Citar:
ALVES, Marco Antônio Sousa; FERES, Marcos Vinício Chein. Para uma ciência e um direito
pósmodernos. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos, v. 10, p. 17 - 55, 2003. Disponível em
http://ufmg.academia.edu/MarcoAntonioSousaAlves/Papers/894090/
Para_uma_ciencia_e_um_direito_pos-modernos. Acesso em: [data de acesso]
Contato:marcofilosofia@ufmg.br
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PARA UMA CIÊNCIA E UM
DIREITO PÓS-MODERNOS *
MARCOS VINÍCIO CHEIN FERES
MARCO ANTÔNIO SOUSA ALVES
Sumário
1. Introdução. 2. A ciência na transição paradigmática. 2.1. A teoria da relatividade. 2.2. A mecânica quântica. 2.3. A teoria do caos. 2.4. A teoria
das estruturas dissipativas. 3. A ciência pós-moderna. 4. O direito na transição paradigmática. 4.1. O
direito moderno. 4.2. “Despensando” o direito. 5. O
direito pós-moderno. 5.1. Direito e poder. 5.2 Direito e incerteza. 5.3. Direito e argumentação. 6.
Conclusão. 7. Referências bibliográficas.
Resumo
Baseado, sobretudo, nos estudos de Boaventura de Sousa Santos, analisa-se, neste artigo, a mudança paradigmática experimentada
em duas dimensões: a epistemológica e a societal. Partindo da idéia de
que transformações profundas nos modos de conhecer estão relacionadas com transformações igualmente profundas nos modos de or*
Texto originalmente escrito como trabalho final do curso “Tópicos em filosofia do
direito: teoria da argumentação em Boaventura de Sousa Santos”, ministrado pela
profa. Miracy Barbosa de Sousa Gustin, a quem agradecemos pela orientação e
estímulo inestimáveis.
REV. FAC. DIR. MILTON CAMPOS
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BELO HORIZONTE
N. 10
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ganizar a sociedade, começamos nosso estudo, tratando das principais transformações ocorridas na ciência ao longo do século XX. Assim, passamos pelas teorias de Einstein, Heisenberg, Bohr, Poincaré,
Mandelbrot e Prigogine, procurando ressaltar as rupturas com a ciência moderna. Em seguida, acompanhamos o pesquisador português
em sua tarefa de “despensar” o direito, mostrando sua interpretação
do direito moderno e das diversas fases do capitalismo. Cotejando
Boaventura com outros pensadores que contribuem para um novo direito, como Foucault, Wallerstein, Habermas e Aarnio, procuramos
mostrar como o direito pós-moderno, incorporando o mundo da vida
e a pluralidade de ordens jurídicas, deve ser orientado pelo caos, pelas incertezas, pela racionalidade substancial ou material, pela
razoabilidade e pela promoção da emancipação.
Abstract
Based, above all, on the thought of Boaventura de Sousa Santos,
this article analyses the paradigmatic change experienced in two
dimensions: the epistemological and the social. Springing from the idea
that deep transformations on the ways of knowing are interwoven with
equally deep transformations on the ways of organizing society, we open
our investigation by dealing with the main transformations underwent by
science throughout the twentieth century. We then go through the theories
of Einstein, Heisenberg, Bohr, Poincaré, Mandelbrot and Prigogine. These
theories are brought into light to highlight the ruptures with modern science.
We then follow Boaventura’s task of “dispensing with” law, by showing
his interpretation of modern law and of the various phases of capitalism.
Boaventura and other thinkers that contribute to the construction of a
new law, such as Foucault, Wellerstein, Habermas and Aarnio, are collated
in order to show how the post-modern law, that assimilates the “world of
life” and the plurality of juridical systems, should be oriented by chaos,
uncertainties, the material and substantial rationality, reasonableness and
the promotion of emancipation.
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INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo principal, analisar a mudança
paradigmática experimentada na ciência e no direito no decorrer dos
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últimos decênios. Apesar de o fio condutor serem as propostas de
Boaventura de Sousa Santos, este trabalho não se limitará à mera descrição de sua obra. Ao contrário, realizar-se-á um esforço permanente
de confrontar tais concepções com outros pensadores, procurando,
assim, ir além do pensador português, agregando idéias de autores
como Michel Foucault, Immanuel Wallerstein, Jürgen Habermas e Aulis
Aarnio.
Boaventura entende que a transição paradigmática apresenta
várias dimensões, sendo as duas principais a epistemológica e a societal.
A questão epistemológica foi objeto de estudo do pesquisador português, já em 1987, em Um discurso sobre as ciências, e em 1989, no
livro Introdução a uma ciência pós-moderna. Desde então, ele já
defendia a necessidade de se completar a reflexão sobre a transição
entre paradigmas epistemológicos, da ciência moderna para a pósmoderna, com um estudo sobre a transição entre paradigmas societais.
Esta complementação foi realizada em 1994, com o livro Pela mão de
Alice, no qual são apresentados alguns resultados fragmentados e provisórios, e, sobretudo, na Crítica da razão indolente, de 2000, em
que retoma e aprofunda o tema, apresentado um resultado mais sistemático. Recentemente, em 2004, esse tema foi revisitado em Conhecimento prudente para uma vida decente, obra organizada por
Boaventura e que conta com artigos de diferentes pesquisadores.
A idéia básica que direciona os estudos de Boaventura está na
crença de que transformações profundas nos modos de conhecer estão relacionadas com transformações igualmente profundas nos modos de organizar a sociedade (SANTOS, 1994). Boaventura buscará
definir os parâmetros dessa transição, apresentando como lugar central na configuração do paradigma ocidental, a ciência e o direito, que
serão os objetos centrais de suas críticas. A melhor forma de compreender e analisar criticamente a obra de Boaventura seria justamente
estudar o fenômeno da transição paradigmática, privilegiando, também, a ciência e o direito.
Na primeira parte deste artigo, voltada para o estudo da transição paradigmática na ciência, tentar-se-á elaborar um quadro,
ainda que superficial, das principais transformações ocorridas ao
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longo do século XX. Para tal, serão apresentadas as teorias de
Einstein, Heisenberg, Bohr, Poincaré, Mandelbrot e Prigogine, todos físicos, químicos ou matemáticos que, de alguma maneira, contribuíram para revolucionar o panorama epistemológico. Ainda nessa
primeira parte, no capítulo segundo, procurar-se-á mostrar como a
análise epistemológica de Boaventura interpretou essas transformações científicas e o que se quer significar por uma ciência pósmoderna.
Na segunda parte, ressaltar-se-á a interpretação de Boaventura
do direito moderno e das diversas fases do capitalismo. Além disso,
acompanhar-se-á o pesquisador português em sua tarefa de “despensar” o direito, enunciando as características determinantes do direito
que se pretende pós-moderno. Relações entre direito e poder, assim
como direito e incerteza, vêm agregar novos elementos que reforçam a
idéia de um direito cuja discursividade seja orientada pelo caos e pela
diversidade de ordens jurídicas. Acrescente-se a tudo isso que o direito
pós-moderno deve constituir-se a partir, também, da racionalidade
comunicativa e da razoabilidade. Deve, pois, estar inserido num contexto argumentativo que privilegie a justificação de seu procedimento,
o pano de fundo do mundo da vida de sua elaboração e aplicação e a
aceitação de uma dada comunidade.
Enfim, conclui-se que o direito pós-moderno, orientado pelas
incertezas e pela racionalidade substancial ou material, será razoável
e previsível, à medida que, incorporando o mundo da vida e a
pluralidade de ordens jurídicas, seja capaz de agregar as diversas
acepções existentes numa determinada comunidade e, assim, justificar sua produção e aplicação de forma a alcançar um consenso
provisório e contingente que satisfaça os interesses sociais do momento e promova a emancipação.
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A CIÊNCIA NA TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA
O paradigma científico que imperou durante os três últimos
séculos, obra, sobretudo, de filósofos e cientistas como Galileu,
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Descartes, Bacon e Newton, está ruindo em vários aspectos. Afirmações como essas freqüentemente são feitas, contudo, poucas vezes as pessoas se preocupam em compreender em que, exatamente,
consiste esta crise.
Não se pretende aqui, entretanto, apresentar o paradigma da
modernidade. Parte-se do princípio de que tais noções estão de tal
maneira inseridas no atual pensar científico e de tal forma difundidas
pelas escolas e universidades, que não necessitam de maiores explanações. O objeto do presente estudo resume-se em indicar algumas
inovações científicas, sem deixar de confrontá-las com as concepções
modernas, de forma a ter-se um mapa, ainda que bastante superficial e
incompleto, do atual quadro do fazer científico.
Ao longo do século XX, a ciência experimentou várias rupturas
que colocaram em questão diversas bases epistemológicas que vinham
orientando o fazer científico desde Galileu. Cientistas como Poincaré,
Einstein, Heisenberg, Gödel, Bohr, Bertalanffy, Mandelbrot, Maturana,
Prigogine, dentre muitos outros, numa lista que cresce a cada dia, bem
como historiadores e filósofos, como Koyré, Bachelard, Kuhn e
Feyerabend, colocaram a epistemologia típica da ciência moderna em
questão.
O objetivo dessa primeira parte do artigo é mostrar quais transformações sofreu a ciência e de que forma elas viabilizaram a criação
de um novo paradigma. Entretanto, deve-se ter em conta a imensidão
da ciência e suas quase infindáveis ramificações. Em vista disso, selecionaram-se algumas teorias científicas, que são representativas e pioneiras neste momento transitório. Analisar-se-á, em seguida, a teoria
da relatividade, a mecânica quântica, a teoria do caos e a teoria das
estruturas dissipativas.
