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Criminologia Cultural (tradução)

2022, Revista Brasileira de Ciências Criminais 193

https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225

A Criminologia Cultural está preocupada com a convergência dos processos culturais, criminais e de controle do crime; como tal, situa a criminalidade e seu controle no contexto da dinâmica cultural e da produção contestada de significado. Ela procura entender as realidades cotidianas de um mundo profundamente desigual e injusto, e destacar as maneiras pelas quais o poder é exercido e resistido em meio à interação de criação de regras, violação de regras e representação. As temáticas da Criminologia Cultural envolvem uma série de questões contemporâneas: a construção mediada e a mercantilização do crime, violência e punição; as práticas simbólicas daqueles envolvidos em atividades subculturais ou pós-subculturais ilícitas; as ansiedades existenciais e as emoções situadas que animam o crime, a transgressão e a vitimização; os controles sociais e os significados culturais que circulam dentro e entre arranjos espaciais; a interação entre controle estatal e resistência cultural; as culturas criminógenas geradas pelas economias de mercado; e uma série de outras instâncias em que o significado situado e simbólico está em jogo. Para realizar tais análises, a Criminologia Cultural abraça perspectivas interdisciplinares e métodos alternativos que regularmente a movem além dos limites da Criminologia convencional, extraindo da antropologia estudos de mídia, estudos da juventude, estudos culturais, geografia cultural, sociologia, filosofia e outras disciplinas, e utilizando novas formas de etnografia, análise textual e produção visual. Em tudo isso, a Criminologia Cultural procura desafiar os parâmetros aceitos da análise criminológica e reorientar a criminologia para as condições sociais, culturais e econômicas contemporâneas.

37 CRIMINOLOGIA CULTURAL CULTURAL CRIMINOLOGY KEITH HAYWARD Professor de Criminologia na Faculdade de Direito da Universidade de Copenhagen. Doutor em Criminologia pela University of East London (2000). Mestre em Criminologia pela University of Cambridge (1996). ORCID: [https://orcid.org/0000-0001-7135-9131]. keith.hayward@jur.ku.dk JEFF FERRELL Professor aposentado de Sociologia da Texas Christian University. Professor visitante na Universidade de Kent. Doutor e Mestre em Sociologia pela University of Texas. ORCID: [https://orcid.org/0000-0002-2096-7863]. j.ferrell@tcu.edu MICHELLE BROWN Professora de Sociologia na University of Tennessee. Doutora em Justiça Criminal e Estudos Americanos. Mestra em Justiça Criminal (Indiana University – 2003 e 1997). ORCID: [https://orcid.org/0000-0001-7838-7696]. mbrow121@utk.edu TRADUZIDO POR: SALAH H. KHALED JR. Doutor em Ciências Criminais (PUC/RS, 2011). Professor de Direito Penal, Criminologia, Sistemas Processuais Penais e História das Ideias Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Presidente do Instituto Brasileiro de Criminologia Cultural. Lattes: [http://lattes.cnpq.br/6155872393221444]. ORCID: [https://orcid.org/0000-0003-4918-1060]. salah.khaledjr@gmail.com DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. AUTORES CONVIDADOS HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. 38 Revista BRasileiRa de CiênCias CRiminais 2022 • RBCCRIM 193 ÁREA DO DIREITO: Penal RESUMO: A Criminologia Cultural está preocupada com a convergência dos processos culturais, criminais e de controle do crime; como tal, situa a criminalidade e seu controle no contexto da dinâmica cultural e da produção contestada de significado. Ela procura entender as realidades cotidianas de um mundo profundamente desigual e injusto, e destacar as maneiras pelas quais o poder é exercido e resistido em meio à interação de criação de regras, violação de regras e representação. As temáticas da Criminologia Cultural envolvem uma série de questões contemporâneas: a construção mediada e a mercantilização do crime, violência e punição; as práticas simbólicas daqueles envolvidos em atividades subculturais ou pós-subculturais ilícitas; as ansiedades existenciais e as emoções situadas que animam o crime, a transgressão e a vitimização; os controles sociais e os significados culturais que circulam dentro e entre arranjos espaciais; a interação entre controle estatal e resistência cultural; as culturas criminógenas geradas pelas economias de mercado; e uma série de outras instâncias em que o significado situado e simbólico está em jogo. Para realizar tais análises, a Criminologia Cultural abraça perspectivas interdisciplinares e métodos alternativos que regularmente a movem além dos limites da Criminologia convencional, extraindo da antropologia estudos de mídia, estudos da juventude, estudos culturais, geografia cultural, sociologia, filosofia e outras disciplinas, e utilizando novas formas de etnografia, análise textual e produção visual. Em tudo isso, a Criminologia Cultural procura desafiar os parâmetros aceitos da análise criminológica e reorientar a criminologia para as condições sociais, culturais e econômicas contemporâneas. ABSTRACT: Cultural criminology is concerned with the convergence of cultural, criminal and crime control processes; as such, it situates criminality and its control in the context of cultural dynamics and the contested production of meaning. It seeks to understand the everyday realities of a profoundly unequal and unjust world, and to highlight the ways in which power is exercised and resisted amidst the interplay of rule-making, rule-breaking, and representation. The subject matter of cultural criminology, then, crosses a range of contemporary issues: the mediated construction and commodification of crime, violence, and punishment; the symbolic practices of those engaged in illicit subcultural or post-subcultural activities; the existential anxieties and situated emotions that animate crime, transgression, and victimization; the social controls and cultural meanings that circulate within and between spatial arrangements; the interplay of state control and cultural resistance; the criminogenic cultures spawned by market economies; and a host of other instances in which situated and symbolic meaning is at stake. To accomplish such analysis, cultural criminology embraces interdisciplinary perspectives and alternative methods that regularly move it beyond the boundaries of conventional criminology, drawing from anthropology, media studies, youth studies, cultural studies, cultural geography, sociology, philosophy and other disciplines, and utilizing new forms of ethnography, textual analysis, and visual production. In all of this, cultural criminology seeks to challenge the accepted parameters of criminological analysis, and to reorient criminology to contemporary social, cultural and economic conditions. PALAVRAS-CHAVE: Controle – Edgework – Etno- KEYWORDS: Control – Edgework – Ethnography – Meaning – Transgression – Power – Resistance – Visual criminology. grafia – Significado – Transgressão – Poder – Resistência – Criminologia visual. SUMÁRIO: Introdução. 1. Influências intelectuais e teóricas. 2. Principais orientações contemporâneas. 2.1. Edgework, transgressão e as seduções do crime. 2.2. Exclusão/Inclusão. 2.3. Criminalidade cotidiana, controle e consumo na modernidade tardia. 2.4. Uma HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. dossiê “CRiminologia CultuRal” 39 criminologia cultural do Estado. 2.5. Mídia, representação e mercantilização do crime. 3. O(s) método(s) da Criminologia Cultural. 4. Direções futuras. 