2020 - 02 - 12
Curso de Direito Civil - Vol. 2 - Ed. 2020
CAPA
Capa
PÁGINA I
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PRIMEIRAS PÁGINAS
CURSO DE DIREITO CIVIL
OBRIGAÇÕES - RESPONSABILIDADE
CIVIL - VOLUME 2
Autor
Fábio Ulhoa Coelho
© desta edição [2020]
Thomson Reuters Brasil
Juliana Mayumi Ono
Diretora responsável
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Impresso no Brasil [01-2020]
Universitário Texto
Fechamento desta edição [30.10.2019]
ISBN 978-65-5065-072-8
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FICHA CATALOGRÁFICA
Ficha catalográfica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Coelho, Fábio Ulhoa
Curso de direito civil : obrigações [livro eletrônico] : responsabilidade civil, volume 2 / Fábio
Ulhoa Coelho. -- 2. ed. -- São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2020.
6 Mb ; ePUB
2. ed. em e-book baseada na 8. ed. impressa.
Bibliografia.
ISBN 978-65-5065-072-8
1. Direito civil 2. Direito civil - Brasil 3. Obrigações (Direito) 4. Responsabilidade civil I. Título.
19-31922 CDU-347
Índices para catálogo sistemático:
1. Direito civil 347
Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427
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AGRADECIMENTO
Agradecimento
À Beatriz
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SEGUNDA PARTE - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
SEGUNDA PARTE - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
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PÁGINA RB-1.1
SEGUNDA PARTE - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
CAPÍTULO 13. INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
Capítulo 13. Introdução ao Direito das Obrigações
1. Conceito de Obrigação
Obrigação conceitua-se como o vínculo entre dois sujeitos de direito juridicamente qualificado
no sentido de um deles (o sujeito ativo ou credor) titularizar o direito de receber do outro (sujeito
passivo ou devedor) uma prestação. Os exemplos são inúmeros. Locador e locatário estão unidos
por uma obrigação, em virtude da qual o primeiro pode exigir do segundo o pagamento do aluguel
pelo uso do bem locado. Entre alimentante e alimentado há um vínculo obrigacional que faz deste
credor dos alimentos em face daquele. Quem sofre danos causados culposamente por outra pessoa
titulariza perante esta o direito ao ressarcimento dos prejuízos. A Prefeitura pode cobrar do
proprietário de bem imóvel situado em área urbana o IPTU (imposto predial e territorial urbano).
Em todos esses casos, e em muitos outros, um sujeito (locador, alimentado, vítima, Prefeitura etc.)
é titular do direito de receber uma prestação de outro (locatário, alimentante, causador do dano,
proprietário imobiliário etc.). Aproxima-os uma obrigação.
Neste conceito, pus ênfase no lado ativo da obrigação, ao defini-la como o vínculo que faz de
alguém credor de outra pessoa. Note-se, desde logo, porém, que é possível conceituá-la também
pelo lado passivo da relação. Neste caso, obrigação é definida como o vínculo que faz de um sujeito
de direito devedor de outro. As mesmas relações acima indicadas podem ser também descritas por
este ângulo. Assim, locatário e locador estão unidos por uma obrigação, em virtude da qual o
primeiro deve pagar ao segundo o aluguel. Entre alimentante e alimentado há um vínculo
obrigacional que faz daquele devedor dos alimentos em favor deste. Quem culposamente causa
dano a outra pessoa fica ligado a esta pela obrigação de ressarcir os prejuízos causados. O
proprietário de bem imóvel situado em área urbana está obrigado perante a Prefeitura ao
pagamento do IPTU.
As duas formas de conceituar obrigação – como direito do sujeito ativo ou dever do passivo –
são igualmente adequadas. Aliás, pode-se também definir obrigação compreendendo, no conceito,
simultaneamente os dois polos da relação. Neste caso, a obrigação é o vínculo entre sujeitos de
direito, em que um deles deve cumprir uma prestação de interesse do outro, que, por sua vez, tem
o direito de a receber (Gomes, 1961:10). Independentemente da alternativa adotada, o conceito
será operacional na superação de conflitos de interesses entre credores e devedores.
Quando o devedor cumpre sua obrigação no vencimento, não se verifica entre ele e o credor
nenhum conflito de interesses. Neste caso, aliás, todo o aparato conceitual e tecnológico e as
normas do direito das obrigações serão inúteis. Cumprida a obrigação como devida, não se
estabelece entre os interesses dos sujeitos vinculados nenhum conflito. Este, na verdade, surge
quando o devedor não cumpre a obrigação. Postar-se-á, então, de um lado, o credor interessado
em receber a prestação correspondente e, de outro, o devedor que considera interessante resistir
em cumpri-la. Na sociedade democrática dos nossos tempos, tal conflito só deve ser superado pela
atuação de um complexo sistema social (o Direito). Em outros termos, se a obrigação existir, o
Estado, por meio do Poder Judiciário, reconhecendo o direito do sujeito ativo, acionará seu aparato
repressor para constranger o sujeito passivo a cumprir a prestação.
Apenas como auxiliar na superação de conflitos de interesses entre credor e devedor operam os
conceitos, princípios, normas e elaborações tecnológicas deste ramo do direito civil. As disposições
legais sobre o pagamento, por exemplo, não se aplicam quando o devedor paga a prestação ao
credor e este se dá por satisfeito. Nesta oportunidade, ninguém se socorre do direito das
obrigações. Aplicam-se, na verdade, as normas sobre o pagamento quando o credor questiona a
validade, eficácia ou regularidade do ato de pagar do devedor, ou seja, quando conflitam os
interesses desses sujeitos de direito. Aplicam-se, em outras palavras, se o devedor diz que os atos
por ele praticados caracterizam o pagamento da obrigação – e que, portanto, está já liberado de
seus compromissos –, mas o credor reputa que tais atos não importaram o cumprimento integral
da prestação. O conflito será superado pelo juiz, orientado pelas normas da legislação civil e
auxiliado pela tecnologia civilista. Se os atos praticados pelo devedor correspondem àqueles que a
lei define como pagamento válido, eficaz e regular, o juiz está orientado pela lei a negar ao credor
a pretensão de exigir novamente a prestação. Caso contrário, a orientação é a de que o juiz ampare
o credor nessa pretensão.
Até aqui, ao conceituar obrigação, tem-se falado em dois sujeitos. Na maioria das vezes, isto é
correto, por aproximar o vínculo obrigacional um sujeito de direito de outro. Há, porém,
obrigações que unem mais de dois sujeitos. Quando o pagamento dos aluguéis pelo locatário está,
por exemplo, garantido por fiança prestada por dois amigos, na obrigação que vincula locador e
fiadores, no polo passivo encontram-se mais de um sujeito de direito. Estas obrigações são
chamadas de complexas e suscitam questões próprias (Cap. 14, itens 5 a 7). Para que o conceito de
obrigação compreenda também a circunstância de um mesmo polo da relação obrigacional ser
ocupado por duas ou mais pessoas, deve-se descartar a noção de sujeito de direito e empregar a de
parte.
Obrigação é o vínculo entre duas partes juridicamente qualificado no sentido de uma delas (o sujeito ou
sujeitos ativos) titularizar o direito de receber da outra (o sujeito ou sujeitos passivos) uma prestação.
Parte da obrigação é o centro de referência a interesses essencialmente iguais. É a identidade
dos interesses dos sujeitos participantes da relação jurídica que define as partes. Numa compra e
venda, têm-se sempre duas partes, a compradora e a vendedora, mas cada uma delas pode
corresponder a um ou mais sujeitos de direitos. A parte vendedora tem o interesse de dispor da
coisa objeto de contrato em troca do preço contratado, e a compradora, o de pagar o preço para ter
a coisa. Se o bem vendido pertence em condomínio a mais de um sujeito, todos os proprietários
postam-se, na relação obrigacional, como vendedores. Eles são a parte vendedora, porque têm o
mesmo interesse de trocar a coisa pelo dinheiro correspondente ao preço. A seu turno, se são mais
de um os compradores, formam eles a parte compradora porque têm todos o mesmo interesse de
pagar o preço para ter a coisa.
Obrigação, assim, é o vínculo entre duas partes juridicamente qualificado no sentido de uma
delas (a do sujeito ou sujeitos ativos) titularizar o direito de receber da outra (a do sujeito ou
sujeitos passivos) uma prestação.
2. Execução da obrigação
A execução da obrigação é a realização de seus objetivos. Quando o Direito considera duas
partes ligadas por um vínculo obrigacional tem em mira determinadas finalidades. Quando a
obrigação deriva de declarações intencionais de vontade das partes (negócio jurídico), o objetivo é
ditado por estas. Destina-se, assim, a compra e venda a fazer com que o comprador tenha a coisa
que quer e o vendedor receba, por ela, o preço contratado. Executada a obrigação correspondente
a este contrato, atingem as partes o que pretendiam ao contratar.
Nem sempre o objetivo da obrigação corresponde ao querido pela parte. Se o motociclista
atropela culposamente o pedestre, surge entre eles uma obrigação em razão da qual o primeiro
torna-se devedor da indenização dos danos que causou ao segundo. A finalidade dessa obrigação
é, aqui, fixada pela lei: recomposição dos danos do ato ilícito, com a reparação da vítima e a
punição do culpado. É irrelevante se o motociclista quer ou não pagar as perdas e danos sofridos
pelo pedestre derivados do atropelamento. Provavelmente não; mas, tanto faz, terá que cumprir a
obrigação de modo a se realizar a finalidade buscada pela ordem jurídica.
Execução da obrigação é a realização dos seus objetivos, fixados pelas partes ou pela lei. A expectativa do
credor – e, em certo sentido, da própria sociedade – é a de que a obrigação seja executada por pura iniciativa
do devedor, isto é, através da entrega espontânea da prestação (execução voluntária).
Espera-se que o devedor cumpra a obrigação, entregando a prestação ao credor, de forma
espontânea. É a execução voluntária, traduzida pelo cumprimento do dever pelo sujeito passivo
exclusivamente em consideração ao direito do sujeito ativo e, portanto, sem a necessidade de
atuação do aparelho repressor do Estado. Nem sempre, porém, essa expectativa (que não é só do
credor, mas presumivelmente de toda a sociedade) se realiza. Numa parcela pequena, mas
significativa, dos casos, o devedor não executa voluntariamente a obrigação. Não entrega a
prestação a que ficou obrigado pelo negócio jurídico ou pela lei. Quando isso acontece, o credor
tem que buscar a satisfação de seu direito em juízo. O Estado, por meio do aparato judicial, forçará
o devedor a cumprir a obrigação, com vistas a garantir a concretização das finalidades desta. A
execução não será então voluntária, mas judicial.
Deste modo, se o devedor não cumpre a obrigação, o credor tem o direito de acionar o aparato
repressivo do Estado (pelos instrumentos próprios estudados em direito processual civil) para
obter sua satisfação forçada. Esta se dá, em última instância, pela expropriação de bens do
patrimônio do devedor. Se Antonio emprestou a Benedito a quantia de R$ 10.000,00, sob a condição
de este a restituir em 60 dias, estabelece-se entre eles uma obrigação. Em razão dela, Benedito fica
vinculado a Antonio; quer dizer, vencido aquele prazo e não sendo feito o pagamento do
empréstimo, poderá ter, depois de cumpridas as regras processuais pertinentes, um ou mais bens
de sua propriedade penhorados por ordem do juiz. Estes bens serão, em seguida, também
mediante a observância das regras processuais aplicáveis, vendidos em hasta pública (isto é, num
leilão promovido pelo Poder Judiciário, que recebe, por vezes, a denominação de praça). Com o
produto da venda judicial desses bens, o juiz determina que se paguem a Antonio os R$ 10.000,00
objeto do empréstimo e mais os valores a que ele faz jus em virtude do inadimplemento da
obrigação (Cap. 18).
O objetivo da execução judicial é possibilitar ao credor receber exatamente a prestação devida,
concretizando-se assim as finalidades da obrigação fixadas pela lei ou pelas partes. A execução da
obrigação em juízo, em outros termos, deve procurar assegurar a entrega ao credor da mesma
prestação que ele receberia na hipótese de execução voluntária. Sendo a prestação uma quantia
em dinheiro – como no caso das obrigações do mutuário, comprador, contribuinte, alimentante,
culpado por danos etc. –, atende satisfatoriamente a este desiderato a expropriação de bens do
devedor e sua venda judicial para o subsequente pagamento ao credor.
Quando a prestação não consiste na entrega de dinheiro, mas de coisa diversa, ou mesmo se ela
envolve uma ação ou omissão do devedor, não é sempre possível fazer com que o credor receba,
na hipótese de inadimplemento do devedor, exatamente o que esperava. Quando o juiz pode
determinar providências que importam a entrega ao credor da exata prestação objeto da
obrigação inadimplida, realiza-se a execução específica. Se o vendedor do imóvel, após o
pagamento de todas as parcelas do preço pelo comprador, recusa-se a outorgar-lhe a escritura
pública de compra e venda, indispensável, em regra, ao registro de transferência da propriedade
imobiliária, o juiz pode determinar a realização do ato formal, substituindo com sua decisão a
declaração da parte inadimplente. Neste caso, o credor (comprador do imóvel) acaba recebendo
exatamente a mesma prestação objeto da obrigação, ou seja, a escritura apta a viabilizar a
transmissão da propriedade. Realiza-se, assim, precisamente o objetivo da obrigação.
Há hipóteses, contudo, em que descabe a execução específica. O Judiciário não tem como
assegurar sempre ao credor a entrega da mesma prestação que adviria da execução voluntária da
obrigação. É o caso de impossibilidade material, de qualquer ordem, que obsta a execução
específica. Se o consumidor adquire um eletrodoméstico de certa marca e modelo que manifesta,
depois de algum tempo, defeito de fabricação, tem ele o direito de exigir do fornecedor a sua
substituição por outro igual. Mas, se a marca ou modelo em questão não existe mais no mercado, é
impossível ao fornecedor entregar ao consumidor exatamente a prestação contratada. Nestes
casos, quando materialmente possível, a lei assegura ao credor o resultado mais próximo que
adviria do cumprimento voluntário da obrigação. No exemplo, o consumidor pode reclamar em
juízo a substituição do seu produto defeituoso por outro de mesma espécie, embora de marca ou
modelo diversos (CDC, art. 18, § 1.º, I). Não é exatamente a mesma prestação, mas outra apta a
produzir resultado próximo ao cumprimento espontâneo da obrigação. Neste caso, verifica-se a
execução judicial subsidiária por prestação equivalente.
Vezes há, por fim, que é impossível até mesmo a entrega ao credor de prestação que assegure
resultado equivalente ao da execução voluntária. Há situações em que a oportunidade única para
a entrega da prestação passa e não há como recuperá-la. A perda irremediável da oportunidade
ocorre principalmente se a obrigação é personalíssima, por não poder ser cumprida por ninguém
mais além do próprio devedor. Se o empresário, por exemplo, contrata o cantor de jazz para
apresentação durante um grande evento de música jazzística, obriga-se o artista a comparecer no
local do espetáculo no horário apropriado, subir ao palco e cantar. Não cumprindo o cantor sua
obrigação no tempo e lugar avençados, torna-se impossível a entrega da prestação, tal como
contratada, ao empresário credor. Não há, em outros termos, nenhuma providência que o juiz
possa decretar capaz de produzir resultados equivalentes ao da execução voluntária. Em casos
tais, não havendo como impor ao devedor a entrega de prestação que leve a resultado equivalente
– já que, no exemplo, não é o caso de se promover outro evento do mesmo porte só para que o
artista faltoso se apresente –, ela é substituída pela indenização em dinheiro. O credor que não
pode receber a prestação objeto da obrigação, nem outra de resultados equivalentes, deve ser
compensado pelo prejuízo que sofreu. É a hipótese de execução judicial subsidiária por
indenização.
Quando a obrigação não é executada por pura iniciativa do devedor, o credor pode obter, em juízo, o seu
cumprimento forçado. Em princípio, a lei procura assegurar ao credor prestação jurisdicional que lhe
proporcione o mesmo resultado que adviria da execução voluntária (execução específica). Caso não seja isto
possível, procura assegurar-lhe o resultado mais próximo ou a indenização em dinheiro (execução
subsidiária).
Caso o devedor não pague a indenização fixada pelo juiz, tem lugar a expropriação de bens de
seu patrimônio, com as consequências já assinaladas: venda destes bens em juízo e pagamento ao
credor com o produto da venda.
A execução voluntária da obrigação corresponde, em geral, à forma menos custosa – individual
ou socialmente falando – de se realizarem os objetivos pretendidos pelas partes ou fixados pela lei.
O devedor que cumpre espontaneamente a obrigação não se sujeita ao pagamento dos acréscimos
contratuais ou legais (juros, multa, honorários de sucumbência e custas do processo). Quer dizer, a
menos que não disponha dos recursos para tanto, costuma ser mais vantajoso, para ele, a execução
voluntária. Para o credor, é óbvio que o recebimento da prestação no prazo e modo devidos
corresponde à melhor alternativa econômica. Verificada a execução voluntária, o credor não
precisa buscar em juízo a satisfação de seu crédito, antecipando custas e honorários advocatícios,
nem procurar, como muitas vezes ocorre, obter de terceiros, por mútuo ou financiamento, os
recursos de que disporia caso houvesse sido cumprida tempestivamente a obrigação pelo devedor.
Para a sociedade, também é a execução voluntária das obrigações a opção menos custosa de se
cumprirem as finalidades destas, porque ela libera o aparato repressivo estatal para outras tarefas
de maior urgência (repressão ao crime, p. ex.).
3. Elementos da Obrigação
São três os elementos da obrigação: sujeitos, prestação e vínculo.
Sujeitos da obrigação. A obrigação é um vínculo jurídico entre sujeitos, isto é, uma relação
jurídica. Nem todos os vínculos importantes para o Direito aproximam sujeitos. Há outros
juridicamente qualificados que aproximam, por exemplo, sujeitos e coisas. Quando se examina o
direito de propriedade não pelo ângulo do conflito de interesses entre o titular do direito e os que
têm o dever de o respeitar, mas pelo do aproveitamento econômico dos bens, dá-se destaque ao
vínculo entre o proprietário e a coisa objeto de domínio. Há, por outro lado, vínculos jurídicos
entre coisas. O bem acessório, por exemplo, está vinculado ao principal. Entre eles há um vínculo
juridicamente qualificado que faz com que o primeiro dependa do segundo (CC, art. 92).
Convém assinalar que somente os vínculos entre sujeitos de direitos podem ser chamados de
relação jurídica. Entre sujeitos e coisas e entre coisas, há vínculos, porque o Direito os liga para
determinados efeitos, mas não há relação jurídica. Este é o entendimento predominante na
tecnologia jurídica. E, embora alguns autores definam o direito real, em contraposição ao
obrigacional, como uma relação jurídica entre sujeito e coisa (Gomes, 1957:99), não se deve
empregar esse conceito senão na identificação de vínculos entre sujeitos, como as obrigações.
Os sujeitos da relação obrigacional agrupam-se em partes, segundo o critério da proximidade
dos interesses. Em sua estrutura mais simples, a obrigação une duas partes (credor e devedor),
correspondendo cada uma a um sujeito de direito diferente. Antonio é locador e titulariza o crédito
pelo aluguel; Benedito é locatário e deve o pagamento deste. O primeiro é a parte credora; o
segundo, a devedora. Mas, como já destacado (item 1), a uma parte da obrigação podem
corresponder, em estruturas mais complexas, dois ou mais sujeitos. Carlos e Darcy são
coproprietários do imóvel, e o vendem a Evaristo e Fabrício. Os dois primeiros, em razão da
proximidade dos interesses que têm (ambos querem dispor do bem em troca do preço), integram
uma das partes da obrigação; os dois últimos, também por terem interesses próximos (querem
dispor do preço em troca do bem), a outra parte.
Os sujeitos da obrigação são identificados segundo a posição que nela ocupam. Sujeito ativo é o
que titulariza o crédito; passivo, o que deve a prestação. Deste modo, na relação obrigacional
correspondente aos alimentos, por exemplo, o alimentante é o sujeito passivo e o alimentado, o
ativo (este é credor dos alimentos devidos por aquele). Nos negócios jurídicos bilaterais ou
plurilaterais, a identificação dos sujeitos varia de acordo com o aspecto da obrigação que adquire
relevo. Neles, as partes são simultaneamente ativas e passivas. No exemplo do parágrafo anterior,
Carlos e Darcy são sujeitos ativos no que diz respeito ao pagamento do preço, mas são sujeitos
passivos no tocante à obrigação de transferir o domínio da coisa vendida. A seu turno, Evaristo e
Fabrício são sujeitos passivos relativamente ao pagamento do preço e ativos, quanto à
transferência da propriedade do bem.
Os sujeitos da relação obrigacional são identificados de acordo com a posição que nela ocupam. Os que
titularizam o direito (crédito) são os sujeitos ativos; os que devem a prestação (débito), os sujeitos passivos.
Cabe relembrar que sujeito de direito é conceito mais amplo que o de pessoa. São sujeitos, para
o Direito, todos os seres aptos a titularizar direitos ou deveres. Entre os sujeitos, incluem-se as
pessoas, seres genericamente autorizados a praticar todos os atos e negócios jurídicos para os
quais não haja proibição. As pessoas podem ser físicas (homens e mulheres) ou jurídicas
(associações, fundações, sociedades empresárias, Estados etc.). Quando os sujeitos de direito não
são pessoas, não podem praticar os atos e negócios jurídicos em geral, mas apenas aqueles
inerentes às suas finalidades (quando existem estas) ou expressos na lei. São sujeitos de direito
despersonificados o nascituro, a massa falida, o condomínio edilício etc. (Cap. 6). Todos os sujeitos
de direito estão aptos a se vincular, uns com os outros, por obrigação. O condomínio edilício pode
ser credor de sociedade empresária, pelas contribuições condominiais devidas em razão da
propriedade de unidade autônoma do prédio de escritórios; o Estado pode ser devedor de
indenização a pessoa física, em razão dos danos causados pelo veículo conduzido por funcionário
público; a associação por titularizar crédito perante a fundação, em decorrência de contrato e
assim por diante.
Prestação. O objeto da obrigação é a prestação por que se obriga o sujeito passivo. É, assim,
sempre uma conduta do devedor, uma ação ou omissão dele. A conduta do sujeito passivo
correspondente à prestação realiza as finalidades da obrigação estabelecidas pelas próprias partes
ou pela lei.
A prestação pode ser positiva ou negativa. No primeiro caso, é uma ação do devedor, que se
obriga a dar ou fazer algo; no segundo, é uma omissão, obrigando-se o devedor a não fazer
determinado ato. A prestação positiva, por sua vez, pode ter por objeto coisa ou comportamento.
Na primeira hipótese, o devedor se obriga a dar um bem ao credor; na segunda, a fazer algo, isto é,
prestar um serviço ou agir de determinada maneira (Gil, 1983:98/102).
Não se confundem os objetos da obrigação e da prestação. O da obrigação é sempre a prestação
do devedor, enquanto o objeto da prestação é a coisa ou conduta devida pelo sujeito passivo. Na
compra e venda, por exemplo, são objetos da obrigação as prestações por que se obrigam
comprador e vendedor. Por sua vez, o objeto da prestação do comprador é o dinheiro
correspondente ao preço e o da do vendedor, o domínio do bem vendido. Deve-se notar, contudo,
que é usual mencionar-se como objeto da obrigação o da prestação, numa espécie de abreviatura.
Não há nenhum problema nisto. Assim, ouve-se com frequência, por exemplo, que o objeto da
obrigação correspondente à compra e venda é a coisa vendida (quando, a rigor, são as prestações
do comprador e do vendedor).
A prestação pode ser positiva ou negativa. No primeiro caso, o sujeito passivo se obriga a dar ou fazer
algo ao ativo; no segundo, obriga-se a não praticar determinado ato.
Assim como a parte, no vínculo obrigacional, pode ser referida a dois ou mais sujeitos de
direito, também o objeto da prestação pode ser duas ou mais coisas, dois ou mais comportamentos,
uma coisa e um serviço etc. O objeto da obrigação da oficina mecânica perante o proprietário do
veículo avariado, por exemplo, é o de vender as peças para substituição e prestar os serviços de
reparo.
A prestação não pode ser indeterminável. O sujeito ativo só pode exigir o cumprimento da
obrigação, e o passivo só a pode cumprir, se a coisa ou conduta for passível de individuação. Em
outros termos, a prestação pode ser determinada ou determinável. No primeiro caso, desde o
nascimento do vínculo obrigacional, sabem as partes com exatidão a coisa ou conduta a ser
prestada e exigida; no outro, a individuação da prestação faz-se por novo negócio jurídico,
unilateral ou bilateral, no momento da execução da obrigação (Cap. 14, item 2).
Vínculo. Para que o vínculo juridicamente qualificado entre duas pessoas seja uma obrigação é
necessário que ostente, em primeiro lugar, a característica da patrimonialidade. Esta marca é
relacionada à mensurabilidade em dinheiro. Quando falta patrimonialidade ao vínculo jurídico
entre sujeitos de direito, não se configura este como obrigação. É o caso do parentesco, por
exemplo. O vínculo entre pai e filho é juridicamente qualificado, une apenas sujeitos, gera direitos
e deveres, mas não tem a natureza de uma obrigação. E não a tem exatamente por não apresentar
esse vínculo a marca da patrimonialidade. O direito do pai de orientar a educação do filho menor,
assim como o do filho de suceder o pai em caso de falecimento decorrem do vínculo de parentesco
existente entre eles. Esses direitos e os respectivos deveres não são passíveis de quantificação
monetária; sua constituição e execução não importam mutações patrimoniais (item 6).
Além da patrimonialidade, todo vínculo que a obrigação estabelece entre credor e devedor
ostenta uma outra característica essencial: trata-se de um vínculo de sujeição, de submissão. Na
obrigação, o devedor fica sujeito ao credor. Quer dizer, ele deve entregar ao credor a prestação
objeto da obrigação. Se não o fizer, tem o credor meios legítimos para forçar a entrega da
prestação ou, pelo menos, para obter uma adequada e completa compensação pelo
descumprimento da obrigação. Tais meios são os que o Estado põe, de acordo com o ordenamento
jurídico em vigor, à disposição dos sujeitos de direito.
O vínculo obrigacional caracteriza-se pela patrimonialidade e sujeição do devedor ao credor. Outros
vínculos juridicamente qualificados, por não apresentarem uma ou outra destas características, não podem
ser rigorosamente chamados de obrigação. É o caso, por exemplo, do vínculo de parentesco.
A submissão imposta ao devedor pela obrigação, bem entendido, não significa, nas democracias
contemporâneas, constrangimento à sua liberdade pessoal. De há muito, aliás, devedor sujeita-se
ao credor num sentido meramente patrimonial. Certo que, nos primórdios da civilização ocidental,
o devedor que não pagava sua dívida podia tornar-se escravo do credor. Na Roma Clássica, até a
edição da Lex Poetelia Papiria, em 428 a.C., era esse o meio legítimo de satisfazer o direito do
credor e punir o devedor inadimplente (Pereira, 1962:14). Na obrigação, assim, a sujeição é
patrimonial e não pessoal. Note-se que há, ainda hoje, vínculos jurídicos em que uma das partes
está submetida à outra pessoalmente. O poder familiar, por exemplo, corresponde a um vínculo de
parentesco em razão do qual os filhos menores devem obediência aos pais e estão sujeitos a estes
num sentido claramente não patrimonial.
Quando se destaca a sujeição do devedor como marca característica do vínculo obrigacional,
está-se fazendo, portanto, mera referência ao direito de o credor pleitear em juízo a
responsabilização patrimonial do primeiro. Trata-se, a rigor, da sujeição do patrimônio do devedor
à satisfação do direito do credor. Diz-se, deste modo, que a garantia do credor é o patrimônio do
devedor. Ao obrigar-se por qualquer razão (negócio jurídico, fato jurídico ou ato ilícito), o sujeito
de direito inexoravelmente oferece como garantia do cumprimento da obrigação os bens de seu
patrimônio. Existem, é certo, alguns bens que a lei expressamente exclui, em determinadas
hipóteses, dessa garantia. Assim o bem de família (imóvel residencial próprio do casal ou entidade
familiar – Lei n. 8.009/90), os absolutamente impenhoráveis (vestuário, seguro de vida, salários e
demais listados no art. 833 do CPC), os gravados com a cláusula de inalienabilidade e outros não
podem ser expropriados judicialmente para a satisfação dos direitos dos credores. Excetuados
esses bens, porém, todos os demais do patrimônio do devedor, em valor equivalente ao da
obrigação, servem de garantia ao credor, enquanto não executada a obrigação.
A obrigação, portanto, importa a sujeição do devedor no sentido de que, uma vez não cumprida
espontaneamente a prestação correspondente (execução voluntária), pode o credor exigir em juízo
a entrega desta tal como esperada (execução judicial específica), sua substituição por uma
prestação equivalente capaz de produzir os mesmos resultados ou por uma indenização em
dinheiro (execução judicial subsidiária).
4. Classificação das Obrigações
Classificam-se as obrigações segundo diversos critérios. Os mais importantes e operacionais são
os seguintes.
a) Negocial ou não negocial. Este critério de classificação deriva da fonte imediata da obrigação.
Negocial é a originada da vontade das partes e não negocial, a decorrente de fato jurídico ou ato
ilícito.
A fonte mediata de qualquer obrigação é sempre a lei (cf. Noronha, 2003, 1:343/345). Qualquer
vínculo entre dois ou mais sujeitos só é obrigação porque assim o qualifica a lei. Há vínculos
intersubjetivos ignorados pelas normas legais, como a amizade entre dois antigos colegas de
universidade. O vínculo existe, provoca emoções, evoca lembranças, mas não tem nenhuma
relevância jurídica. Claro que se está considerando apenas um vínculo de coleguismo. Se a
amizade entre duas pessoas é muito grande, o direito já qualifica esse vínculo definindo, por
exemplo, como suspeito o testemunho judicial de uma delas em favor da outra (CPC, art. 447, § 3.º,
I).
O que torna o vínculo entre credor e devedor uma obrigação é o fato de a lei assim o qualificar,
assegurando ao primeiro o direito de responsabilizar o segundo. Quando a lei não qualifica certo
vínculo como obrigação, o sujeito ao qual é devida a prestação não pode acionar o aparato judicial
para constranger o outro à sua entrega. Veja as obrigações de etiqueta. Normas do cavalheirismo
contemporâneo dizem que é elegante o homem dar preferência à mulher em situações triviais do
cotidiano (entrar no elevador vazio, sentar-se à mesa no restaurante etc.). Os vínculos
intersubjetivos correspondentes a essas regras não são juridicamente qualificados. O homem não
tem a obrigação, no sentido jurídico do termo, de ser cavalheiro, nem a mulher tem meios para
submetê-lo a isso.
Percebe-se, deste modo, que a fonte última de qualquer obrigação é sempre a norma legal
vigente na ordem jurídica aplicável ao caso. A execução do contrato pode ser obtida em juízo
apenas porque uma lei o assegura. Se a vontade das partes fosse, por si, suficiente para gerar
obrigações, qualquer contrato, mesmo os de objeto ilícito, vinculariam as partes ao seu
cumprimento. Não é assim, porém. Se duas pessoas livres e conscientemente contratam um ilícito,
não surge nenhuma obrigação porque a lei não qualifica este vínculo como tal. A obrigação
negocial, portanto, embora decorra imediatamente de contrato ou declaração unilateral, tem como
fonte mediata – assim como qualquer outra obrigação – a norma legal. A classificação aqui
enfocada, por isso, diz respeito à fonte imediata. A obrigação negocial é a que decorre
imediatamente do encontro de vontade das partes e a não negocial, de fato jurídico ou ato ilícito.
A obrigação pode constituir-se em razão da vontade das partes expressa em negócio jurídico (obrigação
negocial) ou de outro fato jurídico ou ato ilícito (obrigação não negocial). Nos dois casos, porém, a fonte
última da obrigação será sempre a lei.
São negociais as obrigações do comprador (pagar o preço ao vendedor), locatário (pagar o
aluguel ao locador), mutuário (pagar o mutuante), fiduciário (transferir o domínio do bem
alienado ao fiduciante ao término do contrato), depositário (devolver o bem depositado ao
depositante) etc. Obrigam-se estes sujeitos à respectiva prestação em razão do contrato que
voluntariamente celebram.
São não negociais, por sua vez, as obrigações do contribuinte (pagar o imposto à Fazenda
Pública), infrator (pagar a multa administrativa), alimentante (pagar alimentos ao alimentado),
condômino (pagar sua parte no rateio de despesas do condomínio), do empresário (indenizar os
acidentes de consumo, mesmo sem ser o culpado por eles) etc. Nestes casos, não se obrigam esses
sujeitos diretamente por uma declaração de vontade, mas simplesmente por ter a lei estabelecido
que um fato jurídico os torna obrigados. Estes fatos são, nos exemplos acima, respectivamente, o
subsumível à hipótese de incidência tributária, a infração administrativa, o vínculo de parentesco
conjugado com a necessidade do alimentado e a disponibilidade do alimentador, a divisão da
propriedade e a exploração de atividade empresarial. Além dos fatos jurídicos, também atos
ilícitos dão origem a obrigações não negociais. Deste modo, o culpado por danos tem a obrigação
de indenizar os prejuízos da vítima.
Os sujeitos de uma relação obrigacional não negocial até podem estar vinculados, também, por
um negócio jurídico, mas este não é a fonte da obrigação. Quando o médico é obrigado a indenizar
o cliente por danos derivados de sua imperícia, esta obrigação não tem por fundamento o contrato
de prestação de serviços existente entre as partes, mas a culpa do profissional no desempenho de
suas funções.
A relevância desta classificação está relacionada à extensão da prestação. Na negocial, são as
declarações intencionais de vontade emitidas pelos sujeitos da relação obrigacional que a definem.
Na superação de qualquer conflito de interesse relacionado à execução da obrigação negocial, o
conteúdo das declarações das partes será, assim, decisivo para delimitar-lhe a extensão. Se o
mutuário declarou sua concordância em pagar juros ao mutuante à taxa superior à SELIC, o valor
desta obrigação decorre da declaração emitida. Nas obrigações negociais, prevalece, em princípio,
o que foi contratado entre os sujeitos. A execução apenas não se fará de acordo com as declarações
emitidas (oralmente, eletronicamente ou por escrito) se alguma norma legal cogente dispuser em
contrário. Além disso, a lei supletiva apenas se aplica na definição da extensão da obrigação
negocial quando houverem se omitido as partes na contratação de um ponto em particular.
Já na não negocial, a extensão da obrigação é estabelecida exclusivamente por critérios gerais
previstos em norma legal. O valor de um imposto é o resultante da aplicação da alíquota fixada na
lei sobre uma base de cálculo também legalmente definida. A importância que o culpado pelos
danos deve pagar à vítima é a correspondente ao que ela perdeu e razoavelmente deixou de
ganhar (CC, art. 402). Os alimentos devem ser fixados em função das necessidades do alimentado e
dos recursos do alimentante (CC, art. 1.694, § 1.º). O reembolso do acionista calcula-se pelo valor
patrimonial da ação a menos que o estatuto preveja sua fixação pelo valor econômico (Lei n.
6.404/76, art. 45). São os parâmetros da lei que balizam a extensão da obrigação não negocial.
Alguns doutrinadores chamam de convencional ou contratual a obrigação negocial e de legal e
extracontratual, a não negocial. São expressões, aliás, largamente difundidas no meio tecnológico e
profissional. Tecnólogos como Orlando Gomes (1961:29/30) e Fernando Noronha (2003, 1:21/22),
porém, mostram como são procedentes as críticas à locução “contratual” para identificar as
obrigações nascidas diretamente da vontade das partes. De fato, não apenas dos contratos nascem
essas obrigações, mas também de declarações unilaterais de vontade (Cap. 19). A menção, neste
Curso, a “obrigações contratuais” é feita sempre com referência às nascidas de um específico
negócio jurídico, o contrato.
b) Delitual ou não delitual. A obrigação delitual surge em razão da prática de ato ilícito pelo
sujeito passivo. Se o motorista não para no cruzamento da via em que trafega com uma
preferencial, incorre em ato ilícito. Tão só por esta conduta, que configura infração tipificada no
Código Brasileiro de Trânsito, ele já se torna devedor de uma obrigação (multa). Se, em razão dessa
mesma conduta, provoca um acidente de trânsito, o seu ato ilícito dará origem, também, à
obrigação de indenizar os prejuízos causados.
A obrigação não delitual, por sua vez, surge de fato ou negócio jurídico. Pertencem a esta
categoria as obrigações do contribuinte, do objetivamente responsável por certos danos, do
alimentante e as derivadas de contrato. O contribuinte torna-se devedor do imposto quando se
verifica o fato jurídico descrito na lei como hipótese de incidência tributária (Ataliba, 1977; alguns
autores chamam-no fato gerador). Assim, o hotel obriga-se a pagar o imposto sobre serviços (ISS)
sempre que o hóspede remunera a estada. O objetivamente responsável por certos danos é
obrigado a indenizá-los quando se verificam os fatos previstos na norma legal que estabelece a
responsabilidade. O empresário, neste contexto, é devedor da indenização pelos acidentes de
consumo causados pelos seus produtos ou serviços, mesmo se não agiu com culpa (isto é, mesmo
que não tenha incorrido em ato ilícito). Sua obrigação surge também de um fato jurídico (vender
produtos ou prestar serviços ao mercado). O alimentante também tem sua obrigação constituída
pela ocorrência de um fato jurídico. Quando determinados parentes estão em estado de
necessidade e a condição econômica do alimentante permite que ele os ajude, este fato gera a
obrigação de alimentar.
A obrigação pode constituir-se em razão de o devedor ter incorrido em ato ilícito (obrigação delitual) ou
em decorrência de negócio jurídico ou fato jurídico (obrigação não delitual). No primeiro caso, ela equivale a
uma sanção; no segundo, não apresenta este traço.
Por fim, os contratantes também assumem obrigações não delituais. Aqui, a obrigação não
nasce de fato jurídico, mas de negócio jurídico, isto é, de declaração intencional de vontade. Como
é nulo qualquer negócio jurídico com objeto ilícito (CC, art. 166, II), a obrigação dele emanada é
necessariamente não delitual.
A obrigação delitual é sempre não negocial, enquanto a negocial é sempre não delitual.
A importância desta classificação está relacionada à natureza sancionadora da obrigação
delitual. O sujeito passivo de obrigação desta categoria agiu com culpa e por isso se tornou
devedor da prestação. Fez o que não poderia ter feito ou deixou de fazer o que deveria ter feito; de
um modo ou de outro, incorreu num ilícito e deve sofrer a sanção por isso. Entre as medidas
sancionadoras, encontra-se a obrigação delitual. Ao seu turno, o sujeito passivo de obrigação não
delitual não agiu com culpa. Obrigou-se em razão da verificação de um fato jurídico ou pela
declaração intencional de vontade emitida. A imputação da obrigação, neste caso, não tem caráter
de pena.
No passado, a doutrina classificava certas obrigações como quase delito, categoria em que
abrigava as derivadas de condutas não intencionais do devedor, como a de indenizar danos
causados por negligência, imprudência ou imperícia (cf. Rodrigues, 2002, 2:9). Este conceito,
porém, não tem sido mais empregado pela tecnologia civilista (Gomes, 1961:27/28).
c) Simples ou complexa. Esta classificação diz respeito à estrutura da obrigação. Simples é
aquela em que um único devedor se vincula a um só credor para a entrega de apenas uma
prestação. Complexa é a obrigação em que há mais de um devedor, mais de um credor ou mais de
uma prestação.
Se Antonio, viajando pela internet, adquire, na página da Microsoft, a versão atualizada de seu
programa de navegação, a obrigação derivada desse negócio jurídico é simples. Há um só devedor
(Antonio), um só credor (Microsoft) e uma só prestação (preço do programa). Por sua vez, se
Benedito e Carlos, coproprietários de diversos apartamentos num edifício residencial, vendem-nos
todos para Darcy e Evaristo, a obrigação é complexa, pois são dois sujeitos em cada parte, e o
objeto compreende várias coisas. Outro exemplo: o jornalista divulga que dois políticos fizeram
uma negociação ilegal e criminosa; se a informação divulgada for inverídica, ele é devedor da
indenização pelos danos morais causados a ambos os caluniados.
A complexidade da obrigação pode dizer respeito a uma das partes, às duas ou ao objeto da
prestação. Quando Fabrício janta no restaurante G, a obrigação deste envolve a venda de alguns
bens (aperitivo, refeição, vinho etc.) e a prestação de vários serviços (guarda do automóvel,
preparo da comida, serviço do vinho etc.). A obrigação é, neste caso, complexa em razão do objeto.
Quando Hebe compra o pacote de viagem na agência de turismo, obrigam-se perante ela vários
sujeitos (companhia aérea, operador dos traslados, hotel etc.). Aqui, a obrigação é complexa em
razão dos sujeitos. Note-se que se o objeto da prestação é único, mesmo se for integrado por partes
separáveis, a obrigação é simples. Se adquiro a biblioteca jurídica de um famoso jurista, é simples
a obrigação derivada, porque não diz respeito à entrega de muitos livros, mas sim de um conjunto
ordenado de livros.
A obrigação pode ser simples ou complexa. É simples quando possui um só devedor, um só credor e uma
só prestação. É complexa, por sua vez, quando possui multiplicidade de sujeitos ou de objeto.
Esta classificação é útil porque determinadas normas legais só se aplicam às obrigações
complexas. Quando a complexidade diz respeito ao objeto, a lei se preocupa em definir, por
exemplo, se devem ser entregues todas as prestações ou se uma das partes escolhe a devida entre
duas ou mais. Na complexidade relativa aos sujeitos, a lei procura, em princípio, simplificar o
vínculo obrigacional, dividindo o objeto em tantas partes quantos forem os sujeitos (concursu
partes fiunt), estabelecendo regras para a execução da obrigação quando a divisão não é possível.
d) Cumulativa ou alternativa. Esta classificação diz respeito às obrigações com objeto complexo,
isto é, de multiplicidade de objetos. Cumulativa é a obrigação que tem mais de uma prestação por
objeto (diversas coisas ou vários serviços), encontrando-se o sujeito passivo obrigado a entregá-las
todas. Alternativa, por sua vez, a obrigação correspondente a mais de uma prestação, em que o
sujeito passivo está obrigado a entregar uma delas somente.
Imagine que Irene adquira na loja de móveis um sofá, duas poltronas e mesa de centro com o
objetivo de compor um conjunto de sala. Esta é uma obrigação cumulativa, já que a loja deve
entregar todos os bens objeto do contrato. Já, se João contratou seguro de seu automóvel, com a
cláusula que permite à seguradora, em caso de dano significativo, consertar o veículo ou pagar seu
valor de mercado, a obrigação desta é alternativa. A seguradora está dando regular execução ao
seguro entregando a João qualquer uma das duas prestações (conserto ou dinheiro).
Na obrigação alternativa, a escolha da prestação pode caber ao credor ou ao devedor,
dependendo do que eles contrataram. Por outro lado, distingue-se este tipo de obrigação das
facultativas. Nestas, o devedor deve entregar ao credor uma determinada prestação, mas pode
optar por outra liberando-se do mesmo modo. Na bolsa de futuro, vendedores de mercadorias
(commodities) têm sempre a possibilidade de, na data da liquidação da operação, em vez de
entregar o bem negociado (café, soja, minério, petróleo, dólar etc.), pagar em dinheiro a diferença
das cotações, quando estas são inferiores às da data do contrato. Aqueles vendedores, quando
oscilam os preços para baixo, têm a faculdade de não entregar a prestação por que se obrigaram,
mas outra. As distinções entre obrigação alternativa e facultativa, embora um tanto sutis, têm
desdobramentos concretos na superação de conflitos de interesse. O estudo aprofundado da
obrigação alternativa, bem como de suas diferenças com a facultativa, será feito mais à frente
(Cap. 14, item 5).
As obrigações complexas em razão da multiplicidade do objeto podem ser cumulativas ou alternativas.
Na primeira hipótese, o sujeito passivo deve entregar ao ativo todas as prestações referidas; na segunda,
apenas uma delas (a ser escolhida por ele ou pelo sujeito ativo).
A relevância da classificação é fácil de divisar. Quando a obrigação é cumulativa, o sujeito
passivo não estará inteiramente liberado se entregar ao ativo um só dos objetos da prestação.
Estaria, contudo, caso a obrigação fosse alternativa, e coubesse a ele, devedor, a escolha da
prestação.
e) Divisível ou indivisível. Divisíveis são as obrigações cuja prestação é material e juridicamente
repartível entre os sujeitos; indivisíveis, as demais. A classificação segundo a divisibilidade da
prestação é pertinente apenas às obrigações complexas em razão do sujeito – isto é, as que
vinculam múltiplos credores a um devedor, um credor a múltiplos devedores ou mesmo múltiplos
devedores a múltiplos credores.
Não costuma haver dificuldades no emprego desta classificação. Basta conferir se o objeto da
obrigação é suscetível de divisão, tanto sob o ponto de vista físico como jurídico, sem perda de
valor. Se o objeto da obrigação for dinheiro, por exemplo, ela será sempre divisível; se for uma
imensa gleba de terra, será normalmente divisível; se for uma pedra preciosa, será indivisível.
A utilidade deste critério de classificação está relacionada à possibilidade de simplificação. O
objetivo da lei é simplificar, sempre que possível, a obrigação complexa. Assim, sendo material e
juridicamente cabível, a obrigação complexa em relação aos sujeitos deve ter sua prestação
repartida. Se são vários os sujeitos passivos, cada um deverá responder por parte da prestação; se
vários os ativos, cada um terá direito sobre uma parcela. Esta simplificação, porém, só cabe nas
obrigações divisíveis (CC, art. 257). Quando não há como proceder à repartição da prestação entre
os sujeitos, em virtude de óbice material ou jurídico, a obrigação é indivisível e insuscetível de
simplificação. Neste caso, sua execução sujeita-se a regras próprias (Cap. 14, item 6).
As obrigações complexas em função dos sujeitos classificam-se em divisíveis ou indivisíveis, de acordo
com a natureza da prestação. Se o bem ou serviço a que se obrigou o sujeito passivo perante dois ou mais
sujeitos ativos pode ser material e juridicamente dividido, a obrigação é divisível; caso contrário, indivisível.
f) Real ou pessoal. Esta é uma classificação que, a exemplo da que separa a negocial da não
negocial (letra a), também elege como critério orientador a fonte da obrigação. Reais são as
obrigações originadas da titularidade, pelo sujeito passivo, de direito real sobre determinado bem;
pessoais, as demais.
As obrigações reais (também conhecidas como “obrigações propter rem”) são não negociais,
porque se constituem em razão de um fato jurídico que é, em geral, a propriedade de um bem. O
sujeito passivo não emite nenhuma declaração de vontade específica no sentido de assumir certa
obrigação, mas torna-se devedor desta em decorrência de sua condição de proprietário, isto é, de
titular de direito real sobre uma coisa. Obrigação real, por exemplo, é a do condômino de pagar a
contribuição condominial.
A mudança na titularidade do direito real gerador da obrigação importa alteração do sujeito
passivo. A obrigação real está ligada ao bem correspondente de tal modo que segue a sorte deste.
Quem adquire, assim, apartamento num edifício torna-se devedor das contribuições condominiais
relativas àquela unidade, não havendo como se liberar dessa obrigação perante o condomínio.
A obrigação real é a contrapartida, por assim dizer, do direito real. Quem titulariza este tornase sujeito passivo daquela. Por outro lado, o estudo dos casos normalmente indicados pela
doutrina como exemplo de obrigações reais (Rodrigues, 2002, 2:79/85) acomoda-se melhor nos
capítulos dedicados ao direito das coisas (v. 4 deste Curso). Por esse motivo, nos relativos ao Direito
das Obrigações, cuido apenas das obrigações pessoais, quer dizer, das que surgem em razão de
negócio jurídico, ato ilícito ou fato jurídico diferente de titularidade de direito real. Esta definição,
de ordem exclusivamente didática, justifica a classificação.
g) Dar, fazer ou não fazer. Esta é uma das mais úteis classificações das obrigações. Diz respeito
também à natureza da prestação, dando relevo, de um lado, à ação ou omissão do devedor e, de
outro, à entrega de coisa ou observância de comportamento. A obrigação é de dar quando o
devedor se obriga à ação de entregar uma coisa ao credor; é de fazer, quando se obriga a praticar
determinado ato ou prestar serviços; é, por fim, de não fazer, quando se obriga a adotar
determinada conduta omissiva.
As obrigações de dar subdividem-se em obrigações de transferir o domínio (ou de dar, em
sentido estrito), de entregar e de restituir. A obrigação do comprador de pagar o preço da coisa
adquirida é de dar, pois implica a transferência do domínio do dinheiro ao vendedor. A do locador
de passar a posse ao locatário, no início do contrato de locação, é de entregar, porque a posse lhe
será devolvida ao término do vínculo locatício. A do mutuário de pagar o mutuante é exemplo de
obrigação de restituir, já que está dando de volta o que havia recebido ao contratar o mútuo. A do
cirurgião plástico de realizar a operação estética é clara obrigação de fazer. Por fim, a do alienante
do estabelecimento empresarial no sentido de não se restabelecer no mesmo ramo durante algum
tempo, para não competir com o adquirente, é obrigação de não fazer, porque ele se obriga a
omitir determinada conduta.
As obrigações podem ser, de acordo com o conteúdo da prestação, de dar, fazer ou não fazer. Nas de dar,
o devedor obriga-se a transferir o domínio, entregar ou restituir ao credor um bem; nas de fazer, obriga-se a
certo ato ou prestação de serviço; e nas de não fazer, a omitir uma conduta.
Note que, no rigor da lógica, esta classificação é bastante criticável. O entregar de uma coisa
não deixa de ser um fazer. Não fazer algo, por outro lado, é o mesmo que fazer o contrário, e viceversa. Para a tecnologia jurídica, porém, ela é pertinente e deve ser feita segundo a ótica do
interesse do credor. Se o que interessa ao sujeito ativo é a coisa, independentemente do que tenha
que fazer o sujeito passivo para entregá-la, a obrigação é de dar; mas, se o que lhe interessa é certo
comportamento do devedor, a obrigação é de fazer (cf. Gomes, 1961:38).
A relevância desta classificação reside no regime próprio que o Código Civil reserva a cada
categoria. As obrigações de dar estão disciplinadas nos arts. 233 a 246; as de fazer, nos arts. 247 a
249; e as de não fazer, nos arts. 250 e 251 (Cap. 14, itens 2 a 4).
h) De meio ou de resultado. As obrigações de fazer dividem-se em obrigaçõesde meio ou de
resultado de acordo com a natureza da prestação. A diferença é mais facilmente percebida quando
o sujeito passivo está obrigado contratualmente a prestar um serviço, porque, dependendo da
natureza deste, sua liberação do vínculo obrigacional pode verificar-se com a mera conduta
correspondente ao serviço contratado ou apenas quando determinado efeito for produzido. No
primeiro caso, a obrigação é de meio; no segundo, de resultado (Monteiro, 2001:54/55).
A obrigação do advogado de contencioso é típica de meio. Ao assumir a defesa de cliente num
processo judicial, ele não se compromete a obter o ganho da causa. Compromete-se, isto sim, a
empregar diligentemente no patrocínio dos interesses de quem o contratou todos os meios
processuais disponíveis (contestar, requerer e produzir provas, recorrer etc.). Se o advogado
negligencia no acompanhamento do caso e perde o prazo para o recurso, por exemplo, ele deixa de
cumprir sua obrigação de meio. Mas, se a decisão final é desfavorável ao seu cliente, não se lhe
pode imputar qualquer descumprimento da obrigação só por este fato, já que não se obrigou por
determinado resultado.
Já a obrigação do engenheiro civil é de resultado. Se o proprietário contrata o engenheiro para
gerenciar a construção de um imóvel residencial de acordo com determinado projeto, este último
somente se considera liberado da obrigação quando entregar ao primeiro a casa construída tal
como projetada. Não terá cumprido sua obrigação apenas com a execução dos serviços gerenciais
da obra. Para o engenheiro se liberar do vínculo obrigacional, o resultado de seus serviços deve
ser exatamente o imóvel residencial projetado.
Mesmo se a obrigação de fazer é não negocial, cabe distingui-la em obrigação de meio ou de
resultado. O vendedor, por exemplo, desde que se tenha obrigado a transferir o domínio da coisa,
deve zelar por sua guarda. Esta é uma obrigação de meio, já que, perecendo a coisa vendida sem
sua culpa, não estará obrigado a indenizar o comprador (Monteiro, 2001:63). Concorrer lealmente
é outro exemplo de obrigação não negocial de meio (Comparato, 1978:533).
Esta classificação é importante no exame do cumprimento das obrigações assumidas pelo
prestador dos serviços, quando o resultado não corresponde às expectativas nutridas pelo
contratante (tomador). Se, em razão da natureza da prestação, o devedor compromete-se a
produzir determinado resultado, o credor tem o direito de exigi-lo. Caso contrário, o credor pode
apenas exigir os melhores esforços do devedor na tentativa de obter o resultado desejado. É
importante, igualmente, no campo da responsabilidade civil, em que norteia a verificação de
imperícia do profissional que dá ensejo à constituição da obrigação de indenizar.
i) Pura ou condicional. Pura é a obrigação em que a entrega da prestação pelo sujeito passivo
não se encontra sujeita a condição. Ela é, por isso, exigível pelo sujeito ativo tão logo constituída (à
vista) ou, se for o caso, desde que decorrido o tempo contratado (a prazo). A obrigação que o
culpado pelos danos tem de indenizar a vítima é pura e pode ser exigido o seu cumprimento
imediatamente após o evento danoso. Também a obrigação do locatário de pagar o aluguel
normalmente é pura, mas só pode ser exigido o seu cumprimento pelo locador após o decurso do
prazo estabelecido no contrato (p. ex., no dia 10 do mês seguinte).
A obrigação é condicional quando a entrega da prestação pelo sujeito passivo está sujeita ao
implemento de condição. São desta categoria apenas as obrigações negociais. Se as partes
contratam que o sujeito passivo somente está obrigado se ocorrer determinada condição
(suspensiva) ou que ele deixará de sê-lo caso esta se verifique (resolutiva), o sujeito ativo não pode
exigir o cumprimento fora dessas hipóteses (sobre condição, ver Cap. 10, item 7).
j) Líquida ou ilíquida. Líquida é a obrigação plenamente determinada em sua extensão; ilíquida,
a que, embora existente, não foi ainda devidamente quantificada (cf. Diniz, 2003:109/111). Quando
o consumidor adquire um eletrodoméstico, assume a obrigação de pagar o valor anunciado desse
produto, e nada mais. A obrigação é líquida, porque o valor do pagamento a que se obriga o
consumidor é preciso, representa determinada quantidade de reais. Mas, se Luís causa acidente de
trânsito de que derivam danos ao automóvel de Mário, obriga-se a pagar-lhe o conserto do veículo.
Desde a verificação do ato ilícito, a obrigação já existe, mas será ilíquida enquanto não se definir o
valor das despesas correspondentes. A liquidação dependerá, por exemplo, de orçamentos
levantados em oficinas idôneas.
Também as obrigações negociais podem ser ilíquidas. Comprador e vendedor podem, por
exemplo, estabelecer apenas os critérios do preço, sem quantificá-lo. Neste caso, a iliquidez
corresponde ao confessado intento das partes e deve, por alguma razão, interessar-lhes.
Todas as obrigações ilíquidas devem ser previamente liquidadas antes de seu cumprimento.
Há, por outro lado, determinadas hipóteses de extinção de obrigações que dizem respeito
unicamente às líquidas (é o caso da compensação).
l) Principal ou acessória. Finalmente, a obrigação pode ser principal ou acessória, segundo
tenha, ou não, existência independente em relação à outra. Trata-se de critério de classificação que
considera as obrigações reciprocamente (Diniz, 2003, 2:189). A obrigação de pagar o valor
mutuado, por exemplo, é principal em relação à de pagar os juros; esta é acessória daquela. A
obrigação do fiador, outro exemplo, é acessória em relação à do afiançado.
A obrigação acessória segue, em princípio, a sorte da principal: se prescrever a pretensão do
credor relativamente à obrigação principal, prescreve também a relativa à acessória.
5. Obrigações imperfeitas
Obrigação foi definida como o vínculo entre duas partes juridicamente qualificado no sentido
de uma delas (o sujeito ativo) titularizar o direito de receber da outra (o sujeito passivo) uma
prestação (item 1). Assentou-se, por outro lado, que são características essenciais desse vínculo a
patrimonialidade e a sujeição do devedor ao credor. Por sujeição entende-se a possibilidade de o
credor obter a execução judicial (específica ou subsidiária) da obrigação, quando o devedor recusa
a voluntária (item 3). Pois bem, fixadas tais premissas, é inescapável afirmar que não configura
obrigação o vínculo jurídico em que o titular do direito de receber a prestação não dispõe de ação
judicial para obter sua execução forçada. Em outros termos, uma vez adotados os conceitos
indicados de obrigação e sujeição, no rigor do raciocínio lógico, se o credor não pode acionar o
aparato judiciário do Estado para que se cumpram as finalidades do vínculo obrigacional, deve-se
considerar que este não existe.
Há, porém, certos fatos disciplinados pela lei (fatos jurídicos, portanto), em que se apresentam
vínculos entre sujeitos de direito com características muito próximas às da obrigação. Se alguém
normalmente auxilia uma associação de caridade com o pagamento de um valor mensal, este fato
cria um vínculo entre o filantropo e a entidade pia: ela nutre a expectativa de contar,
mensalmente, com aquela ajuda. O vínculo entre eles pode ser eventualmente qualificado em lei
no sentido de autorizar o pagador a deduzir de seu imposto de renda a quantia paga. Mas, por
certo, não está tal vínculo qualificado juridicamente no sentido de assegurar à associação de
caridade o direito de continuar recebendo a mesma quantia mensal, caso o filantropo suspendalhe o pagamento ou a reduza. Trata-se, por assim dizer, de um vínculo de ordem moral o que
corresponde à expectativa da associação de contar mensalmente com aquela contribuição
filantrópica. Não é, seguramente, um vínculo obrigacional.
Também o cavalheirismo, a etiqueta, a honra, o empenho da palavra e mesmo as avaliações de
oportunidade (oportunismo) geram vínculos não obrigacionais. Espera-se, em razão deles, que
determinada pessoa aja de uma certa maneira, ainda que não possa ser judicialmente forçada a
fazê-lo.
Obrigação imperfeita é o fato jurídico que apresenta características semelhantes à obrigação, isto é, um
vínculo entre dois sujeitos. Falta-lhe, porém, um dos elementos essenciais da obrigação que é a sujeição do
devedor ao credor. Na obrigação imperfeita, o sujeito ativo não tem ação judicial contra o passivo para obter
sua execução.
Em razão da semelhança entre esses vínculos não obrigacionais e as obrigações (em ambos,
têm-se dois sujeitos ligados por uma prestação), a tecnologia chama-os de obrigações imperfeitas
(Gomes, 1961:79/80). Existindo uma consistente expectativa (no plano individual e social) de que
alguém dê, faça ou não faça algo, sem que se lhe possa exigir isso judicialmente, o vínculo entre
essa pessoa e o beneficiário da prestação aproxima-se da obrigação, mas não é obrigação. Talvez
conviesse designar esses vínculos não obrigacionais por termo diverso, mas a tecnologia jurídica
não se tem dedicado a pesquisá-lo. O importante é ter presente que, embora chamados obrigações,
esses vínculos não podem ser considerados obrigacionais por faltar ao sujeito ativo o direito de
obter em juízo sua execução forçada.
A obrigação natural é uma espécie de obrigação imperfeita; não é, portanto, obrigação (cf.
Noronha, 2003, 1:225/230). Sob este conceito reúnem-se fatos jurídicos com as seguintes
características: a) configuram-se como uma relação jurídica entre credor e devedor; b) a relação
jurídica importa mutações patrimoniais (patrimonialidade); c) o credor espera receber a prestação
do devedor, em função de expectativas socialmente difundidas; d) o credor não tem direito de ação
judicial para obter a prestação.
Quando presentes esses requisitos, em suma, o fato jurídico correspondente é chamado de
obrigação natural. A consequência legalmente estabelecida para este fato é a irrepetibilidade do
pagamento (CC, art. 882). Quer dizer, se o devedor de uma obrigação natural executa-a
voluntariamente, entregando a prestação ao credor, a lei considera válido o pagamento. O devedor
não poderá, neste caso, pleitear a devolução (repetição, em termos técnicos) do que pagou. Por
outra via, o pagamento de obrigação natural não é pagamento indevido. Se o credor, mesmo não
tendo meios de exigir a execução judicial da obrigação, acabou recebendo o que lhe era devido,
não está obrigado a restituir ao devedor a quantia recebida.
São exemplos de obrigação natural no direito brasileiro:
a) Dívida de jogo ou aposta. O jogo e a aposta são contratos. No primeiro, os jogadores podem
disputar em função do acaso: o que for favorecido pela sorte deve ser pago pelos demais, que
sofrem o azar. No segundo, apostadores disputam em função de opiniões sobre o resultado de
evento futuro: o que vir sua opinião confirmada deve ser pago pelos demais. A loteria de números
é um jogo; ganha quem tem a sorte de assinalar, no instrumento apropriado, os mesmos números
que os sorteados. Já a loteria esportiva é uma aposta; ganha quem puder antecipar corretamente o
resultado das partidas de futebol indicadas no volante.
Os jogos e apostas são, no direito brasileiro, de três categorias: proibidos (ou ilícitos), permitidos
e regulados. Entre os proibidos, está, por exemplo, o jogo do bicho, cuja prática é contravenção
penal que sujeita os infratores a prisão, de 6 meses a um 1 ano, e multa (Decreto-Lei n. 6.259/44,
art. 58); entre os permitidos, pode-se citar o jogo de cartas na casa de familiares ou amigos, o bingo
beneficente da associação de caridade, o bolão entre colegas de escritório às vésperas de
campeonato mundial de futebol; entre os jogos e apostas regulados, por fim, estão as diversas
loterias organizadas pela Caixa Econômica Federal, e a aposta em cavalos feita em jóquei-clubes.
A obrigação natural é uma hipótese de obrigação imperfeita porque o titular do direito não tem ação
judicial contra o devedor. Se, contudo, este proceder ao cumprimento voluntário da prestação, o credor não
estará obrigado a restituir o que recebeu. São exemplos de obrigações naturais no direito brasileiro a dívida
de jogo ou aposta, o empréstimo para o jogo ou aposta, o pagamento de juros não convencionados ou de
dívida prescrita.
A obrigação dos jogadores e apostadores perdedores de pagar o vencedor é natural. De acordo
com o art. 814 do Código Civil, as dívidas desses contratos não obrigam a pagamento. Se o
perdedor, porém, pagar espontaneamente o vencedor, não poderá exigir a devolução do
pagamento (salvo se for menor ou interdito ou tiver havido dolo do credor).
Note-se que esta regra só se aplica aos participantes do jogo ou aposta. Não se aplica, atente-se,
à relação entre estes e a entidade organizadora de jogo regulado. Quando alguém faz suas apostas
na loteria esportiva da Caixa Econômica Federal, não está celebrando com esta instituição
financeira nenhum contrato de aposta. O contrato, na verdade, é feito com todos os demais
apostadores daquela série; a Caixa Econômica Federal apenas administra a aposta, recolhendo
antecipadamente o pagamento dos participantes e entregando o valor devido ao acertador ou
acertadores. Também o jóquei-clube não é apostador ou jogador, mas organizador de jogo ou
aposta regulados. Entre os participantes do jogo ou aposta e as entidades organizadoras
estabelece-se um vínculo contratual diverso, sujeito ao Código de Defesa do Consumidor. As
entidades prestam serviço aos participantes do jogo ou aposta e, por isso, não se submetem ao art.
814 do CC. Em consequência, o jogador ou apostador vitorioso tem crédito perante as entidades de
organização do jogo ou aposta regulados, e pode, sem obstáculo nenhum, promover a execução
deste em juízo.
b) Empréstimo para jogo ou aposta. Também é obrigação natural a decorrente de empréstimo
feito para jogo ou aposta, no ato de apostar ou jogar (CC, art. 815). Imagine que Antonio está
jogando pôquer com seus amigos na casa de Benedito e tem em mãos cartas do mesmo naipe em
sequência (straight flush). É uma boa mão. Suponha-se, contudo, que Carlos, a quem cabe a
preferência, cacifou a rodada em valor que Antonio não possui. Com a licença dos presentes, ele
liga de seu telefone celular para Darcy, expõe-lhe a situação e pede-lhe dinheiro emprestado para
continuar o jogo. Darcy concorda e envia-lhe imediatamente a quantia solicitada. Entre Antonio e
Darcy constitui-se uma obrigação natural. Independentemente do resultado daquela rodada (na
verdade, Carlos tinha em mãos cartas de igual naipe em uma sequência finalizada em Ás, royal
flush, e ganhou), Darcy não poderá exigir de Antonio, em juízo, a devolução do dinheiro
emprestado.
Se o mutuário de empréstimo para jogo ou aposta proceder ao pagamento espontâneo do valor
mutuado, o mutuante não é obrigado a restituí-lo.
A caracterização legal da dívida de jogo ou aposta e do empréstimo para jogo ou aposta como
obrigações naturais é a forma hipócrita que a ordem jurídica brasileira encontrou para procurar
desmotivar sua prática.
c) Obrigações prescritas. A prescrição, estudou-se (Cap. 12), é uma hipótese de extinção de
direito pela inércia do titular em exercê-lo durante certo prazo. Segundo a lei brasileira, extinguese, com a prescrição, a pretensão, isto é, o direito de promover a ação judicial para obter, à força, a
conduta que não foi voluntariamente observada pelo devedor. Quando se fala em “obrigações
prescritas”, está-se referindo, no rigor dos conceitos tecnológicos, às obrigações cujo sujeito ativo
não pode mover mais nenhuma ação judicial para receber a prestação, porque deixou transcorrer
o prazo legal para fazê-lo e, então, viu sua pretensão prescrever.
O devedor, na obrigação prescrita, não pode mais ser forçado judicialmente a prestar o devido,
nem corre o risco de ter seu patrimônio expropriado para satisfação do direito do credor. Trata-se,
portanto, de inequívoca obrigação natural. Se, a despeito disso, der cumprimento voluntário à
obrigação, não poderá posteriormente pleitear a devolução do que pagou (CC, art. 882).
d) Juros não estipulados. O mútuo, que é o contrato de empréstimo de bens fungíveis (CC, art.
586), pode ter ou não fins econômicos. Quando tem, presumem-se devidos os juros (CC, art. 591);
quando não, presume-se gratuito. No mútuo sem fins econômicos, portanto, o mutuante tem
direito de receber de volta o emprestado em igual quantidade, gênero e qualidade, mas não tem,
em princípio, direito a nada a título de remuneração pelo empréstimo. Se o pai empresta dinheiro
ao filho, surge um mútuo sem fins econômicos. Caso não tenha sido expressamente pactuado entre
eles o pagamento de juros, em razão da presunção de gratuidade, considera-se que estes não são
devidos. A obrigação de remunerar o empréstimo, nesta hipótese, é natural. O pai não pode exigir
em juízo o pagamento dos juros. Se o filho os pagar, porém, não poderá reclamá-los de volta.
Além dessas hipóteses, também são mencionadas como exemplos de obrigação natural as do
pagamento do resíduo após o cumprimento da recuperação judicial, da dívida desconsiderada por
sentença injusta irrecorrível e da obrigação do devedor favorecido pela presunção legal de
pagamento não efetuado. Sérgio Carlos Covello denomina essas hipóteses de obrigações naturais
atípicas, por não se encontrarem especificamente previstas na lei (1996:131/139).
6. Obrigação e patrimônio
Patrimônio é o conjunto de bens (incluindo os direitos) e dívidas titularizado por determinado
sujeito de direito. No patrimônio, encontram-se as coisas materiais de propriedade do sujeito
(imóveis, veículos, equipamentos etc.), bens imateriais (direito autoral, patente de invenção, nome
de domínio na internet etc.), além de seus créditos e débitos perante outros sujeitos. Costuma-se
desdobrar o patrimônio em dois elementos: ativo e passivo. No ativo, reúnem-se os bens de
propriedade do sujeito e os direitos que titulariza; no passivo, suas dívidas. Patrimônio líquido é a
diferença entre o ativo e o passivo de um sujeito de direito. Se Antonio tem seu patrimônio
desdobrado em ativo no valor de R$ 100.000,00, e passivo, no de R$ 35.000,00, o seu patrimônio
líquido é de R$ 65.000,00. Quando o passivo supera o ativo, diz-se que o patrimônio líquido é
negativo. Note-se, desde logo, que nem todo elemento do patrimônio de um sujeito é
contabilizável. Os direitos imateriais integram o ativo de seu titular, para todos os efeitos jurídicos,
mas nem sempre são ou podem ser apropriados pela contabilidade. O conceito jurídico de
patrimônio é mais amplo que o contábil.
Qualquer obrigação pode importar repercussões patrimoniais, tanto para o sujeito ativo como
para o passivo. Em termos mais precisos, a obrigação produz ou pode produzir mudanças no
patrimônio das partes nela envolvidas, isto é, tem aptidão para gerar mutações patrimoniais. Se
Benedito é dono de um imóvel residencial, este é um dos elementos de seu ativo. Na hipótese de ele
o vender a Carlos, a obrigação correspondente a esse contrato de compra e venda importará uma
mutação no patrimônio de Benedito: o imóvel deixará de integrá-lo e passará a integrá-lo o
dinheiro recebido pela venda. Note-se que também gerará esta mesma obrigação uma mutação
inversa no patrimônio de Carlos: o imóvel em questão passará a fazer parte do ativo e deixará de
integrá-lo o dinheiro pago pelo bem.
Mesmo nas obrigações de fazer ou não fazer, a obrigação repercute no patrimônio das partes.
Quando o advogado é contratado para promover demanda judicial em favor de seu cliente,
nascem dois vínculos obrigacionais: de um lado, o vínculo em que ele, advogado, é o devedor dos
serviços e o cliente, credor; de outro, aquele em que as posições ativas e passivas invertem-se e o
advogado é credor dos honorários devidos pelo cliente. Somente este último importa mutação
patrimonial direta; isto é, com a constituição da obrigação de fazer, surge desde logo, no ativo do
advogado, o direito à remuneração e no passivo do cliente, a dívida correspondente. O primeiro
vínculo, no entanto, repercute indiretamente no patrimônio das partes, na medida em que o
advogado, se não prestar os serviços contratados, deve indenizar os prejuízos sofridos pelo cliente.
A obrigação de indenização derivada do descumprimento da de fazer acarreta mutação
patrimonial representada por um débito no patrimônio do advogado e um crédito no do cliente.
Atente-se que a constituição do vínculo obrigacional (a prática do negócio jurídico, a verificação
do ato ilícito ou do fato jurídico etc.) já pode acarretar mutações no patrimônio tanto do sujeito
ativo como do passivo da obrigação. Se Darcy toma dinheiro emprestado do banco, desde o
surgimento da obrigação, torna-se devedora (mutuária) da quantia emprestada. Do seu
patrimônio, passa a constar a dívida perante o banco (mutuante), tão logo ela entre na posse do
dinheiro objeto de mútuo. O mesmo negócio jurídico gera, também, imediata mutação no
patrimônio do banco, que passa a ter, no patrimônio, o crédito titularizado perante Darcy. Por
outro lado, a execução da obrigação (voluntária, judicial específica ou judicial subsidiária) também
gerará novas mutações no patrimônio dos sujeitos envolvidos. Assim, quando Darcy pagar ao
banco o empréstimo, deixará de figurar do patrimônio dela a dívida, assim como também deixará
de existir no do banco o crédito.
A constituição, execução ou inexecução das obrigações podem implicar mutações nos patrimônios dos
sujeitos ativo e passivo.
Desdobra-se, viu-se, o patrimônio em ativo e passivo. Os bens de propriedade do sujeito e os
direitos que titulariza albergam-se no ativo e suas dívidas, no passivo. Como as obrigações podem
repercutir no patrimônio tanto do credor como do devedor, integram, dependendo da posição do
titular do patrimônio na relação obrigacional, o ativo ou o passivo dele. Quer dizer, a obrigação
pode fazer parte tanto de um como de outro elemento do patrimônio, dependendo de como se
posta o respectivo sujeito no vínculo obrigacional. Assim, constituída certa obrigação, o sujeito
ativo, que é o credor, passa a ter no seu ativo o crédito correspondente; e o sujeito passivo, que é o
devedor, passa a ter no seu passivo o débito derivado da referida obrigação. As obrigaçõesativas
são aquelas em que o sujeito titular do patrimônio é credor (sujeito ativo); correspondem aos seus
créditos. Já as obrigações passivas são aquelas em que o sujeito titular do patrimônio é devedor
(sujeito passivo); correspondem aos seus débitos.
Algumas relações obrigacionais geram para cada parte tanto obrigações ativas como passivas,
entrecruzando-se direitos e deveres. Isto se verifica, por exemplo, nos contratos bilaterais a prazo.
Imagine-se que Benedito e Carlos houvessem contratado a compra e venda do imóvel mediante o
parcelamento do preço. Especificamente, eles se vincularam por um compromisso de compra e
venda. Neste caso, mesmo que a posse do bem seja desde já transferida ao promitente comprador
(como é usual), a propriedade só o será após o pagamento integral de todas as prestações. Mas a
constituição da obrigação (pela celebração do compromisso), por si só, desencadeia já mutações
patrimoniais para os promitentes. Benedito, promitente vendedor, passa a incorporar a seu ativo o
crédito correspondente ao preço do imóvel, e ao passivo o dever de, em recebendo integralmente o
valor deste, transferi-lo à propriedade de Carlos. Por sua vez, com a celebração do compromisso,
Carlos, promitente comprador, passa a ter, em seu passivo, o débito correspondente às prestações
do preço contratado, e, no ativo, o direito de se tornar proprietário do bem após o pagamento
destas. Como se vê, tanto a parte promitente vendedora como a promitente compradora
experimentam, nos ativos e passivos de seus patrimônios, mutações derivadas da constituição da
obrigação. Pois bem, uma vez cumprindo Carlos a obrigação de pagar todas as prestações
contratadas no compromisso de compra e venda, e Benedito a de transferir-lhe a propriedade do
imóvel compromissado, extingue-se a obrigação. Veja que repercute a extinção da obrigação nos
respectivos patrimônios, tanto no ativo como no passivo de cada parte. Do de Benedito, saem o
dever de transferir o imóvel e o crédito pelas prestações e entra o dinheiro recebido de Carlos; do
de Carlos, por sua vez, saem o dinheiro correspondente ao preço e o débito perante Benedito e
entra o imóvel adquirido.
Há obrigações em que o entrecruzamento de créditos e débitos não existe. Nas derivadas de
declaração unilateral de vontade (o credor por enriquecimento indevido não tem obrigação
nenhuma perante seu devedor), nas oriundas de responsabilidade civil (a vítima tem apenas
direitos a exercer em face do agente causador dos danos) e mesmo nalguns contratos unilaterais
(na doação, só o doador é sujeito passivo), o vínculo obrigacional é um só.
Em suma, qualquer obrigação – em sua constituição, execução ou inexecução – importa diretas
ou indiretas mutações patrimoniais, verificáveis tanto no ativo de uma das partes correlacionado
ao passivo da outra, como no ativo e passivo de ambas.
7. Significados da expressão “obrigação”
Obrigação é expressão ambígua. Pode ser corretamente empregada em dois sentidos diferentes.
No primeiro significado, denota a situação de quem se pode exigir certa prestação. Emprega-se a
expressão neste significado em frases como: o locatário tem a obrigação de pagar o aluguel; uma
das obrigações do proprietário de imóvel é pagar o IPTU; o causador do dano que deixa de pagar a
indenização à vítima descumpre sua obrigação etc. Este é o sentido de obrigação que corresponde
ao mais difundido. Nela, a expressão é sinônima de um dos significados de dever (item 8).
No seu segundo significado, obrigação é, como conceituado acima, o vínculo entre duas partes
qualificado juridicamente no sentido de uma delas poder exigir da outra determinada prestação
(item 1). Emprega-se obrigação neste significado nas seguintes frases: a obrigação locatícia implica
o direito do locador ao recebimento do aluguel; nasce a obrigação tributária correspondente ao
IPTU pelo fato gerador da propriedade imobiliária; entre o causador do dano e a vítima estabelecese obrigação não negocial.
Obrigação é expressão ambígua. Seu primeiro significado é o de dever (p. ex.: “o comodatário tem a
obrigação de restituir o bem recebido em comodato”); o segundo é o de vínculo de sujeição do devedor ao
credor (p. ex.: “a obrigação locatícia surge do contrato de locação”).
Embora a doutrina aponte o segundo significado como sendo o mais técnico (cf., por todos,
Pereira, 1961:8), é usual, no meio profissional e acadêmico do direito, empregarem-se os dois. Esta
ambiguidade, ao contrário de muitas outras, não deve ser objeto de maiores preocupações, porque
facilmente se consegue perceber, a partir do contexto, o sentido em que se emprega a expressão.
Neste Curso de direito civil, usam-se os dois significados. Quando o contexto não permitir a
imediata superação da ambiguidade, emprego obrigação passiva para designar o primeiro sentido
acima apontado (situação daquele de quem se pode exigir uma prestação).
8. Obrigação e dever
Patrimonialidade é o atributo da obrigação representado pela mensurabilidade em dinheiro da
prestação (Gil, 1983:187/189). Quer dizer, as obrigações são patrimoniais não pelas mutações que
podem trazer aos patrimônios do credor e devedor, mas por serem seus objetos expressos em
quantia monetária (dívida de dinheiro) ou pelo menos suscetíveis desta quantificação (dívida de
valor). O atributo da patrimonialidade, cuja pertinência é questionada por certa doutrina
(Noronha, 2003, 1:40/50), distingue a obrigação do dever.
Em outros termos, a obrigação, além de poder acarretar repercussões no patrimônio dos
sujeitos de direito envolvidos, tem por objeto prestação – ainda que representada por um fazer ou
não fazer do devedor – sempre passível de mensuração em dinheiro, direta (na execução) ou
indiretamente (na inexecução). Não há obrigação sem esta característica. É o atributo da
patrimonialidade que a distingue de outros vínculos de sujeição entre as pessoas qualificados pelo
Direito. Estes outros vínculos de sujeição não revestidos de patrimonialidade devem ser chamados
de dever, para não se confundirem dois institutos jurídicos bem distintos (Gomes, 1961:21).
Dever é, tal como obrigação, uma expressão ambígua; isto é, possui dois sentidos igualmente
técnicos e apropriados para a tecnologia jurídica. No primeiro, equivale a obrigação passiva.
Assim, quando se diz que alguém tem um dever, isto significa que está obrigado a dar, fazer ou
não fazer alguma coisa. Este é o sentido largo de dever, em que o conteúdo da expressão não se
distingue do da obrigação. Pode-se afirmar, em decorrência, sem incorrer em equívoco técnico,
que o devedor tem o dever ou a obrigação de pagar o credor. As duas hipóteses estão corretas.
No segundo sentido, dever denota o vínculo de sujeição entre pessoas sem patrimonialidade. O
jovem de dezoito anos tem o dever de prestar serviço militar, no sentido de que está sujeito a
vínculo com o Estado de que decorre a imposição de o homem, no ano em que completar aquela
idade, comparecer à circunscrição militar para alistamento. Este dever, porém, não integra o
passivo do patrimônio do rapaz. O vínculo correspondente ao dever simplesmente não tem
nenhuma implicação para o patrimônio da pessoa a ele sujeita. Este é o sentido estrito da
expressão.
No direito civil, há exemplo de dever na disciplina do casamento. Os cônjuges têm recíproco
dever de amparo. Estão, um perante o outro, ligados por este vínculo de sujeição, em razão do qual
podem exigir recíproca observância de determinados comportamentos. Esses vínculos, porém,
malgrado a sujeição, não repercutem no ativo ou passivo dos cônjuges e não são mensuráveis em
pecúnia.
Dever, em sentido estrito, é o vínculo jurídico entre duas pessoas, em razão do qual uma delas fica sujeita
à outra, mas sem o traço da patrimonialidade. Pessoas casadas, por exemplo, tem, uma perante a outra, o
dever de amparo.
A obrigação natural, atente-se, não é, como visto, obrigação mas também não é um dever. Do
fato de não poder o credor exigir judicialmente o adimplemento do devido não se segue sua
extrapatrimonialidade. Ao contrário, a obrigação natural é mensurável em dinheiro e repercute no
patrimônio dos sujeitos envolvidos. Se o apostador vencido paga ao vencedor o dinheiro da aposta,
este sai do patrimônio daquele para ingressar no deste. Se o mutuário, no mútuo sem fins
econômicos, paga juros não estipulados ao mutuante, ocorrem as mutações patrimoniais
correspondentes. Se o credor do empresário beneficiado por plano de recuperação judicial recebe
o pagamento do resíduo, a mutação correspondente verifica-se tanto no patrimônio dele como no
do devedor. Mas se o cônjuge cumpre seus deveres de fidelidade, amparo e coabitação, isto é
insuscetível de avaliação monetária e nenhuma repercussão patrimonial se verifica. As obrigações
imperfeitas, assim, afastam-se tanto das obrigações como dos deveres.
A importância de distinguir obrigação de dever está relacionada ao regime jurídico aplicável a
cada instituto (cf. Nonato, 1959:58/60). As regras que disciplinam as obrigações não se aplicam aos
deveres, nos seus desdobramentos patrimoniais (transmissão, pagamento, efeitos do
inadimplemento etc.). Os deveres são disciplinados por regras próprias, estranhas ao direito
obrigacional: o descumprimento do dever de mútuo amparo do cônjuge é causa, por exemplo, de
dissolução da sociedade conjugal nascida do casamento (CC, art. 1.571, I).