2.1 A Teoria da Relatividade
Em 1905, Einstein apresentou um trabalho intitulado
Eletrodinâmica dos corpos em movimento, no qual ele abolia o que
Lorentz havia chamado de tempo “real”, alterando um dos fundamen21
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tos mais profundos da física. A teoria da relatividade mudava a estrutura de espaço e tempo e muitos problemas da física passavam a ser
vistos sob nova luz. Antes de qualquer observação, vale ressaltar a
coragem teórica de Einstein, pois, como ressalta Heisenberg (1998,
p.275), “não era tarefa fácil se perceber o que estaria errado em conceitos fundamentais como matéria, espaço, tempo e causalidade, conceitos que tinham se mostrado extremamente bem-sucedidos através
da história da ciência”.
Einstein parte da constatação da constância da velocidade da
luz no espaço vazio (teoria de Maxwell-Lorentz), o que contraria a
aplicação dos conceitos de massa, força e espaço da física newtoniana.
As constantes universais levam a uma nova concepção de objetividade física. Na teoria da relatividade, as noções de tempo e espaço
perderam o seu caráter absoluto. A simultaneidade não pode definirse, senão relativamente a um referencial próprio, passando a depender, pois, do observador. Segundo Einstein (1999, p.123):
“A simultaneidade de dois eventos em relação a um sistema
inercial acarreta a simultaneidade destes eventos em relação a
todos os sistemas inerciais. É isto que se quer dizer quando se
afirma que o tempo da mecânica clássica é absoluto. De acordo
com a Teoria da Relatividade Especial a coisa é diferente. A
idéia de uma totalidade de eventos que são simultâneos como
um evento determinado existe, é verdade, em relação a um sistema inercial particular, porém não é mais independente da escolha do sistema inercial”.
Num mundo espacialmente estendido, o “agora” deixa de ter
um significado objetivo. Ao olhar para as estrelas no céu, por exemplo, vê-se a história do universo, e não, uma simultaneidade. Como
explica Heisenberg (1998, p. 164):
“Na mecânica de Newton, supõe-se que futuro e passado estejam separados por um intervalo de tempo, infinitamente pequeno,
que é considerado como sendo o “presente momento”. Já na
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teoria da relatividade, aprende-se que a situação é outra: futuro
e passado estão separados por um intervalo de tempo finito cuja
extensão dependerá da distância espacial ao observador.”
É importante ressaltar que relatividade não se confunde com
relativismo. Apesar de Einstein afirmar que existem percepções diversas do tempo e do espaço em um mesmo local, a observação é objetiva. Ou seja, há relatividade, mas não há relativismo.
A teoria da relatividade, contudo, situa-se ainda como um prolongamento da física clássica, uma vez que mantém intacta a ambição
de obter uma descrição completa da natureza.
2.2 A Mecânica Quântica
A física atômica e molecular abriu um mundo microscópico de
uma riqueza insuspeita e fascinante, uma estrutura tão original que abalou o alicerce das leis físicas, pondo fim às esperanças de uma descrição única do Universo, com a ajuda de um único esquema conceitual.
A mecânica newtoniana não conseguia explicar, entre outras coisas,
como um átomo de carbono, após interagir com outros átomos ou ter
emitido radiação, continuava sendo sempre o mesmo átomo de carbono, com as mesmas camadas eletrônicas. Em 1913, Bohr explicou
a estabilidade dos átomos, aplicando a hipótese quântica de Planck ao
modelo atômico, dando início ao que se pode chamar de mecânica
quântica. Devido à grande diversidade e complexidade das teorias
quânticas, apenas duas noções introduzidas por essa teoria física serão analisadas: o princípio da indeterminação e o de complementaridade.
O princípio da indeterminação, introduzido por Heisenberg, deriva da impossibilidade de se observar as partículas atômicas na sua
objetividade. Não é possível medir, simultaneamente, a posição e a
velocidade do elétron. O dualismo onda-partícula faz com que a mesma entidade se revele ora sob a forma de matéria, ora sob a forma de
onda. A partícula é contextualizada numa teia de relações, da qual a
própria observação faz parte. Adota-se, assim, uma perspectiva
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holística, que engloba na experimentação três elementos: a preparação, a medição e o observador. A distinção sujeito-objeto perde seus
contornos, transformando-se num continuum. Essas situações experimentais foram chamadas de relações de incerteza, que são instâncias
diferentes do princípio da indeterminação.
De acordo com Heisenberg (1998, p.64), “uma outra maneira
de abordar o problema foi o conceito de complementaridade, introduzido por Bohr”. Para Bohr, as descrições como partícula e como onda
são complementares da mesma realidade. Cada uma dessas descrições pode ser só parcialmente verdadeira. Têm-se, assim, dois domínios disjuntos de descrição, sendo que nenhum deles é mais importante que o outro. Como diz Prigogine & Stengers (1984, p. 175):
“[...] os diferentes pontos de vista tomados sobre o sistema, são
complementares; todos tratam da mesma realidade, mas não
podem ser reduzidos a uma descrição única. Esse caráter
irredutível dos pontos de vista de uma mesma realidade é muito
rigorosamente a impossibilidade de descobrir um ponto de vista
genérico, um ponto de vista a partir do qual a totalidade do real
seria simultaneamente visível”.
Bohr, ao tentar resolver a aparente contradição do dualismo
onda-partícula, introduziu o conceito de onda de probabilidade. Segundo Heisenberg (1998, p.60), “essa idéia conduziu à conclusão de
que as leis da conservação de energia e momento linear não precisam
valer para um único evento, por serem elas somente leis estatísticas e,
assim, verdadeiras, quando médias estatísticas são consideradas”.
Ao chegarem à conclusão de que a natureza estatística da física
microscópica não podia ser evitada, a busca pela substância última,
pela unidade mínima da matéria, bem como das leis que regem seu
funcionamento, passou a constituir uma perspectiva falida frente à
constatação da incompletude do conhecimento. Para Heisenberg
(1998, p.204), “uma ontologia do materialismo repousava na ilusão de
que o sentido da existência e “realidade” direta do Universo que nos
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cerca, pudesse ser extrapolado para o domínio atômico. Essa
extrapolação mostrou-se, todavia, impossível”.
2.3 A Teoria do Caos
O caos se tornou uma abreviatura para um movimento que cresce
rapidamente e está reformulando a estrutura do sistema científico. Tal
revolução está sendo possível, devido ao uso dos computadores que,
através de tipos especiais de imagens gráficas, apreendem uma fantástica e delicada estrutura subjacente à complexidade. O poder numérico
da computação e as indicações visuais para a intuição indicavam caminhos promissores. A matemática tradicional ocupou-se unicamente com
as equações lineares, fixa em cadeias de ordem e de previsibilidade.
Onde começa o caos, a ciência clássica pára.
Somente na década de setenta, o lado irregular da natureza, o
lado descontínuo e incerto, passou a ser objeto de estudo da matemática, da física, da biologia e da química. O caos suscita problemas que
desafiam os modos de trabalho aceitos na ciência e reúne, assim, pensadores de campos antes bem separados, rompendo as fronteiras das
disciplinas científicas. Como resume Gleick (1990, p. 295):
“O caos era um conjunto de idéias que convenciam todos aqueles cientistas de que eram participantes de uma mesma empresa.
Físico, biólogo ou matemático, eles acreditavam que sistemas
simples, deterministas, podiam gerar complexidade; que sistemas demasiado complexos para a matemática tradicional, ainda
assim, podiam obedecer a leis simples; e que, qualquer que fosse a sua especialidade, a tarefa que tinha pela frente era a compreensão da própria complexidade”.
A grande contribuição oferecida pela teoria do caos foi eliminar
a fantasia laplaciana da previsibilidade determinista. Para Laplace, conhecendo a localização e direção das partículas do Universo num dado
instante, seria possível contar toda a história do Universo. O Universo
seria totalmente determinista, um sistema dinâmico estável. Nessas
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condições, pequenas alterações nas condições iniciais produzem pequenos efeitos.
Jules Henri Poincaré, importante físico e matemático francês,
estabeleceu, ainda no final do século XIX, a distinção fundamental
entre sistemas estáveis e os sistemas instáveis. Poincaré viu aí uma
resistência frustrante por parte da natureza. Porém, a distinção de
Poincaré serviu de um novo ponto de partida, abrindo caminho para
os sistemas caóticos e para a estatística das leis da dinâmica.
Na teoria do caos, fala-se em sensibilidade às condições iniciais,
ou seja, sistemas onde pequenas alterações das condições iniciais produzem modificação que se amplificam ao longo do tempo. A famosa
parábola do “efeito borboleta” ilustra essa noção. Nessa parábola, a
batida de asas de uma borboleta na Amazônia pode afetar as condições climáticas nos Estados Unidos. A hipótese indeterminista não causa
mais medo entre os cientistas, mas, ao contrário, é conseqüência mesmo da teoria da instabilidade e do caos. Contudo, ao falar em indeterminismo, não se pode confundir isso com a ausência de previsibilidade,
o que tornaria ilusória toda ação humana. O indeterminismo, portanto,
não é uma opção metafísica, mas, simplesmente, uma conseqüência da
descrição estatística.
Na matemática, o grande teórico do caos foi o francês, de origem polonesa, Benoît Mandelbrot, a quem coube a descoberta das
organizações fractais. Ele observou que o grau de irregularidade permanece constante em diferentes escalas, com uma freqüência surpreendente. O mundo exibe, repetidamente, uma irregularidade regular. A
matemática da complexidade, preocupada com o estudo dos “atratores
estranhos”, mostrou que o mundo é caótico, mas tem um padrão qualitativo.