5. Revisão da literatura e fontes primárias. Leituras adicionais. Referências. intRodução A1 Criminologia Cultural procura desenvolver uma Criminologia que incorpore uma noção de cultura que está constantemente em fluxo, que tenha sempre potencial de criatividade e transcendência. Embora tenha como base e reconceitue uma série de tradições criminológicas de longa data, a Criminologia Cultural é uma abordagem teórica relativamente nova, tendo sido formulada inicialmente na década de 1990. Neste breve período, porém, a Criminologia Cultural desenvolveu-se como um modelo teórico relativamente abrangente e gerou vários focos analíticos distintos. Além disso, a Criminologia Cultural surgiu como uma alternativa intelectual e teórica a muitas das orientações que informam as abordagens criminológicas mais convencionais. Em sua forma mais básica, a Criminologia Cultural se compromete a investigar a interação dinâmica entre cultura, crime e controle do crime. Em outras palavras, criminologistas culturais propõem que tanto o crime quanto o controle do crime operam como processos culturais, com seus significados e consequências inevitavelmente construídos a partir de simbolismos compartilhados e interpretações coletivas. Do ponto de vista da Criminologia Cultural, então, o objeto da Criminologia não deve incluir apenas “crime” e “justiça criminal” como estreitamente concebidos, mas fenômenos tão variados quanto representações midiáticas do crime, definições subculturais de violência e demonstrações públicas de emoção pelas vítimas de crimes. Em cada um desses casos, a experiência do crime e do controle do crime é moldada pelos significados que lhe são atribuídos e pelo estoque cultural de referências históricas, vetores de poder estabelecidos e em evolução e percepções comuns das quais esses significados são extraídos. Com base em uma teoria crítica do crime e do controle do crime, criminologistas culturais argumentam que fenômenos aparentemente “naturais” ou 1. Este artigo foi publicado pela primeira vez em Rafter and Brown, The Oxford Encyclopedia of Crime, Media, and Popular Culture, e é publicado aqui traduzido com permissão da Oxford University Press. HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. 40 Revista BRasileiRa de CiênCias CRiminais 2022 • RBCCRIM 193 “objetivos” – a taxa oficial de crime em um determinado bairro, por exemplo, ou o grau em que as pessoas temem um tipo de crime ou outro — não são, na realidade, ocorrências naturais nem objetivas. Em vez disso, são construções culturais, isto é, são fenômenos construídos de maneiras particulares por aqueles com a influência ou o poder para fazê-lo. As instituições políticas decidem quais atos devem ser legalizados ou ilegais; as instituições de mídia retratam crimes específicos de forma a gerar mais ou menos medo deles; policiais locais negociam situações cotidianas de forma a determinar as taxas de prisão ou encarceramento. Os processos culturais que moldam o significado do crime e do controle do crime, então, são regularmente de poder e conflito, com o crime e o controle do crime constituindo consistentemente o terreno no qual os conflitos sobre moralidade e identidade são travados. Por causa disso, criminologistas culturais afirmam que não podemos explicar a política e as emoções que cercam o crime – em verdade, não podemos explicar a política contemporânea de ordem social e mudança social – sem analisar criticamente a dinâmica cultural que molda o crime e seu controle. Teorias e métodos criminológicos que são incapazes de explicar os significados situados e motivações existenciais do crime, ou que reduzem o crime e a vitimização a abstrações sem emoção, não podem fazer justiça à excitação, ao pavor, à indignação e ao prazer que dão vida ao terrível apelo do crime. Ao adotar essa visão, a Criminologia Cultural emergiu como um contraponto teórico a uma série de tendências contemporâneas da Criminologia, especialmente seu deslocamento para uma orientação de justiça criminal administrativa, ou seja, sua dependência de pesquisas com base em questionários, raciocínio estatístico e quantificação, e a adoção de teorias baseadas na racionalidade e previsibilidade. Além disso, a Criminologia Cultural procurou revitalizar a Criminologia de forma a sintonizá-la com as dinâmicas cambiantes do mundo moderno tardio. O alcance cada vez maior de mercados de consumo irrestritos sugere não só um exame geral de “cultura e crime”, por exemplo, mas um exame focado na complexa interação da cultura de consumo com o crime – a venda do crime como entretenimento, ou o fascínio do consumo ilícito. Enquanto isso, a migração em curso da população mundial para os centros urbanos exige uma análise criminológica dos controles espaciais, físicos e culturais da cidade e da própria cidade como um local onde o crime, o consumo e a exclusão colidem. Ampliando ainda mais as suas lentes, a degradação global do trabalho, juntamente com a crescente ênfase cultural na autorrealização individual e satisfação emocional, aponta para novas formas de resistência emocional ilícita e para novas formas de criminalidade orientadas em torno da tomada de riscos e da criação de identidade. Talvez mais significativamente para os criminologistas culturais, a saturação da vida cotidiana por múltiplas formas de mídia e tecnologias de mídia sugere que qualquer HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. dossiê “CRiminologia CultuRal” 41 distinção clara entre “o crime” e “a imagem do crime” já deixou de existir. Em seu lugar, está um mundo em que os eventos criminosos, suas imagens mediadas e as percepções de outros sobre o crime cada vez mais circulam em loops e se amplificam. Se “real”, sugere consequências reais e efeitos reais, então a cultura do crime é hoje tão real quanto o próprio crime; talvez, como apontam criminologistas culturais, tenham se tornado cada vez mais indistinguíveis. Dessa forma, a Criminologia Cultural se posiciona como definitiva para qualquer Criminologia da modernidade tardia. 1. inFluênCias inteleCtuais e teóRiCas Em razão, fundamentalmente, de a Criminologia Cultural procurar trazer de volta a teoria sociológica para a Criminologia – isto é, continuar a (re)integrar o papel da cultura, construção social, significado humano, criatividade, classe e relações de poder no projeto criminológico –, ela é cuidadosamente situada em uma genealogia viva da teoria social, cultural e criminológica. O termo Criminologia Cultural surgiu em meados da década de 1990, como um movimento perceptível dentro do campo criminológico. O livro que inaugurou o movimento foi Cultural criminology, uma coleção de ensaios editados por Jeff Ferrell e Clinton Sanders, que buscava “mesclar as categorias de ‘cultura’ e ‘crime’ e enfrentar jornadas além dos limites convencionais da Criminologia contemporânea” (1995, p. 16). A Criminologia Cultural surgiu como uma síntese de tradições teóricas mais antigas, incluindo a perspectiva da rotulação, o interacionismo simbólico e as várias abordagens midiáticas e subculturais. Tais preocupações garantiram que, em seus primeiros anos, o foco da Criminologia Cultural estivesse em grande parte situado na produção de significado e representação (sub)cultural, incluindo um forte interesse por estilo, simbolismo e estética criminal. Em geral, essa manifestação inicial da Criminologia Cultural se reporta ao interacionismo simbólico de Howard Becker e Erving Goffman, às reflexões subculturais de Al Cohen e David Matza e à análise crítica da mídia associada de Stanley Cohen, Jock Young e Stuart Hall. Simplificando, em seus primeiros anos, o foco da Criminologia Cultural estava na produção contestada de significado e representação (sub)cultural dentro e ao redor dos conflitos contemporâneos sobre o crime e o controle do crime (FERRELL, 1999, p. 395; FERRELL, 1996). No final da década de 1990, esses trabalhos foram ampliados por contribuições britânicas e europeias que se concentraram mais nas implicações estruturais da modernidade tardia, no capitalismo de consumo e nos debates em torno da espacialidade (ver, por exemplo, HAYWARD, 2004). Unindo essas análises complementares, estava o interesse pelo trabalho fenomenológico de Jack Katz e Stephen Lyng (ver HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. 