9. Flexibilização do direito das obrigações
As normas do direito das obrigações, como as de qualquer ramo jurídico, reclamam
flexibilização. Como discutido anteriormente (Cap. 3, item 9), o Direito só pode funcionar como
sistema social de superação dos conflitos de interesses se as normas que orientam as decisões
judiciais puderem ser aplicadas com flexibilidade. Quanto mais complexa é a sociedade, mais
flexível deve ser o Direito. Há, por um lado, conceitos jurídicos e tecnológicos aptos a promover a
flexibilização de qualquer ramo do direito. São os conceitos elaborados, estudados e
operacionalizados no reconhecimento e preenchimento de lacunas, na superação de antinomias,
na interpretação das normas etc. Há, por outro lado, mecanismos de flexibilização específicos de
certos ramos do direito.
Veja-se o instituto da novação (Cap. 17, item 2). Trata-se de hipótese de extinção indireta da
obrigação, isto é, de extinção derivada de ato jurídico diverso do pagamento (adimplemento). Na
novação, a obrigação é extinta porque as partes concordam em substituí-la por uma nova relação
obrigacional, com o objeto ou um dos sujeitos mudado. No rigor das normas do direito das
obrigações, a novação extingue o vínculo obrigacional anterior e dá nascimento a uma nova
obrigação. Deste modo, se à obrigação antiga correspondia um título com determinada cláusula
(favorável ao devedor ou ao credor, é indiferente), e à nova corresponde título sem igual
disposição, considera-se aquela não mais vigente. Exemplo: Antonio, mutuário, deve ao Banco
Brasão S.A., mutuante, e não tem como pagar. As partes, porém, renegociam a dívida e declaram
expressamente estar novando a obrigação. Com isto, extingue-se o mútuo anterior e surge um
novo. Se no primeiro havia cláusula favorável ao devedor (prazo de carência para saldar as
prestações do mútuo, p. ex.) ou ao credor (certa garantia, como uma fiança, p. ex.) que não se
repete no título correspondente ao segundo mútuo, no rigor das normas do direito obrigacional,
deve-se considerar que a novação extinguiu a obrigação antiga e a disposição de vontade em
questão não mais existe, não mais produz efeitos. Quer dizer, Antonio não faz mais jus à carência
que constava apenas do título correspondente ao primeiro mútuo, assim como o Banco Brasão S.A.
não titulariza mais a garantia fiduciária anteriormente pactuada.
O Judiciário, contudo, muitas vezes deixa de aplicar, com rigor, a disciplina legal da novação e
reconhece, principalmente em tutela dos interesses do mais fraco dos contratantes, efeitos a
disposições exclusivas da primeira obrigação e inexistentes na segunda (cf. Martins-Costa,
2003:531/533). É este um exemplo de flexibilização das normas do direito das obrigações. Em vez
de prestigiar o instituto da novação com atenção ao seu rigor normativo, o juiz decide em sentido
diverso.
No campo específico do direito das obrigações, os instrumentos tecnológicos de flexibilização
têm proposto uma nova abordagem sobre o vínculo obrigacional. Uma abordagem que afasta a
concepção de obrigação como um vínculo de sujeição do sujeito passivo ao ativo. Operam os
tecnólogos adeptos desta nova abordagem com a noção de uma relação de cooperação, a partir da
afirmação de que, na obrigação, o direito de uma das partes não se pode realizar senão mediante a
conduta da outra parte. A obrigação é vista, neste contexto, como um “processo dinâmico” que
busca o adimplemento. Judith Martins-Costa, entre outros civilistas, partindo fundamentalmente
de contribuições de Clóvis do Couto e Silva, é entusiasta de tal abordagem, que leva à construção
de um conceito moderno de obrigações e de relação obrigacional. Para ela, o Código Civil de 2002,
inclusive, a teria adotado; sustenta esta afirmação não tanto no exame dos seus dispositivos – que,
no campo do direito das obrigações, repetem, no geral, a letra do Código Beviláqua –, mas no da
estrutura do diploma, pautado em princípios como os da eticidade, da boa-fé, da função social dos
contratos etc. A definição da obrigação como uma relação de cooperação informada pela boa-fé
importaria, assim, que as partes deveriam agir pautadas pela lealdade, ou seja, cada uma
considerando os interesses da outra (2003:1/77; 2000:394/397).
A obrigação tem sido vista, também, não como vínculo de sujeição do devedor ao credor, mas como uma
relação de cooperação. Como o atendimento do direito de uma parte depende da conduta da outra, a interrelação implicaria a necessidade de cada uma delas atentar aos interesses da outra.
Para alguma doutrina, o Código Reale teria adotado esta concepção da obrigação, em função de seus
princípios básicos (eticidade, boa-fé, função social etc.).
Esta concepção é importante porque fornece recursos tecnológicos indispensáveis à flexibilização das
normas do direito obrigacional.
As novas abordagens da obrigação são importantes à flexibilização das normas do direito
obrigacional na sociedade complexa dos nossos tempos. A partir das considerações que
tangenciam vagamente o campo da ética e da filosofia, elaboram-se instrumentos tecnológicos que
permitem a atenuação do rigor dos preceitos normativos. Afinal, o atual estágio de evolução da
retórica jurídica não admite que o juiz se afaste demasiadamente de sua função de aplicador da
lei. Afirmar que o próprio Código Civil teria adotado a teoria da obrigação como relação de
cooperação significa, em última análise, dizer que a lei a aplicar conteria nela mesma a alternativa
da decisão flexibilizada. Novação extingue a obrigação anterior, mas pode ser que não extinga – no
final, a nova abordagem leva à conclusão de que as duas soluções se encontrariam no próprio
Código Civil, a despeito da literalidade de suas normas indicar que apenas a primeira delas seria a
legal. O juiz, ao flexibilizar a disciplina jurídica da novação – reconhecendo efeitos a cláusulas de
uma obrigação extinta –, estaria, de algum modo, aplicando o Código Civil. A abordagem da
obrigação como relação de cooperação fornece os fundamentos retóricos para que certas decisões
ilegais do juiz assim não pareçam ser.
© desta edição [2020]
2020 - 02 - 12
Curso de Direito Civil - Vol. 2 - Ed. 2020
PÁGINA RB-2.1
SEGUNDA PARTE - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
CAPÍTULO 14. MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES
Capítulo 14. MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES
1. Introdução
O Código Civil denominou modalidade das obrigações o título em que reuniu a disciplina das
categorias referentes a algumas das classificações de maior operacionalidade do instituto. Sob tal
expressão, encontram-se preceitos normativos atinentes às obrigações de dar (arts. 233 a 246),
fazer (arts. 247 a 249) e não fazer (arts. 250 e 251), alternativas (arts. 252 a 256) e divisíveis ou
indivisíveis (arts. 257 a 263). Nesse mesmo título, acomodaram-se as normas sobre solidariedade
(arts. 264 a 285), um dos mais importantes tópicos do direito das obrigações.
Modalidade das obrigações, assim, é apenas uma designação tradicional de valia meramente
sistematizadora, empregada pela lei na organização de seus dispositivos.
2. Obrigações de dar
Nas obrigações de dar, a prestação devida pelo sujeito passivo consiste em entregar alguma
coisa para o sujeito ativo. A expressão técnica que identifica o ato de entrega é “tradição”. Quando
o devedor se obriga a dar uma coisa ao credor, a tradição representa a execução da obrigação.
Antes da tradição, a obrigação ainda não se cumpriu; após, estará cumprida.
Segundo o critério da propriedade da coisa objeto da prestação, têm-se três hipóteses a
considerar. Na primeira, a coisa pertence ao patrimônio do devedor e, ao ser entregue ao credor,
passa ao patrimônio deste. Há, neste caso, transferência do domínio sobre a coisa, do sujeito
passivo para o ativo. É o caso da obrigação do vendedor, que, ao entregar a coisa vendida ao
comprador, transfere-lhe a propriedade. Chama-se esta primeira hipótese de obrigação de
transferir o domínio ou, mesmo, de dar estrito senso.
A segunda hipótese a considerar é a da coisa que pertence ao patrimônio do sujeito passivo e é
entregue ao sujeito ativo sem passar ao patrimônio deste. Não se opera, aqui, a transferência do
domínio sobre a coisa, que continua pertencendo ao devedor. Transfere-se ao credor, no
cumprimento da obrigação, unicamente a posse da coisa, mas não a propriedade. É o exemplo da
obrigação do locador (proprietário) de passar às mãos do locatário as chaves do imóvel locado, que
significa dar-lher a posse do bem. Chama-se de entregar esta espécie de obrigação de dar (embora,
a rigor, o ato da entrega encontre-se também nas demais espécies).
Finalmente, a terceira situação a se levar em conta é a da coisa que pertence ao patrimônio do
credor e encontrava-se na posse do devedor. Também não se opera, no cumprimento desta
obrigação, a transferência do domínio sobre a coisa. O sujeito passivo não era o proprietário do
bem entregue ao sujeito ativo; não se torna proprietário, nem o deixa de ser, em razão da execução
da obrigação. A coisa, ao contrário, pertencia já ao credor, e continua a pertencer-lhe – nada muda
na questão da propriedade do bem objeto da prestação; apenas a posse, que estava sendo exercida
pelo devedor, é restituída ao credor. Trata-se, por exemplo, da obrigação do locatário de devolver
o imóvel locado ao locador, ao término do vínculo contratual. É chamada obrigação de restituir
(item 2.5).
As obrigações de dar, segundo a propriedade e a posse da coisa objeto de prestação, podem ser
classificadas em 3 categorias: a de transmitir o domínio (é a obrigação, p. ex., do vendedor), de entregar (a
do locador, no início do contrato de locação) e a de restituir (a do locatário, no fim do contrato).
Esclareço que nas três situações acima descritas manifestam as obrigações sua
patrimonialidade. Na execução da obrigação de transferir o domínio, o bem objeto da prestação
deixa o patrimônio do devedor e ingressa no do credor. Não há dificuldade nenhuma em entender
esta mutação patrimonial. Na execução da obrigação de entregar, o bem objeto da prestação não
deixa o patrimônio do devedor, mas há, mesmo assim, mutações patrimoniais. O devedor da
obrigação de entregar, após cumpri-la, torna-se credor de uma obrigação de restituir. O locador
entrega a posse do imóvel locado ao locatário, e passa a titularizar o direito de recebê-lo de volta
ao término do contrato de locação. Por fim, na execução da obrigação de restituir, o crédito é
substituído pela coisa. Quando o mutuário paga o mutuante, no patrimônio deste substitui-se o
direito creditício pelo dinheiro do pagamento.
Segundo o critério da determinação do objeto da prestação, a obrigação é de dar coisa certa ou
coisa incerta. É o critério da organização dos dispositivos legais sobre o assunto. No Código Civil, a
obrigação de dar coisa certa é disciplinada nos arts. 233 a 242 (itens 2.1 e 2.2); as de dar coisa
incerta, nos arts. 243 a 246 (itens 2.3 e 2.4). Normas diferentes aplicam-se aos sucessos da coisa –
isto é, sua perda, deterioração ou melhoramento – não só segundo a determinação do objeto da
obrigação de dar como também na hipótese de obrigação de restituir (item 2.5). Por fim, cabe
destacar que uma importante espécie de obrigação, a pecuniária, não se enquadra coerentemente
nos quadrantes destas modalidades (item 2.6).
2.1. Dar coisa certa
Na obrigação de dar coisa certa, o objeto da prestação do sujeito passivo está individuado desde
a sua constituição. O devedor somente cumpre a obrigação se entregar ao credor exatamente a
prestação especificada (o imóvel localizado na rua x, número y; o veículo de placas z; o exemplar
de um livro autografado pelo autor etc.). Ela difere da obrigação de dar coisa incerta, porque,
nesta, a individuação se verifica apenas na execução. A obrigação de dar coisa certa é sempre
determinada, já que a definição do objeto da prestação não depende de uma declaração negocial
definidora no momento da execução (cf. Gil, 1983: 107/110).
Dar coisa certa corresponde à prestação de boa parte das obrigações negociais. Nelas,
normalmente, os sujeitos de direito têm interesse focado em determinado e específico bem; não
lhes interessa outro, ainda que de mesma qualidade e espécie. Na escritura de compra e venda de
imóvel, em geral, o vendedor quer alienar um bem determinado de seu patrimônio e o comprador
deseja adquirir este mesmo bem, e não outro. Ao assinarem o contrato de locação de um
apartamento, as partes referem-se a um individuado bem, objeto específico do interesse do
locador dar em locação e do locatário em alugar. Quando deixo meu carro num estacionamento,
celebro contrato de depósito com a empresa prestadora dos serviços de guarda de veículos. A
obrigação que a depositária tem de me restituir o automóvel, ao término da estada, é de dar coisa
certa. Ela não cumprirá a obrigação se me entregar outro veículo, mesmo que seja de marca,
modelo e idade iguais.
Quando a prestação é de dar coisa certa, o devedor não se libera da obrigação entregando ao
credor bem diverso do especificado, mesmo que, eventualmente, seja mais valioso ou melhor que
o individuado na constituição da obrigação. Para que a obrigação de dar coisa certa possa ser
cumprida através da entrega de outra coisa, é necessária a concordância do credor. Nesta hipótese,
anuindo o sujeito ativo em receber prestação diversa da devida, executa-se a obrigação mediante
dação em pagamento (CC, arts. 356 a 359).
A obrigação de dar coisa certa abrange, em princípio, os seus acessórios (CC, art. 233). Recordese que os bens, considerados reciprocamente, classificam-se em principais e acessórios (Cap. 9,
item 3). Quando têm existência por si, independente de qualquer outro, são principais; não a
tendo, isto é, existindo necessariamente em razão de outro bem, são acessórios. As árvores do
pomar do sítio são bens acessórios do imóvel; este, por sua vez, é um bem principal. Assim se
classificam porque, enquanto as árvores não podem existir sem o solo em que se enraízam, este
pode existir sem elas. O acessório segue a sorte do principal. Deste modo, quem se obriga a dar o
sítio, obriga-se a dar também as árvores do pomar.
Na obrigação de dar coisa certa, o bem objeto de prestação é individualizado na constituição. O sujeito
passivo assume, perante o ativo, a obrigação de entregar um preciso e especificado bem. Neste tipo de
obrigação, os acessórios da coisa certa estão, em regra, abrangidos.
Há, porém, duas exceções a examinar. A obrigação de dar o principal não se estende aos
acessórios, em primeiro lugar, se a vontade dos sujeitos convergir neste sentido. Se credor e
devedor da obrigação de dar coisa certa contratam que um ou mais de seus acessórios não se
incluem na prestação, o vínculo de dependência entre eles e a coisa principal se desfaz. Na venda
de ações das sociedades anônimas às vésperas da distribuição de dividendos anuais
correspondentes ao último exercício, não é incomum as partes definirem que estes serão recebidos
pelo vendedor. O direito aos dividendos é acessório ao direito de titularidade das ações e apenas
não se compreende na obrigação do vendedor de transferir o domínio de coisa certa porque assim
foi contratado com o comprador.
A outra hipótese em que a obrigação de dar coisa certa não compreende os acessórios está
relacionada às circunstâncias do caso. Em determinadas situações, não há nenhum acordo entre
os sujeitos da relação obrigacional acerca da exclusão dos acessórios da prestação; estes, porém,
não se consideram abrangidos na obrigação em virtude das circunstâncias que a cercam. Se o
comprador do imóvel tem a declarada intenção de o demolir, pode-se considerar, por esta
circunstância, que uma benfeitoria voluptuária de valor exclusivamente afetivo (isto é, sem valor
de revenda na demolição) não integra a prestação. O vendedor pode levantá-la antes da entrega do
imóvel porque a benfeitoria em questão, embora tenha a natureza de bem acessório, reputa-se
excluída da obrigação de dar coisa certa em razão daquelas circunstâncias (intenção de demolir e
valor meramente afetivo).
2.2. Sucessos da coisa certa
Entre a constituição e a execução da obrigação, podem ocorrer eventos interferentes com a
coisa objeto da prestação. Distinguem-se, para disciplinar juridicamente seus efeitos, três destes
eventos: perda, deterioração e melhoramento. Os dois primeiros correspondem a sucessos
negativos e o último, a sucesso positivo. Na perda, a coisa é destruída em tal nível que
simplesmente deixa de ter qualquer utilidade ou valor para o sujeito ativo. Na deterioração, o
evento destrói em parte a coisa, que passa a ter menos utilidade ou valor para o sujeito ativo.
Equivale à perda parcial. No melhoramento, a coisa tem sua utilidade ou valor aumentado, sob a
perspectiva do sujeito passivo.
Quando se trata de obrigação de dar coisa certa, os sucessos podem comprometer, em parte ou
totalmente, a prestação. Se o sujeito passivo assumira a obrigação de dar uma coisa individuada,
em ocorrendo a perda, deterioração ou melhoramento desta, ele não a pode substituir por outra
unilateralmente. Viu-se, já, que a mudança da prestação, na obrigação de dar coisa certa, depende
da anuência do credor (dação em pagamento).
Os sucessos da coisa incerta são disciplinados por lei a partir de duas variáveis: a propriedade
da coisa e a responsabilidade do possuidor. Em termos gerais, vigora a regra de que é o dono quem
sofre ou se aproveita dos sucessos da coisa, a menos que o outro obrigado tenha sido o responsável
pelo evento. Se a hipótese é, por exemplo, de perda, a coisa perece para o dono (res perit domino),
salvo se o outro obrigado foi o culpado pelo evento danoso. Se é de deterioração, as consequências
da redução do valor somente não são suportadas pelo dono se o outro sujeito da relação
obrigacional culposamente deteriorou a coisa. Ademais, se for o próprio dono da coisa o culpado
pela perda ou deterioração, ele deve indenizar o outro obrigado pelos prejuízos decorrentes de sua
conduta. Finalmente, no caso de melhoramento, o dono deve ser ressarcido pelo aumento de valor
da coisa, a menos que a responsabilidade por este aumento seja do outro obrigado, enquanto
exercia a posse sobre ela.
Três são os sucessos que podem atingir a coisa certa: perda, deterioração e melhoramento. O assunto é
disciplinado por uma regra geral que combina a propriedade do bem e a responsabilidade do possuidor pelo
evento.
Vejam-se as regras específicas de cada hipótese de sucesso, anotando-se que, por razões
didáticas, tratarei, neste item, somente das obrigações de transferir o domínio e de entregar. Sobre
os sucessos da coisa nas obrigações de restituir, tratarei mais à frente (item 2.5)
Perda. Estabelece a lei que, se a coisa certa se perde antes da tradição (entrega), sem culpa do
devedor, resolve-se a obrigação (CC, art. 234). Que significa resolver a obrigação? Significa repor as
partes à condição anterior à constituição da obrigação. Assim, resolvida uma obrigação, o sujeito
passivo fica liberado da prestação (não precisa mais entregar aquela coisa certa), mas deve
devolver ao sujeito ativo os pagamentos que tiver eventualmente recebido. Imagine que Antonio
vendeu seu microcomputador portátil usado a Benedito. Recebeu, no ato da venda, $ 2.000 como
entrada e princípio de pagamento. Considere, porém, que o aparelho, no interregno, foi
irremediavelmente danificado por culpa da concessionária fornecedora de energia elétrica. Neste
caso, como visto, resolve-se a obrigação. Antonio devolve os $ 2.000 a Benedito e fica dispensado de
entregar-lhe o microcomputador objeto de contrato. O equipamento, em outros termos, pereceu
para o dono, já que nenhum dos obrigados teve culpa pelo evento danoso.
Quando, porém, o devedor é o culpado pela perda da coisa certa, prevê a lei sua
responsabilidade “pelo equivalente e mais perdas e danos” (CC, art. 234, in fine). Isto significa que a
obrigação não se resolve, quer dizer, as partes não retornam à situação patrimonial anterior à
constituição da obrigação; pelo contrário, o devedor deve compensar amplamente o credor pela
impossibilidade da prestação. Carlos vendeu, mediante pagamento à vista, seu carro usado a
Darcy, comprometendo-se a entregá-lo em 24 horas. Se, ao se dirigir ao local combinado para a
entrega, Carlos negligentemente causa grave acidente de trânsito, provocando o incêndio do carro
e sua perda total, ele deve indenizar Darcy por todos prejuízos sofridos. O valor do pagamento
deve ser restituído atualizado e acrescido de juros de mercado e impostos sobre a movimentação
financeira. Se, eventualmente, Darcy sofreu outros prejuízos em razão da imprestabilidade da
coisa – por exemplo, teve que gastar com táxi até ser reembolsada e poder adquirir outro veículo –,
terá direito ao ressarcimento também por eles.
A perda da coisa certa sem culpa do devedor importa a resolução da obrigação. Retornam, em
consequência, as partes à situação anterior à da constituição da obrigação. Quando perde-se a coisa por
culpa do devedor, este deve indenizar o credor pelos prejuízos.
Deterioração. As regras sobre a deterioração da coisa certa equivalem às estabelecidas para a
hipótese de perda. Como a deterioração não é mais que a perda parcial, é justo que as
consequências deste sucesso negativo sejam tratadas pela lei de modo similar às da perda. A
especificidade do regramento sobre a deterioração está relacionada ao reconhecimento do direito
de o credor optar pelo recebimento da coisa, mesmo deteriorada, em função de alguma
compensação, caso isto seja de seu interesse.
Se a coisa certa objeto de prestação se deteriora entre a constituição e a execução da obrigação,
e este evento não decorre de culpa do devedor, o credor pode optar entre duas alternativas:
resolver a obrigação ou aceitar a coisa com abatimento de preço (CC, art. 235). Escolhendo a
primeira, retornam as partes à situação patrimonial anterior à constituição da obrigação. O
devedor, neste caso, fica liberado de fazer a entrega da coisa, mas deve restituir ao credor os
pagamentos que este eventualmente tiver realizado. Escolhida a segunda alternativa, o devedor
deve entregar a coisa e suportar o abatimento do preço. Evaristo locou a Fabrício um imóvel
mobiliado. Antes, porém, da entrega das chaves, uma inundação de grandes proporções danificou
parte da construção e de seu mobiliário. Se para Fabrício não interessar mais a locação, a
deterioração do bem locado é causa para resolver a obrigação. Desfaz-se, então, o contrato entre
eles, retornando cada parte à situação patrimonial anterior à da constituição da obrigação. Se, no
entanto, continuar interessando a locação a Fabrício, terá ele direito à redução do preço do
aluguel, proporcional à deterioração. A escolha é exclusiva de Fabrício, não dependendo em nada
da vontade de Evaristo.
Na hipótese de o credor optar pela aceitação da coisa deteriorada mediante abatimento no
preço, podem as partes eventualmente divergir sobre o percentual deste. Atente-se, porém, que
não se trata a mensuração do abatimento de matéria negocial. É direito do credor receber a coisa
deteriorada com abatimento do preço se assim quiser. Resistindo, porém, o devedor a entregá-la
por discordar do abatimento pretendido pelo credor, caberá ao juiz decidir o conflito de interesses.
Em outros termos, credor e devedor quantificam diferentemente o mesmo objeto: a redução do
valor da coisa certa em decorrência da deterioração. Na ação judicial própria, deverá ser feita
perícia técnica com o objetivo de mensurar a redução, decidindo o juiz a respeito.
As mesmas alternativas abrem-se ao credor também na hipótese de a deterioração ter sido
causada por culpa do devedor. Neste caso, porém, ao devedor imputa-se ainda a obrigação de
indenizar as perdas e danos sofridos pelo credor. Se, no exemplo anterior, a deterioração do
imóvel e mobiliário não tivesse decorrido de causa natural, mas de culpa do Evaristo (imagine-se
que seu filho, às vésperas da data programada para entrega do bem ao locatário, promove uma
ruidosa festa no local, em que além de partes da casa também se estragam vários móveis), Fabrício
pode optar pela resolução da obrigação, com desfazimento do contrato de locação, ou pela redução
do aluguel. Qualquer que seja a decisão de Fabrício, terá ele também direito de ser indenizado
pelos prejuízos que sofrer. Se, por exemplo, para a realização de obras e aquisição de novos
móveis, Fabrício precisou continuar ocupando, por mais alguns meses, outro imóvel de aluguel, o
valor deste deve ser reembolsado por Evaristo.
Ocorrendo a deterioração da coisa certa sem culpa do devedor, o credor pode optar por recebê-la
deteriorada com redução proporcional de seu valor ou pela resolução da obrigação. Sendo o devedor o
culpado pela deterioração da coisa, deve pagar ao credor indenização pelos prejuízos.
Destaque-se, por fim, que, na relação jurídica sujeita ao direito civil, o credor não tem direito de
exigir do devedor a recuperação da coisa deteriorada ou mesmo sua substituição por outra similar
em boas condições. Suas alternativas são apenas as indicadas: ou bem se contenta com a resolução
da obrigação e retorno das partes à situação anterior à constituição da obrigação ou bem se
satisfaz com a redução proporcional do valor da coisa deteriorada.
Melhoramento. Se o sucesso entre a constituição e a execução da obrigação é positivo, a coisa
certa se valoriza. O exemplo clássico é o da venda da vaca que, naquele lapso temporal, fica
prenha. O bezerro em gestação é um melhoramento, porque aumenta o valor da vaca. Outro
exemplo: um dos oitenta autorretratos de Rembrandt, feito em 1634, foi alterado por um de seus
assistentes (ao que consta, a pedido do próprio mestre, para tentar vender o quadro mais
facilmente). O assistente pintou sobre o rosto do famoso pintor flamengo um bigodudo e
encabelado nobre russo com um engraçado gorro vermelho. A tela foi, por cerca de três séculos,
negociada como sendo da “oficina de Rembrandt”, evidentemente a preços menores do que o das
pintadas pelo próprio Rembrandt. Nos anos 1930, descobriu-se o autorretrato sob as camadas de
tinta do assistente e, nos anos 1980, elas foram removidas. A descoberta de que a tela tinha sido
originariamente pintada por Rembrandt representou um extraordinário melhoramento na coisa,
pois, a partir de então, atingiu preços consideravelmente maiores (em 2003, ela foi arrematada
num leilão da Sotheby's por mais de 11 milhões de dólares). Se essa descoberta acontece, imaginese, entre a constituição e a execução de obrigação de dar que tem a tela por objeto, sucede
melhoramento que altera os direitos dos sujeitos nela vinculados.
Nas obrigações de transferir o domínio ou entregar, o melhoramento pertence ao devedor, que
é o dono da coisa objeto da prestação. Diz a lei que ele pode exigir aumento no preço em
contrapartida da valorização da coisa. Caso o credor da obrigação não concorde com o valor
proposto pelo devedor, a obrigação poderá ser resolvida por esse último (CC, art. 237). Note-se que,
aqui, a disciplina legal é ligeiramente diferente da deterioração. O devedor não tem o direito de
exigir do credor o valor agregado à coisa pelo melhoramento. Pode, isto sim, estabelecer um novo
preço. Se o credor não concordar com o aumento proposto pelo devedor da obrigação, aí sim
surgem duas alternativas para este último: dar a coisa certa pelo preço anteriormente acordado
(isto é, sem o aumento correspondente ao melhoramento) ou resolver a obrigação, com o retorno
das partes à condição anterior à sua constituição.
Os frutos percebidos antes da tradição são do devedor; os pendentes, do credor (CC, art. 237,
parágrafo único). Recorde-se que os frutos são os acessórios da coisa periodicamente renovados.
Eles podem ser naturais, industriais ou civis, dependendo da origem do ciclo que os renova.
Naturais são os renovados pelo ciclo biológico sem interferência humana; industriais, os
renovados por esta interferência. Por sua vez, os frutos civis são os rendimentos gerados pela coisa
principal, como o aluguel da casa, os juros remuneratórios do dinheiro emprestado, os dividendos
do capital investido numa atividade econômica etc. Segundo outro critério, classificam-se os frutos
como pendentes, quando estão ligados ao bem principal, e colhidos (naturais) ou percebidos
(industriais ou civis), quando separados deste.
Se a coisa certa melhora entre a constituição e a execução da obrigação, o melhoramento pertence ao seu
dono, que é o sujeito passivo nas obrigações de transmitir o domínio ou de entregar. Ele pode, então, propor
aumento do preço para dar a coisa. Não sendo este aceito pelo sujeito ativo, terá a faculdade de resolver a
obrigação.
Por exemplo, se no pomar do sítio que Germano vendeu para Hebe amadureceram frutas entre
a constituição e a execução da obrigação, as colhidas pertencem ao primeiro (devedor da
obrigação de transferir o domínio do sítio), mas as que não o foram pertencem à segunda
(credora).
Res perit domino. Antes de encerrar, cabe uma reflexão acerca da regra geral sobre o sucesso
das coisas certas. Segundo assentado de início, em princípio, os sucessos prejudicam (se negativos)
ou beneficiam (se positivos) o dono da coisa. Com efeito, em razão de um tradicional valor de
justiça, é o titular da propriedade, e não terceiros, quem deve sofrer as consequências dos sucessos
do bem titularizado. Nas obrigações de transmitir o domínio ou de entregar, o dono da coisa, antes
da tradição, é sempre o sujeito passivo (devedor). Nelas, portanto, a coisa certa sempre perece ou
se deteriora para o devedor da obrigação. É ele, em outros termos, que deve suportar a perda ou
redução do valor; é ele, também, que deve indenizar o credor quando a perda ou deterioração
decorrer de sua culpa. Por outro lado, se a coisa se valoriza, o melhoramento o beneficia, podendo
ficar liberado da obrigação anteriormente assumida se for isto necessário para usufruir
integralmente o valor agregado.
2.3. Dar coisa incerta
A obrigação é de dar coisa incerta (também denominada obrigação genérica) se a individuação
do objeto da prestação tem lugar na execução. Ao constituir-se a obrigação, o seu objeto é definido
em termos genéricos. Já há, assim, demarcação da coisa a ser entregue, embora feita por
parâmetros gerais. O objeto da prestação não é determinado, mas determinável; isto é, sua
definição depende da prática de negócio jurídico no momento da execução. O sujeito passivo
encontra-se, portanto, vinculado ao ativo desde o surgimento da obrigação, tendo de entregar-lhe
uma coisa definida, mas não ainda individualizada. A individuação será feita no momento da
execução; precisamente, até um pouco antes da tradição.
Este tipo de obrigação é muito comum, por exemplo, nos negócios jurídicos sobre produtos
agrícolas (commodities). Produtor e comerciante de soja podem contratar, hoje, a compra e venda
da próxima safra. Já fica definido que o produtor se obriga a entregar determinada quantidade de
soja ao comerciante, mas não se podem separar os grãos a serem entregues porque nem sequer
foram plantados e colhidos. Outro exemplo: após receber a soja adquirida, o comerciante a
deposita num armazém. O depositário fica obrigado a restituir-lhe, assim que solicitado, igual
quantidade daquela espécie de soja, mas não exatamente os mesmos grãos depositados. Nos dois
casos, a obrigação é de dar coisa incerta, porque a individuação do objeto da prestação se verifica
na sua execução (no momento em que o produtor separa a soja para entregar ao comerciante ou o
armazém para restituí-la ao depositante) e não na constituição (no da celebração do contrato de
compra e venda ou de depósito).
Nas obrigações de dar coisa incerta, a prestação deve estar definida, pelo menos, pelo “gênero e
quantidade”. É o que dispõe o art. 243 do Código Civil. Note-se que, por gênero, na interpretação
desse dispositivo, entende-se uma designação da coisa capaz de identificá-la em termos gerais. É
conceito próprio do direito. Não emprega a lei, aqui, a expressão em seu significado técnico de
conjunto de espécies com caracteres comuns (cf. Monteiro, 2001:80/81). Basta que seja a expressão
capaz de identificar uma coisa em termos gerais, para que se atenda ao requisito legal. Assim, são
exemplos de gêneros, para o fim de identificar coisa incerta, expressões como “algodão em pluma
tipo 6”, “milho tipo 2”, “café arábica” etc.
Na obrigação de dar coisa incerta, a prestação é definida em termos gerais. Ela é indicada pelo menos
por seu gênero e quantidade. Sua individuação ocorre na execução, ou melhor, pouco antes da tradição.
Por outro lado, se o termo empregado na identificação da coisa é por demais genérico, não está
atendido o preceito legal. Se a obrigação é entregar certa quantidade de cabeças de bovinos, não se
encontra a coisa indicada pelo menos por seu gênero. Isto porque a expressão “bovinos” não é
suficiente para identificar, mesmo em termos gerais, o objeto da prestação. De fato, são várias as
raças de bovinos, com significativas diferenças entre elas. A definição da coisa incerta, neste caso,
deve ser feita por expressões do tipo “bovino raça nelore”, “bovino tabapuã”, “bovino holandês
vermelho e branco” etc.
Não se admite, também em decorrência do art. 243 do CC, na identificação da coisa incerta, o
emprego de expressões de absoluta generalidade como “animal”, “imóvel” ou “dinheiro”. Nestes
casos, a generalidade do termo indicativo do objeto da prestação é tamanha que se pode considerálo indeterminável. A obrigação de dar uma “obra de arte”, por exemplo, não se consegue
determinar, em razão da amplitude semântica do vocábulo, que abarca diversas modalidades de
expressão artística (arte plástica, literária, musical etc.), múltiplos tipos em cada uma (escultura,
pintura a óleo, gravura etc.) e, em cada um deles, variados artistas e objetos artísticos, de
importância e valor extraordinariamente diferentes. Usar uma tal expressão para identificar um
gênero de arte corresponde a não identificar nenhum objeto para a prestação. É nulo, recorde-se, o
negócio jurídico de objeto indeterminável (CC, art. 166, II): o sujeito passivo que se obriga em
termos absolutamente genéricos não está, na verdade, obrigado a nada.
Não se confundem as obrigações de dar coisa incerta com as alternativas. Elas possuem um
traço em comum: em ambas, a execução depende da concentração, isto é, de um ato de escolha
(item 2.4). Nas obrigações de dar coisa incerta, porém, a concentração se traduz na escolha do
devedor entre os bens pertencentes ao gênero indicado no objeto; nas alternativas, traduz-se pela
escolha de um entre dois ou mais objetos. Nas obrigações de dar coisa incerta, por outro lado, o
objeto único e definido desde a constituição é individuado apenas na execução; nas alternativas,
há vários objetos definidos, sendo que a entrega de qualquer um deles libera o devedor do vínculo
obrigacional. Note-se que é perfeitamente possível uma obrigação alternativa de dar coisa incerta.
Um pecuarista que cria gados de raças diferentes pode obrigar-se a vender determinada
quantidade de bovinos de uma raça ou de outra. Neste caso, a execução da obrigação depende,
inicialmente, da escolha de qual das duas prestações será cumprida (da raça) e, depois, das
cabeças de gado que serão entregues ao sujeito ativo.
2.4. Escolha da prestação
Tecnicamente, chama-se “concentração” ao processo de determinação da prestação a ser
entregue ao sujeito ativo na execução da obrigação. Quando esta se refere a dar coisa incerta, a
concentração conduz à individuação do objeto da prestação. É feita sempre por meio de um ato de
vontade de uma das partes, a escolha. Concentração e escolha, porém, não são sempre
empregadas, na doutrina, como expressões sinônimas. Para alguns autores, nas obrigações
alternativas, a concentração pode também ser consequência da impossibilidade ou
inexequibilidade de uma das duas prestações e não da manifestação de vontade do sujeito ativo ou
passivo. Não é este, contudo, o melhor modo de operar com os conceitos, como se examina mais à
frente (item 5.2).
A individuação da prestação, na obrigação de dar coisa incerta, assim, é escolha, por um dos
obrigados, do bem ou bens particularizados a serem entregues ao credor. Se a escolha couber ao
devedor, será dele a individuação do objeto. Tendo que entregar, por exemplo, 10 toneladas de
certo tipo de trigo, ele as separa das centenas que possui em depósito. Escolhe, em outros termos, o
trigo que será dado ao credor.
A concentração, sendo escolha, é negócio jurídico unilateral. Cabe, em princípio, ao devedor
realizá-la. As partes, porém, podem contratar de modo diverso, atribuindo o direito da escolha ao
credor (CC, art. 244). Não é comum, nas obrigações de dar coisa incerta, contratar sobre esse ponto,
ficando, desse modo, na maior parte das vezes, a concentração a cargo do devedor. Ele não está
obrigado, estabelece a lei, a entregar a melhor das coisas que possui, mas não poderá igualmente
prestar a pior delas. A seleção pelo devedor das coisas a entregar faz-se, assim, pela média. Nada
diz a lei a respeito da concentração mediante escolha do credor, devendo-se supor que ele não está
obrigado a pautar-se pelo padrão médio de qualidade das coisas apresentadas pelo devedor. Quer
dizer, contratando as partes que a individuação da prestação se dará por escolha do credor, este
pode não só recusar as piores como selecionar para si as melhores das coisas (correspondentes ao
gênero objeto da prestação) que o devedor oferece (Rodrigues, 2002, 2:30).
A concentração transforma a obrigação de dar coisa incerta em obrigação de dar coisa certa.
Se, antes da escolha do bem específico cuja entrega representará a execução da obrigação, as
partes haviam definido apenas o gênero e a quantidade, após a escolha, um específico e
particularizado bem (ou bens) passa a ser o objeto certo da prestação. Quando a escolha cabe ao
credor, sua manifestação de vontade selecionando os bens a serem entregues é suficiente para
tornar certa a coisa objeto da obrigação; quando, porém, cabe ao devedor a escolha, a cientificação
do credor é que transforma a obrigação de dar coisa incerta em de dar coisa certa (CC, art. 245). A
concentração mediante escolha do devedor, em suma, é negócio jurídico receptício, isto é, só
produz efeitos após a cientificação do destinatário da declaração de vontade.
A concentração é a individuação do bem a ser entregue na execução de obrigação de dar coisa incerta.
Realiza-se mediante a escolha feita por um dos sujeitos do vínculo obrigacional; normalmente, o devedor.
Quando é este o caso, a cientificação da escolha pelo credor transforma a obrigação de dar coisa incerta em
obrigação de dar coisa certa.
A transformação da obrigação de dar coisa incerta em obrigação de dar coisa certa – derivada
da concentração ou de seu conhecimento pelo credor – é relevantíssima, porque, a partir dela,
aplicam-se à prestação os dispositivos legais pertinentes aos sucessos da coisa certa. Explico. Antes
da concentração, não há bens específicos a serem entregues ao credor. Se o devedor possui, em seu
patrimônio, bens do gênero objeto da obrigação e na quantidade suficiente ao seu cumprimento, e
perde alguns deles ou os vê deteriorados ou melhorados, estes sucessos não interferem com a
obrigação de dar coisa incerta. Se Antonio havia se comprometido a dar a Benedito certo número
de cabeças de gado nelore, o fato de ter perdido as que possuía (em razão de uma peste, diga-se)
não faz perecer o objeto da obrigação. Continuam a existir bovinos da raça nelore que Antonio
pode adquirir no mercado para atender à sua obrigação com Benedito, já que o gênero nunca
perece (genus nunquam perit). Da mesma forma, se algumas das cabeças de gado que possui
adoece, ele pode cumprir sua obrigação entregando os animais saudáveis. A deterioração de
alguns bens não implica a do gênero. Igual reflexão pode ser feita para a hipótese de
melhoramento. Se algumas vacas de seu rebanho ficam prenhas, o melhoramento não é do gênero,
e sim de alguns bens a ele correspondentes, e, por isso, não interfere com a execução da obrigação.
Mas se os mesmos sucessos se verificam após a concentração, aplicam-se os preceitos já
examinados para a coisa certa (item 2.2). Se as cabeças de gado a serem entregues, no exemplo
acima, já haviam sido escolhidas e da escolha tivera ciência Benedito, a obrigação de Antonio
passou a ter coisas certas por prestação. Imagine que os bovinos separados para cumprimento
daquele negócio estavam já marcados com o sinal da fazenda de Benedito, não havendo, então,
dúvidas quanto à concentração e seus limites. Desse modo, se bois marcados com o sinal de
Benedito morrem, sem culpa de Antonio, a obrigação é resolvida (CC, art. 234); se adoecem,
também sem culpa de Antonio, Benedito pode optar entre a resolução da obrigação ou a redução
do preço (CC, art. 235); se uma das vacas marcadas com o sinal fica prenha, Antonio pode propor
novo preço para ela (CC, art. 237) e assim por diante.
Claro que para a incidência das normas sobre coisa certa, quando a escolha cabe ao devedor, é
necessário que tenha ocorrido a cientificação do credor. Isto é, somente após o credor ter
conhecimento de quais bens foram separados para atendê-lo é que a obrigação deixa de ter por
objeto coisa incerta. O devedor, assim, não se libera da obrigação de dar coisa incerta alegando
que já tinha escolhido os bens a serem entregues e estes se perderam sem sua culpa, se o credor
não havia tido ainda ciência inequívoca dos bens selecionados pela escolha.
2.5. Obrigação de restituir
Na obrigação de restituir, a coisa objeto da prestação não pertence ao sujeito passivo, mas ao
ativo. Encontra-se na posse do devedor temporariamente, e deve, num determinado momento, ser
devolvida ao credor. São obrigações negociais que se encontram, basicamente, na locação,
depósito, comodato e outorga de garantia pignoratícia. Na locação, o bem locado pertence ao
locador e está na posse do locatário; este último tem a obrigação de restituí-lo ao término do
contrato. No depósito, a coisa depositada é da propriedade do depositante e está confiada aos
cuidados do depositário. Tão logo reclamada pelo primeiro, deve o último prontamente restituí-la.
No comodato, o bem infungível emprestado pelo comodante ao comodatário deve ser restituído,
por este àquele, ao término do prazo contratado ou legalmente presumido. Na outorga de garantia
pignoratícia, o outorgado (normalmente, mutuante) recebe em penhor um bem do patrimônio do
outorgante (mutuário). Fica na posse desse bem até ser satisfeito o crédito – é esta sua garantia.
Quando cumprida a obrigação garantida (mútuo), o outorgado é devedor da obrigação de restituir
o bem empenhado.
Na maioria das vezes, a obrigação de restituir tem por objeto coisa certa. O locatário de um
apartamento, finda a relação locatícia, deve restituir ao locador exatamente o imóvel locado e não
outro semelhante. O comodatário tem a obrigação de restituir ao comodante o bem recebido em
comodato, e não outro, ainda que mais valioso. Também o credor pignoratício (que é o devedor da
obrigação de restituir) deve dar de volta ao devedor (credor da obrigação de restituir)
precisamente o bem empenhado.
Há, contudo, certos contratos em que a obrigação de restituir pode ter por objeto coisa certa ou
incerta. É o caso do depósito. Quando o consumidor entrega ao manobrista do estacionamento o
seu veículo, está celebrando um contrato de depósito (chamado regular). O estacionamento
depositário tem obrigação de restituir uma coisa certa. Já no exemplo mencionado anteriormente
(item 2.3), o armazém que recebeu em depósito a soja do comerciante pode guardá-la junto com os
demais produtos da mesma espécie que tiver depositados. Ao restituí-la, tem a obrigação de
entregar ao depositante soja em igual quantidade e da mesma espécie, mas não necessariamente
os exatos grãos que havia recebido para armazenar (depósito irregular).
Quando a obrigação de restituir tem por objeto coisa certa, os sucessos que a afetam estão
disciplinados de forma específica. Não se aplicam, neste caso, os preceitos examinados nas
hipóteses de obrigação de transferir o domínio ou de entregar (item 2.2), porque há uma
substancial diferença a ser levada em conta. Como visto, a regra fundamental sobre os sucessos da
coisa certa diz que o proprietário sofre os efeitos negativos e beneficia-se dos positivos, a menos
que o outro obrigado tenha sido o responsável pelo evento. Esta regra, porém, não se aplica a
todos os tipos de obrigação de dar. Como na obrigação de restituir o devedor não é o proprietário
da coisa objeto de prestação, a disciplina dos sucessos desta não pode ser igual à estabelecida para
as demais hipóteses de obrigação de dar coisa certa (transferir o domínio e entregar), em que é ele
o proprietário do bem até a tradição.
Na obrigação de restituir o sujeito passivo é mero possuidor da coisa objeto da prestação, e não o seu
proprietário. São exemplos deste tipo de obrigação a do locatário (ao término do contrato de locação),
comodatário (quando decorrido o prazo contratual ou legalmente presumido), depositário (quando
reclamada a coisa pelo depositante) e titular de garantia pignoratícia (após a satisfação de seu crédito).
Examinem-se os três casos de sucessos em separado.
Perda. Se a coisa objeto da obrigação de restituir perde-se antes da tradição sem culpa do
devedor (possuidor), quem sofre as consequências da perda é o credor (proprietário). Como, em
regra, a coisa perece para o dono, o credor da obrigação de restituir é o sujeito que suporta os
efeitos da perda. Além disso, preceitua a lei que a obrigação se resolve, retornando as partes à
condição anterior à sua constituição (CC, art. 238). Assim, se o automóvel dado em comodato
perde-se num acidente de trânsito sem culpa do comodatário (devedor da obrigação de restituir),
fica ele liberado da obrigação de devolvê-lo ao comodante (credor da obrigação), que sofre
inteiramente as consequências do incêndio. Ressalva a lei os direitos do credor até o dia da perda;
significa dizer que, no exemplo, o comodatário é o devedor das despesas de manutenção do
automóvel até a data do incêndio, mesmo se o vencimento da obrigação de pagá-las recaia em dia
posterior.
Caso o devedor tenha sido o culpado pela perda da coisa objeto da obrigação de restituir, terá
responsabilidade por indenizar integralmente o credor (“pelo equivalente, mais perdas e danos” –
art. 239 do CC). Neste caso, a coisa não perece para o dono, porque o outro sujeito obrigado é o
culpado pela perda. Se o locatário do equipamento industrial, ou um empregado dele, foi o
causador do dano que o destruiu por completo, o locador tem direito ao ressarcimento total do
prejuízo. Isto é, o locatário deve pagar ao locador o valor do bem perdido e mais a indenização
pelas perdas e danos decorrentes (medidos, p. ex., pelo valor do aluguel até a conclusão das obras
de reconstrução).
Deterioração. Se a coisa a ser restituída se deteriora sem culpa do devedor (possuidor), o credor
(proprietário) deve recebê-la “tal qual se ache, sem direito a indenização” (CC, art. 240). O
mutuante com garantia pignoratícia não é responsável, assim, pelo desgaste natural da coisa
empenhada. Quem o suporta é o mutuário, seu dono. Se o credor da obrigação de restituir havia
dado em penhor um relógio de ouro movido à corda, e, ao resgatá-lo, ele não funciona mais como
antes (o tempo deteriora naturalmente qualquer instrumento mecânico), não tem o devedor desta
obrigação nenhuma responsabilidade pelo sucesso negativo.
Quando, porém, a deterioração da coisa objeto da obrigação de restituir dá-se por culpa do
devedor, o credor tem direito à indenização pelas perdas e danos. Assim, caso o credor
pignoratício (devedor da obrigação de restituir) do exemplo anterior houvesse guardado o relógio
inadequadamente e seu mecanismo se estragasse em razão de excessiva umidade, o dono (credor
da obrigação de restituir) teria direito à indenização.
Melhoramento. No caso de sucesso positivo, se o devedor da obrigação de restituir não
contribuiu para o evento, os benefícios serão usufruídos exclusivamente pelo credor, pois é ele o
dono da coisa (CC, art. 241). Considere que, durante o prazo de vigência do arrendamento, o
imóvel rural valorizou em razão da construção de uma autoestrada nas vizinhanças. Este
melhoramento não derivou de nenhum ato do possuidor e, por isso, deve ser integralmente
incorporado ao patrimônio do proprietário. O devedor da obrigação de restituir não participará do
sucesso positivo.
Na hipótese de o melhoramento decorrer de trabalho ou investimento (“dispêndio”, na letra da
lei) do devedor da obrigação de restituir, regula-se a matéria pelas normas atinentes às
benfeitorias realizadas pelo possuidor de boa-fé ou má-fé (CC, art. 242). Para compreendê-las,
devem ser recuperados os conceitos de benfeitorias voluptuárias, úteis ou necessárias (CC, art. 96).
Voluptuárias são as benfeitorias fúteis, isto é, que não aumentam o uso do bem. Têm natureza de
mero deleite ou recreio. Elas podem ser custosas ou não, agregar valor à coisa ou apenas torná-la
mais agradável. Num veículo, a pintura especial que apenas o embeleza é benfeitoria voluptuária,
por exemplo. São úteis as que ampliam ou facilitam o uso do bem. É o caso da instalação de um
bom equipamento de som no veículo. Por fim, as benfeitorias necessárias são as introduzidas
visando à conservação da coisa. A substituição dos amortecedores depois de alguns anos de uso do
veículo é exemplo deste tipo de benfeitoria.
Assim, se o devedor da obrigação de restituir estava de boa-fé e introduziu benfeitorias na coisa
a ser restituída, terá direito de ser indenizado pelas úteis e necessárias, sobre as quais pode
exercer o direito de retenção. Poderá, também, se não for pago pelas voluptuárias, levantá-las
desde que sem detrimento da coisa (CC, art. 1.219). Desse modo, se o locatário tiver introduzido, no
imóvel locado, uma benfeitoria voluptuária removível sem detrimento da coisa (implantou
esculturas no jardim), poderá levantá-las. Se, além disso, agregou-lhe benfeitorias úteis (ampliou a
construção) ou necessárias (modernizou a rede elétrica), ao restituí-lo ao término do contrato, terá
direito de retenção e indenização por elas, desde que nada tenha sido contratado com o locador a
respeito (Deve-se anotar que o exemplo é raro, já que, normalmente, os contratos de locação
estabelecem “a incorporação definitiva ao imóvel das benfeitorias introduzidas pelo locatário, sem
indenização”, devendo ser respeitada a vontade das partes nesse caso).
Já se o devedor estava de má-fé não tem qualquer direito sobre as benfeitorias úteis e
voluptuárias; ele será ressarcido somente pelas necessárias, mas sem direito de retê-las (CC, art.
1.220). De má-fé está o locatário que não desocupa o imóvel locado no prazo assinalado no
contrato, permanecendo na posse do bem que deveria restituir. Neste caso, ultrapassado o termo
contratual sem o cumprimento da obrigação de restituir, o locatário perde o direito de retenção
das benfeitorias úteis ou necessárias e o de levantar as voluptuárias. Poderá apenas pleitear a
indenização pelas benfeitorias necessárias que teve que providenciar para a conservação do bem.
Estas são as normas próprias sobre os sucessos da coisa certa nas obrigações de restituir. Mas,
como afirmado anteriormente, elas podem ter também por objeto coisa incerta, como no caso do
depósito irregular. Não há regras próprias para esta hipótese. Quer dizer, independentemente do
tipo de obrigação de dar (transmitir o domínio, entregar ou restituir), sendo o objeto da prestação
uma coisa incerta, antes da concentração, os sucessos desta não interferem com o devido pelo
sujeito passivo; e, após a concentração, aplicam-se as regras pertinentes à restituição de coisa
certa.
2.6. Obrigações pecuniárias
As obrigações pecuniárias são as que se cumprem mediante a entrega de dinheiro ao credor.
Note-se que por ser o dinheiro bem fungível por excelência, esta circunstância, de início, sugere
que a obrigação pecuniária seria essencialmente de dar coisa incerta. A individuação do objeto da
prestação ocorreria, por assim dizer, no momento em que o devedor separasse determinadas
cédulas (identificadas pela respectiva numeração) e as entregasse ao credor. Este, porém, não é o
modo correto de entender a questão, até mesmo porque dinheiro e papel-moeda não são a mesma
coisa. Se o devedor pagar o credor com cheque liquidado por depósito em conta bancária ou por
meio de Transferência Eletrônica de Disponibilidade (TED), por exemplo, a prestação continua
ainda sendo pecuniária, mas não terá seu objeto individualizável pelo número de nenhuma
cédula.
Costumam as obrigações pecuniárias ser estudadas entre as obrigações de dar coisa certa (cf.,
por todos, Monteiro, 2001:72/77). Mas nem sempre no momento da constituição da obrigação
pecuniária é possível desde logo quantificar sua extensão. O culpado pelo acidente de trânsito, por
exemplo, é devedor da indenização desde o evento danoso. Não há, porém, como precisar quanto
deve à vítima, senão após a devida apuração das perdas e danos infligidos. Por outro lado, não se
sujeitam a perda, deterioração ou melhoramento do dinheiro às regras sobre os sucessos da coisa
certa. Se o mutuário perder sem culpa o dinheiro que deve ao mutuante – se for roubado, por
exemplo –, este fato não resolve a obrigação; ele continua devedor. Se a inflação deteriora o
dinheiro, por reduzir seu poder de compra, isto não permite ao credor optar pela resolução da
obrigação.
A rigor, a classificação da obrigação de dar segundo a determinação de seu objeto (dar coisa
certa ou incerta) não se aplica adequadamente às obrigações pecuniárias. Estas se dividem, mais
apropriadamente, em líquidas ou ilíquidas. No primeiro caso, a extensão da obrigação está
quantificada em reais; no segundo, embora a obrigação já exista, sua quantificação ainda depende
de cálculos, investigações, estimativas ou avaliações. Os contratantes podem, assim, desde logo,
estabelecer o valor da obrigação do devedor em determinada quantidade de reais, tornando
líquida a obrigação contratual, ou limitar-se a contratar os critérios da quantificação, assumindo o
devedor, neste caso, uma obrigação ilíquida. Os sócios que se retiram da sociedade com direito ao
reembolso têm, perante esta, um crédito de valor ilíquido enquanto não levantado o balanço
patrimonial. A obrigação de a sociedade reembolsá-los existe desde o exercício do direito de
retirada, e esta obrigação é inegavelmente pecuniária; não se sabe, porém, seu valor.
As obrigações pecuniárias têm por objeto a entrega de dinheiro ao sujeito ativo. Não são adequadamente
classificáveis em obrigações de dar coisa certa ou incerta. A melhor classificação divide-as em obrigações
líquidas (quantificadas) ou ilíquidas (não quantificadas).
Note, a propósito, que a dificuldade de se enquadrarem nesta classificação (dar coisa certa ou
incerta) as obrigações não negociais deriva do fato de serem estas essencialmente pecuniárias.
3. Obrigações de fazer
O objeto da prestação das obrigações de fazer não é uma coisa, mas um comportamento do
sujeito passivo. Neste tipo de vínculo obrigacional – que é quase sempre negocial, já que as
obrigações não negociais (responsabilidade civil, prestação de alimentos, obrigações tributárias
etc.) são normalmente pecuniárias –, o interesse do sujeito ativo é o de contratar com o passivo a
adoção, por este, de uma determinada conduta.
A conduta objeto da obrigação de fazer pode ser a prestação de serviços ou a prática de ato ou
negócio jurídico. No primeiro caso, o sujeito passivo obriga-se a disponibilizar uma utilidade ou
comodidade ao ativo. São exemplos desta categoria as obrigações assumidas pelos profissionais
liberais (advogado, médico, dentista, arquiteto, engenheiro etc.), pelas empresas prestadoras de
serviço (hospital, seguradoras, bancos, hotel, empresários do entretenimento etc.) e por alguns
trabalhadores autônomos (empreiteiro, pintor, eletricista, encanador, técnico em eletrodomésticos
etc.). Já no caso das obrigações de fazer mediante a prática de ato ou negócio jurídico, a conduta a
que se obriga o sujeito passivo é, em geral, concentrada, exaure-se numa ação somente e produz
resultado imediato. São exemplos desta categoria de obrigação de fazer o declarar duma vontade
(acionista compromete-se a votar numa determinada pessoa para presidente da companhia), o
comparecer a um local e agir duma certa maneira (cantor obriga-se a dar um espetáculo) e o
executar de uma obra única (pintor obriga-se a retratar o contratante).
3.1. Caracterização da obrigação de fazer
Na obrigação de fazer, a ênfase repousa sobre a conduta do sujeito passivo. Se a obrigação por
ele contraída consiste em comportar-se de uma determinada maneira, apta a produzir um
resultado útil ao interesse do sujeito ativo, caracteriza-se esta modalidade obrigacional. Quando a
ênfase repousa sobre a coisa, no sentido de ser esta o alvo do interesse do sujeito ativo, ainda que
sua entrega pressuponha necessariamente uma ação do devedor, não se caracteriza a obrigação
como de fazer.
Por vezes, não é fácil definir com precisão se determinada obrigação é de fazer ou de dar. Isto
por três razões. Em primeiro lugar, porque há obrigações que podem ser igualmente descritas
como de uma ou de outra espécie. As atividades do estacionamento ou do transportador de carga,
por exemplo, são referidas, na legislação tributária, como prestação de serviços. De fato, eles se
dispõem a fazer algo útil ao sujeito ativo (guardar o veículo e transportar mercadorias),
assumindo, desse modo, obrigações de fazer. Mas estas mesmas obrigações podem ser também
descritas como de dar. O estacionamento, viu-se, é depositário do veículo e está obrigado a restituílo assim que solicitado pelo depositante. Da mesma forma, o transportador de mercadorias deve
restituí-las, no local de destino, ao contratante ou terceiro por ele designado.
Outro exemplo dessa primeira dificuldade está na obrigação do vendedor. Define a lei que ele é
obrigado a transferir o domínio da coisa vendida ao comprador (CC, art. 481). Esta obrigação pode
ser perfeitamente descrita tanto pelo ângulo das obrigações de dar como pelo das de fazer.
Confira-se. Quando a coisa objeto de compra e venda é um imóvel, a transferência do domínio se
faz, em regra, mediante a outorga de escritura pública, que é o título hábil ao registro da alteração
da propriedade no Cartório de Imóveis. Esta outorga é uma declaração de vontade do vendedor
expressa perante o Tabelião. Ir ao cartório e assinar a escritura são ações do sujeito passivo e
podem, por isso, ser referidas como obrigação de fazer. Por outro lado, é por essas ações que o
vendedor dá ao comprador a coisa objeto do contrato. Mesmo se o objeto da compra e venda é bem
móvel, a ação do vendedor de entregá-lo ao comprador pode ser descrita tanto como uma
obrigação de fazer como de dar.
Esta primeira dificuldade é, a rigor, aparente. Para fins de solucionar eventuais conflitos de
interesse, é irrelevante a modalidade de obrigação escolhida como referência. O transportador que
perde a mercadoria transportada deverá indenizar o contratante, independentemente de ser sua
obrigação qualificada como desta ou daquela modalidade. O vendedor da casa que se recusa a
outorgar a escritura pública ao comprador, mesmo após ter recebido o pagamento integral do
preço, pode ser constrangido, em juízo, ao cumprimento da obrigação, seja esta referida como de
dar ou de fazer.
A segunda hipótese de dificuldade na classificação de certa obrigação como de fazer ou de dar
encontra-se nos casos de interdependência. Em certas ocasiões, uma obrigação de fazer não pode
ser prestada sem a concomitante execução de uma obrigação de dar, e vice-versa. A
interdependência impede a clara distinção entre elas. Não há dúvidas, por exemplo, de que a
obrigação do cirurgião plástico de realizar uma cirurgia de embelezamento no paciente é de fazer.
Mas a do cardiologista de implantar um marca-passo não se consegue definir com tanta facilidade.
O paciente que contrata a cirurgia de implantação é sujeito ativo de simultâneas obrigações de dar
(entrega do equipamento a ser implantado) e de fazer (a intervenção cirúrgica, propriamente
dita); uma não tem sentido sem a outra, são completamente interdependentes. O marca-passo não
implantado no coração do paciente de nada serve para ele, assim como a realização do ato
cirúrgico sem esse equipamento é despropositado.
Pode-se resolver a segunda dificuldade pelo critério do interesse do sujeito ativo. Quando o
credor estiver interessado mais na coisa que na pessoa que irá prestar o serviço dependente, será
uma obrigação de dar; na situação inversa, de fazer. Assim, se o cardiopata é operado pelo SUS
(Sistema Único de Saúde), o que mais lhe importa é a qualidade da coisa, até mesmo porque não
pode escolher o profissional que o irá atender. Seria, então, credor de uma obrigação de dar. Se, no
entanto, é operado por seu médico particular, são as habilidades deste e a confiança nele
depositada os fatores de maior interesse e não tanto a qualidade do marca-passo. Pelo critério do
interesse do credor, seria ele sujeito ativo, aqui, de uma obrigação de fazer.
A segunda dificuldade é também aparente. A interdependência das obrigações não impede
responsabilizar o fornecedor da coisa em separado do médico prestador do serviço. O primeiro
responde pela obrigação de dar e o último, pela de fazer. Sendo, por exemplo, defeituoso o marcapasso, quem o fabrica, importa ou comercializa tem a responsabilidade do sujeito passivo numa
obrigação de dar. Ao médico não pode ser, neste caso, imputada nenhuma culpa pelo mal
funcionamento do equipamento. Por outro lado, tendo sido o marca-passo indevidamente
implantado, a responsabilidade é apenas do médico que tinha a obrigação de fazer.
Há três dificuldades na distinção entre obrigações de dar e de fazer. Primeira: muitas obrigações podem
ser igualmente descritas como de uma ou outra natureza (dizer que “o vendedor dá a coisa ao comprador”
equivale a “o vendedor faz a transferência do domínio da coisa ao comprador”). Segunda: algumas
obrigações de fazer são interdependentes com algumas de dar (na cirurgia de implantação de marca-passo,
não há como dissociar uma obrigação da outra). Terceira: toda ação de dar envolve um fazer.
A terceira razão para a dificuldade apontada reside na constatação de que dar é uma ação do
devedor; portanto, uma conduta, ou seja, um fazer. Em termos estritamente lógicos, toda obrigação
de dar seria uma espécie de obrigação de fazer. Esta dificuldade, na verdade, decorre da
inconsistência lógica da classificação criada pela tecnologia jurídica. Tentar resolver a dificuldade
no plano da lógica, por isso, é impossível. Deve-se contorná-la tecnologicamente, isto é, por meio
de argumentos juridicamente operacionais. Neste contexto, a doutrina desenvolveu um critério,
amplamente aceito, que consiste em verificar se há precedência da obrigação de fazer (Monteiro,
2001:98). Se o sujeito passivo fez a coisa para dar ao ativo, então a obrigação é de fazer; se não a
fez, mas a adquiriu feita, é de dar a obrigação. Por este critério, quando o galerista encomenda ao
famoso pintor uma tela, a obrigação do artista é de fazer; quando vende esta tela ao investidor, o
galerista assume a obrigação de dar.
3.2. Espécies de obrigação de fazer
Em razão da ênfase depositada no comportamento do devedor, as obrigações de fazer
classificam-se em fungíveis ou infungíveis. As primeiras são aquelas cuja ação objeto de prestação
pode ser praticada por qualquer pessoa com idênticas habilidades das do devedor. Em outros
termos, nelas, a conduta do sujeito passivo pode ser substituída, sem prejuízo nenhum para a
realização das finalidades da obrigação, pela de outra pessoa. A obrigação de um contador
proceder à escrituração de uma empresa é de fazer fungível. Se o profissional contratado para
realizar a escrita não cumpre sua obrigação, qualquer outro contador pode fazê-lo.
Infungíveis, por sua vez, são as obrigações de fazer que apenas o devedor está em condições de
prestar. Neste caso, o vínculo obrigacional tem natureza intuitu personae, porque estabelecido
exclusivamente em razão dos atributos individuais e especiais ostentados pelo sujeito passivo. O
famoso cantor lírico contratado para representar determinado papel numa ópera não pode ser
substituído por outro qualquer se a propaganda do espetáculo, por exemplo, deu grande destaque
à sua presença no palco. O renomado pintor contratado para executar uma tela não é substituível
por outro, ainda que igualmente afamado e habilidoso. Quando o paciente que necessita de uma
cirurgia contrata conhecidíssimo médico para entregar-se às suas mãos, assume este profissional
uma obrigação de fazer infungível; não poderá substituir-se por um colega.
As obrigações infungíveis subdividem-se, por sua vez, em dois tipos. De um lado, as
juridicamente infungíveis, em que a prestação devida pelo sujeito passivo consiste em expedir
uma determinada declaração de vontade. É o caso da obrigação do vendedor do imóvel que deve
outorgar escritura pública para transmitir o domínio do bem ao comprador, ou da do acionista
que se comprometeu a votar num determinado sentido na assembleia geral da sociedade anônima,
ou ainda do pré-contratante que se obrigara a celebrar o contrato. De outro lado, as materialmente
infungíveis, em que o devedor se obriga a executar algo (prestar um serviço ou praticar um ato)
que ninguém mais pode fazer no lugar dele. São as obrigações encontradas nos exemplos
anteriormente indicados do cantor lírico, pintor e cirurgião.
A infungibilidade material da obrigação de fazer decorre da especialidade, capacidade ou fama
do sujeito passivo. Em outras palavras, quem é ou não substituível, nesta subespécie de obrigação
de fazer, é exclusivamente a pessoa do devedor, e não a prestação. Não basta que a mesma
conduta possa, em tese, ser desempenhada por qualquer pessoa com iguais aptidões ou
capacitação profissional para tornar-se fungível a obrigação de fazer. Pelo contrário, será
materialmente infungível a obrigação se o devedor contratado for de tal forma especial – por sua
capacidade intelectual, expertise, fama ou qualquer outro atributo exclusivo – que não tem
nenhum interesse o credor nos resultados da mesmíssima ação dele esperada, caso praticada por
qualquer outra pessoa. Se preciso de uma mesa para a sala de jantar e a encomendo de um famoso
designer, surge uma obrigação de fazer materialmente infungível. Veja que rigorosamente o
mesmo resultado – uma mesa de sala de jantar – eu poderia obter pelo trabalho de qualquer
marceneiro, mas não me interessam o móvel apenas e suas utilidades, mas especificamente o
objeto projetado e assinado pelo designer que contratei.
As obrigações de fazer classificam-se em infungíveis (o sujeito passivo é insubstituível) ou fungíveis (ele
pode ser substituído). Aquelas, por sua vez, subdividem-se em juridicamente infungíveis (declaração de
vontade) ou materialmente infungíveis (as demais).
A importância da classificação das obrigações nestas espécies e subespécies está ligada à sua
execução judicial. Varia a forma pela qual o credor pode obter em juízo a satisfação de seu direito,
segundo a natureza da obrigação de fazer.
3.3. Execução da obrigação de fazer
A execução da obrigação é judicial quando o sujeito passivo não a executa voluntariamente
(Cap. 13, item 2). Em casos tais, o credor aciona a máquina judiciária com o objetivo de obter,
mediante a atuação do Estado, o resultado igual ao que adviria da execução voluntária da
obrigação. Sendo pecuniária a obrigação inadimplida, bens do patrimônio do devedor são
penhorados e vendidos para que, com o dinheiro apurado na venda, se satisfaça o crédito do
sujeito ativo. Aqui, a execução judicial garante ao credor o mesmo resultado que decorreria do seu
cumprimento espontâneo.
Nem sempre, porém, é jurídica ou materialmente possível obter, na execução judicial de
obrigação de fazer, um resultado idêntico ao da voluntária. Em razão de um valor jurídico e moral
aceito pelas sociedades democráticas do nosso tempo, não é admissível infligir ao devedor
qualquer sorte de constrangimento físico e pessoal capaz de levá-lo a fazer o que ele não quer
(nemo ad factum praecise cogi potest). Não comporta o Direito contemporâneo minimamente
soluções que forcem manu militari o devedor a fazer, contra a sua vontade presente, aquilo a que
se obrigara anteriormente.
Na ordem constitucional brasileira, há apenas duas hipóteses de obrigações civis cujo
cumprimento pode ser forçado por medidas de constrangimento físico do devedor. Trata-se da
prisão por dívida, cabível apenas para forçar o pagamento de obrigação alimentícia ou a
restituição de coisa depositada (CF, art. 5.º, LXVII). Mesmo assim, uma vez transcorrido o prazo
máximo da lei, o sujeito passivo dessas obrigações é posto em liberdade e nenhum outro
constrangimento físico se lhe pode infligir, caso permaneça recusando-se a executá-las
voluntariamente. É, assim, uma garantia constitucional dos devedores das obrigações de fazer, em
geral, a de não serem forçados física e pessoalmente a cumpri-las.
Neste contexto, a lei não poderia deixar de fixar, como regra, a solução das obrigações
materialmente infungíveis de fazer em perdas e danos. Quer dizer, não fazendo o devedor
insubstituível o que prometera, o credor terá, em princípio, direito apenas de ser indenizado pelo
descumprimento da obrigação. É o que estabelece o art. 247 do Código Civil: “incorre na obrigação
de indenizar perdas e danos o devedor que recusar a prestação a ele só imposta, ou só por ele
exequível”. Se o famoso pintor contratado para pintar uma tela se recusa a fazê-la, não há ordem
judicial capaz de movê-lo no sentido de executá-la. Caberá apenas ao contratante exigir a
devolução de eventuais valores antecipados e a indenização pelos danos materiais (se houver) e
morais. Também só pode ser resolvida em perdas e danos a obrigação de fazer do cantor lírico, do
renomado cirurgião ou de qualquer outro sujeito passivo insubstituível.
O descumprimento das obrigações de fazer em que o sujeito ativo é insubstituível e obrigou-se por ação
diferente de declarar a vontade (isto é, as materialmente infungíveis) implica unicamente o dever de
indenizar as perdas e danos. Não há, no atual estágio de evolução do Direito, meios para forçar o sujeito
passivo a fazer o que ele não quer mais.
Além da hipótese de recusa, prevê a lei também a da impossibilidade da prestação na obrigação
materialmente infungível de fazer. Agora, o devedor não se nega a fazer o que se obrigara, mas
está impossibilitado. A prestação não poderá mais se verificar, no tempo e lugar avençados, em
razão de obstáculo intransponível que impede o sujeito passivo de comportar-se como havia se
comprometido. Imagine que o pintor do exemplo anterior sofra um acidente vascular e perca a
capacidade motora indispensável à execução da tela. Pense no cantor lírico que não pôde
apresentar-se no teatro por ter sido acometido de uma fortíssima gripe, de que derivou séria
rouquidão. Considere a hipótese de o médico cirurgião abater-se por stress que o afasta do
trabalho por alguns meses. Nestes casos, não há recusa, mas impossibilidade de praticar o ato
objeto de obrigação.
As consequências da impossibilidade de prestação da obrigação de fazer variam segundo exista
ou não culpa do devedor. Se ele não foi o culpado pelo obstáculo, a obrigação se resolve,
retornando as partes à situação patrimonial anterior à sua constituição (CC, art. 248). No exemplo
acima, o pintor perdeu sua capacidade motora em razão de acidente vascular. Não pode, portanto,
ser culpado pela impossibilidade de execução da obrigação. Deve restituir ao contratante os
valores eventualmente recebidos e está liberado de fazer o que havia prometido. Se, por outro
lado, o sujeito passivo é culpado pela impossibilidade da prestação, equipara a lei esta situação à
da recusa. Ele deverá indenizar as perdas e danos sofridos pelo sujeito ativo (CC, art. 248, in fine).
Desse modo, se ficar comprovado que o cantor lírico não se preservou convenientemente da gripe
e rouquidão, expondo-se a elas de modo imprudente, o empresário que promove a apresentação
da ópera pode exigir a indenização pelos prejuízos que sofrer em razão da ausência do artista.
Se a obrigação de fazer materialmente infungível tornou-se impossível, o sujeito passivo não estará
obrigado a indenizar o ativo se não foi dele a culpa pela perda do objeto. Se foi dele a culpa, porém, está
obrigado ao pagamento de perdas e danos.
Se a obrigação de fazer é juridicamente infungível, a declaração de vontade do sujeito passivo
pode ser substituída por uma decisão judicial. Se o vendedor do imóvel não outorga a escritura
pública, ele está descumprindo a obrigação de transferir o domínio do bem vendido. Esta
obrigação, já se viu, pode ser indistintamente descrita como de dar (item 2) ou de fazer (item 3.1).
Descrita como uma obrigação de fazer, classifica-se entre as juridicamente infungíveis porque sua
execução se faz pela emissão de certa declaração de vontade perante o Tabelião. Nas obrigações
desta subespécie, o juiz pode, julgando procedente a ação intentada pelo comprador, proferir
sentença que produza os mesmos efeitos da declaração recusada.
A obrigação de fazer juridicamente infungível comporta execução específica. A declaração de vontade a
que se obrigara o sujeito passivo é substituída por uma decisão judicial que produz os mesmos efeitos.
Enfim, quando se trata de inadimplemento de obrigação de fazer fungível, a lei faculta ao
sujeito ativo sua realização por terceiro, à custa do sujeito passivo e sem prejuízo da indenização
(CC, art. 249). Se a obrigação não é intuitu personae, quer dizer, se não é insubstituível o devedor,
qualquer pessoa com as mesmas habilidades ou capacitação profissional pode executá-la. O preço
dos serviços do terceiro contratado para executar a obrigação de fazer inadimplida deverá ser
ressarcido pelo devedor. Também é devida a indenização por perdas e danos derivados do
descumprimento da obrigação. Para exercer esse direito, porém, o credor da obrigação de fazer
fungível deve estar especificamente autorizado por ordem judicial. Assim, se Antonio se obrigara a
pintar a casa de Benedito, mas não executa o serviço, este último pode requerer ao juiz que o
autorize a contratar a mesma pintura de Carlos. Deferido seu pedido, os valores que despender
remunerando Carlos, Benedito poderá cobrá-los de Antonio.
A autorização judicial para mandar executar a obrigação fungível de fazer por terceiro, à custa
do devedor inadimplente, é dispensável em caso de urgência (CC, art. 249, parágrafo único) ou se
houver expressa autorização em contrato.
Se o sujeito passivo da obrigação de fazer fungível a descumpre ou é o culpado pela impossibilidade de
sua execução, o sujeito ativo pode optar entre a execução subsidiária por indenização ou por prestação
equivalente.
Em qualquer hipótese, o credor da obrigação fungível de fazer tem direito à indenização pelos
prejuízos que sofreu em razão do inadimplemento. Assim, tendo ou não autorização judicial para
contratar terceiro, havendo ou não urgência, sempre será possível ao sujeito ativo demandar a
indenização pelas perdas e danos que o descumprimento da obrigação fungível de fazer lhe
trouxe.
Em suma, quando o devedor da obrigação materialmente infungível de fazer recusa-se a
executá-la ou está, por sua própria culpa, impossibilitado disso, a execução judicial será
subsidiária por indenização. O Estado simplesmente não tem meios materiais para assegurar ao
credor um resultado igual ou próximo ao que adviria da execução voluntária. Por isso, o credor
poderá, unicamente, reclamar em juízo a indenização dos prejuízos que sofreu em razão do
inadimplemento. Por sua vez, a execução judicial da obrigação de fazer juridicamente infungível é
específica. O destinatário da declaração de vontade recusada pelo devedor tem suprida a ausência
desta pela sentença judicial. O credor alcança, assim, por execução judicial, o mesmo resultado
que derivaria da execução voluntária. Finalmente, a execução em juízo da obrigação de fazer
fungível pode ser, por opção do credor, subsidiária por indenização ou por prestação equivalente.
No primeiro caso, contenta-se o credor em ser indenizado pelos danos que sofreu; no segundo, sem
prejuízo da indenização, obtém autorização judicial para mandar executar a obrigação mediante
os serviços de terceiro, mas à custa do devedor inadimplente.
4. Obrigação de não fazer
Muitos dos deveres em função dos quais as pessoas têm que fazer ou não fazer algo derivam da
lei. No campo do direito penal, sempre que a lei tipifica certa conduta como crime, imputando-lhe
pena, está orientando as ações e omissões que devem ser observadas pelas pessoas. Ao
criminalizar o homicídio, a lei determina que não se pode matar alguém, isto é, as pessoas estão
obrigadas a uma abstenção, a um não fazer. Ao penalizar a omissão de socorro, por outro lado,
determina-lhes um fazer. No âmbito do direito administrativo, a previsão legal de multa para
quem não mantém limpa a calçada de sua casa indica aos munícipes algo que eles devem fazer:
conservar o passeio. Se a multa é imposta ao motorista que estaciona o veículo em lugar proibido,
o dever imposto corresponde a um não fazer. Finalmente, na seara do direito civil, a lei, ao
atribuir ao proprietário ou possuidor de um prédio “o direito de fazer cessar as interferências
prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam” (CC, art. 1.277), está impondo a
todos um dever de não fazer, isto é, o de não prejudicarem a segurança, sossego e saúde de seus
vizinhos. Por outro lado, ao preceituar que “o proprietário construirá de maneira que o seu prédio
não despeje águas, diretamente, sobre o prédio vizinho” (CC, art. 1.300), fixa um comportamento
correspondente a um fazer. As hipóteses acima são deveres, e não obrigações.
Na obrigação de não fazer, o sujeito passivo compromete-se a omitir determinada ação. Tal
como na obrigação de fazer, o objeto da prestação é um comportamento do sujeito passivo, e não
uma coisa. Mas, desta feita, trata-se de uma prestação negativa, quer dizer, um comportamento
omissivo. O direito comercial é pleno de exemplos de obrigações de não fazer: o alienante do
estabelecimento empresarial normalmente assume a obrigação de não concorrer com o
adquirente, para que não ocorra desvio da clientela; a loja instalada em shopping center obriga-se
a não abrir nenhuma filial nas proximidades, evitando a concorrência autofágica; os
administradores e empregados de confiança comprometem-se a não divulgar os segredos de
empresa, na rescisão dos seus contratos de trabalho; nos contatos preliminares destinados a
negociações de empresas, assumem os interessados a obrigação de confidencialidade, isto é, de
não divulgarem as informações e dados a que tiverem acesso, principalmente em vista da
possibilidade de não se concretizar a operação.
Duas normas são previstas para as obrigações de não fazer.
A primeira prevê a resolução da obrigação na hipótese de se tornar impossível ao devedor, sem
culpa deste, abster-se do ato que se obrigara a não praticar (CC, art. 250). Se o cumprimento da
obrigação torna-se material ou juridicamente impossível, por fato alheio à vontade ou conduta do
devedor, é evidente que não se pode exigir dele que continue omitindo a conduta objeto da
prestação. Ninguém pode ser obrigado ao impossível, nem mesmo nas obrigações de não fazer.
Considere-se, uma vez mais, exemplo extraído do direito comercial. Nas sociedades anônimas
abertas, os administradores têm o dever legal de divulgar os fatos relevantes, ou seja, devem
tornar públicos os eventos que podem influir na negociação, em bolsa, das ações emitidas pela
companhia. O objetivo da norma é impedir que alguém se locuplete indevidamente, no mercado
de capitais, por ter informação privilegiada. Se um investidor sabe que a companhia aberta A está
negociando uma parceria (joint venture) com a companhia fechada B, mas o mercado ainda não
está informado disso, ele tem condições de adquirir ações da primeira (por preço baixo), para
revendê-las após o anúncio público da operação (por preço mais alto). De outro lado, os
administradores de A e B assumiram, como é praxe, no início dos contatos, a obrigação de
confidencialidade, isto é, de não fazerem a divulgação da existência das tratativas. Se, contudo,
ocorrer de a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia encarregada de fiscalizar o
mercado de capitais, exigir dos administradores de A a divulgação do fato relevante, eles estarão
impossibilitados de cumprir a obrigação de não fazer que contraíram perante B. A impossibilidade
do cumprimento da obrigação de não fazer deriva de ordem emanada de um órgão do Estado, que
não pode ser desobedecida. Não há, assim, nenhuma culpa dos sujeitos passivos (os
administradores de A), razão pela qual ficam eles liberados da obrigação de confidencialidade.
A segunda norma legal própria das obrigações de não fazer trata de sua execução judicial
específica, em que o Estado assegura ao credor, por meio do aparato judicial, o mesmo resultado
que decorreria da execução voluntária. Assim, se o devedor descumpre a obrigação de não fazer
(faz o que se obrigara a não fazer), o credor pode requerer ao juiz que assinale um prazo para que
o primeiro desfaça o feito, sendo isso possível (CC, art. 251). Na hipótese de recusa ou mora do
devedor, o credor pode solicitar ao juiz que o autorize a desfazê-lo pessoalmente ou por meio de
terceiros, à custa do inadimplente. Em qualquer hipótese, o devedor está obrigado a indenizar os
prejuízos a que der causa.
A autorização judicial para desfazer o que fez o devedor da obrigação de não fazer é
dispensável apenas em caso de urgência (CC, art. 251, parágrafo único).
Evidentemente, a norma sobre execução específica da obrigação de não fazer cuida só das
hipóteses em que o desfazimento é material e juridicamente possível. Se Carlos se obrigou perante
o condomínio de casas a não construir sua residência a menos de 5 metros da divisa do terreno,
assumiu uma obrigação de não fazer. A construção feita sem observância desta restrição pode ser
material e juridicamente desfeita. Nesta hipótese, é cabível a execução judicial específica, com a
autorização do juiz para que o prédio seja parcialmente demolido pelo próprio credor ou por
terceiro, à custa de Carlos. Na maioria das vezes, no entanto, o descumprimento da obrigação de
não fazer é irremediável, porque não pode ser desfeito por razões de ordem material ou jurídica.
Se um dos envolvidos com a negociação de empresa, embora tenha assumido o compromisso de
confidencialidade, precipita-se e divulga amplamente a existência de tratativas amadurecidas, isto
pode até mesmo comprometer a conclusão do negócio. Não há o que se desfazer, porque não é
materialmente possível retornar à situação anterior à difusão da informação. Outro exemplo: a
subscrição de novas ações emitidas por uma sociedade anônima é irrevogável. Se o acionista se
obrigara a não subscrever as ações correspondentes ao seu percentual e descumpre esta obrigação
de não fazer, sob o ponto de vista material não haveria obstáculos ao desfazimento. O acionista
pode, materialmente falando, declarar que não quer mais as ações que subscreveu. Como, porém,
a subscrição é irrevogável, ela não pode ser desfeita por uma razão de ordem meramente jurídica.
Esta obrigação de não fazer, portanto, não é passível de execução judicial específica porque ela (a
subscrição das novas ações) não pode ser juridicamente desfeita.
Nos casos em que a execução específica não cabe, por ser impossível material ou juridicamente
o desfazimento do que foi feito pelo devedor, o credor tem direito apenas à indenização por perdas
e danos.