Entretanto, as belas imagens fractais geradas no computador,
que mostravam a estrutura da complexidade, descreviam mais do que
explicavam. Os “atratores estranhos” pareciam fractais, mas ninguém
sabia como medir essa dimensão fracionada, como aplicar essas descobertas. Não se sabia se os “atratores estranhos” informariam algo
sobre o problema dos sistemas não-lineares. Coube aos físicos fazerem a nova ciência do caos. Por ser um ramo científico muito recente e
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de uma complexidade que dificulta muito a compreensão de quem não
esteja familiarizado com essas ciências, limita-se, aqui, a indicar o
surgimento da ciência do caos e a ressaltar o que parece interessar
mais de perto: a noção de que a ordem não é condição necessária do
conhecimento, pois é possível pensar cientificamente o caos.
2.4 A teoria das estruturas dissipativas
A física do não-equilíbrio e dos sistemas dinâmicos instáveis associados à idéia de caos sofreu um desenvolvimento espetacular nos
últimos anos, devido, em grande parte, aos estudos de Ilya Prigogine,
belga de origem russa e prêmio Nobel de química em 1976. Novos
fenômenos, como a formação dos turbilhões, as oscilações químicas
ou a radiação laser fizeram os físicos repensarem a irreversibilidade,
que deixou de ser identificada com uma mera aparência que desapareceria se se tivesse acesso a um conhecimento perfeito. Para Prigogine
(1996, p.12), “a ciência clássica privilegiava a ordem e, a estabilidade,
ao passo que, em todos os níveis de observação, reconhecemos, agora, o papel primordial das flutuações e da instabilidade”. A irreversibilidade nos sistemas abertos implica que esses são produto da sua
história. Em outra passagem, afirma Prigogine (1996, p.134):
“A descrição da natureza circundante tem, portanto, pouco a
ver com a descrição regular, simétrica em relação ao tempo,
associada tradicionalmente ao mundo newtoniano. Nosso mundo
é flutuante, ruidoso, caótico, mais próximo daquele que os
atomistas gregos haviam imaginado. O clinamen que fora introduzido para resolver o dilema de Epicuro não é mais um elemento estranho, mas sim a expressão da instabilidade dinâmica”.
Uma vez que a instabilidade e a criatividade são incorporadas à
física, as leis da natureza tomam um novo sentido, estranho até mesmo
às teorias da relatividade e da quântica. As leis passam a exprimir apenas possibilidades. É com a ruptura da equivalência entre descrição
individual em termos de trajetórias e descrição em termos de conjun27
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tos estatísticos que Prigogine pôde estender a mecânica para os sistemas dinâmicos instáveis.
O papel que a mecânica quântica atribui ao observador, o que
lhe deu um aspecto aparentemente subjetivista, pode ser superado, se
levar mais a sério o caráter estatístico dela e sem se fazer necessário
voltar à ortodoxia clássica e determinista. Einstein também se atormentava com o papel insensato atribuído ao observador e, nesse sentido, a abordagem de Prigogine restaura o senso comum, eliminando
os traços antropocêntricos. Segundo Prigogine (1996):
“... a teoria quântica dos sistemas dinâmicos instáveis leva, como
a teoria clássica, a uma descrição ao mesmo tempo realista e
estatística. Mas nesta nova formulação, a grandeza fundamental
não é mais a amplitude de probabilidades, mas sim a própria
probabilidade”.
As leis exprimem possibilidades e não mais, certezas. A probabilidade não significa desconhecimento das condições iniciais, uma tradução da nossa ignorância e falta de informação. Em Prigogine (1996,
p.37) tem-se o “intrinsecamente aleatório”, ou seja, a instabilidade
“destrói a equivalência entre o nível individual e o nível estatístico, de
sorte que as probabilidades ganham, então, um significado intrínseco,
irredutível a uma interpretação em termos de ignorância ou de aproximação”. Para Prigogine, é bem verdade que permanece válida a descrição, determinista, em termos de trajetórias, se as condições iniciais
forem conhecidas com uma precisão infinita. Mas isso é uma fantasia.
Sempre que se realiza uma experiência, mesmo no computador, há
situações em que as condições iniciais são dadas com uma precisão
finita.
A teoria das estruturas dissipativas ultrapassa o campo da física
mecânica. Os comportamentos de auto-organização física são, por
exemplo, condições do surgimento da auto-organização própria da
vida. Segundo Prigogine & Stengers (1984, p. 116), “existe aí uma
convergência notável entre duas ciências cuja evolução independente
produziu os diferentes conceitos necessários para compreender a manei28
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ra como o ser vivo se insere no mundo descrito pelas ciências físicas e
químicas”. Essa idéia foi trabalhada pelo biólogo chileno Humberto
Maturana, que desenvolveu a noção de autopoiese, a partir da análise
da organização celular, entendida como uma estrutura organizada
dissipativa. Os sistemas vivos são vistos como redemoinhos químicos
sofisticados; como uma ilha de ordem na desordem.
Para Prigogine (1996, p. 14), essa mudança não se atém ao
plano científico, mas se reflete, também, em todo o pensamento: “pensamos situar-nos, hoje, num ponto crucial dessa aventura, no ponto de
partida de uma nova racionalidade que não mais identifica ciência e
certeza, probabilidade e ignorância”. O processo de construção de
uma nova ciência passa, assim, por um caminho estreito, entre as leis
cegas e os eventos arbitrários. Esse novo horizonte coloca novas questões, novas perspectivas e novos riscos. Para resumir esse percurso
atual da ciência, leia-se Prigogine (1996, p. 199):
“O que surge hoje é, portanto, uma descrição mediana, situada
entre duas representações alienantes, a de um mundo determinista
e a de um mundo arbitrário submetido apenas ao acaso. As leis
não governam o mundo, mas este tampouco é regido pelo acaso. As leis físicas correspondem a uma nova forma de inteligibilidade que as representações probabilistas irredutíveis exprimem.
Elas estão associadas à instabilidade e, quer no nível microscópico, quer no macroscópico, descrevem os eventos enquanto
possíveis, sem reduzi-los a conseqüências dedutíveis ou previsíveis de leis deterministas”.
3
A CIÊNCIA PÓS-MODERNA
Nesta parte do artigo, pretende-se expor algumas conseqüências que essas novas teorias científicas trouxeram para o quadro mais
amplo do saber humano. Para realizar esse estudo, utilizar-se-ão, sobretudo, as análises realizadas por Boaventura de Sousa Santos.
Para Santos (2000, p. 68), a crise do paradigma científico moderno “é não só profunda como irreversível”. Essas novas teorias fa29
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zem parte de um movimento convergente que partiu, sobretudo, dos
próprios cientistas ao questionarem a sua prática científica. Pode-se
descrever esses novos cientistas como cientistas-filósofos ou epistemólogos, uma vez que, para responderem às novidades que as experimentações traziam, foi-lhes exigível elaborar novas bases epistemológicas e metodológicas. Apesar da diversidade das novas teorias científicas e da falta de uma homogeneidade, pode-se delinear, em linhas
gerais, para que lado essas novas práticas científicas estão indicando.
Resumindo as principais conseqüências, diz Santos (2000, p.70-71):
“Em vez da eternidade, temos a história; em vez do determinismo,
a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração,
a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade,
a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem;
em vez da necessidade, a criatividade e o acidente”.
Santos (1988a) sistematiza o novo paradigma científico em quatro
teses centrais. A primeira sustenta que todo conhecimento científiconatural é científico-social. Com essa tese, atinge-se duas das principais
distinções sob as quais se assenta a ciência moderna: a cisão sujeitoobjeto e a natureza-cultura. A primeira é uma distinção epistemológica
que teve várias conseqüências ônticas e a segunda é uma distinção
ôntica com conseqüências epistemológicas. Dessas duas distinções
derivam as demais como: natural-artificial, vivo-inanimado, mentematéria, observador-observado, subjetivo-objetivo, animal-pessoa, etc.
A nova ciência, ao superar essas distinções, propicia uma crise de tão
elevada intensidade que ainda hoje não se tem, de maneira clara, qual
será o ponto de chegada desse novo paradigma. Mas algumas reflexões já podem ser feitas.
A relação entre ciência natural e ciência social, por exemplo,
deve ser reformulada. Ao longo do século XIX, essa questão ganhou
particular importância no contexto do historicismo alemão, que discriminou as ciências da natureza (Naturwissenschaften), marcadas pela
abordagem causal-determinista, das ciências humanas ou do espírito
(Geisteswissenschaften), caracterizadas pelo problema hermenêutico
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da compreensão. Tal separação, contudo, assenta-se na concepção
mecanicista da matéria e da natureza. Recentemente, observa-se que
conceitos como historicidade, processo, liberdade, teleomorfismo,
autopoiese, auto-organização, potencialidade organizada, originalidade, individualidade e até consciência vêm sendo inseridos nas
chamadas ciências “duras”. Algumas teorias holistas, como a de Fritjof
Capra, chegam a prever um certo regresso ao pan-psiquismo.
Pode-se dizer que se está vivendo um momento exatamente
contrário ao de Durkheim, ou seja, os fenômenos naturais estão sendo
estudados como se fossem sociais. Caminhando na direção contrária
ao “desencantamento da natureza” apregoado por Weber, a nova ciência “reencanta” a natureza, à medida que deixa de tratá-la como
uma máquina sem personalidade, cabendo ao homem a postura
prepotente de dominá-la. Conhecer, no decurso dos últimos séculos,
foi constantemente identificado com saber manipular. Essa mentalidade serviu de pano de fundo para a crise ecológica, como ressalta Santos (1989, p. 66), “a desumanização da natureza e a conseqüente
desnaturalização do homem criam as condições para que este possa
exercer sobre a natureza um poder arbitrário, ética e politicamente
neutro”. Na ciência pós-moderna a natureza é novamente tornada sujeito. Segundo Prigogine & Stengers (1984, p. 215), “a ciência se
afirma, hoje, como ciência humana, ciência feita por homens e para os
homens. No seio de uma população rica e diversa em práticas
cognitivas, nossa ciência ocupa a posição singular de escuta poética
da natureza”. Prigogine prevê, assim, uma “nova aliança” entre o homem e a natureza, num mundo em que o determinismo rigoroso é substituído pela ciência criativa do acaso e das circunstâncias. Como ressalta Santos (2000, p. 85), “gradualmente, todas as ciências serão
concebidas como ciências sociais”.