42 Revista BRasileiRa de CiênCias CRiminais 2022 • RBCCRIM 193 Seductions of crime de Jack Katz (1988) e o conceito de ‘edgework’ de Stephen Lyng (1990), em particular, a forma como esses sociólogos priorizaram os poderosos aspectos experienciais e emocionais da transgressão, ou o que eles chamaram de “primeiro plano” existencial do crime (ver também FERRELL, 1997). Em sua essência, a Criminologia Cultural constitui uma síntese de duas orientações teóricas: a primeira norte-americana e a segunda britânica. A orientação norte-americana data de meados do século XX, com o surgimento do interacionismo simbólico e da teoria da rotulação na análise do desvio e do crime. Para os teóricos interacionistas e da rotulação, o objeto apropriado da Criminologia não era o crime como um ato individual, mas sim a teia de interações sociais e interpretações pelas quais qualquer ato pode ou não ser construído como crime. Estavam em questão o significado do crime e os exercícios de poder e discriminação pelos quais esse significado foi determinado e redeterminado dentro de um processo social em andamento. No que diz respeito ao crime e ao controle do crime, as dimensões “simbólicas” da interação simbólica sugeriam que um ato transgressivo poderia simbolizar heroísmo ou horror, autodefesa ou agressão; da mesma forma, a prática do controle do crime pode ser apresentada como uma questão de bom policiamento, participação patriótica ou repressão política. Para esses teóricos, a realidade do crime era inerentemente uma realidade social e cultural – e, também, uma realidade política. Ao compreender a construção simbólica do crime e do controle do crime, criminologistas poderiam começar a penetrar nas reivindicações proselitistas dos empreendedores morais, na dinâmica discriminatória do sistema de justiça criminal e nas experiências vividas daqueles rotulados como criminosos. Essas experiências vividas podiam, por sua vez, ser documentadas por meio de estudos de caso “naturalistas” e etnografias cuidadosas que revelaram padrões de significado compartilhado e comunicação simbólica dentro de subculturas marginalizadas. Aqui, então, está um fundamento da Criminologia Cultural: uma atenção ao simbolismo e significado na construção do crime e uma análise crítica do crime, cultura e poder. Influenciados pelo trabalho dos interacionistas, sociólogos e criminologistas norte-americanos associados à National Deviancy Conference, a Escola de Estudos Culturais de Birmingham e a “nova criminologia”/“criminologia crítica” na Grã-Bretanha, começaram a desenvolver na década de 1970 o que se tornaria a segunda base intelectual da Criminologia Cultural. Ampliando o potencial crítico das abordagens interacionistas e da rotulação, eles investigaram cuidadosamente as avenidas culturais por meio das quais o poder era por vezes reforçado e resistido. Situando o crime e o controle do crime no contexto histórico e político, eles também analisaram a utilidade ideológica do crime, expondo as maneiras pelas quais as preocupações com o crime e as campanhas anticrime foram feitas para HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. dossiê “CRiminologia CultuRal” 43 se encaixar em agendas políticas e trajetórias históricas mais amplas. Esses pesquisadores também se envolveram no tipo de estudo de caso e pesquisa etnográfica desenvolvida entre criminologistas interacionistas, encontrando em meio aos mundos de lazer e subculturas ilícitas de seus temas de estudo momentos de desafio estilizado e resistência coletiva à autoridade legal. Tomado como um todo, este trabalho não apenas deu continuidade à reconceitualização do crime pelos interacionistas como uma construção social e cultural; ainda começou a reconceituar a própria natureza do poder e do controle social na sociedade contemporânea. O poder de muitas maneiras agora denotava o poder de controlar o significado dos eventos públicos, e o controle social, a capacidade de controlar os termos pelos quais as atividades de grupos marginais passaram a ser compreendidas e interpretadas. Na década de 1990, essas duas orientações foram sintetizadas pela primeira vez em uma “Criminologia Cultural” que se baseou explicitamente nas tradições norte-americana e britânica em uma tentativa de teorizar as interseções contemporâneas de crime e cultura. Para complementar e expandir essas abordagens anteriores, criminologistas culturais agora incluíam uma variedade de perspectivas disciplinares e interdisciplinares adicionais: Criminologia anarquista e outras criminologias críticas e de conflito, teoria social e filosofia contemporânea, antropologia, geografia cultural/cartografia crítica e outras. Utilizando essa abordagem sintética, eles se concentraram especialmente nos componentes de estilo, na linguagem e no significado simbólico que animam mundos sociais ilícitos e nas maneiras pelas quais as autoridades legais e políticas, por sua vez, utilizam a representação mediada para criminalizar esses mundos (FERRELL; SANDERS, 1995). Criminologistas culturais também procuraram revitalizar a tradição da pesquisa etnográfica em subculturas ilícitas, tanto teorizando a dinâmica epistêmica e emocional dessa abordagem em distinção aos métodos de pesquisa quantitativa quanto engajando-se em explorações etnográficas aprofundadas de grafiteiros, skinheads neonazistas, profissionais do sexo de rua e outros grupos. Para criminologistas culturais, o objetivo tem sido recuperar essas perspectivas iniciais como componentes essenciais da investigação criminológica, reimaginá-las e revigorá-las no contexto do crime contemporâneo e das trajetórias de controle do crime e ampliá-las com novas perspectivas de outras disciplinas. 2. PRinCiPais oRientações ContemPoRâneas 2.1. Edgework, transgressão e as seduções do crime A Criminologia Cultural contemporânea gerou uma variedade de modelos teóricos que se baseiam em trabalhos anteriores sobre os significados situados e HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. 44 Revista BRasileiRa de CiênCias CRiminais 2022 • RBCCRIM 193 as políticas simbólicas do crime e do controle do crime. Vários desses modelos exploram tanto a experiência imediata e sensual do crime quanto a dinâmica que liga essa experiência ilícita a padrões mais amplos de significado cultural e mudança histórica. O conceito de edgework, por exemplo, é utilizado por criminologistas culturais para analisar incidentes de comportamento extremo e arriscado que geralmente são vistos como desviantes ou ilegais (LYNG, 2005); criminologistas culturais têm empregado esse modelo na investigação de membros de gangues, corridas de rua, BASE jumping, anorexia, práticas sexuais sadomasoquistas e outros fenômenos contemporâneos. Em contraste com os entendimentos convencionais de tais práticas como simplesmente destrutivas ou individualmente fora de controle, criminologistas culturais argumentam que essas práticas geralmente envolvem uma exploração consciente do “limite” entre caos e ordem, perigo e autodeterminação. Essencial para essa exploração é a maneira como tais práticas combinam altos níveis de risco com as habilidades necessárias para negociar tal risco; para os participantes, um grande risco requer grande habilidade, e quanto maior a habilidade, maior o risco que pode ser assumido. Essa dinâmica de risco e habilidade, por sua vez, atrai cada vez mais pessoas, precisamente, porque tanto o risco quanto a habilidade são cada vez mais expurgados da vida contemporânea; empregos de baixa qualificação no setor de serviços predominam nas economias de consumo emergentes do capitalismo tardio e, seja no trabalho ou no lazer, as estratégias de “gerenciamento de risco” agora regulam quase todos os aspectos da vida social. Dessa forma, o conceito de edgework vincula experiências ilícitas com mudanças sociais e econômicas maiores, bem como ajuda a explicar um problema específico do controle do crime. Criminologistas culturais descobriram que a prática de edgework produz para os participantes uma sedutora “corrente de adrenalina” decorrente de sua mistura de risco extremo e habilidade desenvolvida – mas, por causa disso, as estratégias de controle do crime destinadas a interromper tais atividades geralmente servem apenas para aumentar os riscos e aperfeiçoar as habilidades envolvidas e, assim, aumentar o apelo das atividades de edgework para aqueles engajados nelas. O conceito de edgework ressoa com a noção mais ampla de seduções