Há duas normas aplicáveis às obrigações de não fazer. Pela primeira, se o cumprimento da obrigação se
torna impossível (jurídica ou materialmente falando) por razão alheia à vontade ou conduta do devedor, ela
se resolve. Pela segunda, é assegurada a execução específica das obrigações de não fazer em que o
desfazimento é possível (jurídica e materialmente falando).
Note-se, por fim, que, no rigor da lógica, qualquer comportamento pode ser descrito como um
fazer ou não fazer. Andar é o mesmo que não parar; parar é igual a não andar; comer equivale a
não jejuar; jejuar é não comer etc. Em termos lógicos, quem se obriga a fazer algo obriga-se
também a não fazer o oposto (contraditório); quem se obriga a não fazer obriga-se a fazer o
inverso (contraditório). Se o advogado da empresa se obriga a manter determinada informação
confidencial (fazer), ele está obrigando-se a não divulgá-la (não fazer), e vice-versa. Para a lógica,
portanto, não haveria sentido em estabelecer regras próprias para as obrigações de não fazer,
bastando aplicar as previstas para as de fazer.
A lei, contudo, ignora as observações da lógica e trata as obrigações de não fazer como figura
distinta das de fazer. Nenhuma implicação relevante, porém, deriva deste distanciamento entre a
ordem jurídica e a lógica porque, em última análise, são idênticas as normas aplicáveis às duas
modalidades de obrigação. Se alguém culposamente faz o que se havia comprometido a não fazer
ou, também culposamente, não faz o que se comprometera a fazer, a consequência é sempre a
mesma: ele deve pagar a indenização pelas perdas e danos sofridos pelo outro sujeito do vínculo
obrigacional. Se resta impossível fazer ou não fazer o que se comprometera, sem culpa do sujeito
passivo, ele se libera da obrigação. A execução por meio de terceiro (que faz o que o devedor não
fez ou desfaz o que ele fez) depende, tanto na obrigação de fazer como na de não fazer, de
autorização judicial, salvo em caso de urgência.
5. Obrigações alternativas
Em sua estrutura mais simples, viu-se, a obrigação vincula um credor a um devedor e tem por
objeto uma só prestação. A obrigação complexa é, por sua vez, a que não atende a estes
pressupostos. A complexidade verifica-se, assim, quando a obrigação possui mais de um sujeito em
qualquer um dos polos da relação obrigacional, ou mesmo nos dois (ativo e passivo), ou se refere a
mais de uma prestação. Há, pois, complexidade subjetiva (dois ou mais credores; dois ou mais
devedores) ou objetiva (mais de uma prestação).
As obrigações complexas em relação à prestação podem ser cumulativas ou alternativas.
Naquelas, o sujeito passivo deve ao ativo todas as prestações objeto da obrigação, enquanto nestas,
uma delas apenas. Se Antonio obrigou-se perante Benedito a fazer serviços de marcenaria de
móveis de cozinha, quarto e banheiro, esta é uma obrigação complexa cumulativa. Não se libera o
devedor apenas com a entrega de qualquer um deles. Quando, porém, Carlos vende a Darcy um
dos filhotes que sua cadela prenha irá brevemente gerar, a obrigação é complexa alternativa, já
que a entrega de qualquer um dos cachorrinhos configurará seu cumprimento.
Claro que a complexidade das obrigações alternativas não tem limite. Alguém pode obrigar-se
por entregar uma de três prestações indicadas e não uma de duas; ou por uma entre quatro. Pode,
igualmente, obrigar-se a duas de três prestações possíveis; ou a três de quatro, cinco, dez
prestações. Para fins didáticos, porém, desconsiderarei estas possibilidades mais complexas e
tratarei apenas da obrigação alternativa em que o sujeito passivo libera-se do vínculo ao entregar
ao ativo uma de duas prestações. Este corte didático é cabível porque o aumento da complexidade
não altera o regime jurídico da obrigação alternativa. As regras aplicáveis são iguais,
independentemente do grau de complexidade apresentado pela estrutura do vínculo obrigacional.
A obrigação alternativa, embora complexa, é uma só. O sujeito passivo obriga-se a dar, fazer ou
não fazer algo. O que seja exatamente este algo não está precisado desde logo (embora já se
circunscrevam as possibilidades para ele), mas derivará de um processo de concentração em
momento subsequente. É diferente, portanto, de um conjunto de obrigações que, interligadas ou
independentes, corresponde cada uma a dada prestação. O que se multiplica, nas obrigações
alternativas, são as prestações, das quais apenas uma será entregue ao sujeito ativo.
A obrigação é alternativa quando corresponde a mais de uma prestação e o sujeito passivo não precisa
entregá-las todas para se liberar. O título constitutivo da obrigação alternativa lista as prestações e define a
quantidade delas cuja entrega será suficiente para o devedor dar cumprimento ao contratado.
As obrigações alternativas podem ser negociais ou não negociais. No primeiro caso, são
originadas da vontade das partes (contratos, basicamente); no segundo, decorrem exclusivamente
da lei. Exemplos de obrigações alternativas não negociais encontram-se nos arts. 442 (o comprador
de coisa viciada pode exigir a rescisão do contrato comutativo ou o abatimento proporcional do
preço), 1.273 (o dono de coisa fraudulentamente misturada à de outros tem o direito de adquirir a
propriedade do todo, pagando pelo que não era seu com desconto da indenização, ou renunciar ao
que lhe pertence mediante completa indenização), 1.701 (a pessoa obrigada a prestar alimentos
pode optar entre pagar a pensão mensal ou hospedar e sustentar o alimentado) e outros do Código
Civil (cf. Rizzardo, 1999:189/190). É irrelevante a origem da obrigação alternativa, na definição do
direito a aplicar. Negocial ou extranegocial, o regime jurídico das obrigações alternativas é
idêntico.
No exame das obrigações alternativas, três temas reclamam atenção: a concentração, processo
de determinação da prestação a ser entregue em cumprimento da obrigação (item 5.1), os sucessos
das coisas, como a perda, deterioração ou melhoramento (item 5.2), e as diferenças entre este tipo
de obrigação e a facultativa (item 5.3).
5.1. Concentração
Concentração é o processo de determinação da prestação a ser entregue ao sujeito ativo na
execução da obrigação. Tem lugar apenas nas obrigações de dar coisa incerta e nas alternativas.
Nestas modalidades, como a individuação da prestação não ocorre no momento da constituição da
obrigação, deve verificar-se forçosamente no da execução. A concentração opera-se mediante
negócio jurídico unilateral, isto é, por um ato de vontade, uma escolha.
A escolha da prestação a ser entregue caberá a quem os sujeitos da relação obrigacional
estabelecerem. Se, no ato de constituição da obrigação, as partes concordam que o devedor escolha
qual das prestações quer entregar quando da execução, caberá ao sujeito passivo proceder à
concentração. Se estipulam, no entanto, que a escolha será feita pelo credor, a concentração fica a
cargo deste. Podem as partes também eleger uma terceira pessoa, da comum confiança delas, para
o ato. Prevalecerá, em suma, o que tiver sido acordado entre os sujeitos da obrigação.
Se não houver acordo em relação ao responsável pela concentração, a escolha será do devedor.
É o que dispõe a lei: “nas obrigações alternativas, a escolha cabe ao devedor, se outra coisa não se
estipulou” (CC, art. 252). Não tendo as partes se preocupado em contratar sobre este aspecto da
relação obrigacional que constituíam, a lei supletivamente dispõe sobre o assunto. Assim, quando
inexistente acordo entre as partes, atribui-se a concentração ao sujeito passivo. Segundo
Washington de Barros Monteiro, duas são as razões da solução legal. A primeira decorre de antigo
valor jurídico que preconiza o abrandamento da posição normalmente débil do devedor. A
segunda lembra que o cumprimento das obrigações depende essencialmente de atuação do
devedor, sendo razoável que a lei o facilite (2001:112/113).
Ao escolher a prestação a ser entregue, o devedor não pode alterar o objeto da obrigação. É-lhe
defeso, por exemplo, dentre as duas prestações alternativas entregar parte de uma e parte de outra
(CC, art. 252, § 1.º), porque a isto equivaleria alterar unilateralmente a extensão da obrigação. Com
ênfase, se o devedor pode, de acordo com o que foi estabelecido com o credor, escolher uma de
duas possíveis prestações, ele não está autorizado a misturá-las porque isto equivaleria a optar
entre três alternativas, e a tanto não corresponde o conteúdo da obrigação pactuada.
Em caso de obrigação de prestações periódicas, se as partes nada estabelecerem em contrário, a
escolha será exercida em cada vencimento (CC, art. 252, § 2.º). Se Antonio, executivo da empresa
Beta, pode, todo ano, a título de parte de sua remuneração, optar entre a troca do carro ou uma
viagem internacional de férias, há entre estas partes uma obrigação alternativa de prestações
periódicas. Deste modo, a cada ano, Antonio tem renovada a possibilidade de escolher um veículo
novo ou a viagem, independentemente da escolha feita nos anos anteriores, a menos que o
contrato com Beta estabeleça regra diversa (a de que Antonio não poderia trocar de carro três anos
consecutivos, p. ex.).
Se a escolha da prestação a ser entregue cabe a mais de um sujeito, é possível
desentendimentos entre eles. Um ou alguns consideram mais interessante certa prestação, mas
outro ou outros querem solução diferente. Neste caso, os sujeitos optantes devem negociar até
chegarem a consenso. A escolha por qualquer critério majoritário depende de ele ter sido previsto
no título representativo da obrigação. Em caso de omissão deste, porém, se não for alcançada a
unanimidade, qualquer um dos optantes poderá requerer ao juiz que fixe prazo para a obtenção
do consenso. Vencido o prazo judicialmente estabelecido sem escolha unânime da prestação a ser
entregue, caberá a concentração ao juiz (CC, art. 252, § 3.º). Também será deste a escolha se o título
representativo da obrigação contemplar cláusula atribuindo a terceiro a concentração, mas o
nomeado não quiser ou não puder processá-la, e as partes não chegarem a consenso sobre como
superar o empecilho (CC, art. 252, § 4.º).
A tecnologia civilista tem considerado o direito de escolher a prestação insuscetível de cessão
independente da obrigação alternativa a que se refere. Embora admita a transmissibilidade a
sucessores e o exercício do direito por representantes, não considera regular a cessão do direito de
escolha em separado da obrigação alternativa (Nonato, 1959:357). Não é esse, porém, o melhor
entendimento da matéria. Não há nada na lei que impeça a cessão de posição ativa numa
obrigação acessória sem a concomitante cessão de posição (ativa ou passiva) na respectiva
obrigação principal. Deste modo, a menos que expressamente vedada no instrumento negocial em
que se documenta a obrigação alternativa, pode o optante ceder o direito de escolha a terceiros.
A determinação da prestação a ser entregue em cumprimento da obrigação alternativa chama-se
“concentração”. Trata-se do ato de escolha, que será feita por um sujeito de direito (o credor, devedor ou
terceiro) definido pelas partes ou mesmo pelo juiz.
Com a concentração, a obrigação que nascera complexa torna-se simples e como tal passa a ser
juridicamente disciplinada. Se, por exemplo, a escolha cabe ao sujeito ativo, uma vez feita e
comunicada ao devedor, a prestação passa a ser exatamente a escolhida. Em outros termos,
transforma-se numa obrigação simples, com uma só prestação a ser cumprida pelo sujeito passivo.
Neste caso, o devedor está livre, a partir do conhecimento da escolha feita pelo credor, para
vender a coisa preterida a terceiros. Além disso, se a obrigação se concentra, também por escolha
do credor, numa coisa individuada e esta se perde sem culpa do devedor, resolve-se a obrigação
em razão da regra aplicável a este sucesso negativo nas obrigações de dar coisa certa (CC, art. 234).
Ao encerrar este tópico, cabe atentar para uma hipótese específica, em que a concentração é ato
necessariamente sucessivo. Imagine que entre as prestações alternativas há uma de dar coisa
incerta. Se a obrigação acaba concentrando-se exatamente nesta prestação, será necessária uma
nova concentração, isto é, a individuação da coisa a ser entregue ao credor. Considere, por
exemplo, que Carlos é o sujeito passivo de uma obrigação alternativa que tem por objeto a venda
de x bovinos nelore ou y bovinos tabapuã, e que lhe cabe escolher qualquer uma delas para
satisfazer o credor. Neste caso, a concentração desenvolver-se-á em duas etapas sucessivas. A
primeira destinada a precisar a prestação a ser entregue (bovinos nelore ou tabapuã) e a segunda
voltada à individuação dos animais. Lembre-se, a propósito, que, antes da segunda concentração, o
devedor não poderá alegar perda ou deterioração da coisa (já que o gênero não perece); e, após a
concentração, a obrigação de dar coisa incerta transmuda-se em de dar coisa certa, submetendose, então, às normas correspondentes a esta última (item 2.2).
5.2. Impossibilidade ou inexequibilidade de prestação alternativa
Para certa doutrina, além da escolha, haveria uma segunda forma de concentração, que não
seria mais um negócio jurídico unilateral, e sim a impossibilidade ou inexequibilidade de uma das
prestações da obrigação alternativa (cf. Rodrigues, 2002, 2:49/50). São hipóteses de
imprestabilidade de todas menos uma das possíveis maneiras de se cumprir a obrigação. Diz a lei
que, “se uma das duas prestações não puder ser objeto de obrigação ou se tornada inexequível,
subsistirá o débito quanto à outra” (CC, art. 253). Assim sendo, se o sujeito passivo podia escolher
entre duas prestações, a imprestabilidade de qualquer uma delas implicaria a concentração na
outra: ele deverá entregar necessariamente a que subsistir. Não há, em casos tais, nenhum ato de
escolha, mas um fato jurídico que afasta a complexidade da obrigação.
Se, por exemplo, uma das prestações objeto da obrigação for inválida porque sua consideração
entre as alternativas deu-se por erro, disto decorre a simplificação da obrigação. Está-se diante de
uma imprestabilidade jurídica. Se, mais um exemplo, uma das coisas sobre as quais poderia recair
a escolha se perde, também se descarta a complexidade do vínculo obrigacional, já que resta
apenas a outra coisa para ser entregue ao credor. Aqui, o caso é de imprestabilidade material.
Não se deve confundir, segundo penso, concentração com a eliminação da complexidade, isto é,
com a simplificação da obrigação. A melhor forma de operar com estes conceitos é reservar para
aquela expressão o significado de negócio jurídico de escolha, destacando que ela não recobre
todas as hipóteses de redução da multiplicidade de prestações na obrigação alternativa.
Além da escolha, também a impossibilidade ou inexequibilidade da prestação dá ensejo à superação da
complexidade objetiva da obrigação alternativa. Se todas menos uma das prestações é jurídica ou
materialmente impossível ou inexequível, a subsistente deverá ser entregue pelo devedor ao credor.
Em outros termos, a obrigação alternativa é complexa por se referir a duas ou mais prestações
não cumulativas. Para a sua execução, é necessário afastar a complexidade, transformá-la numa
obrigação objetivamente simples. Isto decorrerá da escolha feita por um sujeito de direito
(concentração) ou da impossibilidade ou inexequibilidade de todas menos uma das prestações
alternativas (imprestabilidade). Nos dois casos, a obrigação deixa de ser objetivamente complexa
porque resta apenas uma prestação a ser entregue (a escolhida ou a subsistente); mas são fatos
jurídicos bem distintos.
Na superação da complexidade objetiva por imprestabilidade (jurídica ou material) de uma das
alternativas, não há nenhuma declaração de vontade de qualquer sujeito especificamente
direcionada à seleção da prestação a ser entregue. A definição da prestação a ser entregue decorre
de um outro gênero de fato jurídico (ato humano ou fato natural; ato volitivo ou não etc.). Se uma
das coisas que podiam ser entregues ao sujeito ativo foi roubada, sua imprestabilidade deveu-se a
ato humano intencional (do ladrão); se se incendiou, pode ter sido causada por fato natural (um
raio), negligência de alguém (descuido no manuseio de inflamáveis) ou mesmo também por ato de
vontade (do incendiário). Seja qual for a classificação do fato jurídico verificado, a complexidade
da obrigação desaparece e o sujeito passivo tem, a partir dele, para cumprir, uma só prestação.
5.3. Sucesso das coisas nas obrigações alternativas
Entre a constituição e a execução da obrigação alternativa, as coisas correspondentes às
prestações podem eventualmente experimentar mudanças que influenciam os interesses dos
sujeitos envolvidos. Estas mudanças são sucessos que sobrevêm à coisa, os quais podem ser
negativos (perda total ou parcial) ou positivos (melhoramento). Aqui, examino os sucessos
anteriores à concentração. Isto porque, quando a perda, deterioração ou melhoramento são
posteriores à escolha da prestação a entregar, aplicam-se as regras já examinadas sobre os
sucessos da coisa certa (item 2.2), lembrando que também são estas regras as aplicáveis às
prestações de dar coisa incerta após a individuação do objeto (item 2.4).
Perda. Para compreender as consequências da perda de uma ou de todas as prestações na
obrigação alternativa, convém, inicialmente, investigar se o devedor teve culpa no evento ou se
este derivou de caso fortuito ou força maior.
Não tendo o devedor nenhuma culpa pela perda, cabe distinguir se todas as prestações se
tornaram impossíveis ou se apenas parte delas não pode ser executada.
Quando todas as prestações se perdem sem culpa do devedor, resolve-se a obrigação
alternativa. As partes retornam à condição em que se encontravam anteriormente à constituição
da obrigação, devendo o sujeito passivo restituir ao ativo eventuais pagamentos recebidos. É o que
estabelece o art. 256 do Código Civil: “se todas as prestações se tornarem impossíveis sem culpa do
devedor, extinguir-se-á a obrigação”. Imagine que Darcy, colecionador de veículos antigos, vendeu
a Evaristo, também colecionador, um determinado Volkswagen 1965 ou uma específica HarleyDavidson 1970, podendo entregar qualquer uma destas coisas certas em cumprimento do contrato.
Imagine, também, que a oficina em que se encontram os dois veículos para reparos incendeia-se
em razão da queda de um raio. Perderam-se, sem culpa de Darcy, todas as prestações de sua
obrigação alternativa. Resolve-se esta; quer dizer, Darcy não está mais obrigado a nenhuma
prestação, e Evaristo tem apenas o direito à restituição da entrada se a tiver pago.
Já no caso de apenas parte das obrigações se perderem sem culpa do devedor, ele permanecerá
obrigado pela que subsistir. Veja o art. 253 do Código Civil: “se uma das duas prestações não puder
ser objeto de obrigação ou se tornada inexequível, subsistirá o débito quanto à outra”. No exemplo
anterior, assim, se apenas o Volkswagen se encontrava na oficina incendiada, deve Darcy entregar
a Evaristo a outra prestação, isto é, a motocicleta antiga. Aqui não se resolve a obrigação, e Darcy,
portanto, continua obrigado perante Evaristo. Apenas operou-se a eliminação da complexidade da
estrutura do vínculo obrigacional. Se antes do caso fortuito ele podia escolher entre um ou outro
veículo de colecionador, agora ele está necessariamente obrigado a entregar a Harley-Davidson.
Nas hipóteses de perda de uma ou ambas as prestações sem culpa do devedor, é irrelevante a
quem cabia a escolha. Independentemente do que as partes haviam contratado acerca da
concentração (pelo devedor, credor ou por terceiro), as consequências são as mesmas. Mas, se a
perda é causada por culpa do sujeito passivo (ou de alguém pelo qual é responsável, como filho
menor ou empregado), importa verificar a quem cabia a escolha, para delimitação da
consequência do sucesso.
A perda, sem culpa do devedor, de todas as prestações de uma obrigação alternativa implica a resolução
desta. Já a perda, também sem culpa do devedor, de apenas uma delas implica a simplificação da obrigação,
isto é, subsiste a outra prestação, que deve ser entregue ao credor.
Se a perda decorre de culpa do devedor e a escolha cabia ao credor, as consequências do
sucesso negativo variam de acordo com o seu alcance. Assim, se todas as prestações se perderam
nestas circunstâncias (culpa do devedor e escolha pelo credor), o sujeito ativo terá direito ao valor
de qualquer uma delas mais indenização por perdas e danos. Se tanto o Volkswagen 1965 como a
Harley-Davidson 1970 se perdem num incêndio da garagem de Darcy, provocado por sua culpa ou
de alguém sob sua responsabilidade, Evaristo poderá reclamar o valor de um ou de outro veículo
antigo (optará, normalmente, pelo mais valioso) e as perdas e danos que tiver experimentado.
Decorre do preceituado no art. 255, in fine, do Código Civil: “se, por culpa do devedor, ambas as
prestações se tornarem inexequíveis, poderá o credor reclamar o valor de qualquer das duas, além
da indenização por perdas e danos”.
Quando a perda causada por culpa do devedor alcança apenas uma das prestações da
obrigação alternativa, cabendo a escolha ao credor, terá este o direito de optar entre a prestação
que subsistiu ou o valor da perdida, além da indenização por perdas e danos. Se, no exemplo
considerado, apenas a Harley-Davidson 1970 se encontrava na garagem incendiada por culpa de
Darcy, Evaristo pode reclamar a entrega do Volkswagen 1965 ou o valor daquela motocicleta, além
da indenização por perdas e danos. Esta é a regra do art. 255, primeira parte, do Código Civil:
“quando a escolha couber ao credor e uma das prestações tornar-se impossível por culpa do
devedor, o credor terá direito de exigir a prestação subsistente ou o valor da outra, com perdas e
danos”.
Ou seja, nos casos em que há culpa do devedor pela perda e a escolha é do credor, a prestação
perdida é substituída pelo seu valor, remanescendo a alternatividade na hipótese de se perder
uma só das prestações.
Quando a escolha cabe ao credor, ocorrendo a perda de todas as prestações da obrigação alternativa por
culpa do devedor, pode aquele reclamar o valor de uma ou de outra, mais perdas e danos. Atendidos os
mesmos pressupostos (escolha pelo credor e culpa do devedor), se a perda é de apenas uma das prestações, o
credor pode optar entre o valor da perdida ou a outra prestação, mais perdas e danos.
Quando a escolha não cabe ao credor, em se verificando a perda sucessiva de todas as prestações por
culpa do devedor, este fica obrigado ao valor da que se perdeu por último, mais perdas e danos.
Finalmente, se a perda deriva de culpa do devedor, e a escolha não compete ao credor (mas ao
próprio devedor ou a terceiros), a lei trata apenas do caso de perecimento sucessivo de todas as
prestações. Nesta hipótese, o sujeito passivo fica obrigado a pagar ao ativo o valor da prestação
que se perdeu por último, acrescido de perdas e danos. Se cabia, no exemplo acima, a Darcy
escolher qual dos veículos antigos seria entregue a Evaristo em cumprimento da obrigação
alternativa, e o Volkswagen perdeu-se num dia e a Harley-Davidson no seguinte, sempre por culpa
do devedor, a obrigação será cumprida pelo pagamento do valor da motocicleta mais indenização
por perdas e danos. Assim estipula o art. 254 do Código Civil: “se, por culpa do devedor, não se
puder cumprir nenhuma das prestações, não competindo ao credor a escolha, ficará aquele
obrigado a pagar o valor da que por último se impossibilitou, mais as perdas e danos que o caso
determinar”.
A lei não trata do caso de serem as duas prestações simultaneamente perdidas. Se acontecer,
porém, entendo que o sujeito ativo tem o direito de optar pelo valor de uma ou outra prestação,
sem prejuízo da indenização por perdas e danos. Não cuida a lei, igualmente, da situação de perda
de apenas uma das prestações por culpa do devedor, quando não é do credor o direito de escolha.
Esta lacuna legal não tem nenhuma importância se a escolha cabe ao devedor. Ele simplesmente
entrega a prestação subsistente e, deste modo, dá integral cumprimento à obrigação alternativa. A
lacuna, porém, acarreta dificuldades se a escolha estiver a cargo de terceiros. Aqui, se a prestação
indicada para ser entregue for a perdida, deve-se considerar inadimplida a obrigação,
respondendo o devedor pelo valor dela mais perdas e danos; se, porém, for a que subsistir, a sua
entrega corresponderá ao normal adimplemento da obrigação.
Deterioração e melhoramento. De início, destaco que a lei se preocupou apenas com uma das
hipóteses de sucesso negativo, a perda. Nada dispõe o Código Civil sobre a deterioração ou o
melhoramento, embora estes eventos possam também afetar as obrigações alternativas. Estas
lacunas devem ser supridas pela interpretação analógica dos dispositivos atinentes à deterioração
ou melhoramento da coisa certa.
Assim, sempre que, segundo a regra aplicável à hipótese de perda, o credor de obrigação
alternativa tiver direito à substituição da prestação pelo respectivo valor (CC, arts. 254 e 255),
deve-se reconhecer-lhe, no caso de deterioração, o direito de optar entre receber este valor ou a
prestação deteriorada com abatimento proporcional. Se no incêndio ocorrido na garagem de
Darcy, por culpa dele, o Volkswagen e a Harley-Davidson não se perderam, mas sofreram sérias
avarias, Evaristo poderia, se é o titular do direito de escolha da prestação, optar entre o valor de
qualquer uma das prestações (CC, art. 254, in fine) ou por qualquer um dos veículos no estado em
que se encontra com abatimento do preço, sempre sem prejuízo da indenização por perdas e
danos.
Por outro lado, em caso de melhoramento de uma das prestações, cabendo ao devedor a
escolha, não se antevê nenhum problema: ele simplesmente escolherá a outra prestação que não
sofreu valorização. Não sendo dele, porém, a escolha e recaindo esta sobre a prestação valorizada,
o devedor pode exigir aumento proporcional no preço. Se com o aumento não anuir o credor da
obrigação alternativa, sua execução dar-se-á forçosamente com a entrega da outra prestação. Se
ambas as prestações experimentaram melhoramento e as partes não chegam a acordo sobre o
novo preço delas, resolve-se a obrigação com a aplicação analógica do art. 237 do Código Civil.
5.4. As obrigações facultativas
As obrigações alternativas não se confundem com as facultativas. Naquelas, o sujeito passivo
libera-se mediante a entrega de uma das prestações objeto da obrigação – escolhida por ele, pelo
credor ou por terceiros. Já nas obrigações facultativas, o sujeito passivo pode, em vez de entregar a
prestação objeto da obrigação, liberar-se mediante a entrega de prestação diversa. O objetivo da
facultatividade é facilitar o cumprimento da obrigação. Aparentemente, a sutileza da distinção não
parece despertar questões jurídicas de relevo, mas não é bem assim. Várias consequências
derivam da classificação de certa obrigação como alternativa ou facultativa.
Exemplo típico de obrigação facultativa encontra-se nos mercados de futuro de commodities.
Neles, o vendedor obriga-se a entregar, em data futura, ao comprador determinada quantidade de
produto agrícola por preço entre eles contratado. Se, na data fixada, aquele produto estiver cotado
na bolsa (p. ex., na BM&F – Bolsa de Mercadorias e Futuro de São Paulo) por preço superior, o
devedor pode preferir a liquidação pela diferença. Quer dizer, em vez de entregar o produto
agrícola em espécie, paga ao comprador a diferença entre o preço contratado e o da cotação na
bolsa. E se a cotação, naquela data, for inferior, o vendedor pode exigir a diferença do comprador
em vez de entregar a mercadoria. Na prática, todos os contratos acabam sendo executados pela
diferença, já que os operadores da bolsa não estão interessados propriamente nas mercadorias,
mas sim em negócios de garantia.
O título estabelece se a obrigação é alternativa ou facultativa. Se o documento representativo
da obrigação estipula, por exemplo, que o sujeito passivo pode entregar ao ativo qualquer uma das
prestações listadas, ele diz respeito a obrigação alternativa. Caso estipule, porém, que o sujeito
passivo é obrigado a determinada prestação, tendo a faculdade de executá-la mediante entrega de
prestação diversa, o documento refere-se a obrigação facultativa. Raramente se encontrará no teor
do instrumento representativo da obrigação o uso das expressões identificadoras destas categorias
(“alternativa” ou “facultativa”). Será o exame do conteúdo do acordo entre os sujeitos integrantes
do vínculo obrigacional que possibilitará a exata definição da modalidade da obrigação.
As obrigações alternativas não se confundem com as facultativas. Enquanto as primeiras têm por objeto
várias prestações não cumulativas, as facultativas possuem uma só, estando o devedor autorizado a executála pela entrega de outra prestação.
Assim, percebe-se, desde logo, que a faculdade aberta ao devedor no sentido de se exonerar da
obrigação mediante a entrega de prestação diversa da devida não existe sem a concordância do
credor. Nenhuma das partes pode unilateralmente alterar o conteúdo da obrigação. Se o título
prevê que o sujeito passivo se obriga a entregar determinada coisa, sem mencionar a faculdade de
prestação diversa, a execução só se realiza com o cumprimento da primeira. O devedor só tem o
direito de entregar prestação facultativa se o título correspondente ao negócio o autorizar; quer
dizer, se o credor, no momento da constituição da obrigação, houvera anuído com esta
possibilidade de execução, isto é, com a prestação facultativa.
Ao contrário da alternativa, a obrigação facultativa não é complexa. Nela, há uma única
prestação devida. A faculdade aberta ao sujeito passivo de executar a obrigação mediante a
entrega de prestação diversa destina-se a facilitar seu cumprimento. Desta forma, a prestação
devida é a principal, e a facultativa, a acessória. Se, por qualquer razão, a prestação principal for
inválida, a facultativa também o será. Esta é uma nova diferença em relação à obrigação
alternativa, posto que, nela, a invalidade de uma das prestações possíveis não compromete a das
demais (CC, art. 253). Note-se, também, que, não havendo culpa do devedor, a perda da prestação
principal extingue a obrigação facultativa, ao passo que apenas a perda de todas as prestações
acarreta igual consequência na alternativa (cf. Azevedo, 1973:50). Por fim, nas obrigações
alternativas, a escolha da prestação a ser entregue é, em regra, do devedor, mas as partes podem
atribuí-la ao credor ou a terceiros; mas, nas facultativas, é sempre do devedor a escolha entre a
prestação principal e a acessória.
6. Divisibilidade das obrigações
As obrigações podem ser divisíveis ou indivisíveis, considerando-se a natureza das prestações.
Uma obrigação é divisível se a prestação puder ser repartida e indivisível no caso oposto.
Nas obrigações simples e nas objetivamente complexas, a divisibilidade ou indivisibilidade não
desperta maiores indagações. A questão é relevante apenas no contexto das obrigações
subjetivamente complexas, isto é, aquelas em que há mais de um credor ou mais de um devedor.
Exemplo de obrigação divisível com pluralidade de sujeitos passivos encontra-se nos pools de
bancos para financiamento de empreendimento de elevado porte ou de seguradoras para seguro
de grande valor.
Quando é divisível a prestação, presume a lei sua repartição em tantas obrigações iguais e
distintas quantos sejam os credores ou devedores (CC, art. 257). Deste modo, se Antonio deve $ 200
a Benedito e Carlos, como há pluralidade de credores e a prestação é divisível, presume a lei que
Antonio deve $ 100 a Benedito e $ 100 a Carlos. Se pagar a totalidade do devido a qualquer um dos
credores, ele não estará liberado da obrigação de pagar a quota ao outro. Veja que a lei criou uma
presunção relativa para a hipótese. É lícito às partes pactuar de forma diversa, estabelecendo, por
exemplo, que um dos credores tem direito de receber maior fatia da prestação que o outro.
Supletivamente à vontade das partes, contudo, a lei brasileira estabelece a repartição da obrigação
divisível em tantas quantos sejam os sujeitos da relação. Reproduz, na verdade, antigo primado
jurídico enraizado no direito romano (concursu partes fiunt).
Quando a prestação é indivisível, claro, este primado não pode reger a matéria. Neste caso,
considera-se que todos os sujeitos passivos estão obrigados à prestação (na hipótese de
multiplicidade de devedores) ou que todos os sujeitos ativos têm direito de reclamá-la (na de
multiplicidade de credores). “A obrigação é indivisível”, diz a lei, “quando a prestação tem por
objeto uma coisa ou um fato não suscetíveis de divisão, por sua natureza, por motivo de ordem
econômica, ou dada a razão determinante do negócio jurídico” (CC, art. 258).
Em consequência do dispositivo legal, pode-se falar em indivisibilidade material, econômica ou
jurídica. Se a prestação é, por exemplo, de dar coisa certa fisicamente insuscetível de repartição,
como um animal ou veículo, a indivisibilidade é material. Se for dividir o filhote de gato vendido
para dois irmãos, morre o bichano e perde-se a prestação simplesmente. Será econômica caso a
divisão reduza ou suprima o valor da prestação. O quadro de famoso pintor pode ser material e
juridicamente repartido em dois, mas não alcançará mais o mesmo preço no mercado, passando a
ser negociado mais como uma curiosidade do que propriamente como obra de arte. Por fim, a
indivisibilidade é jurídica quando a lei impede a repartição. É o caso da prestação consistente em
entregar lotes de terreno com dimensões correspondentes ao tamanho mínimo legal de 125 m².
Como o art. 4.º, II, da Lei n. 6.766/79 impede a comercialização de lotes menores do que estes, a
prestação não comporta divisão.
Se na obrigação indivisível houver dois ou mais devedores, cada um deles se obriga pela dívida
toda (CC, art. 259). Deste modo, o credor pode exigir o cumprimento integral da obrigação de
qualquer um dos sujeitos passivos. Aquele que pagar sub-roga-se no direito do credor em relação
aos demais devedores, ou seja, pode cobrar de cada um deles a quota-parte da prestação. Imagine
que Darcy e Evaristo, coproprietários de Furacão, um cavalo de corrida, vendem-no a Germano.
Assumem, em decorrência, uma obrigação de dar coisa certa indivisível. Germano poderá exigir a
entrega de Furacão de Darcy, mesmo que tenha pago o preço do animal a Evaristo, ou vice-versa.
De qualquer modo, entre Darcy e Evaristo, deve ser repartido o preço recebido por Furacão,
proporcionalmente à participação de cada um na copropriedade do animal. Se quem entregou o
cavalo não foi o que recebeu o pagamento, terá direito de cobrar sua parte do outro devedor (CC,
art. 259, parágrafo único). Se foi, deve repassar a parte do pagamento ao outro devedor da
obrigação de entregar o animal.
Nas obrigações indivisíveis com mais de um devedor, cada um é obrigado por toda a dívida, e o que
pagar sub-roga-se nos direitos do credor perante os demais. Já nas obrigações indivisíveis com mais de um
credor, o pagamento a um deles apenas libera o devedor ou devedores se o que recebeu der caução de
ratificação do ato pelos demais.
Por outro lado, se na obrigação indivisível houver mais de um credor, cada um deles pode
exigir a prestação por inteiro. O devedor ou devedores apenas estarão desobrigados, contudo, se o
pagamento tiver sido feito a todos os credores conjuntamente ou se aquele que o recebeu der
caução de ratificação pelos demais (CC, art. 260). Considere que Hebe e Irene, decoradoras, são
credoras de João, marceneiro, por uma obrigação de fazer: ele se obrigou a confeccionar uma
mesa de jantar para uma casa decorada por elas. Tanto Hebe como Irene, agindo isoladamente,
podem acionar João para obter o cumprimento da obrigação; ele, porém, apenas se desobriga ao
entregar a peça para as duas decoradoras em conjunto ou se a que receber o móvel garantir a
ratificação do ato de recebimento pela outra credora. Se ocorrer de Hebe receber a mesa de jantar
e, por exemplo, revendê-la a terceiros, dando ao móvel destinação diversa da originariamente
acertada com Irene, terá esta direito de cobrar daquela sua parte em dinheiro (CC, art. 261).
A indivisibilidade da obrigação descaracteriza-se quando ela se resolve em perdas e danos (CC,
art. 263). Se João do exemplo anterior não cumpre sua obrigação e Hebe e Irene desinteressam-se
da mesa e decidem processá-lo por perdas e danos, desfaz-se a indivisibilidade. O valor da
indenização deverá ser pago proporcionalmente a cada uma das decoradoras, como nas
obrigações divisíveis (CC, art. 257).
7. Obrigações solidárias
Em princípio, viu-se, as obrigações subjetivamente complexas (isto é, com mais de um credor
ou devedor) dividem-se em tantas quantos sejam os sujeitos de cada polo da relação obrigacional
(concursu partes fiunt). No item anterior, foi examinada a primeira exceção a este princípio,
decorrente da indivisibilidade da prestação. Com ênfase, quando a prestação é indivisível, não se
pode repartir a obrigação entre os sujeitos passivos ou ativos por razões de ordem material,
econômica ou jurídica. A repartição da prestação indivisível importaria a perda da coisa
(indivisibilidade material) ou de seu valor (indivisibilidade econômica) ou esbarraria em vedação
legal ou contratual (indivisibilidade jurídica).
Neste item, será examinada a segunda exceção ao princípio concursu partes fiunt. Trata-se das
obrigações solidárias, isto é, aquelas em que há pluralidade de sujeitos (mais de um devedor ou
credor) e unidade de prestação contratual ou legalmente estabelecida. “Há solidariedade”, define a
lei, “quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um
com direito, ou obrigado, à dívida toda” (CC, art. 264).
A solidariedade pode ser passiva ou ativa, segundo a pluralidade de sujeitos se refira
respectivamente ao polo passivo ou ativo da relação obrigacional. Na solidariedade passiva, dois
ou mais devedores são obrigados pela inteira prestação, isto é, por toda a dívida (ainda que seja ela
divisível). Já na solidariedade ativa, dois ou mais credores têm direito ao pagamento de toda a
obrigação (mesmo que divisível).
Como é uma exceção ao princípio da divisibilidade das obrigações, a solidariedade não se
presume (Beviláqua, 1895:105/106). Para existir, é necessário que tenha sido contratada entre as
partes ou decorra de previsão legal (CC, art. 265). Há, portanto, solidariedade contratual (abrigada
em cláusula de contrato) ou legal (derivada de disposição da lei). Numa obrigação divisível
subjetivamente complexa com vários devedores, não havendo cláusula contratual ou norma legal
unindo-os pela solidariedade, aplica-se o art. 257 do Código Civil, ou seja, ela é dividida em tantas
quantos sejam os sujeitos passivos, obrigando-se cada um pela quota-parte da prestação. O credor,
nesta obrigação, só pode exigir de cada devedor a parcela proporcional da prestação divisível. Isto
porque a solidariedade resulta da lei ou da vontade das partes; não havendo em nenhuma delas a
previsão de obrigação solidária, incide o princípio geral do concursu partes fiunt.
A lei prevê diversas hipóteses de responsabilidade solidária. No Código Civil, por exemplo,
dezenas de dispositivos estabelecem solidariedade entre representante e representado (art. 149),
cedente e cessionário (art 1.146), assim como entre mandantes (art. 680), fiadores (art. 829),
gestores (art. 867, parágrafo único), autores da ofensa (art. 942), sócios (arts. 990, 993, 1.039, 1.045
etc.), administradores de sociedade (arts. 1.009, 1.012, 1.016 etc.), cônjuges (art. 1.644),
testamenteiros (art. 1.986) e outros.
A solidariedade não implica que os obrigados solidários sejam titulares de direito ou devam na
mesma extensão ou condição. Pelo contrário, o título ou a lei podem atribuir a sujeitos solidários
direitos ou obrigações diferentes (CC, art. 266). Assim, Antonio e Benedito podem ser devedores
solidários de Carlos, prevendo o contrato, entretanto, que a obrigação de Antonio é pura e simples
e a de Benedito, sujeita ao implemento de certa condição suspensiva. Neste caso, enquanto não
verificada a condição prevista no instrumento contratual, Carlos só poderá exigir o cumprimento
da obrigação de Antonio, malgrado a solidariedade. Uma vez implementada a condição, poderá
escolher qualquer um dos codevedores solidários.
A obrigação é solidária se mais de um credor (solidariedade ativa) ou mais de um devedor (solidariedade
passiva) têm direito ou se obrigam à dívida toda. Na solidariedade, que resulta necessariamente de lei ou
contrato, excepciona-se o princípio da divisibilidade das obrigações estatuído pelo art. 257 do CC.
Entre as obrigações solidárias e as indivisíveis, há indiscutível proximidade. Como são exceções
do princípio da divisibilidade das obrigações, tanto numa como noutra, cada sujeito passivo é
obrigado à prestação como um todo e cada ativo tem direito a toda ela. Na solidariedade passiva e
na indivisibilidade, por exemplo, o credor pode escolher qualquer devedor para exigir o
cumprimento da obrigação; e o devedor que pagar tem direito regressivo contra os demais.
Diferem, porém, uma modalidade de obrigação da outra pelas razões por que se afasta a aplicação
do princípio da divisibilidade. Sendo a obrigação indivisível, a natureza da prestação impede a
repartição em tantas quantos sejam os sujeitos. No caso da obrigação solidária, é a vontade das
partes ou a disposição da lei que o impede.
7.1. Solidariedade passiva
A solidariedade passiva é muito mais frequente que a ativa. Na verdade, é extremamente
comum se deparar, nos contratos, com a cláusula de solidariedade passiva sempre que são mais de
um os devedores. A solidariedade entre os sujeitos passivos é uma garantia normalmente exigida
pelo credor: não se cumprindo a obrigação solidária, ele tem maiores chances de obter a execução
forçada, na medida em que pode escolher para cobrar, entre os devedores, o que estiver em
melhor condição patrimonial. Na solidariedade passiva, “o credor tem o direito a exigir e receber
de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum” (CC, art. 275). Se o
credor receber de um dos devedores solidários apenas uma parcela do devido, pelo saldo não pago
continuam todos solidariamente responsáveis.
A propositura de ação judicial contra um ou alguns dos codevedores solidários não implica a
renúncia, pelo credor, dos direitos relacionados à solidariedade passiva (CC, art. 275, parágrafo
único). Não sendo frutífera a investida judicial contra os primeiros escolhidos, sempre restará ao
credor demandar os demais devedores solidários. Outras atitudes, porém, são consideradas, no
plano doutrinário, renúncia tácita à solidariedade. Se o credor, por exemplo, cobra de cada
devedor apenas a quota correspondente, ou concorda em receber unicamente os juros e multa
proporcionais de um devedor, entende-se que renunciou à solidariedade (Pereira, 1962, 2:94/95).
Além disso, admite a lei a renúncia expressa, que pode aproveitar um, alguns ou todos os
devedores solidários (CC, art. 282).
O devedor que cumpre (voluntária ou forçadamente) a obrigação tem direito de cobrar, em
regresso, dos demais devedores solidários. Entre os codevedores unidos pela solidariedade – ou,
como preferem alguns civilistas, na relação interna da solidariedade (Gomes, 1961:50) –, divide-se
a obrigação em partes iguais. Torna a operar seus efeitos, em outros termos, o princípio da
divisibilidade. Cada codevedor responde, perante os demais, por uma parte proporcional da
prestação (CC, art. 283). Se Darcy, Evaristo e Fabrício são devedores solidários de $ 300, aquele que
pagar o credor pode regressivamente cobrar $ 100 de cada um dos outros. Se forem quatro os
sujeitos passivos solidários, cada um é responsável, perante os demais, por um quarto da
obrigação; se forem cinco, por um quinto, e assim por diante. Perante o credor, evidentemente, os
devedores respondem sempre pela totalidade da dívida, em razão da solidariedade, mas, entre
eles, dá-se o rateio.
Se um codevedor solidário ficar insolvente – isto é, desprovido de meios patrimoniais para
responder ao menos pela respectiva parte da obrigação –, a quota dele será dividida igualmente
entre os solventes (CC, art. 283, in fine). Se, no exemplo acima, Darcy paga a dívida e, ao voltar-se
em regresso contra Evaristo, descobre que ele está insolvente, terá direito de cobrar $ 150 de
Fabrício e arcar, enfim, com os restantes $ 150 da obrigação. Aliás, da divisão entre os devedores
solventes da quota correspondente ao insolvente participam também os solidários eventualmente
liberados da solidariedade pelo credor (CC, art. 284).
No caso de a prestação se tornar impossível por culpa de um dos devedores solidários, o credor
terá direito ao equivalente mais perdas e danos, como em qualquer obrigação. Pelo equivalente,
responderão todos os devedores solidários, mas pelas perdas e danos, apenas o devedor culpado
pela perda da prestação (CC, art. 279). Imagine-se que Germano e Hebe venderam a Irene o último
frasco de sêmen disponível de um famoso cavalo de corrida já falecido e obrigaram-se
solidariamente pela entrega. O preço foi totalmente pago de forma antecipada. Porém, a coisa se
perdeu antes da execução da obrigação por culpa exclusiva de Germano. Neste caso, Irene poderá
cobrar o valor da prestação perdida (isto é, o preço que pagou pelo sêmen) de qualquer um dos
devedores solidários, mas só poderá cobrar a indenização de Germano. Além disso, se Germano
pagar Irene, poderá, em regresso, cobrar a metade do valor da prestação de Hebe, mas nada do que
tiver pago a título de perdas e danos.
Se a prestação não restou impossível, mas houve mora na entrega ao credor por culpa de um
dos codevedores solidários, a regra é diferente. Nesta hipótese, todos os devedores são
solidariamente responsáveis, perante o credor, pelos juros de mora; entre eles, porém, apenas o
culpado pelo atraso responde por tais juros (CC, art. 280).
Na solidariedade passiva, o credor pode exigir toda a dívida, ou parte dela, de qualquer dos codevedores.
O codevedor que pagar tem direito de cobrar, em regresso, dos demais a quota-parte. Pela dívida que
interessa exclusivamente a um só dos devedores, porém, responde o interessado pelo seu valor integral.
Por fim, quando a dívida solidária interessa exclusivamente a um dos devedores, não se
procede ao rateio proporcional na relação interna da solidariedade. Neste caso, o devedor
solidário a quem interessa, com exclusividade, a dívida responde pela integralidade de seu valor
(CC, art. 285). É o caso, entre outros, da fiança nos contratos de locação de imóvel. Na maioria das
vezes, prevê o instrumento contratual que o fiador é devedor solidário com o afiançado (locatário)
pelo pagamento dos aluguéis. Neste caso, porém, a dívida é do interesse exclusivo de quem alugou
o imóvel. O fiador, uma vez pagando o locador, tem direito de regresso contra o afiançado pelo
valor total dos aluguéis que tiver pago, e não apenas pela quota-parte proporcional. Por sua vez, o
afiançado não pode reclamar do fiador, em regresso, a metade do que tiver pago ao locador,
devendo suportar a obrigação inteira.
7.2. Solidariedade ativa
Na solidariedade ativa, o polo credor da relação obrigacional é ocupado por vários sujeitos,
sendo que cada um deles “tem o direito de exigir do devedor o cumprimento da obrigação por
inteiro” (CC, art. 267).
Quando há solidariedade ativa, o pagamento poderá ser feito a qualquer credor, enquanto não
tiver sido proposta demanda judicial de cobrança (CC, art. 268). Uma vez citado da ação, porém, o
devedor deve abster-se de pagar, a não ser em juízo. Feito como for, o pagamento a qualquer um
dos credores extingue toda a obrigação (CC, art. 269). A quitação dada por um credor solidário é,
assim, suficiente para liberar o devedor da obrigação. A partir dela, caberá aos credores, na
relação interna da solidariedade, repartir o valor pago. Deste modo, se o devedor prova perante
um credor solidário que já fez o pagamento da obrigação a outro, nada mais pode ser cobrado
dele. A satisfação do direito de cada um dos sujeitos ativos solidários, após o regular pagamento a
um deles, é assunto a ser resolvido sem envolvimento do devedor.
A solidariedade ativa é muito rara. Seu estudo, por isso, é desprovido de maior interesse.
© desta edição [2020]
2020 - 02 - 12
Curso de Direito Civil - Vol. 2 - Ed. 2020
PÁGINA RB-3.1
SEGUNDA PARTE - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
CAPÍTULO 15. TRANSMISSÃO DA OBRIGAÇÃO
Capítulo 15. TRANSMISSÃO DA OBRIGAÇÃO
1. Espécies de transmissão
A constituição e execução da obrigação podem importar mutações nos patrimônios dos sujeitos
de direito envolvidos. Se alguém passa a ocupar um dos polos da relação obrigacional, seu
patrimônio sofre mudanças. Se passa a ser credor, o ativo cresce; se devedor, aumenta o passivo. A
obrigação integra, por um ou outro elemento, o patrimônio do sujeito, seja ele sujeito ativo ou
passivo. Uma das consequências deste aspecto das obrigações é a sua transmissibilidade. O sujeito
integrante da relação obrigacional pode alienar a obrigação de seu patrimônio a terceiros. Trata-se
de negócio jurídico em razão do qual a obrigação deixa de pertencer ao patrimônio de um sujeito e
passa ao de outro. A transmissão chama-se cessão de crédito quando tem por objeto a posição ativa
da relação obrigacional. O credor (cedente) transfere a outrem (cessionário) o crédito perante o
devedor (cedido). Denomina-se assunção de dívida se o objeto transmitido é a posição passiva do
vínculo. Neste caso, o devedor (alienante) transfere a outrem (adquirente, assumido ou assuntor) o
débito perante o credor (assuntivo).
A obrigação pode ser transmitida de um patrimônio a outro. Quando o sujeito ativo transmite o direito, o
negócio jurídico é denominado “cessão de crédito”; quando o sujeito passivo transmite seu dever, chama-se
“assunção de dívida”.
A transmissão da obrigação pode operar-se por negócio oneroso ou gratuito. No primeiro caso,
o ato é acompanhado por um ganho certo em favor do cessionário (na cessão de crédito) ou do
alienante (na assunção de dívidas). A transmissão gratuita dá-se quando não se verificam estes
ganhos, quando os sujeitos agem desinteressadamente, movidos por caridade, amizade ou dever
familiar. Na maioria das vezes, convém destacar, a transmissão é onerosa.
De outro lado, a transmissão pode ser negocial (inter vivos) ou derivar da morte do sujeito
obrigado (mortis causa). Mas, enquanto naquela admite o direito brasileiro tanto a substituição do
credor (cessão de crédito) como do devedor (assunção de dívida), nesta, cabe só a transmissão de
crédito. Quer dizer, falecendo o credor, seu direito creditório passa aos herdeiros ou legatários. O
sucessor, após a conclusão do inventário, é o novo titular do direito à prestação. Falecendo, porém,
o devedor, não se opera a transmissão. Antes de se partilharem os bens do falecido, pagam-se as
dívidas deixadas. Se, porém, os bens do devedor morto forem insuficientes à satisfação do débito,
os herdeiros ou legatários nada recebem, mas também não se tornam devedores. Extingue-se a
obrigação.
O instituto da transmissão negocial é criação recente do direito das obrigações. Nos países de
tradição românica, como o Brasil, as normas do direito obrigacional reproduzem, quase sem
alterações significativas, padrões desenvolvidos na Antiguidade pelo direito romano. Não
conheceu este, porém, senão a constituição e a extinção da obrigação; a transmissão inter vivos se
fazia sempre por meios indiretos, mediante a extinção da obrigação e a constituição de uma nova.
Uma das razões de o direito romano não ter desenvolvido a figura da transmissão inter vivos
aponta-se na pessoalidade da obrigação. O sujeito não podia transferir a outrem seu crédito ou
débito porque eles eram considerados próprios de sua pessoa (cf. Gil, 1983, 212; Alves, 1965:69/70;
Mazeaud-Chabas, 1998:1255 e s.).
2. Cessão de crédito
A cessão de crédito insere-se no contexto da circulação econômica. Normalmente, o cedente é
titular do direito de crédito a prazo e, através da cessão, antecipa a realização do valor
correspondente. Com o negócio transmissor do crédito, o cessionário paga-lhe, hoje, o valor da
obrigação que vencerá no futuro e passa a ocupar a posição ativa da relação obrigacional,
tornando-se o novo titular do direito. Assim, se Antonio é credor de Benedito, no valor de $ 100, por
obrigação a vencer daqui a três meses, ele pode negociar seu crédito com Carlos. Recebe, hoje, o
valor da obrigação que Carlos irá cobrar de Benedito no vencimento. Costuma-se chamar esta
dinâmica, aliás muito comum na economia desde a Revolução Comercial, de mobilização do
crédito.
Como dito, a cessão pode ser onerosa ou gratuita. Se onerosa, normalmente o cedente recebe do
cessionário valor inferior ao da obrigação que está transmitindo. No exemplo acima, se tivesse
contratado uma cessão onerosa Antonio receberia, hoje, de Carlos, por exemplo, $ 90, para alienarlhe o crédito de $ 100. Carlos lucraria, com a operação, $ 10, quando recebesse de Benedito o valor
integral da obrigação, no vencimento. É esta a hipótese mais comum, porque o cessionário não
tem nenhuma vantagem econômica se paga ao cedente o exato valor a receber no futuro. A
diferença entre o valor da obrigação e o pago pelo cessionário reflete, grosso modo, o preço do
dinheiro no mercado financeiro, isto é, os juros que os bancos praticam, mas deve observar os
parâmetros legais (CC, arts. 406 e 591).
Quando a gratuidade marca a cessão, o cessionário concorda em pagar ao cedente o valor da
obrigação sem qualquer desconto. Normalmente, ele retirará o dinheiro do investimento em que
se encontra para pagar ao cedente e só terá a disponibilidade deste mesmo recurso quando do
vencimento da obrigação, caso seja ela cumprida pontualmente pelo devedor. Na melhor das
hipóteses, o cessionário deixará de receber qualquer remuneração pelo capital entre o desembolso
no ato da cessão e o pagamento da obrigação. A cessão gratuita, por isso, costuma ocorrer apenas
entre amigos ou familiares, inspirada por especiais laços afetivos ou de parentesco. É, em suma,
um presente que o cessionário dá ao cedente. O presente é, aqui, o custo do dinheiro no interregno
entre a cessão e o vencimento da obrigação cedida.
A cessão de crédito pode ser feita pelo credor, em princípio, sempre que ele quiser. Trata-se de
negócio jurídico que não depende de anuência do devedor. O titular do crédito negocia livremente
com terceiros a transmissão da obrigação, sem necessidade de obter a concordância prévia ou
posterior do respectivo sujeito passivo. O credor só está impedido de ceder seu crédito se a cessão
for incompatível com a natureza da obrigação ou contrariar a lei ou o contrato com o devedor.
Somente nestas três hipóteses excepciona-se a regra geral da livre transmissibilidade do crédito.
Deste modo, um crédito personalíssimo (como o decorrente de salário, vencimentos ou pensão
alimentícia) não pode ser cedido porque a sua natureza obsta a transmissão. O direito de crédito a
auxílio social do governo, em geral, não pode ser cedido em razão de expressa proibição na lei. Por
fim, se as partes da relação obrigacional estabeleceram, por acordo de vontade, que não seria
admitida a cessão do crédito, esta se inviabiliza por convenção entre credor e devedor.
A cessão de crédito independe de anuência do devedor. O sujeito ativo da relação obrigacional pode
alienar seus direitos a terceiro exceto se isso conflitar com a natureza da obrigação (p. ex., as prestações
personalíssimas) ou for proibido por lei ou contrato.
É nula a cessão de crédito feita nas hipóteses excepcionais referidas. Em consequência, o ato de
transmissão da obrigação não produz nenhum efeito: o crédito continua no patrimônio do
pretenso cedente e nenhum direito sobre ele passa a titularizar o pretenso cessionário. Se, por
exemplo, credor e devedor haviam contratado que o crédito não poderia ser cedido a terceiros, o
ato de transmissão não está autorizado pela lei (CC, art. 286). Em ocorrendo, será inválido. Protegese, porém, o cessionário de boa-fé quando a cláusula proibitiva da cessão não consta do próprio
instrumento da obrigação. Assim, tendo eventualmente credor e devedor pactuado a
intransmissibilidade da obrigação num documento apartado, ela não prejudicará os direitos de
cessionários que dele não tiverem tido notícia (CC, art. 286, in fine).
2.1. Relações com o cedido e com o cedente
A cessão é uma obrigação que tem por prestação outra obrigação. A partir dela, o cessionário
passa a ter relações jurídicas não só com o cedente, mas também com o cedido. Por razões
didáticas, começo pelas relações com o cedido.
Para ter eficácia em relação ao cedido (devedor), a cessão deve ser comunicada a ele. A lei
menciona como forma adequada para esta comunicação a notificação, que pode ser extrajudicial.
Admite, contudo, qualquer declaração do sujeito passivo feita por escrito, público ou particular, de
ciência da transmissão da obrigação como bastante também para a plena eficácia do ato.
Lembre-se que a cessão não depende, como afirmado, de anuência do devedor. É negócio
jurídico entre o credor e o terceiro adquirente apenas, que se aperfeiçoa e valida sem a
participação do devedor. Cautelarmente, cedente e cessionário podem colher a concordância do
cedido para o ato de cessão, mas isto não é necessário. A cessão de crédito é negócio jurídico válido
independentemente da intervenção do devedor.
Mas, embora não participe da cessão, para que esta projete todos os seus efeitos, o sujeito
passivo precisa ser comunicado do ato. Por evidente, se não tiver ciência de que a obrigação
transmitiu-se do patrimônio do credor originário para o de outro sujeito, o devedor não terá como
cumprir a obrigação perante o atual titular do crédito. Tanto assim que a lei desobriga o “devedor
que, antes de ter conhecimento da cessão, paga ao credor primitivo” (CC, art. 292, primeira parte).
Embora não precise anuir na cessão de crédito, o devedor deve ser cientificado dela para que entregue a
prestação ao atual sujeito ativo da relação obrigacional. Assim sendo, o devedor estará desobrigado se
proceder ao pagamento ao credor originário, antes de receber a cientificação da cessão.
A cessão não altera em nada a extensão da obrigação. O cedido continua devedor da prestação
exatamente como já era antes da transmissão. Apenas que, após a ciência da cessão, estará
obrigado a entregar a prestação ao cessionário, e não mais ao antigo credor. Por esta razão
também, o cedido, se for cobrado pelo cessionário, pode defender-se opondo qualquer exceção que
tiver, inclusive as relativas à pessoa do cedente. Segundo a lei, “o devedor pode opor ao
cessionário as exceções que lhe competirem, bem como as que, no momento em que veio a ter
conhecimento da cessão, tinha contra o cedente” (CC, art. 294). Imagine que Darcy vendeu seu
automóvel a Evaristo para pagamento em duas parcelas iguais, sendo a primeira na entrega do
veículo e a segunda, em 60 dias. Considere que Darcy, no dia seguinte ao contrato, cedeu o crédito
correspondente à última parcela a Fabrício. Feita a entrega do veículo, Evaristo constatou que nele
havia sérios vícios. No prazo da lei, restituiu o carro a Darcy, desfez o negócio e recebeu de volta o
dinheiro dado na entrada. Se Fabrício tentar cobrar-lhe o valor da segunda parcela, Evaristo
poderá resistir a esta pretensão provando que a compra e venda do automóvel da qual se
originara o crédito está desconstituída por vício redibitório. Note que o vício no automóvel é uma
exceção (matéria de defesa) pessoal contra Darcy, mas Evaristo pode argui-la contra Fabrício
porque a cessão não altera a extensão da obrigação transmitida.
No tocante às relações do cessionário com o cedente, releva a responsabilidade deste último
pela existência da obrigação transmitida. O cedente é responsável, perante o cessionário, pela
existência do crédito ao tempo da cessão. Se transmitir direito que não possui, ele deve devolver
ao cessionário o valor da transmissão e compor os danos que tiver causado. No caso acima
exemplificado, Darcy cedeu a Fabrício um crédito que não existia, já que derivado de uma compra
e venda rescindida por vícios na coisa. Fabrício, em decorrência, não podendo cobrar o valor da
última parcela (objeto da cessão) do devedor Evaristo, pode reavê-la de Darcy junto com a cabível
indenização.
A lei imputa ao cedente a responsabilidade apenas pela existência do crédito ao tempo da
cessão, não o considera responsável pela solvência do devedor. Este é um ponto importante na
disciplina da cessão de crédito. Se transmitir direito inexistente, o cedente responde perante o
cessionário e deve ressarcir-lhe os prejuízos. Mas se o direito de crédito que transmitiu existia, não
há como responsabilizá-lo caso o cessionário não venha a receber o pagamento em razão de
insolvência do cedido. Se não houvesse vício nenhum no carro vendido a Evaristo e este, em
seguida, tivesse sua insolvência decretada, Fabrício não teria direito de cobrar de Darcy o valor da
parcela transmitida. A responsabilidade do cedente limita-se à existência do crédito, não alcança a
solvência do devedor (CC, art. 296) (para algumas noções introdutórias sobre insolvência, convém
consultar: Cap. 10, item 11.3).
O cedente não responde pela solvência do devedor, a não ser que tenha assumido expressamente esta
obrigação. Ele responde, porém, pela existência do crédito no momento da cessão. Se transmitiu crédito
inexistente, deverá ressarcir o cessionário.
Para que o cedente se responsabilize também pela solvência do cedido, é indispensável que o
instrumento de cessão contemple cláusula expressa prevendo tal responsabilidade. Se omisso o
documento representativo da cessão acerca da matéria, o cedente terá responsabilidade apenas
pela existência do direito que transmitira ao cessionário ao tempo da cessão. Quando assumir, por
declaração de vontade, a responsabilidade também pela solvência do cedido, o cedente deve pagar
ao cessionário o valor do crédito transmitido, na hipótese de cair insolvente o devedor. Retoma,
neste caso, o cedente a titularidade da posição ativa na relação obrigacional e pode habilitar-se no
processo judicial de insolvência (ou na falência) do cedido, para tentar receber pelo menos parte
de seu crédito.
Diz a lei que “o cedente, responsável ao cessionário pela solvência do devedor, não responde
por mais do que daquele recebeu, com os respectivos juros”, acrescido do ressarcimento das
“despesas da cessão e as que o cessionário houver feito com a cobrança” (CC, art. 297). A aplicação
deste dispositivo deve ser feita com certa cautela. Como visto, na cessão onerosa, o cessionário
normalmente paga ao cedente valor inferior ao do crédito transmitido, para obter ganhos com a
cobrança do montante integral. Quando a lei afirma que o cedente responde apenas pelo que
recebeu do cessionário, isto não significa que este último poderá ficar sem a remuneração
esperada para o capital. A diferença entre o valor da prestação transmitida e o pago ao cedente
deve ser considerada “despesa da cessão”. Quantificando: considere que o valor total do crédito
cedido era $ 500 e o cessionário pagou ao cedente $ 450 pela cessão; a diferença de $ 50 tem a
natureza de “despesa da cessão”, junto com outros custos envolvidos na operação, porque este
montante, caso não possa ser pago pelo devedor insolvente, terá o mesmo efeito para o cessionário
de um gasto feito para titularizar o crédito.
Assim, se a cessão é feita com assunção, pelo cedente, de responsabilidade pela solvência do
devedor, o cessionário pode cobrar-lhe o valor integral da prestação transmitida, porque a
diferença é uma despesa que o cedente está obrigado a ressarcir. Sem esta cautela na aplicação do
art. 297 do Código Civil, a cessão onerosa não concederá suficientes garantias aos cessionários e,
afastando potenciais interessados na operação, deixará de cumprir satisfatoriamente sua função
de instrumento de mobilização de crédito (cf. Gonçalves, 2004, 2:209/211).
2.2. Cessão civil e endosso
Existem, na verdade, dois instrumentos jurídicos aptos à mobilização do crédito: de um lado, a
cessão de crédito (estudada pelo direito civil); de outro, os títulos de créditos (objeto do direito
comercial).
Estes instrumentos não são igualmente aptos à circulação econômica. A rigor, os títulos de
crédito prestam-se melhor a esta finalidade do que o instituto civil da cessão, porque o regime do
direito cambiário, que disciplina os títulos de crédito, funda-se em regras menos rígidas que as do
direito civil.
A transmissão de direitos creditícios documentados num título de crédito à ordem denomina-se
endosso. Por ele, o credor (endossante) transfere o título e os direitos nele materializados a outrem
(endossatário). Mas, ao contrário do cedente (CC, art. 296), o endossante garante, em regra, não só
a existência do crédito como também a solvência do devedor (Lei Uniforme de Genebra, art. 15).
Além disso, o devedor não pode opor ao endossatário as exceções pessoais que eventualmente
tenha contra o endossante (Lei Uniforme de Genebra, art. 17), enquanto o devedor pode defender-
se contra o cessionário arguindo razões de defesa pessoal contra o cedente (CC, art. 294).
O regime da circulação do crédito no direito cambiário é diferente do regime da cessão civil de crédito
em dois pontos principais: responsabilidade do sujeito ativo primitivo pela solvência do devedor e
oponibilidade das exceções pessoais contra o novo titular do direito. As regras sobre estes pontos do direito
cambiário facilitam mais a mobilização do crédito que as do direito civil.
Estas diferenças significam mais garantias para o endossatário do que as asseguradas ao
cessionário. Por isso, é mais comum, na mobilização do crédito, o emprego de títulos sujeitos ao
direito cambiário do que o da cessão civil (Coelho, 1998, 1:406/408). Note-se que estas diferenças
nos regimes jurídicos em questão devem continuar existindo, para que os particulares possam
encontrar sempre a melhor alternativa jurídica para veicular e amparar os seus interesses. Se
querem titularizar instrumentos mais facilmente negociáveis, devem optar pelos títulos de crédito
(nota promissória, letra de câmbio etc.); caso desejem restringir a circulação dos direitos
correspondentes ao negócio que celebram, convém adotar os instrumentos do direito civil.
3. Assunção de dívida
A obrigação passiva também pode ser objeto de transmissão. Por ela, terceiro assume a dívida
do devedor originário e passa a ser o novo sujeito passivo da relação obrigacional. A exemplo da
cessão de crédito, pode ser feita onerosa ou gratuitamente. Também como se passa com a cessão, a
assunção onerosa é operação de mobilização de crédito e a gratuita só ocorre entre amigos ou
familiares.
Na assunção de dívida onerosa, o objeto da transmissão deve ser uma obrigação com
vencimento a prazo. O alienante paga, hoje, ao adquirente o valor da dívida com um desconto e
este se obriga a pagar ao credor, no vencimento, seu valor integral. Para o alienante, a vantagem
está em cumprir a obrigação por valor inferior. Seu ganho é certo. Já o adquirente procurará obter
lucro na operação empregando o dinheiro recebido do alienante num investimento que lhe renda,
até o vencimento da obrigação, mais que o desconto dado sobre o valor total da prestação. O
rendimento que superar o desconto é a vantagem perseguida pelo adquirente da dívida. A
assunção é, assim, uma operação financeira de risco para o assuntor.
Na assunção de dívida, ocorre sucessão singular e não universal. O adquirente do passivo
torna-se, com efeito, devedor apenas da obrigação ou obrigações que tiver adquirido. Pelas demais
obrigações e dívidas do alienante, não pode o adquirente ser responsabilizado.
A assunção de dívida é a transmissão de obrigação em que terceiro substitui o primitivo sujeito passivo
na relação obrigacional. Depende, para se constituir, da anuência expressa do credor e implica a liberação
do devedor originário de suas obrigações.
Ao contrário da cessão de crédito, em que o sujeito do polo oposto da relação obrigacional (no
caso, o devedor cedido) não participa do ato, a assunção de dívida depende do envolvimento deste,
isto é, do credor assuntivo. Sem a expressa concordância do credor, não pode ser feita a
transmissão da dívida. Qualquer um dos participantes da assunção, alienante ou adquirente da
dívida, pode assinalar prazo para que o credor manifeste sua concordância ou discordância com a
transmissão da obrigação. O prazo é de livre estipulação pela parte que instar o credor, mas o
silêncio deste equivale à recusa do assentimento. Quer dizer, a concordância do credor deve ser
expressa (CC, art. 299, primeira parte, e parágrafo único). Uma só exceção abre a lei a esta regra: o
adquirente de imóvel hipotecado pode assumir a dívida garantida pela hipoteca e notificar o
credor para que manifeste sua concordância. Se decorrer o prazo de 30 dias sem qualquer
manifestação, o silêncio neste caso é qualificado pela lei como assentimento (CC, art. 303).
Feita a assunção da dívida com o consentimento do credor, o devedor primitivo libera-se da
obrigação por completo. Com o negócio de assunção aperfeiçoado mediante a anuência do sujeito
ativo, o alienante da obrigação passiva deixa de ser obrigado e o credor só pode, a partir de então,
exercer o seu direito contra o adquirente. Ressalva a lei apenas a hipótese de insolvência do
adquirente ao tempo da assunção ignorada pelo credor. Neste caso, o devedor primitivo continua
respondendo perante o credor pela obrigação transmitida e, uma vez a satisfazendo, poderá
habilitar-se no processo judicial de insolvência do adquirente para tentar reaver o que lhe havia
pago no ato da assunção (CC, art. 299, in fine).
Dita a lei que “o novo devedor não pode opor ao credor as exceções pessoais que competiam ao
devedor primitivo” (CC, art. 302). A obrigação do adquirente tem, assim, uma relativa autonomia
em relação à do alienante, na medida em que não se transmitem as exceções pessoais. A
transmissão de obrigação passiva opera, portanto, certa mudança na extensão da obrigação, efeito
não verificável na cessão de crédito. Por exemplo, se Germano é devedor de Irene pelo valor de $
500 (a vencer) e é dela credor por $ 200 (também a vencer), pode ocorrer a compensação quando
as duas obrigações se tornarem exigíveis. Neste caso, ambas se cumprem simultaneamente
mediante o pagamento, por Germano a Irene, da diferença de $ 300. Se antes do vencimento delas,
porém, Germano transmite sua obrigação passiva a Hebe, com anuência de Irene, é evidente que o
direito à compensação não a acompanha. Hebe não pode opor contra Germano o direito à
compensação de que era titular Irene porque se trata de uma exceção pessoal, e, como visto, o
adquirente do débito não pode opor defesa desse tipo ao credor.
O adquirente de obrigação passiva não pode arguir contra o credor as exceções pessoais que o alienante
titularizava. Na assunção de dívida, opera-se certa mudança na extensão da obrigação, com a relativa
autonomia entre os direitos de defesa do antigo e do novo sujeito passivo.
Muitas vezes, para assegurar o seu cumprimento, as obrigações passivas são garantidas pelo
próprio devedor (através de hipoteca, caução de títulos, penhor etc.) ou por terceiros (fiança, aval,
hipoteca etc.). Evidentemente, também as obrigações garantidas podem ser objeto de transmissão.
Pois bem, em relação às garantias da dívida transmitida, trata a lei de duas situações. Em
primeiro lugar, das garantias especiais eventualmente concedidas pelo alienante. Para Renan
Lotufo, são desta classificação as garantias pessoais do devedor que não foram essenciais à
constituição do vínculo obrigacional; aquelas que poderiam ter sido dispensadas pelas partes sem
se desinteressarem pela obrigação (2003, 2:175). Com a cessão, extinguem-se as garantias especiais,
a menos que o devedor primitivo concorde em mantê-las (CC, art. 300). Claro está, porém, que tudo
depende da vontade do credor. A despeito do previsto em lei, se o assuntivo condicionar a
concordância com a assunção à manutenção das garantias especiais do alienante, prevalecerá sua
vontade ou não haverá transmissão.
A segunda situação referente às garantias da dívida transmitida tratada pela lei diz respeito à
anulação da assunção. Preceitua o art. 301 do Código Civil que, se a transmissão da obrigação
passiva for anulada (por qualquer razão de invalidade dos negócios jurídicos), “restaura-se o
débito anterior, com todas as suas garantias”. Assim, invalidada a assunção de dívida, retorna a
obrigação passiva ao patrimônio do devedor primitivo, perante o qual volta a ter seus direitos o
credor. As garantias anteriormente outorgadas, caso tivessem sido desconstituídas pelo ato de
assunção, se restabelecem. Há uma exceção a considerar: não se revigoram as garantias
concedidas por terceiros que desconheciam o vício da transmissão responsável pela anulação (CC,
art. 301, in fine). Por exemplo, imagine que João era devedor de Luiz por obrigação na qual Mário e
Nair eram fiadores. Suponha, agora, que João e Mário, mediante coação, forçam Osvaldo a assumir
a obrigação passiva do primeiro. Luiz e Nair desconhecem o vício na declaração de vontade de
Osvaldo. Luiz, então, concorda com a assunção, ficando João, Mário e Nair desobrigados.
Posteriormente, Osvaldo obtém em juízo a anulação da assunção de dívida. Em decorrência,
restauram-se a obrigação de João e todas as garantias, exceto as de terceiros que desconheciam o
vício; ou seja, a fiança dada por Mário se revigora, mas não a concedida por Nair.
© desta edição [2020]
2020 - 02 - 12
Curso de Direito Civil - Vol. 2 - Ed. 2020
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SEGUNDA PARTE - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
CAPÍTULO 16. ADIMPLEMENTO DA OBRIGAÇÃO: PAGAMENTO
Capítulo 16. ADIMPLEMENTO DA OBRIGAÇÃO: PAGAMENTO
1. Conceito de pagamento
Pagamento é, tecnicamente falando, uma expressão ambígua. Em sentido estrito, refere-se ao
cumprimento de obrigação pecuniária. Nele, pagamento é a entrega ao sujeito ativo de dinheiro,
com o preciso objetivo de ser cumprida (adimplida) a obrigação existente entre ele e o sujeito
passivo. Na linguagem cotidiana, normalmente se emprega a palavra apenas nesta acepção. Em
sentido largo, pagamento significa o cumprimento de obrigação de qualquer modalidade. Aqui,
não se restringe ao adimplemento de obrigação pecuniária, mas ao dar, fazer ou não fazer a que
corresponde a prestação. No contexto tecnológico, este é o sentido que convém seja dado à
expressão. Neste Curso, por isso, pagamento tem sempre o sentido largo, de adimplemento de
qualquer obrigação.
Pelo pagamento, é cumprida a obrigação que sujeitava o sujeito passivo ao ativo, satisfazendose o direito deste. Trata-se de negócio jurídico que põe fim ao vínculo obrigacional (Gomes,
1961:91/93; Gil, 1983:277/280). Ele desfaz a obrigação, desvinculando os sujeitos que estavam
unidos por ela. Implica, em termos técnicos, a solução da obrigação (solutio). Após o regular e
completo pagamento, feito com a observância das normas legais e contratuais aplicáveis, o
devedor não deve nenhuma outra prestação ao credor, e este nada mais lhe pode exigir.
Quando a execução da obrigação é voluntária, ela se exaure no pagamento. Se a prestação é
entregue espontaneamente ao credor, paga-se a obrigação que o vinculava ao devedor. Por isso,
alguns autores preferem tomar a expressão “pagamento” como sinônimo de cumprimento
voluntário da obrigação (Pereira, 1962:144; Rodrigues, 2002:124; Gil, 1983:277; Planiol-Ripert, 1952,
7:551). Por essa razão, daqui para diante, sempre que se mencionar pagamento, cuidar-se-á do
espontâneo, isto é, do realizado independentemente de qualquer constrangimento judicial do
devedor (cf. Diniz, 2003, 2:212).
A expressão “pagamento” tem dois sentidos. De um lado, significa a entrega de dinheiro ao sujeito ativo
em cumprimento de obrigação pecuniária (sentido estrito); de outro, o adimplemento de obrigação de
qualquer natureza, mediante a entrega ao sujeito ativo da prestação de dar, fazer ou não fazer que lhe é
devida (sentido largo).
Por último nestas considerações introdutórias, cabe destacar que o pagamento é um dos modos
de extinção da obrigação, mas não o único. Pelo pagamento, feito pelo próprio devedor ou por
terceiro, desliga-se o sujeito passivo do vínculo que o sujeitava ao ativo. O ato, consequentemente,
acaba com a obrigação, embora possa, em alguns casos, dar nascimento a outra (pagamento por
sub-rogação, p. ex.). Por corresponder à execução voluntária e ao ato objetivado pela execução
forçada, porém, o pagamento não esgota todas as possibilidades pelas quais a obrigação deixa de
existir. Além do cumprimento, extinguem-na diversos outros fatos ou negócios jurídicos –
novação, compensação, prescrição etc. –, que serão objeto de exame na sequência (Cap. 17).
2. Os sujeitos
O pagamento é o ato pelo qual a prestação objeto da obrigação é entregue ao credor. Quem
realiza o pagamento, assim, é o sujeito que entrega a prestação – por vezes, designado na doutrina
em latim: solvens. Na maioria dos casos, o pagador é o devedor, o sujeito passivo da relação
obrigacional. A lei, porém, valida, em determinadas condições, o ato de pagar realizado por
terceiros (item 2.1). Por outro lado, o pagamento deve ser feito à parte ativa da relação – o
accipiens. O credor, mesmo quando realizado o pagamento na pessoa de seu representante, será o
beneficiário do ato. É o sujeito a quem a prestação objeto da obrigação deve ser entregue (item
2.2).
2.1. O sujeito que paga
No pagamento direto, que corresponde ao cumprimento (voluntário ou judicial) da obrigação
tal como esperado pelas partes quando da constituição, o ato é feito pelo próprio devedor, sujeito
passivo da relação obrigacional. Como é ele que se encontra sujeito ao credor em razão da
obrigação, o pagamento e a consequente extinção do vínculo de sujeição costuma ser do seu
interesse.
Embora raramente, o pagamento pode ser feito também por terceiros estranhos à obrigação.
Não é fácil, de pronto, visualizar exemplos destes casos, porque as pessoas guiam seus atos, em
geral, pelo atendimento dos próprios interesses. Poucas vezes terceiro vê qualquer tipo de
vantagem em cumprir obrigação que não é dele, isto é, em adimplir no lugar de outrem, o
devedor, determinada obrigação. Quando isso se verifica, porém, incidem as normas sobre a
matéria (CC, arts. 304 a 306).
No pagamento de obrigação por terceiro (isto é, por sujeito diverso do devedor), a lei distingue
os efeitos do ato segundo seja o solvens interessado ou não na extinção do vínculo. Exemplo típico
de terceiro com interesse no fim da sujeição obrigacional é o fiador. Temendo que o afiançado não
honre, no vencimento, a obrigação garantida, o fiador tem interesse em pagá-la tempestivamente
para evitar os acréscimos da mora. Também pode ser considerado terceiro interessado o potencial
sucessor (um descendente, p. ex.) que não quer ver afetado em execução judicial determinado
bem do patrimônio do devedor que ele espera receber por herança. O terceiro é interessado,
portanto, quando o descumprimento da obrigação pode afetar seu patrimônio, efetiva ou
potencialmente. No caso do fiador, se o afiançado não pagar o credor, ele terá seu patrimônio
efetivamente atingido numa execução judicial aforada contra ele; no caso do descendente, a
afetação é sempre potencial, porque o desejo de um dia receber, por herança, determinado bem
pode ser frustrado por fatos jurídicos fora de seu controle ou mesmo por atos do sucessor
praticados ainda em vida (testamento, alienação, reconhecimento de filhos etc.).
Terceiro sem interesse no adimplemento da obrigação é, a seu turno, o estranho à relação
obrigacional que não corre o risco de ser, efetiva ou potencialmente, afetado em seu patrimônio
caso o devedor a descumpra. Claro que pelo menos uma vantagem extrapatrimonial esse estranho
deve vislumbrar no ato, para interferir na relação obrigacional com o propósito de solvê-la. O
terceiro não interessado, assim, costuma motivar-se por sentimentos de afeição, filantropia ou
dever moral. Pense no amigo ou parente que, sabendo das dificuldades por que passa o devedor,
apresenta-se ao credor com o objetivo de cumprir a obrigação daquele.
Pois bem, vejam-se as diferenças no tratamento jurídico das duas situações (pagamento por
terceiro com ou sem interesse patrimonial na solução da obrigação).
O terceiro interessado tem o direito de pagar a obrigação, independentemente da vontade do
devedor ou do credor. Aliás, em se negando o sujeito ativo a receber o pagamento do terceiro
interessado, assegura a lei possa este último valer-se das ações judiciais próprias, como a
consignação em pagamento (CC, art. 304, caput; CPC, arts. 539 e s.).
Como tem interesse patrimonial na extinção da obrigação e direito de pagar, o terceiro, neste
caso, cumpre a obrigação em nome próprio e não no do sujeito passivo. E, em consequência, subroga-se nos direitos do credor (CC, art. 346, III). Quer dizer, passa a titularizar todos os direitos,
ações, privilégios e garantias que tinha o credor primitivo contra o devedor (art. 349).
O terceiro com interesse patrimonial na solução da obrigação tem o direito de proceder ao pagamento,
independentemente da vontade do devedor ou do credor. Neste caso, opera-se a sub-rogação, transferindo-se
ao terceiro pagador todos os direitos, ações, preferências e garantias titularizados pelo credor primitivo.
O terceiro sem interesse patrimonial na solução da obrigação pode fazer o pagamento em nome
e por conta do sujeito passivo da relação obrigacional ou em nome próprio. Dependem
exclusivamente da vontade do terceiro pagador os efeitos que pretende emprestar ao pagamento.
Quando o terceiro não interessado (patrimonialmente falando) na solução da obrigação declara
fazer o pagamento em nome e por conta do devedor, ele pode ser impedido de praticar o ato por
oposição do devedor. Perante o credor, destaque-se, o terceiro sem interesse que paga em nome e
por conta do devedor tem as mesmas ações judiciais asseguradas ao terceiro interessado, que
conduzem à exoneração do sujeito passivo (a consignação em pagamento, basicamente). Mas, para
pagar validamente, é necessário que o devedor tenha ciência da intenção do terceiro e a ela não se
oponha (CC, art. 304, parágrafo único). Havendo oposição do devedor comunicada ao credor, este
não deve receber do terceiro não interessado o pagamento da obrigação em nome e por conta do
devedor; estará praticando, neste caso, ato contrário à lei e poderá vir a ser responsabilizado
civilmente pelos danos, inclusive morais, que o devedor sofrer com o ato. Além disso, se o terceiro
pagador declara pagar em nome e por conta do devedor, não poderá cobrar nada deste em
regresso. Estará, aqui, assumindo integralmente a dívida e renunciando ao direito de ser
ressarcido pelo desembolso que realizou.
O terceiro sem interesse patrimonial na solução da obrigação não pode pagá-la “em nome e por conta do
devedor” se este se opuser. Mesmo com o conhecimento e anuência do sujeito passivo, o terceiro pagador
não interessado que paga “em nome e por conta do devedor” não tem direito ao reembolso do que
despendeu com o pagamento.