A segunda tese, sustentada pelo paradigma emergente, afirma
que todo o conhecimento é local e total. Enquanto a especialização
marca a ciência moderna, acarretando uma excessiva parcelização do
saber e fazendo do cientista um ignorante especializado, na nova ciência os conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros. Abrese, assim, espaço para a inter e transdisciplinaridade, aceitando-se a
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pluralidade metodológica. “Ao invés de aceitar um único método como
aquele capaz de conduzir à verdade, a nova ciência é um saber não
metódico que exige um conhecimento tradutor e pauta-se pela tolerância discursiva, Santos (2000, p. 103) chega, inclusive, a privilegiar as tradições epistemológicas marginalizadas na modernidade ocidental.” A ciência perde o seu caráter exclusivista, deixando de ser a
única explicação possível da realidade. Há tantas formas de conhecimento quantas são as práticas sociais que as geram e sustentam e,
não reconhecer essas formas alternativas de conhecimento, como fez
insistentemente a ciência moderna, implica um genocídio associado a
um epistemicídio, eliminando-se povos estranhos porque têm formas
de conhecimento estranhas e eliminando-se formas de conhecimento
estranhas porque sustentadas por práticas sociais e povos estranhos.
Na ótica do novo paradigma, o epistemicídio foi um dos grandes crimes contra a humanidade, pois significou um empobrecimento irreversível do horizonte e das possibilidades de conhecimento. Para a ciência
pós-moderna, nenhuma forma de conhecimento é superior, de modo
que a ciência tradicional não deve ser tomada como o único saber
racional ou justificado. Assim, propõe-se revalorizar os conhecimentos
e as práticas não hegemônicas, de modo a propiciar uma concorrência
epistemológica leal.
Ao permitir essa pluralidade de formas de conhecimento e sustentar uma relação horizontal entre conhecimentos (nenhum deles sendo considerado superior), está aberta, assim, a porta para o caos, o
múltiplo, o desordenado. A ordem passa a coexistir com o caos, que
deixa de ser visto como algo negativo, vazio e informe. Como ressalta
Santos (1994, p. 38):
“A promoção da criatividade da acção é uma tarefa crucial do
tempo presente. Porque na fase de transição paradigmática o
sistema social entra em desequilíbrio, acrescido e o aumento da
contingência, tende a criar situações de caos. O caos, que a
ordem e o progresso da modernidade pareceram ter atirado
para o lixo da história, regressa, hoje, tanto na epistemologia,
como nos processos sociais. Longe de ser por essência negativo,
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o caos é um horizonte dramaticamente ampliado de possibilidades e, como tal, compreende, como nenhum outro, possibilidades progressivas e possibilidades regressivas”.
A terceira tese, que Boaventura identifica como central para o
novo paradigma, sustenta que todo o conhecimento é autoconhecimento.
Enquanto o conhecimento moderno era objetivo, factual, rigoroso,
baseado na neutralidade axiológica (o afastamento de toda interferência dos valores) e na distinção sujeito/objeto, que instaura uma distância empírica entre o conhecedor e o objeto conhecido, o novo paradigma
assume o caráter autobiográfico e auto-referenciável da ciência. Ou
seja, o conhecimento científico deve ensinar a viver e traduz-se imediatamente em um saber prático. O ponto de ignorância do conhecimento
deixa de ser o caos, para ser o colonialismo, ou seja, a ignorância da
reciprocidade, o que ocorre, quando se vê o outro apenas como objeto.
Quanto ao saber, deixa-se de equivalê-lo à ordem, para incluir-se aí a
solidariedade, entendida como um conhecimento obtido no processo,
sempre inacabado, da reciprocidade. Em outras palavras, o saber se
forma na construção e no reconhecimento da intersubjetividade. Para
Santos (1999, p.58), essa passagem da ordem (conhecimento como
regulação) para o caos (conhecimento como emancipação) não é apenas um trânsito epistemológico, mas é, também, um trânsito entre conhecimento e ação. Ação que deve ser pensada como uma “ação rebelde”, em função de seu caráter imprevisível e pouco organizado.
Esse novo conhecimento exige uma postura mais prudente, uma
vez que a capacidade de ação desconecta-se da capacidade de previsão. Como se pôde ver ao analisar a teoria do caos e a idéia de nãolinearidade, o controle das causas não acarreta o controle das conseqüências, pois as causas não ocorrem na mesma escala que os efeitos.
Em outras palavras, qualquer mudança, ainda que mínima, em nossas
condições iniciais (por exemplo, uma limitação da precisão do cálculo
até a décima casa decimal após a vírgula) pode ocasionar resultados
completamente diferentes e, portanto, imprevisíveis a um ser finito como
o homem (de quem não se pode exigir precisão infinita). Os sistemas
complexos são sensíveis às condições iniciais, de forma que o caos
convida ao conhecimento prudente.
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A quarta e última tese sustentada pelo paradigma emergente, diz
que todo o conhecimento científico visa constituir-se num novo senso
comum. Essa tese reforça a necessidade de unirmos teoria e prática.
Boaventura prega a necessidade de uma dupla ruptura epistemológica;
uma primeira, entre senso comum e conhecimento verdadeiro e uma
segunda na qual a ciência se torna senso comum. A primeira ruptura
opôs, de um lado, o conhecimento científico, tido como o único verdadeiro e, de outro lado, o senso comum, considerado superficial, ilusório e falso. A partir dessa ruptura, a ciência e o senso comum se afastaram cada vez mais, tornando-se a primeira, um conhecimento que
desconhece sua função prática e do segundo, um saber conformista.
Para Santos (1988a, p. 70), “a ciência moderna produz conhecimentos e desconhecimentos. Se faz (sic) do cientista um ignorante especializado e, do cidadão comum, um ignorante generalizado”.
A nova ciência deve orientar seu saber, para garantir a emancipação e a criatividade, valores que só a ciência pode realizar, mas que
não pode realizá-los enquanto ciência. Segundo Santos (1989, p. 43),
“a dupla ruptura epistemológica, sem querer abarcar a totalidade dos
discursos, pretende que eles se falem, que se tornem comensuráveis e,
nessa medida, atenuem o desnivelamento que os separa”. O que se
pretende é um novo senso comum, com mais sentido.
Ao pretender estimular um novo senso comum, a nova ciência
assume seu caráter retórico. Trata-se de compreender a ciência como
prática social de conhecimento. Nesse aspecto, Santos (1989, p. 96)
aceita plenamente os princípios do pragmatismo filosófico, dizendo que
“a concepção pragmática da verdade é a única que, em meu entender,
permite romper com a circularidade da teoria, mas o faz, lançandonos nos círculos mais amplos da comunidade científica e da sociedade
como um todo”.
Numa análise pragmática do conhecimento, desloca-se o centro da reflexão do conhecimento, feito para o conhecimento no processo de se fazer, do conhecimento para o conhecer, analisando o
momento em que o conhecimento é feito ou tido por verdadeiro. Considera-se como verdadeiro, o que guia os outros com êxito na obtenção de um objetivo prático ou intelectual. Santos (1989, p. 96) abraça
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completamente o pragmatismo e assume uma de suas conseqüências
fundamentais, afirmando:
“[...] a verdade é a retórica da verdade. Se a verdade é o resultado, provisório e momentâneo, da negociação de sentido que
tem lugar na comunidade científica, a verdade é intersubjetiva e,
uma vez que essa intersubjetividade é discursiva, o discurso
retórico é o campo privilegiado da negociação de sentido. A
verdade é, pois, o efeito de convencimento dos vários discursos
de verdade em presença”.
Partindo dessa visão pragmatista da verdade, Boaventura defende a necessidade de se elaborar uma novíssima retórica, mais
apropriada às exigências da ciência pós-moderna. A proposta de Chaïm
Perelman, de uma teoria da argumentação ou nova retórica, seria demasiado moderna para construir o novo conhecimento. Os pontos falhos da nova retórica de Perelman estariam em ser ela: (a) técnica, pois
não consegue adjudicar entre a persuasão e o convencimento; (b)
manipuladora, uma vez que os oradores apenas influenciam e não se
consideram influenciados pelo auditório, o que ressalta o protagonismo
do orador; (c) estática, pois prevê uma estabilidade e duração das
premissas, ou seja, uma permanência dos pontos de partida das discussões; e (d) imutável, uma vez que apresenta um auditório dado,
fixo, uma comunidade que não reflete os processos sociais de inclusão
e exclusão.
A novíssima retórica intensifica a dimensão dialógica, transformando a relação orador-auditório numa seqüência dinâmica de posições, com resultados sempre inacabados. Para Santos (2000, p.105),
os topoi, ou lugares-comuns que servem de ponto de partida para as
discussões, são sempre rebatidos, criando-se novos campos de conhecimento partilhado e novas batalhas argumentativas. Privilegia-se o
convencimento (adesão assentada em razões ou argumentos), em detrimento da persuasão (mera manipulação retórica), acentuando-se as
razões em detrimento da produção de resultados. Inclui-se a sociologia da retórica, ou seja, a análise da permanente formação do auditório
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como um processo social, bem como a relação entre os vários auditórios. A novíssima retórica possui um viés muito mais sociológico que a
nova retórica de Perelman, já que é mais voltada para questões lógicas.