do crime (KATZ, 1988). Do ponto de vista da Criminologia Cultural, grande parte da teoria criminológica tradicional foi constituída de forma invertida, ou seja, tais trabalhos teorizaram os fatores antecedentes que teriam levado ao evento criminal, mas pouco tiveram a dizer sobre a dinâmica imediata do evento criminal em si mesmo. Criminologistas culturais argumentam que esse “primeiro plano” imediato do crime, movido como é por trocas interacionais e emoções poderosas, é de fato digno de atenção analítica. Dentro dele, os participantes podem HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. dossiê “CRiminologia CultuRal” 45 ser “seduzidos” pelos significados e pelas emoções momentâneas que emergem; dentro de um evento criminal, questões de estigma, honra e respeito podem se tornar um impulso poderoso, ainda que fugaz, para um comportamento violento, explorador ou corajoso. Assim como no modelo de edgework, a noção de seduções do crime sugere que o crime não pode ser reduzido a explicações causais abstratas; em vez disso, momentos de criminalidade muitas vezes abrigam uma série de significados complexos e negociados que refletem e reconstroem forças culturais mais amplas. Além disso, esses significados podem direcionar a própria dinâmica pela qual um evento é resolvido; mais do que violência física ou ganho monetário, é isso que muitas vezes mais importa para os envolvidos. Um entrelaçamento semelhante de significado, emoção e cultura emergem com a teoria criminológica cultural do carnaval e do crime; aqui o quadro de referência também é histórico e comparativo (PRESDEE, 2000). Criminologistas culturais observam que, historicamente, o carnaval serviu em muitas sociedades como um tempo bem definido de vulgaridade, ridículo e excesso ritualizado. Por ser predefinido e regulamentado, porém, o carnaval funcionava tanto para celebrar e estimular o mau comportamento quanto para contê-lo dentro de fronteiras sociais e culturais; nesse sentido, o carnaval mantinha uma espécie de equilíbrio delicado entre desejos humanos perigosos e papéis sociais definidos, essenciais à vitalidade das sociedades em que florescia. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, contudo, o delicado equilíbrio do carnaval foi amplamente alterado, em alguns casos, pela criminalização das atividades carnavalescas, em outros casos, pela cooptação legal e comercial do carnaval, transformado em uma experiência mercantilizada e em um espetáculo abstrato. Como resultado, alguns aspectos da prática histórica do carnaval agora podem ser comprados e consumidos, na forma de pornografia explícita ou programação degradante de reality shows. Outros aspectos são hoje encenados como crimes – uso de drogas, predação sexual, “direção perigosa” em automóveis furtados – mas agora ainda mais perigosamente porque esses atos estão livres de sua contenção dentro do ritual comunitário. Para esses relatos, a ideia de transgressão é central. Do ponto de vista da Criminologia Cultural, reiteradamente, há mais em jogo no crime e no controle do crime do que a simples violação da lei e a resposta legal a ela. Em vez disso, o crime parece muitas vezes incorporar uma quebra de fronteiras sociais e culturais, uma dinâmica de ultrapassagem ou rompimento – e se as fronteiras a serem violadas codificam arranjos econômicos dominantes ou normas culturais de longa data, então há, de fato, muito mais em questão do que uma simples violação da lei. No entanto, a transgressão também envolve uma dialética móvel entre fronteiras erguidas e fronteiras rompidas; nesse sentido, a transgressão constitui HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. 46 Revista BRasileiRa de CiênCias CRiminais 2022 • RBCCRIM 193 um processo social e cultural contínuo, uma série de ações e reações negociadas, mais do que um único ato. Além disso, como sugere o conceito de edgework, aqueles engajados em atividades transgressoras às vezes cruzam os limites da segurança ou da respeitabilidade com uma intencionalidade emergente; eles começam a compreender o mundo e seu lugar nele de maneira diferente, precisamente, por causa das fronteiras que rompem, e assim adquirem da transgressão uma lente crítica para ver de outra forma os arranjos que o engendram. Além disso, uma das principais contribuições da Criminologia Cultural é encontrada em sua atenção à emoção e corporificação. Criminologistas culturais procuram as maneiras pelas quais as maiores questões – liberdade humana, controle social, economia contemporânea – são frequentemente incorporadas e contestadas, no que pode parecer o menor dos eventos criminais (FERRELL; ILAN, 2013). Conforme destacado pela teoria da rotulação e pela noção de Katz do “primeiro plano” do crime, o crime e o controle do crime são vistos aqui como processos humanos emergentes e interacionais – processos impregnados de significados conflitantes e emoções incorporadas. As emoções humanas que acompanham o crime e o controle do crime dessa maneira também se tornam um foco específico da Criminologia Cultural, e desde a mesma perspectiva analítica, as emoções não são simplesmente compreendidas como respostas individuais de medo ou raiva, mas como estados compartilhados moldados por experiências comuns e “vocabulários de motivo” coletivamente significativos (MILLS, 1940; FERRELL, 1997). 2.2. Exclusão/Inclusão A teoria da exclusão/inclusão (“bulímica”) postula que a sociedade contemporânea sofre de uma contradição particularmente problemática (YOUNG, 1999). Por um lado, a ordem social é definida pelo aumento da desigualdade econômica e política e, com isso, pela crescente exclusão econômica e legal de segmentos cada vez maiores da população da participação plena na sociedade mainstream. Crises financeiras e habitacionais em curso, altos níveis de desemprego e pessoas sem-teto, a prevalência de baixos salários e trabalho temporário entre aqueles que permanecem empregados, encarceramento em massa e privação legal sistemática nos Estados Unidos e em outros lugares, todos servem para excluir os pobres, as minorias étnicas e as antigas classes médias da plena participação nos mundos sociais convencionais. Ao mesmo tempo, porém, esses e outros grupos são, por definição, incluídos culturalmente. O poder da mídia de massa, e especialmente da propaganda de massa, é tal que esses grupos são sistematicamente ensinados a desejar os mesmos bens de consumo que os outros. HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. dossiê “CRiminologia CultuRal” 47 Além disso, como outros na sociedade capitalista tardia, eles são encorajados a ver esses bens como marcadores essenciais do estilo de vida bem-sucedido e a definir seu próprio status e identidade com base nos bens e serviços consumidos. O resultado dessa contradição é uma epidemia culturalmente induzida de ressentimento, insegurança e desejo humilhado, e com isso uma explosão paralela de crimes contra a propriedade tendo em vista a sua aquisição e crimes expressivos de retaliação e frustração (HAYWARD; KINDYNIS, 2013). Com esse modelo de exclusão e inclusão, então, criminologistas culturais tentam construir a partir da formulação fundamental de Merton de tensão socialmente induzida e adaptações a ela, enquanto ao mesmo tempo a reimaginam dentro dos contornos da cultura e economia capitalista tardia (ver especialmente HAYWARD; SMITH, 2017). 