O terceiro não interessado que declara estar fazendo o pagamento em nome próprio não tem
assegurado, na lei, contra o credor, o mesmo direito do terceiro interessado e do não interessado
que paga em nome e por conta do devedor. Ele precisa, por isso, contar com a anuência tanto do
credor como do devedor para proceder ao pagamento. O terceiro pagador não interessado que,
nestas condições, solver a obrigação em nome próprio terá, em princípio, direito de ser
reembolsado pelo devedor (CC, art. 305). Estabelece, contudo, o art. 306 do Código Civil que “o
pagamento feito por terceiro, com desconhecimento ou oposição do devedor, não obriga a
reembolsar aquele que pagou, se o devedor tinha meios de ilidir a ação”. Este preceito não se
aplica ao terceiro com interesse na solução da obrigação, porque ele tem o direito de proceder ao
pagamento independentemente da vontade do devedor; e também não se aplica ao terceiro sem
interesse na solução da obrigação que faz o pagamento em nome e por conta do devedor, porque
ele não tem direito ao reembolso. Aplica-se o art. 306 apenas ao terceiro não interessado que
declara pagar em nome próprio. Se ele o fizer sem conhecimento do devedor, ou a despeito da
oposição deste, ele perde o direito ao reembolso, a menos que prove que o devedor não tinha
meios para ilidir a ação.
O terceiro não interessado patrimonialmente na solução da obrigação só pode pagá-la “em nome
próprio” com a anuência do devedor e do credor. Ele tem, em princípio, direito ao reembolso do que
despender com o pagamento. Perde este direito se procedeu sem conhecimento do devedor ou a despeito da
oposição deste, a menos que o sujeito passivo não pudesse ilidir a ação.
Em nenhuma hipótese o terceiro não interessado se sub-roga nos direitos do credor. Tenha
praticado o ato em nome e por conta do devedor ou em nome próprio, o terceiro sem interesse na
solução da obrigação não realiza pagamento por sub-rogação. Não se transferem ao patrimônio do
solvens, neste caso, todos os direitos, ações, garantias e privilégios titularizados pelo anterior
sujeito ativo. Em outros termos, o direito ao reembolso de que é titular o terceiro não interessado
que paga em nome próprio não se confunde com a sub-rogação.
Não cabe o pagamento da obrigação por terceiro quando ela tiver por objeto uma prestação
personalíssima (intuitu personae). Neste caso, o sujeito passivo é insubstituível e a obrigação só por
ele pode ser cumprida. Quem contrata o parecer de renomado jurista não terá seu direito satisfeito
senão mediante o fazer da pessoa contratada, de ninguém mais. Terceiro, ainda que também
jurista afamado, não pode proceder ao pagamento da obrigação entregando ao credor trabalho de
sua autoria. Quando a prestação é personalíssima, por conseguinte, não incidem as regras acima
examinadas.
2.2. O sujeito a quem se paga
No Brasil da atualidade, quando se trata de obrigação pecuniária, a maioria dos pagamentos
fazem-se através do sistema bancário. Cumpre-se a obrigação, neste caso, normalmente por meio
de Transferência Eletrônica de Disponibilidade (TED), Documento de Crédito (DOC), cheque
administrativo, boleto bancário ou depósito de dinheiro ou cheque na conta bancária do credor. É
raro, nas obrigações pecuniárias de valor não desprezível, ser o credor procurado pessoalmente
pelo devedor para passar-lhe às mãos papel-moeda na quantidade correspondente ao valor da
prestação. Quando a obrigação pecuniária é adimplida através de bancos, não costuma haver
dúvidas acerca da adequada destinação do pagamento: confirmado que a liquidação de qualquer
daqueles instrumentos bancários resultou em crédito em favor do credor, está cumprida a
obrigação. Mas, se a obrigação pecuniária é cumprida mediante entrega direta do numerário ao
credor (isto se verifica, normalmente, nas prestações de menor valor) ou se se trata de obrigação
não pecuniária, podem surgir dúvidas acerca da correta destinação do pagamento. Isto é, a pessoa
a quem se fez a entrega da prestação objeto de obrigação era mesmo a credora, a parte ativa da
relação obrigacional? Quem paga deve acautelar-se adotando as providências necessárias para se
certificar de que está realmente cumprindo a obrigação perante o sujeito certo. Se o devedor paga
a quem não é o verdadeiro credor, em princípio não realiza pagamento nenhum. Se for acionado
judicialmente pelo titular do crédito, não poderá alegar tê-lo já satisfeito porque isso, de fato, não
aconteceu. O terceiro não credor a quem o pagamento foi feito, por evidente, deve devolver o que
recebeu indevidamente ao solvens (Cap. 20, item 4), mas o credor não pode ser prejudicado pelo
erro em que incorreu o devedor.
Não tem eficácia liberatória, portanto, o pagamento feito a quem não é o credor. Só se libera o
sujeito passivo da obrigação quando a prestação é entregue ao sujeito ativo. Isto em princípio; há
duas hipóteses em que o pagamento feito a quem não é o credor é eficaz, de acordo com a lei:
quando o terceiro recebedor é representante de direito do sujeito ativo ou um credor aparente (ou
putativo).
O pagamento deve ser efetuado ao credor, à parte ativa da relação obrigacional. Se o ato é feito a quem
não é credor, não tem eficácia liberatória, permanecendo o devedor sujeito à obrigação. Em duas hipóteses
esta regra é excepcionada: o pagamento ao representante de direito do credor ou o feito ao credor aparente.
Nestes casos, embora a prestação não seja entregue diretamente à pessoa do credor, o pagamento tem
eficácia liberatória.
Na primeira, o representante age em nome do credor. O pagamento efetuado para ele é, na
verdade, feito ao próprio representado. Quando o devedor paga ao representante do sujeito ativo,
está liberando-se validamente da obrigação.
Lembre que a representação pode ser legal ou convencional, conforme provenham os poderes
do representante de disposição da lei ou da vontade do representado. Os pais representam o filho
absolutamente incapaz porque a lei assim preceitua (CC, art. 1.634, VII). Se o devedor entrega a
prestação devida a pessoa menor de 16 anos aos pais dela, o pagamento é válido e eficaz porque
feito na pessoa de representante legal do credor. Em alguns casos, a representação legal é
chamada de “judicial”, porque a pessoa investida nos poderes de representação legal é escolhida
pelo juiz. O inventariante, neste contexto, é o representante judicial do espólio (Podestá, 1997:136).
Na representação convencional, os poderes do representante são outorgados por declaração de
vontade do representado. Vários são os meios de expressão da vontade de outorgar poderes de
representação. Tanto é representante do credor o mandatário investido nesta condição por
procuração outorgada em cartório como o mero portador do documento de quitação
(normalmente, o recibo). A lei não exige formalidades específicas para validade da investidura do
representante convencional, bastando que a declaração de vontade do credor representado seja
comunicada ao devedor por meios confiáveis. Imagine que Antonio, ao adquirir peça de
antiguidade de Benedito, informa que ela pode ser entregue a Carlos. Neste caso, o credor
procedeu informalmente à indicação de um “representante” para receber, por ele, o pagamento
(isto é, a entrega da antiguidade). A propósito, a lei considera que o portador da quitação está, em
princípio, autorizado pelo credor a receber o pagamento. Se o sujeito ativo lança sua assinatura
num documento de quitação e o passa às mãos de pessoa de sua confiança, presume-se que a está
encarregando de receber o pagamento em nome dele. É outra maneira de o accipiens
informalmente indicar terceiro para o recebimento da prestação. Ressalva, contudo, que não
prevalece a presunção se as circunstâncias a contrariarem (CC, art. 311). O devedor não deve
pagar o portador do recibo de quitação se for ele, por exemplo, um mendigo. Convém, neste caso,
confirmar antes a legitimidade da posse do documento com o credor, porque o mais provável é
que o mendigo tenha encontrado documento que se extraviou e não esteja realmente autorizado
por ele a receber o pagamento (o exemplo é de Maria Helena Diniz; 2003, 2: 221).
A segunda hipótese legal de eficácia do pagamento feito a quem não é o sujeito ativo da relação
obrigacional encontra-se na figura do credor aparente (Gomes, 1967:114/126). Para que o
pagamento tenha plena eficácia liberatória, neste caso, devem convergir duas condições: a
aparência de ser o accipiens o titular do direito ao crédito e a boa-fé do solvens. Diz a lei que “o
pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é válido, ainda provado depois que não era credor”
(CC, art. 309).
O credor é putativo quando parece ser, mesmo ao mais cauteloso dos devedores, o titular do
direito à prestação. Imagine que o funcionário da loja de informática encarregado de entregar o
notebook ao consumidor depare-se, chegando ao endereço mencionado na nota fiscal, com um
homem ao volante de carro saindo da garagem e pergunte-lhe se mora ou trabalha naquela casa.
Diante da resposta afirmativa, o funcionário entrega-lhe o microcomputador portátil e colhe sua a
assinatura no recibo do canhoto da nota fiscal. Estas circunstâncias indicam que aquele homem
poderia ser o credor, ou alguém legitimado a receber a prestação em seu nome. Se estava, na
verdade, roubando o automóvel, isto não podia ser percebido pelo funcionário da loja de
informática. Neste exemplo, está cumprida a primeira condição para eficácia desta hipótese de
pagamento feito a quem não é o credor: a aparência de ser o accipiens o titular do direito. A
segunda condição é a boa-fé de quem faz o pagamento. Para a eficácia do pagamento ao credor
putativo, é indispensável que o devedor desconheça o fato de estar entregando a prestação a quem
não titulariza o direito de recebê-la. Assim sendo, se o devedor é notificado no sentido de não
pagar a determinada pessoa, mesmo que ela aparente ser a credora, e, mesmo assim, o faz, está
agindo sem boa-fé; a entrega da prestação, aqui, seria ineficaz como ato de liberação do vínculo
obrigacional.
Ao lado das normas de pagamento eficaz, malgrado a entrega da prestação a quem não é credor
(as hipóteses do representante e do credor putativo), encontram-se no Código Civil as do
pagamento ineficaz, apesar de feito à pessoa do credor. Em duas situações, note-se, o sujeito
passivo cumpre a obrigação perante o ativo, mas dela não se libera: a) se a quitação é outorgada
por credor incapaz que não se beneficiou do pagamento (CC, art. 310); b) se o crédito havia sido
penhorado em garantia de direitos de terceiros ou por estes questionado (CC, art. 312).
Na primeira situação, o objetivo da ineficácia é a proteção do incapaz. Se o devedor sabe que o
credor não tem capacidade para dar a quitação sem ser representado ou assistido na forma da lei,
deve abster-se de entregar-lhe diretamente a prestação; deve, para liberar-se eficazmente da
obrigação, solicitar a assinatura do representante ou do assistente legal no recibo. Caso não adote
esta cautela e entregue a prestação ao incapaz, só estará liberado do vínculo obrigacional se
provar que ela reverteu efetivamente em benefício deste último. É do devedor o ônus da prova. Se
preferiu pagar ao incapaz e eventualmente não se acautelou no sentido de reunir e conservar os
elementos que demonstrem a efetiva reversão da prestação em favor deste, o devedor está
obrigado a pagar novamente a obrigação. A razão de ser do preceito é fácil de entender. O incapaz
é merecedor de especial atenção do direito porque não tem o discernimento suficiente para
preservar seus interesses nos negócios jurídicos de que participa. Ao assinar a quitação, pode, sem
perceber com nitidez, declarar que recebeu mais do que o realmente entregue. A lei o protege,
imputando ao devedor o ônus da prova de que o incapaz foi efetivamente beneficiado pela
prestação descrita no recibo, sob pena de ter que entregá-la uma vez mais.
Em duas situações o pagamento é ineficaz perante terceiros, mesmo tendo sido feito ao sujeito ativo da
relação obrigacional: se a quitação é dada pelo credor incapaz e a prestação não reverteu efetivamente para
ele ou se o crédito é objeto de penhora ou impugnação conhecidas do devedor.
Na segunda situação, a ineficácia do pagamento é estabelecida em lei para proteção de
interesses de terceiros. São duas as hipóteses nela abrangidas. De um lado, a do credor do credor
que obteve, em juízo, a penhora do crédito (isto é, da prestação a ser entregue pelo devedor) como
garantia de seu direito. Se da penhora tiver sido intimado o devedor, o pagamento feito ao seu
credor será ineficaz perante o terceiro exequente. Um exemplo ajudará a aclarar a regra. Se Darcy
é credor de Evaristo por R$ 100 e deve a Fabrício R$ 80, este último pode obter, em garantia da
execução judicial, a penhora sobre o crédito que aquele titulariza. Sendo Evaristo intimado da
constrição judicial, fica impedido de pagar o valor devido diretamente a Darcy (deve, para liberarse da obrigação, depositar o dinheiro em juízo). Se, a despeito da intimação, proceder ao
pagamento, ele será ineficaz perante Fabrício, que pode exigi-lo novamente de Evaristo. De outro
lado, abrange a segunda situação de ineficácia de pagamento feito ao credor também a
impugnação do crédito, por terceiros, se conhecida do devedor. Imagine que o terceiro reivindica
do devedor a coisa objeto da prestação contratada com o credor; é decorrência jurídica da
reivindicação que o devedor não a poderia ter alienado a ninguém, de modo que o terceiro
impugna também o direito do credor (o crédito). Após sua cientificação, o devedor que realizar o
pagamento corre o risco de ter de efetuá-lo novamente ao terceiro, caso procedente a
reivindicação deste.
3. Objeto do pagamento
O objeto do pagamento é a prestação. Entrega-se ao sujeito ativo a coisa, o fazer ou o não fazer
devido. Nas obrigações correspondentes a negócios jurídicos bilaterais, como na compra e venda,
por exemplo, tanto o comprador como o vendedor devem realizar pagamentos. O vendedor deve a
obrigação de dar a coisa vendida enquanto o comprador é o sujeito passivo da de pagar o preço.
Quando o vendedor entrega o bem objeto de contrato ao comprador, está fazendo o pagamento de
sua prestação. Do mesmo modo, quando o comprador entrega o dinheiro do preço contratado ao
vendedor, também está fazendo o pagamento da prestação a que se encontra obrigado.
Possível sistematização da matéria classifica o pagamento, segundo o objeto, em três categorias:
em dinheiro, bens e conduta. As obrigações de dar são pagas pelas duas primeiras, enquanto a
terceira se refere ao pagamento das de fazer ou não fazer.
a) Pagamento em dinheiro. Nas obrigações pecuniárias, o objeto do pagamento é o dinheiro. No
Brasil, desde os anos 1930, o pagamento deve ser realizado, em princípio, com moeda corrente
nacional, ou seja, a partir de 1994, com o Real (CC, art. 315). São, em regra, nulos de pleno direito
os negócios jurídicos executáveis no Brasil com pagamento em ouro ou moeda estrangeira (CC, art.
318; Dec.-lei n. 857/69, art. 1.º). Tal vedação absoluta objetiva fortalecer a moeda nacional como
instrumento de política econômica. Se moedas estrangeiras tivessem curso legal no Brasil e os
agentes econômicos pudessem cumprir suas obrigações com elas, as interferências do governo
para ampliar ou reduzir a liquidez do mercado, visando, por exemplo, administrar as metas de
inflação, poderiam resultar ineficazes. Excepcionalmente, porém, admite o direito brasileiro que
se paguem obrigações pecuniárias com moeda estrangeira. Seu emprego é permitido em
pagamentos relativos a importação ou exportação, financiamento ou garantias à exportação,
compra e venda de câmbio e nas obrigações em que um dos sujeitos seja residente no exterior
(exceto locação de imóveis situados no Brasil) (Dec.-lei n. 857/69, art. 2). Afora esses casos, as
dívidas de dinheiro pagam-se unicamente com Reais.
O pagamento em dinheiro deve ser feito em Reais. Apenas em casos excepcionais a lei autoriza o
pagamento em moeda estrangeira: importação ou exportação, financiamento ou garantias à exportação,
compra e venda de câmbio e se um dos sujeitos é residente no exterior (exceto na locação de imóveis
situados no Brasil).
Observa-se, no pagamento em dinheiro, o valor nominal da moeda, isto é, a entrega ao sujeito
ativo de cada unidade de papel-moeda de R$ 100,00 (valor nominal ou de face) corresponderá ao
pagamento de R$ 100,00 do valor total da obrigação pecuniária, nem mais, nem menos. Este é o
princípio do nominalismo, que visa também fortalecer a moeda nacional. Se o credor pudesse
exigir do devedor, no pagamento de obrigação de R$ 50.000,00, a entrega de 600 notas de R$
100,00, o dinheiro brasileiro não valeria o que estampa valer. Cada real, assim, liquida um real do
total da obrigação pecuniária, necessariamente.
Durante muito tempo, tomou-se como incompatível com o princípio do nominalismo a escala
móvel. Até dois terços do século passado, discutia-se a validade de cláusulas contratuais de
correção monetária em face de preceitos legais que prestigiavam esse princípio. Na verdade,
tratava-se de uma confusão. O nominalismo não é incompatível com a escala móvel.
A expressão monetária da obrigação aumenta para que o poder de compra do dinheiro
correspondente ao seu valor no momento da execução coincida com o poder de compra existente
quando da constituição. Explico. O dinheiro tem o seu poder de compra variável segundo a
inflação ou deflação. Ao longo do tempo, a tendência é a redução, em graus variados, do poder de
compra de todas as moedas, inclusive as mais fortes. A maioria das coisas que se podiam comprar,
em 1994, com R$ 100,00 no Brasil ou com U$ 100.00 nos Estados Unidos não é mais, hoje em dia,
vendida por tal preço nesses países. Para atenuar a redução do poder de compra do Real, nas
obrigações em dinheiro a médio ou longo prazo, é largamente utilizada na economia brasileira a
correção monetária. Prevê-se contratualmente que o pagamento será no valor de xReais corrigidos
segundo algum índice referenciado à perda do poder aquisitivo da moeda nacional (IGP-M, IPCA
etc.). Deste modo, entende-se que é preservado o poder de compra da moeda do pagamento. O
valor atualizado da expressão monetária da prestação, em princípio, possibilitaria a compra, na
execução da obrigação, das mesmas coisas que se poderiam comprar com igual soma de dinheiro
quando da constituição dela.
O nominalismo não se prejudica pela cláusula de escala móvel porque, prevista esta, continua a
se “trocar”, no pagamento, igual quantidade de papel-moeda e de valor da obrigação. Se a
expressão monetária desta última aumenta, é evidente que será necessária maior quantidade de
moeda. Porém, estará sendo ainda observado estritamente o valor nominal dela, enquanto cada
real em dinheiro solver um real do valor total da obrigação. De qualquer modo, em razão dos
questionamentos passados, o direito positivo contempla normas que tornam inquestionável a
compatibilização entre o nominalismo e a escala móvel. No Código Civil, por exemplo, prevê-se
que “é lícito convencionar o aumento progressivo de prestações sucessivas” (art. 316). Mais à
frente, trato de outros temas relacionados à correção monetária (Cap. 18, subitem 4.1.2.3).
b) Pagamento em bem. Quando a obrigação de dar não é pecuniária, ao sujeito ativo é entregue
um bem. O objeto do pagamento, neste caso, são as coisas suscetíveis de avaliação em dinheiro, as
valiosas para homens e mulheres. Nesta extensa categoria jurídica, encontram-se não somente os
bens corpóreos, móveis ou imóveis, como os incorpóreos (isto é, os direitos); os divisíveis e
indivisíveis; os fungíveis e infungíveis. Assim, na locação de um apartamento, o locador cumpre a
obrigação contraída dando a posse do imóvel ao locatário; no empréstimo de livro, a prestação do
leitor é adimplida pela devolução da coisa certa à biblioteca; na cessão de créditos, o cedente paga
sua obrigação entregando ao cessionário um bem incorpóreo; o fazendeiro que aliena
determinado número de cabeças de gado de certa raça deve pagar a prestação em animais na
quantidade e do gênero contratado; e assim por diante. Nesses exemplos, o pagamento sempre tem
por objeto um bem.
A entrega do bem ao sujeito ativo pode ser feita a título de transferência da propriedade ou
somente da posse. A obrigação do vendedor paga-se mediante a transmissão da propriedade do
bem objeto de pagamento; já a do locador ou comodante, pela da posse, conservando o solvens a
propriedade. Se o pagamento importar transferência da propriedade do objeto, sua eficácia está
condicionada a titularizar o sujeito passivo o direito de aliená-lo (CC, art. 307, caput). Em regra,
ninguém pode transferir mais direitos do que possui (há exceções, principalmente no âmbito do
direito comercial); desse modo, somente o dono da coisa pode entregá-la a outrem, a título de
pagamento de obrigação de dar não pecuniária que importa transmissão de propriedade. A
entrega de bem ao sujeito ativo por quem não é seu dono não é eficaz como pagamento; é ato
jurídico inexistente, insuscetível de solver a obrigação.
Outro modo de estudar esta regra consiste na contextualização na extensão do direito de
propriedade do sujeito passivo. Note que o ativo tem o direito, pelo vínculo obrigacional, de
receber o bem que lhe foi entregue por ato do não proprietário. Ora, quando a lei considera
ineficaz tal ato, segue-se que o credor deve restituir ao proprietário o bem que não só havia
recebido como também deveria ter-lhe sido entregue. Como explicar esta previsão legal: o sujeito
ativo para quem o bem deveria ter sido entregue em pagamento da obrigação fica, pela ineficácia
deste, obrigado a restituir ao passivo o mesmo bem? Se a obrigação é de dar coisa incerta, explicase a ineficácia pelo reconhecimento ao devedor do direito de escolher ele próprio quais
exatamente os bens a entregar ao credor em pagamento (salvo previsão contratual em contrário).
Se o não proprietário escolheu, para dar ao sujeito ativo em cumprimento da venda de gado, bois e
vacas que não seriam os escolhidos pelo proprietário, o pagamento é ineficaz para que prevaleça a
vontade deste e não daquele. Não sendo, porém, do devedor a escolha e nas obrigações de dar
coisa certa, a única explicação cabível aponta como valor jurídico prestigiado pelo art. 307, caput,
do Código Civil: o direito de o sujeito passivo decidir, no momento da execução da obrigação, se irá
cumpri-la ou não. Trata-se de preceito, deste modo, que reflete uma anacrônica proteção absoluta
da propriedade, de certo modo incompatível com os valores atualmente perseguidos pelo direito
civil.
O pagamento a ser feito em bens só é eficaz se quem está pagando tem direito de aliená-los. É uma regra
de tutela do direito de propriedade que desconsidera o fato de o sujeito ativo receber, muitas vezes,
exatamente a prestação que lhe era devida.
O pagamento mediante transferência da propriedade de um bem feito por quem não tinha o
direito de aliená-lo é eficaz apenas numa hipótese excepcional: se o objeto era bem fungível e o
credor de boa-fé já o tiver consumido ao tempo em que o sujeito passivo reclamar a restituição
(CC, art. 307, parágrafo único). Neste caso, na proteção da boa-fé do accipiens, estabelece a lei a
eficácia do pagamento, devendo o sujeito passivo proprietário do bem consumido conformar-se
com o ato praticado pelo terceiro não proprietário.
Quando o bem correspondente à prestação deve ser mensurado ou pesado, o pagamento
depende do critério de medida ou pesagem a ser adotado. Se o título não é claro quanto a isso,
considera-se que as partes aceitaram os critérios correntes no lugar da execução (CC, art. 326).
Imagine-se que o contrato de venda de imóvel rural medindo 10 alqueires não define o critério
para a medição. O tamanho do alqueire, sabe-se, varia de região para região no Brasil. Em São
Paulo, corresponde a 24.200 m2, em Minas Gerais, a 48.400 m2 e no Nordeste, a 27.225 m2 (Diniz,
1998, 1:175). Se não há critério para mensuração definido pelas partes, prevalecerá o adotado no
lugar do pagamento da obrigação do vendedor, isto é, o da região em que está localizado o imóvel.
c) Pagamento em conduta. Nas obrigações de fazer ou não fazer, o pagamento tem por objeto
uma conduta do sujeito passivo. Esta pode traduzir-se numa prestação de serviços (a obrigação do
advogado de defender em juízo os interesses do cliente) ou em declaração de vontade (a do
acionista que se compromete a votar em determinada pessoa para diretor-presidente da sociedade
anônima). As obrigações personalíssimas têm por objeto conduta que apenas o respectivo sujeito
passivo pode adotar. Sua execução forçada, por esta razão, é sempre subsidiária por indenização.
O devedor que se recusa a pagar em conduta a obrigação só pode ser judicialmente compelido a
indenizar o credor. As demais obrigações de fazer ou não fazer podem ser executadas de forma
subsidiária por prestação equivalente ou mesmo específica, porque a conduta objeto de
pagamento é adotável por outras pessoas além do sujeito passivo, ou mesmo, no caso de consistir
ela na emissão de vontade, pelo juiz.
4. Alteração do objeto do pagamento
Em princípio, o objeto do pagamento é inalterável, quer dizer, inalterável por vontade
unilateral de uma das partes (solvens ou accipiens). Em virtude do princípio da inalterabilidade do
objeto do pagamento, nenhuma das partes pode sozinha ampliá-lo, reduzi-lo ou substituí-lo.
Constituída a obrigação, negocial ou não negocialmente, o sujeito passivo é devedor e o ativo
credor exatamente da prestação contratada ou prevista em lei, nem mais, nem menos. O princípio
da inalterabilidade do objeto está assentado no art. 313 do CC: “o credor não é obrigado a receber
prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa”. Desta fórmula conclui-se que a
anuência do sujeito ativo é condição necessária para a alteração do objeto da prestação, se o
sujeito passivo a pretende. Nem mesmo se a prestação oferecida pelo devedor for mais valiosa que
a devida, está obrigado o credor a recebê-la contra a vontade. Veja que a anuência do credor é
condição necessária, mas não suficiente, já que também ele não pode, por ato unilateral de
vontade, alterar o objeto da prestação.
A inalterabilidade do objeto implica a impossibilidade de pagamento parcial contra a vontade
de qualquer das partes (exceto se previsto no título da obrigação). Se o credor tem direito ao
recebimento de toda a prestação, ele não é obrigado a aceitar parte dela. Do mesmo modo, se o
devedor está obrigado a prestar por inteiro, não pode ser compelido a fazê-lo por partes contra sua
vontade. Assim é, mesmo quando divisível o objeto da obrigação (CC, art. 314). O devedor que está
obrigado a entregar certa quantia em dinheiro ao credor não pode forçar este último a contentarse com parte dela. O sujeito ativo pode simplesmente recusar-se a receber o montante parcial
oferecido pelo passivo e, em seguida, acioná-lo judicialmente por descumprimento da obrigação. A
menos que o accipiens aceite a alteração do objeto, a pretendida satisfação de parte do seu direito
tem significado jurídico equivalente ao do inadimplemento. De modo similar, embora menos
comum, se o credor quer receber, no vencimento, apenas parte da prestação, o devedor que deseja
entregá-la inteira não pode ser impedido de cumprir a obrigação. Quer dizer, a menos que o
solvens aquiesça com a alteração do objeto da prestação, o desejo do credor de receber apenas
parte do devido não tem amparo jurídico.
A prestação não pode ser ampliada, reduzida ou substituída por uma das partes isoladamente (princípio
da inalterabilidade do objeto da obrigação). Somente em duas situações opera-se a alteração do objeto:
revisão judicial ou acordo entre os sujeitos da obrigação.
O objeto da prestação pode ser alterado só em duas hipóteses.
Primeira, por revisão judicial. Sempre que, entre a constituição e a execução, o valor da
prestação tornar-se manifestamente desproporcional, por motivos imprevisíveis, o interessado
pode requerer ao juiz que a corrija com o objetivo de assegurar seu “valor real” (CC, art. 317). Nas
obrigações negociais, considera-se que devedor e credor concordaram com as respectivas
prestações por tomá-las, segundo a perspectiva de cada um, como equivalentes. Há, por assim
dizer, equilíbrio entre as prestações do sujeito ativo e do passivo. Ocorre que fatores imprevisíveis
podem romper o equilíbrio vislumbrado no momento da constituição da obrigação. Segundo a
teoria da imprevisão, se o valor da prestação se altera significativamente em decorrência de
fatores que a parte não podia antever, é justo que ela obtenha em juízo a revisão desse valor de
modo a neutralizar o desequilíbrio superveniente. A teoria da imprevisão será examinada mais à
frente (v. 3).
Segunda, por mútuo acordo entre as partes. De fato, em concordando o accipiens com a
mudança da prestação pretendida pelo solvens, ou vice-versa, nada obsta que ela aconteça.
Sempre que credor e devedor se puserem de acordo no tocante à forma de se dar cumprimento à
obrigação, prevalecerá o contratado entre eles. Assim é, aliás, mesmo se a obrigação tem origem
não negocial. Se Antonio foi o culpado por acidente de trânsito, em virtude do que deve a Benedito
indenização por ato ilícito, em concordando este último, por exemplo, com o parcelamento ou
redução do valor da dívida, altera-se o objeto do pagamento. O princípio da inalterabilidade do
objeto da obrigação afasta a possibilidade de o sujeito passivo pretender, por sua exclusiva
vontade, livrar-se da sujeição pagando prestação diversa da devida, e a de o sujeito ativo exigir,
unilateralmente, prestação diversa da que tem direito.
A alteração do objeto do pagamento por mútuo acordo entre as partes é chamada de dação em
pagamento, que será examinada em seguida (item 8.3).
5. Prova do pagamento
A prova do cumprimento da obrigação cabe ao devedor. Se for demandado em juízo para
entregar a prestação a que se obrigara e alegar que já a adimpliu, caberá a ele demonstrar a
veracidade deste fato. Por isso, o devedor que cumpre a obrigação tem direito à quitação. Esta é
um negócio jurídico praticado pelo credor consistente na declaração de ter ele recebido a
prestação correspondente à obrigação. Como a quitação é direito do devedor, pode este
legitimamente reter o pagamento enquanto o credor não lha dá (CC, art. 319).
Normalmente, a quitação adota a forma escrita e o seu instrumento chama-se “recibo”. Há,
contudo, quitação dada por escrito que se instrumentaliza de modo diverso. Nas associações,
cooperativas, sociedades anônimas e, eventualmente, nas limitadas, a assembleia dos sócios que
aprova as contas dos administradores confere a eles quitação pelos atos praticados durante o
exercício (período anual) a que se refere. Desse modo, se o diretor de uma associação, após sua
saída do cargo, for processado por esta para ressarcir-lhe algum prejuízo, a exibição da ata da
assembleia geral aprovando as suas contas no exercício em que o dano teria ocorrido tem os
mesmos efeitos de um recibo. Assim, após a aprovação das contas em assembleia, os
administradores daquelas pessoas jurídicas só podem ser demandados se houver fundamento
para, antes, ser promovida a anulação do ato assemblear por vício de consentimento (erro, dolo,
coação etc.). Quer dizer, se, por exemplo, o credor de uma obrigação qualquer outorga recibo ao
devedor por ter sido induzido em erro, a quitação outorgada terá sido negócio jurídico inválido,
passível de anulação (CC, art. 138). Se o credor quiser cobrar a obrigação, terá de obter, antes, a
declaração de anulação do recibo. A pessoa jurídica que, em assembleia dos sócios, aprovou as
contas dos administradores não tem o direito de demandar contra estes a indenização por
eventuais danos derivados de má administração, a menos que o tenha feito por erro ou outro vício
de consentimento. Se este o caso, deverá inicialmente postular a anulação judicial da deliberação
da assembleia que aprovou as contas, para fins de desconstituição dos efeitos da quitação
outorgada.
A quitação também pode decorrer, embora raramente, de atos praticados pelo credor, como a
entrega ou inutilização de título. Neste caso, não há instrumento escrito albergando a declaração
do credor no sentido de ter sido cumprida a obrigação pelo devedor.
O recibo de quitação pode ser dado sempre por escrito particular, mesmo que a obrigação a
que se refere só se possa constituir mediante escritura pública. A hipoteca, por exemplo, só é
constituída com a forma pública, mas o devedor que paga a dívida garantida por ela está
validamente liberado de sua obrigação mesmo que a quitação tenha sido outorgada num
documento particular (atendidos, claro, os demais pressupostos, como a averbação no registro de
imóveis). Quanto ao conteúdo, o recibo deve designar o objeto do pagamento (“o valor e espécie da
dívida quitada”), o nome do solvens (“devedor, ou de quem por este pagou”), tempo e lugar do
cumprimento da obrigação. Além disso, deve conter a assinatura do credor (“ou de seu
representante”) (CC, art. 320). Esses requisitos, atente-se, não são essenciais para a validade e
eficácia do documento. Desse modo, mesmo o instrumento de recibo que não os contém
inteiramente produzirá os efeitos da quitação se dos seus termos ou circunstâncias puder resultar
que a dívida foi paga (CC, art. 320, parágrafo único). Em suma, qualquer documento que abrigue a
declaração do credor no sentido de ter sido satisfeito o seu crédito serve de quitação. O devedor
que se encontra na posse dele presumivelmente cumpriu a obrigação. Quer dizer, passa a ser ônus
do credor demonstrar, pelos meios de prova admissíveis no direito brasileiro, que, a despeito da
exibição do recibo, o pagamento não ocorreu.
O pagamento, portanto, prova-se pela demonstração de que o credor declarou ter recebido a
prestação correspondente à obrigação, e o recibo é o instrumento mais apropriado para a
produção desta prova.
A prova do pagamento incumbe ao devedor. Por isso, ele tem direito à quitação sempre que cumpre a
obrigação. Ele pode, inclusive, reter a prestação, enquanto ela não lhe for entregue.
A quitação é a declaração do sujeito ativo no sentido de ter sido satisfeito no seu direito. Normalmente, é
dada por escrito (“recibo”), mas pode derivar de atos inequívocos com o mesmo sentido jurídico (entrega ou
inutilização do título, p. ex.).
As despesas com o pagamento e quitação correm, em princípio, por conta do devedor. Quem se
obriga, por exemplo, a vender bem móvel e entregá-lo no domicílio do comprador assume também
a obrigação de arcar com as despesas relativas à tradição, como transporte, impostos e seguro (CC,
arts. 325 e 490). Por conta do credor correm essas despesas apenas se contratado entre as partes
(exceção feita às despesas com escritura pública na venda de imóveis, em que a regra se inverte:
art. 490). Também, destaco, correm por conta do credor as despesas com pagamento e quitação
acrescidas, se o acréscimo deriva de fato sob sua responsabilidade (CC, art. 325, in fine). Em
consequência, se Evaristo assumira a obrigação de entregar via postal a Fabrício uma coisa móvel,
mas este último informa-lhe endereço errado ou incompleto, e ela é devolvida pelos correios, as
despesas com a nova remessa não mais correm por conta do devedor da obrigação. É Fabrício
quem deverá pagá-la.
Na disciplina da quitação, a lei opera com algumas presunções relativas (ou seja, que são
desconstituídas por prova em contrário da parte em desfavor de quem foi estabelecida). Assim, se
o pagamento é parcelado (“em quotas periódicas”), a quitação da última parcela presume terem
sido pagas todas as anteriores (CC, art. 322). Se, neste caso, o credor outorgar quitação da última
quota e, posteriormente, constatar que uma das anteriores não havia sido paga, caberá a ele
demonstrar em juízo o descumprimento da obrigação, porque em favor do devedor milita a
presunção de tê-la adimplido por completo. Veja, aqui, não é o sujeito passivo que deve provar ter
pago a prestação indicada como não paga pelo sujeito ativo, mas este é que deve desconstituir a
eficácia probatória do recibo que assinou. Outra presunção do pagamento decorre da entrega ao
devedor do título representativo da obrigação (CC, art. 324). Feita a entrega, caberá ao credor, em
juízo, demonstrar que o devedor, malgrado a posse do título, ainda não cumprira a obrigação, e
não a este provar que satisfez o direito daquele. O prazo para o ajuizamento da ação visando
declarar a subsistência da obrigação é decadencial e de 60 dias (CC, art. 324, parágrafo único). A
terceira presunção legal sobre o tema encontra-se na quitação do capital sem a reserva dos juros,
caso em que estes presumem-se pagos (CC, art. 323). Se o devedor pagou, com atraso, o principal
devido e negociou com o credor o pagamento dos juros no futuro, o recibo deve trazer a ressalva
destes. Não ressalvados, consideram-se pagos, em princípio. Isto é, será ônus de prova do credor
demonstrar não ter recebido os juros, não cabendo ao devedor provar que os teria pago.
6. Lugar do pagamento
No Brasil, temos o arraigado hábito de usar intensivamente os serviços bancários para
pagamento das obrigações pecuniárias. Como a economia brasileira sofreu, por muito tempo,
processos inflacionários acentuados, as pessoas em geral procuravam manter o dinheiro sempre
num investimento que ajudasse a protegê-lo da corrosão. Por outro lado, o sistema financeiro
brasileiro cedo aparelhou-se para atender a grande demanda pelos seus serviços. Mesmo
controlada a inflação desde meados dos anos 1990, permaneceu o hábito. Cheques, TEDs, DOCs,
boletos bancários ou depósito direto na conta corrente do credor são os instrumentos mais
frequentemente utilizados no cumprimento das obrigações pecuniárias. É raro, entre nós, o
devedor procurar o credor, ou vice-versa, para proceder ao pagamento da obrigação em dinheiro.
Por esta razão, questões atinentes ao lugar do pagamento não costumam despertar significativos
conflitos de interesses. A lei, contudo, tem suas normas sobre a matéria, que convém examinar
brevemente.
A obrigação, segundo o lugar do pagamento, classifica-se em quesível ou portável. Quesível é a
obrigação em que cabe ao credor procurar o devedor para receber o pagamento, enquanto
portável é aquela em que o devedor deve procurar o credor para realizá-lo. O título – na verdade, a
vontade das partes – permitirá a classificação da obrigação negocial ao indicar o lugar do
pagamento: se no domicílio do devedor, quesível; se no do credor, portável. Não havendo acordo
(nas obrigações negociais em que o título é omisso em relação ao tema e nas não negociais
enquanto as partes não se entendem), a obrigação será, em regra, quesível. É o que estabelece a
lei: “efetuar-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes convencionarem
diversamente, ou se o contrário resultar da lei, da natureza da obrigação ou das circunstâncias”
(CC, art. 327).
Desse modo, no direito brasileiro, a obrigação é portável em quatro hipóteses: a) acordo entre
as partes: se credor e devedor contrataram que o pagamento será feito por este no domicílio
daquele, prevalece a vontade dos sujeitos da obrigação; b) previsão legal: a lei tributária, por
exemplo, define a repartição competente do domicílio do contribuinte como local do pagamento
(CTN, art. 159), o que significa que é o devedor que deve procurar o credor para realizá-lo; c)
natureza da obrigação: nas vendas feitas por reembolso postal, a obrigação do vendedor é paga
necessariamente no domicílio do comprador (credor na obrigação daquele de entregar as
mercadorias), isto é, na agência dos correios responsável pelas entregas no endereço deste último;
d) circunstâncias: se desde o início do contrato de execução continuada sempre foi o devedor que
procurou o credor para fazer o pagamento, considera-se que tal fato torna portável a obrigação
(CC, art. 330).
Se o título apontar mais de um lugar, caberá ao credor a escolha por um deles (CC, art. 327,
parágrafo único). Por outro lado, se a obrigação consistir na tradição de imóvel ou prestações a ele
relativas, o lugar da situação do bem será também o do pagamento (CC, art. 328). Se houver motivo
grave que justifique mudança no lugar do pagamento, o credor poderá pagar a obrigação em lugar
diverso, desde que não haja prejuízo para o credor (CC, art. 329).
A inobservância das regras sobre lugar do pagamento não implica a invalidade ou ineficácia do ato.
Mesmo feito o pagamento em lugar indevido, o devedor está liberado da obrigação e o credor teve seu
direito satisfeito.
Estas regras têm importância apenas na hipótese de inadimplemento da obrigação, quando é necessário
identificar o culpado.
Por fim, cabe discutir a consequência da eventual inobservância das regras sobre o lugar do
pagamento. De pronto, assente-se que seu descumprimento não invalida nem torna ineficaz o ato.
Se Germano devia pagar a Hebe no lugar x, mas o fez em y, não havendo nenhum outro vício ou
irregularidade, o pagamento produz seus efeitos. Quer dizer, Hebe não pode cobrar novamente a
obrigação de Germano, nem este pode pretender a devolução da prestação. Se apenas a regra
sobre o local foi desrespeitada, em suma, o pagamento remanesce plenamente válido e eficaz para
todos os fins de direito. Qual a utilidade dessas regras, então? Servem para identificar o culpado na
hipótese de inexecução da obrigação. Se, por exemplo, a obrigação é portável e o credor muda de
domicílio sem avisar o devedor, não será culpa deste o retardo no cumprimento da obrigação
enquanto não lhe for informado o novo local do pagamento. Se, outro exemplo, é quesível a
obrigação, enquanto o credor não procura o devedor para receber seu pagamento, não se
configura a mora do solvens (Rodrigues, 2002:156). São implicações como estas que derivam do
descumprimento dos preceitos legais sobre o lugar do pagamento.
7. Tempo do pagamento
Nas obrigações, a constituição e execução podem ou não ser concomitantes. Ao adquirir o
jornal, na banca da praça próxima à minha casa, coincidem os momentos da constituição e a
execução das obrigações correspondentes. Pego o meu exemplar do diário e entrego o dinheiro ao
jornaleiro. Nestes atos jurídicos convergem o surgimento da minha obrigação de pagar o jornal e
da do jornaleiro de me entregá-lo e o cumprimento delas. Ao contratar um seguro-saúde, porém,
distanciam-se no tempo a constituição e a execução das obrigações correspondentes. Preencho
hoje o formulário, forneço informações e pago a primeira prestação. A obrigação está constituída.
De minha parte, a execução corresponderá ao pagamento das mensalidades enquanto durar o
plano; da parte da operadora, a disponibilização da cobertura dos serviços médicos, laboratoriais e
hospitalares objeto do contrato, também durante o prazo do plano. A execução da obrigação, neste
caso, não se verifica concomitantemente à constituição, mas em seguida a esta.
A execução, viu-se, é feita pelo pagamento. O dia em que a prestação deve ser paga pelo
devedor ao credor chama-se vencimento. O tempo oportuno para o regular cumprimento da
obrigação pelo sujeito passivo, portanto, é o seu vencimento. Transcorrendo este sem que o
devedor, voluntária ou involuntariamente, cumpra a obrigação, caracteriza-se o inadimplemento
(Cap. 19).
As partes estabelecem, de comum acordo, a época do vencimento da obrigação. Definem, em
geral, o dia em que o pagamento deverá ser feito, e a partir do qual se tornará exigível,
mencionando-o direta ou indiretamente no título. A menção direta faz-se pela indicação da data
(dia, mês e ano) em que recai o vencimento; a indireta, por prazos que se contam de termos
indicados (um ano após a assinatura do contrato, 10 dias a contar do pagamento da primeira
prestação etc.). De qualquer modo, o vencimento será sempre um dia, no transcorrer do qual deve
a prestação ser entregue ao credor. Caso o dia do vencimento não seja útil (sábado, domingo ou
feriado), o prazo para o cumprimento da obrigação prorroga-se até o primeiro dia útil seguinte
(CC, art. 132, § 1.º; Lei n. 7.089/83, art. 1.º). Até o fim do dia do vencimento (meia-noite), pode o
devedor adimplir tempestivamente a obrigação. Em geral, porém, o pagamento é feito em horário
comercial, de trabalho, durante o expediente bancário.
Se não tiver sido ajustado o vencimento pelas partes, o pagamento pode ser exigido
imediatamente, isto é, tão logo constituída a obrigação (CC, art. 331). Costumam-se usar as
expressões vencimento à vista ou a prazo para designar, respectivamente, o pagamento exigível de
imediato ou somente depois do decurso de certo tempo. As obrigações não negociais, deste modo,
caso não se componham credor e devedor acerca de sua execução, vencem à vista. O credor vítima
de ato ilícito do devedor pode exigir, desde o evento danoso constitutivo da obrigação, o
pagamento a que tem direito.
O pagamento deve ser feito no vencimento, que é o dia do cumprimento da obrigação. Se credor e
devedor não acertarem, de comum acordo, uma data futura para o vencimento, o pagamento pode ser
exigido imediatamente após a constituição da obrigação.
Se o dia em que cair o vencimento não for útil, o prazo para cumprimento da obrigação prorroga-se para
o primeiro dia útil seguinte.
No vencimento a prazo, a definição de data futura para a entrega da prestação e extinção da
obrigação normalmente é feita em benefício do devedor. Com maior tempo para cumprir a
obrigação, o sujeito passivo pode preparar-se melhor para adimpli-la. Sendo o prazo para
pagamento estabelecido em benefício do devedor, pode este renunciar a ele e cumprir a obrigação
(em sua inteireza) antes de ser ela exigível pelo credor. Depende a antecipação, neste caso,
unicamente da vontade do sujeito passivo, não podendo o credor recusar a prestação sem motivo
(em regra, aliás, tende a não o fazer porque tem igual interesse na solução da obrigação antes do
vencimento).
Mas o prazo pode ser fixado em benefício do credor ou das duas partes da obrigação. Depende
do título ou da natureza da obrigação. No mútuo oneroso de natureza pecuniária, por exemplo, o
mutuante tem interesse não só no pagamento do principal como também nos juros que espera
receber. O prazo estabelecido para a recuperação do dinheiro o beneficia porque os juros serão
tanto maiores quanto mais tempo transcorrer entre a constituição e a execução da obrigação.
Claro que, querendo o devedor pagar antecipadamente o mútuo sem desconto dos juros, o credor
aceita de pronto. Todavia, como o prazo do vencimento, neste caso, em vista da natureza da
obrigação, é estabelecido também em benefício do credor, o devedor somente poderá pagar
antecipadamente com redução proporcional dos juros se houver anuência daquele (Note-se que há
regra excepcionando a que decorre da natureza do mútuo, se ele configura uma relação de
consumo; neste caso, a lei assegura o direito do consumidor mutuário ao desconto proporcional na
antecipação do pagamento – CDC, art. 52, § 2.º).
No Brasil, não existem dias de graça. Vencida a obrigação, à vista ou a prazo, não pode o juiz
conceder ao devedor tempo suplementar para cumpri-la. Na França, por exemplo, o juiz pode, em
consideração à condição do devedor ou à situação econômica, ampliar por até um ano o prazo
para o pagamento (délai de grâce), salvo em hipóteses excepcionais, como a do devedor cambiário
ou do depositário (Mazeaud-Chabas, 1998:1000/1003). No direito brasileiro, a exigibilidade da
obrigação não pode ser postergada por decisão judicial apenas em razão de dificuldades
econômicas do sujeito passivo, seja esta proveniente de razões individuais ou gerais. Se é válida a
obrigação, o devedor deve cumpri-la tempestivamente; se inválida, está liberado de fazê-lo; se há
fundamento para a revisão judicial, como na hipótese de imprevisão, deve cumprir a obrigação
nas condições revistas.
Nas obrigações condicionais, o vencimento verifica-se com o implemento da condição. Cabe ao
credor provar que o devedor está ciente do implemento da condição (CC, art. 332). Se Irene
contrata com João, engenheiro civil, a construção de uma casa, a obrigação deste último está
condicionada à obtenção da licença para construir expedida pela Prefeitura. Enquanto não
licenciada a obra, João não pode começar a desincumbir-se de suas obrigações. Mas, uma vez
implementada a condição, Irene deve comunicar o fato a João; deve, também, conservar a prova da
comunicação, pois, se houver questionamento sobre o vencimento da obrigação do construtor,
caberá a ela a prova da ciência por este do implemento da condição suspensiva (isto é, da
expedição da licença).
Antes do vencimento, o devedor não está obrigado ao pagamento. De sua parte, o credor não o
pode exigir. Aliás, o sujeito ativo que tenta promover a cobrança judicial do passivo antes do
vencimento da obrigação incorre em ato ilícito e tem responsabilidade civil (CC, art. 939) (Cap. 22,
subitem 7.2). Apenas se verificar o vencimento antecipado da obrigação, nas hipóteses delineadas
em lei, estará o sujeito ativo demandando licitamente o pagamento.
Antes do vencimento, o devedor não está obrigado a entregar a prestação, nem o credor pode exigi-la. É
ato ilícito que implica a responsabilidade civil do credor a tentativa de cobrança antecipada do devedor.
A antecipação do vencimento pode derivar de acordo entre as partes ou dos fatos descritos em lei
(falência do devedor, enfraquecimento de garantias do credor etc.).
São três essas hipóteses de vencimento antecipado.
Primeira, se instaurada execução concursal contra o devedor (CC, art. 333, I). Sempre que o
sujeito de direito não tem, no patrimônio, ativo suficiente para arcar com o total do passivo (ou
seja, se deve mais do que possui), ele é considerado insolvente. Neste caso, o direito determina que
se promova contra ele, para a satisfação das dívidas, uma única execução da qual todos os
credores participem. É a execução concursal (concurso de credores), que se denomina falência,
quando o devedor é empresário, e insolvência civil, quando não é. Nas duas situações, prevê a lei o
vencimento antecipado das obrigações do devedor (LF, art. 77; CPC/1973, art. 751, I; CPC/2015, art.
1.052). Trata-se de medida destinada a liberar aos credores tratamento paritário. Quer dizer, do
concurso de credores podem participar em condições de igualdade tanto os credores com títulos
vencidos como os com títulos a vencer, porque estes últimos têm o vencimento antecipado para a
data da instauração da execução concursal.
Note-se que, concretamente falando, esta primeira hipótese de vencimento antecipado não
conduz ao imediato atendimento do direito do credor, nem pode conduzir a isso. O sujeito ativo da
obrigação antecipadamente vencida tem apenas o direito de habilitar seu crédito na execução
concursal. O pagamento (que, se houver, será normalmente parcial, tendo em vista a insuficiência
do patrimônio do devedor) terá lugar em juízo, no momento apropriado de acordo com a
tramitação do processo.
Segunda, se forem penhorados em execução por outro credor os bens hipotecados ou
empenhados em garantia da obrigação em foco (CC, art. 333, II). A hipoteca e o penhor são
modalidades de garantias reais. Por elas, bens imóveis (hipoteca) ou móveis (penhor) são
vinculados à satisfação de determinada obrigação. O credor que goza da garantia de uma hipoteca,
por exemplo, procura assegurar o recebimento de seu crédito em função do valor do imóvel
gravado. Se o devedor não pagar a dívida, o imóvel hipotecado será vendido em juízo para
cumprimento daquela obrigação. Quando, porém, o bem dado em hipoteca ou penhor é
penhorado em juízo para atender direitos de terceiros, enfraquece-se a garantia pretendida. Neste
caso, para proteger os interesses do sujeito ativo para quem ela foi concedida, preceitua a lei o
vencimento antecipado. Desde logo, em outros termos, ele poderá exercer o seu direito e gozar da
garantia.
Terceira, se as garantias conferidas pelo sujeito passivo deixarem de existir ou forem
insuficientes e este, intimado, negar-se a reforçá-las (CC, art. 333, III). As garantias podem ser
fidejussórias ou reais. No primeiro caso, não há um bem específico do patrimônio do garantidor
vinculado à satisfação do crédito. São fidejussórias as garantias concedidas por fiador ou avalista,
por exemplo. No caso das reais, como visto, vincula-se um bem específico do patrimônio do
devedor (ou do terceiro garantidor) à satisfação de certa obrigação. Pois bem, qualquer que tenha
sido a garantia, se ela se revelar insuficiente ou mesmo deixar de existir, o sujeito passivo deve ser
intimado para reforçá-la. Não o fazendo no prazo assinalado pelo credor na notificação
extrajudicial ou pelo juiz na intimação, opera-se o vencimento antecipado da dívida. Com ênfase,
se o instrumento assecuratório do adimplemento não cumpre mais a função para a qual foi
instituído, o credor passa a correr risco que não havia assumido na constituição da obrigação. Para
proteger seu interesse contra o risco indesejável, permite a lei que ele possa cobrar o devedor
antecipadamente.
Imagine que o Banco Luz é credor de Mário, que tem como fiador Nair, em razão de
empréstimo concedido pelo primeiro. É provável que o Banco Luz tenha estabelecido a taxa de
juros do empréstimo em função da garantia fidejussória. As técnicas bancárias recomendam que
os juros devem ser diretamente proporcionais ao risco de inadimplência: quanto maior a
possibilidade de o banco não ser pago, maiores devem ser os juros praticados. Pois bem, se Nair
cair insolvente, a garantia de que o Banco Luz gozava deixa de ser efetiva. Mário deve apresentar
novo fiador idôneo para preservar os fundamentos originários do negócio. Se não o fizer, a lei
determina o vencimento antecipado da obrigação e dá ao Banco Luz o direito de cobrar Mário
desde logo.
Nas obrigações em que houver solidariedade passiva, o vencimento antecipado em relação a
um dos devedores não torna exigível desde logo a prestação dos demais (CC, art. 333, parágrafo
único). Se um deles caiu insolvente, por exemplo, o credor pode habilitar-se na execução
concursal, mas não pode cobrar a dívida do outro devedor senão depois de verificado o
vencimento da obrigação na época primitivamente estabelecida.
8. Pagamento indireto
O pagamento pode ser direto ou indireto. Quando o devedor entrega a prestação ao credor
exatamente na extensão, tempo e lugar convencionados, tal como originariamente esperado pelas
partes no momento da constituição da obrigação, diz-se que o pagamento é direto. Quando, porém,
a entrega da prestação ao credor é feita sem a exata observância dos elementos subjetivos e
objetivos originariamente caracterizadores da obrigação, é indireto.
São três as hipóteses de pagamentos indiretos. No pagamento em consignação, a entrega da
prestação é feita mediante depósito judicial ou bancário, e não pela forma originariamente
estabelecida (item 8.1). No pagamento com sub-rogação, o solvens não é o sujeito passivo ou a
prestação entregue foi emprestada por terceiros (item 8.2). Finalmente, na dação em pagamento, a
prestação da obrigação altera-se, por acordo entre as partes, no momento da execução (item 8.3).
Anote-se que, enquanto o pagamento direto produz os efeitos de liberar o devedor da obrigação e
satisfazer o direito do credor, o indireto nem sempre os alcança. No pagamento com sub-rogação,
por exemplo, o sujeito ativo tem o seu direito satisfeito (por terceiro), mas o passivo não se libera
da obrigação, porque continua devendo a prestação.
Examine-se, com vagar, cada uma das hipóteses.
8.1. Pagamento em consignação
O maior interessado no cumprimento da obrigação parece ser o sujeito ativo. Como credor e
titular do direito ao recebimento da prestação, ele tem todo o interesse em que o pagamento se
realize tal como tem esperado desde o momento da constituição. Isto é verdade, mas também ao
sujeito passivo interessa, na maioria das vezes, o adimplemento no vencimento. Em primeiro
lugar, porque se libera do vínculo de sujeição; em segundo, porque os riscos sobre a coisa certa,
quando é esta objeto da prestação, transferem-se ao credor; finalmente, porque, pagando no
tempo devido, não suporta as consequências da mora (juros, correção monetária, multa etc.). Em
outras palavras, o devedor pode ter interesse em pagar a obrigação no prazo devido. Em geral, só
deixa de fazê-lo quando identifica maior proveito no inadimplemento (se os encargos da mora são
modestos em face da remuneração de capital praticada no mercado) ou se não dispõe dos meios
necessários ao cumprimento da obrigação (por insolvência, exemplificando).
O devedor interessado em pagar a prestação no vencimento pode, contudo, esbarrar em
dificuldades. Imagine que o credor se recusa a receber o pagamento, sob pretexto de que teria
direito a mais do que o oferecido pelo devedor; ou pense na hipótese de ele negar a outorga da
quitação; considere, enfim, que mais de uma pessoa se apresenta como credora disputando a
prestação objeto da obrigação. São situações em que o devedor, mesmo querendo cumpri-la
diretamente, vê-se impossibilitado de o fazer por razões externas à sua vontade.
Nesses casos, a lei tutela o interesse do sujeito passivo pondo à sua disposição uma forma de
pagamento indireto, isto é, um instrumento que possibilita a extinção do vínculo obrigacional e
sua liberação da sujeição. Este instrumento é o pagamento em consignação.
Consiste a consignação no depósito da prestação em juízo (ou, nalgumas hipóteses, num
estabelecimento bancário, como se verá em seguida). Em outros termos, trata-se de uma medida
judicial, em que o demandante é o sujeito passivo de obrigação cujo pagamento direto está
impossibilitado sem sua culpa. Se o juiz, a final, se convencer de que realmente havia obstáculos
ao pagamento direto externos à vontade do demandante, a consignação será julgada procedente;
neste caso, terá a medida judicial os efeitos da quitação: extinção da obrigação, transferência dos
riscos sobre a coisa ao credor, não caracterização da mora do devedor etc. Se, porém, o juiz não se
convencer da alegação do demandante, considerando inexistentes os obstáculos ao pagamento
direto apontados, a consignação é julgada improcedente; aqui, a medida judicial não terá nenhum
dos efeitos do pagamento direto, resultando que o sujeito passivo não cumpriu ainda a obrigação,
malgrado o depósito judicial da prestação.
Desse modo, apenas se e quando acolhida a medida judicial proposta pelo devedor verificam-se
o pagamento em consignação e a consequente extinção da obrigação (CC, arts. 334 e 337). Não
sendo este o caso, o depósito judicial da prestação não tem o efeito de liberar o devedor da sujeição
obrigacional.
Quando o pagamento direto da obrigação é obstado ou dificultado por razões alheias à vontade do
devedor, pode ele se valer do pagamento em consignação. Esta forma de extinção do vínculo obrigacional
consiste numa medida judicial (ação de consignação em pagamento) em que a prestação é depositada em
juízo. Se julgada procedente, a medida terá os mesmos efeitos do pagamento direto.
Podem ser objeto de consignação em pagamento as prestações de dinheiro e bem. Se for
pecuniária a obrigação, a lei autoriza que o depósito se faça numa instituição financeira antes do
ajuizamento da ação. Caso o credor, em 10 dias, não recuse o pagamento, libera-se o devedor
independentemente do processo judicial (CPC, art. 539, §§ 1.º a 4.º). Se a prestação consistir em
imóvel ou corpo certo que deve ser entregue onde se encontre, o credor será citado para vir
recebê-la (CC, art. 341). Se for coisa indeterminada e a escolha couber ao credor, será este citado
para exercer seu direito. Não o fazendo, a individuação da coisa competirá ao devedor, no ato do
depósito em juízo (CC, art. 342). Conduta, claro, é insuscetível de pagamento em consignação. O
fazer e o não fazer não ostentam a materialidade necessária ao ato de depósito. Apenas se a
obrigação de fazer implica também a de dar (pintar o retrato do credor, p. ex.) é possível a
consignação (Pereira, 1962:172).
A consignação em pagamento cabe nas seguintes situações:
a) o credor está impossibilitado de receber o pagamento ou dar quitação. Abrange a hipótese
tanto a impossibilidade material, que impede o credor de declarar ter sido satisfeito seu direito
(encontra-se preso e incomunicável, p. ex.), como a impossibilidade jurídica (insolvência ou
falência). Nestes casos, para liberar-se validamente da obrigação, o devedor pode depositar em
juízo a prestação devida (CC, art. 335, I).
b) O credor recusa injustificadamente o pagamento. É a situação mais corriqueira. Aqui,
divergem os sujeitos da obrigação sobre a extensão do pagamento. O devedor se considera
obrigado a pagar menos do que o credor entende ser o seu direito. A solução para o conflito de
interesses, naturalmente, será dada pelo Poder Judiciário. Se o devedor tomar a iniciativa de
propor a demanda e quiser tenha esta já o efeito de cumprimento da obrigação, deve optar pela
ação de consignação em pagamento. Caso contrário, poderá manusear uma simples ação
declaratória. Se, na consignação, o juiz reputar injusta a recusa do credor, o devedor estará
liberado da obrigação desde o depósito da prestação; se a tomar como justa, porém, o devedor
estará em mora desde o vencimento (CC, art. 335, I).
c) O credor não vai receber o pagamento. Esta situação diz respeito às obrigações quesíveis, em
que cabe ao credor procurar o pagamento no domicílio do devedor. Em deixando ele de ir receber
a prestação, nem mandando procurador em seu lugar, dá-se ensejo ao pagamento em consignação.
O devedor não está obrigado a esperar, indefinidamente, nas obrigações quesíveis, pela iniciativa
do credor. Vencida a obrigação e não sendo ele procurado pelo sujeito ativo ou por alguém em
nome dele, pode o sujeito passivo ajuizar a ação de consignação em pagamento e liberar-se da
obrigação que o sujeita (CC, art. 335, III).
d) Incapacidade, desconhecimento, ausência ou inacessibilidade do credor. Se o sujeito ativo é
incapaz, não está em condições de receber a prestação e quitar sem a devida representação
(incapacidade absoluta) ou assistência (incapacidade relativa). Caso ele se apresente para ser pago
desacompanhado, o devedor tem o direito à consignação do objeto para poder liberar-se
validamente da obrigação. Se se limita a pagar ao credor, sem exigir a assinatura do representante
ou assistente legal no recibo, passa a ter o ônus de prova da reversão efetiva da prestação em
benefício do incapaz (CC, art. 310). Assim, se Orlando, devedor, é procurado por Paulo, credor, no
dia do vencimento da obrigação, mas percebe que este último se encontra fortemente embriagado,
ele pode acautelar-se contra a hipótese de estar diante de um incapaz (CC, art. 4.º, II). Terá direito,
neste caso, ao pagamento em consignação.
Também pode validamente consignar a prestação em juízo o devedor que desconhece o credor
ou o seu paradeiro. Considere a hipótese de falecimento do devedor. O inventariante não conhece
necessariamente os credores mencionados nos documentos de dívida deixados pelo falecido. Tem
o nome deles, mas eventualmente o endereço está desatualizado. Não sabe ao menos como
procurá-lo. Neste caso, é cabível a consignação judicial da prestação. Igualmente tem direito o
devedor de consignar o pagamento se o credor foi declarado ausente ou reside em lugar incerto ou
de acesso perigoso ou difícil (CC, art. 335, III).
e) Dúvida sobre quem é o credor. Se dois sujeitos se apresentam arrogando a condição de credor,
e não sendo nenhum deles o indiscutível titular do crédito, acautela-se o devedor que consigna a
prestação em juízo (CC, art. 335, IV). Imagine que o credor faleceu e os que se apresentam invocam
a qualidade de legítimos sucessores, exibindo cada um dos documentos aparentemente válidos. Se
o devedor não quiser correr o risco de pagar inadvertidamente a quem não tem direito ao
recebimento, deverá socorrer-se da consignação judicial da prestação. Demandados os
pretendentes ao crédito, caberá ao juiz decidir se algum deles é o credor legitimado para receber o
pagamento.
f) Objeto litigioso. A prestação pode ser objeto de litígio entre dois sujeitos que se pretendem
credores da obrigação. O devedor, neste caso, não é parte da discussão judicial, pouco lhe
importando quem realmente é o titular do crédito; interessa-lhe livrar-se da obrigação, pagando a
qualquer um deles. Enquanto tramita o litígio, não há pronunciamento judicial definitivo
identificando o legítimo credor. Vencida, no interregno, a obrigação, deve o devedor proceder à
consignação em pagamento, se não quiser correr o risco de entregar a prestação a quem, no
futuro, acabará não sendo reconhecido pelo juiz como credor (CC, art. 335, V). A lei preceitua que
“o devedor de obrigação litigiosa exonerar-se-á mediante consignação, mas, se pagar a qualquer
dos pretendidos credores, tendo conhecimento do litígio, assumirá o risco do pagamento” (CC, art.
344). Aliás, na hipótese de dívida vencida na pendência de litígio entre sujeitos que se pretendem
mutuamente excluir da condição de credores, qualquer um deles tem legitimidade para requerer
que o juiz determine ao devedor a consignação em pagamento como meio de extinguir a obrigação
(CC, art. 345).
8.2. Pagamento com sub-rogação
No pagamento com sub-rogação, o sujeito ativo recebe a prestação não do passivo, mas de
terceiro, e este passa a titularizar o crédito, com todas as suas garantias e privilégios. O terceiro
(sub-rogado) tanto pode pagar o credor (sub-rogatário) como emprestar ao devedor os recursos
para o cumprimento da obrigação. Nas duas hipóteses, passa a titularizar, perante o devedor, os
direitos do credor satisfeito. A sub-rogação é, assim, a transferência da posição ativa da relação
obrigacional para quem solveu a obrigação no lugar do sujeito passivo ou emprestou-lhe o
necessário para tanto (Pereira, 1962:180).
A sub-rogação pode ser legal ou convencional. Na primeira, a transmissão dos direitos opera-se
independentemente da vontade do sub- -rogatário e do devedor. Corresponde a direito do subrogado. Na convencional, como a designação sugere, a transmissão decorre de negócio jurídico
entre o sub-rogado e o sub-rogatário ou entre aquele e o devedor.
São hipóteses de sub-rogação legal:
a) pagamento pelo credor de dívida do devedor comum (CC, art. 346, I). O credor pode considerar
a satisfação de seu crédito ameaçada em razão de outra dívida que o devedor tem com terceiros.
Neste caso, pode parecer-lhe interessante a solução daquela outra dívida, como medida de
proteção do seu direito. A hipótese é rara, mas pode ocorrer principalmente se a obrigação subrogada tem valor significativamente inferior ao da titularizada pelo sub-rogado. Imagine que o
devedor está insolvente e possui diversas dívidas com vários credores, sendo uma delas
representativa de dois terços do passivo. O credor desta obrigação mais valiosa considera que os
ativos do devedor, se bem administrados, poderiam gerar recursos suficientes para a superação da
crise patrimonial. Para isso, porém, seria necessária uma reorganização, que demanda certo
tempo. Mas, se um dos pequenos credores obtiver a instauração da execução concursal, a
reorganização não poderá ser feita, frustrando a perspectiva de recuperação do devedor. Pois
bem, para evitar essa frustração e buscar assegurar o recebimento de seu valioso crédito, o maior
credor pode pagar os pequenos credores e sub-rogar-se nos direitos deles.
b) Adquirente de imóvel hipotecado que paga ao credor hipotecário (CC, art. 346, II, primeira
parte). Se o imóvel é dado em hipoteca para garantia de certa obrigação, normalmente ele não é
negociado sem que as partes se componham relativamente à solução desta. Em geral, adotam-se os
seguintes esquemas negociais: o vendedor quita a obrigação garantida antes da venda; o
comprador paga pelo imóvel preço menor e assume a dívida; o comprador quita a obrigação
garantida e desconta o valor do preço do imóvel. É muito difícil alguém concordar em adquirir
imóvel hipotecado pelo valor “cheio”, isto é, como se ele não estivesse onerado. De qualquer
forma, se acontecer, o adquirente pode pagar o credor hipotecário e sub-rogar-se nos direitos
creditórios deste. Ele se tornará credor do vendedor. Note-se que, aqui, não tem sentido a regra de
transferência, pela sub-rogação, de todas as garantias do sub-rogatário ao sub-rogado. O imóvel
hipotecado já é de propriedade do credor sub-rogado e não mais do devedor e, assim, não pode
representar nenhuma garantia.
c) Terceiro que paga para não ser privado de direito sobre o imóvel hipotecado (CC, art. 346, II,
segunda parte). O credor sub-rogado pode ter direito sobre o imóvel hipotecado e considerar que a
execução da hipoteca ameaçaria o seu exercício. Para preservar seu direito, ele paga o credor
hipotecário e sub-roga-se no crédito contra o devedor, passando a titularizar a garantia da
hipoteca. Também se cuida de hipótese rara. Pense no promitente comprador que está pagando as
prestações do preço de imóvel hipotecado em favor de terceiros. Se o promitente vendedor não
honrar a dívida garantida, o imóvel objeto da promessa de compra e venda pode ser penhorado e
alienado judicialmente, pondo em risco os interesses do promitente comprador. Em lhe
interessando a operação, poderá pagar o credor hipotecário com o objetivo de preservar seus
direitos de vir a adquirir o imóvel no futuro. Tornar-se-á, pela sub-rogação, credor hipotecário do
vendedor.
d) Terceiro interessado que paga dívida pela qual podia ser obrigado (CC, art. 346, III). Viu-se já
esta hipótese na discussão sobre os sujeitos do pagamento. Quando o solvens não é o devedor, mas
terceiro patrimonialmente interessado na solução da obrigação, tem ele direito de pagá-la e subrogar-se nas garantias e privilégios do credor (item 2.1). É o caso do fiador, codevedor solidário,
codevedor de obrigação indivisível, sócio com responsabilidade ilimitada e outros sujeitos
interessados em evitar, pela solução da obrigação, que sejam cobrados por ela.
O pagamento com sub-rogação implica a satisfação do direito do credor e a transferência ao terceiro
(pagador) não só do crédito como das garantias e privilégios de que gozava.
Segundo a origem do ato, a sub-rogação pode ser legal ou convencional; segundo a extensão da satisfação
do direito do credor, total ou parcial.
A seu turno, são duas as hipóteses de sub-rogação convencional:
a) acordo entre sub-rogado e credor. O pagamento com sub-rogação pode derivar de negócio
jurídico entre o solvens não devedor e o credor. Diz a lei que se opera a transmissão do direito
creditório “quando o credor recebe o pagamento de terceiro e expressamente lhe transfere todos
os seus direitos” (CC, art. 347, I). A hipótese é muito próxima à da cessão de crédito, tanto que se
submete às regras desta (CC, art. 348). Há uma diferença conceitual entre elas, contudo. No
pagamento com sub-rogação, a transmissão do crédito deriva do pagamento, isto é, da satisfação
do direito do credor, ao passo que na cessão de crédito decorre de aquisição negocial pelo subrogado do direito do sub-rogatário. Como dito, a diferença é conceitual apenas. Para efeitos
práticos, o negócio jurídico de transmissão da posição ativa da relação obrigacional por acordo
entre credor e terceiro pode ser indiferentemente qualificado como sub-rogação convencional ou
cessão de crédito. Seja qual for a exata natureza desse negócio específico, segundo os padrões
conceituais operados pela tecnologia jurídica, as consequências serão idênticas, porque ele estará
sujeito, em qualquer caso, às mesmas normas: as reguladoras da cessão de crédito.
b) Acordo entre sub-rogado e devedor. A derradeira hipótese de pagamento com sub-rogação
compreende a entrega ao credor da prestação que o sub-rogado emprestou ao devedor. Se o
sujeito passivo da obrigação pecuniária não tem, no vencimento, o numerário suficiente para
pagá-la, e o obtém por empréstimo de terceiro, podem ocorrer duas situações. Na primeira, o
empréstimo não é expressamente relacionado à solução da obrigação. Trata-se de negócio jurídico
independente, em que o prestador dos recursos (que é terceiro na obrigação a ser solvida)
titularizará os direitos que houver contratado com o mutuário (o devedor na obrigação a ser
solvida). Na segunda, a causa do empréstimo é a solução da obrigação, em virtude de específica
declaração das partes. Nesta última situação, sendo condição expressa do empréstimo a subrogação, ao mutuante transmitem-se os direitos, garantias e privilégios do credor da relação
obrigacional extinta.
Note-se que também nos pagamentos de bem pode operar-se a sub-rogação convencional por
acordo entre sub-rogado e devedor, desde que o objeto da prestação seja fungível. O sujeito
passivo da relação obrigacional pode estar devendo a entrega de certa quantidade de trigo, de que
não dispõe. Perante terceiro, ele obtém o produto para cumprir a obrigação, a título de
empréstimo, com a expressa condição de sub- rogação. Neste caso, dá-se o pagamento indireto
aqui examinado.
Por outro critério de classificação, a sub-rogação pode ser total ou parcial. É total quando o
direito do credor é inteiramente satisfeito com o pagamento pelo terceiro; parcial, quando não se
dá a completa satisfação. Destaco que, mesmo na sub-rogação legal, que é direito do sub-rogado, o
credor não pode ser compelido a receber pagamento parcial (CC, art. 314). Desse modo, em
qualquer caso, a sub-rogação só pode ser parcial se com isto anuir o credor.
Na sub-rogação total, ao sub-rogado transmitem-se todas as garantias e privilégios titularizados
pelo sub-rogatário. Já na parcial, a extensão da transmissão depende, inicialmente, da natureza do
ato. Se convencional, as partes estabelecem por acordo de vontades os direitos que passam a ser
titularizados pelo sub-rogado; se legal, o sub-rogado não poderá exercer direitos e ações para além
do que tiver desembolsado (CC, art. 350), e o sub-rogatário terá preferência na cobrança da dívida
restante, se os bens do devedor não forem suficientes ao pagamento de todo o devido (CC, art. 351).
8.3. Dação em pagamento
Quando as partes de uma obrigação consensualmente estabelecem a alteração do objeto da
prestação, o adimplemento denomina-se dação em pagamento. Neste caso, a prestação que
originariamente deveria ser cumprida mediante, por exemplo, entrega de dinheiro será paga em
bem ou conduta, porque com isto concordam credor e devedor. Dinheiro ou qualquer tipo de bem
(móvel ou imóvel, corpóreo ou incorpóreo etc.) ou conduta (de fazer ou não fazer) pode ser objeto
da dação em pagamento. Imagine que Carlos deve a Darcy R$ 500, mas não tem dinheiro suficiente
para proceder ao pagamento. É, contudo, proprietário de um imóvel e propõe cumprir a obrigação
transferindo a Carlos este bem. Se Carlos concordar – seja porque considera que o imóvel lhe
interessa, por ter valor equivalente ao devido, seja porque simplesmente não acredita que o
devedor vá cumprir a obrigação do modo previamente ajustado –, procede-se à transferência da
propriedade do bem e à concomitante quitação da obrigação.
Quando a prestação pecuniária é substituída por bem, na dação em pagamento, assim que as
partes o precificam, a relação obrigacional passa a ser regida pelas normas do contrato de compra
e venda (CC, art. 357). Isto significa, por exemplo, que, manifestando-se vício na coisa objeto da
dação, o accipiens tem o prazo de 30 dias ou 1 ano (se o bem é móvel ou imóvel, respectivamente)
para rejeitá-la ou pleitear abatimento (CC, art. 445). Se, por outro lado, terceiros reivindicantes
obtêm em juízo o reconhecimento da propriedade sobre a coisa objeto de dação em pagamento, o
credor evidentemente a perde para eles. Tecnicamente falando, ele é evicto da coisa, tal como seria
o comprador na mesma situação. Aliás, diz a lei que, em se verificando a evicção do bem objeto de
dação em pagamento, “restabelecer-se-á a obrigação primitiva, ficando sem efeito a quitação
dada” (CC, art. 359).
Sendo a prestação substituída por título de crédito, a transferência deste ao accipiens importa a
cessão do direito creditício (CC, art. 358). O sujeito ativo da obrigação adimplida por dação é o
cessionário do crédito. Se o credor concorda em receber, em dação em pagamento, duplicatas
sacadas pelo devedor contra terceiros, ele se torna o titular do direito de receber o pagamento
destes títulos, ao mesmo tempo em que quita a obrigação paga com eles. A lei fala em cessão, mas,
se o sujeito passivo endossar os títulos de crédito no ato da dação, aplicam-se as regras próprias do
direito cambiário. Na falta do endosso, valem as normas sobre transmissão das obrigações já
examinadas (Cap. 15).
A dação em pagamento só tem lugar após o vencimento da dívida (Gomes, 1961:119; Diniz,
2003, 2:273). A rigor, se as partes acertam a alteração do objeto da prestação quando ainda não
vencida a obrigação, caracteriza-se a rerratificação. Para que a alteração do objeto da prestação
seja dação em pagamento é necessário que se verifique no contexto da solução da obrigação, do
adimplemento. Se as partes não manifestam animus solvendi enquanto declaram aquiescer com a
mudança da prestação, não há dação em pagamento. A distinção tem relevância meramente
conceitual. Tanto na rerratificação como na dação em pagamento, são idênticas as obrigações do
sujeito passivo em face da substituição do objeto.
Dação em pagamento é o pagamento da obrigação em que o devedor, em comum acordo com o credor,
entrega prestação diferente da originariamente devida. Substitui-se, assim, dinheiro por bem ou conduta,
bem por dinheiro ou conduta ou conduta por bem ou dinheiro.
Para caracterizar-se a dação em pagamento é necessário que a substituição seja feita com o ânimo de
solver a obrigação. Isto é, enquanto recebe a prestação substituta, com a qual concordara, o credor outorga
quitação ao devedor pela obrigação substituída.
A intenção de solver a obrigação presente na dação em pagamento aproxima-a da novação
objetiva (Cap. 17, item 2). Nesta, também as partes têm o intuito de extinguir a obrigação. Mas,
enquanto na dação em pagamento a extinção deriva da entrega de prestação diversa pelo sujeito
passivo, na novação objetiva ela decorre da assunção, por este, de nova obrigação em substituição
à primitiva.
Anteriormente à entrada em vigor do Código Civil de 2002, parte da doutrina considerava que
apenas as obrigações pecuniárias podiam ser cumpridas por dação em pagamento (Monteiro,
2001:297/299; Diniz, 2003, 2:269/276), e parte sustentava que qualquer alteração do objeto da
prestação derivada de acordo entre as partes no momento da execução devia ser tratada como
dação em pagamento (Gomes, 1961:118/120). O Código Reale pôs fim à controvérsia, prestigiando
esta última posição: pode-se cumprir obrigação de qualquer objeto por dação em pagamento
(Lotufo, 2003:330).
9. Imputação do pagamento
Quando o sujeito passivo deve ao ativo mais de uma prestação, em razão de um ou vários
negócios jurídicos ou eventos desencadeadores de obrigação legal, e o pagamento que tiver
realizado puder extinguir pelo menos duas delas por completo, é necessário definir qual obrigação
foi paga. Se Roberto, por exemplo, deve a Saulo uma nota promissória de R$ 100 e uma duplicata
também de R$ 100, e, vencidos os títulos, faz a entrega de apenas R$ 100 em dinheiro, precisa ser
determinada a obrigação que o pagamento extinguiu.
Não é irrelevante o tema porque podem variar significativamente os encargos da mora
previstos para cada obrigação devida pelo mesmo sujeito passivo àquele credor. Para uma delas,
por exemplo, pode ter sido estabelecida multa de 10% e juros segundo a taxa Selic, enquanto, para
a outra, não há multa e os juros são de 6% ao ano. Evidentemente, para o devedor interessa que a
primeira seja quitada pelo pagamento realizado, ao passo que, para o credor, melhor seria que a
última o fosse.
A determinação de qual das obrigações se extinguiu com a entrega da prestação que poderia ter
solvido qualquer uma delas é feita pela imputação do pagamento.
Quando o devedor deve mais de uma prestação ao mesmo credor e faz um pagamento suficiente apenas
para a quitação de qualquer uma delas, é necessário definir qual obrigação o ato extinguiu. Essa definição é
a imputação do pagamento, que cabe, em princípio, ao sujeito passivo.
São pressupostos da imputação: a) mais de uma dívida entre duas partes iguais (mesmo
devedor e mesmo credor); b) liquidez e exigibilidade de todas as dívidas passíveis de imputação; c)
fungibilidade das prestações entre si; d) pagamento suficiente para extinguir por completo
qualquer uma das dívidas passíveis de imputação.
Desse modo, não se aplicam as regras atinentes à imputação do pagamento se são diversos os
sujeitos de qualquer um dos polos da relação obrigacional. Apenas se o devedor está ligado ao
credor por mais de uma obrigação têm aplicação essas regras. Além disso, as dívidas devem estar
vencidas, sendo líquidas e exigíveis. Se uma das obrigações não venceu ou não foi ainda liquidada
(não teve seu valor determinado), não se pode imputar o pagamento a ela. Por outro lado, só cabe
a imputação do pagamento entre prestações homogêneas, isto é, reciprocamente fungíveis. Não
basta que a prestação seja fungível em si; é imprescindível que possa ser substituída pela outra
prestação. Se alguém deve x cabeças de gado e y toneladas de soja para a mesma pessoa, ainda que
as duas prestações tenham valor igual, não é possível a entrega dos bovinos ser imputada à
obrigação relativa ao cereal, ou vice-versa. Gado e soja são bens fungíveis em si, mas não o são
entre si (Rodrigues, 2002:188/189); não são, em suma, homogêneos. Finalmente, o pagamento dado
deve ser suficiente para quitar qualquer uma das dívidas em consideração, porque o credor,
lembre-se, não pode ser obrigado a receber pagamento parcial (CC, art. 314). Se o devedor deve
dois títulos ao credor, sendo um de R$ 500 e outro de R$ 800, o pagamento de R$ 500 destina-se à
solução daquele e não pode ser pretendida a imputação a este último contra a vontade do credor.
No direito brasileiro, a imputação do pagamento faz-se pelos seguintes critérios. Em primeiro
lugar, cabe ao devedor indicar a obrigação a que se refere o pagamento que está realizando (CC,
art. 352). Se não fizer nenhuma imputação, o credor deverá indicar a obrigação solvida no recibo
de quitação. Caso o devedor aceite a quitação nos termos outorgados pelo credor, manifestará sua
concordância com a imputação e não poderá reclamar contra ela, a menos que prove ter sido
vítima de violência ou dolo (CC, art. 353). Não tendo havido nem a imputação pelo devedor, nem a
identificação da obrigação paga no instrumento de quitação, considera-se resolvida a obrigação
vencida em primeiro lugar. Se as dívidas passíveis de imputação venceram no mesmo dia, imputase o pagamento à mais onerosa (quer dizer, àquela para cujo inadimplemento preveem-se maiores
encargos) (CC, art. 355). Se forem elas igualmente onerosas, pode-se imputar o pagamento a
qualquer uma, já que serão idênticos os efeitos econômicos e jurídicos num ou noutro caso.