Boaventura parte da idéia, chamada de tópica social, de que
existem tantos sensos comuns quantos são os domínios tópicos. As
comunidades são relações sociais e os auditórios são vistos como
enquadramentos argumentativos dessas relações, existentes numa dada
formação social. Nas formações sociais capitalistas, Boaventura encontra seis domínios tópicos: o espaço doméstico, o da produção, o
do mercado, o da comunidade, o da cidadania e o mundial. Como não
pode haver emancipação sem uma tópica de emancipação, propõese, para cada domínio tópico, respectivamente, a seguinte superação:
da tópica patriarcal para a da libertação da mulher; da tópica capitalista
para a eco-socialista; da tópica do consumismo para a das necessidades fundamentais; da tópica chauvinista para a cosmopolita; da tópica
democrática fraca para a forte e, por fim, da tópica do Norte para a
do Sul. Para Santos (2000, p. 117), “a invenção social de um novo
conhecimento emancipatório é (...) uma das condições essenciais para
romper com a auto-reprodução do capitalismo”. Nesse sentido, ele
buscará, em várias oportunidades, desenvolver esse projeto de criação de novos sensos comuns emancipatórios, que se caracterizam,
sobretudo, pelo caráter solidário, participativo e reencantado.
4
O DIREITO NA TRANSIÇÃO PARADIGMÁTICA
É chegado o momento de introduzir, neste artigo, a questão propriamente jurídica. Começar-se-á, por mostrar como Boaventura de
Sousa Santos, sobretudo na Crítica da Razão Indolente, apresenta a
transição paradigmática do direito moderno para o pós-moderno. A
profunda crise e o decorrente período de transição paradigmática
ocorre, tanto no plano epistemológico, da ciência moderna para um
conhecimento pós-moderno, como no plano societal, da sociedade
capitalista e das formas de regulação social da modernidade (assentadas no direito estatal) rumo a novas formas de organização social. Na
ótica de Santos (1994, p. 245):
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“A época em que entramos é uma época de grande turbulência,
de equilíbrios particularmente instáveis e regulações particularmente precárias; uma época de bifurcações prigoginianas em
que pequenas alterações de estado podem dar origem a convulsões incontroláveis. Em suma, uma época fractal com mudanças
de escala imprevisíveis e irregularidades difíceis de conceber
dentro dos nossos parâmetros ainda euclidianos”.
Diante deste quadro, Boaventura acredita que se perfila uma
dupla responsabilidade e uma dupla urgência. Por um lado, ir às raízes
da crise da regulação social, “despensando” o direito moderno, e, por
outro, inventar ou reinventar o pensamento emancipatório, rumo ao
direito pós-moderno. Ao assumir que estamos em uma fase de crise
paradigmática, Boaventura assume, também, que não basta continuar
a criticar o paradigma ainda dominante, sendo necessário e premente
definir o paradigma emergente. Contudo, como reconhece Santos
(1994, p.278), “esta última tarefa, que é de longe a mais importante, é
também de longe a mais difícil”.
Nos próximos capítulos, analisar-se-á a concepção moderna
do direito, indicando seus limites e potencialidades (operando aquilo
que Boaventura chamou de “despensar” o direito), e apresentar-se-á,
em seguida, a proposta do pesquisador português de um direito pósmoderno. Nessa apresentação, recorrer-se-á também, a outros pensadores que contribuíram e ainda contribuem para a construção desse
novo modo de pensar o direito, como Michel Foucault, Immanuel
Wallerstein, Jürgen Habermas e Aulis Aarnio. Esta última parte do artigo, dedicada à pós-modernidade no direito, terá uma organização
tópica, na qual analisar-se-ão três relações fundamentais: direito e poder, direito e incerteza e direito e argumentação. Espera-se, ao final,
deixar clara a conexão existente entre a transição paradigmática na
epistemologia e a construção dessa nova forma de pensar o direito.
4.1 O direito moderno
Boaventura identifica uma tensão entre regulação e emancipação quando da recepção do direito romano no início da ascensão burgue37
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sa. Isto se verificou, porque a classe ascendente precisava encontrar
uma forma uniforme e homogênea de resolver os conflitos e de estabelecer regularidades para o exercício da liberdade, tendo em vista o
verdadeiro caos judicial libertário que prevalecia no regime feudal. No
entanto, uma vez alcançado o poder político, a burguesia abandonou
qualquer compromisso de emancipação. A partir daí, o direito foi integrado como instrumento de legitimação do capitalismo. Assim, surge o
direito moderno, que é concebido como um direito científico, positivo
e estatal. Segundo Boaventura, as teorias do contrato social e seus
desvios contribuem para a formulação desse direito moderno e, por
isso, ele realiza um estudo detalhado dos três teóricos contratualistas
mais relevantes da modernidade: Hobbes, Locke e Rousseau.
Thomas Hobbes, seduzido pelos avanços da ciência moderna,
aponta para a necessidade de certeza e previsibilidade no campo da
política. Para Hobbes, a autoridade efetiva é a autoridade legítima. Ele
eleva, ao ponto máximo, o princípio do Estado, um dos paradigmas da
modernidade. Santos (2000) acredita que o pensamento hobbesiano
já contém em si os desvios da estatização excessiva como forma corrompida da regulação moderna.
Por outro lado, Locke apresenta uma limitação à autoridade
estatal, a saber, os direitos naturais. O governo só existe com a finalidade de protegê-los. Além disso, Locke concebe a propriedade não
somente como bens materiais, mas também, a vida, o corpo e a liberdade individual. O trabalho, para Locke, é fonte de propriedade que
passa a ser vista como legítima, apesar de desigual, se adquirida segundo as leis da natureza. Em vista disso, o papel do Estado consiste
em garantir a segurança das relações de mercado que afetam a propriedade. Por isso, pode-se dizer que Locke é o fundador do princípio
do mercado, o informador do paradigma social da modernidade.
Rousseau, o terceiro grande teórico contratualista da
modernidade, já tem uma concepção mais alargada do princípio da
comunidade. Ele reforça a noção de comunidade, quer através da
inalienabilidade da soberania do povo, quer através da vontade geral.
De acordo com Santos (2000, p. 133), o contrato em Rousseau “representa uma atribuição de poder que se reproduz no corpo político
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que cria”, ao passo que em Hobbes “a atribuição de poder por parte
da comunidade esgota-se no ato do contrato”. Tanto isso é fato que o
soberano, em Rousseau, é intrínseco ao contrato e, em Hobbes, é
extrínseco.
A partir disso, Boaventura pondera que o ideário hobbesiano
foi determinante para a sustentação do paradigma da modernidade
fundada nos interesses capitalistas. A exacerbação do Estado, a
cientificização e a instrumentalização lógico-formal do direito são muito mais produto das concepções de Hobbes sobre o Estado e o Direito que das de Locke e Rousseau. Na verdade, os princípios do Estado (Hobbes), do mercado (Locke) e da comunidade (Rousseau) representam a base sobre a qual se estruturaria a modernidade. No entanto, os desvios de percurso geraram reducionismos os quais não são
exclusivamente obra e culpa desses teóricos. Sem dúvida, estes princípios compõem um projeto muito mais amplo para a racionalização
da vida social que não aconteceu, em vista dos avanços do capitalismo.
Ainda seguindo a lógica contratualista, o direito moderno pode
ser concebido, potencial e simultaneamente, como vontade do soberano (Hobbes), manifestação de consentimento (Locke) e
autoprescrição (Rousseau). No entanto, o direito assume outras facetas,
de acordo com as necessidades do capitalismo moderno.
A fim de provar esta instrumentalização do direito, Santos (2000)
divide o processo histórico de avanço do capitalismo em três grandes
períodos: o capitalismo liberal, o capitalismo organizado e o capitalismo desorganizado. Em cada um destes períodos, o direito prestou-se
a uma função diferenciada, tendo em vista não somente a sustentação
do Estado, mas também, a previsibilidade e o controle dos comportamentos sociais.
No primeiro período, o direito formal racional converteu-se num
instrumento do Estado, perdendo poder e autonomia no mesmo processo que lhe concedeu a entidade estatal. Boaventura afirma que a
dominação política se torna legítima, a partir de uma dominação técnico-jurídica. O direito acaba se tornando instrumento de dominação,
assim como a justiça passa a estar fundada numa racionalidade do tipo
lógico-formal.
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No capitalismo organizado, com a expansão do princípio do
mercado, houve necessidade de o Estado intervir mais diretamente na
economia. Neste contexto, o direito, embora tenha superado as fronteiras demarcadas pelo Estado, atuando ora em áreas não estatais ora
contra o Estado, tornou-se, mais do que nunca, um direito estatal. Isso
porque, houve uma imposição de categorias, interações e enquadramentos jurídicos estatais homogêneos nos mais heterogêneos meios
(família, escola, local de trabalho etc). De fato, aconteceu uma limitação de formas espontâneas de interação social, o que Habermas (1987)
denomina colonização do mundo da vida.
No período atual, percebe-se uma hegemonia, cada vez maior,
do princípio do mercado com o correspondente esmaecimento do princípio do Estado. Este não é mais capaz de controlar, em nível interno,
nacional, as decisões de atores econômicos internacionais. O Estado
torna-se refém de práticas transnacionais empresariais, de determinações de agências internacionais e dos fluxos voláteis de capital financeiro. Ao mesmo tempo, o Estado passa a se preocupar não mais com
o bem-estar social, mas, antes, com a realização de eficiência econômica em todos os setores públicos e privados. Surge, assim, de acordo com Boaventura, um direito pós-instrumental que incentiva a
desregulamentação em vários setores com a correspondente regulação
integral em outros pontos. O direito constitui-se num instrumento a
serviço dos interesses globais do capitalismo. A mudança no foco de
regulação não revela um reforço na emancipação, mas, ao contrário,
enfatiza a regulação, não apenas intra e inter-estatal, mas também, supra-estatal, ainda que de modo sutil e refinado.