2.3. Criminalidade cotidiana, controle e consumo na modernidade tardia Um grande corpo de trabalho criminológico cultural explora formas de criminalidade cotidiana como vadiagem, grafite, furto em lojas, vandalismo e coleta criminalizada de lixo, ao mesmo tempo que documenta as respostas legais e as controvérsias públicas que cercam essa criminalidade (FERRELL, 1996, 2001, 2006; PRESDEE, 2009; ILAN, 2011). Desenvolvendo os insights da teoria da rotulação, criminologistas culturais argumentam que a “importância” ou “seriedade” de qualquer forma de criminalidade é amplamente determinada pela resposta legal a ela e pela capacidade daqueles que estão no poder de envolvê-la em significados culturais particulares e interpretações públicas. Como mostra a pesquisa criminológica cultural, campanhas de repressão agressiva ou pânico da mídia muitas vezes transformam transgressões inconsequentes em crimes de primeira ordem, tanto aos olhos da lei quanto na mente do público. Da mesma forma, a potência e o controle fluem na outra direção; atividades que de outra forma poderiam ser consideradas perigosamente consequentes podem estar escondidas por trás de construções ideológicas que as definem como legais, inofensivas ou necessárias (JENKINS, 1999; FERRELL, 2004). Para criminologistas culturais, então, a construção cultural do crime permanece sempre em questão. Dessa forma, criminologistas culturais enfatizam uma compreensão muito particular do poder da modernidade tardia em suas explorações da criminalidade e do controle cotidianos. Em um mundo tardo moderno inundado de comunicação mediada, tecnologia de vigilância e políticas de identidade divisivas e polarizantes, eles sugerem, é menos provável que o poder opere como um instrumento contundente de violência física do que circule insidiosamente, codificado em arranjos espaciais, escondido atrás de ideologias de gestão de riscos HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. 48 Revista BRasileiRa de CiênCias CRiminais 2022 • RBCCRIM 193 e segurança pública, e implantado por meio de mitologias de conforto e conveniência cotidiana. Nesse sentido, o controle social é mais potente, e mais perigosamente problemático, precisamente porque se esconde nos pequenos domínios da vida cotidiana – no cartão de crédito e no banco de dados corporativo, na calçada e na vitrine, no Câmera CCTV e no conselheiro escolar (FERRELL; HAYWARD; YOUNG, 2015, p. 87-123). Aqui reside a tendência hegemônica ou, pelo menos, a tendência moderna tardia em direção ao controle hegemônico: formas de controle social e legal, despercebidas e destinadas a passar despercebidas, que operam por meios que parecem naturais, se não inevitáveis (HAYWARD, 2012; RAYMEN, 2016). E, no entanto, como criminologistas culturais também documentaram, os habitantes da vida cotidiana às vezes percebem e resistem – e quando o fazem, suas aparentemente “pequenas” batalhas por um muro de parque ou um anúncio urbano também invocam questões maiores de poder, controle e justiça social (FERRELL, 1996, 2001). Essa abordagem analítica requer muita atenção ao microcircuito de vigilância e controle; também é necessário localizar esse microcircuito dentro das trajetórias mais amplas da modernidade tardia. Nas últimas décadas, por exemplo, as cidades globais desenvolveram abordagens cada vez mais agressivas para o policiamento diário dos sem-teto e outras populações deslocadas, envoltas em ideologias de segurança pública e civilidade pública, e amparadas pela pseudocriminologia conservadora das “janelas quebradas”. Essas abordagens vão desde a instalação de sistemas de sprinklers contra os sem-teto e a contínua dispersão policial de aglomerações públicas até a privatização de espaço público e a criminalização dos que alimentam populações sem-teto e migrantes. No entanto, o mais importante é que essas estratégias constituem algo mais do que simples mesquinhez; são estratégias de policiamento da crise (HALL et al., 2013) da modernidade tardia. As cidades da modernidade tardia contam com o motor econômico do “desenvolvimento urbano orientado para o consumo”, onde a cidade é reconstruída como uma imagem de si mesma e vendida aos privilegiados como uma constelação de preferências de estilo de vida, propriedades de design e experiências de varejo. Nesses ambientes, as populações sem-teto e migrantes passam a ser definidas e policiadas como questões de imagem, como ameaças à estética cuidadosamente elaborada da cidade, a serem excluídas para não se intrometerem na economia consumista da cidade. Além disso, as vastas desigualdades econômicas da modernidade tardia e a predação de suas indústrias de varejo e serviços produzem uma profunda precariedade para mais e mais pessoas, que são deixadas à deriva em termos de ocupação, residência e país. A injustiça está na ironia: a desigualdade desenfreada das economias políticas da modernidade tardia engendra o mesmo tipo de deslocamento à deriva em HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. dossiê “CRiminologia CultuRal” 49 que se concentra grande parte da legislação contemporânea e do policiamento cotidiano (FERRELL, 2012a, 2018). A cidade é essencial para a compreensão da convergência dessas forças. E, embora tenha constituído por muito tempo uma presença irregular dentro da Criminologia, variando como fonte de preocupação, visibilidade e inspiração, o conceito de “cidade” raramente foi totalmente integrado às análises do crime. Dentro da teoria criminológica contemporânea, a cidade é muito frequentemente perdida na abstração, aparecendo apenas como uma reflexão tardia, uma espécie de sombra teórica. O crime urbano é assim desvinculado de seu contexto físico: a cidade. A Criminologia Cultural procurou restabelecer o equilíbrio colocando a cidade firmemente de volta na agenda criminológica – ainda que isso não tenha sido um simples renascimento da sociologia ao estilo de Chicago. Em vez disso, o objetivo tem sido ampliar as análises criminológicas contemporâneas do crime urbano, incluindo as maneiras sutis, mas discerníveis, pelas quais o espaço urbano é transformado por muitos processos socioeconômicos e culturais em andamento na cidade do século XXI – merecendo destaque entre esses processos o consumismo moderno tardio. Como criminologistas culturais têm argumentado, os sistemas de consumo predominantes estão agora provocando transformações macroscópicas e flutuações microscópicas não apenas na configuração física e estrutural dos ambientes urbanos, mas na experiência subjetiva do crime e do controle (FERRELL, 2001, 2006; HAYWARD, 2004). Portanto, a Criminologia Cultural aborda o “espaço criminógeno” da mesma forma que a nova geografia cultural aborda o “espaço pós-moderno”, adotando uma abordagem fortemente interdisciplinar e uma vontade de pensar além de perspectivas puramente racionais ou estruturais (HAYWARD, 2012; KINDYNIS, 2014). Do ponto de vista da Criminologia Cultural, o mundo social complexo e contraditório da cidade exige esse tipo de análise cultural cuidadosa. Portanto, criminologistas culturais concentram-se em ambos os lados da dinâmica urbana excludente – naqueles que podem se proteger e naqueles que são forçados a ficar nas margens desprotegidas da sociedade – enquanto se esforçam para olhar para frente e para trás e permanecer atentos às especificidades de localidade, cultura, nação e experiência. Empurrados e puxados pelas correntes econômicas de mercados neoliberais turbinados, invadidos por poderes policiais aprimorados e hipervigilância, indivíduos e grupos hoje enfrentam e às vezes resistem a novas conexões entre economia, crime e controle em suas vidas cotidianas. Criminologistas culturais procuram desenterrar essas conexões não apenas no amplo alcance do capitalismo transcontinental, mas também em meio às situações locais e as mais comuns das transgressões. HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. 50 Revista BRasileiRa de CiênCias CRiminais 2022 • RBCCRIM 193 2.4. Uma criminologia cultural do Estado Nos últimos anos, criminologistas culturais também desenvolveram um grande interesse pelos danos causados pelo Estado – danos que se estendem além do cotidiano e no domínio do conflito global – do genocídio ao terrorismo de Estado, do imperialismo ao policiamento militarizado. Dentro da Criminologia Cultural, existe agora um corpo considerável de trabalho sobre crimes de estado (MORRISON, 2006, 2010; HAMM 2007; CUNNEEN, 2010; KLEIN, 2011; BURROWS, 2013; LINNEMANN et al., 2014; WALL; LINNEMANN, 2014A) e sobre vários agentes de controle estatal (KRASKA, 1998; MORRISON, 2004; FERRELL, 2004b; WENDER, 2004, 2008; ROOT et al. 2013; AIELLO, 2014; WALL; LINNEMANN, 2014b). Ao realizar este trabalho, criminologistas culturais desenvolveram uma posição teórica que difere do trabalho criminológico anterior na área do crime estatal e do controle estatal. Em vez de limitar sua análise ao direito internacional humanitário, à perspectiva do “dano social” ou às contingências sócio-históricas que constituem o poder do Estado, a Criminologia Cultural procura reunir a macroinfluência da estrutura (na forma de governança e ideologia) com teorias de nível médio de subcultura e “transgressão aprendida” (HAYWARD, 2011) – uma combinação que também permite uma análise de como crimes de Estado e assassinatos em massa podem ser “neutralizados” tanto pelo Estado quanto pelas forças coletivas envolvidas na violações de direitos humanos (por exemplo, HAMM, 2007; LINNEMANN, WALL; GREEN, 2014). 