© desta edição [2020]
2020 - 02 - 12
Curso de Direito Civil - Vol. 2 - Ed. 2020
PÁGINA RB-5.1
SEGUNDA PARTE - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
CAPÍTULO 17. EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO
Capítulo 17. EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO
1. Extinção ordinária e extraordinária
O destino da obrigação é extinguir-se. Sua transitoriedade, aliás, é assinalada em diversos
conceitos clássicos, como, por exemplo, o de Clóvis Bevilaqua: obrigação é a “relação transitória de
direito, que nos constrange a dar, fazer ou não fazer alguma coisa, em regra economicamente
apreciável, em proveito de alguém que, por ato nosso ou de alguém conosco juridicamente
relacionado, ou em virtude da lei, adquiriu o direito de exigir de nós essa ação ou omissão”
(1895:14). O vínculo obrigacional não existe por si mesmo, já que o seu fim é o que todos, em geral,
esperam. Normalmente, o credor anseia ver seu direito atendido e o devedor quer livrar-se da
sujeição; à sociedade também interessa que as obrigações se cumpram.
Devem-se distinguir duas hipóteses de extinção das obrigações. De um lado, aquela
normalmente aguardada pelas partes, que corresponde à vontade por elas declarada na
constituição do vínculo obrigacional ou à previsão do direito positivo. Chama-se extinção
ordinária e verifica-se com o pagamento direto e voluntário (Cap. 16). Quando o locador entrega as
chaves ao locatário, logo em seguida à assinatura do contrato de locação, ou o empresário indeniza
espontaneamente o consumidor pelos danos do acidente de consumo, extinguem-se as obrigações
(negocial no primeiro caso; não negocial no segundo) do modo como se espera que ocorra.
De outro lado, há a hipótese de extinção extraordinária da obrigação. Nela se compreendem
fatos, atos ou negócios jurídicos que importam o fim do vínculo obrigacional por um modo
diferente do pagamento direto e voluntário. O decurso do tempo, por exemplo, é um fato jurídico
extintivo da obrigação. Como já examinado anteriormente, o não exercício de direito no lapso
temporal definido na lei importa sua extinção (por prescrição ou decadência – Cap. 12). Também
os direitos derivados das obrigações se extinguem por esse meio. Se o credor de obrigação
alimentar não promove a cobrança judicial de seu crédito no prazo de 2 anos, contados do
vencimento, ele perde o direito de o fazer (CC, art. 206, § 2.º). A morte do devedor que não deixou
bens suficientes para a integral satisfação de suas dívidas é outro fato jurídico extintivo de
obrigações. Como os credores do falecido não podem exigir o pagamento dos sucessores, opera-se
a extinção do vínculo obrigacional sem o devido pagamento (ou parte dele). A execução judicial,
mesmo que específica, não corresponde ao exato modo em que se esperava a extinção da
obrigação. É, portanto, extinção extraordinária.
A obrigação extingue-se, ordinariamente, pelo pagamento direto, ou seja, pela entrega ao sujeito ativo da
prestação a que se refere. Extraordinariamente, ela se extingue pelo não exercício do direito titularizado
pelo sujeito ativo no prazo da lei (prescrição ou decadência), morte do credor insolvente, novação,
compensação, confusão, remissão, pagamento indireto ou inadimplemento involuntário.
Outros fatores de extinção extraordinária das obrigações são examinados a seguir: novação
(item 2), compensação (item 3), confusão (item 4) e remissão das dívidas (item 5). No próximo
capítulo, estuda-se o inadimplemento involuntário (Cap. 18, item 5), isto é, a impossibilidade de
cumprimento da obrigação em razão de caso fortuito ou força maior, fato que se caracteriza
também como uma forma de extinção extraordinária das obrigações (Gallo, 2000:340/341).
2. Novação
A novação é o negócio jurídico que simultaneamente extingue uma obrigação e constitui outra.
Na novação, a primeira obrigação é extinta – o que importa a liberação do sujeito passivo do
cumprimento da prestação e a decorrente impossibilidade de o sujeito ativo exigi-la – e surge novo
vínculo obrigacional para substituí-la. O sujeito ativo da primeira obrigação dá-se por satisfeito
com a substituição desta pela nova, presumindo-se que, entre a novação e o pagamento, aquela
atende ao seu interesse. A extinção da obrigação novada conduz a diversas consequências de
relevo. Se ela estava, por exemplo, coberta por penhor, hipoteca ou anticrese outorgada por
terceiro, e este não participa do negócio extintivo, a garantia real se desfaz com a novação (CC, art.
364). Em outros termos, surge uma nova obrigação desprovida da garantia real no mesmo ato em
que finda a que se encontrava garantida.
A obrigação substituída pode ser negocial ou não negocial, mas a substituta é necessariamente
negocial. A novação depende, em outras palavras, da vontade das partes. Se Antonio deve a
Benedito indenização pelos danos decorrentes de acidente de trânsito, esta obrigação (que é não
negocial) pode ser objeto de novação, se, por exemplo, as partes chegarem a acordo no sentido de
substituí-la pela entrega de um bem (esta, agora, é negocial). Toda obrigação válida e mesmo as
anuláveis podem ser extintas por novação; as nulas e as inexistentes, não (CC, art. 367).
Só se verifica a novação quando é indiscutível a intenção das partes em novar, isto é, em
substituir uma obrigação por outra, extinguindo-se a substituída. Em outras palavras, não se
presume nunca a novação, devendo ela derivar de inequívoca intenção das partes. Não havendo
clara intenção no sentido de extinguir uma obrigação mediante sua substituição por outra,
considera-se que a segunda apenas confirma a primeira. Para a lei, a vontade de novar pode ser
expressa ou tácita, mas deve ser inequívoca (CC, art. 361). Assim sendo, mesmo que o instrumento
firmado pelas partes não contenha expressa referência à novação, esta existirá se de outros
elementos for possível concluir ter sido vontade das partes extinguir a obrigação mediante sua
substituição por outra. A mais prestigiada indicação doutrinária da intenção tácita de novar é a da
incompatibilidade entre as obrigações em referência. Assim, se a obrigação nova é incompatível
com a antiga, mesmo inexistindo expressa manifestação da vontade de novar, considera-se que a
novação operou-se tacitamente (Pereira, 1962:202).
Novação é a extinção extraordinária da obrigação (novada) que decorre de sua substituição por outra
(nova).
Na novação, desaparece a obrigação novada – com a liberação do devedor em relação à prestação a que
correspondia – simultaneamente à constituição do vínculo relativo à nova.
A novação pode ser objetiva (substituição da prestação) ou subjetiva (substituição de um dos sujeitos).
A novação pode ser objetiva ou subjetiva, dependendo do elemento substituído. No primeiro
caso, difere a prestação da primeira obrigação em relação à da segunda, mantidas as mesmas
partes. Carlos deve entregar soja a Darcy. Antes ou depois do vencimento da obrigação, eles
concordam em substituir a prestação por gado. Evaristo devia $ 100 a Fabrício, mas não tinha
como pagar no vencimento. Puseram-se, então, de acordo, no sentido de que ele pagaria $ 105 no
prazo de 90 dias. Sendo a intenção inequívoca dessas partes a novação, a primeira obrigação deixa
de existir e surge uma nova com prestação diversa (gado em vez de soja, no primeiro exemplo;
valor e prazo de pagamento diferentes, no segundo). A novação objetiva é muito comum em
renegociações de dívidas perante os bancos, quando o mutuário enfrenta dificuldades em cumprir
sua obrigação.
Não se confunde a novação objetiva com a dação em pagamento. Naquela, o negócio jurídico
refere-se a duas obrigações: a antiga, que é extinta, e a nova, que surge. Já, na dação em
pagamento, a obrigação é uma só, e a prestação é substituída por acordo entre as partes após o
vencimento (Cap. 16, item 8.3). A distinção é relevante. Como na novação a primeira obrigação se
extingue, as condições em que esta se constituíra deixam de operar efeitos jurídicos, e vigoram
apenas as da nova. Desse modo, se a obrigação está garantida por terceiro, na condição de fiador, a
fiança não sobreviverá em caso de novação, a menos que o fiador concorde em garantir também a
segunda obrigação (CC, art. 366). Na dação em pagamento, por sua vez, permanecem inalteradas
as condições da obrigação caso ela não se extinga. Considere que Antonio deve $ 500 a Benedito,
em razão de um contrato de que participa Carlos como fiador. No dia do vencimento, como
Antonio não dispõe do dinheiro para pagar o devido, ele negocia com Benedito a entrega, na
semana seguinte, de um automóvel no lugar do dinheiro. Pois bem, se a intenção de Antonio e
Benedito era a de realizarem dação em pagamento, não sendo o veículo entregue tal como
combinado, Carlos continuará devedor da fiança, já que a obrigação correspondente não se
extinguiu. Se, porém, Antonio e Benedito tiveram a intenção de celebrar uma novação, a primeira
obrigação (entregar $ 500, com a fiança de Carlos) extinguiu-se e, no lugar dela, surgiu a nova
(entregar o automóvel). Quer dizer, neste caso, Benedito só poderá reclamar o bem de Antonio e
não terá nenhum direito de crédito contra Carlos.
Definir, em suma, se determinado negócio jurídico tem a natureza de novação ou de dação em
pagamento depende do exame da vontade das partes (Martins-Costa, 2003:521). Deve-se pesquisar
qual a intenção dos sujeitos envolvidos: extinguir uma obrigação mediante sua substituição por
outra ou alterar a prestação no pagamento. Se dessa pesquisa resultar, de forma inequívoca, que
havia animus novandi, aplicam-se as regras da novação. Caso contrário, submete-se o fato às
normas da dação em pagamento.
Na novação subjetiva, a prestação não se altera, mas uma das partes da segunda obrigação não
é igual à da primeira. Trata-se, note, de hipótese mais rara que a novação objetiva. Se muda o
credor, dá-se a novação subjetiva ativa; se o devedor, novação subjetiva passiva.
Como destacado, a obrigação substituta é sempre negocial e depende, em princípio, da vontade
das duas partes. Existe, porém, uma hipótese de novação sujeita apenas à vontade do credor. É o
caso da novação subjetiva passiva chamada de expromissão, que decorre do disposto no art. 362 do
CC: “A novação por substituição do devedor pode ser efetuada independentemente de
consentimento deste”. Na expromissão, terceiro apresenta-se ao credor e propõe-se a obrigar-se
perante este, desde que seja outorgada a quitação de outra obrigação em favor do sujeito passivo
desta. Imagine que o pai fique sabendo que seu filho deu-se mal em alguns negócios e está
devendo na praça. Se esse pai procura os diversos credores com o objetivo de pagar o devido pelo
filho num prazo a ser negociado, a novação que ele busca é uma expromissão. Extinguem-se as
obrigações de que era sujeito passivo o filho e constituem-se, para substituí-las, as obrigações
contraídas pelo pai. Na expromissão, a novação independe da vontade do devedor, que se libera
da sujeição obrigacional mesmo que não queira. Nela, a extinção da obrigação decorre apenas de
acordo de vontades entre o sujeito ativo e o terceiro.
Quando a novação subjetiva passiva é feita mediante acordo de vontade de que participa o
devedor, ela é denominada delegação. Por ela, o sujeito que é credor de uma pessoa e devedor de
outra pela mesma importância (delegante) pode orientar o sujeito passivo da primeira obrigação
(delegado) a pagar diretamente o ativo da segunda (delegatário), quitando-se ambas. A novação
por delegação libera por completo o delegante das obrigações que contraíra e obriga o delegado
perante o delegatário (Mazeaud-Chabas, 1998:1258/1260).
O devedor pode ser substituído na obrigação independentemente de sua vontade. Se a novação por
substituição do devedor decorrer apenas do acordo entre o credor e o terceiro substituto, chama-se
expromissão; se decorrer de acordo entre os três (credor, devedor e substituto), seu nome é delegação.
Deve-se ressaltar que na novação subjetiva passiva não há pagamento com sub-rogação. O
sujeito passivo substituto não passa a ter, na novação, qualquer direito de crédito perante o
devedor da primeira obrigação. Como se recorda, no pagamento com sub-rogação, o terceiro
satisfaz o direito do sujeito ativo da relação obrigacional e passa a titularizar o crédito (e suas
garantias) perante o sujeito passivo. Na novação, contudo, opera-se a extinção da obrigação, de
modo que o devedor substituído fica quitado, nada mais podendo ser dele cobrado, seja pelo
sujeito ativo, seja pelo sujeito passivo substituto.
Também não existe sucessão na novação subjetiva passiva. Quer dizer, o sujeito passivo
substituto não é sucessor do substituído. Tanto na expromissão como na delegação, se o credor
concorda com a novação, está manifestando a vontade de integrar uma relação obrigacional nova,
ao mesmo tempo em que libera o sujeito passivo da relação antiga. Não há sucessão, no sentido de
que o segundo devedor não assume a obrigação do primeiro, mas uma outra. Se o credor possuía,
perante o primeiro devedor, um privilégio, a novação não o preserva se o segundo devedor não se
encontra na mesma condição jurídica, exatamente porque não há sucessão.
Se o devedor substituto for insolvente, o credor não poderá, em princípio, voltar-se contra o
substituído. A novação extinguiu a obrigação deste e o liberou do vínculo de sujeição. Cuida,
contudo, a lei de uma situação específica: se tiver havido má-fé do primeiro devedor, ele
responderá pela solvência do segundo (CC, art. 363). Assim, se o credor provar, por hipótese, que o
primeiro devedor havia adulterado os documentos comprobatórios da idoneidade econômica do
segundo, ficam caracterizadas a sua má-fé e responsabilidade pelo cumprimento da obrigação
nova. Convém salientar que a primeira obrigação permanece extinta, mesmo tendo obrado de máfé o devedor substituído. A lei imputa-lhe, neste caso, a responsabilidade pela obrigação nova, e é
em função dela (e não da antiga) que o credor pode demandar o primeiro devedor.
Na novação subjetiva ativa, por fim, substitui-se o credor e fica o devedor quitado em relação
ao substituído. Não se confunde com a cessão de crédito (Cap. 15, item 2) porque, nesta, a mesma
obrigação é transferida de um credor para outro, enquanto, na novação, o segundo credor é titular
de obrigação nova, diferente da que titularizava o primeiro. Na cessão de crédito, não há extinção
da obrigação cedida; pelo contrário, ela permanece íntegra. Na novação subjetiva ativa, extinguese a obrigação de que derivava o direito do primeiro credor. A relevância da distinção é clara: se a
intenção inequívoca das partes era a de novar, e não a de transferir a obrigação, eventuais
garantias, privilégios e vícios da primeira relação obrigacional não se repetem na segunda (salvo
se expressamente renovadas); mas se era a de ceder o crédito, o novo credor o assume com todas
as suas garantias, privilégios ou vícios.
3. Compensação
Se as duas partes da relação obrigacional são reciprocamente credora e devedora, as
obrigações se extinguem até o quanto se equivalem. Esta forma de extinção é chamada
compensação. Se Darcy deve $ 1.000 a Evaristo e é credora deste no valor de $ 1.000, as duas
obrigações se extinguem por compensação. Se deve $ 1.000 e é credora de $ 750, a obrigação
correspondente ao crédito de Darcy extingue-se por compensação e a correspondente ao crédito de
Evaristo tem o valor reduzido para $ 250. Se Darcy deve entregar a Evaristo 600 cabeças de gado
nelore e este lhe deve 500 cabeças de gado nelore, as duas obrigações se compensam e se
extinguem com a entrega, por Darcy a Evaristo, de 100 cabeças de gado nelore. Trata-se de forma
de extinção de obrigações que atende à racionalidade econômica dos créditos recíprocos. Sua
formulação normativa encontra-se no art. 368 do CC: “Se duas pessoas forem ao mesmo tempo
credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem”.
No direito brasileiro, a compensação não depende da vontade dos sujeitos da relação
obrigacional. Opera-se, a rigor, mesmo contra a de qualquer um deles. É um fato jurídico:
estabelecida a equivalência entre as prestações que dois sujeitos de direito mutuamente se devem,
dá-se a extinção até o equivalente. Ao contrário da novação e da remissão das dívidas, a
compensação não é negócio jurídico. Verificado o fato descrito nas normas sobre compensação, as
obrigações compensadas prontamente se extinguem. Se as partes litigam em juízo, a sentença que
proclama a compensação apenas declara a ocorrência do fato jurídico extintivo; não decreta a
extinção.
A tecnologia civilista costuma referir-se a três tipos de compensação: legal, convencional e
judicial (Martins-Costa, 2003:577/579; Venosa, 2001:298). A compensação legal é a que se opera,
independentemente da vontade das partes, quando preenchidos os requisitos da lei; a
convencional seria aquela em que as partes se outorgam quitação por obrigações recíprocas,
mesmo que não atendidos os requisitos da lei para a compensação; a judicial, finalmente, seria a
declarada pelo juiz. Esta classificação não é adequada, porém. Toda e qualquer compensação é
sempre legal, porque a extinção da obrigação deriva do fato jurídico ao qual a norma atribuiu esta
consequência, qualquer que seja a intenção das partes a respeito. A chamada de convencional não
é sequer compensação, mas um negócio jurídico em que sujeitos capazes com vontades
convergentes compõem seus interesses com liberdade; e a judicial também não é propriamente
uma “espécie” de compensação, mas apenas a superação de conflito de interesses entre pessoas
que titularizam recíprocos direitos e obrigações, em que a declaração do fato jurídico extintivo é
feita pelo Judiciário.
Vale ressaltar que, embora a compensação seja sempre um fato jurídico e não negócio jurídico,
a lei reconhece que ela corresponde a direito privado plenamente dispositivo. As partes podem,
assim, estabelecer por mútuo acordo que não haverá a compensação das obrigações recíprocas, se
isto for do seu interesse. Pode, ademais, uma delas previamente renunciar ao direito de
compensar seu débito com seu crédito, se lhe interessar fazê-lo. Nestes casos em que os sujeitos de
direito concordam que a equivalência entre obrigações recíprocas não importará a extinção
destas, a compensação não se verifica em atendimento à vontade das partes (CC, art. 375).
A compensação, no direito brasileiro, é um fato jurídico, não um negócio jurídico. Assim, preenchidas as
condições que a lei descreve, opera-se a extinção das obrigações independentemente da vontade das partes.
Não é apropriado, portanto, falar em compensação convencional ou judicial. A lei, porém, admite que as
partes afastem a compensação mediante negócio jurídico.
Para que se opere a compensação, são necessárias duas condições: o atendimento ao
pressuposto da reciprocidade subjetiva (item 3.1) e a compensabilidade da prestação (item 3.2).
3.1. Reciprocidade subjetiva
Para que se extingam as obrigações por compensação é necessário, em primeiro lugar, que as
partes titularizem, uma perante a outra, crédito e débito. É o pressuposto da reciprocidade
subjetiva. Se Antonio deve $ 300 a Benedito e este deve $ 400 àquele, compensam-se as obrigações,
de modo que o pagamento do segundo ao primeiro da diferença de $ 100 as extingue por completo,
porque um deve e é, ao mesmo tempo, credor do outro, e vice-versa. Está atendido o pressuposto
da reciprocidade subjetiva. Ninguém, porém, pode pretender compensar sua dívida com o crédito
que titulariza perante outrem, numa transversa transferência de obrigação. Se Carlos deve $ 700 a
Darcy e é credor de $ 700 de Evaristo, ele não pode compensar o que deve à primeira com o crédito
que tem perante o segundo. O devedor só pode pretender-se liberado de sua obrigação por
compensação se titularizar crédito perante o seu credor. É o que estabelece a primeira parte do
art. 371 do CC: “O devedor somente pode compensar com o credor o que este lhe dever”.
Em decorrência do pressuposto da reciprocidade subjetiva, o terceiro não interessado que paga
no lugar do sujeito passivo, fazendo-o em nome deste ou em seu próprio nome, não tem o direito
de compensar, neste pagamento, o valor de eventual crédito que titulariza perante aquele sujeito
ativo (CC, art. 376). Imagine que Fabrício é credor de Germano por $ 500 e Hebe deve a Germano $
800. Fabrício pode, como terceiro, mesmo não interessado, pagar a dívida de Hebe (CC, arts. 304,
parágrafo único, e 305), mas não poderá limitar-se ao pagamento da diferença entre o seu crédito e
o de Germano ($ 300). A compensação neste caso não se admite porque não há identidade dos
sujeitos que titularizam recíprocos direitos e obrigações. Não estaria sendo atendido, em suma, o
pressuposto da reciprocidade subjetiva.
Também em decorrência desse pressuposto, perderá o direito à compensação o devedor que
poderia compensar sua obrigação com crédito titularizado perante o credor, se este ceder o seu a
terceiro e aquele foi notificado e não se opôs, ou não foi notificado (CC, art. 377). A cessão de um
dos créditos compensáveis, assim, afasta a possibilidade da compensação porque não há, entre
cedido (devedor) e cessionário (novo credor), obrigações recíprocas equivalentes. Por esta razão,
em princípio, o cedido perde o direito de compensar. O cedido apenas continua titularizando o
direito à compensação perante o cessionário em duas hipóteses previstas na lei: se não tiver sido
notificado da cessão ou se tiver se oposto a ela.
Um exemplo pode clarificar o assunto. Considere que Irene deve $ 200 a João e este deve a ela
também $ 200. Têm ambos, assim, direito à compensação de suas obrigações. Considere, então,
que João cede seu crédito a Luiz, notificando a cessão a Irene. Se Irene não se opuser, no prazo
assinalado na notificação, à transferência da obrigação, perde o direito à compensação. Antes da
cessão, João devia a Irene, que devia a João, estando, portanto, atendida a reciprocidade subjetiva.
Como, após a cessão, João deve a Irene, que deve a Luiz, não há mais o pressuposto e descabe a
compensação. Para que Irene possa compensar com Luiz seu crédito perante João, ela deve provar
que se opôs à cessão no prazo da notificação ou alegar que não foi notificada. Claro está, por fim,
que, podendo o cedido compensar seu crédito com a obrigação, o cessionário, em regresso, deverá
ser indenizado pelo cedente.
O pressuposto fundamental da compensação é de natureza subjetiva, quer dizer, relativa aos sujeitos. Só
se compensam obrigações em que o sujeito ativo de uma relação é o passivo da outra e vice-versa. Não
estando presente este pressuposto, não incide a norma jurídica que determina a extinção da obrigação por
compensação. Há só uma exceção, prevista em lei, em benefício do fiador, que pode compensar com o credor
eventual crédito que o afiançado titularize perante este.
Há uma única exceção ao pressuposto da reciprocidade subjetiva. É a estabelecida em favor do
fiador. Reconhece a lei que ele pode compensar perante o credor o valor do crédito titularizado
pelo afiançado (CC, art. 371, segunda parte). Se o afiançado deve $ 500 ao credor garantido e é, ao
mesmo tempo, seu credor por $ 350, o fiador, cobrado, exonera-se da obrigação alegando a
compensação e pagando a diferença de $ 150.
3.2. Prestação compensável
Além do pressuposto da reciprocidade subjetiva, a compensação depende de outros fatos
previstos em lei. Quer dizer, nem todas as obrigações são passíveis de compensação, mesmo
quando atendido o pressuposto da reciprocidade subjetiva. Se duas pessoas são, ao mesmo tempo,
credora e devedora uma da outra, para que haja compensação nas respectivas obrigações é
necessário que as prestações atendam a determinados requisitos legais.
São seis os requisitos cujo atendimento tornam a prestação compensável:
a) Liquidez. Para ocorrer a compensação, as prestações devem ser líquidas, ou seja, certas
quanto à existência e determinadas na extensão (CC, art. 369). Se um dos sujeitos das relações
obrigacionais deve uma quantia claramente estabelecida em contrato e é credor por indenização
em valor ainda discutível e não apurado, descabe a compensação por faltar ao seu crédito
liquidez. Enquanto não for tornada certa a obrigação de indenizar (por decisão judicial
condenatória ou negócio jurídico) ou mesmo enquanto não se quantificar o valor do ressarcimento
indenizatório (por liquidação judicial ou negócio jurídico), não se verifica a extinção da outra
obrigação, que deve ser cumprida. Claro que, uma vez tornada certa e quantificada, a prestação
que era ilíquida se liquida e passa a ser compensável.
b) Exigibilidade. Só se compensam prestações vencidas, que podem ser exigidas, inclusive
judicialmente (CC, art. 369). Enquanto não vence, a obrigação não pode servir à compensação por
faltar-lhe exigibilidade. Desse modo, mesmo a prestação líquida que ainda não é exigível do sujeito
passivo, porque não transcorrido o tempo para o vencimento da obrigação, é imprestável para
compensar. Note-se que não é condição da compensação que as duas obrigações vençam no
mesmo dia; uma pode ter vencido antes da outra. É inafastável que as duas sejam já exigíveis. Se
Maria deve pagar $ 200 a Nair em 30 de setembro e esta lhe deve pagar também $ 200, mas em 30
de novembro, não há como qualquer uma delas pretender a compensação em agosto, porque as
prestações são, então, inexigíveis. Mesmo em outubro, Maria não pode reclamar ter havido a
compensação porque seu crédito ainda não terá vencido. Só após 30 de novembro, quando as duas
prestações são exigíveis, opera-se a compensação. Note-se, porém, que, neste exemplo, Maria,
porque não adimpliu a obrigação no vencimento, é ainda devedora dos encargos da mora perante
Nair (correção monetária, juros etc.) incidentes entre 30 de setembro e 30 de novembro.
Uma definição relacionada à exigibilidade da prestação compensável encontra-se no art. 372 do
CC, que desconsidera os prazos de favor, mesmo quando consagrados pelo uso geral. Desse modo,
se é costume do local do cumprimento da obrigação que o credor conceda ao devedor um prazo
além do vencimento antes de exigir a entrega da prestação, isto não adia a exigibilidade desta para
os efeitos da compensação. Se no vencimento estavam já presentes todos os demais requisitos da
compensabilidade, extinguiram-se as obrigações, a despeito do costume relativo ao prazo de favor.
O requisito da exigibilidade afasta a possibilidade de compensação de obrigações naturais.
Como o sujeito ativo dessas obrigações, por definição, não pode exigir o seu cumprimento, a
prestação correspondente não atende a este requisito da compensabilidade. Também não podem
ser compensadas, pela mesma razão, as obrigações prescritas.
Além do atendimento ao pressuposto da reciprocidade subjetiva, a norma que determina a extinção da
obrigação por compensação aplica-se apenas se as prestações apresentarem determinadas características.
Assim, para que ocorra a compensação, as prestações devem ser líquidas (certas na existência e
determinadas na extensão), exigíveis (vencidas), fungíveis, homogêneas, derivadas de causa lícita e não
essenciais para o sujeito ativo.
c) Fungibilidade. Só prestações fungíveis são compensáveis (CC, art. 369). Se uma das obrigações
ou ambas se referem a bens infungíveis, não ocorrerá a compensação, mesmo que sejam líquidas e
exigíveis. Imagine que um dos sujeitos das relações obrigacionais é vendedor de imóvel (pelo qual
já recebeu a totalidade do preço) e deve entregar a coisa certa – o apartamento n. 12 do Edifício
das Flores, situado na Rua Oceano Atlântico etc. –, é comprador de um veículo (pelo qual já pagou
a totalidade do preço) e tem direito, por isso, de receber do mesmo sujeito esta outra coisa certa –
automóvel marca x, placa y etc. O imóvel e o veículo, malgrado correspondam a prestações
líquidas e exigíveis, não se compensam porque não são fungíveis.
A fungibilidade da prestação impede, igualmente, qualquer compensação em obrigações
originadas em contratos reais, como o comodato ou depósito regular (CC, art. 373, II). O
comodatário deve restituir ao comodante, nos termos do contrato, o bem objeto do comodato, e
não outro equivalente. Se ele é, também, credor do comodante por certa quantia de dinheiro, não
é cabível a compensação porque falta à obrigação dele, enquanto comodatário, fungibilidade. Em
igual situação se encontra o depositário, no depósito regular, que deve restituir ao depositante
exatamente o mesmo bem que lhe foi confiado a título de depósito. A infungibilidade desta
obrigação de restituir afasta o cabimento da compensação com qualquer outra de que seja o
depositário credor do depositante. Anote-se que, embora a lei mencione depósito em geral, a
incompensabilidade da prestação por carência de fungibilidade só se verifica na modalidade
regular deste contrato, já que o depósito irregular tem por objeto bens fungíveis, aptos a servirem
à compensação (Pereira, 1962:215).
As obrigações de não fazer não se prestam à compensação porque lhes falta fungibilidade. Se
um sujeito de direito assumiu obrigação de não fazer, a omissão correspondente ao cumprimento
desta é dele apenas e de mais ninguém. Não consegue o sujeito ativo obter o mesmo resultado do
adimplemento da obrigação em razão da conduta de outrem. A infungibilidade das obrigações de
não fazer impossibilita sua compensação. Por esta razão, também, as obrigações de fazer
infungíveis não podem ser compensadas (a rigor, as de fazer fungíveis também não se prestam à
compensação; mas isso em virtude do desatendimento do próximo requisito).
d) Homogeneidade. Para servir à compensação, não basta à prestação que se refira a bem
fungível. É necessário que se caracterize, também, a homogeneidade. Quer dizer, mesmo que as
prestações recíprocas sejam fungíveis, se não forem homogêneas, não pode nenhuma das partes
envolvidas pretender a compensação. Veja, não há dúvida de que laranjas baía são bens fungíveis,
assim como o são as laranjas pera. Mas, se um agronegociante é devedor de 10 toneladas de
laranjas baía tipo A e, ao mesmo tempo, credor de 10 toneladas de laranjas pera tipo C, estas
obrigações não se compensam porque, embora as prestações sejam líquidas, exigíveis e fungíveis,
não são homogêneas. Vale destacar que, neste exemplo, estão se considerando tipos de laranjas
com preços diferentes (a laranja baía tipo A é, normalmente, mais cara que a pera tipo C, no
mercado atacadista de São Paulo). Certa quantidade de um tipo desta fruta tem, portanto, valor
diverso da mesma quantidade do outro tipo. Mas, quero enfatizar, isso não tem importância.
Ainda que os bens fungíveis tivessem o mesmo valor, não se dá a compensação se não forem
homogêneos. Compensam-se, desse modo, dinheiro com dinheiro, café arábica com café arábica,
gado nelore com gado nelore, laranja baía tipo B com laranja baía tipo B etc.
A homogeneidade da prestação é exigida pelo art. 370 do CC: “Embora sejam do mesmo gênero
as coisas fungíveis, objeto das duas prestações, não se compensarão, verificando-se que diferem na
qualidade, quando especificada no contrato”. Silvio Rodrigues chama as prestações homogêneas
de fungíveis entre si para distinguir esta condição de compensabilidade da anterior, a que ele se
refere pela noção de fungibilidade em si (2002:218).
O requisito da homogeneidade das prestações descarta a hipótese de compensação como forma
de extinção das obrigações de fazer. Boa parte delas estaria já descartada em função do requisito
anterior, porque as obrigações são, em princípio, infungíveis, constituídas exclusivamente tendo
em vista os atributos pessoais do contratante. Mas mesmo as obrigações de fazer fungíveis não
podem ser compensadas porque o requisito da homogeneidade não restaria atendido. Imagine que
um oftalmologista assumiu a obrigação de atender um dentista, e este, a de tratar aquele médico.
O preço dos serviços de ambos, que corresponde a uma obrigação de dar, pode ser compensado, e
nenhum deles desembolsar nada pelo atendimento que receber do outro; mas as obrigações de
fazer (fungíveis) que esses profissionais assumiram não. Compensá-las é materialmente
impossível e equivale à não prestação dos serviços. Falta entre aquelas obrigações, a
homogeneidade indispensável à compensação.
Em suma, só as obrigações de dar são compensáveis.
e) Causa lícita. A causa das obrigações compensáveis pode ser igual ou diferente. Compensamse, assim, crédito derivado de mútuo com débito originado de compra e venda; crédito nascido de
contrato com débito oriundo de responsabilidade civil por ato ilícito; crédito decorrente de
prestação de serviços com débito referente a locação etc. A diferença de causa das dívidas, diz a
lei, não impede a compensação (art. 373, caput). A causa da obrigação compensável é, porém,
relevante em algumas hipóteses. Não admite a lei a compensação quando a prestação tem causa
ilícita, isto é, deriva a obrigação de roubo, esbulho, furto (CC, art. 373, I) ou qualquer outro crime
(sobre a interpretação extensiva deste dispositivo, ver Martins-Costa, 2003:600). Aquele que se
apropria indevidamente de valores da empresa em que trabalha é obrigado a restituí-los, mas não
pode pretender a compensação deste seu débito originado de ilícito com o valor de férias não
gozadas que ainda tem para receber. O que furta dinheiro do cofre do vizinho deve restituir o
valor furtado; se o criminoso for, eventualmente, também credor desse mesmo vizinho, não
poderá alegar a compensação, porque sua dívida tem causa ilícita. Note que, neste segundo
exemplo, apenas a vítima, se for do seu interesse, pode compensar o que deve ao criminoso com o
crédito nascido do crime, se atendidos os demais requisitos da prestação compensável.
f) Inessencialidade. As prestações essenciais ao sujeito ativo não servem à compensação. A
primeira hipótese legalmente prevista de prestação essencial é a insuscetível de penhora (CC, art.
373, III). A lei processual define que determinados bens, reputados essenciais ou sentimentalmente
caros ao devedor, não podem ser objeto da constrição judicial da penhora. São exemplos de bens
impenhoráveis os utensílios profissionais, o seguro de vida, quantia depositada em caderneta de
poupança até o limite de 40 salários mínimos e outros (CPC, art. 833). Na sua maioria, exatamente
pelo seu valor idiossincrático, os bens impenhoráveis são infungíveis e seriam, já por esta
condição, imprestáveis à compensação. Há, contudo, certos bens impenhoráveis que são fungíveis,
como o salário ou vencimentos. A lei, em atenção à essencialidade desses bens para o devedor – ou
seja, pelas mesmas razões que justificaram sua impenhorabilidade –, obsta que sirvam à
compensação. Desse modo, se o empregado causa culposamente dano ao empregador, não se
verifica a compensação do crédito pela indenização com o saldo salarial devido. Note-se, a
compensação – enquanto fato jurídico extintivo da obrigação – decididamente não se verifica,
porque excluída expressamente pela lei civil. Pode, entretanto, o empregador proceder ao
desconto do valor correspondente à indenização, desde que com isto concorde o empregado (CLT,
art. 462, § 1.º) (as declarações de vontade das partes da relação empregatícia, sob o estrito ponto de
vista econômico, levam ao mesmo resultado da compensação, mas não se confundem,
juridicamente, com esta; a compensação é fato jurídico extintivo de obrigação e não negócio
jurídico).
A outra hipótese legal em que a essencialidade da prestação para o sujeito ativo obsta a
compensação encontra-se na referência às obrigações de alimentar (CC, art. 373, II, in fine). Como
os alimentos são destinados ao sustento do alimentado, a compensação contra os interesses deste
frustraria o objetivo do instituto. O alimentador não pode, assim, compensar o que deve a título de
alimentos com créditos que, porventura, possua perante o alimentado.
3.3. Observações finais
Para finalizar o exame da compensação como fator extintivo de obrigação, cabem três
observações.
A primeira diz respeito à compensação de obrigações que devem ser cumpridas em lugares
diferentes. Como já assentado anteriormente, o lugar do pagamento não tem, hoje, grande
importância, tendo em vista que a expressiva maioria das obrigações pecuniárias, no Brasil,
cumpre-se por meio de operações bancárias, sendo irrelevante o local em que se encontram os
sujeitos da relação obrigacional no momento do adimplemento. De qualquer forma, se a questão
do lugar do pagamento não for indiferente para a parte que se deslocou em função da
compensação, é-lhe assegurado o direito à dedução das despesas correspondentes (CC, art. 378).
A segunda é pertinente à situação do devedor que se obrigou por mais de uma dívida
compensável perante o mesmo credor. Estabelece a lei que a compensação se opera com
observância das regras atinentes à imputação do pagamento (CC, art. 379). Desse modo, cabe ao
devedor apontar qual das obrigações compensáveis ele deseja ver extinta por compensação. Se
não o fizer, e o credor também não se manifestar, compensam-se as dívidas vencidas em primeiro
lugar ou, se insuficiente este critério, as mais onerosas (CC, arts. 352 a 355).
Finalmente, a terceira observação trata da preservação dos direitos de terceiros. A
compensação, esclarece-se, não prejudicará esses direitos. Se o devedor se torna credor do seu
credor, depois de penhorado o crédito deste, não pode opor ao exequente a compensação que
eventualmente tivesse contra o executado (CC, art. 380). Assim, imagine que Orlando é credor de
Pedro e deve a Renato. Este último, na execução que promove para haver seu crédito, pode
penhorar o crédito que Orlando tem com Pedro. Vindo, após isso, Pedro a tornar-se também credor
de Orlando, não poderá ser feita a compensação porque ela prejudicaria os direitos do exequente
Renato. Com efeito, como a compensação extingue a obrigação, ela acarretaria, neste caso, a
desconstituição da garantia do terceiro representada pela penhora. Na tutela dos direitos deste, a
lei, então, obsta a compensação.
4. Confusão
Por confusão, extingue-se a obrigação em que o mesmo sujeito de direito tornou-se credor e
devedor. Dois exemplos podem ilustrá-la. No primeiro, considere que o sujeito passivo da relação
obrigacional é o único herdeiro do sujeito ativo. Vindo este último a falecer – antes ou depois de
vencida a obrigação, mas, em qualquer caso, antes do seu adimplemento –, aquele passa a ser, ao
mesmo tempo, sujeito passivo e ativo da obrigação. No segundo exemplo, imagine que os
obrigados são sociedades empresárias e que uma delas incorpora a outra (quer dizer, absorve o
patrimônio dela numa operação societária). Na incorporação, a incorporadora sucede a
incorporada em todos os seus direitos e obrigações (CC, art. 1.116). Se a incorporada devia à
incorporadora, ou se tinha perante esta algum crédito, opera-se a confusão extintiva da obrigação.
Deve-se à absoluta impossibilidade material e lógica de sobrevivência da obrigação a sua
extinção por confusão. Se o credor e o devedor tornam-se o mesmo sujeito de direito, as posições
ativa e passiva da relação obrigacional passam a pertencer ao mesmo patrimônio. Não há como
adimplir esta obrigação, porque a prestação já se encontra no patrimônio de quem é o credor. Para
os sujeitos obrigados a manter contabilidade (como as sociedades empresárias), bastam os
lançamentos apropriados que fazem desaparecer o registro da obrigação. Para os demais, a
impossibilidade material e lógica já suspende qualquer eficácia da obrigação.
A confusão é, tal como a compensação, um fato jurídico. Mesmo quando derivada de negócio
jurídico – como no exemplo da incorporação –, o que extingue a obrigação não é a declaração de
vontade das partes, mas sua consequência: a reunião no mesmo patrimônio das posições ativa e
passiva da relação obrigacional. Sempre que se verificar esta reunião, tal fato jurídico implicará a
extinção da obrigação por confusão.
Duas são as espécies de confusão: total ou parcial (CC, art. 382). Na primeira, a obrigação
extingue-se por completo, enquanto, na outra, apenas em parte. Exemplo de confusão parcial
encontra-se nas obrigações solidárias. Se um dos devedores solidários se confunde com o credor,
opera-se a extinção de parte da obrigação. Quer dizer, apenas a parte correspondente à parcela de
responsabilidade do devedor solidário confundido. Remanesce a obrigação com a solidariedade
entre os demais devedores (se restarem, evidentemente, pelo menos dois). É o ditado da lei: “A
confusão operada na pessoa do credor ou devedor solidário só extingue a obrigação até a
concorrência da respectiva parte no crédito, ou na dívida, subsistindo quanto ao mais a
solidariedade” (CC, art. 383).
Confusão é o fato jurídico extintivo de obrigação derivado da reunião, no mesmo patrimônio, das
posições ativa e passiva da relação obrigacional. Assim, quando credor e devedor passam a ser o mesmo
sujeito de direito, dá-se a confusão e a extinção da obrigação.
A confusão pode ser parcial, hipótese em que a obrigação não se extingue por inteiro.
Cabe alertar que não se opera confusão se os sujeitos da relação obrigacional não são
exatamente iguais. Esta impropriedade no manuseio do conceito verifica-se, até com certa
frequência, no caso de aquisição de participações societárias (ações de sociedades anônimas ou
quotas de limitada). Se Antonio é credor da sociedade Primavera Empreendimentos Ltda. e adquire
a maioria das quotas sociais de seu devedor, isto não acarreta a confusão. O sócio é pessoa distinta
da sociedade, de modo que Antonio continuará credor e Primavera Empreendimentos Ltda.,
devedora, sendo irrelevante o fato de o credor ter-se tornado sócio do devedor. Somente quando o
credor e o devedor se confundem num mesmo sujeito de direito, ou seja, apenas quando se
reúnem no mesmo patrimônio as posições ativa e passiva da obrigação é que esta se extingue por
confusão.
Dispõe, enfim, a lei que, cessada a confusão, restabelece-se a obrigação anterior com todos os
seus acessórios (CC, art. 384). Para alguns doutrinadores, trata-se de preceito equivocadamente
formulado pela lei. O que se pretendeu regular, segundo este enfoque, não seria a cessação da
confusão e o restabelecimento da obrigação, mas as situações transitórias em que a possibilidade
de confusão está presente, mas ainda não se verificou em sua plena eficácia. Como diz Pontes de
Miranda, não há ressurreição do crédito (1965, 25:43/44). A confusão, quando ocorre, o extingue e
não haveria como reavivá-lo. A norma em foco cuidaria, assim, da renovação da eficácia da
obrigação que corria o risco de ser extinta por confusão. Judith Martins-Costa ilustra o fato
subsumível ao art. 384 do CC, para esta concepção, com a renúncia à herança. Com o falecimento,
transmite-se o patrimônio do falecido imediatamente aos herdeiros legítimos e testamentários. Se
um destes devia ao de cujus, a obrigação correspondente reúne todos os requisitos para extinguirse por confusão. Se, contudo, esse devedor renuncia à herança, não chega a ocorrer a reunião,
num só patrimônio, das duas posições da relação obrigacional. A confusão, que estava prestes a
ocorrer, não se verifica (Martins-Costa, 2003:646/648).
O art. 384 do CC cuida, no meu modo de ver, da hipótese de anulação do negócio jurídico de que
decorreu a confusão. Se a incorporação da sociedade credora pela devedora é anulada, todos os
seus efeitos deixam de se projetar, inclusive os relacionados à extinção da obrigação que havia
entre elas. A anulação do negócio jurídico motivador da confusão faz cessar esta e restabelece,
com todas as garantias, a obrigação anterior. Na aplicação deste dispositivo, porém, com o intuito
de preservar os interesses de terceiros, tem-se negado o completo restabelecimento de certas
garantias reais. Se, após o negócio jurídico que deu ensejo à confusão, foi levantada a hipoteca que
garantia a obrigação, o imóvel anteriormente onerado pode ter sido vendido. Para tutelar os
interesses do terceiro adquirente, considera-se que a anulação daquele negócio jurídico faz cessar
a confusão e restabelece a obrigação, mas não revigora a hipoteca (cf. Venosa, 2001:323).
5. Remissão de dívidas
A remissão das dívidas é negócio jurídico extintivo da obrigação. Consiste na declaração do
credor, aceita pelo devedor, no sentido de dispensar este último do cumprimento da obrigação ou
de parte dela. Tem os mesmos efeitos liberatórios da quitação (Pereira, 1962:246). Remitida a
dívida por completo, nada mais pode ser exigido do sujeito passivo.
Remissão é perdão. O credor libera, por ato de vontade, o devedor do cumprimento da
obrigação. Não se trata, porém, de negócio unilateral. Não basta o credor querer, para que se
opere a remissão. Ela depende da concordância do devedor. Na verdade, nada, neste mundo, é de
graça. O perdão que aparentemente só traz benefícios ao sujeito passivo pode, a bem da verdade,
acarretar-lhe constrangimentos. Se ele não está disposto a suportá-los, preferindo cumprir a
obrigação, é seu direito. O constrangimento moral decorrente do perdão pode, aliás, ser mais
difícil de aguentar que os eventuais apertos econômicos relacionados ao cumprimento da
obrigação cuja remissão é pretendida pelo credor – só o devedor pode avaliar.
Deve-se distinguir a remissão do não exercício do direito. Se o credor, vencida a obrigação sem
o adimplemento pelo devedor, simplesmente não promove a execução forçada do crédito, sua
inércia não importa a extinção do direito enquanto não transcorrer o prazo prescricional
correspondente. Quer dizer, o credor poderá, a qualquer tempo, desde quedentro do prazo de
prescrição, abandonar o estado inercial e perseguir o pagamento a que faz jus, porque seu crédito
não se extinguiu. Na remissão, ao contrário, a declaração no sentido de liberar o devedor do
cumprimento da obrigação vincula o credor aos seus termos. Uma vez aceita a liberação pelo
sujeito passivo, opera-se a extinção da dívida. Mesmo vindo o credor a se arrepender, no futuro, da
liberalidade praticada, nada poderá cobrar do devedor.
A remissão é, assim, uma espécie de renúncia (Cap. 12, item 1). É, especificamente, a renúncia a
direito obrigacional e se traduz sempre num negócio jurídico bilateral (Monteiro, 2001:335). Veja
que o titular de direito não obrigacional pode, por ato unilateral de vontade, declarar de forma
vinculativa abrir mão dele. O deputado pode renunciar ao mandato político para o qual fora eleito,
independentemente da aprovação de qualquer outro sujeito; o herdeiro pode renunciar à herança
por sua exclusiva vontade; qualquer litigante pode renunciar ao direito de recorrer sem consulta
aos demais, e assim por diante. Quando o sujeito é titular de direito obrigacional como credor, ele
simplesmente não pode abrir mão de seu crédito por declaração unilateral de vontade. Sem a
concordância do devedor, a renúncia (remissão) não existirá.
Antes da entrada em vigor do Código Reale, a doutrina civilista abrigava séria controvérsia
sobre a natureza da remissão, defendendo alguns autores que se cuidava de ato unilateral e
outros, bilateral (cf., p. ex., Lopes, 2000:321; Gomes, 1961:124; Rodrigues, 2000:229). Ao introduzir
no direito brasileiro o preceito contido no art. 385 (“a remissão da dívida, aceita pelo devedor,
extingue a obrigação...”), o Código Civil de 2002 pôs fim à controvérsia. Embora haja quem
considere a questão ainda não resolvida (Lotufo, 2003:417/419), a lei, ao condicionar o efeito
liberatório à aceitação do sujeito passivo, prestigia a posição que não admite qualquer forma de
extinção de obrigação por simples declaração de renúncia do credor.
Em decorrência da natureza bilateral do negócio jurídico em que a remissão se encerra, o
devedor pode opor-se à tentativa de o credor, unilateralmente, pretender liberá-lo do vínculo
obrigacional. Assim, se o credor declara a vontade de remitir a obrigação, mas o devedor
considera que é do seu interesse cumpri-la, este último tem o direito de pagar a dívida. Pode o
devedor nessa situação, inclusive, valer-se da ação judicial própria para alcançar o cumprimento
da obrigação, que é a consignação em pagamento (CPC, arts. 539 e s.). A recusa em receber o
pagamento não tem causa justa quando fundada exclusivamente na intenção do credor de
exonerar o devedor da obrigação.
A remissão é o perdão, total ou parcial, da dívida. Trata-se de declaração de vontade do sujeito ativo no
sentido de liberar o passivo do cumprimento da obrigação. Tem efeito extintivo desde que atendidos dois
requisitos: a) concordância do devedor, que não pode ser constrangido a suportar eventual dívida moral em
reconhecimento ao perdão; b) inexistência de prejuízos para terceiros.
Direitos de terceiros não podem ser prejudicados pela remissão. O crédito, lembre-se, integra o
patrimônio do sujeito ativo e, como tal, garante o cumprimento das obrigações que ele tem perante
terceiros. A declaração exoneratória do credor, mesmo que aceita pelo devedor, não terá o efeito
de extinguir a obrigação se, por exemplo, a remissão levar o sujeito ativo à insolvência. Não
extinguirá, também, a dívida se esta se encontrava penhorada em execução que terceiro move
contra o credor. Nesses dois casos, o credor do credor é prejudicado pela redução patrimonial que
o perdão da dívida importaria.
A remissão, assim, é uma declaração do sujeito ativo liberando o passivo do cumprimento de
sua obrigação que depende, para projetar efeitos extintivos, de aceitação do devedor e da
inexistência de prejuízos a direitos de terceiros.
A remissão pode ser total ou parcial, segundo a extensão da liberação que realiza. Se extinta a
obrigação por completo, é total; caso contrário, parcial. Na remissão parcial, o sujeito passivo fica,
por evidente, vinculado ao cumprimento da parte não remitida. O inadimplemento da parte
exigível, porém, não faz ressurgir a dívida por inteiro (a menos que seja este efeito expressamente
previsto no instrumento representativo da obrigação). Se o credor, ao remitir parcialmente a
obrigação, tinha o objetivo de receber pelo menos parte dela, deveria ter-se cercado de maiores
garantias, porque a remissão, uma vez aceita pelo devedor, só pode ser desconstituída com a
expressa concordância deste.
A remissão não tem forma prescrita na lei. Pode adotar qualquer uma: escrita, oral, gestual,
transmissão eletrônica de dados etc. Normalmente, para a segurança das partes, é feita por escrito
particular, em instrumento assinado pelo credor e devedor. Pode derivar, contudo, de declarações
orais, passíveis de prova por outros meios, inclusive testemunhas (se o valor da remissão era
inferior ao décuplo do maior salário mínimo vigente – CC, art. 227). Na distribuição do ônus
probatório, presume a lei ter sido remitida a obrigação quando o credor entregou,
voluntariamente, ao devedor o título representativo da dívida que adota a forma de escrito
particular (CC, art. 386). Feita a entrega voluntária do instrumento particular, caberá ao credor a
prova de que a intenção do gesto não teria sido a de perdoar o devedor.
A devolução voluntária do bem empenhado, por sua vez, não presume a remissão da obrigação,
mas simplesmente a renúncia à garantia real (CC, art. 387). Antonio, credor pignoratício de
Benedito, restitui a este o objeto sobre o qual recai o penhor. Presume-se que nesse gesto está a
manifestação da vontade do credor de renunciar à garantia real, mas não ao direito creditório.
Considera-se, então, que Antonio continua credor de Benedito, mas, após a restituição do bem
empenhado, não titulariza mais a garantia pignoratícia; torna-se credor quirografário.
Na hipótese de solidariedade passiva, a remissão acertada entre o credor e um dos codevedores
solidários não aproveita aos demais. A obrigação apenas reduz-se proporcionalmente ao quinhão
(ou à parte dele, se tiver sido parcial a remissão) do sujeito passivo declaratário (CC, arts. 277 e
388). Exemplo: Carlos, Darcy e Evaristo são devedores solidários de $ 300 a Fabrício. Se
eventualmente Fabrício remitir, por completo, a dívida de Carlos, a extinção da obrigação deste
não importará a liberação de Darcy e Evaristo. Pelo contrário, remanescerá obrigação no valor de
$ 200, pela qual Darcy e Evaristo continuarão solidariamente responsáveis.
Por fim, registro que não se confundem remissão (ato ou efeito de remitir) com remição (ato ou
efeito de remir); aquele é negócio extintivo da obrigação e este, o resgate de um bem onerado ou
sob constrição judicial.
© desta edição [2020]
2020 - 02 - 12
Curso de Direito Civil - Vol. 2 - Ed. 2020
PÁGINA RB-6.1
SEGUNDA PARTE - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
CAPÍTULO 18. INADIMPLEMENTO DA OBRIGAÇÃO
Capítulo 18. INADIMPLEMENTO DA OBRIGAÇÃO
1. O descumprimento da obrigação
O credor espera que a obrigação se cumpra espontaneamente no vencimento, isto é, que a
prestação lhe seja entregue pelo devedor no tempo e lugar devidos. Não só ele. Num certo sentido,
a sociedade como um todo também tem a expectativa de que as obrigações sejam
tempestivamente pagas. O cumprimento generalizado das obrigações contribui para ampliar o
grau de confiança entre as pessoas e, consequentemente, a sensação geral de segurança. E não se
trata apenas de conforto psicológico. Viver num meio em que há elevado nível de cumprimento
voluntário das obrigações, além da sensação de segurança, representa pagar menos pelos bens e
serviços de consumo e impostos. Onde todos costumam pagar o que devem, isto é, onde o risco de
inadimplência é baixo, os credores em geral não precisam embutir nos seus preços uma alta taxa
(spread) para neutralizar os efeitos do atraso ou descumprimento da obrigação. Veja o caso dos
impostos: nos lugares em que todos os cidadãos pagam regularmente seus tributos, pagam-se
menos tributos. Naqueles em que há significativo número de inadimplentes, o Poder Público
precisa compensar a inadimplência aumentando a carga tributária, a ser suportada
exclusivamente pelos adimplentes. No Brasil, um dos ingredientes que contribuem para a elevação
do custo de vida e para o alto nível de tributação é certamente a nefasta cultura, de larga difusão
em certos meios, de ver vantagem em postergar pagamentos, forçar renegociações e sonegar
impostos. Se há um aparente e imediato ganho individual, ele se perde, pelo menos em parte, em
razão da alta no custo de vida que indiretamente causa. Para a sociedade como um todo, e não
apenas para os credores, portanto, interessa que as obrigações sejam integralmente cumpridas
pelos devedores no seu tempo e lugar.
A maioria das obrigações é de fato, paga no vencimento por espontânea iniciativa do devedor.
Delas o Direito não cuida. O Direito, viu-se (Cap. 2, principalmente), é o sistema social criado para
superar os conflitos de interesses. Quando a obrigação é paga pelo devedor no vencimento, não se
manifesta nenhum conflito. O sistema jurídico nem sequer chega a ser acionado. Pode-se mesmo
dizer que o Direito seria por tudo inútil se as pessoas nunca deixassem de cumprir seus deveres e
obrigações e se, em caso de qualquer desentendimento, sempre alcançassem, com rapidez e
justiça, a composição amigável de seus interesses. Seria um mundo sem juízes, advogados,
faculdades de direito ou prisões. Na realidade, porém, conflitos de interesses surgem, e a sociedade
civilizada desenvolveu um sistema (institucionalizado) para superá-los, que é o Direito. Se a
obrigação é cumprida tal como deveria ser, nenhum antagonismo se instala nas relações entre os
envolvidos, e este fato não ganha relevância para o sistema de superação de conflitos.
O Direito cuida, assim, das obrigações que não são cumpridas, daquelas em que o devedor não
entrega a prestação ao credor no tempo e lugar devidos. Mesmo quando a lei disciplina o
adimplemento das obrigações – fixando, por exemplo, os requisitos do pagamento –, o que tem em
mira é nortear decisões acerca da verificação, num caso concreto, do inadimplemento. Ao, por
exemplo, estabelecer que “o pagamento deve ser feito ao credor” (CC, art. 308, primeira parte), a
lei está, a rigor, preceituando que o pagamento feito a quem não é o credor representa
inadimplemento. Esse dispositivo legal, destaque-se, curiosamente não se aplica aos pagamentos
feitos aos credores. Nestes casos, não surge nenhum conflito de interesses que precise ser
solucionado a partir da diretriz dada por aquela norma. Quando, então, será ela aplicada? Nos
casos em que o devedor pretender sua liberação da obrigação, mesmo tendo feito o pagamento a
quem não era o credor; em suma, quando se verificar o conflito de interesses: o credor considerase não pago e o devedor entende que já está liberado da obrigação. O juiz, ao decidir esse conflito
norteado pela norma citada, determinará que o devedor pague novamente o credor, ou seja,
partirá do pressuposto de que a obrigação está inadimplida.
O inadimplemento verifica-se sempre que a obrigação não é cumprida no vencimento. Ele é
também referido pela expressão inexecução, e pode ser voluntário (decorrente da vontade do
sujeito obrigado) ou involuntário (causado por fatos estranhos a esta vontade). Nas obrigações de
dar, se o devedor não entrega na data aprazada a coisa objeto da prestação, ou o credor se recusa a
recebê-la injustificadamente, ocorre o inadimplemento. Nas de fazer, ele se manifesta quando o
sujeito passivo não age ou deixa de prestar o serviço prometido a partir da data do vencimento da
obrigação. Já nas de não fazer, diz a lei que “o devedor é havido por inadimplente desde o dia em
que executou o ato de que se devia abster” (CC, art. 390). Há, enfim, inadimplemento de obrigações
de fazer ou não fazer em decorrência de ato do credor que obsta ou não colabora para o
cumprimento delas, se necessária a concorrência de condutas dos sujeitos obrigados.
Desse modo, se Antonio vende a Benedito seu automóvel, prometendo entregá-lo em 5 dias
úteis, há inadimplemento se deixa de fazê-lo neste prazo. Também não cumpre a obrigação
Benedito se ele se recusar, sem motivo justificável, a receber o veículo no dia do vencimento. Há
ainda inadimplemento se Carlos, dentista, havia concordado em tratar dos dentes de Darcy, mas
adia indefinidamente a consulta. Será inadimplemento de Darcy seu não comparecimento, na data
e no horário agendados, ao consultório de Carlos, para submeter-se ao tratamento dentário que
havia contratado. Veja que o cumprimento da obrigação de fazer assumida pelo dentista depende,
nesta hipótese, também de conduta do paciente. Finalmente, é inadimplente Evaristo, alienante de
quotas de sociedade empresária, que se obrigara perante Fabrício, o adquirente, a não concorrer
no mesmo ramo econômico, caso venha a nele operar, descumprindo obrigação de não fazer.
Esses são exemplos de inadimplemento voluntário. Mas, como referido, as obrigações também
são inadimplidas involuntariamente. Se o devedor não entrega a coisa porque esta se perdeu
numa inundação ou deixa de fazer o que se obrigara porque adoecera, verifica-se inadimplemento
involuntário. Qualquer fato jurídico escapado ao controle das partes pode dar ensejo à inexecução
involuntária: atos de terceiros, eventos naturais, impedimento legal superveniente e outros.
„ O inadimplemento (ou inexecução) significa o não cumprimento da obrigação no modo, tempo e lugar
devidos. É voluntário quando deriva de culpa de pelo menos um dos sujeitos obrigados (em geral, o devedor)
e involuntário quando causado por fato necessário de efeitos inevitáveis (ato de terceiro, força da natureza,
impedimento legal superveniente etc.).
O inadimplemento pode ser absoluto ou relativo (Alvim, 1972:7). No primeiro caso, o devedor
vê-se impossibilitado de cumprir a obrigação por perda da prestação. No segundo, verifica-se
apenas atraso no cumprimento da obrigação, mas a prestação permanece íntegra.
O inadimplemento absoluto, a seu turno, pode ser total ou parcial, dependendo de ter perecido
ou deteriorado o objeto. Note que a perda parcial da coisa ou conduta devidas configura também
inadimplemento; como o credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida
(CC, art. 313), o devedor não pode pretender sua liberação da obrigação pela entrega da prestação
deteriorada, que é, com certeza, algo diferente do devido. O inadimplemento absoluto, destaco, só
pode ocorrer, nas obrigações de dar coisa incerta, após a concentração, e nunca se verifica nas
obrigações pecuniárias. O gênero, como visto, não perece; assim, enquanto não individuada a
prestação na obrigação de dar coisa incerta, é impossível seu inadimplemento absoluto. O objeto
das pecuniárias, por sua vez, é o dinheiro, bem insuscetível de perda (no sentido jurídico da
expressão) em qualquer hipótese.
O inadimplemento relativo deriva do atraso no cumprimento da obrigação e é, quando culposo,
denominado mora. Neste caso, como a prestação não se perde, o pagamento é ainda possível. A
mora normalmente é do devedor, que não entrega a prestação no prazo estabelecido, mas pode
também ser do credor, quando ele se recusa injustificadamente a receber a prestação (item 3).
„ O inadimplemento pode ser absoluto ou relativo. É absoluto se impossibilitado o cumprimento da
obrigação. Verifica-se em caso de perda total ou parcial da prestação. É relativo se a obrigação deixa de ser
cumprida ao seu tempo, mas a prestação permanece íntegra. Neste último caso, quando há culpa do sujeito
obrigado, o inadimplemento denomina-se “mora”.
Esta classificação, embora largamente empregada na doutrina, nem sempre serve à
identificação das consequências da inexecução das obrigações. São essencialmente idênticas as
implicações do descumprimento culposo da obrigação, seja o inadimplemento absoluto, total ou
parcial, ou relativo. Por isso, para bem compreender os limites da distinção é preciso tangenciar o
tema das consequências do inadimplemento.
2. Consequências gerais do inadimplemento
Variam as consequências do inadimplemento segundo tenha decorrido de culpa dos sujeitos
obrigados ou não. Quando, por exemplo, o pagamento não se realiza no tempo e lugar devidos
porque o devedor negligencia nos controles ou em outras providências necessárias à sua
efetivação (culpa simples), ou porque intencionalmente decidiu não entregar a prestação a que se
obrigara, sem que houvesse justificativa jurídica para tanto (dolo), ele responde pelos prejuízos
que sua conduta culposa causar ao credor. Se, por outro lado, a falta do pagamento deve-se a fato
diverso, não imputável à culpa do devedor (caso fortuito ou de força maior), ele não será
responsável por eventuais prejuízos que o inadimplemento trouxer ao credor.
„ A inexecução da obrigação pode decorrer de culpa dos sujeitos obrigados, ou de pelo menos um deles,
ou de fato jurídico sobre o qual não têm controle. O inadimplemento voluntário ou culposo gera para a parte
culpada a responsabilidade de indenizar os danos sofridos pela outra parte. O inadimplemento involuntário,
ou não culposo, importa a resolução da obrigação. Estas são as regras gerais da matéria.
De um modo geral, pode-se dizer que o inadimplemento não culposo acarreta a resolução da
obrigação. As partes, então, retornam à situação em que se encontravam antes da constituição do
vínculo obrigacional. O sujeito passivo não pode ser mais forçado a entregar a prestação, mas deve
restituir ao ativo eventuais pagamentos que tenha recebido. Já o inadimplemento culposo impõe
ao sujeito culpado pelo não cumprimento da obrigação o dever de indenizar os prejuízos que sua
conduta ocasiona. A indenização é representada pelo pagamento do valor das perdas e danos,
juros, correção monetária, honorários de advogado e multa estabelecida em cláusula penal. Aqui,
porém, está apenas a ideia geral das consequências do inadimplemento. À frente, são detalhadas
as regras aplicáveis à presença (itens 3 e 4) e ausência de culpa (item 6) na inexecução.
Quando a obrigação é pecuniária, não variam as consequências do inadimplemento de acordo
com sua extensão. A classificação apresentada no item anterior – absoluto (total ou parcial) ou
relativo – tem importância para delimitar as consequências do inadimplemento de obrigações não
pecuniárias. A doutrina costuma apontar como implicação relevante dessa distinção a
possibilidade de emenda do devedor, que existe apenas na hipótese de mora e não na de
inadimplemento absoluto (cf., por todos, Diniz, 2003, 2:368). A perda ou inutilidade da prestação
impedem, deveras, que o devedor tome a iniciativa de reverter o inadimplemento.
Em outros termos, no inadimplemento absoluto total, que sempre diz respeito à obrigação não
pecuniária, a indenização devida pelo inadimplente compensa a impossibilidade de sua execução
pelo exato modo em que foi constituída. Aqui, o credor simplesmente não tem como exigir mais o
pagamento da prestação devida, nem de equivalente. Substitui-se, então, a obrigação não
pecuniária cuja prestação se perdeu por completo por outra, de natureza pecuniária, que é a
indenização. Também tem natureza compensatória a indenização devida na hipótese de
inutilidade da prestação causada pelo inadimplemento relativo de obrigação não pecuniária.
Caracterizada, em termos objetivos, que a prestação se tornou inútil ao credor, ele não é obrigado
a recebê-la e tem direito à indenização que substitua a obrigação inadimplida. Por outro lado, tem
natureza sempre moratória a indenização cabível se a prestação continua útil mesmo após o
inadimplemento relativo da obrigação não pecuniária. Nesta situação, o credor não pode recusarse a receber a prestação, e a indenização a que tem direito, portanto, não substitui a obrigação
inadimplida, apenas atenua os efeitos da mora. Nas hipóteses de inadimplemento absoluto parcial
de obrigação não pecuniária, abrem-se à escolha do credor as alternativas de indenização
compensatória do inadimplemento ou entrega da prestação deteriorada acrescida de indenização
moratória.
3. Mora
Mora é outro nome para o inadimplemento relativo culposo. Pode referir-se tanto ao devedor
(mora solvendi) como ao credor (mora accipiendi). No primeiro caso, manifesta-se pelo atraso no
pagamento por culpa imputável ao sujeito passivo; no último, pela recusa injustificada do sujeito
ativo em recebê-lo no vencimento. É o previsto na lei: “considera-se em mora o devedor que não
efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a
convenção estabelecer” (CC, art. 394).
Quando a mora é do credor, três consequências se projetam (CC, art. 400). Em primeiro lugar, o
devedor isento de dolo fica liberado da responsabilidade pela conservação da coisa. Perdendo-se
esta, assim, suportará os prejuízos apenas o credor, mesmo que tenha havido culpa simples do
devedor no evento danoso. Em segundo, o credor deve ressarcir o devedor pelas despesas com a
conservação da coisa em que este incorrer. Por fim, se o valor da prestação oscilar entre o
vencimento e o recebimento pelo credor, prevalecerá no cumprimento da obrigação o que for
mais favorável ao devedor. Se o credor se recusou a receber, no prazo assinalado, o produto
agrícola objeto de contrato, mas, quando o seu preço subiu no mercado, mudou de postura e
prontificou-se a recebê-lo, o devedor tem o direito de exigir pagamento suplementar pela mesma
quantidade ou entregar menos produto pelo valor contratado.
„ A mora é o atraso no cumprimento da obrigação provocado por ato culposo de uma das partes. Está em
mora o devedor que não entrega a prestação ao credor no vencimento, e o credor que injustificadamente se
recusa a recebê-la.
Pode verificar-se simultaneamente a mora do credor e do devedor. É o caso em que nenhum
dos dois sujeitos obrigados comparece ao local do cumprimento da obrigação no vencimento.
Sendo esta a situação, as condutas dos sujeitos obrigados neutralizam-se uma à outra, e nenhum
deles pode ser isoladamente considerado culpado pelo inadimplemento (Monteiro, 2001:271). A
mora do credor e a das duas partes correspondem a fatos raríssimos. Na expressiva maioria das
vezes, quando há mora, ela é do devedor. Sua caracterização e consequências variam nas
obrigações pecuniárias (subitem 4.1.1) e nas não pecuniárias (subitem 4.2.2).
O inadimplemento relativo culposo extingue-se em diferentes hipóteses. Orlando Gomes as
lista: purgação da mora, cessação do dever de prestar pela perda da prestação que se verificaria
ainda que tivesse sido adimplida a obrigação, novação, remissão, renovação pelo credor do prazo
de vencimento e renúncia ao crédito (1961:173). Em todas elas, o devedor abandona a condição de
inadimplente e cessam os efeitos da mora. Note-se que as quatro últimas dependem da
concordância do credor. Ao novar a obrigação, perdoar o devedor, conceder-lhe novo prazo para o
pagamento ou renunciar ao seu direito, o sujeito ativo, por sua exclusiva vontade, libera o devedor
das consequências da inexecução culposa deflagradas por este último. Nestes casos, sem a
manifestação de vontade do credor no sentido de anuir com a extinção da mora, permanece o
devedor sujeito aos seus efeitos. A segunda hipótese de extinção da mora, por sua vez, independe
da vontade de qualquer uma das partes (ela será examinada mais à frente: subitem 4.2.2).
A purgação da mora distingue-se das demais causas extintivas do inadimplemento relativo
porque consiste em iniciativa exclusiva do sujeito inadimplente e extingue o inadimplemento
relativo mesmo contra a vontade da outra parte.
A purgação (chamada também de emenda) é, assim, a extinção da mora derivada de
manifestação de vontade unilateral do inadimplente (CC, art. 401). Caracteriza-se quando o sujeito
obrigado que se encontra em mora muda, por atos inequívocos, sua conduta, viabiliza o
cumprimento da obrigação e arca com as consequências do seu anterior inadimplemento. A
purgação da mora não desconstitui os efeitos desta; simplesmente os estanca. A obrigação de
indenizar os prejuízos decorrentes do inadimplemento tempestivo continua imputável ao sujeito
em mora. Se, por exemplo, correram juros no período entre o vencimento da obrigação e a
purgação da mora, eles continuam devidos. A emenda da mora não libera o inadimplente de pagálos, nem os demais consectários.
„ A mora, ao contrário do inadimplemento absoluto, pode ser purgada (emendada). A purgação ocorre
quando o inadimplente (credor ou devedor) toma a iniciativa de desobstruir o cumprimento da obrigação,
bem como de responsabilizar-se pela completa indenização em favor do outro sujeito da relação
obrigacional. Além da purgação, que cessa os efeitos do inadimplemento relativo, outros fatores podem dar
ensejo à descaracterização deste: perda da prestação que se verificaria ainda que cumprida a obrigação,
novação, remissão, renúncia ao crédito etc.
A mora do devedor é purgada, assim, mediante a entrega ao credor (ou depósito em juízo) da
prestação devida com todos os consectários, isto é, com os acréscimos previstos na lei (perdas e
danos, juros, correção monetária e honorários de advogado) e, se houver, no contrato (multa
convencional). A seu turno, a do credor purga-se pela disposição em receber a prestação e sujeitarse espontaneamente às consequências de sua conduta culposa (p. ex., ressarcindo ao devedor as
despesas com a conservação da coisa ou fazendo o pagamento suplementar na hipótese de
oscilação de preços).
4. Inadimplemento voluntário
Culpa, enquanto conceito de direito civil, compreende tanto as ações negligentes, imprudentes
e imperitas (chamadas de culpa simples), como as intencionais (chamadas de dolo). Se o devedor
simplesmente se esqueceu de pagar a obrigação, é culpado pelo inadimplemento em razão de sua
negligência. Ele deixou de fazer os controles ou adotar providências que o ajudassem a lembrar do
vencimento da obrigação. Não tinha (nunca teve) a intenção de não pagar. Não lhe faltava
dinheiro no banco e não tinha interesse nenhum em descumprir a obrigação. A falta de controle
ou de memória, porém, é suficiente para caracterizar o inadimplemento culposo. Sofre, por
conseguinte, esse devedor as mesmas consequências que sofreria caso tivesse deixado de cumprir
a obrigação por dolo (isto é, intencionalmente): deve os encargos da mora.
Para o direito civil, na configuração do inadimplemento culposo, não há, em geral, diferenças
entre a atuação do sujeito obrigado caracterizada pela culpa simples ou pelo dolo. Se Germano não
paga a conta do cartão de crédito porque deixou de atentar para o vencimento, escapando-lhe a
oportunidade de cumprir a obrigação no tempo devido, e Hebe não paga a dela porque resolveu
gastar todo o dinheiro que tinha numa viagem, estão os dois na mesma situação: devem à
administradora do cartão os encargos da cláusula penal (juros, multa e correção monetária).
A distinção entre culpa e dolo é relevante, em matéria de inadimplemento das obrigações
negociais, apenas quando referentes a contratos gratuitos. Diz a lei que, “nos contratos benéficos,
responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato aproveite, e por dolo aquele a quem
não favoreça” (CC, art. 392, primeira parte). Nos vínculos contratuais gratuitos, portanto, o
inadimplemento culposo do contratante a quem o contrato não beneficia só se caracteriza se tiver
havido dolo de sua parte. Não é suficiente, nestes casos, a culpa simples. Imagine que Irene e João
celebraram contrato de doação, em virtude do qual ela se obrigou a doar-lhe um quadro de pintor
famoso em 3 meses. Se, vencido o prazo, Irene se esquecer de cumprir o contratado, não sofrerá as
consequências do inadimplemento culposo, porque inexistiu dolo de sua parte. Mas, se o
descumprimento da doação tiver sido intencional, ela responde por perdas e danos, honorários de
advogado, correção monetária e, se houver, multa convencional em favor de João (fica dispensada
apenas do pagamento de juros em razão de dispositivo específico acerca desse contrato: art. 552,
primeira parte, do CC). Excepcionada, assim, apenas a situação do contratante a quem o contrato
benéfico não favorece, são sempre idênticas as consequências do inadimplemento culposo de
negócio jurídico, seja ele derivado de culpa simples (negligência, imprudência ou imperícia) ou
dolo (intenção). Para as obrigações negociais, o Código Civil é expresso: “nos contratos onerosos,
responde cada uma das partes por culpa, salvo as exceções previstas em lei” (art. 392, segunda
parte).
O grau da culpa é, assim, irrelevante na identificação das consequências do inadimplemento de
obrigações negociais. Tenha sido levíssima ou gravíssima a ação que levou à inadimplência,
deverá o inadimplente suportar os mesmos consectários. Na disciplina da responsabilidade civil,
hipótese de obrigação não negocial, o grau da culpa pode interferir na liquidação do valor da
indenização (Cap. 25, item 1.1.1).
„ O inadimplemento voluntário decorre de conduta culposa da parte (em geral, o devedor). Em princípio,
ele se caracteriza e implica as mesmas consequências tanto na hipótese de culpa simples (negligência,
imperícia ou imprudência) como na de dolo (intenção). É irrelevante, por outro lado, o grau da culpa.
As únicas exceções encontram-se nos contratos gratuitos, em que o contratante não favorecido responde
apenas pelo inadimplemento doloso, e na responsabilidade civil fundada na culpa, em que o juiz pode
equitativamente reduzir o valor da indenização na hipótese de pouca gravidade do ato culposo.
Na discussão sobre os fundamentos da responsabilidade civil subjetiva (Cap. 21, subitem 3.1),
pretendo demonstrar que a imputação de consequências jurídicas às condutas culposas assenta-se,
em última análise, na noção de ser a vontade a fonte das obrigações. O negligente, imperito ou
imprudente que deu causa ao inadimplemento podia ter agido diferentemente. Se não o fez,
manifestou de modo indireto a vontade de não cumprir a obrigação. A obrigação de indenizar a
outra parte (pagando-lhe perdas e danos, juros, correção monetária, multa convencional e
honorários de advogado) é, assim, mediatamente derivada de um querer do sujeito a quem a lei
imputa a responsabilidade.
4.1. Inadimplemento das obrigações pecuniárias
As obrigações cujo pagamento consiste na entrega de dinheiro ao credor têm, relativamente ao
tema da inexecução, duas especificidades. A primeira, elas não podem ser descumpridas
absolutamente; a segunda, nunca perdem a utilidade em razão do inadimplemento relativo.
Descabe o inadimplemento absoluto das obrigações pecuniárias porque o objeto da prestação é
bem insuscetível de perda, no sentido jurídico da expressão. Quando se diz que alguém perdeu
dinheiro, a afirmação só pode ser compreendida em termos econômicos: o bem deixou de integrar
seu patrimônio sem contrapartida (patrimonial ou extrapatrimonial). Para o direito, o significado
de perda é mais restrito e pressupõe a desconstituição do bem. Perda é a deterioração completa da
prestação. Neste sentido jurídico, perde-se a casa em razão de incêndio, o automóvel por causa do
acidente, a marca registrada em virtude de degenerescência etc. Não é possível, como se percebe
facilmente, perder dinheiro desse jeito. A hipótese de inadimplemento absoluto das obrigações
pecuniárias, por isso, não existe.
Em segundo lugar, o inadimplemento relativo da obrigação pecuniária não importa a
inutilidade da prestação em nenhuma circunstância. Como a utilidade da execução da obrigação é
mensurada objetivamente, e dinheiro é sempre do interesse de qualquer pessoa, o credor não tem
o direito de enjeitá-la a pretexto de não lhe ser interessante o cumprimento a destempo. Aliás, não
haveria nem mesmo qualquer sentido lógico ou econômico em tal rejeição, acaso admitida pelo
direito, porque a indenização decorrente é paga em dinheiro.
„ O inadimplemento de obrigações pecuniárias é sempre relativo, e sua execução intempestiva nunca é
inútil ao credor. Estas peculiaridades justificam o seu estudo em separado do inadimplemento das
obrigações não pecuniárias.
Em vista dessas especificidades, convém estudar inicialmente o inadimplemento culposo das
obrigações pecuniárias, para, em seguida, examinar o inadimplemento das não pecuniárias (item
4.2).
4.1.1. Mora do devedor nas obrigações pecuniárias
Dois são os requisitos para a configuração da mora do devedor nas obrigações pecuniárias: o
vencimento da obrigação (elemento temporal) e a culpa do devedor (elemento subjetivo).
Elemento temporal. Não há mora enquanto não for exigível a obrigação. Somente após o
vencimento, o descumprimento culposo do devedor a caracteriza. E basta, no direito brasileiro, o
simples vencimento para constituir-se o devedor em mora. Segundo a lei, “o inadimplemento da
obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor” (CC, art.
397, caput), e, “nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em mora, desde
que o praticou” (art. 398). Quer dizer, tanto nas obrigações negociais como nas não negociais, o
vencimento é suficiente para a constituição do devedor em mora. Desse modo, se não tiver sido o
culpado pelo atraso no pagamento de obrigação líquida (vencida), a prova do caso fortuito cabe ao
devedor.
Em outras palavras, no direito privado brasileiro a constituição da mora não depende, em
regra, de qualquer ato de interpelação do devedor. Vigora, entre nós, a regra dies interpellat pro
homine: a chegada do dia do vencimento equivale à interpelação do sujeito passivo (Rodrigues,
2002, 2:159). Considera-se que o devedor não precisa ser avisado do vencimento da obrigação; o
simples fato do decurso do tempo até a data em que recai é suficiente para que ele tenha ciência de
que é chegado o momento de proceder-se ao pagamento. A mora é, em princípio, ex re, e não ex
persona: deriva tão somente do retardo no cumprimento da obrigação e não de reclamação do
credor.
„ No direito brasileiro vigora o princípio dies interpellat pro homine, em virtude do qual a constituição em
mora do devedor não depende de qualquer ato de cientificação promovido pelo credor (interpelação judicial
ou
extrajudicial). Quer dizer, o simples transcurso do tempo até o dia em que recai o vencimento é suficiente
para que o devedor tenha ciência de que deve cumprir a obrigação. Não se exige, a não ser nas obrigações
sem termo, interpelação, citação ou notificação do devedor para constituí-lo em mora.
A regra geral de dispensa de interpelação na caracterização da mora do devedor é
excepcionada quando o inadimplemento diz respeito às obrigações negociais para as quais não se
estabeleceu termo. Como não pactuaram as partes o dia do vencimento, torna-se necessário um
ato que o fixe. Este ato é a interpelação do devedor, judicial ou extrajudicial (CC, art. 397,
parágrafo único). Cientificado o sujeito passivo de que o credor está exigindo a obrigação sem
termo, e permanecendo aquele inadimplente, constitui-se a mora. A lei, por certo, pode criar
outras exceções, mas é preciso ter a clareza de que nem sempre a interpelação, quando por ela
exigida, destina-se a constituir o devedor em mora; por vezes, objetiva unicamente provar a mora.
Ao disciplinar o contrato de alienação fiduciária em garantia de bens móveis, por exemplo,
estabeleceu a lei que a mora do mutuário fiduciante (devedor) dá-se pelo simples vencimento do
prazo de pagamento (Dec.-lei n. 911/69, art. 2.º, § 3.º), mas o mutuante fiduciário (credor) que
pleiteia a busca e apreensão da coisa alienada precisa prová-la (STJ, Súmula 72), o que se faz por
meio de notificação extrajudicial (sobre a vigência de preceitos do decreto-lei de 1969, mesmo após
a entrada em vigor do Código Civil de 2003, ver Figueira Jr., 2002:1198/1200).
Elemento subjetivo. A mora, como se disse, é expressão designativa do inadimplemento relativo
culposo. Se o atraso no pagamento deve-se a caso fortuito e não à culpa do devedor, não há mora
(CC, art. 396). Significa dizer que o devedor não responderá pelos prejuízos ocasionados pelo
atraso ao credor. Poderá, eventualmente, vir a sofrer algum prejuízo, caso a prestação perca sua
utilidade para o credor, mas não estará nunca obrigado a ressarcir os deste último.
São elementos característicos da mora tanto a culpa simples (negligência, imprudência ou
imperícia) como o dolo. O devedor que atrasa o cumprimento da obrigação por mero
esquecimento e aquele que age com a intenção de retardar o pagamento submetem-se às mesmas
consequências.
Uma vez caracterizada a mora do devedor de obrigação pecuniária, imputa-lhe a lei a
responsabilidade por indenizar os prejuízos do credor (art. 395, caput). O inadimplente deve
indenizar por completo o outro sujeito obrigado. Todos os prejuízos que a inadimplência do
devedor ocasionar ao credor devem ser ressarcidos. Para alcançar tal abrangência, a indenização
deve corresponder a um conjunto um tanto complexo de variáveis. Certos credores, por exemplo,
precisaram contratar os serviços de um profissional da advocacia para instar seus devedores ao
cumprimento da obrigação; outros não. Para os primeiros, a indenização deve compreender o
ressarcimento dos honorários despendidos com a contratação do profissional; para os que não
precisaram valer-se de serviços de advogado, é claro que a indenização nada deve cobrir a este
título. A complexidade da matéria obriga que a indenização devida pelo inadimplente desdobre-se,
na lei, em certas verbas específicas. Vou chamá-las consectários para facilitar a exposição do tema.
4.1.2. Os consectários
A indenização a que tem direito o credor, na inadimplência do devedor relativamente a
obrigação pecuniária, pode ser representada por até cinco consectários: perdas e danos, juros,
correção monetária, multa convencional e honorários de advogado. Enquanto os dois primeiros
são devidos em qualquer caso de inadimplência, os três últimos o são apenas em certas
circunstâncias.
„ A indenização devida pelo inadimplente desdobra-se em até cinco consectários: perdas e danos, juros,
correção monetária, honorários de advogado e multa convencional.