Boaventura constrói, assim, a noção de direito moderno, a partir
dos elementos fáticos que compõem a estrutura econômica capitalista.
Quer legitimando o Estado, quer servindo aos interesses econômicos,
o direito moderno é um direito instrumental, regulador e estatal. O
direito moderno não viabilizou emancipação, mas gerou desigualdade
e desequilíbrios. Reconstruir o direito, a partir de novos paradigmas, é
condição indispensável para implementar uma sociedade mais justa e
solidária.
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4.2 “Despensando” o direito
Para Santos (2000, p. 164), “despensar” o direito significa “um
repensar radical sobre o direito”. De fato, Boaventura pretende apresentar um direito dissociado dos déficits e excessos da modernidade;
um direito reformulado e não mais instrumentalizado em razão do Estado e da ciência moderna; um direito para um futuro eco-socialista;
um direito pós-moderno. Segundo Santos (2000, p. 167), “o conhecimento emancipatório pós-moderno a que tenho feito apelo, visa descobrir, inventar e promover as alternativas progressistas que esta transformação pode exigir. É uma utopia intelectual que torna possível uma
utopia política”.
O direito tornou-se científico, para maximizar sua capacidade
de controle social e transformação social na modernidade, estando
sempre ligado a um Estado concreto. Para Santos (2000, p. 165), “o
cientificismo jurídico e o estatismo jurídico evoluíram pari passu”, e “o
positivismo jurídico é a versão mais apurada desta co-evolução ideológica”. O direito pós-moderno, por sua vez, deve estar associado a
um conhecimento não mais regulador, mas emancipatório e cujo objetivo principal deve ser a transformação progressista da sociedade.
Santos (2000, p. 119) sustenta que “as infinitas promessas e possibilidades de libertação individual e coletiva contidas na modernidade ocidental foram drasticamente reduzidas, no momento em que a trajetória
da modernidade se enredou no desenvolvimento do capitalismo”. Em
outras palavras, Boaventura acredita que a regulação prevaleceu sobre a emancipação e cabe, agora, mais do que romper com a modernidade, recuperar os ideais utópicos não realizados.
Num período de transição paradigmática, o antigo conhecimento
não deve ser abandonado completamente, mas constitui um guia fraco
e que deve ser substituído por um novo conhecimento. Explicando
melhor sua intenção, diz Santos (2000, p. 186):
“Des-pensar é uma tarefa epistemologicamente complexa porque implica uma desconstrução total, mas não niilista, e uma
reconstrução contínua, mas não arbitrária. Além disso, por ser
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efetuada no encalço da ciência moderna, o momento destrutivo
do processo de des-pensar tem de ser disciplinar (o direito e
cada uma das ciências sociais), ao passo que o seu momento
construtivo deve ser indisciplinar: o processo de des-pensar
equivale a uma nova síntese cultural”.
Em sua análise do novo quadro social, Boaventura constata que
o avanço do sistema mundial, assim como o domínio do conhecimento
dessa lógica global, revela a necessidade de reconsiderar-se o Estado nacional como monopolizador do direito. O direito não pode mais
estar ligado única e exclusivamente ao sistema estatal. Há muitas outras ordens jurídicas; não só a mundial e a estatal, mas também, as
locais. Todas essas ordens não estatais sempre existiram, mas estavam excluídas do sistema jurídico como um todo, embora interagissem
o tempo todo com a norma oficial. Em vista disso, Boaventura afirma que este “despensar” o direito deve começar por separar o direito
do Estado, a fim de que aquele recupere seu potencial emancipador
há muito perdido.
A separação entre sociedade civil e Estado, que surgiu com o
capitalismo liberal, foi responsável pela desconsideração da natureza
das relações de poder presentes na comunidade. O direito fechou-se
para as organizações informais e somente regulou, a partir do padrão
estatal. Boaventura procura mostrar as distorções causadas pela rígida separação entre sociedade civil e Estado e pela absorção recíproca
entre estes. A incorporação de movimentos sociais e organizações não
governamentais no sistema jurídico deve ser feita tendo em vista as
limitações e, sobretudo, o diálogo entre as diferentes identidades grupais.
Para Santos (1999, p. 68), o Estado deve ser visto como “novíssimo
movimento social”, cabendo a ele coordenar as diferentes organizações, interesses e fluxos que emergiram da desestatização da regulação
social.
De acordo com Wallerstein (1995), com a ineficácia dos Estados, verificada principalmente nas últimas décadas do século XX, as
pessoas se socorrem dos grupos existentes na sociedade, sejam étnicos, sejam lingüísticos ou religiosos. Para o autor, é uma questão de
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confiança. Estes grupos são o produto da democratização, comprovando que o Estado falhou e que a reforma liberal foi uma miragem, já
que em nenhum momento se consideraram os estratos mais fracos das
camadas sociais. No entanto, Wallerstein teme por esse reforço nas
relações de poder de grupos, pois, isoladamente, eles defendem a igualdade apenas no seu contexto interno (intra-grupo). E isso, de acordo
com o autor, pode trazer conseqüências caóticas.
Há, aí, um importante alerta na tentativa de evitar-se o relativismo
extremo, pois, de acordo com Wallerstein, a tendência é de que os
grupos se fechem em si mesmos e criem, portanto, mais igualdade
interna com diferenciação externa, sem viabilizarem uma interação cultural, étnica, lingüística e social. Mesmo essas relações inter-grupos
precisam ser mais bem trabalhadas, no sentido de promover um consenso capaz de atender as diferenças, sem incentivar-se a separação e
a rivalidade entre verdadeiros guetos. Cabe repensar o direito, como
instrumento de mediação para a realização mais plena possível do diálogo entre as diversas subjetividades.
Além disso, outra questão deve ser ressaltada para a constituição de um novo paradigma jurídico. Para Boaventura, a partir das
crises verificadas globalmente, agindo como desequilíbrios no processo de mudança social normal, já não é possível ater-se ao modelo em
que as melhorias integradas no processo de repetição não servem mais
para superar os obstáculos criados pelo sistema capitalista global. As
insatisfações aumentam. O descaso pela natureza, o desrespeito às
minorias étnicas e sociais, o fundamentalismo religioso e a miséria são
exemplos marcantes de que as melhorias agregadas ao processo de
repetição, não estão sendo implementadas de forma a criar um sistema
mais justo e equilibrado. Em verdade, há decadência e estagnação em
vez de mudança social normal.
Como proposta, Santos (2000) defende a rearticulação do Direito com a Revolução, assim como a separação entre Estado e Direito. Para este autor, o capitalismo, através do Estado Liberal, pôs fim à
tensão entre regulação e emancipação que se verificou no projeto revolucionário francês. A partir daí, vive-se num movimento pós-revolucionário que se converteu em contra-revolucionário, em razão das estra43
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tégias de hegemonia do Estado Liberal. É preciso resgatar a relação
dialética entre direito e revolução, de sorte que o direito possa se comprometer num projeto emancipador e incorporar melhorias no sistema, de modo a atender às necessidades sociais insatisfeitas.
5
O DIREITO PÓS-MODERNO
Para compreender melhor a proposta de Boaventura de construção de um direito pós-moderno, analisar-se-ão três aspectos centrais desse novo pensar jurídico: a relação entre direito e poder, direito
e incerteza e direito e argumentação. Nessa análise, intenta-se ir além
dos textos do pesquisador português e buscar, em outros pensadores,
teorias que venham acrescentar e corroborar com a proposta apresentada, sendo eles Foucault, Wallerstein, Habermas e Aarnio.
5.1 Direito e poder
Para Foucault (1976), o poder não engloba tudo. Ao contrário,
ele vem de todos os lados, sendo, por isso, a um só tempo, repetitivo,
inerte, auto-reprodutor e imanente a todas as relações existentes na
sociedade. De fato, como bem observa o autor, sua realização consiste
no efeito de conjunto que se forma a partir de suas próprias mobilidades. É, pois, uma estratégia complexa que ocorre numa dada sociedade.
O discurso jurídico sempre esteve aliado a essas forças estratégicas que se movem e interpenetram todo o corpo social. No direito
pós-moderno, é preciso romper com esses “múltiplos pontos de resistência” (Foucault, 1976, p. 126) de forma a produzir uma realidade
social mais justa. O direito pós-moderno deve pretender uma
reformulação nas estruturas de produção da norma e de decisão jurídica, a fim de incorporar mais intersubjetividade e dialogicidade num
contexto em que vigorou sempre a dogmática no seu aspecto
axiomático. Não há mais lugar para o tecnicismo jurídico. O direito
pós-moderno tem natureza argumentativa.
Conforme Foucault, o poder não está pontualmente localizado,
mas difuso como uma teia que perpassa todos os aparelhos e institui44
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ções, quer públicos quer privados. Neste sentido, cabe ao direito pósmoderno, verificar se essas relações difusas de poder são eminentemente excludentes, quer incorporando as diferentes subjetividades no
processo de produção, interpretação e decisão jurídicas1 quer promovendo a interação e o diálogo entre as diferentes ordens jurídicas
existentes num mesmo território.
Santos (1995, p. 114) ressalta que “mais do que sendo ordenadas por uma ordem legal singular, as sociedades modernas o são por
uma pluralidade de ordens legais, inter-relacionadas e socialmente distribuídas de diferentes maneiras” 2. Além disso, o autor destaca, neste
ponto, o germe do pluralismo jurídico. Para Santos (1995, p. 114),
“pluralismo jurídico refere-se à idéia de que mais do que um sistema
legal opera numa unidade política específica” 3.