2.5. Mídia, representação e mercantilização do crime Uma característica definidora das últimas duas décadas – e da Criminologia Cultural – tem sido a ascensão da “Mediascape” (APPADUARAI, 1996) – aquele emaranhado de mídia que fabrica informações e dissemina imagens por meio de uma gama cada vez maior de tecnologias digitais. Neste mundo envolvente de festival de mídia e espetáculo digital, a lógica da velocidade acelera a liquidez da forma à medida que as imagens se esparramam de um meio para outro. Carregada e baixada, copiada e postada de forma cruzada, Flickerizada, Facebookeada e PhotoShopeada, a imagem hoje é tanto sobre porosidade e transmutação quanto sobre fixidez visual e representação. Essa fluidez da representação nunca é tão aparente quanto na construção contemporânea da imagem do crime. De criminosos que postam seus crimes no YouTube, às imagens granuladas de CCTV que impulsionam uma gama de programas de compilação de “policiais e ladrões” no horário nobre, de momentos irreais de reality shows que moldam valores morais e HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. dossiê “CRiminologia CultuRal” 51 normas sociais a representações estilizadas do crime em histórias em quadrinhos e nas capas dos livros de Criminologia, este é um mundo “onde a tela roteiriza a rua e a rua roteiriza a tela” (HAYWARD; YOUNG, 2004, p. 259). Portanto, um dos principais objetivos da Criminologia Cultural é tentar compreender as maneiras pelas quais os processos mediados de reprodução e troca cultural “constituem” a experiência do crime, do self e da sociedade sob as condições da modernidade tardia (ver SANDBERG; UGELVIK, 2016). Em um mundo onde o poder é cada vez mais exercido por meio da representação mediada e da produção simbólica, as batalhas por imagem, significado e representação cultural surgem como momentos essenciais na negociação contestada da realidade da modernidade tardia. A Criminologia Cultural atende a um chamado urgente para que os criminologistas se familiarizem com as várias maneiras pelas quais o crime e sua construção são imaginados e visualmente “emoldurados” na sociedade moderna tardia (ver HAYWARD; PRESDEE, 2010). Com campanhas mediadas anticrime, ondas de crime visualmente construídas, protestos e revoltas de justiça social e invenções midiáticas de subculturas criminosas agora circulando em “uma espiral interminável de significado, uma fita de cultura e vida cotidiana de Möbius” (FERRELL et al., 2004, p.3-4), criminologistas culturais argumentam que o tempo para uma Criminologia capaz de compreender a força dinâmica e o poder da cultura visual é agora. A Criminologia Cultural adota uma abordagem holística para traçar o fluxo de significado em um mundo repleto de imagens de crime e violência; no lugar da linearidade de causa e efeito, explora as dinâmicas em loops e em espiral do crime e da mídia – isto é, a maneira pela qual várias imagens de crime e justiça se reproduzem e, ao mesmo tempo, vazam no tribunal e na rua (FERRELL; HAYWARD; YOUNG, 2015). Além disso, criminologistas culturais destacam os processos afetivos de representação do crime, mostrando como as imagens viscerais do crime nos afetam não apenas em termos de política ou prática de justiça criminal, mas corporal e sensualmente (YOUNG, 2004, 2010). Pensar criticamente sobre “crime e a mídia” – ir além de simples medidas de conteúdo de mídia ou efeitos de mídia, adquirir um sentido holístico de loops e espirais, de fluidez e saturação – não é apenas entender a dinâmica do crime e da transgressão na modernidade tardia, mas abrir novos caminhos de investigação intelectual apropriados a essas circunstâncias confusas. Nesse contexto, a Criminologia Cultural se esforça para desenvolver novos modelos criminológicos e críticas criminológicas que possam dialogar com a cultura moderna tardia em geral e que possam explicar a complexa interação cultural do crime, controle do crime e representação. Abordagens etnográficas “instantâneas” e “líquidas” HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. 52 Revista BRasileiRa de CiênCias CRiminais 2022 • RBCCRIM 193 podem sintonizar os pesquisadores com a dinâmica rodopiante e em loop da paisagem midiática contemporânea e com o imediatismo afetivo de seu impacto. Formas de etnografia visual e “criminologia documental” (REDMON, 2015a; HAYWARD, 2017a) também podem traçar os contornos do mundo contemporâneo movido pela imagem e podem capturar um mundo moderno tardio em que o crime e o controle do crime são cada vez mais inseparáveis da política de representação (BROWN; CARRABINE, 2017; FERRELL; HAYWARD; YOUNG, 2015; HAYWARD; PRESDEE, 2010). 3. o(s) método(s) da CRiminologia CultuRal Quais são as abordagens metodológicas específicas que criminologistas culturais empregam em suas tentativas alternativas de compreensão dos problemas do crime, da desigualdade e da justiça criminal? Em seus primeiros anos, criminologistas culturais normalmente utilizavam principalmente dois métodos de pesquisa (FERRELL, 1999): técnicas de trabalho de campo etnográfico e qualitativo; ou a desconstrução acadêmica de imagens de mídia e textos culturais (ALTHEIDE, 1996). No entanto, à medida que a Criminologia Cultural ganhou força, sua mistura de influências intelectuais e interdisciplinares impactou a variedade e o tipo de métodos de pesquisa empregados. Como consequência, criminologistas culturais podem empregar métodos de pesquisa como pesquisa de ação participativa (O’NEILL et al., 2004), netnografia (KOZINETS, 2010) ou “Criminologia narrativa” (PRESSER, 2009; SANDBERG, 2010; PRESSER; SANDBERG, 2015) pois elas são ferramentas mais estabelecidas de etnografia ou análise de discurso. A tradição da pesquisa etnográfica dentro da Criminologia Cultural reflete uma atenção de longa data às particularidades do significado dentro dos mundos culturais. Nesse sentido, a inspiração para grande parte da Criminologia Cultural etnográfica pode ser vista como algo proveniente da rica história do interacionismo simbólico (ver supra), e de estudos clássicos como os de Becker (1963), Polsky (1969) e Willis (1977). Trata-se, então, de uma etnografia imersa na cultura e interessada no(s) estilo(s) de vida, o simbólico, o estético e o visual. No entanto, a Criminologia Cultural não é uma simples repetição dessas etnografias clássicas. Em vez disso, adiciona uma considerável gama extra de ingredientes à mistura, incluindo recentes reconsiderações do método de campo de disciplinas como antropologia (KANE 1998, 2004), documentário (REDMON, 2015b), metodologia feminista (FONOW; COOK, 1991), estudos culturais (DENZIN, 1992, 1997) e psicologia social (NIGHTINGALE, 1993). HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. dossiê “CRiminologia CultuRal” 53 Ferrell (1999, p. 400) explica: “Juntos, esses trabalhos sugerem que a pesquisa de campo opera como um empreendimento inerentemente pessoal e político, envolvendo profundamente os pesquisadores com situações e temas de estudo. Esses trabalhos exigem, portanto, um relato reflexivo sobre o processo de pesquisa, uma ‘etnografia da etnografia’, que dê conta do próprio papel do pesquisador na construção do significado.” Assim, Jeff Ferrell e Mark Hamm falam da metodologia alerta, de uma verstehen criminológica (FERRELL, 1997; FERRELL; HAMM, 1998) em que o pesquisador está profundamente imerso em uma cultura. Fundamental para o trabalho de criminologistas culturais é a capacidade de fundir metodologias de acordo com as necessidades empíricas