Para a doutrina, na hipótese de inadimplemento absoluto, os consectários exercem função
compensatória, na medida em que, além de reporem os prejuízos, também substituem a prestação
perdida. Já na de inadimplemento relativo, sua função restringe-se à reposição dos prejuízos
derivados do atraso na execução da obrigação. São, então, chamados de moratórios. Falam os
tecnólogos, então, em juros compensatórios ou moratórios, perdas e danos compensatórios ou
moratórios, cláusula penal compensatória ou moratória. Note, porém, que essa classificação,
embora tradicional na tecnologia civilista, além de imprecisa, não tem relevância no contexto das
obrigações pecuniárias, que, já foi visto, só podem deixar de ser cumpridas relativamente. Os
consectários derivados da inexecução voluntária de obrigação de dinheiro, portanto, têm sempre
função moratória.
Por fim, a norma que obriga o inadimplente a pagar os consectários é supletiva. As partes
podem, por disposição contratual, limitá-los em patamares inferiores ao da lei ou mesmo
dispensar seu pagamento. Omisso o contrato, porém, serão devidos segundo os critérios naquela
estabelecidos. Também serão aplicáveis esses critérios se o contrato simplesmente mencionar o
consectário, sem o quantificar.
4.1.2.1. Perdas e danos
No contexto das consequências do inadimplemento voluntário, a indenização é expressão
ambígua. Significa tanto o conjunto dos consectários (sentido largo) como um deles apenas (sentido
restrito). Quando se afirma que o inadimplente deve a indenização à outra parte, emprega-se a
expressão em seu sentido largo. Neste caso, refere-se à soma dos valores devidos a título de perdas
e danos, juros, correção monetária, honorários de advogado e multa convencional. Quando, por
outro lado, se diz que a indenização por quebra de contrato submete-se aos arts. 402 a 404, caput,
do CC, usa-se a mesma expressão em sentido restrito. Para contornar a ambiguidade, usarei
“perdas e danos” (que é, aliás, a expressão da lei) como referência à indenização em sentido
restrito.
Pagar perdas e danos pode ser obrigação principal ou acessória. Quer dizer, pode ser a própria
prestação ou um dos efeitos do inadimplemento. Existem certas obrigações em que o objeto é,
desde a constituição do vínculo de sujeição do devedor, a indenização do credor. É o caso das
derivadas de responsabilidade civil. O motorista, que conduz seu carro em velocidade acima da
permitida e causa acidente de trânsito, fica obrigado a indenizar os danos decorrentes de sua
imprudência. A indústria farmacêutica que inadvertidamente coloca no mercado placebo como se
remédio fosse é responsável pela indenização dos danos provocados pelo acidente de consumo.
Assim, nas obrigações não negociais derivadas de ato ilícito (o exemplo do acidente de trânsito) ou
de imputação de responsabilidade objetiva pela lei (o da indústria farmacêutica), a prestação
devida pelo sujeito passivo ao ativo é o pagamento das perdas e danos. Nestes casos, a indenização
é a obrigação principal. Se não for cumprida tempestivamente pelo devedor, ele fica obrigado
também ao pagamento dos consectários, inclusive nova indenização pelo atraso no pagamento da
originária. A indenização como prestação é examinada na terceira parte deste Curso.
Excetuando as hipóteses de responsabilidade civil, tanto nas obrigações pecuniárias negociais
(mutuário que não paga a prestação do mútuo no vencimento, p. ex.) como nas demais obrigações
não negociais (alimentos, contribuição devida pelo condômino ao condomínio edilício, reembolso
de capital na retirada de sócio etc.), as perdas e danos são um dos consectários devidos pelo sujeito
inadimplente. Representam, pois, obrigação acessória constituída pelo inadimplemento.
„ Pagar indenização por perdas e danos pode ser a própria prestação a que se obriga o sujeito passivo ou
um dos efeitos do inadimplemento (consectário). As obrigações derivadas de responsabilidade civil têm por
objeto o pagamento das perdas e danos sofridos pelo credor. Nas demais obrigações pecuniárias, a
indenização é devida pelo sujeito inadimplente como um dos acréscimos à prestação.
A medida das perdas e danos está definida na lei: tudo o que o credor efetivamente perdeu e o
que razoavelmente deixou de lucrar (CC, art. 402). Esta fórmula, cujas raízes se encontram no
direito romano (Alves, 1965:43), desmembra o consectário em dano emergente (o que o credor
efetivamente perdeu) e lucros cessantes (o que deixou razoavelmente de ganhar). Alguns
doutrinadores criticam o uso, pela lei, da expressão “perdas e danos” na designação desses dois
desdobramentos, afirmando que seu sentido volta-se mais para o primeiro somente (sobre o tema,
ver Lotufo, 2003:458/459). Aqui, para fins didáticos, proponho abstrair-se a crítica, apesar de seu
inegável fundamento, tendo em vista que a clássica expressão da lei auxilia a superação da
ambiguidade do termo “indenização”.
O dano emergente corresponde à diminuição patrimonial que o sujeito ativo suporta em razão
do inadimplemento culposo do passivo. O locador que não recebe, no vencimento, o aluguel
devido pelo locatário, para continuar honrando suas próprias obrigações com terceiros, precisa
valer-se do crédito aberto pelo cheque especial. Os juros, taxas e impostos que passa a dever ao
banco são perdas patrimoniais que ele sofre pelo inadimplemento do devedor. Se o aluguel tivesse
sido pago tempestivamente, o locador não teria contraído a dívida no banco. Correspondem esses
encargos bancários ao dano emergente provocado pela mora do locatário.
Lucros cessantes, por sua vez, referem-se à recomposição do custo de oportunidade. A prestação
a que tem direito o credor, na maioria das vezes, corresponde a bem gerador de novas
oportunidades de ganho. O dinheiro a ser entregue pelo mutuário ao banco, no vencimento do
mútuo, será emprestado a outras pessoas, possibilitando ao mutuante outros negócios que geram
novos ganhos. Se o mutuário atrasa o pagamento de sua prestação, o banco perde a oportunidade
de girar o dinheiro que lhe deveria ter sido devolvido.
O direito às perdas e danos, por maior que seja seu valor, não pode redundar lucro indevido ao
sujeito ativo. Trata-se apenas de neutralizar os efeitos do inadimplemento, via recomposição do
patrimônio da parte inocente. O credor não pode enriquecer em função do inadimplemento do
devedor. Mesmo a parcela das perdas e danos denominada “lucros cessantes” não pode ser
compreendida, nem mensurada, como vantagem patrimonial além do que adviria do tempestivo
pagamento da obrigação. O devedor só é responsável pelo pagamento de valor correspondente aos
lucros que o credor teria caso não ocorresse o inadimplemento. Isto é, os lucros cessantes servem
também exclusivamente à recomposição patrimonial, garantindo ao credor o recebimento do
equivalente aos frutos e produtos que estariam agregados ao seu patrimônio na hipótese de
adimplemento tempestivo da obrigação.
„ As perdas e danos abrangem tudo o que o credor efetivamente perdeu (danos emergentes) e o que ele
razoavelmente deixou de ganhar (lucros cessantes). Seu pagamento não pode ocasionar, contudo,
enriquecimento indevido do credor à custa do devedor inadimplente. Os lucros cessantes apenas repõem no
patrimônio do credor os mesmos ganhos que teria na hipótese de adimplemento da obrigação.
Nas perdas e danos (obrigação acessória nascida do inadimplemento), normalmente não é
devido nenhum ressarcimento a título de dano moral. Como será examinado melhor à frente (Cap.
25, item 3), a indenização devida em razão de responsabilidade civil pode compreender também o
pagamento relacionado à dor extremada que o agente impôs à vítima. O simples descumprimento
de obrigação negocial (ou mesmo de não negocial não relacionada à responsabilidade civil, como é
o caso, p. ex., da de reembolso do acionista dissidente) não costuma causar dor ao sujeito ativo
passível de indenização moral. De fato, se, no vencimento, o locador não recebe o aluguel, o
condomínio edilício não é pago pelo condômino ou não se verifica o pagamento dos alimentos, isso
não costuma causar nos prejudicados uma dor de intensidade semelhante à da perda de um filho
num acidente de trânsito, da discriminação racial ou da desonra. O simples inadimplemento
dessas obrigações não autoriza, em geral, nada além da recomposição patrimonial, isto é, o
ressarcimento das perdas efetivas e dos razoáveis ganhos não realizados. Diz a lei, ademais, que,
mesmo na inexecução resultante “de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos
efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato” (CC, art. 403). Desse modo, apenas
em casos especialíssimos, com peculiaridades extraordinárias, deverá o juiz condenar o
inadimplente no pagamento de perdas e danos morais a título de consectário.
As partes de uma obrigação contratual normalmente pactuam o pagamento de indenização, em
caso de inadimplemento. Se o fazem sem qualquer outro detalhamento, concordam que ela, caso
devida, será mensurada nos termos do art. 402 do CC. Podem, contudo, os contratantes, mediante
estipulação contratual, limitar o valor da indenização ou mesmo dispensar o inadimplente desse
consectário. Trata-se de cláusula plenamente válida, porque referente a direito disponível (exceto
nas relações de consumo em que é consumidor a pessoa física – CDC, art. 51, I). O pacto
exoneratório ou limitador da responsabilidade por perdas e danos em eventual inadimplemento é
raro nos negócios em geral.
4.1.2.2. Juros
Como afirma Pontes de Miranda, os juros correspondem ao que “o credor pode exigir pelo fato
de ter prestado ou de não ter recebido o que se lhe devia prestar” (1965, 24:45). No primeiro caso,
seu pagamento não está associado ao inadimplemento de obrigação. Aqui, correspondem à
obrigação do mutuário de remunerar o dinheiro emprestado pelo mutuante ou à do devedor que
parcela o pagamento de sua dívida com a concordância do credor, remunerando-o pela facilidade.
Chamam-se, então, juros remuneratórios e têm sempre fundamento contratual. Deles não se cuida,
por enquanto, a não ser para precisar o regime jurídico dos juros devidos como consectário. No
segundo caso, isto é, naquele em que são exigíveis pelo credor que não recebeu o que deveriam
ter-lhe prestado, os juros derivam do inadimplemento voluntário. Trata-se, agora, da obrigação de
pagar juros imputada pela lei ao inadimplente. Integra a indenização a que tem direito o credor,
por ressarci-lo em função do uso, pelo devedor, além do tempo devido, do capital correspondente à
prestação inadimplida. Têm fundamento direto na lei e serão chamados, neste Curso, de juros
devidos como consectário.
O valor dos juros devidos como consectário é estabelecido mediante alíquota incidente sobre o
total deles e referido a certa periodicidade. Os juros são fixados, por exemplo, em 1% ao mês, 12%
ao ano, 0,033% ao dia e assim por diante. Não havendo redução expressa da base de cálculo,
considera-se incidente a alíquota sobre a totalidade do devido. Inicia a fluência dos juros na data
do inadimplemento ou da constituição em mora do devedor. Nas obrigações sujeitas a termo, são
devidos desde o vencimento, por força do preceito dies interpellat pro homine (CC, art. 397, caput);
nas derivadas de ato ilícito, desde sua prática (art. 398); e, nas obrigações sem termo, desde a
citação inicial em juízo (CC, art. 405) ou interpelação extrajudicial (CC, art. 397, parágrafo único)
(Lotufo, 2003:465; Venosa, 2001:160).
Os juros remuneratórios, como dito acima, são sempre contratuais, mas os devidos a título de
consectário não decorrem necessariamente de acordo de vontade das partes. Os juros devidos a
título de consectário, assim, podem ser contratuais ou legais, conforme o instrumento em que se
encontram os critérios de sua mensuração: a definição da alíquota, periodicidade e base de
cálculo. Quando as próprias partes, nas obrigações negociais, fixam por acordo de vontades tais
critérios, os juros devidos a título de consectário são contratuais. Não há limites legais para a
fixação dos juros devidos como consectário, já que o art. 591 do CC diz respeito apenas aos juros
remuneratórios. Por exemplo, pode-se pactuar licitamente que o distribuidor (comprador) irá
arcar com juros de 5% ao mês, caso atrase o pagamento do preço das mercadorias do distribuído
(vendedor).
Registro que, embora não haja nenhum limite, no direito positivo, para a estipulação dos juros
como consectários, consolidou-se entendimento jurisprudencial considerando que, nos contratos
bancários, se não houver legislação específica, eles só podem ser contratados até o limite de 1% ao
mês (STJ, Súm. 379).
„ Devem-se distinguir os juros remuneratórios dos devidos a título de consectário. Remuneratórios são os
juros contratuais que o mutuário ou o devedor de valor parcelado devem pagar ao mutuante ou credor.
Representam parte da obrigação principal objeto de contrato.
Já os juros devidos a título de consectário são os que o inadimplente deve à parte inocente da relação
obrigacional como um dos desdobramentos da indenização.
Os juros devidos como consectário podem ser contratuais ou legais. Os contratuais são os estabelecidos
pelas partes por acordo de vontade e não estão sujeitos a nenhum limite constitucional ou
infraconstitucional. Os juros legais calculam-se pelas mesmas taxas devidas na hipótese de atraso no
pagamento de tributos federais.
Juros legais, ao seu turno, são os fixados a partir de critério dado exclusivamente pela lei. A
fórmula geral encontra-se no art. 406 do CC: “quando os juros moratórios não forem
convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei,
serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos
à Fazenda Nacional”. Desse modo, se as partes não convencionaram juros para a hipótese de
inadimplemento, ou os convencionaram, mas não definiram critérios para a sua mensuração, eles
serão iguais aos devidos em razão da mora no pagamento de impostos federais. Também será esta
a medida dos juros devidos a título de consectário no inadimplemento de obrigações pecuniárias
não negociais.
Atualmente, os juros devidos à Fazenda Nacional em virtude de atraso no pagamento de
impostos baseiam-se na taxa média mensal de captação do Tesouro Nacional relativa à dívida
mobiliária federal interna, que corresponde à adotada como referência pelo Sistema Especial de
Liquidação e de Custódia (SELIC) para os títulos federais, ou simplesmente taxa SELIC. A taxa
SELIC é fixada pela Receita Federal no primeiro dia útil do mês seguinte ao de referência. Desse
modo, a taxa de setembro é fixada no início de outubro; a de outubro, no início de novembro e
assim por diante. No mês em que se realiza o pagamento, portanto, não se conhece a taxa
correspondente, que ainda será fixada. Prevê a lei, então, que a taxa SELIC é empregada no cálculo
dos juros devidos até o mês anterior à liquidação da obrigação tributária, e que se considera
sempre 1% (um por cento) a alíquota relativa ao mês do pagamento (Lei n. 8.981/95, art. 84, I e §§
1.º e 2.º). Estes critérios estabelecidos pela lei para os juros de mora devidos à Fazenda Nacional no
pagamento tardio de impostos são também os aplicáveis para os juros legais no âmbito civil.
„ Os juros legais incidentes nas obrigações de direito privado são os da taxa SELIC (empregada pela
Fazenda Nacional na cobrança dos tributos federais em atraso), desde o mês seguinte ao do vencimento até o
anterior ao da execução tardia, acrescidos de 1% referente a este último mês.
Assim, se o locatário deixa de pagar ao locador o aluguel no vencimento, o comprador não paga
tempestivamente ao vendedor o preço da coisa, o responsável pelo acidente de trânsito não
indeniza de pronto os danos que causou, a sociedade não reembolsa o dissidente no prazo, se o
devedor, enfim, não cumpre a obrigação pecuniária no tempo devido, e as partes não fixaram por
contrato outro critério de mensuração, deve o inadimplente pagar, como um dos consectários, juros
sobre o valor em atraso, calculados à taxa SELIC incidente entre o mês seguinte ao do vencimento
e o anterior ao do pagamento, mais 1% relativo a este último. Não incidem juros a título de
consectário, portanto, se a mora é purgada no próprio mês de vencimento da obrigação, a menos
que as partes tenham contratado sua incidência nesta específica hipótese.
Outra importante decorrência do art. 406 do CC é a impossibilidade de capitalização dos juros
legais (isto é, dos juros devidos como consectários não precificados em contrato). Enquanto não
houver preceito legal que autorize a incidência de juros sobre juros (isto é, a capitalização) na
mora dos impostos federais, os juros legais nas relações de direito privado também não poderão
ser capitalizados. Em termos técnicos, a lei veda o anatocismo dos juros legais devidos como
consectários, já que o art. 591 do CC, que permite a capitalização anual, aplica-se apenas aos juros
remuneratórios. Evidentemente, se o contrato estabelece que os juros devidos como consectários
serão capitalizados, nada há na lei que invalide essa disposição negocial.
4.1.2.3. Correção monetária
Correção monetária é o consectário que visa neutralizar a perda do poder aquisitivo da moeda.
Esta perda, denominada tecnicamente inflação, é fenômeno que, em maior ou menor grau,
encontra-se em todas as economias capitalistas. Por mais estável que seja a moeda, com o passar
do tempo, compram-se menos coisas com igual quantidade de dinheiro. A correção monetária visa
à recuperação do valor de compra da moeda em que se expressa a obrigação, buscando a
neutralização dos efeitos da inflação projetados entre o inadimplemento e a final execução.
Se a lei não obrigasse o devedor a pagar a correção monetária do valor devido, beneficiá-lo-ia
por uma forma de enriquecimento indevido. Imagine uma inflação de 10% ao ano. Se os $ 100
devidos em janeiro são suficientes, nessa época, para a aquisição de 10 produtos ao preço de $ 10
cada, em dezembro compram apenas 9 ao preço de $ 11. Os efeitos da perda do poder aquisitivo da
moeda devem ser suportados pelo inadimplente, e não pela parte inocente. Daí a lei imputar ao
culpado pelo inadimplemento a obrigação acessória de pagar a correção monetária (CC, arts. 389,
395 e 404).
„ Para que a indenização da parte inocente seja completa, o inadimplente deve pagar a correção
monetária dos valores devidos. Este consectário visa neutralizar os efeitos da perda do poder aquisitivo da
moeda, verificada entre o vencimento e a execução tardia.
O cálculo da correção monetária é feito, em geral, em função de um índice que periodicamente
mede, por critérios variados, a inflação. Aplica-se o índice sobre o valor a ser corrigido e obtém-se
o atualizado, num simples cálculo aritmético.
Para servir de parâmetro à correção monetária, o índice deve resultar de medições
metodológicas da variação dos preços em geral ou num determinado segmento da economia. Deve
também ser de conhecimento público ou, pelo menos, das partes diretamente envolvidas. Há
diversos índices que se prestam a tal finalidade. Alguns dos mais conhecidos são: a) índice geral de
preços (IGP), calculado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em três versões, que variam
unicamente em função da data de divulgação: IGP-M, IGP-10 e IGP-DI; b) índice nacional de preços
ao consumidor (INPC) e o índice nacional de preços ao consumidor amplo (INPCA), calculados pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), órgão do Ministério do Planejamento; c)
índice de preços ao consumidor (IPC), da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE); d)
custos unitários básicos de construção (CUB), levantados pelos Sindicatos da Indústria da
Construção Civil (SINDUSCON) para as respectivas circunscrições, observada a norma NBR 12.721
da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
Como os índices são calculados por órgãos diversos, públicos ou privados, a partir de
metodologias próprias, é importante informar-se sobre o perfil deles, para encontrar-se o mais
adequado à indenização do sujeito ativo. Se a obrigação inadimplida diz respeito a contrato entre
empresários industriais, o IGP é o índice mais apropriado, na medida em que 60% de sua
composição correspondem à oscilação dos preços no atacado (índice de preços no atacado – IPA).
Se forem empresários que operam no ramo de construção civil, o índice mais apropriado é o CUB
do local do pagamento, já que na composição do IGP apenas 10% correspondem às oscilações neste
segmento (índice nacional de custo da construção – INCC). Se, por fim, a obrigação diz respeito a
negócio entre não profissionais (consumidores), os índices mais apropriados são os INPC, INPCA e
IPC, que medem as variações dos preços no mercado de consumo.
Nas obrigações pecuniárias negociais, é usual as partes fixarem, na cláusula sobre
inadimplemento, o índice a ser empregado na correção monetária do valor inadimplido. Os
contratantes têm, em princípio, ampla liberdade para escolher o que melhor atender aos seus
interesses. Podem, inclusive, fixar critério de correção monetária diverso de índice, valendo-se
para a atualização da moeda, por exemplo, das oscilações de preços de produtos comercializados
em bolsas de mercadorias (commodities). Num negócio de compra e venda de ações de uma usina
de açúcar, é racional e jurídico as partes estabelecerem como critério de correção monetária do
valor a ser pago pela participação societária a variação do preço da “cana padrão” numa praça
especificada.
Há, destaque-se, índices cuja utilização na atualização da moeda é proibida. São índices ilegais
para fins de cálculo da correção monetária, que os contratantes estão, evidentemente, impedidos
de eleger. Trata-se do salário mínimo, do ouro e da variação cambial. O primeiro, que se refere ao
valor capaz de atender às necessidades vitais básicas dos trabalhadores (CF, art. 7.º, IV), nunca
pode ser empregado nas relações privadas como parâmetro de atualização da moeda (Lei n.
6.205/75; Lei n. 8.245/91, art. 17). A oscilação do preço do ouro como parâmetro de correção
monetária é vedada, também, em qualquer hipótese (CC, art. 318; Lei n. 10.192/01, art. 1.º,
parágrafo único, I). A variação cambial, por sua vez, é proibida em termos gerais (CC, art. 318), e só
pode ser usada na correção monetária nos contratos de arrendamento mercantil lastreados em
recursos obtidos pela arrendadora no exterior (Lei n. 8.880/94, art. 6.º). Estas proibições atendem
exclusivamente às necessidades da política monetária do governo e, por isso, variam de tempos
em tempos.
„ A correção monetária devida em razão do inadimplemento é, em geral, calculada em função de um
índice de inflação escolhido pelas partes na cláusula penal. Os mais comuns são o IGP-M, da FGV, IPC da
FIPE, INPC do IBGE e o CUB do SINDUSCON. Podem as partes, porém, adotar como parâmetro de correção
monetária a variação de preços de mercadorias cotadas em bolsas ou numa praça especificada. Estão
proibidas de usar como referencial de atualização da moeda apenas o salário mínimo, o ouro e a variação
cambial.
A eventual escolha, pelos contratantes, de índice ilegal para correção monetária da obrigação
não importa a dispensa do inadimplente do pagamento deste consectário. Afasta-se o índice
proibido, é certo, mas permanece íntegra a obrigação acessória. O inadimplente, então, pagará a
correção monetária calculada em função de índice permitido.
Quando as partes contratam o índice a ser utilizado na correção monetária em caso de
inadimplemento, prevalece, por evidente, o contrato, ainda que se pudesse considerar criticável a
opção feita, em vista do perfil do critério escolhido. A pesquisa sobre as metodologias e
abrangências dos índices, com o objetivo de nortear a definição do mais apropriado à indenização
do credor, cabe apenas quando nenhum índice tiver sido objeto de contrato pelas partes ou se o
escolhido for ilegal.
É irrelevante o tempo transcorrido entre o inadimplemento e o pagamento do consectário.
Ainda que o atraso seja inferior a um ano, será devida a correção monetária. A norma legal que
limita a periodicidade da correção monetária à anual é aplicável apenas aos pagamentos
tempestivos das obrigações (Lei n. 10.192/01, art. 2.º, § 1.º). A correção monetária devida como
consectário, em outros termos, não é limitada por nenhuma regra de periodização.
Por fim, observo que a correção monetária não é exigível como consectário independente dos
juros, quando estes são os legais calculados pela taxa SELIC. Como a SELIC embute percentual
correspondente à perda do poder aquisitivo da moeda, a cobrança dos juros legais e da correção
monetária representaria anatocismo. Tal cumulação só é possível se expressamente prevista pelo
acordo de vontade firmado entre credor e devedor.
4.1.2.4. Cláusula penal nas obrigações pecuniárias
Cláusula penal é o acordo de vontades em que os sujeitos da obrigação contratam as
consequências do inadimplemento. Não existe, é claro, nas obrigações não negociais, a não ser que
a respeito delas acabem pondo-se de acordo as partes. Normalmente, a cláusula penal consta de
todos os contratos escritos. Nela, os contratantes costumam reiterar a imputação ao inadimplente
(já preceituada em lei) do pagamento de indenização, juros, correção monetária e honorários de
advogado. Além disso, é usual fixarem na cláusula penal a alíquota, periodicidade e base de
cálculo dos juros, bem como o índice de atualização da moeda. Já foram delineadas as normas
pertinentes a este conteúdo da cláusula penal (subitens 4.1.2.2 e 4.1.2.3). Cabe, agora, examinar
um outro consectário que ela costuma contemplar: a multa convencional.
A função da multa convencional nas obrigações pecuniárias é reforçar o cumprimento da
obrigação. Se as partes de um contrato empresarial acordam que o devedor pagará ao credor uma
multa de 10% sobre o valor da obrigação caso não a cumpra no vencimento, considera-se que elas
pretenderam estabelecer uma consequência de maior gravidade que a disposta em termos gerais
na lei, para desestimular ainda mais o descumprimento do contrato. A multa convencional torna o
inadimplemento altamente gravoso para o devedor e reforça, por esta via, o pagamento
tempestivo da obrigação. Esta função do consectário não tem, contudo, grande relevância jurídica.
Se a multa contratada reforça eficazmente ou não o cumprimento da obrigação pecuniária no seu
tempo e lugar, é irrelevante para o direito. Ou a obrigação é paga no vencimento, e a multa
convencional não será devida, ou não o é, e aplicar-se-á a pena contratada, independentemente de
ter ela representado, para o inadimplente, um desestímulo à mora.
Nas obrigações pecuniárias, destaco, a multa convencional não tem a função de prefixar o valor
das perdas e danos para a hipótese de inadimplemento, como ocorre no caso das não pecuniárias
(subitem 4.2.4). Isso em razão de expressa previsão da lei no sentido de que a indenização, no
inadimplemento das “obrigações de pagamento em dinheiro”, é devida “sem prejuízo da pena
convencional” (CC, art. 404).
„ As partes de um contrato podem estabelecer uma pena para a hipótese de inadimplemento. A pena, em
geral, é uma multa, e a cláusula que a contempla é chamada “penal”. A lei limita o valor da multa
convencional e determina que ela seja reduzida por equidade em caso de cumprimento parcial da obrigação
ou se for manifestamente excessiva.
A lei limita o valor da cláusula penal, estabelecendo que ela não pode ultrapassar o da
obrigação principal (CC, art. 412). Se o devedor se obrigou a pagar $ 100, o contrato pode
estabelecer como pena convencional para o inadimplemento até $ 100. Antes da entrada em vigor
do Código Reale, o limite da cláusula penal era de 10% do valor da dívida, em razão de preceito
(hoje, revogado) constante da chamada lei da usura, de 1933. Desde a vigência do atual Código, a
pena pelo inadimplemento pode ser contratada até empatar com o valor da obrigação principal.
Essa é a regra geral da limitação da cláusula penal. Em alguns casos específicos, ressalto, a lei
estabelece limite inferior. Assim, o condômino de condomínio edilício que não paga sua
contribuição fica sujeito à multa de 2% sobre o débito (CC, art. 1.335, § 1.º) e o consumidor, se
inadimplir financiamento, paga multa de 2% do valor da prestação (CDC, art. 52, § 1.º). São limites
menores que prevalecem sobre o geral, porque se encontram albergados em norma especial.
Note-se que, mesmo atendido o limite do art. 412 do CC, a pena pode ter seu valor reduzido em
juízo por equidade, quando seu montante “for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a
natureza e a finalidade do negócio” (CC, art. 413, in fine). Desse modo, se, num contrato de locação
empresarial feito pelo prazo de 24 meses, as partes pactuaram como cláusula penal o equivalente
a 12 vezes o valor do aluguel mensal, o limite geral da lei é atendido. A cláusula penal corresponde
à metade do valor da obrigação principal. Mas, se for locatário um microempresário ou
empresário de pequeno porte, na hipótese de ser dele o inadimplemento, deve o juiz reduzir
equitativamente o valor da pena.
Também deve ser reduzida a cláusula penal se a obrigação principal tiver sido cumprida em
parte (CC, art. 413). Adotará o juiz, então, um critério de proporcionalidade. Em consequência, se o
contrato de locação celebrado por 30 meses prevê como multa convencional o pagamento do valor
de 3 aluguéis, o locatário que o pretende rescindir no 20.º mês de vigência fica obrigado apenas ao
pagamento, a título de multa, do valor de um aluguel. Como ele cumpriu dois terços do contrato,
não pode ser penalizado como se tivesse descumprido todas suas obrigações.
4.1.2.5. Honorários de advogado
Sempre que o credor tiver contratado advogado para ver satisfeito o seu direito, a indenização
devida pelo inadimplente não é completa se não abranger também o ressarcimento dos honorários
daquele profissional. Note que este consectário é imposto ao devedor ainda que não tenha
ocorrido trabalho judicial do advogado do credor, isto é, mesmo que as providências adotadas pelo
profissional tenham sido todas de caráter extrajudicial (notificação, reunião, preparação de
minutas de instrumentos de quitação etc.). A lei civil, ao preceituar que o inadimplente deve os
honorários advocatícios, não distingue entre a atuação do advogado em juízo ou fora dele (CC, arts.
389 e 395), e, onde a lei não distingue, o intérprete não está autorizado a distinguir.
„ O devedor inadimplente deve pagar os honorários de advogado do credor, mesmo que a tardia
execução da obrigação não tenha dependido de medida judicial. Como a indenização devida pelo
inadimplente deve ser completa, sempre que o credor tiver contratado advogado para ver satisfeito o seu
direito, ao devedor é imposta a obrigação de ressarcir os honorários daquele profissional.
Se a execução é judicial, o juiz fixa o montante a ser pago pelo devedor a título de honorários
do advogado do credor. São chamados de honorários de sucumbência, porque pressupõem a
condenação do devedor em juízo. O art. 85 do CPC estabelece como parâmetros gerais para a
quantificação desses honorários percentuais entre 10% e 20% do valor da condenação.
Já, se o adimplemento tardio da obrigação ocorreu independentemente de qualquer
providência judicial, não há norma legal fixando os percentuais de quantificação dos honorários
de advogado. Sendo contratual a obrigação, deve-se consultar a cláusula penal acertada entre as
partes. Se nela houver a indicação do critério para o cálculo dos honorários de advogado, observase o contratado. Caso não exista previsão contratual sobre a matéria ou não sendo contratual a
obrigação, os honorários de advogado devem ser pagos, segundo penso, em percentuais entre 5% e
10% do valor da obrigação em mora, isto é, metade dos fixados pela lei para os honorários de
sucumbência em juízo. Afinal, o advogado do credor que obtém a satisfação do direito de seu
cliente sem precisar socorrer-se do Poder Judiciário certamente trabalha menos que o profissional
seu colega que precisa promover a execução judicial para chegar ao mesmo resultado.
Pondero, por fim, que, se o devedor inadimplente, em negociação com o credor, recusa-se a
pagar só este consectário, é provável que a composição amigável seja alcançada. O credor tenderá,
neste caso, a liberar o devedor do ressarcimento dos honorários de advogado, arcando
diretamente com a remuneração do profissional que havia contratado. De qualquer forma,
resistindo o devedor a pagar os honorários de advogado nos entendimentos mantidos com o
credor, este só os poderá exigir em juízo. Não chegando, portanto, as partes a acordo sobre a
quantificação deste consectário, o conflito de interesses será levado ao Judiciário, em que
prevalecerão os critérios do art. 85 do CPC.
4.1.3. Conclusão
Nas obrigações pecuniárias, o devedor que não cumpre no vencimento a obrigação deve pagar
ao credor, a título de completo ressarcimento pelos prejuízos que o inadimplemento relativo
causou, os seguintes consectários: a) em qualquer caso: a.1) a indenização pelos comprovados
danos emergentes e lucros cessantes, calculados segundo a fórmula geral de apuração de tudo o
que efetivamente o credor perdeu e mais o que razoavelmente deixou de ganhar; a.2) os juros
fixados na cláusula penal ou, caso não previstos ou não quantificados, os calculados pela taxa
SELIC do mês seguinte ao do vencimento até o mês anterior ao do pagamento, acrescidos de 1%
(correspondente ao mês do pagamento); b) a correção monetária dos valores devidos, apurada
pelo índice ou parâmetro constante da cláusula penal ou, em caso de omissão do contrato, por
índice cujo perfil seja o mais adequado à relação obrigacional (exceto se os juros não previstos em
contrato foram pagos pela taxa SELIC, que embute a inflação); c) a multa convencional, se prevista
em contrato ou convenção a que se vincula o devedor; e d) os honorários de advogado, caso o
credor tenha contratado os serviços deste profissional para obter a satisfação de seu crédito
judicial ou extrajudicialmente.
4.2. Obrigações imperfeitas
Obrigações não contratuais e não pecuniárias – isto é, derivadas de fato jurídico, ato ilícito ou
ato unilateral de vontade, e cujo cumprimento implica prestação diversa da entrega de dinheiro ao
credor – correspondem a hipóteses raras e excepcionais. É o caso, por exemplo, da obrigação de
alimentar cumprida por meio de hospedagem e sustento, nos termos fixados pelo juiz (CC, art.
1.701 e parágrafo único). Nelas, o devedor, em vez de pagar os alimentos em dinheiro ao credor,
recebe-o em sua casa e divide com ele a mesa de refeições. O alimentante, aqui, cumpre sua
obrigação não negocial fazendo algo pelo alimentando, e não dando-lhe dinheiro.
Assim, as obrigações não pecuniárias são, em geral, contratuais, e as implicações do
inadimplemento costumam ser objeto de contrato entre as partes. As limitações e condições legais
já examinadas relativamente às obrigações pecuniárias são pertinentes também às não
pecuniárias. Há, porém, algumas normas que somente a estas últimas se aplicam.
O inadimplente de obrigação não pecuniária é, a exemplo do que não paga no vencimento da
dívida de dinheiro, também obrigado a indenizar a outra parte pelos danos que a inexecução
culposa ocasionou (CC, arts. 389 e 395). Certas hipóteses de inadimplemento culposo de obrigação
não pecuniária, a propósito, são tratadas em dispositivos específicos, como a da perda da coisa
certa (arts. 234 e 239), sua deterioração (arts. 236 e 240), impossibilidade da prestação na
obrigação de fazer (art. 248) ou descumprimento da de não fazer (art. 251). Tais normas não
afastam a incidência das regras da disciplina geral do inadimplemento; ao contrário, são
completadas por estas, que definem a extensão da indenização: perdas e danos, juros, correção
monetária, honorários de advogado da outra parte e multa convencional.
As obrigações não pecuniárias, relembrando, podem ser descumpridas absoluta ou
relativamente. No primeiro caso, o cumprimento da obrigação tal como havia sido determinado na
constituição é irremediavelmente comprometido, seja porque a prestação se perdeu
(inadimplemento absoluto total), seja porque se deteriorou (absoluto parcial). Já no caso de
inadimplemento relativo, acontece o atraso no cumprimento da obrigação, que pode, inclusive,
inutilizá-la. A prestação, se continuar viável e útil, será ainda devida pelo sujeito passivo e
suscetível de cobrança pelo ativo.
„ As obrigações não pecuniárias podem ser descumpridas em termos absolutos (perda total ou
deterioração da prestação) ou relativos (atraso na entrega da prestação). Em qualquer desses casos, o
devedor é obrigado a indenizar o credor pelo inadimplemento a que deu causa. Varia, contudo, a função da
indenização devida, que pode ser compensatória (quando substitui a obrigação inadimplida) ou moratória
(quando a ela se acresce como obrigação acessória).
Os consectários devidos pela parte inadimplente, na hipótese de perda total, substituem a
prestação. São conhecidos, por isso, como compensatórios. Posto que a execução da obrigação nos
termos em que se constituíra tornou-se impossível, o credor é compensado pela indenização. Não
há, material ou juridicamente falando, outra alternativa. Por sua vez, os consectários devidos na
hipótese de perda parcial podem ser compensatórios ou não, em função da escolha do credor.
Quer dizer, a parte inocente pode optar entre a indenização compensatória ou a entrega da
prestação deteriorada mais a indenização que cubra os danos relacionados à deterioração.
Optando por esta segunda via, os consectários serão chamados de moratórios, porque não
substituem a prestação. Por fim, os consectários devidos no inadimplemento relativo de obrigação
não pecuniária podem tanto ter função compensatória como moratória, dependendo da
inutilidade superveniente ou não da prestação. Se o atraso no cumprimento da obrigação tornou a
prestação inútil, a indenização a substituirá, revestindo-se de função compensatória; se continua
útil a prestação, a despeito da mora do devedor, a indenização será moratória.
A lei não opera convenientemente com os conceitos de consectário compensatório e moratório.
Ao distinguir os efeitos da cláusula penal, por exemplo, define-a como alternativa a benefício do
credor na hipótese de “total inadimplemento da obrigação” (CC, art. 410), o que não tem sentido, já
que, uma vez perdido por completo o objeto, ao sujeito ativo só restará a possibilidade de cobrar a
indenização do inadimplente no lugar da prestação. A doutrina também é imprecisa ao operar
com as noções de consectários compensatórios ou moratórios, porque relaciona, de forma
simplista, os primeiros ao inadimplemento absoluto e estes últimos, ao relativo. A imprecisão
decorre do fato de os consectários também terem a natureza moratória no inadimplemento
absoluto parcial, se o credor optar por receber a coisa deteriorada.
No plano econômico, diferem-se os consectários moratórios dos compensatórios apenas no que
diz respeito às perdas e danos. Como os compensatórios substituem a prestação devida e os
moratórios correspondem à indenização suplementar, aqueles expressam-se em quantia superior
a estes. No inadimplemento absoluto parcial ou no relativo, sempre que a execução se der pela
entrega da prestação deteriorada ou a destempo, as perdas e danos terão função moratória.
4.2.1. Inadimplemento absoluto das obrigações não pecuniárias
Na inexecução absoluta total, a entrega da prestação fica irremediavelmente impossibilitada. A
coisa certa perde-se por completo (destruição do automóvel locado em acidente causado por culpa
do locatário), o devedor deixa de fazer o que se havia comprometido (o cantor falta à sua
apresentação pública) ou age do modo que se obrigara a omitir (o distribuído desrespeita a
cláusula de exclusividade e vende diretamente seus produtos na área de atuação do distribuidor).
Já na inexecução absoluta parcial, a prestação se deteriora, mas não se impossibilita, como no caso
de redução de valor da coisa certa (a peça de antiguidade é machucada no transporte negligente
do vendedor até o local da entrega ao comprador).
O inadimplemento absoluto total de obrigação não pecuniária tem as mesmas consequências
econômicas do inadimplemento de obrigação pecuniária, porque dele decorre a imediata
constituição de nova obrigação, que, como visto, substitui a inadimplida. Se o vendedor não tem
como entregar a coisa vendida porque esta se perdeu por sua culpa, ele passa a dever ao
comprador a indenização compensatória. A obrigação, que não era pecuniária, é, então,
substituída por uma dívida de dinheiro. Se ele não paga a indenização ao comprador no
vencimento da primeira obrigação, ele incorre em mora. Submete-se, assim, às normas já
examinadas do inadimplemento de obrigação pecuniária, que é sempre relativo (item 4.1).
Já na hipótese de inadimplemento absoluto parcial, o credor pode optar por receber a
prestação deteriorada mais a indenização moratória ou apenas a indenização compensatória. O
devedor fica vinculado à alternativa livremente escolhida pelo credor. Diz a lei que, sendo culpado
o devedor (pela deterioração da coisa certa), “poderá o credor exigir o equivalente, ou aceitar a
coisa no estado em que se acha, com direito a reclamar, em um ou em outro caso, indenização das
perdas e danos” (CC, art. 236). Igual consequência é estipulada para a hipótese de deterioração da
coisa nas obrigações de restituir (CC, arts. 239 e 240).
„ No inadimplemento absoluto total ou parcial das obrigações não pecuniárias a prestação perdida ou
deteriorada é substituída pela indenização; mas, quando parcial o inadimplemento, o credor pode optar por
receber a prestação deteriorada mais indenização.
Em qualquer caso de inadimplemento absoluto, a indenização (compensatória ou moratória)
compreenderá os mesmos consectários já examinados quanto à inexecução das obrigações
pecuniárias, isto é, perdas e danos, juros, correção monetária, honorários de advogado e multa
convencional. Há, contudo, certas particularidades relativamente às obrigações não pecuniárias
no que diz respeito à cláusula penal (subitem 4.2.3) e juros (subitem 4.2.4).
4.2.2. A mora nas obrigações não pecuniárias
A mora no cumprimento das obrigações não pecuniárias caracteriza-se pela convergência de
quatro elementos. Assim, além do atraso no cumprimento da obrigação (elemento temporal) e da
culpa de pelo menos um dos sujeitos obrigados (elemento subjetivo), que já se examinaram
anteriormente (item 4.1.1), dois outros são indispensáveis à configuração do inadimplemento
relativo das obrigações não pecuniárias: natureza positiva da obrigação (elemento objetivo) e
viabilidade do cumprimento tardio (elemento material).
Elemento objetivo. A mora só pode referir-se às obrigações positivas (art. 397), isto é, as de dar
ou fazer. Nas obrigações de não fazer, inexiste a hipótese de inadimplemento relativo. O sujeito
passivo que se obrigou a omitir determinada conduta simplesmente não pode retardar o
cumprimento da obrigação. Enquanto ele age conforme se obrigara (não fazendo a conduta objeto
de prestação), cumpre a obrigação. A partir do momento que faz o que deveria omitir, descumprea irremediavelmente (ainda que em parte). O art. 390 do CC, que preceitua estar inadimplente o
devedor de obrigação negativa desde o dia em que executar o ato que deveria omitir, diz respeito
apenas ao seu inadimplemento absoluto (Alvim, 1972:133/134 e passim). Este elemento não é
relevante nas obrigações pecuniárias porque elas são sempre positivas.
Elemento material. A viabilidade da prestação inadimplida tempestivamente é requisito da
mora nas obrigações não pecuniárias. Se o cumprimento da obrigação tornou-se inviável, trata-se
de inadimplemento absoluto e não relativo (Gomes, 1961:169/171). A distinção tem certa
relevância porque, embora as duas situações acarretem a responsabilidade pela indenização dos
prejuízos ocasionados ao credor, há uma diferença entre elas que não pode ser desconsiderada:
enquanto a mora pode ser purgada por iniciativa do devedor, o inadimplemento absoluto não.
Desse modo, se a prestação se perdeu, tornou-se inviável (no todo ou em parte) por culpa do
devedor, o descumprimento da obrigação deve ser tratado como inadimplemento absoluto; se
ainda conserva sua viabilidade, deve sê-lo como mora. Este elemento não é característico da mora
nas obrigações pecuniárias, porque a prestação de entregar dinheiro nunca deixa de ser viável (no
sentido jurídico da expressão).
Caracterizada a mora nos termos acima assinalados, projeta a lei três consequências: a)
imputação ao devedor da responsabilidade pelos prejuízos do credor (art. 395, caput); b) direito de
o credor enjeitar a prestação que se tornou inútil (art. 395, parágrafo único); c) responsabilidade
do devedor pela perda da prestação (art. 399).
A mora sempre importa a obrigação de o devedor pagar ao credor indenização que atenue os
efeitos do atraso na entrega da prestação. No caso de obrigações não pecuniárias, a indenização
deve abranger igualmente os danos emergentes e os lucros cessantes. Imagine que um cantor
assumiu perante seu empresário uma obrigação de fazer, comprometendo-se a apresentar-se em
dia e local determinados. Se o artista não se apresenta como havia contratado, o empresário deve
cancelar o show e restituir aos espectadores o preço do ingresso. As reduções patrimoniais que o
empresário credor sofre em função dos diversos pagamentos a terceiros que continua obrigado a
honrar (músicos, técnicos, aluguel do teatro etc.) correspondem aos danos emergentes que o
artista é obrigado a repor. Mas não se exaure neles a medida da indenização devida. O
comparecimento do artista ao local da apresentação e o cumprimento da obrigação de fazer
assumida representavam para o empresário a fonte dos ganhos esperados pelo evento.
Inadimplidas tais obrigações, responde o artista faltoso pelos lucros cessantes do empresário, isto
é, pelo que este lucraria se tivesse acontecido a frustrada apresentação artística. Note-se que o
exemplo não é de inadimplemento absoluto, já que o cantor continua em condições de apresentarse mesmo após o vencimento da obrigação. Trata-se de inadimplemento relativo que acarretou a
inutilidade da prestação para o credor.
Enquanto a primeira das consequências assinaladas é comum às obrigações pecuniárias e não
pecuniárias, as duas outras são exclusivas do inadimplemento destas últimas.
„ Na mora de obrigação não pecuniária, além da imputação ao devedor da obrigação de indenizar o
credor, duas outras consequências são projetadas pela lei: a possibilidade de o credor rejeitar a prestação
inutilizada pela mora e a responsabilidade do devedor por alguns dos fortuitos verificados após o
vencimento.
A segunda consequência diz respeito à utilidade da prestação após o vencimento da obrigação.
Quando a mora inutiliza a prestação, o credor pode enjeitá-la e cobrar a indenização dos prejuízos
que tiver sofrido. A inutilidade é mensurada em padrões objetivos. Se, para qualquer pessoa na
posição ativa de uma obrigação da mesma natureza, a entrega da prestação não mais interessar,
caracteriza-se a inutilidade. Caso contrário, ela é ainda útil e não pode ser enjeitada pelo credor,
mesmo na mora do devedor. No exemplo do promotor de festa que aluga equipamentos de som, a
mora do locatário na entrega do produto autoriza o locador a enjeitar a prestação tardia e
demandar indenização pelos danos que sofreu. Note-se que a rejeição da prestação pelo credor em
virtude da mora do devedor não cabe nas obrigações pecuniárias, porque, sendo dinheiro o objeto
desta, nunca se verifica a hipótese de inutilidade. Nas demais modalidades de obrigação positiva
(dar coisa certa, dar coisa incerta ou fazer), a inutilização da prestação pela mora do devedor é
sempre possível de acontecer, se caracterizada nos termos objetivos assinalados.
A terceira consequência advinda da mora no cumprimento de obrigação não pecuniária é a
responsabilização do devedor pela impossibilidade da prestação, mesmo quando derivada a perda
de caso fortuito (perpetuatio obligationis). Como já assentado, se o inadimplemento absoluto
decorre de ato culposo do devedor, é ele sempre responsável, tenha o evento ocorrido antes ou
depois do vencimento da obrigação. Perdida a coisa por culpa do sujeito passivo, deve ele a
indenização correspondente, ainda que, ao tempo da perda, não fosse exigível a obrigação.
Quando, porém, o inadimplemento absoluto é causado por caso fortuito verificado antes do
vencimento, o devedor não se responsabiliza por eventuais prejuízos sofridos pelo credor. Estando
ele em mora, porém, inverte-se a regra, e fica o devedor responsável, como na hipótese de
inadimplemento voluntário.
A norma correspondente a essa última consequência (CC, art. 399) é complexa, e sua
compreensão reclama mais algumas considerações. De início, destaco que, para ser
responsabilizado o devedor pela impossibilidade da prestação, o caso fortuito deve ter ocorrido
necessariamente após o vencimento da obrigação. Se anterior, resolve-se a obrigação e ao devedor
cabe apenas restituir ao credor o que tiver recebido a título de antecipação, se houve. Só pode o
devedor exonerar-se da responsabilidade pela impossibilidade da prestação (perdida por caso
fortuito posterior ao vencimento) se provar que não havia incorrido em retardamento culposo (ou
seja, que não se encontrava em mora) (ver Lotufo, 2003:451) ou que a perda da prestação
aconteceria mesmo que tivesse pago a obrigação tempestivamente.
„ Código Civil:
Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade
resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de
culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.
Exemplo: Laura vendeu a Marcos uma antiguidade. Tratava-se de peça de mobiliário de
madeira do século XIX: uma escrivaninha, suponha. No dia do vencimento, a coisa vendida não foi
entregue. Dois dias após, o prédio do armazém em que se encontrava a mobília incendiou-se sem
culpa de Laura (um raio foi a causa do incêndio). Verificou-se, então, a impossibilidade da
prestação por caso fortuito. Pois bem, se Laura estava em mora, ou seja, se havia descumprido
culposamente a obrigação, ela deve indenizar Marcos pelos prejuízos que sofreu. Imagine que ele
já se havia comprometido a revender a escrivaninha, por preço maior, a terceiro. Laura deve,
então, pagar a indenização a Marcos (p. ex., a diferença entre os preços pelo qual ele comprou e o
que havia pactuado para a revenda, bem como eventual ressarcimento pela inexecução desta).
Considere, agora, duas variantes neste exemplo. Na primeira, Laura não é a culpada pelo atraso no
cumprimento da obrigação (ocorreu a “isenção de culpa” referida no art. 399 do CC). Não estava
em mora, portanto. A escrivaninha não tinha sido entregue porque havia ocorrido um caso
fortuito: a cidade em que se situa o armazém onde se guardava a peça estava isolada há dias em
razão de fortes chuvas, e o caminhão da transportadora não conseguia chegar até o local por ter
desabado a única ponte rodoviária existente. Aqui, Laura não se encontra em mora e não pode ser
responsabilizada pela impossibilidade da prestação. Na segunda variante, não há incêndio, nem
tempestades, e a peça não é entregue a Marcos no vencimento por culpa de Laura, que não
controla convenientemente seus compromissos. Acontece, porém, que a escrivaninha está-se
perdendo em virtude da ação de cupins resistentes aos mais potentes inseticidas. Provado que o
lastimável dano se verificaria ainda que Laura tivesse cumprido sua obrigação a tempo, isto é, que
a escrivaninha se perderia mesmo que tivesse sido entregue a Marcos no vencimento, também
está Laura liberada da responsabilidade pela imprestabilidade da coisa (abstraiam-se, na segunda
variante do exemplo, possíveis especificidades – como o conhecimento da infestação de cupins por
Laura antes da venda, a existência de relação de consumo etc. –, de diferentes implicações
jurídicas).
4.2.3. Juros nas obrigações não pecuniárias
Pagam-se em dinheiro os juros devidos a título de consectários, ainda que a obrigação não seja
pecuniária (CC, art. 407). Se o locatário atrasa a restituição do bem locado, sua mora implica não só
a obrigação de pagar aluguel pelo período do inadimplemento (correspondentes às perdas e
danos) como também juros. A base de cálculo deste consectário pode ser o valor do aluguel ou do
bem, dependendo do que as partes contrataram. Não há limites constitucionais ou legais para a
fixação dos juros moratórios ou compensatórios contratados pelas próprias partes (repita-se que o
art. 591 do CC diz respeito apenas aos juros remuneratórios). Num contrato de compra e venda,
assim, é válido pactuar que o atraso na entrega da coisa vendida acarretará ao vendedor a
obrigação de pagar ao comprador juros de 5% ao mês sobre o valor do contrato.
Em caso de omissão no contrato relativamente ao cabimento de juros devidos como
consectários ou mesmo quanto aos critérios de sua mensuração, aplica-se o art. 406 do CC, que os
fixa “segundo a taxa que estiver em vigor para a mora no pagamento de impostos devidos à
Fazenda Nacional”. Embora a lei mencione, nesse dispositivo, apenas os juros moratórios, o
critério da equivalência aos cobrados pelo atraso no pagamento de tributos federais deve ser
empregado, por analogia em colmatação da lacuna legal, também no cômputo dos
compensatórios. Ou seja, o art. 406 do CC aplica-se sempre que os juros tiverem a natureza de
consectário.
Alguns doutrinadores (Monteiro, 2001:346; Beviláqua, 1934, 4:227) denominam
“compensatórios” os juros que aqui chamei de “remuneratórios”, ou seja, os devidos pelo
contratante no cumprimento tempestivo de certas obrigações pecuniárias (mutuário, devedor de
preço parcelado etc.). Como resulta do emprego da expressão acima, considero “juros
compensatórios” apenas os devidos como consectário que cumprem a função de substituir,
juntamente com os demais desdobramentos da indenização, a obrigação não pecuniária
inadimplida. O esclarecimento é importante para evitar desentendimentos por razões
exclusivamente semânticas.
4.2.4. Cláusula penal nas obrigações não pecuniárias
Cumpre a multa convencional nas obrigações não pecuniárias duas funções. A primeira é
reforçar o cumprimento da obrigação, agravando as consequências da inexecução voluntária. Esta
é, como referido, também função da cláusula penal nas obrigações pecuniárias. A segunda é
quantificar com antecedência o valor das perdas e danos. Esta segunda função da multa
convencional nas obrigações não pecuniárias tem grande importância prática, na medida em que
limita ou até mesmo exclui um dos consectários legalmente estabelecidos para o inadimplemento
deste tipo de obrigação.
A multa convencional nas obrigações não pecuniárias, então, prefixa o valor das perdas e
danos devidos pelo inadimplente. Quando os contratantes concordam que o inadimplemento de
obrigação não pecuniária deve acarretar o pagamento de multa num determinado valor, eles já
estão calculando, de antemão, o prejuízo que eventual descumprimento do contrato poderia
ocasionar-lhes. Em geral, a pena é estabelecida mediante percentual sobre o valor da obrigação
inadimplida, reputando-se que as partes se deram por satisfeitas em recebê-lo a título de
recomposição dos danos emergentes e lucros cessantes, caso a obrigação não seja cumprida.
Na hipótese de inadimplemento de obrigação não pecuniária, assim, as partes que contrataram
multa convencional (na cláusula penal) não precisam alegar ou provar prejuízo para cobrá-la (CC,
art. 416, parágrafo único). Definida como função deste pacto a prefixação da indenização devida,
dispensa-se a parte inocente de demonstrar efetivo prejuízo porque se entende que foi da vontade
e interesse da parte culpada quantificá-lo no montante da multa convencional. Outra séria
implicação da segunda função da multa convencional é a impossibilidade de o credor exigir
indenização suplementar, se não houver específica e expressa previsão na cláusula penal
imputando ao devedor esta obrigação. Como a multa convencional quantifica por antecipação as
perdas e danos a serem pagas pelo inadimplente, considera-se que o credor, ao concordar com ela,
renunciou ao recebimento da indenização completa, caso se mostrasse o montante de seu prejuízo
superior ao valor daquelas.
Imagine que Antonio comprou o automóvel usado de Benedito, que se comprometeu a entregar
o veículo em 30 dias, sob pena de arcar com multa de 20% sobre o preço contratado. Neste caso, as
partes, inclusive Antonio, concordaram que eventual inadimplemento por parte de Benedito
causaria prejuízos que aquele percentual cobriria. Se os danos efetivamente causados a Antonio
pela mora de Benedito superarem os 20% do valor da obrigação, ele não pode reclamar mais nada
além da multa, porque a quantificação antecipada da indenização contou com sua expressa
concordância. Ao prejuízo que exceder o valor da multa convencional renuncia o credor. É o que
decorre do art. 416, parágrafo único, primeira parte: “ainda que o prejuízo exceda ao previsto na
cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi
convencionado”.
Em suma, se a cláusula penal referente à obrigação não pecuniária, além de mencionar apenas
os juros, correção monetária e honorários de advogado, limita-se a prever multa convencional, o
credor não pode exigir do devedor a completa indenização de seus prejuízos, se excederem o
montante deste último consectário. É a implicação de uma cláusula redigida, por exemplo, nos
termos seguintes: “em caso de inadimplemento, a parte inadimplente pagará à outra parte juros de
1% ao mês, correção monetária calculada pelo IGP-M, da FGV, razoáveis honorários de advogado e
multa no valor de 10% do montante em atraso”. Se nada mais diz a cláusula penal, o credor, ao
assinar o contrato, manifestou sua satisfação com essas implicações do inadimplemento e
renunciou à indenização por completo.
Para que o credor de obrigação não pecuniária que contratou multa convencional possa ser
integralmente indenizado, é necessário que a cláusula penal (ou outra cláusula do instrumento de
contrato) expressamente mencione o direito de exigir sua suplementação na hipótese de prejuízo
excedente. Seria necessário que à cláusula acima indicada se acrescentasse, a final, algo como
“sem prejuízo da indenização por perdas e danos”. Note, entretanto, que, mesmo neste caso, a
multa convencional não perde a função de quantificação antecipada dos prejuízos, porque o seu
montante, como dita a lei, “vale como mínimo de indenização, competindo ao credor provar o
prejuízo excedente” (CC, art. 416, parágrafo único, segunda parte). No exemplo anterior, se a
cláusula penal incluísse expressa referência à indenização, Antonio poderia reclamar, sem provar
prejuízo, os 20% da multa convencional, mas só teria direito ao recebimento de indenização
suplementar pelo atraso na entrega do automóvel se provasse que suportou perdas e danos além
daquele montante.
„ Nas obrigações não pecuniárias, a multa convencional exerce a função de antecipar a quantificação das
perdas e danos devidas na hipótese de inadimplemento. Assim, se elas não são especificamente asseguradas
na cláusula penal, a multa convencional as exclui; e se o são, as reduz.
A cláusula penal nas obrigações não pecuniárias estão sujeitas aos mesmos limites estudados
relativamente às pecuniárias, e também podem ser equitativamente reduzidas em caso de
cumprimento parcial da obrigação ou se o valor for manifestamente excessivo em vista da
natureza e finalidade do negócio (CC, arts. 412 e 413).
5. Inadimplemento involuntário: caso Fortuito
Quando o inadimplemento não deriva de culpa de sujeito obrigado, a hipótese é, em termos
técnicos, de caso fortuito ou de força maior. Se o descumprimento da obrigação se pode creditar a
fato necessário de efeitos inevitáveis, então ele não derivou de culpa dos sujeitos obrigados. Em
assim sendo, não se imputa a nenhuma das partes o dever de indenizar os prejuízos ocasionados à
outra pelo não cumprimento tempestivo da obrigação.
Imagine que o devedor, ao se dirigir ao banco para pagar a prestação de sua casa no próprio
dia do vencimento, é sequestrado e fica em poder dos criminosos por uma semana. Liberado do
cativeiro, tem o direito de pagá-la sem acréscimos. O sequestro é fato necessário, no sentido de que
não se pode exigir do sequestrado qualquer conduta para livrar-se dele sem considerável risco de
morte. Além de crimes que vitimam o devedor, grave doença ou acidente envolvendo-o ou a
pessoa de sua família ou mesmo amigo próximo, inundação, incêndio, greve são fatos que, se
impedirem ou dificultarem seriamente o tempestivo cumprimento da obrigação, afastam a culpa do
sujeito obrigado.
Há quem distinga o caso fortuito do de força maior. Agostinho Alvim, por exemplo, após
destacar que a inevitabilidade é o elemento comum aos dois conceitos, relaciona o fortuito ao
impedimento pertinente à pessoa do devedor que agiu sem culpa (ou sua empresa) e o caso de
força maior, aos acontecimentos externos (1972:329/334). Outros tecnólogos rejeitam qualquer
distinção entre essas figuras jurídicas. Arnoldo Medeiros da Fonseca, neste contexto, considera os
termos sinônimos (1932:85/103). Penso não haver sentido em procurar distinguir caso fortuito do
de força maior por serem idênticas as implicações jurídicas da inexecução involuntária da
obrigação numa e noutra situação. A lei, sempre que preceitua determinada implicação ao caso
fortuito, fá-lo também quanto ao de força maior, inexistindo, por isso, razão para distingui-los.
Daqui para frente, inclusive, para simplificar, muitas vezes usarei apenas a expressão caso
fortuito, registrado que estarei também me referindo ao caso de força maior.
„ A inexecução involuntária é causada por fato necessário de efeitos inevitáveis ou que as partes não
podem impedir (“caso fortuito ou de força maior”). Nesta hipótese, nenhuma das partes é obrigada a
indenizar a outra pelos prejuízos que o inadimplemento causar.
Note que os casos fortuitos podem ser eventos previsíveis. A previsibilidade do fato necessário
não os desfigura como excludente de culpabilidade. O morador de metrópole brasileira sabe do
risco que corre de ser roubado, por vezes sob graves ameaças e forte violência. Se é ele devedor de
obrigação de dar coisa certa e a estava transportando em direção ao local da entrega, no dia do
vencimento, quando foi ela roubada, não se lhe pode imputar culpa pelo não pagamento
tempestivo. A possibilidade do roubo é previsível, mas, ocorrendo, seus efeitos não podem ser
impedidos sem grave risco a bens e valores de maior importância, como a integridade física ou a
vida do devedor ou seus empregados. A relação entre a imprevisibilidade e inevitabilidade do
fortuito será vista à frente (Cap. 24, item 3.1).
O caso fortuito pode comprometer, em definitivo, o cumprimento da obrigação não pecuniária
ou apenas atrasá-lo. Na primeira hipótese, o inadimplemento é absoluto. Quando for total a perda,
resolve-se a obrigação com a liberação do devedor, que apenas deve restituir ao credor eventuais
pagamentos que tenha recebido. É esta a consequência legal prevista para as obrigações de dar
coisa certa (CC, art. 234, primeira parte), pertinente também às de dar coisa incerta após a
concentração (art. 245). É também a estabelecida na lei para as obrigações de restituir (art. 238),
fazer (art. 248) e não fazer (art. 250). Quando é parcial a perda, ou seja, ocorrendo mera
deterioração da prestação, abre a lei ao credor a alternativa de receber a coisa certa deteriorada
com abatimento de preço ou dar por resolvida a obrigação (art. 235). Sendo esta de restituir, e
deteriorada a coisa em razão de caso fortuito, o credor suporta o prejuízo (art. 240). Estas normas,
já examinadas anteriormente (Cap. 14, itens 2.2 e 2.5), são aqui apenas relembradas.
Se a obrigação é pecuniária, o fortuito pode apenas atrasar seu cumprimento, não sendo
possível, neste caso, inadimplemento absoluto.
„ O inadimplemento absoluto involuntário importa a resolução da obrigação. Retornam as partes à
mesma situação jurídica em que se encontravam anteriormente à constituição do vínculo obrigacional. Em
consequência, o devedor não é mais obrigado a entregar a prestação e o credor não a pode exigir. Se tiver
havido pagamento antecipado, porém, o credor tem o direito à devolução.
Quando o caso fortuito não compromete, em definitivo, o cumprimento da obrigação
(pecuniária ou não pecuniária), apenas retardando seu cumprimento, opera-se o inadimplemento
relativo. Nesta hipótese, a obrigação não se resolve necessariamente, porque sua execução, mesmo
atrasada, pode ainda ser útil ao credor. Em função da preservação ou perda de utilidade da
prestação para o credor, o inadimplemento relativo acarreta a permanência da obrigação ou sua
solução.
Se, após o atraso no pagamento motivado por caso fortuito, a prestação continua útil ao credor,
permanece o devedor obrigado a entregá-la tão logo cessem os efeitos do fato necessário.
Considere que a greve dos empregados do banco em que o devedor tem depositado todo o seu
dinheiro é tão generalizada que impede o pagamento da obrigação ao credor no vencimento do
título, inclusive mediante transferência eletrônica ordenada via rede mundial de computadores.
Trata-se de caso fortuito que, malgrado sua intensidade, não inviabiliza em definitivo o
adimplemento da obrigação. Assim que cessados seus efeitos e restabelecidos os serviços daquele
banco, o devedor tem que cumpri-la. Quer dizer, o caso fortuito relacionado a inadimplemento
relativo não dá ensejo à resolução da obrigação. Note-se, contudo, que, embora seja o vínculo
obrigacional preservado, o devedor não se torna obrigado a indenizar os prejuízos que o
inadimplemento relativo causou. A falta de pagamento no vencimento deveu-se a fato necessário e
não à culpa dele e, por isso, cabe ao credor suportar os danos decorrentes na hipótese de
preservação da utilidade da prestação.
Se, por outro lado, o inadimplemento relativo derivado de caso fortuito ocasionar a inutilidade
da prestação para o credor, este pode dar a obrigação por resolvida, dispensando o devedor de seu
cumprimento e exigindo a devolução de eventuais pagamentos realizados. Imagine que o locador
de equipamentos de som foi contratado pelo promotor de uma festa, mas não pôde cumprir a
obrigação de entregar os bens locados antes do início do evento, em razão de uma forte inundação
que impediu o deslocamento do caminhão em que estavam sendo transportados. Para o credor,
mesmo após a cessação dos efeitos do caso fortuito, a prestação inadimplida perdeu toda a
utilidade, porque a data da festa já transcorreu e o evento, mesmo sem som, se realizou. O
locatário pode considerar resolvida a obrigação e exigir a devolução do pagamento que
eventualmente tiver feito. Neste caso, havendo prejuízo, é o devedor que o suporta.
A utilidade da prestação é estabelecida em termos objetivos, isto é, com abstração da vontade
das partes. Assim, ainda que o credor não queira mais a prestação, se ela ainda for objetivamente
útil a qualquer pessoa que se encontrasse na posição ativa de uma obrigação daquela natureza,
não se resolve a obrigação. Igualmente, ainda que o devedor queira entregar a prestação após o
fim dos efeitos do caso fortuito, se esta não se revela mais útil a qualquer pessoa que ocupasse a
posição ativa de obrigação da mesma natureza, resolve-se a obrigação. Ressalte-se, neste contexto,
que as obrigações pecuniárias continuam sempre úteis ao credor, no caso de inadimplemento
relativo, e, portanto, nunca são resolvidas pelo atraso. Ainda que seja desejo do credor resolver a
obrigação pecuniária, a mora do devedor não autoriza a resolução porque o dinheiro não perde
sua utilidade em nenhuma hipótese.
„ O inadimplemento involuntário relativo não importa necessariamente a resolução da obrigação. Se a
prestação ainda for útil ao credor, cessados os efeitos do fortuito que atrasara a execução, o devedor é
obrigado a entregá-la e o credor tem o direito de exigi-la. Se o atraso tiver inutilizado a prestação para o
credor, resolve-se a obrigação, caso em que o devedor é obrigado a restituir àquele eventuais antecipações.
Ao encerrar este item, faço duas observações. Primeira, as regras sobre inadimplemento não
culposo têm natureza supletiva. As partes podem, por acordo de vontade, pactuar diferentes
consequências para a hipótese de caso fortuito ou de força maior. Incidem as normas legais
examinadas, em decorrência, apenas na omissão de cláusula contratual sobre a matéria (CC, art.
393, in fine). Segunda, as regras examinadas sobre inadimplemento não culposo absoluto são
inaplicáveis se, ao tempo em que a prestação se perdeu, o devedor encontrava-se em mora (isto é,
se incorrera em inadimplemento relativo voluntário). Neste caso, ele responde pelo perecimento
da prestação, ainda que tenha este decorrido de caso fortuito (art. 399), como se examinou
anteriormente (subitem 4.2.2).
6. Inadimplemento e execução judicial
Uma forte tendência entre os tecnólogos, semeada no direito alemão dos fins do século XIX e
frutificada na primeira metade do século XX, propõe desmembrar o vínculo obrigacional em dois.
De um lado, estaria o dever de o sujeito passivo entregar ao ativo a prestação (Schuld); de outro, a
sua responsabilidade patrimonial no caso de não a prestar (Haftung). A tendência é conhecida
como concepção ou doutrina dualista da obrigação. A implicação de sua distinção é a possibilidade
de dívidas sem responsabilidade (como no caso da obrigação natural) e de responsabilidade sem
dívidas (fiança). Malgrado o enorme sucesso que granjeou e ainda granjeia em todos os países de
tradição românica (Comparato, 1964; Martins-Costa, 2003, passim), a concepção dualista não é útil
senão na ilustração de questões marginais. Pode-se compreender, sem dificuldade, as repercussões
do inadimplemento sem o esquema conceitual de quebra da obrigação em duas.
Sempre que a obrigação não é paga no vencimento, ocorre o inadimplemento. Se for
voluntário, a parte culpada deve indenizar a outra pelos prejuízos que tiver causado. Esta
indenização pode ter função moratória ou compensatória. No primeiro caso, à obrigação principal
acresce-se, então, outra, que é a de pagar a indenização. Se o devedor culposamente não paga, no
vencimento, a quantia devida, ele passa a dever não só esta quantia mas também a indenização
pelo prejuízo que o inadimplemento trouxe ao credor. As “duas” obrigações (principal e acessória)
podem ser cumpridas voluntariamente. O devedor, dando-se conta de sua falta, procura o credor
para não só lhe pagar o que já devia, como também para compensá-lo pelo atraso. No caso de
indenização compensatória, a indenização substitui a obrigação originária, e também aqui o
devedor pode espontaneamente procurar o credor para cumpri-la. Estas situações de fato,
perceba, não são relevantes para o Direito, na medida em que não tendem a despertar nenhum
conflito de interesses. Vale examinar, portanto, a hipótese em que o devedor resiste a cumprir a
obrigação ou a responder pelos prejuízos. Neste caso, o credor deve buscar em juízo a satisfação de
seus direitos mediante a execução forçada da obrigação.
Estudou-se, de início (Cap. 13, item 2), que a execução da obrigação é a realização dos objetivos
pretendidos pelas partes (nas obrigações negociais) ou pela lei (nas não negociais). É voluntária
quando o sujeito passivo espontaneamente paga o ativo, e forçada (ou judicial), quando decorre da
atuação do Estado, por meio de um de seus poderes, o Judiciário. Viu-se, também, que a execução
judicial pode ser específica ou subsidiária. No primeiro caso, o credor recebe a mesma prestação
que receberia caso a obrigação tivesse sido cumprida espontânea e tempestivamente. Na execução
subsidiária, por não ser possível (material ou juridicamente falando) ao Estado assegurar a
entrega ao credor da mesma prestação que ele receberia na hipótese de execução voluntária,
satisfaz-se seu direito mediante a entrega de prestação equivalente ou de indenização.
A execução judicial da obrigação só cabe na hipótese de inadimplemento voluntário. Se o
sujeito ativo demanda em juízo o passivo para obter o adimplemento da obrigação que não se
adimplira em razão de caso fortuito, ele não tem o direito que pleiteia e perderá a ação. A
execução judicial pressupõe que o demandado tenha sido o culpado pelo inadimplemento.
A execução de obrigação pecuniária é específica, já que, por ela, o credor recebe dinheiro, que
corresponde à mesma prestação que teria recebido caso a obrigação tivesse se cumprido no
vencimento. Como este tipo de obrigação só comporta inadimplemento relativo, a indenização,
neste caso, tem função moratória.
Já na execução de obrigação não pecuniária, quando o inadimplemento é absoluto total –
significa dizer que a prestação se perdeu por completo –, a execução judicial não pode ser
específica; terá que ser subsidiária por indenização, necessariamente, já que não é possível a
entrega ao credor da mesma prestação que receberia na hipótese de execução voluntária. Em
termos econômicos, como visto, o resultado da execução subsidiária por indenização da obrigação
não pecuniária totalmente inadimplida será igual ao da obrigação pecuniária. Juridicamente
falando, porém, correspondem a modalidades diferentes de execução judicial.
Quando tiver sido absoluto parcial o inadimplemento da obrigação não pecuniária, o credor
pode escolher entre receber a coisa deteriorada ou exigir o valor dela, sempre acrescido de
indenização. Optando pela primeira alternativa, a execução judicial será subsidiária por prestação
equivalente (a coisa deteriorada, neste caso, equivale à não deteriorada, para o credor); optando
pela segunda, a execução judicial será subsidiária por indenização.
Sendo, por fim, relativa à inexecução da obrigação não pecuniária, se continuar útil a prestação
ao credor, a execução judicial será específica; tendo a prestação se inutilizado em virtude da mora,
porém, será subsidiária por indenização.
Na hipótese de execução judicial específica de obrigação não pecuniária, o credor tem o direito
de receber, além da prestação contratada, a indenização pelos danos que o inadimplemento
provocou. Na de execução judicial subsidiária por prestação equivalente, tem ele o direito de
receber, além da prestação semelhante, igual indenização. Nestas duas hipóteses a indenização é
moratória, porque não substitui a prestação; é apenas acrescida a ela em ressarcimento pelos
efeitos da mora. Por fim, na execução judicial subsidiária por indenização, o credor tem direito de
ser indenizado por todos os prejuízos que sofreu, incluindo o valor do ganho que auferiria se lhe
tivesse sido entregue tempestivamente a prestação. Note, porém, que, neste caso, sua natureza é
diversa. Aqui, a indenização substitui a prestação e não apenas neutraliza os efeitos da mora.
Trata-se, então, de indenização compensatória.
„ A inexecução da obrigação (principal) por culpa de uma das partes dá ensejo à constituição de nova
obrigação (acessória): a de o culpado indenizar todos os prejuízos causados pelo inadimplemento. Esta
indenização tem função compensatória (quando substitui a prestação) ou moratória (se visa neutralizar os
efeitos da mora).
Em qualquer caso de inexecução voluntária, o inadimplente deve pagar indenização, porque a
simples entrega da prestação (ou mesmo de seu valor) não é suficiente para repor o equilíbrio
econômico que resultaria do cumprimento tempestivo da obrigação. O inadimplemento culposo
importa, para a parte inocente, a privação não só da prestação, mas das vantagens e benefícios que
dela poderia ter extraído. Se a obrigação tivesse sido adimplida a seu tempo, modo e lugar, ao
patrimônio do credor não se teria agregado somente a prestação, mas também os frutos ou
produtos dela derivados. O inadimplemento, por assim dizer, causa um desequilíbrio que a
execução judicial deve desfazer via indenização (Pereira, 1962:291). Por outro lado, se o
inadimplente fosse, na execução judicial da obrigação, forçado a entregar apenas a prestação sem
a indenização dos prejuízos causados à outra parte, sua culpa não seria punida. Com efeito, se a
execução voluntária e judicial importassem as mesmas consequências econômicas para o sujeito
obrigado, a lei não desestimularia o inadimplemento.
7. Inadimplemento e insolvência
O inadimplemento da obrigação pode ter por motivo a incapacidade patrimonial de o devedor
honrar todas as suas dívidas. Se em seu patrimônio o passivo supera o ativo (quer dizer, seu
patrimônio líquido é negativo), o devedor, cedo ou tarde, começará a ter dificuldades para pagar
os credores. Costumam, então, suceder-se várias inadimplências, uma atrás de outra. Este fato
jurídico – ter dívidas que superam o valor dos bens – autoriza os legitimados (em geral os
credores) a requerer, em juízo, a declaração de insolvência do devedor (CC, art. 955; CPC-73, art.
748; CPC-15, art. 1.052). Note, se um sujeito de direito tem menos bens no patrimônio que o valor
total das obrigações passivas, mas ninguém pede a declaração de sua insolvência, então ele não
pode ser chamado, tecnicamente, de insolvente. Só o será se e quando decretada, por sentença
judicial, a instauração do processo de insolvência.
A insolvência é um concurso de credores, ou seja, uma execução da qual participam todos os
titulares de crédito contra o mesmo executado (insolvente) e que alcança a totalidade dos bens do
patrimônio deste. Com ênfase, se o devedor não possui bens suficientes para pagar a todos a quem
deve, determina a lei, por medida de justiça, que se realize uma execução única e abrangente, a
execução concursal. Nela, todos os bens do patrimônio do devedor serão vendidos para que o
produto possa ser repartido de forma justa, pagando-se, quando possível, parte do crédito a cada
credor. Quando o devedor é empresário, a execução concursal chama-se falência e é regida por
legislação própria (LF), objeto de estudo do direito comercial. Quando não é, segue as regras do
Código Civil (arts. 955 a 965) e do Código de Processo Civil de 1973 (arts. 748 a 786-A) sobre
insolvência.
Os credores, na insolvência, não são tratados todos de forma igual. A lei os distingue em classes,
atribuindo preferências e privilégios a algumas delas. O fundamento para a hierarquização dos
credores encontra-se na justiça do atendimento prioritário a determinados créditos. Se, por
exemplo, o credor titulariza direito real de garantia, como uma hipoteca sobre certo terreno, por
exemplo, isto significa que o pagamento de seu crédito terá prioridade sobre os não garantidos. É
justo que assim seja, porque os juros e encargos que ele se obrigou a pagar para o credor
hipotecário ou pignoratício foram certamente reduzidos, tendo em vista a outorga da garantia. O
valor do terreno hipotecado foi levado em consideração, nas negociações, pelo credor, ao
concordar com determinada taxa de juros remuneratórios, tendo em vista a redução de riscos que
a garantia real proporciona.
Ressalto, contudo, que, embora os credores não sejam todos iguais na insolvência do devedor,
têm eles direito a tratamento paritário. Quer dizer, os credores de uma mesma classe devem ser
tratados igualmente.
Quando o devedor é insolvente, os credores são classificados em quatro classes: 1) credor com
garantia real; 2) credor com privilégio especial; 3) credor com privilégio geral; e 4) credor sem
preferência. Nas duas primeiras classes, não há rateio proporcional entre os credores, porque a
satisfação de cada crédito será feita, em princípio, com o produto da venda de um bem particular e
individuado do patrimônio do devedor – o bem sobre o qual recai o ônus real ou o privilégio
especial. Nas duas últimas, será sempre feito rateio entre os credores, pagando-se a cada um o
valor proporcional do crédito, se os recursos disponíveis não forem suficientes à satisfação
integral deles todos (CC, art. 962).
„ Quando o devedor não tem, no patrimônio, bens suficientes para responder pelo valor total das
obrigações passivas, deve ser declarada judicialmente sua insolvência. Os credores do insolvente são
classificados segundo uma ordem de preferência estabelecida em lei. Em primeiro lugar, paga-se o credor
com garantia real com o produto da venda do bem onerado. Em seguida, os titulares de privilégio especial,
também com o produto da venda dos bens sobre os quais ele recai. Depois disso, são feitos os pagamentos
dos credores sujeitos a rateio, dando-se preferência aos titulares de privilégio geral. Os últimos credores a
receber, se sobraram recursos, são os quirografários.
O credor com garantia real é o que tem o crédito vinculado a um bem do patrimônio do
devedor. Se este bem é imóvel, a garantia chama-se hipoteca; se móvel, penhor; se são os frutos e
rendimentos de imóvel o objeto da garantia, denomina-se anticrese. Verificando-se a insolvência, o
produto da venda do bem onerado será destinado, inicialmente, à satisfação do credor com
garantia sobre ele. Após o pagamento integral do crédito garantido, se restar saldo no produto da
venda daquele bem, será empregado no pagamento dos credores sujeitos a rateio (classes 3 e 4).
Por outro lado, se o produto da venda judicial do bem onerado for insuficiente ao pagamento
integral do credor garantido, o saldo não pago de seu crédito participará dos rateios em concurso
com os credores sem preferência (classe 4). Em outros termos, é quirografário o crédito
remanescente da execução da garantia real (CC, art. 1.430) (Rodrigues, 2003, 5:347).
Os credores com privilégio especial encontram-se, sob o ponto de vista econômico, na mesma
posição dos titulares de garantia real: o produto da venda de determinado bem é vinculado à
satisfação de certo crédito. A diferença é jurídica: enquanto a vinculação entre produto da venda
judicial e crédito é feita, na hipótese da garantia real, pelas partes, na do privilégio especial, é-o
pela lei. A hipoteca recai sobre um prédio específico porque credor e devedor assim contrataram.
Já o privilégio especial recai sobre certos bens do devedor porque a lei assim o estabelece,
independentemente de qualquer declaração de vontade das partes. Tal como ocorre em relação
aos créditos com garantia real, os recursos remanescentes, após o pagamento integral do crédito
especialmente privilegiado, destinam-se ao pagamento dos credores sujeitos a rateio (classes 3 e 4),
enquanto o saldo não pago, se houver, concorre com os credores sem preferência (classe 4).
São hipóteses de crédito com privilégio especial: (a) o dos credores por custas e despesas
judiciais com arrecadação e liquidação sobre a coisa arrecadada e liquidada; (b) o credor por
despesas de salvamento sobre o que se salvou; (c) o credor por benfeitorias necessárias ou úteis
sobre o bem beneficiado; (d) o credor por materiais, dinheiro ou serviços empregados na
edificação, reconstrução ou melhoramento de prédio, fábrica, oficina ou outra construção sobre o
bem edificado, reconstruído ou melhorado; (e) o credor por sementes, instrumentos e serviços
empregados em plantação ou colheita, sobre os frutos agrícolas correspondentes; (f) o locador,
relativamente aos aluguéis do ano da declaração da insolvência e do anterior, sobre o mobiliário e
utensílios domésticos; (g) o autor, pelos direitos derivados de contrato de edição, sobre os
exemplares da obra por ele criada, na insolvência do editor (CC, art. 964).
Em situação específica encontra-se o trabalhador do campo em atividade agrícola, que, por seu
salário, tem privilégio especial sobre o produto da colheita em que trabalhou (CC, art. 964, VIII).
Seu crédito tem preferência sobre eventuais credores pignoratícios em favor dos quais tenha sido
outorgada garantia real sobre a mesma mercadoria agrícola. Neste caso, portanto, inverte-se a
ordem de classificação dos credores, devendo ser pago antes, na insolvência, o trabalhador
agrícola que o credor titular de penhor.
Os credores com privilégio geral, por sua vez, são pagos com os recursos que remanescem no
patrimônio do devedor após a satisfação – com o produto da venda dos bens vinculados – dos
créditos com garantia real e privilégio especial. Como já dito, estão sujeitos a rateio e receberão
pagamentos proporcionais aos seus créditos quando forem insuficientes os recursos para sua
satisfação integral. Gozam de privilégio geral os créditos por: (a) despesas de funeral do devedor,
feitas segundo a condição do morto e o costume do lugar; (b) custas judiciais ou por despesas com
a arrecadação e liquidação do patrimônio do insolvente; (c) despesas com o luto do cônjuge
sobrevivo e dos filhos do insolvente, se moderadas; (d) despesas com a doença de que faleceu o
insolvente, no semestre anterior à sua morte; (e) gastos necessários à mantença do insolvente
falecido e sua família, no trimestre anterior ao do falecimento; (f) impostos devidos no ano da
declaração da insolvência e no anterior; (g) trabalho doméstico nos seis últimos meses de vida do
insolvente (CC, art. 965); (h) outros previstos na lei, como, por exemplo, os honorários de advogado
(Lei n. 8.906/94, art. 24).