A aceitação do pluralismo jurídico como um fato real no contexto do direito significa um importante passo para a compreensão de que
a constatação do caráter difuso do poder não é um mal em si, pois, se
for possível mudarem-se os pontos de sustentação dessas estratégias
complexas e romperem-se as correspondentes resistências, haverá mais
espaço para um processo de mudança que começará pela viabilização
e incorporação de múltiplos discursos jurídicos.
Santos (1995) relata um caso ocorrido na favela4 em que um
determinado sujeito havia comprado um barraco de outro e o estava
1
2
3
4
Optou-se pela concepção de Ferraz Jr. (1998) para caracterizar a teoria da dogmática
jurídica. Por isso, faz-se menção aos três modelos propostos por ele, a saber, o
analítico (a norma), o hermenêutico (a interpretação) e o empírico (a decisão).
No original: “rather than being ordered by single legal order, modern societies are
ordered by a plurality of legal orders, interrelated and socially distributed in different
ways” (tradução do autor).
No original: “legal pluralism concerns the idea that more than one legal system
operate in a single political unit” (tradução do autor).
Este caso é um dos vários apresentados por Boaventura em estudo realizado em
1970, numa favela no Brasil, localizada no Rio de Janeiro, a que denominou Pasárgada,
cujos resultados constituíram a sua tese de doutoramento, defendida em 1973 na
Yale University (Santos, 1995). Ele aponta que muitas das condições iniciais estão
hoje alteradas em razão do tráfico de drogas e do aumento excessivo da criminalidade.
No entanto, o relato representa a experiência da época e serve para demonstrar a
existência de sistema jurídico paralelo, informado por uma verdadeira tópica-retórica.
Como observa Santos (2004, p. 44): “confrontei-me com um direito não oficial e um
conhecimento jurídico popular riquíssimos que, embora importantes para vastas
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pagando em prestações. Todavia, a segunda prestação foi paga à mulher do vendedor que, por acaso, estava tendo um caso com o irmão
do comprador. Sabendo disso, o vendedor matou a mulher e, em represália, resolveu retomar o imóvel, alegando o não pagamento das
prestações. Entretanto, o comprador pretendia pagar o restante do
débito para poder ter a propriedade definitiva do bem, além de alegar
já ter pagado uma das prestações para a mulher do vendedor. Diante
disso, o presidente da associação, responsável pela resolução dos
conflitos entre os residentes, decidiu pela repetição da prestação paga
à mulher e pela consolidação do negócio, pois, conhecendo a situação
fática, não era justo que o comprador fosse tomado como bode
expiatório pelo fato de o irmão dele ter tido um caso com a mulher do
vendedor. Valendo-se desse exemplo, Boaventura demonstra a existência de uma discursividade jurídica em que prevaleceu, neste caso, o
tópico da justiça eqüitativa (topos of fairness). Conforme comprova
sua pesquisa participante, a tópica retórica é recorrentemente usada
na resolução de conflitos entre os residentes da favela. Além disso, é
importante dizer que este caso foi decidido, tendo em vista os padrões
internos de uma dada comunidade em que o presidente da associação
desempenha bem seu papel de árbitro, porque conhece todas as
nuanças do caso. Isso porque o presidente é um dos moradores e, por
conviver no mesmo espaço que os litigantes, tem como julgar, levando
em conta a real situação vivenciada pelos opositores.
Há, sem dúvida, mesmo na informalidade ou extra-oficialidade,
relações de poder que se superpõe de forma a estabelecer estratégias
complexas. Todavia, é preciso dizer que, neste caso específico, apresentou-se uma decisão a um conflito, de forma a satisfazer ambas as
partes, antes, insatisfeitas e inseguras. Sem dúvida, não há como negar
o exercício difuso de poder, mas este se realiza dentro do razoável.
Tendo em vista as incertezas e o caos que as relações de poder podem
vir a gerar, é possível alcançar consenso, sempre que se garantir o
diálogo e respeitar-se a intersubjetividade.
camadas populares, eram totalmente ignorados pelo direito oficial e pela ciência
jurídica ensinada nas Faculdades de Direito”.
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5.2
Direito e incerteza
Wallerstein (1995) não acredita que houve, algum dia, a estabilidade, a legitimidade e a paz absolutas, como pregadas pelo Liberalismo.
Segundo este autor, provavelmente, com o fim do mundo capitalista,
viver-se-á em alguma nova ordem ou novas ordens, ou ainda, em um
novo sistema histórico ou em novos sistemas históricos, assim como se
conhecerá novamente relativa paz, estabilidade e legitimidade. No entanto, não diz com certeza se estas serão melhores ou piores que as já
conhecidas.
Todavia, Wallerstein (1999) leva em conta a possibilidade de
construção de um sistema histórico substancialmente racional. Diferentemente da proposta liberal, este sistema é aquele em que há espaço
para a mais ampla democracia e para a mais ampla igualdade, de acordo
com o mesmo autor. Neste sentido, ele confirma que não é possível
sistema histórico democrático sem igualdade, assim como, sistema igualitário sem democracia. Segundo Wallerstein (1999, p.3), “um sistema
não democrático é o que distribui poder desigualmente (…) um sistema desigual significa que alguns têm mais meios materiais que outros e,
por isso, inevitavelmente terão mais poder político” 5 Em suma, o autor
não concebe separar-se igualdade de democracia e vice-versa.
Neste contexto de relatividade e substancial racionalidade,
Wallerstein (1999:4) considera a certeza como “morte moral” (moral
death) e apega-se à incerteza, como um interessante elemento
desarticulador capaz de incentivar a criatividade de toda espécie e,
principalmente, a criatividade humana. Mais adiante, Wallerstein fala
num tipo de sistema social alternativo no qual se procura construir algo
com base em debates e decisões coletivas com relação a questões
fundamentais. Isso faz com que o autor insista na racionalidade substancial que envolverá, não somente este novo sistema social, mas também, novas estruturas de conhecimento nas quais a filosofia e a ciência
não estarão mais divorciadas.
5
No original: “an undemocratic system is one that distributes power unequally (…)
an inegalitarian system means that some have more material means than others and
therefore inevitably will have more political power” (tradução do autor).
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Neste ponto, é importante ressaltar que o direito pós-moderno
insere-se, não somente neste tipo de racionalidade substancial, mas
também, nessa interação entre ciência e filosofia. Vale considerar que,
para Ferraz Jr. (1998), as questões dogmáticas devem ser justificadas
pela zetética, ou seja, devem ser de algum modo legitimadas. Por isso,
há uma intensa imbricação entre dogmática e zetética que demonstra a
total impossibilidade de concebê-las como momentos estanques de
configuração do direito. Sempre houve uma tendência a separar-se a
dogmática da zetética; entretanto, hoje mais que nunca, isso se torna
repreensível, tendo em vista os avanços na Ciência e, sobretudo, no
Direito. O saber tecnológico a que se refere a dogmática “toma por
assim dizer as possibilidades factuais mostradas pela ciência e as transforma em possibilidades de ação humana” (Ferraz Jr., 1998, p. 91).
Isso porque, inserido numa racionalidade substancial como a
exposta por Wallerstein (1999), o direito não estaria mais sujeito aos
conceitos de certeza e segurança estabelecidos pelo positivismo como
parâmetros imprescindíveis à realização da justiça. Partindo da idéia
de que a incerteza é um caminho aberto à criatividade e a mudanças e
melhorias, é preciso revisitar e reformular as noções de certeza e segurança jurídicas. Não é mais necessário recorrer a estes artifícios criados pelo positivismo, uma vez que o direito pós-moderno pretende-se
substancialmente racional.
Não seria incorreto dizer que, preliminarmente, mesmo ao afirmar a incerteza do direito, não se negaria a necessidade de previsibilidade, no sentido proposto na ciência por Prigogine. Nesta linha, o
pesquisador do direito finlandês Aulis Aarnio (1991) apresenta como
elementos de certeza jurídica a ausência de arbitrariedade e a correção da decisão, cujo objetivo é tornar a aplicação do direito previsível
e não, dotá-la de certeza e segurança normativas nos moldes positivistas. Dessa forma, a existência de um procedimento racional de fundamentação da decisão6 (pretensão de correção) e a impossibilidade
de decisões arbitrárias não seriam contraditórias com a noção de incerteza no sentido de abertura à inovação e à criatividade, pelo con6
Esta justificação do direito através de um procedimento racional no momento de
decidir foi elaborada por Robert Alexy (1997) tendo como um dos pressupostos a
teoria da verdade consensual de Habermas.
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trário, são perfeitamente conciliáveis com estas condições de possibilidade que integrariam a previsibilidade da aplicação do direito.
Obviamente, esta previsibilidade pode ser alcançada, segundo
Aarnio (1991), tendo em vista dois fundamentos básicos: a decisão
deve estar de acordo com o direito positivo e em conformidade com
normas sociais não jurídicas. Neste ponto, percebe-se a abertura a um
leque de possibilidades muito maior, pois é possível recorrer aos elementos sociais além dos jurídicos. A fim de atingir essa racionalidade
substancial e a previsibilidade aarniana, o direito pós-moderno deve
elevar ao máximo seu caráter argumentativo. A partir daí, será possível
trabalhar dentro do direito com pluralidade de ordens jurídicas, diversidade de parâmetros de decidibilidade e, sobretudo, com incertezas
(criatividade).
