo como este evoca a sua participação na narrativa. É certo que Machado mais julga a
ação do leitor e demonstra superioridade por meio da narração do que tolera um
comportamento iniciante, mas isso já ficou claro ainda em Questão de vaidade e A mão e a luva,
quando foi possível notar o interesse de Machado em formar um público leitor capaz de
receber e interagir com uma boa literatura. A ação do narrador – ato contínuo, do autor – é,
portanto, quase pedagógica, mesmo nos casos em que pressupõe variadas possibilidades de
recepção, como se verifica em Miss Dollar, caso revelador da idealização de uma boa leitura
a partir de um movimento ascendente. Com efeito,
A leitura desejável não pode ocorrer a partir da identificação, mas, pelo
contrário, deve favorecer o distanciamento que diverte e conscientiza [...]
A identificação é substituída pela pedagogia, e o leitor converte-se no bom
aluno que vai acompanhar as pegadas designadas pelo mestre de leitura.
(LAJOLO; ZILBERMAN, 1998, p. 33)
Machado, que já é considerado o maior romancista brasileiro de todos os tempos, tem
a sua grandeza revelada não apenas pelo trato refinado dedicado à sua obra singular, mas
também no modo como colabora para com a formação de públicos leitores no Brasil. O
início foi bastante tortuoso, é verdade; mas seria ainda mais difícil se não contasse com o
auxílio de um “mestre de leitura” que elevasse a condição de seu público a um novo patamar
e assim alavancasse, mesmo à força, e mesmo, às vezes, sob a forma da doutrinação ou da
superioridade, a capacidade de recepção do seu público – seja ele masculino ou feminino,
jovem ou idoso. Machado prepara, assim, o leitorado brasileiro para a forma literária que
desenvolverá nos anos seguintes ao decênio recortado neste ensaio, amadurecendo
simultaneamente a sua escrita, que culmina, em Memórias póstumas de Brás Cubas, com a entrada
de uma nova etapa na produção literária brasileira – ato contínuo, uma nova etapa na
formação de públicos leitores no país.
ASSIS, J. M. Machado de. A mão e a luva. São Paulo: Ática, 1973.
_____. Contos fluminenses. Rio de Janeiro; Brasília: Civilização Brasileira; INL, 1975.
_____. Questão de vaidade [1864]. Disponível em: Machado de Assis.
<http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/contos/macn013.pdf>. Acesso em: 29
mar. 2017.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 14. ed.
Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2013.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. 2. ed. São
Paulo: Ática, 1998.
SOUZA, José Galante de. Prefácio. In: ASSIS, J. M. Machado de. Contos fluminenses.
Rio de Janeiro; Brasília: Civilização Brasileira; INL, 1975. p. 11-15.