Finalmente, se restarem recursos após o pagamento dos credores com privilégio especial, serão
pagos, proporcionalmente ao valor do crédito de cada um, os que não titularizam nenhuma
preferência (classe 4). São os credores quirografários, que se definem por exclusão: os que não se
classificam como preferenciais. Se, por exemplo, alguém havia vendido a prazo alguma coisa ao
insolvente, ou emprestara-lhe dinheiro sem garantia real, seu crédito não goza de qualquer
preferência.
Exemplo: considere que Antonio, que vive em casa alugada, tem no patrimônio, entre os ativos,
um terreno, dois veículos e o mobiliário doméstico. Suponha que, no passivo, se encontram as
dívidas em favor de Benedito ($ 100), garantida por hipoteca sobre o terreno; do locador Carlos ($
20), por aluguel atrasado; do advogado Darcy ($ 15), por honorários profissionais; e do cunhado
Evaristo ($ 80), que lhe emprestara dinheiro no último Natal. Declarada a insolvência de Antonio,
os bens foram arrecadados e liquidados (isto é, vendidos judicialmente). Apuraram-se os seguintes
valores: pelo terreno, $ 80; pelos veículos, $ 40; e pelo mobiliário, $ 30. Como serão feitos os
pagamentos na insolvência? Inicialmente, paga-se Benedito, por ser titular de direito real de
garantia, com o produto da venda do bem onerado. Como ele tem crédito de $ 100 e o terreno
hipotecado foi vendido por $ 80, destina-se todo o produto da venda ao credor e fica ele ainda com
crédito de $ 20 concorrendo na classe dos quirografários. Em seguida, paga-se Carlos, que tem
privilégio especial sobre o mobiliário doméstico (“alfaia”, diz a lei) encontrado no prédio locado.
Como este foi vendido a $ 30 e o crédito do locador é $ 20, ele será integralmente pago e o saldo
remanescente, de $ 10, será destinado ao pagamento dos credores sujeitos a rateio. Depois, paga-se
Darcy, que, sendo advogado, titulariza privilégio geral. Seu crédito é de $ 15 e, na massa, há
recursos no valor de $ 50. Feito este pagamento, resta saldo de $ 35 para ser dividido
proporcionalmente entre Benedito (que ainda não recebeu $ 20) e Evaristo (que tem a haver $ 80).
Em razão da proporcionalidade, enfim, Benedito recebe mais $ 7 e Evaristo, $ 28. O valor residual –
ou seja, $ 14 para Benedito e $ 52 para Evaristo – corresponde à perda desses credores, tendo em
vista que Antonio não possui mais nenhum bem, em seu patrimônio, sobre o qual se pudesse fazer
a cobrança.
© desta edição [2020]
2020 - 02 - 12
Curso de Direito Civil - Vol. 2 - Ed. 2020
PÁGINA RB-7.1
SEGUNDA PARTE - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
CAPÍTULO 19. INTRODUÇÃO ÀS OBRIGAÇÕES EM ESPÉCIE
Capítulo 19. INTRODUÇÃO ÀS OBRIGAÇÕES EM ESPÉCIE
1. Obrigações em espécie
Este breve capítulo tem o objetivo de introduzir as obrigações em espécie. Com o exame do
inadimplemento das obrigações, empreendido no capítulo anterior, encerra-se o que a tecnologia
civilista brasileira tem tradicionalmente estudado como uma teoria geral das obrigações. Nela
concentram-se os esforços dos tecnólogos da área em busca da identificação e intelecção das
normas legais aplicáveis a qualquer tipo de obrigação, inclusive as estudadas em outros ramos do
conhecimento jurídico (direito tributário, comercial, do consumidor etc.). No direito civil, após o
estudo da teoria geral, inicia-se o das obrigações em espécie – vale dizer, o das normas específicas
aplicáveis aos contratos civis, responsabilidade civil e algumas outras obrigações.
Claro, a construção desta teoria geral representa a tentativa de sistematização e classificação de
certos preceitos normativos num conjunto harmônico. Em outros termos, ela visa organizar
logicamente as normas disciplinares de qualquer obrigação. Todavia, conferir estrutura lógica a
normas jurídicas é, por si só, tarefa difícil. Às vezes, até mesmo impossível, por uma razão simples,
mas intransponível: não há necessariamente lógica no direito (Coelho, 1992). A tarefa é
significativamente dificultada no campo do direito das obrigações. Quando o material normativo a
sistematizar e classificar são milenares normas enraizadas no direito romano que se reciclam para
regular uma realidade econômica e social cada vez mais complexa, como é o caso das deste ramo
jurídico, o resultado – antevê-se – pode ser frustrante. Não há classificação das obrigações ao
mesmo tempo operacional e abrangente.
Para introduzir o estudo das obrigações em espécie, contudo, não se escapa de classificá-las. E,
embora haja quem considere inadequado o critério de classificação segundo a origem (ou “fonte”),
em vista da quantidade e diversidade dos fatos geradores de obrigações (Noronha, 2003:413), é
dele que me valho, por sua utilidade didática.
Começo pela notícia de uma obra escrita por Gaio, no século II, as Institutas. Nela, encontra-se a
primeira classificação das obrigações segundo a origem: Omnis obligatio vel ex contractu nascitur,
vel ex delicto (que significa: “toda obrigação nasce de contrato ou de delito”). A divisão bipartite
das obrigações, embora largamente difundida nos direitos de tradição romana, serve apenas para
uma aproximação de fins didáticos – objetivos, aliás, das Institutas. A incapacidade de ela abarcar
todas as situações, ressalte-se, era já notada desde então. Em outros escritos – que se encontram no
Digesto organizado no século V por ordem do imperador Justiniano –, Gaio fez menção a
obrigações que não provinham nem de contrato, nem do que atualmente se conhece por ato ilícito.
Ensaiou, primeiro, uma classificação tripartite, em que a nova categoria de obrigações não estava,
porém, claramente definida. Propôs, também, uma quatripartite, acrescentando às obrigações
contratuais (ex contractu) e delituais (ex maleficio), as quase contratuais (quasi ex contractu) e as
quase delituais (quasi ex maleficio). Esta última classificação granjeou tamanho prestígio que ecoa,
ainda hoje, no Code Civil de França e nos manuais franceses da área (Mazeaud-Chabas, 1998:45 e
789). Mesmo na doutrina brasileira, há quem a adote na organização dos temas (Lopes, 2001). As
obrigações quase contratuais nascem de “fatos puramente voluntários”, como o pagamento
indevido, gestão de negócios e o enriquecimento sem causa; já as quase delituais correspondem à
responsabilidade por danos causados por culpa simples, como a negligência, imprudência ou
imperícia (delitual é a relacionada ao dolo).
Ambientadas nesta notícia histórica, podem-se dividir as obrigações, hoje, em negociais e não
negociais. Nas primeiras, encontram-se as derivadas de negócio jurídico, quer dizer, de
manifestação de vontade de sujeito de direito intencionalmente voltada à produção dos efeitos
previstos em lei. As não negociais derivam de fato jurídico ou ato ilícito: não é a vontade do
devedor, do credor ou de ambos que gera o vínculo obrigacional, mas o fato qualificado pela lei ou
o ato culposo que viola direito subjetivo.
As obrigações negociais subdividem-se em contratuais e não contratuais. Naquelas, o encontro
de vontade das partes faz nascer a obrigação. Correspondem aos contratos os mais variados
(compra e venda, doação, seguro, locação, prestação de serviços, leasing, cartão de crédito, plano
de assistência médica, distribuição, acordo de acionistas etc.). Nas obrigações não contratuais, o
negócio jurídico gerador do vínculo é unilateral. E, aqui, abrem-se duas possibilidades: de um lado,
aquelas em que o declarante se obriga (promessa de recompensa, oferta ao consumidor, emissão,
aceite, endosso e aval de títulos de crédito etc.) e, de outro, aquelas em que o declarante obriga
outrem (gestão de negócios, pagamento indevido etc.).
As obrigações podem resultar, de um lado, de negócios jurídicos (negociais) ou, de outro, de fato jurídico
ou ato ilícito (não negociais). As negociais, por sua vez, podem decorrer de negócio jurídico bilateral
(obrigações contratuais) ou unilateral (não contratuais).
Por sua vez, a categoria das obrigações não negociais reúne os vínculos obrigacionais cuja
constituição não deriva de negócio jurídico. Nela está a responsabilidade civil, isto é, a obrigação
de indenizar os danos sofridos por sujeito com quem o devedor não mantém vínculo negocial ou,
se mantém, o negócio é circunstancial. Explico. Quando alguém deve indenização a quem está
vinculado por negócio jurídico, este pode ser o fundamento da obrigação de indenizar ou não. Se a
indenização é consectário, o seu fundamento é o inadimplemento da obrigação nascida com a
manifestação de vontade; neste caso, o negócio jurídico é a fonte da obrigação de indenizar, seu
fundamento. Por outro lado, se a indenização é a própria prestação, o negócio jurídico
eventualmente existente entre devedor e credor é circunstancial; a obrigação de indenizar existe a
despeito do vínculo negocial (Cap. 21, item 2).
A responsabilidade civil é, em suma, obrigação não negocial, mesmo que entre credor e
devedor da indenização haja negócio jurídico. Ela pode ser subjetiva ou objetiva. Quando
subjetiva, a responsabilidade civil tem por origem ato ilícito culposo ou doloso (obrigação de
indenizar vítima de acidente de trânsito, de erro médico, de crimes etc.); quando objetiva, decorre
de fato jurídico (fornecer bens ao mercado gera responsabilidade pelos acidentes de consumo, p.
ex.).
Também se classifica como não negocial a obrigação do condômino (implicação do fato jurídico
de dividir a propriedade de um bem com outras pessoas), do alimentador (derivada do fato
jurídico de ele ter condições de alimentar parente em dificuldades), e outras.
Encontra-se na categoria das obrigações não negociais uma considerável gama de hipóteses
espalhadas pelos vários ramos do direito. São não negociais, por exemplo, as obrigações
tributárias, que se constituem em razão de fato subsumível à hipótese de incidência do imposto,
contribuição ou taxa (auferir renda implica a obrigação de pagar o imposto de renda, usufruir
serviço prestado pelo Estado, a de pagar a taxa etc.). A obrigação de a sociedade anônima pagar o
reembolso ao acionista dissidente de certas deliberações da assembleia geral é outro exemplo
albergado nesta classe. O direito de o empregado receber salário, décimo-terceiro, férias
remuneradas, licença-maternidade e demais verbas previstas em lei também se deve considerar
obrigação não negocial – embora a tecnologia trabalhista ainda opere com o conceito de “contrato
de trabalho” – nascida do fato jurídico caracterizador do vínculo empregatício (subordinação
pessoal, não eventualidade, remuneração etc. – art. 3.º da CLT).
2. Questão de ordem
A tecnologia civilista dedica-se ao estudo da teoria geral das obrigações e de algumas obrigações
em espécie. Segundo o ramo jurídico dedicado ao seu estudo, pode-se falar em obrigações
tributárias, empresárias (também chamadas comerciais ou mercantis), consumeristas,
trabalhistas, previdenciárias, de direito administrativo e assim por diante. Neste sentido, por
exemplo, a obrigação negocial não contratual derivada da vinculação do fornecedor aos termos de
sua oferta dirigida ao mercado de consumo (CDC, arts. 30 e 35) é consumerista, porque estudada
no âmbito do direito do consumidor; a também negocial não contratual representada pelo saque,
aceite, endosso e aval de títulos de crédito é mercantil, por vir estudada no direito comercial
(Coelho, 1998, 1:387/416).
As obrigações em espécie estudadas pelo direito civil são, inicialmente, referidas por três
conceitos: contratos civis, atos unilaterais civis e responsabilidade civil. As que não se enquadram
em nenhum deles são examinadas pelo desdobramento próprio da disciplina: os alimentos
estudam-se em direito de família, as obrigações do condômino na repartição das despesas comuns,
no direito das coisas, as do plagiador de obra, nos direitos do autor, e assim por diante.
Neste Curso, distribuíram-se as principais matérias do direito das obrigações civis da seguinte
maneira: no próximo capítulo, estudam-se os atos unilaterais de direito civil (promessa de
recompensa, pagamento indevido, gestão de negócios e enriquecimento sem causa); na próxima
parte, a responsabilidade civil; no próximo volume, os contratos civis.
3. Direito das obrigações e a globalização
Quero aproveitar este capítulo para um curto interregno no desenvolvimento da tecnologia
jurídica das obrigações e umas poucas considerações científicas.
Durante a Primeira Guerra Mundial, a Europa não podia manter sua produção com a mesma
regularidade. Além das naturais dificuldades criadas pelo extenso conflito para manter a
economia funcionando normalmente, havia também o esforço de guerra, que priorizava a
produção de armamentos, belonaves, uniformes e suprimentos para as forças. Do outro lado do
Atlântico, empresários norte-americanos identificaram a oportunidade de vender mais para o
considerável mercado europeu então desatendido; fizeram investimentos e aumentaram a
produção. A economia norte-americana cresceu, no período, em parte por ter atendido à demanda
nos países aliados do velho continente e suas colônias, além de alguns dos antigos consumidores
de produtos europeus espalhados pelo mundo.
Terminada a guerra, a Europa retornou à economia de paz e deixou de importar os bens que
voltou a produzir. Reativou alguns laços coloniais e a exportação. Paralelamente, com a paulatina
reorganização da economia europeia, experimentaram os Estados Unidos uma extraordinária
crise de demanda. Como o capitalismo, naquele tempo, não tinha ainda desenvolvido qualquer
mecanismo de planejamento e organização da economia – visto então como ferramenta típica do
comunismo –, a produção no novo mundo, mesmo após o fim da guerra, continuava a crescer, mas
não encontrava mais mercados para escoamento de seus produtos. O ponto culminante da crise é
marcado, historicamente, pela queda da bolsa de valores de Nova York em 1929.
No transcorrer da Segunda Guerra Mundial, de novo a produção europeia não se encontrava
em condições de atender aos seus tradicionais mercados dos tempos de paz. Uma vez mais, a
produção norte- -americana cresceu, no embalo das demandas surgidas nesses mercados. A dura
lição, porém, tinha sido aprendida. Causas e reflexos das crises de demanda eram já bem
conhecidos dos economistas. Assim, em 1944, quando era possível razoavelmente antever que os
Estados Unidos sairiam vencedores do conflito mundial, reuniram-se em Bretton Woods
representantes de cerca de meia centena de economias capitalistas, para começarem a
estruturação da ordem econômica do pós-guerra. Dessa Conferência resultou a criação do Fundo
Monetário Internacional (FMI) e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento
(BIRD). O ouro foi substituído pelo dólar norte-americano como padrão de referência na avaliação
das moedas, num modelo que sobreviveu até a crise do petróleo de 1973. E, principalmente, como
meio de ampliação dos mercados abertos à economia norte-americana, “decretou-se” o fim da era
colonial e seus entraves comerciais – processo inteiramente concluído apenas em 1974, com a
Revolução dos Cravos em Portugal.
Os diferentes cenários em que se encontrou a economia norte -americana no fim das duas
guerras mundiais ilustram uma necessidade vital do sistema capitalista: a constante ampliação do
mercado consumidor. O capitalismo tem sede de mercados. No regime pautado pela liberdade de
iniciativa, quando o processo de formação de novos mercados se detém ou regride, a produção
não encontra seu destino e se perde. Junto com ela, perdem-se os investimentos e os valiosos
recursos humanos, materiais e intelectuais nela alocados. Criar constantemente novos mercados
de consumo é a seiva vital do sistema econômico capitalista. Uma das razões da força da economia
norte-americana está em ter sido a primeira a perceber que remunerar bem o operário é um modo
de ampliar o mercado consumidor. Esta noção, de todo estranha ao capitalismo do século XIX,
corresponde a aspecto menos conhecido do fordismo. Sua difusão na indústria norte-americana na
primeira metade do século passado foi certamente um dos fatores que impulsionou os Estados
Unidos à posição de potência econômica.
A necessidade vital do capitalismo de constante ampliação de mercados torna inevitável o
processo de globalização. Por ele, fronteiras nacionais vão perdendo importância e até mesmo
qualquer sentido para fins de produção e circulação de bens e serviços. Integram-se
paulatinamente as economias dos países envolvidos no processo, do qual uma das etapas é a
criação do mercado comum.
Criar mercado comum significa, em termos jurídicos, harmonizar as normas referentes a
direito-custo, isto é, aquelas que interferem na formação dos preços dos produtos ou serviços
(Coelho, 1998, 1:47/54). O direito das obrigações possui diversas normas dessa natureza. Por isso,
em qualquer processo de integração econômica, ele passa necessariamente por alterações. O
objetivo da harmonização é tornar idênticas as condições de competitividade em todos os países
que formam o mercado comum. Para entender este processo, retorne-se novamente no tempo.
Até a Segunda Grande Guerra, o espírito de integração econômica e união política que viceja
hoje na Europa era simplesmente impensável. Além de viverem em constante estado de
beligerância, competindo por colônias fornecedoras de matéria-prima e consumidoras de produtos
industrializados, os principais povos europeus procuravam distanciar-se uns dos outros no plano
cultural, marcando ou acentuando características que reivindicavam como únicas. As leis e a
doutrina jurídica de direito privado, nesse contexto, serviam de campo fértil para as manifestações
de afirmação nacional. O Código Civil alemão, que entrou em vigor em 1900, revestiu-se de uma
estrutura peculiar, notavelmente diversa da do monumental Código Napoleão, de 1804. Naquele,
ademais, um dos conceitos nucleares é o de “negócio jurídico” (Rechtsgeschäft), cuja diferença em
relação ao de “ato jurídico” (acte juridique), construído pela doutrina francesa, é de extrema
sutileza (Cap. 10, item 3) e, na minha opinião, não vale os extraordinários esforços teóricos que
têm consumido inacreditável quantidade de tempo e papel. Não se trata, como querem alguns
autores, de noções cientificamente evoluídas uma da outra, mas apenas de diferentes modos de
cuidar do mesmo assunto, dando ênfase a aspectos distintos (para uma visão no sentido oposto:
Gomes, 1967:49/67). A Itália daquele tempo também buscou na lei e na teoria jurídica de direito
privado elementos de afirmação da nacionalidade, em contraposição aos demais povos de grande
presença econômica e cultural da Europa. Assim, ao reformular seu Código Civil em plena guerra,
em 1942, produziu um diploma que procurou afastar-se tanto da estrutura francesa quanto da
alemã e que, para isso, apresentava como particular inovação a disciplina de matérias até então
afetas, na cultura jurídica do continente, ao direito comercial, e tratadas em código próprio. A
teoria da empresa concebida e desenvolvida por autores italianos do fim do século XIX e início do
XX também é apresentada, muitas vezes, como evolução da teoria dos atos de comércio do direito
francês. A nacionalidade, principalmente nos países europeus de unificação tardia (Alemanha e
Itália), enxergou na formulação de novos conceitos e abordagens dos temas de direito privado um
importantíssimo instrumento de afirmação.
Os tempos de agora são outros. França, Alemanha e Itália não competem mais por colônias. Ao
contrário, são nações envolvidas num extraordinário esforço de integração econômica que tende a
conduzir toda a Europa, em poucas décadas, a ensaios de unificação política. A globalização –
como visto, um processo irrefreável – tem na experiência europeia o modelo de superação das
fronteiras nacionais a ser provavelmente seguido em todo o mundo. Em 1995, quando entrou em
vigor o Tratado da OHADA (Organisation pour l'Harmonisation en Afrique du Droit des Affaires –
Organização pela Harmonização na África do Direito dos Negócios), dezesseis países da África
Central de colonização influenciada pela França (Benim, Burkina Fasso, Camarões, República
Centro-Africana, Comoro, Congo, Costa do Marfim, Gabão, Chade, Guiné, Guiné-Bissau, Guiné
Equatorial, Mali, Níger, Senegal e Togo) deram início ao processo de convergência de seus direitos
das obrigações comerciais (Martor-Pilkington-Sellers-Thouvenot, 2002). Um processo sem dúvida
lento e altamente complexo, mas indispensável à integração econômica. A harmonização do
direito levada a efeito pela OHADA tem alcançado resultados reconhecidos no mundo todo.
O direito das obrigações deve necessariamente passar por mudanças no processo de formação
do mercado comum porque, como dito, possui muitas normas de direito-custo. Se dois países
desejam integrar-se economicamente, formando um mercado comum, os empresários com sede
em cada um deles devem enfrentar, no outro país, as mesmas condições de concorrência que
encontra no seu. Se num desses países vigorar norma que imputa aos empresários maiores
responsabilidades do que no outro, haverá desequilíbrio entre as condições de competitividade. A
regra jurídica que agrava a responsabilidade do empresário representa uma vantagem
competitiva para os que nele estão sediados e uma desvantagem competitiva para os estrangeiros.
A harmonização do direito-custo visa eliminar vantagens e desvantagens dessa natureza, de modo
que todos possam competir em igualdade de condições nos países integrantes do mercado comum.
Em razão do processo de globalização necessário ao capitalismo como meio de ampliação dos mercados,
o direito das obrigações, nas partes em que repercute na formação dos preços de produtos e serviços
(responsabilidade por acidente de consumo e repercussões da inexecução dos contratos), deve ser e tem sido
harmonizado, com o objetivo de eliminar vantagens e desvantagens competitivas.
Neste sentido, no da eliminação das diferenças no âmbito do direito das obrigações, é que deve
ser considerada, por exemplo, a profunda mudança por que passou o Código Civil alemão em 2002
(ano em que a reforma entrou em vigor). Alguns exemplos servem para demonstrá-lo. Antes,
cuidava a lei alemã de nada menos que quatro diferentes hipóteses de inexecução involuntária
por impossibilidade da prestação (subjetiva ou objetiva, por causa concomitante ou posterior); a
partir da reforma, cuida-se do assunto de forma unitária, como nos demais direitos de tradição
românica, atribuindo-se as mesmas consequências jurídicas a qualquer caso de inexecução
involuntária. De outro lado, embora não tenha chegado ao ponto de incorporar a “cláusula
resolutiva tácita” originária do direito francês, a reforma simplificou consideravelmente as
formalidades exigidas na resolução dos contratos por inadimplemento (Ranieri, 2002).
Aperfeiçoou-se, ademais, a disciplina das cláusulas gerais de negócio (Allgemeine
Geschäftsbedingungen) para, por exemplo, invalidar restrições ou exoneração de responsabilidade
do vendedor em caso de reserva mental dolosa (arglistiges Verschweigen des Mangels) (Bauerreis,
2002) e reviu-se a disciplina do contrato de empreitada, instituto contratual que, no direito alemão,
tem sentido muito abrangente (alcança, p. ex., o que chamamos, no Brasil, de contrato de
prestação de serviços) (Heseler, 2002).
É certo que o Código Civil alemão continua empregando uma quase impenetrável linguagem
hermética (diz-se que ele continua a ser uma lei feita por professores universitários para
professores universitários) e conserva a original estrutura dada pela formulação pandectista
(parte geral e especial). São elementos que o individualizam, sob o ponto de vista da cultura
jurídica, e cuja conservação não prejudica a integração econômica. É a saudável e esperançosa
manifestação de que há espaço, na globalização, para o cultivo da diversidade cultural (Witz,
2002). Por outro lado, as mudanças que não eliminaram diferenças relativamente ao direito das
obrigações francês – como na disciplina da prescrição, por exemplo – restringiram-se a temas que
não se expressam por normas de direito-custo e, portanto, não repercutem nas condições de
competição (Bauerreis, 2002).
Os campos do direito das obrigações mais sensíveis ao processo de integração econômica são os
da responsabilidade civil (principalmente por acidentes de consumo) e da inexecução dos
contratos (voluntária ou involuntária). Conforme as regras vigentes sobre estas matérias,
vantagens e desvantagens competitivas se estabelecem, travando o desenvolvimento do processo
integrativo. Isso porque os empresários, ao comporem os preços dos produtos ou serviços que
oferecem ao mercado, embutem, com o objetivo de preservar suas margens de lucro, taxas de
riscos maiores ou menores em função das responsabilidades que lhes possam ser atribuídas, ou
das consequências da inadimplência ou insolvência do devedor ou mesmo da frustração de
faturamento por impossibilidade da prestação. Maiores responsabilidades ou riscos imputados aos
empresários implicam maiores preços ao consumidor: não há como fugir desta relação sem
desestimular a iniciativa privada. O direito a aplicar, por isso, deve ser o mesmo em todo o
mercado comum, sempre que puder influir a composição dos preços dos produtos ou serviços. E é
este o caso das áreas sensíveis do direito das obrigações a que me referi.
Neste contexto, vale a pena referência à condenação da França, em abril de 2002, por má
transposição ao seu direito interno da Diretiva sobre responsabilidade por acidente de consumo
(“fato do produto”). A Corte de Justiça da Comunidade Europeia considerou que a norma interna
francesa continha disposições que favoreciam os consumidores mais do que o estabelecido como
padrão para os países da C.E. E isso criava uma vantagem competitiva para os empresários
estabelecidos em França (Canivet, 2003:13). Aparentemente, parece um paradoxo. Não é, porém. O
empresário alemão, por exemplo, ao vender seus produtos no mercado francês ficaria sujeito a
condições mais gravosas do que as vigentes em seu país. Teria mais dificuldade, portanto, de
competir pelo consumidor francês. O empresário francês, por sua vez, ao vender suas mercadorias
na Alemanha estaria sujeito a regras de responsabilização menos gravosas do que as adotadas em
França e teria, desse modo, mais facilidade para competir pelo consumidor alemão. Assim, embora
a lei interna francesa sobre responsabilidade por acidente de consumo protegesse mais o
consumidor do que a vigente nos outros países da C.E., ela é condenável por sua incompatibilidade
com o objetivo do processo de integração econômica, isto é, com a incontornável necessidade do
sistema capitalista de constantemente ampliar os mercados.
Quanto ao Brasil, quando o processo de integração econômica em que se encontra envolvido
(Mercosul) deslanchar, certamente teremos que negociar com nossos parceiros a harmonização do
direito das obrigações, nos assuntos em que repercute na formação dos preços de produtos ou
serviços.
© desta edição [2020]
2020 - 02 - 12
Curso de Direito Civil - Vol. 2 - Ed. 2020
PÁGINA RB-8.1
SEGUNDA PARTE - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
CAPÍTULO 20. ATOS UNILATERAIS
Capítulo 20. ATOS UNILATERAIS
1. Negócios jurídicos unilaterais
As declarações unilaterais de vontade de um sujeito de direito, na expressiva maioria das vezes,
é fato irrelevante para o direito das obrigações. Se a pessoa manifesta sozinha a vontade de se
tornar credora ou devedora de alguém, isto não costuma ser suficiente para vinculá-la ativa ou
passivamente. Quando tem por causa a vontade dos sujeitos de direito, o vínculo obrigacional,
para se constituir, depende, em geral, da convergência de declarações de todas as partes. Falo dos
contratos, que sempre pressupõem o encontro de vontades dos sujeitos contratantes – mesmo que
o vínculo dele nascido importe a constituição de obrigações para somente um deles. Se a Antonio
interessa um bem ou serviço de Benedito, uma declaração unilateral de vontade dele não costuma
bastar para satisfazer seu interesse. Em geral, para Antonio ter o que quer, precisará contar com a
convergente declaração de vontade de Benedito.
Há, contudo, algumas poucas hipóteses em que a constituição da obrigação deriva de
declaração de vontade de uma das partes apenas, ou seja, de negócio jurídico unilateral. Nelas,
basta que um sujeito de direito manifeste determinada vontade para que surja a obrigação,
vinculando-o ativa ou passivamente a outrem.
Essas hipóteses têm despertado, para a tecnologia civilista, algumas dificuldades na
classificação das obrigações. Doutrinadores de todo o mundo contornam essas dificuldades
estudando-as em separado, sem preocupação com a construção de conceitos de maior amplitude
em que se pudessem incluí-las. Exceção se encontra no direito francês. Lá, ao lado da maneira
tradicional de tratar a matéria, que faz eco a lições do direito romano e costuma classificar
algumas dessas hipóteses como “quase contratos” (Hubrecht-Vermelle, 1947:151/152), encontramse também tentativas de agrupá-las de modo diverso, como, por exemplo, a que toma por
referência o “enriquecimento injusto externo aos contratos”, vale dizer, a transmissão ilegítima de
bem ou bens do patrimônio de um sujeito para o de outro (Voirin-Goubeaux, 1999:423/433). A
significativa dificuldade de classificar as obrigações derivadas de negócios unilaterais é, de
qualquer modo, anotada pela doutrina francesa (Mazeaud-Chabas, 1998:836).
Voltando-se os olhos para o direito positivo, nota-se que os códigos dos países de tradição
românica costumam evitar menções a categorias, ao disporem sobre o assunto. Mesmo quando
disciplinam os negócios jurídicos unilaterais em dispositivos próximos, como é o caso da
codificação italiana, não os reúnem sob qualquer designação genérica. O Código Civil brasileiro –
neste particular afastando-se dos diplomas que influenciaram sua estrutura (os Códigos alemão e
italiano) – reúne tais obrigações a partir do conceito de “atos unilaterais” (Título VII do Livro I da
Parte Especial: arts. 854 a 886). Não prevê, contudo, como seria de se esperar dum esforço de
sistematização, nenhuma norma introdutória ou geral aplicável a todas as obrigações colecionadas
sob a rubrica – e isto é mais um sinal da dificuldade em que bate o tema. A solução do legislador
brasileiro, embora criticável (Noronha, 2003:403), serve, porém, como ponto de partida para a
análise dessas obrigações.
São quatro os atos unilaterais de direito civil: promessa de recompensa, gestão de negócios,
pagamento indevido e enriquecimento sem causa.
Obrigações podem ser geradas por negócio jurídico unilateral. São civis quatro destas obrigações:
promessa de recompensa, gestão de negócios, pagamento indevido e enriquecimento sem causa. A primeira
é auto-obrigação (quem declara se vincula como devedor), enquanto as duas seguintes, alter – obrigações
(quem declara vincula-se como credor) e a última, daquela ou desta espécie.
As obrigações decorrentes de negócios jurídicos unilaterais dividem-se em duas classes: a das
auto-obrigações e a das alter-obrigações. Na primeira, o sujeito de direito que faz a declaração
unilateral de vontade obriga a si próprio. No campo das obrigações civis, inclui-se nesta classe a
promessa de recompensa. Quem promete a recompensa auto- -obriga-se a pagá-la a quem cumprir
as condições ou prestar os serviços indicados na promessa. A declaração do promitente gera sua
obrigação passiva. Em outros campos jurídicos estudam-se as demais auto-obrigações, como a
vinculação da oferta do fornecedor ao mercado de consumo (tratada no direito do consumidor) ou
as obrigações cambiais (no direito comercial).
Por sua vez, na classe das alter-obrigações, quem faz a declaração unilateral de vontade não se
obriga, mas a outrem. São duas as obrigações civis, em que a declaração de vontade de um sujeito
curiosamente obriga outro a pagar-lhe algo: gestão de negócios e pagamento indevido. Assim, os
atos praticados pelo gestor perante terceiros, se presentes os requisitos legais, obrigam o dono do
negócio; além disso, se alguém paga a quem não tem direito ao crédito, o negócio jurídico
praticado pelo solvens gera para quem recebeu indevidamente a obrigação de restituir o indébito.
Também fora do direito civil, estudam-se algumas alter-obrigações. É o caso do exercício do direito
de retirada por acionistas ou quotistas, objeto de estudo do direito comercial. Ao exercer esse
direito nas hipóteses autorizadas por lei, o sócio, com sua declaração unilateral de vontade, gera
para a sociedade três obrigações: calcular o valor da participação que ele titulariza, reembolsarlhe esse valor e formalizar o desligamento pelo ato societário adequado.
Finalmente, o enriquecimento sem causa pode consistir numa auto-obrigação ou alterobrigação. Em geral, quem se enriquece indevidamente torna-se obrigado a compensar o
prejudicado em razão dos negócios jurídicos que praticou. Há, contudo, situações em que a
declaração do empobrecido origina não só a ilegítima transmissão de bens, serviços ou valores,
como também a obrigação de o enriquecido restituir o indevidamente transmitido ou compensar o
prejuízo. É o caso do professor particular que, anos a fio, leciona sem receber honorários. É dele,
portanto, o ato negocial que deu ensejo não só ao enriquecimento indevido do pupilo, como de sua
obrigação de indenizá-lo.
Em suma, a declaração negocial exclusiva de uma das partes pode implicar sua vinculação a
obrigação ativa ou passiva, isto é, à titularidade de crédito ou de débito.
2. Promessa de recompensa
Por vezes, sujeitos de direitos anunciam a disposição de recompensarem quem preencha
determinada condição ou faça algo. É comum, por exemplo, donos de animais de estimação
perdidos valerem-se de faixas ou cartazes, afixados proximamente aos locais em que se perderam
os bichinhos, para divulgar que pagarão por informações que os levem ao encontro deles.
Também o é empresas promoverem concursos artísticos, prometendo dar aos escolhidos (pelo
público ou por uma equipe de especialistas) um troféu ou eventualmente patrocínio e dinheiro.
São exemplos de negócios jurídicos unilaterais chamados de promessa de recompensa.
O sujeito que faz a promessa de recompensa é denominado “promitente”. Ele se vincula aos
termos de sua declaração de modo a tornar-se devedor de tantos quantos preencham as condições
que estabeleceu ou prestem o serviço que deseja (CC, art. 854). Em decorrência, quem quer que as
tenha atendido ou feito o serviço tem direito de crédito perante o promitente e pode exigir o
cumprimento da promessa – quer dizer, a recompensa –, inclusive em juízo. São irrelevantes as
razões que motivaram o credor; ainda que tenha atendido às condições da promessa ou prestado o
serviço exclusivamente por interesse em receber a recompensa, o promitente está obrigado ao
prometido (CC, art. 855).
Pode-se prometer recompensa em função de qualquer ato, fato, coisa, fazer ou condição,
segundo a exclusiva vontade do sujeito que promete. O objeto a recompensar pode ser uma obra
(literária, musical, artística, jurídica etc.), descoberta (arqueológica, científica etc.), informação
(paradeiro de pessoa ou animal), prestação de serviços (concurso de arquitetos), um mero fazer
(ato caritativo) ou qualquer bem, conduta ou valor do interesse, mediato ou imediato, do
promitente. Exige-se apenas que o objeto seja lícito. Prometer recompensar crime ou ato ilícito
civil ou administrativo é negócio jurídico nulo: não obriga o promitente nem beneficia quem
atender à promessa (CC, art. 166, II).
Quem declara publicamente que recompensará o atendimento a certas condições ou determinada
prestação de serviços tornar-se-á devedor de tantos quantos as atendam ou os prestem.
A promessa admite qualquer forma, escrita ou não. Como referido no início, faixas espalhadas
em locais públicos veiculam validamente promessas de recompensar. “Edital” é o nome que se
costuma dar ao instrumento escrito em que se fixam as condições da promessa. Ele deve ter a
publicidade que o promitente considerar suficiente aos objetivos de seu ato. Se está procurando
pessoa que viu pela última vez numa certa cidade do interior de Minas Gerais, pode mandar
distribuir panfletos apenas lá. Se quer promover concurso nacional de premiação de talentos, deve
valer-se de anúncios na imprensa escrita ou televisão. O alcance da divulgação que o promitente
dá à sua promessa é irrelevante para fins de constituição da obrigação. Mesmo na hipótese de ter
sido divulgado o edital apenas entre alguns poucos conhecidos, obriga-se o promitente se se
apresentar alguém que atendeu às condições estabelecidas ou fez os serviços referidos. Ao
contrário do que costuma ensinar a tecnologia civilista (cf., por todos, Gomes, 1961:243), a
publicidade do anúncio não é condição de validade da promessa de recompensa, mas apenas de
sua eficácia.
Eventuais omissões do edital serão supridas exclusivamente pela vontade do promitente. Como
se trata de negócio unilateral, os destinatários da promessa, incluindo os que já se tenham
empenhado no preenchimento das condições para recebimento da recompensa ou na prestação do
serviço, e mesmo os credores, isto é, os que já lograram alcançar o objeto, não participam do ato.
Se o promitente se esquecera de especificar o local de apresentação dos interessados ou redigira
cláusula sobre determinada condição de modo obscuro, por exemplo, somente a sua vontade é
eficaz na definição faltante ou no aclaramento dos termos da promessa. Qualquer lacuna na
declaração que deu origem à promessa de recompensa será, portanto, suprida exclusivamente
pelo mesmo sujeito de direito que a fez (o promitente) ou por quem ele nomear. Nos editais dos
concursos privados, aliás, é comum prever cláusula sobre colmatação de lacunas atribuindo o
poder para fazê-la aos mesmos julgadores das obras ou trabalhos concorrentes (algo como “os
casos omissos serão decididos pelos jurados”).
Somente em uma hipótese deve-se admitir a interferência do Judiciário na revisão do conteúdo
da promessa de recompensa: a de omissões no edital indevidamente supridas pelo promitente.
Como dito acima, as lacunas do edital são colmatadas pela vontade de quem fez a promessa. Não
pode ele, porém, exercer abusivamente seu direito. Se, ao definir as matérias anteriormente
omissas, o promitente frustrar legítimas expectativas dos destinatários que preencheram as
condições ou prestaram os serviços, o juiz pode alterar a declaração do devedor. Se, por exemplo, a
promessa não quantificava a recompensa oferecida (o edital usa expressões como “gratifica-se
bem” ou algo semelhante), uma vez preenchida a condição ou prestado o serviço por um dos
destinatários, o promitente não pode pretender pagar-lhe valor irrisório relativamente ao proveito
que teve. Se o fizer, cabe ao juiz aumentar o valor devido (Monteiro, 2001, 5:393).
A promessa de recompensa pode ser feita com ou sem prazo determinado. No primeiro caso, o
promitente fica vinculado aos termos da promessa enquanto não se der o termo que fixou. Ela é,
então, irrevogável. Diz a lei que, ao fixar o prazo, o promitente renuncia ao direito de retirar a
oferta durante seu transcurso (CC, art. 856, in fine). Os destinatários do edital que se interessarem
pela recompensa prometida com prazo têm assegurado, assim, que, vindo a cumprir as condições
ou a prestar os serviços no tempo assinalado, tornar-se-ão credores do promitente. Nos concursos,
a promessa de recompensa deve ser obrigatoriamente feita com prazo, sob pena de nulidade (CC,
art. 859, caput).
Já no caso da promessa sem prazo, o promitente pode revogá-la, desde que dê à declaração
revogatória a mesma publicidade do edital. Para ser revogável, portanto, a promessa não pode ser
feita com prazo (CC, art. 856, primeira parte). Em sendo a promessa revogada, a lei assegura aos
candidatos de boa-fé que tiverem feito despesas com o objetivo de ganhar a recompensa o direito
de serem reembolsados. Note-se que os candidatos não podem pleitear indenização por perdas e
danos, na medida em que o promitente não incorreu em nenhuma ilegalidade ao revogar a
promessa. A lei reconhece-lhes apenas o direito ao reembolso das despesas, sem os consectários do
inadimplemento (a menos, claro está, que a execução da obrigação de reembolsar tenha que ser
judicial, por não a ter o promitente cumprido espontaneamente).
Se o objeto pretendido pelo promitente foi realizável por mais de uma pessoa, a primeira que a
executar será a titular do crédito (CC, art. 857). Veja que o credor não será necessariamente o
primeiro a apresentar-se ao promitente pleiteando a recompensa, mas sim quem tiver atendido às
condições da promessa em primeiro lugar. Se, posteriormente ao pagamento em favor do primeiro
candidato a se apresentar, restar provado que era outro o titular do crédito, terá este direito à
recompensa e será aquele obrigado a restituir o indébito. Quando for simultâneo o atendimento às
condições do edital, os candidatos dividirão a recompensa, se for ela divisível; caso contrário,
proceder-se-á a sorteio, obrigando-se o sorteado a pagar ao outro (ou outros) a quota-parte
correspondente (CC, art. 858). Registro que têm essas normas natureza claramente supletiva. Se o
promitente estabelecer, no edital ou noutro instrumento da promessa, que a recompensa será
dada ao primeiro candidato que se apresentar, ainda que não tenha sido ele o primeiro a executar,
ou qualquer outra solução para a hipótese de simultaneidade na execução, prevalecerá sua
vontade em detrimento dos preceitos da lei.
Os destinatários da promessa de recompensa são inteiramente livres para concorrer ou não ao
edital. Por isso, como ninguém está obrigado a atender à promessa, considera-se que quem se
interessa por fazê-la adere integralmente aos termos unilaterais do promitente. Aceita, sem
possibilidade de reservas, todas as condições estabelecidas unilateralmente pelo promitente para
tornar-se devedor. A necessária adesão dos candidatos à recompensa aos termos da promessa é
particularmente importante no deslinde de certas questões relacionadas a dois tipos deste negócio
unilateral: os concursos de mérito (item 2.1) e os promocionais (item 2.2).
2.1. Concursos de mérito
Sempre que um sujeito de direito privado dispõe-se a premiar alguém em função do mérito de
seu trabalho, convocando os interessados a se submeterem a julgamento, realiza o negócio jurídico
unilateral de promessa de recompensa. São exemplos destes concursos: Prêmio TIM de música,
Bolsa Vitae, Prêmio Eldorado para jovens instrumentistas e outros.
Em princípio, o promitente é inteiramente livre para fixar as condições para a constituição de
sua obrigação. Tendo por fundamento a unilateral manifestação de vontade do promitente, a
promessa de recompensa reflete os interesses dele. Se uma fundação quiser, por exemplo, premiar
jovens cientistas com o objetivo de incentivar a ciência brasileira, ela pode definir, por exemplo,
que só especialistas com determinada formação superior, com menos de certa idade e nascidos no
Brasil estão aptos a se habilitar. Mas, embora seja negócio jurídico privado, e, portanto, informado
pelo princípio da autonomia da vontade, a promessa de recompensa não pode estar condicionada
a critérios de habilitação preconceituosos ou discriminatórios. Não são admissíveis condições de
habilitação que discriminem os candidatos em função de raça, credo, sexo ou outras diferenças
que importem barreiras jurídicas ou socialmente reprováveis. Se a mesma fundação inserir, por
hipótese, entre as condições do prêmio ser o cientista do sexo masculino ou ressalvar sua
obrigação perante candidatos de ascendência árabe, a condição discriminatória é ineficaz. Note-se
que a discriminação, embora ineficaz, não invalida a promessa. Quer dizer, o promitente continua
obrigado ao prometido, desconsiderada apenas a preconceituosa restrição.
Mas se há essa limitação à vontade do promitente no que diz respeito aos critérios de
habilitação dos candidatos, não existem restrições ou interferências quanto ao julgamento do
mérito dos trabalhos. O promitente – ou o julgador ou julgadores por ele nomeados – tem total
liberdade para escolher o candidato a quem será dada a recompensa.
Em geral, o exame do atendimento a todas as condições do edital é objetivo. Se a promessa é de
recompensar prestação de serviços, informação, conduta, sorte ou qualquer objeto não criativo, a
constituição da obrigação não pode ficar sujeita à livre apreciação do promitente. Quem atende à
condição ou presta o serviço é credor, e isto decorre de verificação objetiva dos termos da
promessa feita. Quando, porém, se trata de concurso de mérito destinado a recompensar criação
intelectual, como obra de arte, invenção ou talento artístico, o exame do atendimento das
condições de mérito será inevitavelmente subjetivo. A diferença é relevante, na medida em que
somente no primeiro caso pode o juiz interferir na individuação do credor da recompensa.
Imagine que o promitente se propôs a recompensar quem lhe trouxesse informações fidedignas do
paradeiro de certa pessoa ou animal. Se alguém lhe fornece informação, o atendimento às
condições do edital será aferido de modo objetivo. Caso o promitente não lhe pague a recompensa,
a pretexto de não terem sido úteis as informações prestadas, o Judiciário pode ser acionado para
examiná-las e decidir se o candidato tem o crédito ou não. Mas, se a promessa de recompensa tem
por objeto a melhor obra ficcional brasileira do ano, a escolha cabe exclusivamente à pessoa ou
pessoas designadas pelo promitente para julgar o mérito dos trabalhos concorrentes. A decisão
desses julgadores obriga os interessados e não pode ser revista em juízo quanto ao mérito. Quer
dizer, embora o juiz possa invalidar decisões adotadas em afronta à lei (que inabilitou obra por
força de discriminação sexual, p. ex.), ele não pode premiar trabalho diverso simplesmente porque
o considera de melhor qualidade literária que o eleito pelos julgadores nomeados pelo promitente
(ou, na falta deles, por este mesmo). Apenas o promitente ou os julgadores por ele nomeados,
ademais, podem determinar a repartição da recompensa na hipótese de empate, já que somente
eles têm poder para considerar que dois ou mais trabalhos possuem iguais méritos (CC, art. 859, §§
1.º a 3.º).
Os concursos são uma espécie de promessa de recompensa. Para serem válidos, devem ser estabelecidos
com prazo, o que os torna irrevogáveis. Além disso, quando tiverem por objeto premiar obra de criação
intelectual, a escolha do credor entre os candidatos cabe apenas ao julgador ou julgadores nomeados pelo
promitente (e, na falta deles, a este mesmo). A avaliação do mérito dos trabalhos concorrentes é subjetiva e
insuscetível de revisão judicial.
Outra especificidade dos concursos de mérito diz respeito à titularidade do direito do autor dos
trabalhos vencedores. A regra é de que “as obras premiadas só ficarão pertencendo ao promitente
se assim for estipulado na publicação da promessa” (CC, art. 860). Desse modo, em princípio, o
candidato vencedor continua titularizando os direitos de autor, a menos que o edital do concurso
contemple cláusula em sentido diverso.
Quando o edital do concurso estabelece a transferência da titularidade da obra premiada para
o promitente não é necessária nenhuma específica declaração de vontade do seu autor neste
sentido, para que a transferência se opere. O simples ato de participar do certame significa a
adesão integral do autor à condição. Com ênfase, qualquer um que se inscreva no concurso
manifesta a concordância em cumprir por completo as condições do edital, entre as quais, se
houver, a transmissão dos direitos referida, até mesmo para ter acesso à prometida recompensa.
Considera-se que, senhor pleno de seus interesses, qualquer candidato inscrito no concurso deu
por equilibrada a troca: atender todas as condições do edital para, em contrapartida,
eventualmente receber a recompensa. Se reputa excessivo o atendimento a qualquer das
condições impostas pelo promitente quando comparadas ao prêmio oferecido, o destinatário do
edital simplesmente não deve participar do concurso.
2.2. Concursos promocionais
Uma das formas de os empresários promoverem seus produtos ou serviços, com o objetivo de
estimular seu consumo e vender mais, consiste na realização de concursos. São conhecidíssimos os
instrumentos: vales-brindes do tipo “achou, ganhou”, coleção de um número mínimo de
embalagens (ou de parte delas), sorteio em programas de televisão etc. Estes concursos
promocionais só podem ser organizados mediante prévia autorização do governo (Lei n. 5.768/71,
art. 1.º). O ato administrativo autorizador, contudo, visa instrumentalizar o controle da adequada
arrecadação dos tributos e não interfere nas relações entre o empresário que promove o concurso
e os participantes. Esta relação é regida pelas normas gerais do direito do consumidor e, em vista
da falta de preceitos específicos no CDC, pela disciplina da promessa de recompensa do Código
Civil.
Convém, de início, assentar que os consumidores não são inteiramente livres para contratar a
aquisição dos bens ou serviços de que necessitam. A necessidade constrange a liberdade e os força
a praticar atos de consumo independentemente de sua vontade. Além disso, encontram-se em
situação de vulnerabilidade perante os empresários fornecedores, porque não têm todas as
informações sobre os produtos ou serviços oferecidos no mercado. Em função destas
peculiaridades e com o objetivo de proteger os consumidores, a lei estabelece um regime próprio
de disciplina dos contratos de consumo (Coelho, 1998, 3:164/212).
Pois bem, esse regime de disciplina dos contratos de consumo não se aplica aos concursos
promocionais, tendo em vista que a promessa de recompensa é negócio unilateral, não contratual.
Quer dizer, entre os candidatos e o promitente não se estabelece vínculo de contrato. A compra do
produto ou do serviço é, sem dúvida, um contrato de consumo, mas a inscrição no concurso
promocional estabelece entre o fornecedor promitente e o consumidor participante uma relação
de natureza diversa. Trata-se, em suma, de um vínculo não contratual (eventualmente até mesmo
não obrigacional, já que apenas os sorteados serão credores da prestação prometida pelo
fornecedor).
Desse modo, descabe revisão judicial das condições da promessa, com o objetivo de ampliar as
obrigações do promitente ou os direitos de potenciais interessados. É importante ter presente as
diferenças entre a obrigação negocial contratual e a não contratual. Quando o empresário realiza
concurso aberto aos consumidores de seu produto, com o objetivo de ampliar vendas, entre os
interessados em participar do certame e ele não há contrato de adesão cujas cláusulas possam ser
revistas judicialmente na hipótese de abusividade, lesão ou qualquer outro tipo de desrespeito ao
regime dos contratos de consumo. As obrigações do fornecedor perante os vencedores do concurso
decorrem de negócio jurídico unilateral e, portanto, não se sujeitam à tutela contratual dos
consumidores.
Concursos promocionais são promessas de recompensa regidas pelo Código Civil, tendo em vista a
inexistência de normas sobre este tipo de obrigações não negociais no Código de Defesa do Consumidor.
Ao aderir à promessa de recompensa, o consumidor manifesta sua integral concordância
relativamente às condições unilaterais impostas pelo fornecedor. Tem, lembre-se, total liberdade
para participar ou não do concurso, diferentemente da contratação de bens ou serviços de
consumo, que, na maioria das vezes, constrange os consumidores. Não havendo contrato de
adesão, ao juiz não será possível alterar as condições da promessa, a pretexto de coibir eventuais
desequilíbrios entre o atendimento a elas e o prometido. Além disso, não existindo na legislação
específica (o CDC) nenhuma norma a respeito da matéria, aplicam-se as do direito civil. Em
conclusão, o empresário é livre para estabelecer as condições que entende de seu interesse nos
concursos promocionais, e o consumidor é livre para aderir a elas ou não.
3. Gestão de negócios
Normalmente, uma pessoa só pratica atos em nome de outra quando se encontra investida de
poderes de representação, como no caso do mandatário (Cap. 10, item 6). Se determinado negócio
jurídico interessa a alguém, que se encontra impossibilitado, por qualquer razão, de praticá-lo
diretamente, ele pode encarregá-lo a pessoa de sua confiança. Imagine que Carlos deseja adquirir
imóvel num local distante de sua residência e não está em condições de viajar para negociar
diretamente a aquisição (não interessam os motivos que o prendem onde se encontra). Ele pode,
então, nomear Darcy como seu representante, outorgando-lhe mandato para agir em nome dele.
Todos os atos que Darcy praticar representando Carlos são, na verdade, praticados por este. O
devedor da obrigação de pagar o preço e credor da de receber o imóvel é sempre Carlos
(mandante), e não Darcy (mandatário). O representado vincula-se aos atos praticados em seu
nome pelo representante porque assim o quis (sua vontade neste sentido se expressou na outorga
do mandato) ou porque a lei o determinou (como no caso de incapacidade absoluta).
Como dito, em geral, só se praticam atos em nome de outrem sendo representante do dono do
negócio. Há, contudo, alguns atos praticados por quem não é o representante contratual ou legal
do sujeito interessado, mas que acabam importando sua vinculação perante terceiros. Trata-se da
gestão de negócios – figura jurídica classificada, na lei brasileira, entre os atos unilaterais. Nela,
uma pessoa (gestor do negócio) pratica atos em nome e por conta de outra (dono do negócio),
vinculando-a, sem ser representante contratual ou legal dela.
Em princípio, intervir em negócio alheio sem estar para tanto especificamente legitimado, por
lei ou contrato, parece até mesmo injurídico. Mas como a gestão de negócios apenas vincula o
dono em atenção aos seus interesses, não se questiona a pertinência do instituto (Fernandes, 2001,
2:205). Assim, imagine que Evaristo saiba do interesse de Fabrício, colecionador de carros antigos,
de adquirir para sua coleção um Ford modelo T (o famoso Ford Bigode). Considere, então, que
Evaristo, passeando por uma feira de veículos, encontra Germano oferecendo à venda um
cobiçadíssimo carro deste modelo, do ano em que se iniciou sua produção, 1903. Malgrado as
tentativas, não consegue avisar por telefone celular o amigo, mas nota o interesse no negócio por
alguns outros circunstantes. Não há tempo a perder e Evaristo, então, compra o Ford Bigode de
Germano em atenção exclusivamente do interesse de Fabrício. Verificou-se gestão de negócio:
Evaristo atuou como gestor de negócio do qual era dono Fabrício; este se obrigou perante Germano
em razão dos atos praticados por Evaristo.
Para que o dono do negócio se obrigue perante terceiros pelos atos do gestor são dois os
pressupostos: a) pronta comunicação do gestor; b) utilidade do negócio para o dono ou ratificação
dos atos do gestor. Não concorrendo qualquer um deles, o dono do negócio não se torna devedor, e
o terceiro com quem tratou o gestor tem direito de crédito apenas perante este último. No exemplo
acima, ausente qualquer desses pressupostos, o vínculo obrigacional derivado da compra e venda
do veículo de coleção não se constituiria unindo Fabrício a Germano, mas sim Evaristo a Germano,
aquele na situação de comprador e este, na de vendedor.
A gestão de negócios configura-se quando uma pessoa (gestor) pratica atos em nome de outra (dono do
negócio), mesmo não sendo seu representante legal ou contratual.
O gestor deve comunicar imediatamente ao dono a prática de ato em seu nome. Revelando-se útil, em
termos objetivos, o negócio ao dono, impõe-se-lhe ratificá-lo, produzindo a gestão de negócios, em
decorrência, os efeitos de mandato outorgado no dia do seu começo. A ratificação também não pode ser
negada pelo dono quando, em seu nome, o gestor pagou alimentos.
Mesmo não sendo útil o negócio ao dono, a ratificação poderá ser conferida, com ou sem ressalvas.
Comunicação ao dono. Assim que puder, o gestor é obrigado a comunicar ao dono a prática do
ato capaz de vinculá-lo perante terceiros. Trata-se de providência prevista em lei, indispensável à
constituição da obrigação (CC, art. 864). Após enviar a comunicação e enquanto aguarda resposta
do dono, o gestor tem o dever de administrar o negócio “segundo o interesse e a vontade
presumível” daquele (CC, art. 861). Será reembolsado pelo dono por todas as despesas necessárias
ou úteis em que incorrer na administração do negócio, acrescidas de juros legais (Pereira, 1962,
3:379). É do dono, ainda, a responsabilidade por indenizar o gestor, caso este venha a sofrer
qualquer prejuízo em razão da gestão (CC, art. 869, caput, in fine). Por outro lado, se, neste
interregno, o gestor administrar mal o negócio, sem a diligência habitual do administrador
competente, ficará responsável pelos danos causados ao dono (CC, art. 866). No exemplo já
mencionado, Evaristo, tão logo consiga comunicar-se com Fabrício, deve informar-lhe da aquisição
do Ford Bigode. Enquanto se aguarda a resposta de Fabrício, no sentido de confirmar ou não os
atos praticados em seu nome, será da responsabilidade de Evaristo a guarda e conservação do
veículo. Se, por culpa sua, o Ford modelo T adquirido de Germano sofre algum dano, Evaristo deve
ressarcir Fabrício.
Em todo o caso, o gestor administra o negócio sempre no interesse do dono. Se o preterir em
proveito de interesses seus, o gestor responderá por danos derivados inclusive de caso fortuito.
Igual imputação prevê a lei se o gestor fizer operações de grande risco, ainda que o dono as faça
com frequência (CC, art. 868, caput).
Utilidade do negócio. Diz a lei que, “se o negócio for utilmente administrado, cumprirá ao dono
as obrigações contraídas em seu nome” (CC, art. 869, caput, primeira parte). A gestão de negócios
tem, assim, sempre por objeto algo útil sob a perspectiva do sujeito em nome de quem o gestor
agiu. Se o objeto não atende aos interesses do dono, o gestor está, a rigor, administrando negócio
próprio. Deve, por isso, o gestor munir-se de razoável certeza quanto à utilidade do negócio para o
dono, se não quiser assumir o risco de vir a responder pessoalmente pela obrigação. A utilidade do
negócio é mensurada de forma objetiva, em função das circunstâncias que o cercam (CC, art. 869, §
1.º). Quer dizer, se para qualquer sujeito de direito que se encontrasse hipoteticamente na mesma
condição do dono do negócio seria proveitoso realizá-lo, ele é útil.
Se o negócio não for útil ao dono e a gestão lhe trouxer, ademais, prejuízo, o gestor deverá
providenciar para que as coisas retornem ao estado anterior. Caso seja impossível o retorno, ou
não o obtendo o gestor, responderá pela indenização dos prejuízos a que deu causa (CC, art. 863).
Até mesmo na hipótese de danos oriundos de caso fortuito responde o gestor que iniciou negócio
inútil ao dono, a menos que prove que estes teriam se verificado mesmo se ele houvesse se omitido
(CC, art. 862).
Ratificação do dono. O dono do negócio, prontamente informado pelo gestor, deve responder no
sentido de confirmar ou enjeitar os atos praticados em seu nome, para que se constitua sua
obrigação perante terceiros. É a ratificação pelo dono do negócio dos atos praticados pelo gestor
em seu nome um dos pressupostos para obrigar-se.
A ratificação não pode ser negada em duas hipóteses: (i) se o negócio é objetivamente útil ao
dono (Gomes, 1959:437/438); ou (ii) se diz respeito a alimentos por ele devidos (CC, art. 871). Desse
modo, a rigor, o segundo pressuposto para a constituição da obrigação em decorrência de gestão
de negócios consiste na alternativa entre a utilidade destes para o dono ou a ratificação. Sendo útil
o negócio, a ratificação é obrigatória; sendo ratificados os atos, não se indaga de sua utilidade.
Note-se que os atos relacionados ao cumprimento de obrigação alimentar do dono pelo gestor são
tratados de modo particular pela lei, em atenção aos interesses do alimentado: neste caso de
gestão, a utilidade para o dono é presumida em termos absolutos.
De qualquer modo, conferida sem ressalvas a ratificação, retroagem seus efeitos ao dia do
começo da gestão. Todos os atos do gestor legitimam-se com a ratificação, mesmo os anteriormente
praticados.
Quando a ratificação pode ser negada, ao dono é facultado inserir-lhe qualquer ressalva, como
a irretroatividade dos efeitos, limitação da extensão dos negócios, insubsistência de determinada
garantia etc. Os efeitos da ratificação com ressalva projetam-se nos termos nela indicados. Quer
dizer, as ressalvas têm o efeito de limitar as responsabilidades do dono e, consequentemente,
ampliar as do gestor quanto à administração do negócio no período antecedente à ratificação.
Prevê a lei que o ato de confirmação pura e simples projeta os efeitos próprios do contrato de
mandato (CC, art. 873). Conferida sem ressalvas, a ratificação da gestão de negócios importa as
mesmas consequências jurídicas da tempestiva outorga de poderes de representação pelo dono em
favor do gestor. Veja que não se opera a convolação da gestão em mandato. Simplesmente, a lei
imputa à gestão de negócios ratificada sem ressalvas os mesmos efeitos que adviriam da outorga
pelo dono de procuração ao gestor no dia em que ela se iniciou.
4. Pagamento indevido
O pagamento indevido é o feito para quem não titulariza a condição de credor. Do pagamento
indevido decorre a obrigação para o accipiens de restituir o que ilegitimamente recebeu (CC, art.
876). Se Hebe, por equívoco, paga a Irene os R$ 10.000,00 que devia, na verdade, a João, ela realiza
pagamento indevido. Do negócio jurídico de Hebe (o pagamento) decorre a alter-obrigação para
Irene de restituir-lhe aquela quantia.
No plano dos pressupostos subjetivos para a constituição da obrigação de restituir o indébito,
salienta-se caber ao solvens que agiu voluntariamente a prova do erro, e ao que agiu
involuntariamente, a da coação (CC, art. 877). No exemplo, se Hebe pretende ter de volta o dinheiro
entregue a Irene, deve provar que o fez por erro ou coação, que imaginava, por exemplo, ser Irene
procuradora de João (erro) ou que tivera sido forçada a fazer-lhe o pagamento, mesmo sabendo
não ser ela a real credora (coação).
O pressuposto do erro ou coação deve ser dispensado na hipótese de indevido objetivo, como
no caso de pagamento de obrigação nula. Se o solvens paga obrigação absolutamente inválida, o
accipiens recebe prestação a que não tem direito. Caracteriza-se, portanto, o pagamento indevido.
Aqui, não tem importância se o solvens equivocara-se relativamente à validade da obrigação ou se
fora forçado a cumpri-la a despeito do vício. Terá direito, mesmo inexistindo erro ou coação, à
devolução do que entregou por conta da obrigação insubsistente, apenas em razão da nulidade
(Mazeaud-Chabas, 1998:794). Esta regra não se aplica na hipótese de invalidade por ilicitude do
objeto, conforme se examina mais à frente.
Ainda no plano dos pressupostos subjetivos, ressalte-se que, para fins de constituição da
obrigação, é, em princípio, irrelevante se o accipiens recebeu o indébito de boa ou má-fé. Quer
dizer, ele terá a obrigação de restituir, ainda que não tenha recebido o pagamento maliciosamente.
No exemplo, feita a prova do erro ou da coação por Hebe, Irene torna-se obrigada a devolver-lhe os
R$ 10.000,00, mesmo que os tivesse recebido em completa e inegável boa-fé. A boa ou má-fé do
accipiens tem relevância apenas na hipótese de perda ou deterioração da coisa por fortuito, ou na
definição dos direitos que o repetidor titulariza ou dos consectários a que fica obrigado. Diz a lei
que, “aos frutos, acessões, benfeitorias e deteriorações sobrevindas à coisa dada em pagamento
indevido, aplica-se o disposto neste Código sobre o possuidor de boa-fé ou de má-fé, conforme o
caso” (CC, art. 878). Desse modo, se o accipiens estava de boa-fé e a coisa se perdeu ou se deteriorou
por fortuito, está liberado da obrigação de restituir (CC, art. 1.217); ainda, se recebera o pagamento
de boa-fé e agregou à coisa recebida alguma benfeitoria necessária ou útil, terá direito à
indenização (CC, art. 1.219); se estava de má-fé e a coisa se deteriorou ou se perdeu por fortuito,
responderá pela indenização dos danos do solvens, salvo provando que a deterioração ou perda
teriam acontecido mesmo que ela não lhe tivesse sido entregue (CC, art. 1.218), e assim por diante.
Em relação aos pressupostos objetivos da constituição da obrigação, vale lembrar, de início, que
pagamento é, tecnicamente falando, a entrega da prestação ao credor, qualquer que seja sua
natureza. Assim, o conceito não se restringe ao cumprimento de obrigação pecuniária. Quem
cumpre qualquer obrigação de dar, fazer ou não fazer realiza pagamento também; se o fizer com
erro ou coação para pessoa diversa do credor, terá direito à restituição. Imagine que Hebe devia
restituir um bem locado a João, mas inadvertidamente entregou-o a Irene, tomando-a por
representante do locador. Demonstrando o erro, tem direito de receber de volta o mesmo bem
para realizar o pagamento corretamente, isto é, para restituí-lo a João.
Exige a lei, ademais, o pressuposto da licitude do pagamento indevido. Não tem direito à
repetição o solvens que “entregou algo para obter fim ilícito, imoral ou proibido por lei” (CC, art.
883). Se Luiz havia vendido maconha a Maria, mas acabou entregando a droga a Nair, irmã gêmea
da compradora, porque as confundiu, não terá direito à restituição.
Finalmente, se o pagamento indevido diz respeito a obrigação de fazer ou não fazer, o accipiens
deve indenizar o solvens (CC, art. 881). Por evidente, nestes casos não é possível a restituição do
indébito, e, por isso, a lei impõe àquele que se locupletou indevidamente o ressarcimento dos
prejuízos suportados pelo solvens. Considere que Orlando, segurança particular, havia se
comprometido a cuidar da casa de Patrícia. Errou, contudo, a localização da moradia da
contratante dos serviços e acabou zelando pela segurança de bem imóvel pertencente a Queiroz.
Enquanto estava guardando a propriedade, ocorreu uma tentativa de furto que Orlando
diligentemente frustrou. O serviço objeto de pagamento indevido, claro está, não comporta
restituição. Queiroz, porém, é obrigado a indenizar Orlando, na medida do proveito que teve, por
lhe terem sido úteis os serviços do segurança. As consequências do pagamento indevido de
obrigação de fazer ou não fazer aproximam-se do enriquecimento sem causa.
O pagamento é indevido quando o accipiens recebe prestação a que não tem direito. É o caso, por
exemplo, do pagamento em que o solvens errou na identificação do credor ou solveu dívida sujeita a
condição, antes de esta ocorrer. Não se considera indevido, porém, o pagamento feito antes de vencer a
dívida, depois de ela prescrever ou de obrigação natural.
Considera-se indevido o pagamento de obrigação sujeita a condição quando realizado antes de
implementada esta (CC, art. 876). Se a exigibilidade do pagamento depende da implementação de
condição, suspensiva ou resolutiva, o accipiens, ao recebê-lo antes desta, tem o que não lhe é ainda
devido – e, talvez, nunca venha a ser, caso a condição não ocorra. Por isso, deve restituir ao solvens
o indébito. Em situação diversa encontra-se o credor que recebe a prestação antes do vencimento.
Neste caso, não se considera indevido o pagamento porque o transcurso do tempo é um fato
jurídico irresistível. Se a condição pode ou não se realizar, justificando-se a restituição, o
vencimento certamente se dará no futuro. O devedor que cumpre a obrigação antecipadamente,
portanto, não tem direito à restituição do que pagou.
Por outro lado, não configura pagamento indevido o de dívida prescrita. Se o devedor desatento
quanto à fluência do prazo prescricional entrega ao credor a prestação, não tem lugar a
restituição. Como a extinção do direito (ou da pretensão, se se preferir) em razão do decurso do
tempo é prevista pela lei em benefício do devedor, o ato de pagar dívida prescrita deve ter os
mesmos efeitos de uma renúncia. Igualmente não é indevido o pagamento de obrigação natural.
Se o devedor paga dívida que não lhe poderia ser judicialmente exigida, presume-se que o fez por
sua livre vontade. Ao seu turno, o credor da obrigação natural tem direito à prestação, embora não
a possa exigir em juízo. Quando é pago, portanto, recebe o que lhe é devido (CC, art. 882).
5. Enriquecimento sem causa
O enriquecimento, em si, nada tem de imoral ou ilegal. Ao contrário, quando fundado em causa
jurídica legítima, é sempre objeto de proteção pelo direito. A vítima de danos morais, ao ser
indenizada, experimenta necessariamente um enriquecimento patrimonial, já que o dinheiro
recebido não repõe nenhuma perda de bem; destina-se, isto sim, a atenuar a dor causada por
acidente ou conduta culposa de outrem. Nada há de reprovável nesse enriquecimento, nem no
resultante de trabalho honesto e dedicado, de rendimento de valores mobiliários ou investimentos,
de prêmios lotéricos etc. A juridicidade da causa torna o enriquecimento digno de amparo da
ordem jurídica. De outro lado, a falta de fundamento jurídico para a causa do enriquecimento
afasta a proteção da lei.
Enriquecimento sem causa é a vantagem patrimonial auferida por um sujeito de direito sem
fundamento jurídico. O enriquecimento indevido importa a obrigação para o sujeito que auferiu a
vantagem patrimonial infundada (enriquecido) de compensar o sujeito às custas de quem
aumentou seu patrimônio (prejudicado). Na maioria das vezes, o enriquecimento sem causa faz-se
acompanhar do empobrecimento de algum sujeito de direito, mas não é este um elemento
essencial do instituto. A doutrina aponta exemplos em que um sujeito tem vantagem por usar, sem
razão jurídica, recursos alheios e que devem ser tratados como enriquecimento sem causa. Veja
um deles: se alguém ocupa casa de veraneio de outrem sem autorização, sendo certo que o imóvel
estaria de qualquer modo vazio naquele período, dá-se o enriquecimento do ocupante sem o
empobrecimento do proprietário (Nanni, 2003:107 e 236). Desse modo, embora na maioria das
vezes haja concomitante enriquecimento de um e empobrecimento de outro sujeito, a correlação
não é indispensável (em sentido contrário, ver Pereira, 1962, 2:253).
A coibição do enriquecimento sem causa não é uma questão moral. Ao contrário, ela deve ser
feita com vistas à adequada distribuição de riquezas e recursos em sociedade. Note-se que muitas
normas legais encontram seu fundamento racional último na coibição do enriquecimento sem
causa. Por exemplo, o preceito que impõe ao inadimplente a obrigação de pagar correção
monetária do valor devido (CC, art. 389) pode ser, sem dificuldade, descrito como modalidade de
repressão a enriquecimento sem causa. Se o inadimplente não pagasse a correção monetária, em
razão da perda do poder aquisitivo da moeda, ele despenderia menos do que teria despendido se
tivesse sido pontual, e, por sua vez, o credor receberia menos do que teria recebido na hipótese de
adimplemento tempestivo da obrigação. O enriquecimento do devedor inadimplente e o
empobrecimento do credor derivados da ausência de pagamento da correção monetária não
teriam causa jurídica. Outro exemplo: a dívida de jogo não pode ser judicialmente cobrada, no
direito brasileiro (CC, art. 814, caput, primeira parte), porque não há causa jurídica para o
enriquecimento do jogador vitorioso e o empobrecimento do perdedor. A mera sorte não é
considerada, para o nosso direito, fundamento jurídico suficiente à transferência forçada do valor
em jogo do patrimônio deste para o daquele. Seria enriquecimento sem causa, portanto, a
execução judicial desse contrato (Sá, 1973:188). Mais um: a lei proíbe que os contratos que
constituam garantia real contemplem cláusula estabelecendo que o credor se torna proprietário
do bem onerado, na hipótese de inadimplemento do devedor. É a proibição do pacto comissório
nos contratos que instituem penhor, hipoteca, anticrese (CC, art. 1.428). Considera-se que essa
cláusula tem natureza usurária, porque normalmente os bens dados em garantia real de um
crédito têm valor superior ao deste. Se do inadimplemento da obrigação garantida pudesse
decorrer a consolidação da propriedade do credor sobre a coisa onerada, ocorreria inevitável
enriquecimento sem causa: o credor estaria adquirindo coisa mais valiosa pelo preço do seu
crédito.
O sujeito de direito que aufere vantagem patrimonial sem razão jurídica obriga-se perante aquele à custa
de quem enriqueceu. Dependendo do caso, deve restituir o bem ilegitimamente auferido (CC, art. 884),
partilhar lucros ou compor os prejuízos que causou.
O objeto da obrigação nascida do enriquecimento sem causa é a composição dos interesses dos
envolvidos. O enriquecido pode ser obrigado a restituir ao prejudicado o que lucrou
indevidamente, ou parte disso, ou apenas repor os danos que este sofreu. Depende das
circunstâncias em que a vantagem ilegítima foi auferida e da forma mais adequada de compensar
o prejudicado. A lei brasileira, a rigor, trata apenas de uma das hipóteses de enriquecimento sem
causa, a que se traduz pela ilegítima transferência de bem do patrimônio do sujeito prejudicado
para o do enriquecido. Diz: “aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será
obrigado a restituir o indevidamente auferido” (CC, art. 884). É o caso, por exemplo, do vendedor
que já recebeu parcelas do preço da coisa em adiantamento, se ocorre inexecução total
involuntária. Ele deve restituir ao comprador as parcelas recebidas, para não enriquecer sem
causa.
Todavia, na hipótese de uso indevido de bem do prejudicado, o enriquecimento sem causa não
se desconstitui mediante restituição. No exemplo da ocupação da casa de veraneio que não iria ser
usada, o enriquecimento sem causa do ocupante e o prejuízo do proprietário se compõem, sem
dificuldade, com a imposição ao enriquecido da obrigação de pagar o aluguel de mercado pelo uso
do imóvel. Não há restituição de nada suprimido do patrimônio do prejudicado, mas compensação
pelo uso não autorizado de bens dele. Conforme as circunstâncias, aliás, a vantagem patrimonial
auferida pelo enriquecido deve ser dividida com o prejudicado, ou entregue a este. Se o uso não
autorizado de bens ou direitos do prejudicado trouxe acréscimos patrimoniais ao enriquecido, eles
podem pertencer, no todo ou em parte, ao prejudicado. Não estarão sendo propriamente
restituídos a este, porque nunca antes lhe pertenceram. É a hipótese da exploração econômica pelo
enriquecido de uma ideia original do prejudicado. Os lucros advindos da atividade, para que não
se verifique enriquecimento sem causa, devem ser repartidos entre os envolvidos ou, conforme o
caso, entregues ao prejudicado. Depende a consequência da conduta do enriquecido. Se teve
acesso à ideia do prejudicado em conversa com este, é justo que fique com parte dos lucros, mas,
se o acesso foi fraudulento, deve perdê-los todos em favor do prejudicado. A lei brasileira, como
dito, trata apenas de uma das hipóteses de enriquecimento sem causa. A melhor forma de
compensação entre os envolvidos nas demais é construída pela tecnologia jurídica e
jurisprudência.
© desta edição [2020]
2020 - 02 - 12
Curso de Direito Civil - Vol. 2 - Ed. 2020
PÁGINA RB-9.1
TERCEIRA PARTE - RESPONSABILIDADE CIVIL
TERCEIRA PARTE - RESPONSABILIDADE CIVIL
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TERCEIRA PARTE - RESPONSABILIDADE CIVIL
CAPÍTULO 21. INTRODUÇÃO À RESPONSABILIDADE CIVIL
Capítulo 21. INTRODUÇÃO À RESPONSABILIDADE CIVIL
1. Externalidades
Vivendo em sociedade, estamos todos interagindo. A ação ou omissão de qualquer pessoa
interfere com a situação, interesses e bens de outras, para pior ou melhor. Estas interferências por
vezes são chamadas de externalidades, conceito adotado por alguns economistas que se revela útil
também à tecnologia jurídica. O que caracteriza a interação como externalidade é a inexistência
de compensação entre as pessoas envolvidas. Se quem tem a situação piorada pela ação alheia não
é compensado por isso, ou se aquele que ganhou não compensa ninguém pela melhora que
experimentou, a interferência é uma externalidade. Caso contrário, isto é, na hipótese de
compensação dos prejuízos ou ganhos, dá-se a internalização da externalidade. A externalidade é
negativa se a ação de uma pessoa prejudica outra; e positiva, se beneficia.
Se alguém intencionalmente causa dano ao patrimônio de outrem, a convivência em sociedade
pressupõe a obrigação de aquele repor a este os prejuízos causados. Esta interação é externalidade
negativa que deve ser internalizada. Se o será de fato ou não, é questão diversa relacionada à
efetividade da norma jurídica. Na hipótese, por exemplo, de o causador do dano não titularizar em
seu patrimônio bens de valor suficiente à recomposição devida, a vítima quedará prejudicada.
Isto, porém, não altera a natureza da interação – permanece sendo uma externalidade que deve ser
internalizada. Há, de outro lado, uma infindável lista de externalidades que não comportam
internalização. São ações ou omissões de algumas pessoas que prejudicam ou melhoram a
situação, interesses ou bens de outras e que não devem ser compensadas. É também a convivência
em sociedade que pressupõe a inexistência, neste caso, da obrigação de repor prejuízos ou
restituir ganhos.
Ao caminhar pela Avenida Paulista, em São Paulo, respiro ar poluído também pela emissão de
gás carbônico dos ônibus que nela trafegam. Isto, claro, não é bom para minha saúde, mas os
empresários de transporte urbano que exploram linhas naquela via não me devem nada como
indenização. Note, por outro lado, que há menos pessoas nas calçadas daquela avenida porque
algumas viajam nos ônibus postos em circulação no local por aqueles mesmos empresários. Isto
me favorece porque contribui para a desobstrução das calçadas, tornando minha caminhada mais
prazerosa e célere. Nada devo, porém, como paga àqueles empresários de transporte urbano que
me proporcionaram o benefício.
Há muitos outros exemplos de externalidades que não comportam internalização. A
concorrência entre dois empresários que exploram o mesmo segmento de mercado implica
necessariamente mútuas interferências nos respectivos negócios, cuja compensação não pode ser
reclamada (a menos que extrapolados os limites da lealdade competitiva). Se um deles promove
campanha de rebaixamento temporário dos preços (“liquidação”) ou promete sortear automóvel
entre seus consumidores, estas ações podem subtrair clientela do outro. Os prejuízos ou reduções
de ganhos que este último sofre com a queda do faturamento não são compensáveis. O inverso
também ocorre. Imagine que um dos concorrentes deixou de investir o necessário em treinamento
de pessoal e a qualidade do atendimento aos consumidores se deteriora; ou, então, que ele
simplesmente resolve encerrar suas atividades naquele segmento; o aumento da clientela do outro
concorrente representa ganho insuscetível de compensação.
São outras externalidades negativas que não comportam internalização: o incômodo provocado
pelo cheiro da tinta recém-usada na pintura do apartamento vizinho; a lentidão no tráfego nas
proximidades de um shopping center causada pelo excesso de veículos que nele entram e saem; os
transtornos oriundos de greves legais; o desapontamento de não poder assistir ao filme porque a
sala de projeções já está lotada pelas pessoas que chegaram antes. Nestes casos, os atingidos não
têm direito à compensação pelo que sofreram em razão das condutas alheias. E são, enfim,
exemplos de externalidades positivas igualmente não internalizáveis: a melhora do entorno
urbano em decorrência da demolição de velho cortiço e construção, no local, de edifício de
escritórios; a progressão na classificação num concurso ou em vestibular para ingresso em
universidade pela desistência de alguém melhor posicionado; o surgimento da oportunidade de
conquistar a pessoa amada em razão do divórcio dela. Nelas, quem se beneficia não está obrigado
a compensar quem deu ensejo ao benefício.
As interferências positivas ou negativas que cada um de nós sofre e cria para as outras pessoas com
quem convivemos em sociedade são “externalidades” quando não são compensadas. As interferências
compensadas são “internalidades”. As normas de responsabilidade civil cuidam da internalização das
externalidades.
Muitos dos exemplos apresentados acima dizem respeito a assuntos cotidianos, de pouca ou
nenhuma relevância. Quando prejudiciais, importam meros desconfortos ou diminutas perdas que
o atingido absorve sem dificuldades; quando benéficas, representam ganhos ocasionais, que a
maioria das pessoas não se empenha em conseguir. Não cabe concluir disto, porém, que a
externalidade insuscetível de internalização seria a de pequena ou nenhuma repercussão para o
prejudicado ou beneficiado. Não é a irrelevância da externalidade para este que afasta a
internalização. Muitas externalidades não são internalizáveis, a despeito de sua vital importância
para o atingido. Pense no portador de grave doença rara. A indústria farmacêutica não tem
interesse em investir enormes somas de dinheiro na pesquisa e desenvolvimento de remédios
voltados ao tratamento daquele mal por uma fria razão econômica, mas facilmente
compreensível: em vista da raridade da doença, é pequeno o número de potenciais consumidores
e improvável a recuperação dos investimentos. Mesmo os centros de pesquisas públicos não
costumam dedicar-se às doenças raras porque devem fazer uso racional dos recursos de que
dispõem. Como não há dinheiro suficiente para a pesquisa de todas as doenças, o administrador
público deve estabelecer prioridades. Representa o melhor emprego para os recursos públicos sua
destinação à pesquisa de tratamento de surtos, epidemias ou de doenças que atingem muitas
pessoas. Maiores parcelas da população serão beneficiadas com esta hierarquização do que com o
investimento dos mesmos recursos na pesquisa de tratamento de males incomuns. Em suma, o
portador de doença rara é imediatamente atingido pela inexistência de pesquisas científicas, pelas
decisões adotadas no âmbito da indústria farmacêutica ou centros públicos. Sofre prejuízo da mais
extremada relevância para sua vida, que, no entanto, não é passível de compensação.
A internalização de proveitos opera-se, nas sociedades complexas dos nossos tempos, por meio
das regras jurídicas que reprimem o enriquecimento sem causa. Viu-se que essas regras não se
limitam às que especificamente tratam do instituto (CC, arts. 884 a 886), mas espalham-se por
várias searas da ordem jurídica e expressam-se por diferentes meios, como a exigibilidade da
correção monetária no inadimplemento das obrigações, a inexigibilidade de dívida de jogo, a
proibição do pacto comissório (Cap. 20, item 5). De outro lado, a internalização de prejuízos é
viabilizada pelas normas de responsabilidade civil – apenas este aspecto da questão passa a
interessar daqui para diante.
2. Classificação da responsabilidade civil
A responsabilidade civil é a obrigação em que o sujeito ativo pode exigir o pagamento de
indenização do passivo por ter sofrido prejuízo imputado a este último. Classifica-se como
obrigação não negocial, porque sua constituição não deriva de negócio jurídico, isto é, de
manifestação de vontade das partes (contrato) ou de uma delas (ato unilateral). Origina-se, ao
contrário, de ato ilícito ou de fato jurídico. O motorista que desobedece às regras de trânsito e dá
ensejo a acidente torna-se devedor da indenização pelos prejuízos causados: o ato ilícito
(desobediência às regras de trânsito) gera sua responsabilidade civil. A seu turno, o empresário
que fornece ao mercado produto ou serviço defeituoso deve indenizar os prejuízos derivados de
acidente de consumo: o fato jurídico (explorar atividade econômica de fornecimento de produtos
ou serviços) origina, aqui, a responsabilidade civil.