do momento. Como Ferrell e Sanders (1995, p. 14) escrevem: “Eventos, identidades e estilos criminais ganham vida dentro de um ambiente saturado de mídia e, portanto, existem desde o início como um momento em uma espiral mediada de apresentação e representação […] reinventados uma e outra vez à medida que são exibidos no enxame diário de apresentações mediadas. Em todos os casos, como criminologistas culturais, estudamos não apenas imagens, mas imagens de imagens, uma sala infinita de espelhos mediados.” Criminologistas culturais desenvolveram técnicas conhecidas como “etnografia instantânea” e “etnografia líquida” (FERRELL; HAYWARD; YOUNG, p. 215-221): a primeira preocupada com “momentos decisivos” únicos de serendipidade fenomenológica – seja imprevisível ou previsível, não excepcional ou excepcional – que ilustram ou abraçam algo da orientação progressista da Criminologia Cultural; já a última uma estratégia de pesquisa perfeitamente sintonizada com as permutações da modernidade tardia e, portanto, sensível às ambiguidades e incertezas de comunidades desestabilizadas ou diaspóricas, a interação de imagens discutidas anteriormente, ou até mesmo a mudança de fronteiras entre pesquisa, sujeitos de pesquisa e ativismo cultural. Portanto, criminologistas culturais não se limitam mais às técnicas tradicionais associadas à análise de mídia/conteúdo que invocam leituras simples do retrato/imagem estática. Em vez disso, criminologistas culturais empregam regularmente as técnicas de fotografia documental e de diário autoetnográfico, semiótica e iconologia, sistemas de significação de imagem e outras técnicas de estudos de filmes indexicais, produção de filmes em vídeo, cartografia digital participativa e outras HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. 54 Revista BRasileiRa de CiênCias CRiminais 2022 • RBCCRIM 193 formas de ativismo social registrado em vídeo. Outras vezes, por influência da metodologia e da epistemologia feministas, desenvolvem leituras imaginativas, contra leituras e desconstruções sociológicas do crime e das formações de justiça criminal (FERRELL, 1999, p. 400-01). 4. diReções FutuRas Desde o início, a Criminologia Cultural abraçou uma orientação aberta e convidativa para a análise criminológica e tem se interessado menos na certeza definidora do que na crítica emergente e dinâmica. A questão, então, não é tanto o que é a Criminologia Cultural, mas como a Criminologia Cultural continua – isto é, como a Criminologia Cultural se baseou em perspectivas existentes dentro e além da Criminologia, e continuou a reinventá-las e ressituá-las com a intenção de desenvolver uma Criminologia familiarizada com o mundo contemporâneo e suas crises. Certamente, criminologistas culturais continuarão a analisar o crime em níveis estruturais, contextuais e subjetivos, buscando evidências empíricas tanto no amplo alcance do capitalismo neoliberal quanto em meio às situações mais locais e comuns às transgressões individuais (por exemplo, BROTHERTON, 2004; FERRELL, 2006; HAYWARD; HOBBS, 2007; MUZZATTI, 2010; KANE, 2012; REDMON, 2015b; SMITH; RAYMEN, 2016). Esse quadro crítico multidimensional baseado em níveis de explicação micro, meso e macro amplia a análise crítica do capitalismo e o tratamento do próprio capitalismo como criminoso. “[Para nós] o capitalismo global descontrolado deve ser confrontado como a dinâmica profunda da qual brotam muitos dos exemplos mais terríveis da criminalidade contemporânea. Traçando uma trajetória particularmente expansionista nos dias de hoje, o capitalismo moderno tardio continua a contaminar uma comunidade após a outra, moldando a vida social em uma série de encontros predatórios e saturando a existência cotidiana com expectativas criminógenas de conveniência material. Ao longo dessa trajetória global, coletividades são convertidas em mercados, pessoas em consumidores e experiências e emoções em produtos. Tão constante é essa infiltração do capitalismo na vida social, tão difundidos são seus crimes – tanto corporativos quanto interpessoais – que agora parecem permear quase todas as situações.” (FERRELL et al., 2008, p. 14.) É claro que o capitalismo moderno tardio é apenas uma forma de opressão; existem inúmeras outras fontes de crime e desigualdade, incluindo o patriarcado, o racismo, a ascensão do fascismo e a religião institucional e fundamentalista. HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. dossiê “CRiminologia CultuRal” 55 Nesse contexto, a Criminologia Cultural busca novos entendimentos sobre o que constitui (e o que não constitui) resistência significativa entre formas culturais históricas e emergentes. Essa situação complexa exige formas ontologicamente diferenciadas de conhecimento criminológico com as quais a Criminologia Cultural está comprometida. Como na maioria das áreas da Criminologia, os principais progenitores da Criminologia Cultural eram em grande parte homens, e o foco da maioria dos primeiros estudos eram sujeitos masculinos transgressores. Mas o compromisso contínuo da Criminologia Cultural com uma síntese de perspectivas intelectuais construiu e abriu espaço para várias formas de pensamento feminista. Baseando-se no trabalho de Kathy Daly, Meda Chesney-Lind, Susan Caulfield e Nancy Wonders, criminologistas culturais argumentaram que “assim como os fundamentos teóricos da criminologia cultural, os métodos da criminologia cultural são, portanto, ‘feministas’ em suas suposições epistemológicas, sua rejeição da abstração e da universalidade, e sua atenção à textura vivida da cultura e do crime, qualquer que seja o gênero daqueles que os empregam ou daqueles que são projetados para estudar” (FERRELL; SANDERS, 1995, p. 323). O trabalho interseccional emergente nesta área continua a explorar as relações de gênero, sexualidade, etnia e além (NAEGLER; SALMAN, 2016). Além disso, em termos de metodologias, uma abordagem mais criteriosa do método científico social também teria o benefício de quebrar as barreiras existentes entre metodologia quantitativa e qualitativa, incluindo novos focos de análise socioespacial e cartografia. Por exemplo, novos mapas geoetnográficos e afetivos usando barras de informação e outras plataformas visuais interativas estão agora sendo desenvolvidos e podem ser usados para contrariar ou ampliar mapas representacionais tradicionais do crime que simplesmente reproduzem vieses de dados de justiça criminal (por exemplo, a investigação criminológica cultural de Matallana-Villarreal (2010) sobre os crimes dos poderosos em Bogotá). Em segundo lugar, os campos de metadados podem agora ser usados para armazenar informações qualitativas (ou as chamadas “informações contextuais profundas”) que podem ajudar muito na interpretação de mapas (SCHUURMAN, 2009); algo muito útil para aquelas comunidades que são frequentemente alvo de profilings geográficos por análises de crimes GIS estritamente definidas. Outra área possível onde o trabalho quantitativo e qualitativo pode se unir dentro da Criminologia Cultural é a demografia. A Criminologia Cultural pode fornecer uma interpretação alternativa que aumenta nossa compreensão dos relatos demográficos do crime. Assim como as transformações sociais da década de 1960 giraram em torno da combinação de aspiração juvenil e demografia (o chamado “porco na píton” demográfico), hoje estamos diante de um baby boom HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. 56 Revista BRasileiRa de CiênCias CRiminais 2022 • RBCCRIM 193 internacional mais significativo e preocupante. Por exemplo, entre 67 países que estão passando por uma explosão de jovens, 60 deles estão atravessando uma guerra civil ou tumultos em massa regulares. Acrescente a isso a força centrípeta da urbanização em massa e a confusão em torno dos dados demográficos sobre imigração e diáspora, e fica claro que não podemos mais simplesmente entregar assuntos tão importantes para pesquisadores quantitativos. Em vez disso, nosso objetivo deve ser a criação de novos métodos capazes de fundir os melhores aspectos da análise quantitativa com dados coletados de várias esferas qualitativas. A Criminologia Cultural evoluiu de uma intervenção emergente para uma subdisciplina movimentada em um curto espaço de tempo, alternando suas lentes analíticas entre os criminosos de rua mais excluídos e os leviatãs aparentemente invencíveis do crime estatal e da criminalização da exclusão. Sua mensagem, no entanto, permanece relativamente direta: que o poder afeta a maneira como diferentes pessoas interpretam o mundo de diversas maneiras, que essas interpretações afetam a experiência de momentos situados de significado e que todos esses processos retroalimentam uns aos outros com consequências importantes sobre como devemos entender o crime e seu controle. 