O novo saber jurídico assume a incompletude, a incerteza e o
caráter fragmentário de sua construção teórica. Não há previsibilidade
total, mas também não há mero arbítrio. Esse caráter extremamente
complexo e caótico não acarreta a impossibilidade da ciência, mas faz
dela um saber mais flexível, aberto a diversas experiências e tolerante
a diferentes metodologias. Ao invés de impor um quadro geral, o direito
pós-moderno limita-se a desempenhar um papel tradutor, relacionando
diferentes opiniões e culturas, buscando o consenso e visando sempre
à emancipação, ou seja, uma vida mais decente. Concluindo, cita-se
Santos (2004, p. 779):
“Dado que vivemos, como mostram Prigogine e Wallerstein, numa
situação de bifurcação, a imensa diversidade de experiências
sociais revelada por estes processos não pode ser explicada
adequadamente por uma teoria geral. Em vez de uma teoria geral, proponho o trabalho de tradução, um procedimento capaz
de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e
disponíveis sem destruir a sua identidade”.
5.3 Direito e argumentação
O direito pós-moderno, porque substancialmente racional, está
imbuído de legitimidade e, por isso, é instrumento de realização de
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igualdade e de democracia. Entretanto, por que legitimidade, igualdade e democracia são características do direito pós-moderno? A razão
disso é que, quando se diz que o direito pós-moderno é dotado de
racionalidade, está-se aceitando um pressuposto de legitimidade. Como
Habermas (1984) explica, há argumentação racional quando se leva
em conta não somente a validade dedutiva (lógica formal) e a validez
(eficácia social), mas também, a legitimidade. Para este autor, a legitimidade do argumento engloba tanto a validade dedutiva quanto a lógica indutiva (validez) e, por ser mais abrangente, ultrapassa as limitações destas. Por isso, pode-se dizer que o discurso jurídico, quando
compreendido a partir da racionalidade comunicativa, caminha naturalmente no sentido de obter consenso e entendimento os quais decorrem da apresentação de argumentos legítimos.
Levando em conta a ação orientada ao entendimento, a intersubjetividade e a dialogicidade, componentes essenciais da racionalidade comunicativa, é natural que o discurso jurídico se aproxime do
ideal democrático, uma vez que, ao estabelecer-se o diálogo entre os
participantes, é necessário que a todos sejam garantidos meios necessários e suficientes para se expressarem e apresentarem seus argumentos de forma a obter-se, ao final, o consenso.
Este discurso jurídico será tanto mais efetivo, quanto mais capaz
for de incorporar as diversas visões de mundo e experiências (o mundo da vida) daqueles que tomam parte na comunicação. De fato, o
mundo da vida é o pano de fundo, pressuposto para a realização desta
ação voltada para o entendimento que se pretende, no caso específico,
na esfera do direito. Dessa forma, não se pode mais aceitar apenas a
existência de um direito oficial, mas é necessário articular a pluralidade
de ordens jurídicas que, hoje, compõem o direito pós-moderno com
vistas a viabilizar a realização da comunicação no discurso jurídico.
Em virtude disso, a racionalidade jurídica deve ser concebida a
partir da ação voltada para o entendimento, ou seja, a razão comunicativa habermasiana. A racionalidade jurídica não pode ser entendida
como racionalidade jurídico-instrumental, o que a aproximaria do
paradigma dominante da ciência moderna. Dessa forma, é necessário
que a racionalidade não se reduza ao mero resultado final do procedi50
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mento de justificação das decisões jurídicas. O direito pós-moderno
não é instrumental e muito menos meramente teleológico. Vale ressaltar que o direito pós-moderno se pretende razoável, o que, segundo
Aarnio (1991), abrange a racionalidade. Neste sentido, pode-se dizer
que o direito deve ser, hoje, substancialmente racional, de acordo com
a terminologia de Wallerstein (1999) e razoável, segundo a expressão
técnica de Aarnio. Como assevera Santos (1994, p. 287-8):
“A amplitude no novo paradigma significa, antes de mais, o alargamento das razões com que se podem justificar as condutas,
um alargamento da racionalidade cognitivo-instrumental para uma
racionalidade mais ampla onde caiba, além dela, a racionalidade
moral-prática e a racionalidade estético-expressiva, um alargamento da demonstração racional para a argumentação racional,
em suma, um alargamento da racionalidade para a razoabilidade,
do conhecimento epidítico para a fronese. Paradoxalmente,
quanto mais ampla é, melhor a racionalidade conhece os seus
limites”.
Mas em que consiste exatamente esta razoabilidade? A
razoabilidade, como destaca Aarnio (1991), é o elemento articulador
essencial, associado à idéia de aceitabilidade. Em verdade, a
razoabilidade pode ser definida como a aceitação numa dada comunidade, a partir de consideração racional e de determinados valores culturalmente estabelecidos. Enquanto o racional, em sentido estrito, identifica-se ao evidente, ao demonstrável, ao indubitável, a algo que não
leva em consideração qualquer elemento contingente, o razoável acentua
a sensibilidade ao contexto, remetendo à idéia de uma razão substancial ou material (Perelman, 1979). Já em Aristóteles havia espaço para
a razoabilidade, pois, ao lado do raciocínio analítico, estava o raciocínio dialético, típico do saber ético, no qual o conhecimento assume a
forma de uma sabedoria prática (fronese) sempre sensível ao contexto. O direito pós-moderno deve produzir um discurso interconectado
com as necessidades, anseios e valores culturalmente aceitos numa
determinada sociedade. Em decorrência disso, está aberto a incerte51
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zas, instabilidades e mudanças, mas não deixa de ser previsível, porque seu resultado advirá, sempre, de procedimentos e análises interpretativos razoáveis, isto é, aceitos por aqueles que participam do discurso.
Este procedimento de justificação, do ponto de vista axiológico
e não meramente formal, como ressalta Aarnio, busca absorver elementos extra-jurídicos referentes a valores selecionados como relevantes por uma sociedade situada no tempo e no espaço e integrá-los
ao processo de interpretação e até de construção do Direito. O direito
pós-moderno deve ser construído, a partir da comunicação entre as
diversidades culturais e sociais existentes num determinado espaço
político.
É fundamental para a incorporação da pluralidade de ordens
jurídicas, da intersubjetividade e da dialogicidade, pregadas por
Boaventura Santos, que o direito pós-moderno, a fim de ser razoável,
procure agregar a sua justificação, todo esse pano de fundo, culturalmente dado a o que Habermas chamou de mundo da vida e, a partir
daí, produza um discurso fundado na razão comunicativa, ou seja, orientado para o entendimento.
Assim, tendo incorporado todos esses elementos, o direito pósmoderno distancia-se dos paradigmas dominantes da modernidade e
aproxima-se das revoluções operadas na ciência, através das teorias
do caos, das estruturas dissipativas, entre outras, e, sobretudo, da
novíssima retórica proposta por Boaventura para a ciência pós-moderna.
6
CONCLUSÃO
A tentativa de reinventar a ciência e o direito a partir de uma
perspectiva emancipatória que privilegie a solidariedade é o grande
desafio enfrentado por Boaventura de Sousa Santos. Tanto na ciência
quanto no direito o projeto moderno mostrou inúmeras falhas e sua
falência incita a coragem teórica de propor novos caminhos. Nessa
tentativa de construir uma ciência e um direito pós-modernos, vários
são os pontos de confluência. O que se tem como o mais característi52
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co dessa pós-modernidade, seja na dimensão epistemológica seja na
societal, diz respeito à máxima elevação do caráter argumentativo. O
problema retórico apresenta-se, para Boaventura, dentro de seu estudo acerca do conhecimento emancipatório, como uma espécie de estratégia para proliferar as comunidades interpretativas.
A fim de atingir este objetivo, foi necessário realizar todo esse
percurso, desde as reformulações científicas, como a teoria da relatividade, a teoria do caos e a teoria das estruturas dissipativas até à noção
de ciência pós-moderna. A partir daí, verifica-se como o processo de
mudança nos paradigmas da ciência foi decisivo na escolha de uma
novíssima retórica como elemento fundamental nesta reestruturação.
Na ciência pós-moderna, abdica-se da tentativa de se construir um
esquema explicativo único que abarque todo o real. As noções de
caos e incerteza passam a informar o conhecimento científico.
Após indicar o caráter eminentemente retórico da ciência,
Boaventura, entendendo que não pode haver emancipação sem uma
tópica de emancipação, buscou desenvolver a criação de novos sensos comuns emancipatórios, que se caracterizam, sobretudo, pelo caráter solidário, participativo e reencantado.
Com relação ao direito, Boaventura procurou apontar os desvios da modernidade, a partir da periodicidade específica de cada uma
das fases do capitalismo. Ele enfatiza a existência de um direito moderno lógico-formal e instrumental a serviço dos interesses estatais.
Por isso, a proposta de “despensar” este direito passa, na visão do
autor, por uma dissociação necessária entre Estado e Direito e por
uma rearticulação do Direito com a Revolução e, sobretudo, com a
sociedade civil.
Todavia, é necessário dizer que este artigo não se reduz à mera
descrição da obra e das idéias de Boaventura. Em razão disso, é feita
uma interação destas com a noção de poder em Foucault, assim como
com as abordagens de Wallerstein acerca da incerteza e da
racionalidade substancial. Tendo em vista estes referenciais teóricos,
procura-se estabelecer o alicerce sobre o qual se ergue o direito pósmoderno. Por fim, a partir da racionalidade comunicativa habermasiana
e da razoabilidade aarniana, estrutura-se o discurso jurídico no
paradigma da pós-modernidade.
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Conclui-se que o direito pós-moderno, na mesma esteira da ciência pós-moderna, deve ter por meta a incorporação de incertezas e de
diversas subjetividades a fim de se estabelecer uma nova conformação
do discurso jurídico, a partir da razoabilidade e da racionalidade comunicativa, sempre visando à emancipação. O direito da pós-modernidade é o que busca realizar um consenso eminentemente contingente
e infenso a incertezas e a concepções plurais e não universais.
7
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RICARDO ADRIANO MASSARA BRASILEIRO
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