5. Revisão da liteRatuRa e Fontes PRimáRias Muitas das ideias e temas abordados neste artigo são explorados com mais detalhes em Criminologia cultural – Um Convite (FERRELL et al., 2015)2. Destinado a estudantes de graduação e repleto de inúmeros exemplos e ilustrações – até mesmo uma filmografia –, esta é a introdução mais acessível e abrangente ao campo até o momento e fornece um excelente ponto de partida para pesquisas futuras. Duas outras visões gerais úteis podem ser encontradas na coleção de quatro volumes e 80 artigos de Hayward (2017b) – Cultural criminology na série Critical concepts in criminology da Routledge e Cultural criminology – Theories of crime de Ferrell e Hayward (2011), uma coleção que consolida trabalhos precursores clássicos com exemplos-chave da Criminologia Cultural contemporânea. Um ponto de partida alternativo é a bibliografia anotada de cerca de 100 referências de Criminologia Cultural no Oxford bibliographies online de 2012. Existem várias compilações editadas. A primeira coleção de ensaios intitulada Cultural criminology foi compilada por Ferrell e Sanders em 1995. Neste trabalho (e em artigos de revisão anteriores subsequentes, como Ferrell, 1999), 2. N. T. – Criminologia Cultural: um Convite, de Ferrell, Hayward e Young, foi publicado no Brasil em 2019 e faz parte da coleção Crime, cultura, resistência, da Editora Letramento. HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. dossiê “CRiminologia CultuRal” 57 vemos a Criminologia Cultural em sua manifestação original nos EUA, ou seja, tendendo a se concentrar em subculturas ilícitas, teoria da rotulação e várias formas criminalizadas de música e estilo. Uma coleção posterior de 24 capítulos que se concentrou no crime e na cultura em uma variedade de cenários locais, regionais e nacionais é o livro de Ferrell, Hayward, Morrison e Presdee (2004) Cultural criminology unleashed. Embora mais adequado para estudantes de pós-graduação, a edição especial de 2004 da revista internacional Theoretical Criminology (v. 8, n. 3) também é de interesse. Se a Criminologia Cultural inicial estava preocupada com a política contestada de significado, subcultura e representação da mídia, trabalhos mais recentes buscaram adicionar uma dimensão mais materialista. Ver, por exemplo, City limits – Crime, Consumer Culture and the Urban Experience3 (2004), de Hayward, sobre a relação entre consumismo e criminalidade expressiva; Cultural criminology and the carnival of crime4 de Presdee (2000) sobre a mercantilização do crime e da punição. O trabalho de Hayward e Yar (2006) sobre ‘Chav’s e como o consumismo é agora um locus em torno do qual a exclusão é configurada e os excluídos, identificados e catalogados; e a troca dialógica intencionalmente polêmica sobre crime, cultura e capitalismo entre Jeff Ferrell, Steve Hall e Simon Winlow na revista Crime, Media, Culture (v. 3, n. 1). Ver também Morrison (2006), Hamm (2007) e Hayward (2011) para exemplos de uma emergente Criminologia Cultural do Estado. Da mesma forma, os desenvolvimentos recentes em “lazer desviante” (por exemplo, SMITH; RAYMEN, 2016) e “Criminologia Cultural Verde” (BRISMAN; SOUTH, 2014) ilustram a maneira como a Criminologia Cultural se adaptou para abordar novas áreas de análise associadas à perspectiva de dano social. Uma característica primária da Criminologia Cultural é seu interesse pelas emoções e realidades existenciais associadas à prática de muitos crimes. O trabalho fundamental nesta reconstrução da etiologia experiencial é The seductions of crime (1988), de Jack Katz; um texto que serve de pedra de toque para análises criminológicas culturais subsequentes sobre crime e emotividade, como as de O’Malley e Mugford (1994), Morrison (1995, capítulo 15) e Fenwick e Hayward (2000). A dialética entre excitação e controle também é um grande interesse da Criminologia Cultural, como evidenciado pelo conceito seminal de Stephen 3. N.T.: Crime, cultura de consumo e vivência urbana, de Hayward, foi lançado em 2022 no Brasil, na coleção Criminologia cultural, da Editora EMais. 4. N.T.: Criminologia cultural e o carnaval do crime, de Mike Presdee, será publicado pela Editora EMais na coleção Criminologia Cultural, com previsão de lançamento em 2023. HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. 58 Revista BRasileiRa de CiênCias CRiminais 2022 • RBCCRIM 193 Lyng de “Edgework” (1990, 2005; ver também RAJAH, 2007), e a crítica de Hayward às teorias de escolha racional do crime (2007, 2012). Para introduções acessíveis aos estudantes sobre o interesse da Criminologia Cultural na forma como o crime se embrenha na vida cotidiana, veja os capítulos de Ferrell (2009), Presdee (2009) e Ferrell e Ilan (2013) na segunda e terceira edições do livro da Oxford University Press Criminology (editado por C. Hale et al.). Para exemplos etnográficos de fôlego sobre como criminologistas culturais tentam comunicar a importância criminológica, política, de gênero e teórica do cotidiano, ver Dunier (1999), Ferrell (2006), Miller (2008), Garot (2010) e Ilan (2015). Para exemplos de pesquisa criminológica cultural sobre crime e mídia, veja Framing crime Cultural criminology and the image (HAYWARD; PRESDEE, 2010); o livro de Frankie Bailey e Donna Hale (1998), Popular culture, crime and justice; o livro de Alison Young (2009), The scene of violence; e Criminology goes to the movies, de Nicky Rafter e Michelle Brown (2011) e a revista internacional Crime, Media, Culture (London: Sage), um periódico dedicado a explorar as relações entre crime, justiça criminal e mídia. Finalmente, em termos de metodologia de pesquisa, ver The criminological imagination (2011) de Jock Young e os capítulos 7 (“Contra o método criminológico”) e 8 (“Conhecimento perigoso”) de Criminologia cultural – Um convite (2015). Sobre o aspecto etnográfico da Criminologia Cultural, ver Ethnography at the edge de Ferrell e Hamm (1998) o relato de Ferrell (1997) da verstehen criminológica; e o artigo de Stephanie Kane, The unconventional methods in cultural criminology, na já mencionada Edição Especial de Theoretical criminology – Para introduções à abordagem da Criminologia Cultural ao documentário/criminologia, ver Hayward (2017a) e especialmente o crescente corpo de trabalho de David Redmon (2015a, 2015b; 2016). Para mais exemplos de pesquisa criminológica cultural, os leitores são aconselhados a explorar as referências listadas a seguir: leituRas adiCionais BROWN, M. The culture of punishment. New York, New York University Press, 2009.FERRELL, Jeff. Cultural criminology. Annual Review of Sociology, 25, p. 395-418, 1999. FERRELL, Jeff. Crime and culture. In: HALE, C.; HAYWARD, K.; WAHIDIN, A.; WINCUP, E. (Eds.). Criminology. Oxford: Oxford University Press, 2005/2009. FERRELL, Jeff; HAYWARD, Keith (Eds.). 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Limitações e possíveis contribuições relacionadas à abordagem dos danos sociais, de Marcelo Buttelli Ramos – RBCCrim 173/433-465; e • A concepção ontológica da liberdade individual e seu déficit de verificabilidade para a fundamentação da culpabilidade jurídico-penal, de Bruno Tadeu Buonicore – RBCCrim 163/61-104. HAYWARD, Keith; FERRELL, Jeff; BROWN, Michelle. Traduzido por: KHALED JR., Salah H. Criminologia Cultural. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 193. ano 30. p. 37-65. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2022. DOI: [https://doi.org/10.54415/rbccrim.v193i193.225]. 65