A obrigação de indenizar prejuízos pode também nascer de relação negocial. O
inadimplemento de qualquer contrato implica, em regra, para o inadimplente a obrigação de
pagar perdas e danos, como já examinado (Cap. 18, subitem 4.1.2.1). Indenizar danos, portanto,
nem sempre é responsabilidade civil, nem sempre é obrigação não negocial. Ao contrário, pode ser
decorrência do estabelecido em cláusula de contrato negociado entre o devedor e o credor da
indenização. Assim, se toda responsabilidade civil é obrigação compensatória de danos sofridos
pelo sujeito ativo, o inverso não se pode afirmar. Veja que, no inadimplemento de contrato,
indenizar danos é consectário, enquanto na responsabilidade civil corresponde à própria
prestação.
A classificação da responsabilidade civil como não negocial não significa que entre os sujeitos
da relação obrigacional nunca exista negócio jurídico. Ele até pode existir, mas não será o
fundamento da obrigação. Entre o passageiro e a empresa de transporte por ônibus existe um
contrato de consumo. Se houver acidente de trânsito durante a execução do contrato, a empresa
deve indenizar os danos sofridos pelo passageiro. A obrigação de indenizar, porém, não nasce do
contrato de transporte, mas sim do fato jurídico de ser o transportador empresário. O negócio
jurídico é, neste caso, circunstancial; representa aspecto secundário da questão. Tanto assim que,
se for nulo o contrato – por incapacidade absoluta de um dos contratantes, por exemplo –, isso não
desconstitui a obrigação: a empresa continua obrigada do mesmo jeito.
A doutrina tradicionalmente divide a responsabilidade civil em contratual e extracontratual. No
primeiro caso, há contrato entre o credor e o devedor da obrigação de indenizar; no segundo, não.
Quando o advogado indeniza o cliente por ter perdido o prazo para contestar, sua
responsabilidade é considerada por este enfoque como contratual porque entre os sujeitos da
obrigação de indenizar (prestação) há um contrato de mandato. Já na hipótese do acidente de
trânsito, entre os motoristas não há nenhuma relação contratual, e o enfoque tradicional chama a
hipótese, então, de responsabilidade civil extracontratual. A doutrina, então, dedica-se a discutir as
diferenças entre uma e outra espécie de responsabilidade, tendo ultimamente predominado o
entendimento de que não há relevância na distinção (Tunc, 1989:32/46). Com efeito, segundo as
leis brasileiras, se o consumidor vitimado por acidente de consumo demandar o ressarcimento
contra o fornecedor terá o mesmo direito, seja sustentando o pleito na relação extracontratual, seja
na contratual – quadro que se repete nas demais hipóteses da chamada responsabilidade civil
contratual.
Como a distinção entre responsabilidade civil contratual e extracontratual não tem relevância
prática – já que a indenização devida será igual, haja ou não entre credor e devedor da obrigação
de indenizar (como prestação) uma relação negocial –, trata-se, a rigor, apenas de definir o lugar
mais adequado, na tecnologia jurídica, para a exposição da matéria (cf. Alpa, 1999, 4:102/107). E,
para tanto, os tecnólogos ora consideram a responsabilidade civil como gênero desdobrável em
responsabilidade contratual e não contratual (Noronha, 1999:41/44; Dias, 1954; Gomes, 1961:277),
ora como espécie de obrigação não contratual (Lopes, 2001; Rodrigues, 2002:8/11).
Fico com a solução de classificar a responsabilidade civil como não negocial. Para mim, mesmo
quando exista relação contratual entre credor e devedor da obrigação de indenizar, se esta é a
própria prestação (e não um simples consectário), estamos diante de uma relação jurídica não
negocial, cujo fundamento não é o negócio jurídico, mas ato ilícito ou fato jurídico. Em função da
classificação aqui adotada, descarto a distinção tradicional da doutrina entre responsabilidade
civil contratual e extracontratual. Opero apenas com a classificação entre responsabilidade
subjetiva e objetiva. Qualquer que seja a escolha, porém, interessa ter presente que a obrigação de
indenizar danos, quando é a própria prestação e não mero consectário, terá a mesma extensão
havendo ou não vínculo negocial entre credor e devedor.
Responsabilidade civil é a obrigação em que o sujeito ativo pode exigir o pagamento de indenização do
passivo por ter sofrido prejuízo imputado a este último. Constitui-se o vínculo obrigacional em decorrência
de ato ilícito do devedor ou de fato jurídico que o envolva. Classifica-se como obrigação não negocial.
Última observação: a responsabilidade civil contratual não se confunde com o inadimplemento
do contrato. Embora se possa até dizer que o dano causado pelo contratante tem o significado de
descumprimento das obrigações contratadas, isto não é o essencial. As obrigações não negociais
são aquelas cuja constituição deve-se ao ato ilícito ou ao fato jurídico pertinente e não ao negócio
que eventualmente exista entre as partes. Deve-se verificar se a obrigação de indenizar é a
prestação ou mero consectário. Se for a prestação, a obrigação entre credor e devedor é
responsabilidade civil (contratual ou extracontratual); se for consectário, é inadimplemento de
contrato. Se o engenheiro atrasa a execução da obra e indeniza o proprietário, está pagando um
consectário; mas, se o prédio ruiu por sua imperícia, a indenização é a prestação devida. No
primeiro caso, incidem as normas do inadimplemento de contrato; no segundo, as da
responsabilidade civil. Há apenas uma significativa diferença entre elas: o grau de culpa do
devedor pode influir na mensuração da prestação, mas não influi na do consectário (Cap. 25,
subitem 1.1.1).
3. Espécies de responsabilidade civil
São duas as espécies de responsabilidade civil: subjetiva e objetiva. Na primeira, o sujeito
passivo da obrigação pratica ato ilícito e esta é a razão de sua responsabilização; na segunda, ele só
pratica ato ou atos lícitos, mas se verifica em relação a ele o fato jurídico descrito na lei como
ensejador da responsabilidade. Quem responde subjetivamente fez algo que não deveria ter feito;
quem responde objetivamente fez só o que deveria fazer. A ilicitude ou licitude da conduta do
sujeito a quem se imputa a responsabilidade civil é que define, respectivamente, a espécie
subjetiva ou objetiva.
Quando o motorista desobediente às leis de trânsito é obrigado a indenizar os danos do
acidente que provocou, sua responsabilidade é subjetiva. Se imprimiu velocidade ao veículo
superior à permitida no local, ultrapassou o semáforo fechado, negou preferência, se descumpriu,
enfim, o Código de Trânsito Brasileiro, ele não agiu como deveria ter agido; incorreu em ilícito.
Desta sua falta surge a obrigação de ressarcir os prejuízos sofridos pelas vítimas do acidente. Por
outro lado, quando o fabricante de refrigerantes é obrigado a ressarcir os danos causados pela
quebra de garrafa em que se havia concentrado maior quantidade de gás que a suportável, a
responsabilidade é objetiva. O fornecedor agiu exatamente como deveria ter agido: empregou os
mais desenvolvidos equipamentos e processos de produção, bem assim os mais aprimorados
controles de qualidade, treinou adequadamente seus funcionários e fez todos os investimentos
para evitar que produtos defeituosos fossem oferecidos ao mercado. Em razão da falibilidade
humana, porém, algumas garrafas com defeito acabaram provocando lesões nos consumidores.
Não houve nenhum ilícito imputável ao fabricante; ao contrário, é plenamente lícito oferecer
bebidas refrigerantes ao mercado. Mesmo assim, ele é responsável civilmente pelos prejuízos. Sua
responsabilidade se origina do simples fato jurídico de vender produtos no mercado.
A responsabilidade civil pode ser subjetiva ou objetiva. No primeiro caso, o devedor responde por ato
ilícito (constitui-se a obrigação em razão de sua culpa pelo evento danoso); no segundo, por ato lícito (a
responsabilidade é constituída a despeito da culpa do devedor).
Variam os pressupostos da responsabilidade civil de acordo com a espécie. Para que um sujeito
de direito seja responsabilizado subjetivamente é necessária a convergência de três: a) conduta
culposa (culpa simples ou dolo) do devedor da indenização; b) dano patrimonial ou
extrapatrimonial infligido ao credor; c) relação de causalidade entre a conduta culposa do devedor
e o dano do credor. O primeiro pressuposto pode ser denominado “pressuposto subjetivo”, por ser
referido à negligência, imprudência ou imperícia (culpa simples) ou mesmo à intenção (dolo) do
sujeito causador do dano. Se ele tivesse se comportado como determina a lei, se não tivesse
praticado o ilícito, o evento danoso não ocorreria; foi a sua culpa ou dolo que provocou o dano. No
âmbito da responsabilidade civil subjetiva, o pressuposto subjetivo, isto é, a culpa do devedor, é
elemento indispensável à constituição da obrigação. A responsabilidade do devedor, nela, tem por
fundamento último a manifestação de vontade do sujeito obrigado (subitem 3.1).
Já, para a caracterização da responsabilidade objetiva, bastam dois pressupostos: a) dano
patrimonial ou extrapatrimonial suportado pelo credor; b) relação de causalidade entre a conduta
do devedor descrita em lei e o dano do credor. Aqui, o pressuposto subjetivo é irrelevante. Se o
sujeito a quem se imputa a obrigação foi negligente, imprudente, imperito ou teve a intenção de
causar danos é por tudo irrelevante. Simplesmente, isso não se discute. Sua responsabilidade
existirá e terá a mesma extensão em qualquer hipótese. Mesmo que ele tenha sido absolutamente
correto e se comportado sempre de acordo com a lei, responderá pela indenização dos danos. Não
era exigível do devedor que se comportasse de maneira diversa; ao contrário, exigia-se dele que
fizesse nada mais nada menos do que fez. Sua responsabilidade tem por fundamento, como se
verá adiante (subitem 3.2), a socialização dos custos.
É possível divisarem-se duas subespécies de responsabilidade civil. De um lado, a
responsabilidade subjetiva de culpa presumida; de outro, a responsabilidade objetiva pura.
Naquela, o pressuposto subjetivo é relevante, mas não cabe à vítima provar a culpa do sujeito a
quem ela imputa a responsabilidade. Cabe-lhe apenas produzir em juízo a prova dos demais
pressupostos (dano e relação de causalidade). A pessoa a quem a responsabilidade é imputada,
porém, livra-se da responsabilização provando a inexistência de culpa. Trata-se de uma das
formulações erigidas durante o longo processo de elaboração dos fundamentos da
responsabilidade objetiva (subitem 3.3). Ao seu turno, na responsabilidade objetiva pura, é
suficiente à constituição da obrigação a existência do dano, sendo irrelevantes tanto o pressuposto
subjetivo como a relação de causalidade. A responsabilidade do Instituto Nacional do Seguro
Social (INSS) relativa ao pagamento do benefício em favor do empregado vítima de acidente de
trabalho é desta subespécie, já que nenhuma conduta imputada ao devedor tem relação de causa e
efeito com o dano sofrido pelo credor (subitem 5.2).
3.1. Fundamento da responsabilidade civil subjetiva
Um dos valores cultivados pela civilização de raízes europeias é o de que a vontade é a fonte
última de qualquer obrigação. As pessoas obrigam-se apenas porque querem. Não se pode imputar
obrigação a alguém contra a sua vontade, nem obrigá-la a mais do que ela concorda em se obrigar.
Este valor caro às ideologias liberais encontra-se nos fundamentos do caráter vinculativo da lei na
democracia. Somos obrigados a obedecer os mandamentos legais porque foram aprovados por
nossos representantes, isto é, em nosso nome. Ao eleger deputados e senadores, a sociedade
confere a eles o poder de representação, de expressão de uma pretensa vontade geral. O
contribuinte, assim, paga os impostos determinados na lei porque expressou, pelo mecanismo da
democracia representativa, sua concordância. Presume-se a vontade do devedor. Em suma, se a
obrigação não provém imediatamente da vontade do sujeito obrigado (contrato), provém
mediatamente dela (lei aprovada por representantes democraticamente escolhidos).
Esse valor é o fundamento da responsabilidade civil subjetiva. Ao imputar a quem incorre em
ilícito a obrigação de indenizar os prejuízos decorrentes, a lei prestigia a noção de que a vontade é
a fonte de todas as obrigações. Não o faz apenas pelo mecanismo geral que vincula qualquer lei à
vontade dos seus destinatários na organização democrática. Se assim fosse, não haveria diferença
entre os fundamentos das duas espécies de responsabilidade civil, visto que ambas se assentam em
dispositivos legais. A imputação da responsabilidade civil subjetiva funda-se no valor da vontade
como fonte última de qualquer obrigação principalmente por uma relação argumentativa
(ideológica) específica.
Quem é responsabilizado por ato ilícito é-o porque agiu como não deveria ter agido. Foi
negligente naquilo em que deveria ter sido cuidadoso, imperito quando tudo dependia de sua
habilidade, imprudente se era exigida cautela, ou comportou-se conscientemente de modo
contrário ao devido. Em suma, uma conduta diversa era exigida do causador dos danos. Não há
responsabilidade civil subjetiva se ausente esse pressuposto da exigibilidade de conduta diversa.
Imagine que grave acidente de ônibus ocorre nas cercanias de pequena cidade onde trabalha
apenas um único médico, que tem que se desdobrar para atender duas dezenas de pacientes
graves em condições precárias, totalmente adversas. Após longas horas de heroico esforço, já
comprometida sua capacidade de concentração, acaba incorrendo num erro; é evidente que ele
não pode ser responsabilizado. Estando além da capacidade humana de qualquer profissional
médio manter a acuidade naquelas mesmas condições, era mesmo inexigível a perícia que faltou.
Não se pode responsabilizar aquele médico pelo erro porque não seria exigível dele conduta
diversa (a de permanecer plenamente concentrado e hábil mesmo após longo tempo de trabalho
em condições estressantes).
A responsabilização por ato ilícito pressupõe a exigibilidade da conduta diversa. Se o sujeito de
direito fez o que não deveria, ele é responsável exatamente porque estava ao seu alcance não
fazer; ou, por outra: se não fez o que deveria, é responsável porque fazer era-lhe possível. Ao
comportar-se de certa maneira, quando poderia comportar-se de outra, o sujeito de direito
manifesta, num certo sentido, sua vontade.
Quando se tem em mira o dolo, não há maiores dificuldades na identificação da vontade do
sujeito causador do dano na constituição da obrigação de indenizar. Se o motorista lança
conscientemente seu veículo sobre o pedestre com a intenção de atropelá-lo (dolo direto),
manifesta inequívoca vontade de fazê-lo. Em conseguindo o objetivo, responderá pelos danos
ligados à morte ou lesão do pedestre porque quis causá-los diretamente. Note-se que igual
responsabilidade terá o motorista que conscientemente lançar o veículo apenas com o objetivo de
assustar o transeunte (dolo indireto). Neste caso, também responderá pelos mesmos danos, não
porque os quis diretamente, mas porque teve a vontade de correr o risco de causá-los.
Também no caso de culpa simples, a despeito da ausência da intenção de causar danos ou de
assumir os riscos de causá-los, é a vontade do sujeito de direito que se encontra nos fundamentos
de sua responsabilização. Aqui, a relação entre responsabilidade e vontade pode não parecer
imediata, mas existe. Se o sujeito foi negligente quando a conduta diligente estava ao seu alcance,
agiu de um dos modos possíveis; considera-se, então, que escolheu esse modo, como poderia ter
escolhido o outro. Se foi imprudente quando poderia ter sido cauteloso, ou imperito quando não
existiam condições adversas ao competente desempenho profissional, também fez o sujeito uma
escolha (Tunc, 1989:115). A opção pela conduta negligente, imprudente ou imperita não é
intencional, nem ao menos consciente (caso fosse, configurar-se-ia o dolo indireto e não a culpa
simples), mas a exigibilidade da conduta diversa – que pressupõe seja ela plenamente factível –
leva à identificação de um certo ato de vontade pelo qual se responsabiliza o sujeito. Não há
contradição na ideia de vontade inconsciente – a psicologia já a identificou há tempos.
Em última instância, a imputação de responsabilidade ao culpado pelo evento danoso fundamenta-se na
noção da vontade como fonte da obrigação. A ação ou omissão negligente, imprudente ou imperita ou
mesmo a intenção de causar dano correspondem à conduta diversa da juridicamente exigível. A
exigibilidade de conduta diversa pressupõe pelo menos duas alternativas abertas à vontade (consciente ou
inconsciente) do sujeito passivo. Se o devedor agiu como não deveria, o fez por ato de vontade.
O marco histórico identificado na origem da imputação de responsabilidade pelos danos em
razão da culpa é a Lei Aquília, editada na República Romana, provavelmente no século III a.C. Essa
lei prescrevia as consequências de certos eventos danosos (p. ex., a morte ou ferimento de
escravos ou animais de rebanho) para quem os houvesse causado. Obrigava-os, em suma, a
reparar os prejuízos nos bens de produção. Substituía-se, em relação a estes, a antiga pena de
Talião – que autorizava a vítima a causar agravo proporcional no agente causador do dano –, por
não atender mais à racionalidade exigida pelo desenvolvimento da organização econômica
escravagista dos domínios romanos. Com efeito, o “olho por olho, dente por dente” só aumentava o
prejuízo (em vez de um escravo morto, eram dois), revelando-se verdadeiro disparate em termos
de eficiência econômica.
Na Lei Aquília não se encontra, ainda, qualquer noção geral de imputação de responsabilidade.
Aparentemente, o objetivo era afastar a aplicação da pena de Talião apenas na hipótese de danos a
bens de produção. Os pretores e jurisconsultos, porém, aplicaram a Lei Aquília extensivamente na
responsabilização por outros danos além dos que contemplava (Lima, 1960:21/22), e isso deu início
ao longo processo de elaboração do princípio “nenhuma responsabilidade sem culpa”. Marcos
importantes desse processo são as obras de Domat e Pothier, jusnaturalistas franceses, que
contribuíram para o amadurecimento dos conceitos ao longo do século XVIII. Outro marco é o
Código Civil de Napoleão, que, em 1804, foi o primeiro a prescrever norma geral imputando
responsabilidade civil por danos a quem os tivesse causado culposamente (Alpa-Bessone,
2001:25/42).
3.2. Fundamento da responsabilidade civil objetiva
O princípio nenhuma responsabilidade sem culpa é característico de todos os direitos dos países
ocidentais durante o século XIX. Só respondia por danos no patrimônio alheio quem tivesse sido o
culpado por eles; afora esta hipótese, cada um suportava a perda de seus bens (res perit domino).
Nas hipóteses de culpa da vítima ou caso fortuito, à falta de específica manifestação de vontade,
não se podia imputar responsabilidade a quem quer que fosse. Os acidentes inevitáveis – como
incêndios causados por fagulhas produzidas por locomotivas a vapor, morte ou incapacitação do
operário na operação de equipamentos fabris, defeitos em produtos não derivados de culpa ou
dolo do fornecedor etc. – eram considerados a contrapartida que deveríamos todos suportar em
função dos benefícios de viver em sociedade (Alpa-Bessone, 2001:42/114). Se a locomotiva a vapor
simplesmente não pode funcionar sem produzir fagulhas, não é culpa da estrada de ferro o
incêndio em alguma plantação em imóvel lindeiro. A seu turno, o fazendeiro deve pagar certo
“preço” por viver em sociedade e beneficiar-se também da rapidez do transporte pelas vias
ferroviárias: o “preço” de suportar a perda da colheita, caso tivesse ele o azar de ver sua
propriedade incendiada.
Ao longo do século XX, a indispensabilidade do pressuposto subjetivo para a imputação de
responsabilidade por danos foi paulatinamente questionada. De um lado, agredia cada vez mais o
senso geral de justiça o desamparo a que o princípio nenhuma responsabilidade sem culpa relegava
as vítimas dos acidentes inevitáveis. O princípio da culpa acabava conduzindo, na significativa
imagem pinçada por Mario Bessone, a “nada muito diferente de uma loteria imoral” (AlpaBessone, 2001:112). De outro lado, o acúmulo de capitais já era suficiente à implantação de
aprimorados mecanismos jurídicos de socialização dos custos. Surge e amadurece a
responsabilidade objetiva, em que o devedor é obrigado a indenizar os danos do credor, mesmo
não tendo nenhuma culpa por eles.
Na modalidade objetiva, o devedor responde por ato lícito. Sua conduta não é contrária ao
direito. Nada de diferente é ou seria jurídica ou moralmente exigível dele. Não obstante, arca com
a indenização dos danos experimentados pela vítima do acidente. A noção de responsabilidade
por lícito não tem sido facilmente operada por parte da tecnologia jurídica, que resiste em aceitar
a hipótese de imputação de obrigação a quem fez exatamente o que deveria ter feito, que não
desobedeceu minimamente às leis em vigor. Alguns autores buscam conceitos gerais em que
possam ancorar as duas espécies de responsabilidade civil, de modo a afastar o desconforto da
obrigação não negocial que existe a despeito da licitude do ato do devedor. Falam, por exemplo,
numa antijuridicidade, isto é, contrariedade aos direitos alheios que existiria na exploração de
atividades criadoras de riscos (Iturraspe, 1982, 1:117/121). Ou, na linha do proposto inicialmente
por Savatier (Tunc, 1989:152), afirmam a existência de um dever geral de não causar danos a
outrem – expresso pela locução latina neminem laedere –, que seria desrespeitado pelo sujeito a
quem se imputa tanto a responsabilidade subjetiva como a objetiva (Noronha, 2003:484).
Penso que estas tentativas de configurar a responsabilidade objetiva como a consequência de
uma certa desconformidade com o direito são infrutíferas. Se o Município responde objetivamente
pela desvalorização de imóveis urbanos produzida por viaduto que implantou na vizinhança
(penso no caso do “Minhocão”, em São Paulo), isto não significa que a obra viária fosse de alguma
forma irregular. Do mesmo modo, quando o fornecedor de produtos ou serviços é obrigado a
indenizar, independentemente de culpa, os danos dos acidentes de consumo ocorridos dentro de
certa margem estatística de defeituosidade inevitável, não quer isso dizer que sua atividade se
apresentasse minimamente ilegal. Pelo contrário, tanto a construção do viaduto como a colocação
de bens ou serviços no mercado são atos plenamente lícitos, sob quaisquer dos aspectos que se
considere a questão.
É racional imputar responsabilidade por danos a quem agiu exatamente como deveria ter agido quando
o sujeito passivo da obrigação de indenizar ocupa posição econômica que lhe permita socializar os custos da
sua atividade entre os beneficiários dela. Nessa posição encontram-se, por exemplo, os empresários, o
Estado e as agências de seguro social.
A rigor, mais que infrutíferas, são desnecessárias as buscas de algum traço de antijuridicidade
nas condutas que dão ensejo à responsabilidade objetiva. Como pretendo demonstrar, é racional –
sob o ponto de vista jurídico, econômico e moral – a imputação de responsabilidade objetiva a
determinados sujeitos de direito, mesmo reconhecendo e reafirmando a plena licitude de seus
comportamentos causadores do dano.
O fundamento da responsabilidade objetiva, isto é, da imputação da obrigação de indenizar
danos a quem agiu exatamente como deveria ter agido, é a socialização de custos. Todo sujeito de
direito que se encontra numa posição econômica que lhe permita socializar os custos de sua
atividade entre os que são atendidos por ela podem e devem ser objetivamente responsabilizados.
O Município que constrói o viaduto realiza obra viária em proveito de todos os munícipes. A
mesma obra pode implicar, porém, desvalorização de imóveis urbanos da vizinhança,
prejudicando seus proprietários. A responsabilidade prescinde da ilicitude da conduta lesiva
porque o Município, ao cobrar os impostos dos munícipes, reparte entre estes (os beneficiários da
atuação estatal) o valor das indenizações pagas aos donos dos prédios desvalorizados (os
prejudicados). Ao seu turno, o empresário responde objetivamente pelos danos derivados de
acidentes de consumo porque pode, por cálculos estatísticos, mensurar quantos de seus produtos
ou serviços serão oferecidos ao mercado com defeitos potencialmente lesivos aos consumidores.
Feito o cálculo, ele pode embutir no preço que pratica a taxa de socialização dos custos do acidente
de consumo. Cada consumidor pagará pelo produto ou serviço um pouco mais, mas terá a garantia
de ser indenizado caso venha a ter o azar de ser vitimado pelo inevitável acidente. O INSS está
obrigado a pagar às vítimas de acidente de trabalho, independentemente de pesquisar a culpa pelo
evento, o valor do benefício previsto em lei porque dispõe dos meios de socializar os custos
correspondentes entre todos os expostos ao risco (empregados) e os beneficiados pela atividade
arriscada (empregadores e sociedade), mediante a cobrança das contribuições sociais, além do
recebimento das dotações cabíveis do orçamento público.
Ocupar posição econômica que permite a socialização dos custos – como é o caso do Estado, do
empresário ou do INSS – é fundamento racional suficiente para a imputação de responsabilidade
civil por ato lícito. Não há nenhuma transgressão a norma jurídica ou mesmo a preceito moral por
parte do sujeito apto a promover essa socialização. Pelo contrário, ao desempenhar sua atividade
exclusivamente nos quadrantes da legalidade, acaba cumprindo a função distributiva. Aqui, não se
impõe ao causador de danos uma sanção com o objetivo de desestimular a prática ilícita – esta,
como se verá, é uma das funções da responsabilidade subjetiva. Apenas se alocam recursos de
forma racional, compatibilizando a eficiência na administração da escassez e redução das
injustiças na distribuição. As atividades que deram ensejo ao dano indenizável não devem ser
desestimuladas; pelo contrário, o proveito que a generalidade das pessoas delas usufruem é visto
como altamente compensador em face dos danos causados a alguns poucos. A questão, portanto,
não é reduzir ou suprimir os ganhos, mas distribuir entre todos os beneficiados o custo com as
indenizações dos danos que a atividade causa. Não é, por exemplo, o caso de suspender todos os
voos comerciais, em razão dos acidentes com os aviões de passageiros, mesmo com o objetivo de
poupar, a cada ano, a vida de algumas milhares de pessoas. As viagens aéreas são indispensáveis
ao regular funcionamento da economia do mundo todo, e, ademais, atendem, no mesmo período
anual, de modo seguro centenas de milhões de passageiros. A imputação de responsabilidade
objetiva às empresas de transporte aéreo (ainda que tarifada, por vezes) permite preservar a
atividade econômica útil a toda a sociedade e atenuar as injustiças no tratamento dos riscos que
ela necessariamente encerra.
A objetivação da responsabilidade permite, por fim, a abstração de qualquer juízo de valor na
imputação da obrigação. O devedor deve pagar a indenização não porque fez algo irregular, que
merece punição. Nem poderá, por outro lado, exonerar-se por nada ter feito de errado. Sua culpa é
irrelevante para qualquer efeito: não constitui a obrigação, nem a afasta; não a aumenta ou
diminui. Não está em jogo, em suma, qualquer apreciação moral de sua conduta, mas
exclusivamente sua aptidão econômica para socializar os custos da atividade entre os beneficiados
por ela.
3.3. Teorias de transição
Ainda hoje, como registrado, encontram-se tecnólogos resistentes à noção de responsabilidade
civil desvinculada da ilicitude. Aceitam a responsabilidade objetiva, independente de culpa, mas
procuram, por meios diversos, ligar a imputação da obrigação de indenizar a alguma pecha de
desconformidade com o direito. Há um século, a resistência era ainda maior: nem sequer a noção
de responsabilidade sem culpa admitia facilmente a comunidade jurídica.
Em razão do extremo apego ao princípio da culpa – e ao valor que a alicerça, caríssimo ao
capitalismo, da vontade como fonte última de todas as obrigações –, à discussão e elaboração dos
fundamentos a partir dos quais se justificava imputar responsabilidade a quem agira licitamente
corresponde uma trajetória não linear. As formulações ensaiadas pelos avanços pontuais
procuravam abrigo no princípio nenhuma responsabilidade sem culpa. Os argumentos construídos
em vista da responsabilização por atos lícitos até meados do século XX pagaram tributo à ideologia
do seu tempo: o devedor sempre aparecia, de algum modo, como culpado. Denomino estas
elaborações de teorias de transição, porque atenderam às necessidades de momento histórico em
que imperava o princípio da culpa, mas responsabilizavam sujeitos de direito por danos causados
sem absoluto prestígio ao pressuposto subjetivo. A transição, nesse tempo, a meu ver, não era a do
modelo da responsabilidade subjetiva para a da objetiva (este movimento não existe: item 7), mas
a do modelo de uma só espécie de responsabilidade civil (nenhuma responsabilidade sem culpa)
para o da convivência de duas espécies (subjetiva e objetiva).
São quatro as teorias de transição:
a) Responsabilidade contratual. Uma das formulações desenvolvidas no contexto da transição
do modelo único de responsabilização para o dúplice foi a de considerar o acidente uma espécie de
descumprimento de obrigação contratual. Desenvolveu-se, por exemplo, na matéria relativa aos
transportes de pessoas. Se o passageiro era vitimado pelo acidente no trem em que viajava, ele
tinha direito de ser indenizado pela estrada de ferro porque entre eles havia um contrato de
transporte não inteiramente cumprido pela transportadora. A estrada de ferro assumira, perante o
passageiro, a obrigação de levá-lo incólume ao destino – a cláusula de incolumidade é ínsita ao
contrato de transporte de pessoas. O acidente, assim, representava descumprimento da obrigação
contratual, cabendo então à estrada de ferro responder como qualquer outro contratante
inadimplente pelos danos causados. Ao se considerar o acidente nos transportes como
descumprimento de cláusula contratual, dispensa-se a vítima de provar a culpa da empresa
transportadora. A prova dos danos durante o transporte é suficiente à demonstração da existência
do contrato entre as partes e do descumprimento da cláusula de incolumidade.
A fórmula de buscar no vínculo contratual o fundamento para a responsabilização sem culpa
também se tentou no campo do acidente de trabalho. Sinctelette, jurista belga, e Narc Sauze,
francês, sustentaram teorias que, em suma, visualizavam como cláusula do contrato de trabalho a
garantia de segurança que o empregador dava ao operário (Lopes, 2001:332).
A solução, embora representasse já um avanço no movimento de ampliação da proteção das
vítimas dos acidentes da era contemporânea, esbarrava em limites consideráveis. Ao tempo dessa
formulação como teoria de transição, nos fins do século XIX, o princípio da autonomia da vontade
não afastava a ressalva de responsabilidade por via contratual. Além disso, não servia à proteção
de vítimas que não mantinham contrato com a empresa de transporte, como o transeunte.
Ocupava-se, ademais, a doutrina do estafante e infrutífero debate sobre a unicidade ou dualidade
da noção de culpa (cf. Iturraspe, 1982, 1:78/80). Desde logo, por isso, a matéria teve que ser objeto
de disciplina jurídica específica. No Brasil, a lei cuidou da responsabilidade civil das estradas de
ferro em 1912, antes mesmo da entrada em vigor do nosso primeiro Código Civil. Essa lei foi
extensivamente interpretada pelos tribunais, aplicando-se, desde logo, a outras modalidades de
transporte (Cap. 23, subitem 4.5).
As teorias de transição procuraram justificar a ampliação das hipóteses de responsabilização sem
descartar o princípio “nenhuma responsabilidade sem culpa”. A primeira delas sustentava-se nas obrigações
contratuais do sujeito passivo da obrigação de indenizar, como, por exemplo, nas derivadas da cláusula de
incolumidade ínsita aos contratos de transporte.
b) Responsabilidade com presunção de culpa. Nada denuncia mais o apego à noção da culpa
como pressuposto inafastável da responsabilidade civil como a afirmação de sua presunção com
vistas a ampliar a proteção das vítimas dos acidentes da era contemporânea. Esta “teoria de
salvação”, na feliz imagem de Giselda Novaes Hironaka (2003:222), procurou, a seu tempo, facilitar
a indenização das vítimas estabelecendo, em lei, a presunção da culpa do sujeito a quem a
responsabilidade era imputada. Valeram-se dessa formulação a lei de responsabilidade civil das
estradas de ferro, de 1912, e o nosso primeiro Código Civil, de 1916, ao disciplinar a
responsabilidade dos donos de animais, por exemplo.
A presunção legal pode ser absoluta ou relativa (Cap. 10, item 8.1). No primeiro caso, não se
admite contraprova. Quando a lei cria uma presunção desse tipo (juris et de jure), ela torna
indisputável o fato presumido. Já na presunção relativa (juris tantum), é admissível a contraprova.
Se um fato é relativamente presumido pela lei, isto significa apenas uma certa distribuição do ônus
de prova, mas a ocorrência do fato continua disputável. Os dois tipos de presunção foram
empregados nas formulações de transição. A lei de 1912, por exemplo, estabelece presunções
absolutas de responsabilidade civil das estradas de ferro. Quer dizer, elas não se livram da
obrigação de indenizar a vítima do prejuízo causado pela exploração de sua atividade, mesmo que
provem a total ausência de culpa pelo evento danoso. Já na disciplina da responsabilidade dos
donos de animais, o Código Bevilaqua estabelecia presunção relativa. Ao demandante dispensavase o ônus de provar a culpa do dono do animal relativamente à guarda. Mas o dono, demandado,
exonerava-se de responsabilidade provando, por exemplo, que guardava e vigiava com cuidado
preciso o animal, ou seja, que não tinha culpa pelo evento danoso.
Note que a presunção absoluta de culpa equivale à objetivação da responsabilidade, na medida
em que torna irrelevante o pressuposto subjetivo. A ideologia dominante no fim do século XIX e
início do XX não permitia, contudo, imputar responsabilidade a quem não tivesse sido culpado
pelo dano. Isso contrariava a noção da vontade como fonte última das obrigações. Ainda que
absolutamente presumida, a culpa não podia ser descartada na disciplina da responsabilidade
civil. Não havia ainda suficiente acúmulo de capital e amadurecimento dos meios de socialização
de custos que permitisse a completa negação do princípio nenhuma responsabilidade sem culpa.
A segunda teoria de transição alargou as hipóteses de responsabilização civil preservando a culpa como
seu pressuposto por meio da presunção desta.
Se a presunção da culpa era relativa, a obrigação não se constituía caso o demandado provasse ter agido
com a cautela exigível de alguém na mesma situação. Se absoluta a presunção, era indisputável a existência
da culpa.
c) Responsabilidade por culpa administrativa. Esta teoria de transição tinha aplicação limitada à
responsabilização do Estado. Fundava-se na noção de que a culpa do Poder Público não era igual à
dos particulares. Liberava a vítima de provar a conduta culposa do agente ou funcionário público,
sendo suficiente à obtenção do ressarcimento a demonstração de falha no serviço. Quando o
serviço público não existe, funciona mal ou tardiamente, os danos derivados desta falha não
podem ser suportados pelo cidadão e devem ser ressarcidos pelo Estado. Se o serviço público não
foi eficiente como deveria, haverá certamente a culpa de alguém; não é necessário prová-la,
contudo. A prova da falha no serviço da Administração Pública basta para constituir-se a
obrigação de indenizar os prejuízos (Meirelles, 1964:611).
A teoria da culpa administrativa dispensava o prejudicado de provar a conduta culposa do agente ou
funcionário público. Era suficiente, para obter a indenização, a prova da falha do serviço público.
d) Responsabilidade pela guarda da coisa. O Código Civil de Napoleão, em célebre dispositivo,
fixa as três hipóteses de responsabilização de um sujeito de direito: por fato próprio, por fato de
terceiro que se encontre sob sua responsabilidade e por fato de coisa sob sua guarda. Por quase
um século, a terceira hipótese não despertou maiores atenções. Era considerada, a exemplo das
duas outras, responsabilidade por culpa. Para obter a indenização, a vítima deveria provar ter sido
o acidente causado por coisa inanimada (máquina), cuja conservação ou operação pelo
proprietário não era adequada; isto é, cabia-lhe a prova da culpa do guardião da coisa para ter
acesso à indenização. Nos fins do século XIX, porém, a doutrina e a jurisprudência encontravam-se
em busca de soluções mais justas para os danos provocados por acidentes dessa natureza, cuja
quantidade havia aumentado em razão da invenção ou aperfeiçoamento de algumas máquinas
(veículos automotivos, principalmente, como os automóveis, bondes, ferry boats e locomotivas). A
complexidade das inovações impedia que a vítima provasse, com facilidade, a culpa na
conservação ou operação da coisa.
A parte final daquele dispositivo do Código Napoleão ajudou na busca. Construiu-se, a partir
dela, a tese de que a vítima de acidente por fato de coisa inanimada não precisaria provar senão o
dano, presumindo-se a culpa do guardião da coisa na sua conservação ou operação. As coisas
destinam-se a servir ao seu proprietário ou a quem detém a posse legítima sobre elas. Seu uso em
proveito deles, contudo, pode expor outras pessoas a riscos de acidente, se não é dada à coisa a
correta conservação e operação. É dever, assim, de todo o proprietário ou usuário de coisas mantêlas e usá-las adequadamente, de modo a não causar prejuízos a terceiros. Se aconteceu o acidente
por fato da coisa, presumivelmente sua conservação e operação não foram adequadas; quer dizer,
o guardião da coisa não cuidou dela como seria necessário. Sua culpa pode ser, por isso,
presumida (Diniz, 2003, 7:486/488).
Inicialmente, a tese não foi aceita pelos tribunais na Bélgica e em França, sob o argumento de
que a lei, se pretendesse tratar a responsabilidade por fato da coisa de modo diverso das outras
duas hipóteses – fato próprio e de terceiro –, tê-lo-ia feito por dispositivo específico (MazeaudChabas, 1998:560). Aos poucos, algumas decisões a adotaram, pressupondo a culpa do guardião
como meio de facilitar a indenização da vítima, principalmente nos casos de acidente de trabalho.
O argumento da ausência de previsão legal específica, porém, continuava impressionando e
impedindo a larga aceitação da tese. Em 1922, foi aprovada uma mudança no dispositivo de lei em
questão, para incluir expressa previsão no sentido de ser da vítima a prova da culpa do guardião,
quando os danos são causados por incêndio em prédio. A mudança legislativa, à primeira vista, era
prejudicial à tese da presunção da culpa do guardião. Os que a advogavam, contudo, valeram-se
dela para construção de argumento decisivo: se a lei precisou imputar de forma expressa o ônus
de prova da culpa do guardião à vítima numa situação excepcional (incêndio), é porque a regra
geral é a da presunção; se não existisse a presunção de culpa no dispositivo já desde antes da
reforma de 1922, a previsão excepcional seria dispensável.
Em 1930, a tese da presunção de culpa do guardião da coisa inanimada foi adotada pela Corte
de Cassação. Desde então, pacificado o entendimento jurisprudencial, ela se difundiu não só em
França, como também em outros países. A presunção afirmou-se como absoluta, não mais se
admitindo a exclusão da responsabilidade do guardião mediante a prova da inexistência de culpa
(Rodrigues, 2002:92). Tem sido largamente utilizada, inclusive na fundamentação da
responsabilidade do poluidor pelos fatos dos dejetos industriais (Martin, 1992). Os que consideram
a objetivação como estágio evolutivo de toda a responsabilidade civil aplaudem a tese da
responsabilidade pela guarda do direito francês como clara manifestação dessa tendência (Dias,
1954, 2:32/34; Lima, 1960:125). Na verdade, encaixa-se melhor num contexto de transição, em que
não se havia ainda encontrado fundamento racional para afastar o pressuposto subjetivo (Gil,
1983:258).
A derradeira teoria de transição é a doutrina, criada no direito francês, de responsabilidade pela guarda
da coisa inanimada (máquinas). O proprietário do automóvel, por exemplo, responde pelos acidentes
causados pelo veículo porque se considera que não teria havido o dano se a coisa tivesse sido
adequadamente conservada e operada.
A doutrina da responsabilidade pela guarda suscita, entre outras questões, a da identificação do
guardião. Em princípio, ele é o proprietário da coisa inanimada, mas há situações em que a posse
da coisa está, legítima ou ilegitimamente, em mãos de terceiros – locatário, empregado, ladrão etc.
Mesmo em alguns desses casos, a jurisprudência francesa tem considerado o proprietário o
guardião, para fins de imputar-lhe responsabilidade por danos. No direito brasileiro, a tese da
responsabilidade pela guarda da coisa repercutiu em obras doutrinárias, mas recebeu tímida
acolhida nos tribunais (Rodrigues, 2002:95/97). Os caminhos pelos quais se tem procurado, entre
nós, ampliar a proteção da vítima de acidentes causados por máquinas são outros.
4. Funções da responsabilidade civil
A função da responsabilidade civil é principalmente ressarcir os prejuízos da vítima. A
recomposição do patrimônio ou do direito do sujeito lesado por ato juridicamente imputável a
outrem é o objetivo primário das regras de responsabilização. Não deixa de existir, nesta primazia,
ranços da vingança pessoal que inspirara a regra de Talião. Ao sujeito ilegitimamente lesado é
reconhecido o direito de receber compensação, pecuniária ou não, cuja contrapartida é a redução
do patrimônio do devedor, causador do dano ou responsável por ele. Afastando os vestígios do
primitivo arquétipo, aponta-se o ressarcimento da vítima como meio de tutela da indenidade. A
ordem jurídica procura garantir a todos os sujeitos a preservação de seus direitos (patrimoniais ou
da personalidade), no sentido de assegurar sua recomposição sempre que imputável a outrem
qualquer sorte de prejuízo que os acometa.
Tanto a responsabilidade civil subjetiva como a objetiva cumprem a função de compensação.
Seja na hipótese de dano causado por culpa do devedor, seja na de imputação de responsabilidade
por ato lícito, a função da regra constitutiva do vínculo obrigacional é transferir do patrimônio do
devedor para o do credor bens que neutralizem o prejuízo por este último experimentado. O
cumprimento da obrigação de indenizar reconduz o credor à condição anterior ao evento danoso.
A função compensatória visa reequilibrar o que o prejuízo desequilibrou.
A compensação é feita normalmente mediante pagamento em dinheiro. A obrigação
constituída por responsabilidade civil é via de regra pecuniária. Disso não se segue, porém, que
equivalha invariavelmente ao dano sofrido. Quando o prejuízo é meramente patrimonial, a
compensação é equivalente ao dano. O devedor tem a obrigação de pagar ao credor o valor do
prejuízo. Não se opera, neste caso, enriquecimento da vítima, que deve apenas ver seu patrimônio
recomposto à mesma condição anterior ao dano. Já se o prejuízo é (exclusiva ou inclusivamente)
extrapatrimonial, no caso de danos morais, o valor a ser pago em dinheiro não é equivalente ao
dano. A dor moral é, rigorosamente falando, insuscetível de avaliação pecuniária. O dinheiro que
o devedor paga, nesta hipótese de compensação, não tem relação nenhuma com qualquer tipo de
redução do patrimônio do credor. Sempre que devida a indenização por danos extrapatrimoniais,
a vítima enriquece. A função da responsabilidade civil, assim, é compensar o credor do vínculo
obrigacional, seja recompondo prejuízos patrimoniais na mesma medida, seja assegurando-lhe
aumento no patrimônio em contrapartida à dor moral experimentada.
A principal função da responsabilidade civil é compensar os danos sofridos pelo sujeito ativo. Se forem
eles exclusivamente patrimoniais, a indenização terá equivalência ao valor dos danos, e o credor não se
enriquece com o pagamento. Se forem extrapatrimoniais, não há esta equivalência e o credor enriquece com
o cumprimento da obrigação de indenizar.
Além da função compensatória, cumprem as duas espécies de responsabilidade civil também
outra que lhes é comum: a preventiva. Ao determinar a constituição de vínculo obrigacional cuja
prestação é a compensação de prejuízos, a lei contribui para a prevenção destes. A
responsabilidade subjetiva e a objetiva, porém, cumprem a função preventiva de modo diferente.
Para compreender a diferença, convém examinar antes as funções específicas de cada espécie:
enquanto a responsabilidade subjetiva sanciona atos ilícitos, a objetiva viabiliza a socialização de
custos.
Quem retorna aos tempos em que os pretores e jurisconsultos romanos davam interpretação
ampliativa da Lei Aquília ou em que os juristas franceses discutiam o critério geral da
responsabilidade civil que acabou inspirando o Código Civil de Napoleão, percebe que o primeiro
vetor a nortear a identificação das externalidades negativas que deveriam ser internalizadas foi a
repressão a condutas indesejadas. A lesão no patrimônio de um sujeito devia ser compensada
porque era derivada de um ato ilícito de alguém. Se todos haviam se comportado como deviam, o
dano seria suportado pelo próprio lesado (res perit domino), já que proveniente de infortúnio. A
responsabilidade civil tem, então, desde o início o sentido de coibir condutas proibidas.
Note-se que, ao cumprir a função sancionatória, a responsabilidade civil subjetiva aproxima-se
das duas outras órbitas de responsabilização jurídica: penal e administrativa. Ao motorista que,
transitando em velocidade muito acima da permitida, provoca acidente de trânsito com vítima
fatal imputa a lei responsabilidade civil (deve indenizar os danos materiais e morais), penal
(comete crime de homicídio culposo) e administrativa (incorre em infração pela qual é multado).
As sanções correspondentes a essas três órbitas de responsabilização jurídica são consequências
negativas diversas e autônomas – nem sempre sobrepostas – que a lei estabelece para as condutas
indesejáveis. A punição na forma da lei é a única via admissível nas sociedades democráticas de
evitá-las.
A responsabilidade civil, quando subjetiva, cumpre também a função sancionatória. A obrigação de
indenizar representa a punição do sujeito passivo pela prática do ato ilícito.
A função sancionatória é exclusiva da responsabilidade civil subjetiva, constituída em
decorrência da prática de ato ilícito. No âmbito da responsabilidade civil objetiva, o devedor
responde mesmo não tendo incorrido em nenhuma ilicitude. Praticou apenas atos conformes ao
direito vigente, que importam benefícios não somente para ele, como para outros ou mesmo para
a sociedade como um todo. Sua obrigação de indenizar não decorre de nenhuma conduta
indesejável e, portanto, não tem sentido considerá-la uma pena.
A responsabilidade civil objetiva cumpre a função específica de socializar custos de certa
atividade. A responsabilidade por acidentes de consumo ilustra bem o mecanismo. Pense no
fornecimento de energia elétrica, feito por inúmeros cabos que atravessam o País, espalham-se
pelas cidades e capilarizam-se no interior das casas, apartamentos, escritórios, lojas e prédios. Essa
imensa rede, ao mesmo tempo em que proporciona uma imensurável gama de comodidade (desde
o banho quente diário até operações financeiras via internet) a quase todos os brasileiros, também
os expõe a riscos consideráveis. Se uma antena de sustentação é danificada – por raio, ato de
vandalismo ou terrorismo, acidente causado por terceiros ou qualquer outro evento diverso de
culpa da concessionária – e, em decorrência, rompem-se os cabos de alta tensão, isso pode implicar
danos fatais às pessoas atingidas pela descarga elétrica. Se formos tratar a questão unicamente à
luz do princípio nenhuma responsabilidade sem culpa, chegaríamos à conclusão da
irresponsabilidade da concessionária. Afinal, no exemplo aqui cogitado, ela agiu exatamente como
deveria ter agido na manutenção e operação da rede: o rompimento do cabo de alta tensão
decorreu de fortuito (raio) ou de atos não imputáveis a ela (vandalismo, terrorismo etc.). Tratando,
porém, a hipótese no contexto da responsabilidade objetiva, percebe-se, antes de tudo, que os
consumidores de energia elétrica são os beneficiários de sua oferta ao mercado de consumo (claro
que não são os únicos: também a concessionária se beneficia com os lucros auferidos). São eles
que terão acesso às inúmeras comodidades proporcionadas pela eletricidade. O fornecimento da
energia, porém, implica também riscos de danos às pessoas em geral, a quase totalidade delas
também consumidoras de eletricidade. Pois bem, a responsabilidade por indenizar os danos
associados ao fornecimento de energia elétrica pode ser imputada à concessionária porque ela
ocupa uma posição econômica que lhe permite, sem dificuldade, socializar os custos
correspondentes entre os beneficiários do fornecimento. Cada consumidor, ao pagar sua conta de
luz, irá desembolsar um pouco mais pela energia, para que todos tenhamos a garantia de
indenização no caso de acidente de consumo. Em suma, o ressarcimento pelos prejuízos dos
acidentes na rede de transmissão compõe o custo da energia elétrica. Este – como todos os demais
custos, diretos ou indiretos, da atividade de fornecimento de eletricidade – é embutido no preço a
ser pago pelo consumidor. Em consequência, quem se beneficia da atividade arca com os riscos a
ela associados. A responsabilidade civil objetiva realiza, desse modo, a socialização de custos
(alguns autores preferem falar em “socialização de riscos” ou “distribuição de perdas”, operando
com conceitos semelhantes).
A responsabilidade civil, quando objetiva, cumpre também a função de socialização de custos. Os
exercentes de algumas atividades podem distribuir entre os beneficiários delas as repercussões econômicas
dos acidentes, mesmo que não tenham nenhuma culpa por eles.
Assim, de um lado, a função compensatória é comum à responsabilidade civil subjetiva e
objetiva; de outro, a função sancionatória é específica da subjetiva e a de socialização de custos, da
objetiva. Por fim, existe, como dito, uma outra função comum às duas espécies, que é a preventiva.
Tanto a responsabilidade subjetiva como a objetiva auxiliam a prevenção dos danos; fazem-no de
modo peculiar, porém.
A sanção imposta pela responsabilidade civil subjetiva tem em mira, em última análise, evitar
novos danos da mesma natureza. O motorista, apenado com a obrigação de indenizar a vítima de
sua imprudência, em tese tende a procurar ser mais cauteloso – pelo menos, isso também se espera
da aplicação das normas de responsabilização civil subjetiva. A própria função sancionatória,
assim, pode expressar-se também pela ideia de prevenção. Desestimulando as condutas ilícitas
causadoras de prejuízos a interesse alheio, a sanção civil contribui para que estes sejam evitados.
Referir-se à contribuição da lei para que novos danos da mesma natureza não ocorram seria
apenas um modo diferente de explicar a punição. Sanção e prevenção são, desse modo,
indissoluvelmente ligadas.
A responsabilidade civil objetiva, por sua vez, não cumpre função sancionatória. Por definição,
o devedor da obrigação de indenizar não incorreu em nenhum ilícito. Ele responde pelo dano
apenas porque se encontra numa posição econômica que lhe permite socializar os custos de sua
atividade entre os beneficiários dela. Ao ser responsabilizado, ele não é punido, até mesmo porque
nada fez de ilegal, segundo o direito em vigor. A indenização devida pelo Município aos
proprietários de imóveis desvalorizados pela proximidade de determinada obra viária não é uma
sanção imposta a ele com o objetivo de puni-lo por algo que não deveria ter feito.
Aparentemente, por não ser sanção, a responsabilidade civil objetiva também não cumpriria a
função preventiva. Se nenhuma mudança de comportamento é exigível do devedor, a imputação
da responsabilidade não teria o efeito de desestimular a conduta originária dos danos. Temia-se,
no passado, que a responsabilidade objetiva, além de não servir como medida de prevenção,
acabasse contribuindo para o incremento dos acidentes por retirar o freio moral às condutas
potencialmente danosas (cf. Ripert, 1925:207/226). Parecia que, se o sujeito responderia de
qualquer forma pela indenização, não seria estimulado a observar condutas mais cautelosas,
aprimorar controles na produção ou circulação de bens ou serviços, atentar para os efeitos
prejudiciais de seus atos, ou seja, de algum modo alterar seu comportamento para evitar o dano. A
função preventiva, por isso, sempre foi relacionada ao pressuposto subjetivo, à repressão aos atos
ilícitos (cf. Alpa, 1999:138/139).
Assim não é, contudo. Mesmo não tendo função sancionatória, a responsabilidade civil objetiva
cumpre, a seu modo, a função de prevenir novos prejuízos ou acidentes. O mecanismo preventivo
é diverso do que opera a responsabilidade subjetiva, mas existe. Em vez de proibir a conduta
originadora dos danos e sancionar a transgressão, a lei estimula o agente a buscar a prevenção
como meio de redução dos seus custos. Na competição empresarial, todos sabem, estar em
condições de vender produto de igual qualidade do concorrente por preço mais baixo é fator
decisivo. Se um empresário consegue reduzir a margem estatística dos acidentes de consumo
inevitáveis associados ao seu produto, ele poderá praticar preço menor que os dos concorrentes
que não conseguiram a mesma redução. Em outros termos, ele terá menos custos a socializar entre
os consumidores que os demais empresários com que compete, e poderá cobrar por seu produto
preço inferior ao deles. A seu turno, quando a Prefeitura é instada a considerar entre os custos de
qualquer obra viária as eventuais indenizações aos proprietários que teriam seus bens
desvalorizados, ela pesquisará melhores empregos para os recursos de que dispõe, investindo na
busca de solução para o problema do tráfego que não desvalorize os imóveis vizinhos.
A responsabilidade, por fim, cumpre função preventiva. Quando subjetiva, ao sancionar o ato ilícito
desestimula a sua prática; quando objetiva, ao tratar a indenização como custo de atividade estimula a
prevenção dos acidentes ou prejuízos como medida de racionalidade econômica.
Guido Calabresi assinala que, ao desestimular condutas potencialmente danosas, a
responsabilidade civil contribui para a redução da quantidade e gravidade dos acidentes e,
consequentemente, dos custos a eles relacionados. Previnem-se acidentes tanto por meio de
proibição a determinados atos ou atividades como tornando estas menos lucrativas. Para
Calabresi, aliás, a função preventiva da lei é mais importante até mesmo que a de compensar as
vítimas pelos prejuízos. Privilegiado o objetivo de redução dos custos associados aos acidentes, a
responsabilidade civil é mais eficiente ao evitá-los que ao atenuar seus efeitos (1970:24/31). Desse
modo, a prevenção é função tanto da responsabilidade civil subjetiva como da objetiva, embora de
modos bem diferentes (Alpa-Bessone, 2001:22/23; 566/578).
Para encerrar, vale registrar o alerta de André Tunc para o fato de que a prevenção de
acidentes depende, na verdade, de uma política ampla, que se valha de meios mais efetivos que a
ameaça da responsabilização (1989:141 e passim). Em suma, a responsabilidade civil pode
contribuir com a prevenção de danos e acidentes, mas não substitui medidas realmente capazes de
promover mudanças comportamentais e culturais, que são de natureza pedagógica.
5. Princípio da Indenidade
A convivência em sociedade pressupõe tanto a internalização de algumas externalidades
negativas como a não internalização de outras delas. Não há organização social sem interferências
prejudiciais de algumas pessoas sobre a situação, interesses ou bens de outras, mas apenas uma
parte delas deve ser compensada (Tunc, 1989:24). A dificuldade com que se deparam legisladores,
juízes e tecnólogos do direito no tratamento da matéria reside exatamente em segregar as
externalidades negativas que devem ser compensadas das demais; em outros termos, consiste em
definir que prejuízos derivados de condutas alheias são indenizáveis e quais não o são.
Viu-se acima (item 1), no exemplo do portador de doença rara, que não é a relevância do
prejuízo para a vítima que determina sua ressarcibilidade. Prejuízos sem grande relevância para a
vítima são indenizáveis (o fornecedor tem a obrigação de indenizar o consumidor, mesmo que seja
ínfimo o valor do dano), ao passo que não o são alguns de considerável repercussão (uma
concorrência competente e lealmente empreendida pode levar à falência o negócio alheio sem que
o dono deste possa reclamar ressarcimento). A externalidade negativa é internalizável, na
verdade, em função das necessidades gerais da organização econômica, às quais corresponde um
complexo sistema de valores desenvolvidos pela sociedade e expressos nas normas jurídicas
imputadoras de responsabilidade civil. Isso fica claro, por exemplo, no aparecimento da
responsabilidade objetiva no século XX. A imputação de obrigação de indenizar a quem não
comete nenhum ilícito, bem assim as mudanças ideológicas que acompanharam a evolução do
instituto jurídico pressupõem determinado acúmulo de capital. Se algum gênio jurídico tivesse
eventualmente formulado a teoria da responsabilidade objetiva antes do amadurecimento do
capitalismo, é provável que sua elaboração não tivesse repercussões de relevo; seria considerada
um verdadeiro equívoco de seu autor.
Até o início da segunda revolução industrial (1860-1914), os acidentes que vitimavam os
operários em seu contato diário com as máquinas não eram considerados indenizáveis. Mesmo
hoje, com constantes campanhas educativas e desenvolvimento de tecnologias de segurança do
trabalho, há uma margem estatística de inevitabilidade nesses acidentes. O operário muitas vezes
se desconcentra e sofre a lesão por descuido dele mesmo. No passado, em que medidas
preventivas não existiam e o empregador não se dera conta dos prejuízos que ele próprio sofre
com os acidentes de trabalho, estes se multiplicavam matando ou ferindo milhares de operários. A
inevitabilidade afastava a hipótese de culpa ou dolo do empregador e classificava o evento como
caso fortuito: ninguém respondia pelos danos. O operário arcava sozinho com as consequências do
acidente; se perdia a capacidade laborativa, ficava condenado à miséria. Desde o fim do século
XIX, porém, o acúmulo de capital possibilitou a criação de mecanismos de amparo dos empregados
na hipótese de acidente de trabalho, no contexto da seguridade social (Tunc, 1989:27/28;
Russomano, 1979:303/312). Foi Bismarck, chanceler da recém-unificada Alemanha, que criou, em
1888, o primeiro sistema público de compensação de acidentes de trabalho. Em todo o mundo,
principalmente no decorrer do século XX, surgiram, com as contribuições dos assalariados, dos
empregadores e de toda a sociedade, fundos responsáveis pelo pagamento de algum auxílio ao
acidentado – que, se não os indeniza por completo, pelo menos reduz as repercussões do evento
danoso inevitável. Esses fundos distribuem os custos dos acidentes entre as pessoas expostas a eles
(empregados) e os beneficiados pela atividade geradora do risco (empregadores e sociedade). No
Brasil, o INSS deve aos acidentados um benefício previdenciário específico (Lei n. 8.213/91, arts. 19
a 21).
A definição das externalidades negativas passíveis de internalização não deriva da simples
vontade dos homens e mulheres envolvidos com a elaboração e aplicação das normas jurídicas. No
passado, os danos inevitáveis derivados de uma atividade não eram indenizáveis, e hoje são, não
porque subitamente se atentou para a injustiça da exclusão da responsabilidade na hipótese, mas
sim porque o acúmulo de capital é já suficiente para a internalização dessa externalidade. No
futuro, dependendo do desenvolvimento da organização econômica, talvez o portador de doença
rara possa ter o seu infortúnio de alguma forma compensado pela sociedade.
Em termos puramente lógicos, a regra seria a da irresponsabilidade. Em princípio, cada um
deveria arcar com seus próprios prejuízos, e a imputação a outrem de responsabilidade civil por
eles teria natureza de exceção. Ao titular do interesse ou bem prejudicado caberia o ônus de
provar o ato ou fato constitutivo da obrigação de alguém o indenizar, se quisesse ser ressarcido
pelos danos. Esse esquema, que dava certa congruência lógica à inserção da responsabilidade civil
no direito das obrigações, foi largamente aceito durante muito tempo. Mas, desde meados do
século passado, não tem mais servido à estruturação dos fundamentos da disciplina. O valor
básico desenvolvido pela jurisprudência e tecnologia jurídica no tratamento dos conflitos de
interesses relacionados a acidentes e danos em geral tem sido, desde então, o da busca da
ampliação da indenidade.
Pelo princípio da indenidade, a elaboração, interpretação e aplicação das normas de responsabilidade
civil devem ser feitas com o objetivo de facilitar o acesso da vítima à indenização. Não é possível sustentar-se
nele, porém, a indenidade plena prometida pelo Estado mutualista; muito menos a indenidade absoluta, que
parece ser incompatível com a vida em sociedade.
Privilegia-se, então, a preservação da situação, interesses e bens de cada um. Como se todos
titularizássemos o direito de não os ter alterados contra nossa vontade. Se qualquer conduta alheia
interfere negativamente na situação, interesses ou bens de certo sujeito, ele tem assegurado pelo
Direito o retorno ao status quo ante – tal passa a ser o valor perseguido pelas normas imputadoras
de responsabilidade civil. Chama-se a noção de princípio da indenidade. Em função dele, a regra é a
da indenizabilidade de qualquer dano sofrido por um sujeito de direito por causa de outra pessoa;
a exceção é a inexistência de responsabilidade.
O princípio da indenidade inverte a equação fundamental do tratamento da matéria, que
afirmava a irresponsabilidade como regra, e alarga o âmbito de incidência das normas
imputadoras de responsabilidade civil. Busca-se por ele a facilitação do acesso da vítima à
indenização.
Em decorrência desse princípio jurídico, o objetivo da responsabilidade civil tem sido amparar
a vítima, facilitando a recomposição dos prejuízos. Mas não se pode desprezar que o grau de
internalização das externalidades negativas é regido, em última instância, pelo estágio de evolução
das forças produtivas e não por decisões livres dos seres humanos. Não há acúmulo de capital
suficiente, por enquanto, para cogitar-se da indenidade plena (embora esteja já em curso
experiência com este objetivo na Nova Zelândia – subitem 5.1). Em suma, o princípio da
indenidade não implica a responsabilização de todo sujeito cuja ação ou omissão seja, direta ou
indiretamente, prejudicial a alguém. Até mesmo porque indenidade plena não significa
indenidade absoluta: para que seja possível a vida em sociedade, algumas externalidades
negativas não são e não devem ser internalizáveis.
5.1. Estado mutualista: a experiência neozelandesa
Quando a preservação da situação, interesse ou bem dos sujeitos lesados por conduta alheia
garante-se apenas por norma de responsabilidade civil (isto é, por preceitos legais de direito
privado), surgem duas preocupações. De um lado, a indenidade pode ser ameaçada pela
incapacidade econômica do agente a quem se imputa o dano. Se não dispuser ele de recursos
patrimoniais para cumprir inteiramente a obrigação indenizatória, a vítima continuará arcando
com pelo menos parte do prejuízo. Por outro lado, também não parece justo nem racional que a
imputação de responsabilidade civil possa levar o devedor da obrigação indenizatória à ruína
econômica. Pode ocorrer de o valor do dano provocado por uma só conduta negligente equivaler
ou superar o do patrimônio amealhado ao longo de uma dedicada vida de trabalho. Diante destas
preocupações, costuma-se apontar como solução a obrigatoriedade da contratação de seguros
privados ou mesmo a implantação de sistemas públicos de socialização de riscos. São medidas que
visam tornar efetivos os objetivos prestigiados pelo princípio da indenidade.
Além dos fundos de seguridade social destinados ao amparo de vítimas de acidente de trabalho,
outros mecanismos de socialização das repercussões econômicas de eventos danosos
desenvolveram-se ao longo do século XX. Os acidentes automobilísticos, por exemplo, despertaram
preocupações semelhantes aos de trabalho, porque mesmo os motoristas mais cautelosos vez por
outra os causam. Pesquisas nos Estados Unidos concluíram que os motoristas cometem em média
um erro a cada três quilômetros, e que, numa cidade planejada como Washington, os bons
condutores (como tais definidos os que não se envolvem em acidente há quatro anos), incorrem
em mais de nove erros de quatro tipos diferentes em cinco minutos de direção (Tunc, 1989:116).
A obrigatoriedade do seguro privado é um dos instrumentos da lei para buscar a ampliação da
indenidade nos casos de acidente de trânsito. No Brasil, todo o proprietário de veículo automotor
terrestre é obrigado a contratar seguro para a cobertura de danos pessoais causados em eventos
dessa natureza (Lei n. 6.194/74). Em alguns lugares, como na Argélia ou em Québec, os seguros
automobilísticos são públicos; representam, como propõe André Tunc, um ramo da seguridade
social (1989:29). A imputação de responsabilidade civil, nestes casos, é, por assim dizer, substituída
por instrumentos de direito público: norma administrativa que condiciona o licenciamento do
veículo à contratação do seguro obrigatório ou criação da seguradora pública. No limite, cogita-se
de um Estado mutualista, isto é, de organização estatal que se arvora função de seguro de todo e
qualquer dano. Além do que propõe o Estado do bem-estar social – isto é, prover aposentadoria,
auxílio-desemprego, pensão por morte e amparo em caso de acidentes de trabalho –, o Estado
mutualista busca garantir a plena indenidade em qualquer hipótese de evento danoso que possa
vitimar seus jurisdicionados: trânsito, erros médicos, má conservação de passeios públicos,
sequelas psíquicas de crimes sexuais etc.
Existe, até hoje, uma única experiência de Estado mutualista. Trata-se da Nova Zelândia, que,
em 1974, criou um inédito sistema de reparação de danos provocados por qualquer tipo de
acidentes, não somente os de trabalho e automobilísticos, cuja administração foi atribuída a uma
agência estatal, a Accident Compensation Commission (ACC). Em virtude desse sistema, qualquer
cidadão neozelandês e mesmo o estrangeiro residente ou visitante que vierem a sofrer acidente na
Nova Zelândia têm o direito de receber da ACC o pagamento das despesas médico-hospitalares
com tratamento, transporte e reabilitação, além de pensão semanal, indenização por incapacidade
permanente e pelos danos morais sofridos. Em caso de morte, o cônjuge e os filhos têm direito aos
benefícios. A ACC também paga – por enquanto apenas para cidadãos neozelandeses – tratamento
psicológico às vítimas de estupro e outros crimes sexuais.
Atualmente, os recursos do sistema são provenientes de dotação orçamentária (isto é, dinheiro
resultante do pagamento de tributos em geral), contribuições (premiums) pagas pelos
empregadores, tomadores de serviços, profissionais autônomos e empregados domésticos, além de
imposto incidente sobre o preço dos combustíveis e parte da taxa de licenciamento de veículos.
O sistema neozelandês de busca da ampla indenidade tem-se aperfeiçoado desde a
implantação. Houve reformas em 1982, 1990, 1992, 1998, 2000 e 2001. A mais significativa delas,
por se referir a aspectos fundamentais de um Estado mutualista, foi a de 1998, durante o governo
do Partido Nacionalista. Nela, a lei foi alterada para se admitir o seguro privado de acidentes de
trabalho, retirando o monopólio nesse setor da ACC. Com a eleição dos trabalhistas, porém,
restaurou-se em 2000 o critério anterior, de cobertura pela seguridade social de todos os eventos
danosos. O objetivo da reforma de 2001, a seu turno, foi acentuar a adoção pela ACC de medidas
preventivas dos acidentes, com o objetivo de contribuir para a economia dos recursos existentes.
Em razão desse sistema, a lei neozelandesa não imputa responsabilidade civil ao sujeito que
causa o acidente (Tunc, 1989:81). Se, em viagem a Auckland, um brasileiro é atropelado por
imprudência do condutor do automóvel, ele terá direito de receber os benefícios da ACC, mas não
poderá processar o motorista ou o proprietário do veículo. Da mesma forma, se um neozelandês
sofre acidente praticando rafting no rio Shotover, e, ao ser submetido a cirurgia reparadora num
hospital de Queenstown, tem o movimento de suas pernas irreversivelmente danificados por erro
médico, ele não pode reclamar indenização contra o profissional ou o estabelecimento hospitalar,
mas apenas pleitear na ACC os benefícios da lei (Injury Prevention, Rehabilitation, and
Compensation Act, de 2001).
Está em curso, desde os anos 1970, na Nova Zelândia, uma experiência única até agora de implantação
do Estado mutualista. Todos os acidentes geram para o Estado a obrigação de pagar um benefício ao
acidentado, mas ninguém pode ser civilmente responsabilizado por eles.
Embora a Nova Zelândia pareça estar bastante satisfeita com o sistema, nenhum outro país, até
agora, ousou imitá-la – nem mesmo a Austrália, a despeito das enormes semelhanças culturais,
históricas e econômicas que a unem ao vizinho. A experiência do Estado mutualista
provavelmente não deve expandir-se, senão após um novo grande ciclo de acumulação capitalista
que permita a criação de mecanismos sociais de garantia da plena indenidade. Não parece
próximo, porém, esse cenário. Até lá, continuará sendo por meio da responsabilidade civil – isto é,
por regras de direito privado – que as vítimas poderão buscar compensação pelas externalidades
negativas que as atingem.
5.2. Responsabilidade objetiva pura
São quatro os sistemas de responsabilidade civil: a subjetiva clássica, subjetiva com presunção
de culpa, objetiva simples e objetiva pura. Nos dois primeiros, o pressuposto subjetivo é relevante,
enquanto nos últimos não. Os sistemas subjetivos distinguem-se, por sua vez, pela distribuição do
ônus da prova. Numa demanda judicial em que se pleiteia a indenização de danos regida pelo
sistema da responsabilidade subjetiva clássica, cabe ao demandante (vítima) provar a culpa do
demandado; se a regência da matéria faz-se pelo sistema de responsabilidade subjetiva com culpa
presumida, o ônus da prova inverte-se e ao demandado (a quem se imputa a responsabilidade)
compete demonstrar a inexistência de culpa para exonerar-se da obrigação. No Brasil, a
responsabilidade do proprietário pelos danos causados pela ruína do imóvel rege-se por norma de
presunção de culpa (CC, art. 937). Finalmente, os sistemas objetivos distinguem-se pela relevância
da relação de causalidade na constituição do vínculo obrigacional. Quando simples (ou “comum”),
não há responsabilidade daquele que, de algum modo, não contribuiu para o acidente; na pura (ou
“agravada”), ao contrário, o devedor obriga-se a despeito de inexistir qualquer relação de
causalidade que ate sua atividade ao dano.
A responsabilidade dos fundos públicos é classificada como objetiva pura, porque prescinde,
para a sua constituição, de relação de causalidade entre qualquer conduta dela, devedora do
benefício, e o dano suportado pela vítima credora. Se a responsabilidade subjetiva está
condicionada a três pressupostos (culpa do devedor, dano do credor e relação de causalidade entre
aquela e este), e a objetiva simples a dois (dano do credor e relação de causalidade entre atividade
ou ato do devedor e este), a subespécie objetiva pura depende apenas do dano infligido ao sujeito
ativo da relação obrigacional. Esta subespécie, porém, escapa do interesse do direito privado.
Cuida das obrigações constituídas por responsabilidade objetiva pura no ramo ou ramos do direito
público. Das obrigações, no Brasil, que a lei reserva ao INSS trata o direito previdenciário.
O sistema de responsabilidade objetiva pura procura afastar as ameaças ao princípio da
indenidade que a solução de direito privado oferece. Quando o devedor da obrigação de indenizar
não tem patrimônio suficiente para recompor o prejuízo por completo ou o cumprimento da
obrigação o leva à ruína, o resultado é incontestavelmente injusto e frustrante. O seguro de
responsabilidade civil costuma ser apontado como alternativa (Tzirulnik, 2000; Alpa, 1993), mas
esbarra em dificuldades de cumprir o objetivo de afastar aquelas ameaças à indenidade,
principalmente a partir da substituição, generalizada no mundo todo, da cláusula loss occurence
pela claims made. Por enquanto, apenas a socialização dos riscos pela constituição de fundos
públicos responsabilizáveis segundo o sistema de responsabilidade objetiva pura tem-se
apresentado como alternativa eficiente à solução de direito privado.
Registre-se que é considerada por alguns tecnólogos civilistas como exemplo de
responsabilidade civil objetiva pura a das estradas de ferro por danos derivados de ato de terceiro
que vitima o passageiro durante o transporte (Dec. n. 2.681/12, art. 18). Se alguém atravessa com
seu veículo a ferrovia desrespeitando o bloqueio que anunciava a passagem do trem, é evidente
que a culpa pelo desastre não cabe à estrada de ferro. Ela tem, no entanto, a responsabilidade de
indenizar os danos sofridos por seus passageiros, cobrando-os em regresso do culpado pelo
evento. Para os que veem nesta hipótese exemplo de responsabilidade objetiva pura, não se teria
estabelecido qualquer relação de causalidade entre o dano suportado pelo credor e a conduta do
devedor, mas este responde porque a atividade geradora do risco traz-lhe vantagens. O
agravamento da objetivação no sentido de dispensar até mesmo a relação de causalidade é vista,
então, como nova etapa evolutiva da tendência iniciada com a superação do pressuposto subjetivo
(cf., por todos, Noronha, 1999:37/38).
Não concordo com essa forma de classificar a matéria, que acaba reconhecendo hipótese de
responsabilidade objetiva pura no campo do direito privado. Na responsabilização do empresário
por acidente de consumo causado por ato de terceiro (é este o caso do desastre na linha ferroviária
não derivado de culpa da estrada de ferro) não se encontra, a meu ver, nenhuma modalidade
diversa de objetivação. Regem a matéria normas do sistema de responsabilidade objetiva simples.
Independentemente da origem – ato do empresário, de seus empregados ou de terceiros –, o
acidente de consumo é custo da atividade empresarial, que as normas de responsabilidade civil
socializam entre os consumidores. Desse modo, pela classificação adotada neste Curso, não há
imputação de responsabilidade civil pura regida por normas de direito privado. A
responsabilidade objetiva pura é sempre matéria de interesse do direito público.
5.3. Distorção do princípio da indenidade: o Judiciário como justiceiro
Pelo princípio da indenidade, a lei deve facilitar o acesso da vítima à indenização. A
interpretação e aplicação das normas de responsabilidade civil, subjetiva ou objetiva, devem ser
feitas com atenção a este princípio, não há dúvida. Não se podem, porém, perder de vista os
fundamentos de cada espécie de responsabilidade civil, sempre que discutida a imputação a um
sujeito da obrigação de indenizar. Do princípio da indenidade não se segue que todo e qualquer
dano deva ser reparado. Continuam a existir externalidades negativas não suscetíveis de
internalização.
Por vezes, a má compreensão do alcance do princípio da indenidade se traduz numa infeliz
tendência de setores do Poder Judiciário no sentido de condenar certos sujeitos de direito a
indenizar outros tão somente pelo fato de serem mais ricos. Quando o consumidor demanda o
empresário, o particular processa o Estado ou o necessitado reclama do INSS, muitas vezes alguns
juízes adotam um raciocínio simplista ao imputarem a responsabilidade ao demandado. No
fundamento da decisão encontram-se difusas referências à objetivação da responsabilidade e ao
princípio da indenidade, mas a leitura atenta da sentença ou acórdão permite concluir que a razão
verdadeira da condenação era apenas a condição econômica mais favorável do réu.
A lógica, no plano isolado da lide em julgamento, é irrepreensível. Para o demandado, tendo em
vista sua força econômica, a condenação representa impacto econômico ou patrimonial de
pequena ou nenhuma relevância, facilmente absorvível; para o demandante, por outro lado, está
em questão muitas vezes a própria sobrevivência e a de sua família. Não custa nada, em outros
termos, condenar aquele empresário, o Estado ou o INSS a pagarem o relativamente pouco
pleiteado pelo autor. Movidos, então, por sinceros valores de justiça, os juízes adotam a solução
simplista: tiram do rico para dar ao pobre. Adotam postura que já foi qualificada alhures, em
referência ao comportamento de jurados envolvidos com o julgamento de causas cíveis contra
empresas nos Estados Unidos, como a de um moderno Robin Hood, impulsionada pela natural
simpatia que desperta no espírito do julgador popular a causa do fraco em litígio contra o forte (cf.
Hans, 2000:13 e 22).
Essa distorção do princípio da indenidade trata o patrimônio dos réus como verdadeiras
cornucópias, de onde se podem extrair recursos infindáveis para aplacar infortúnios alheios.
Normalmente esses réus são sujeitos de direito a quem a lei imputa responsabilidade objetiva e,
portanto, ocupam posição econômica que lhes permite socializar custos da atividade; são vistos,
assim, como capazes de suportar sem dificuldade qualquer condenação (deep pocket method); isto,
porém, é um equívoco. Se, no plano isolado da lide, o pleito tem pequeno ou nenhum impacto para
o patrimônio do demandado e relevância ímpar para o do demandante, sua repetição pode
importar sério comprometimento não só para o condenado como para toda a sociedade. No limite,
se os empresários de um setor são normalmente condenados a suportar indenizações imputadas
em razão do método deep pocket, quem acaba pagando por isso, é o consumidor do produto ou
serviço em questão. Essas indenizações pressionam os preços para cima, são fontes de carestia. No
mundo de economia globalizada, além disso, tal distorção do princípio da indenidade conduz ao
afastamento de investidores estrangeiros, que vão procurar oportunidades de negócio em outros
países de maior racionalidade nos marcos institucionais.
O juiz, ao apreciar casos de responsabilidade civil objetiva, deve atentar para o mecanismo de
socialização de custos que ela forçosamente viabiliza, de modo a não acabar agravando de forma
injusta aqueles que, em última análise, vão suportar as consequências da decisão judicial.
Considere, por exemplo, a jurisprudência que tem responsabilizado o Banco Central pelos
prejuízos aos investidores quando decretada a liquidação extrajudicial dos bancos em que tinham
investimentos. Muitas vezes, ela apenas protege a ganância de algumas poucas pessoas à custa de
toda a sociedade. Com efeito, às vésperas de crise de liquidez, o banco tende a oferecer
remuneração por seus títulos (CDB) com juros acima do mercado, com o objetivo único de captar
os recursos de que tanto necessita. Os gananciosos que investem em títulos de banco nessa
situação apenas pensam no ganho imediato; por ignorância ou má-fé, não consideram o risco que
correm – maior do que os associados à maioria dos demais investimentos. Se a crise de liquidez
levar o banco ao estado de insolvência, o Banco Central decreta sua liquidação extrajudicial. Em
consequência, é provável que aquele investidor perca seu dinheiro, ou pelo menos demore muito a
receber de volta parte dele. Quando a justiça considera o Banco Central responsável objetivamente
por danos dessa natureza, tomando-o como uma espécie de seguradora geral dos consumidores de
serviços bancários, o resultado é a divisão entre todos os brasileiros, contribuintes dos impostos
que alimentam a dotação orçamentária daquela autarquia, do ressarcimento pela perda dos
poucos investidores atraídos pela excepcional taxa remuneratória. A opção por investir no título
de maior remuneração acaba, pois, revelando-se ato de pura ganância desastrosa, mas
completamente isenta de riscos. Em vez de estes serem suportados apenas pelo investidor que
buscava remuneração acima da do mercado, foram socializados entre todos os brasileiros que
pagam seus impostos, em razão da decisão judicial que deu interpretação distorcida ao princípio
da indenidade.
Uma distorção do princípio da indenidade tem-se verificado na infundada imputação de
responsabilidade a empresários, ao Estado ou ao INSS, apenas em razão da melhor condição econômica
deles em face do sujeito que pleiteia a indenização.
Embora menos comum, a responsabilidade subjetiva também tem sido imputada em
decorrência de igual distorção do princípio da indenidade, isto é, somente pela circunstância de
ser o demandado mais rico que o demandante. Claro que, a exemplo da aplicação do método deep
pocket na imputação de responsabilidade objetiva, a decisão é revestida por referências
superficiais ao princípio da indenidade que mal disfarçam a verdadeira motivação do juiz. Se
trabalhador braçal de parcas rendas fica paraplégico após ser atropelado por veículo conduzido
pelo motorista particular de um próspero profissional liberal, ainda que tenha sido o evento
causado exclusivamente por culpa da vítima, o extraordinário drama pessoal que emerge dos
autos judiciais pode levar o juiz, muitas vezes inconscientemente, a condenar o demandado –
apenas porque esta é a única forma de garantir àquela vítima alguma renda, estando claro que
isso não importará pesados encargos à outra parte. Puro distributivismo movido pela vontade de
atenuar os azares com que são surpreendidos os desafortunados. Nesta hipótese, porém, o
condenado não terá meios de socializar as repercussões econômicas da distorcida decisão, já que
não ocupa posição econômica que o permita, e as suportará sozinho.
6. Dano
Elemento comum a qualquer espécie (ou subespécie) de responsabilidade civil é a ocorrência
de danos ao credor. Tanto na responsabilidade civil subjetiva como na objetiva, incluindo a
subespécie pura, não se constitui o vínculo obrigacional se o credor não tiver sofrido dano. O
desatendimento a este pressuposto caracteriza hipótese de exclusão de responsabilização (Cap. 24,
item 2).
Uma pessoa pode incorrer em ato ilícito sem acarretar danos a ninguém. Não tem, neste caso,
responsabilidade civil. Mesmo configurado o pressuposto subjetivo, se da conduta culposa não
resultar prejuízo a outrem, a obrigação de indenizar não existe. Se um comerciante se estabelece
em zona residencial, pratica ato ilícito, infringente da lei municipal que proíbe e sanciona a
localização irregular. Além da responsabilidade administrativa, efetivada por medidas como
multas ou fechamento do estabelecimento, o ato ilícito gera a responsabilidade civil perante os
moradores da zona residencial, caso eles tenham experimentado algum prejuízo. Se, pelo
contrário, os vizinhos até apreciavam o comércio ali instalado, frequentando a loja e consumindo
os produtos postos à venda, e não suportaram dano nenhum em decorrência do ilícito, inexistem
as condições para a imputação de responsabilidade civil ao comerciante irregularmente
estabelecido.
Também nas hipóteses sujeitas à responsabilização objetiva a ocorrência de dano é condição
essencial à constituição da obrigação de indenizar. Considere o exemplo da colocação no mercado
de alguns automóveis com defeito de fabricação no sistema de freios. O defeito é gravíssimo
porque compromete, em pouco tempo, o funcionamento do sistema e pode ocasionar sérios
acidentes. A fábrica alerta-se para o problema após a venda de meia centena de carros defeituosos,
mas antes de qualquer evento danoso. Promove, então, um eficiente recall e consegue consertar
todos aqueles veículos. A possibilidade de graves prejuízos para os donos dos automóveis
defeituosos e para os familiares e amigos que eles transportaram antes do reparo era enorme. Não
ocorreu, porém, nenhum dano, e, por isso, não há qualquer responsabilidade civil do fornecedor.
A existência de dano é condição essencial para a responsabilidade civil, subjetiva ou objetiva. Se quem
pleiteia a responsabilização não sofreu dano de nenhuma espécie, mas meros desconfortos ou riscos, não
tem direito a nenhuma indenização.
Convêm classificarem-se os danos de acordo com os seguintes critérios:
a) Materiais ou pessoais. Os danos materiais atingem bens, enquanto os pessoais matam ou
comprometem a integridade física ou moral de homens ou mulheres.
Qualquer tipo de bem pode ser danificado, inclusive os incorpóreos. O concorrente desleal que
usurpa marca registrada inflige danos a um bem imaterial que se traduz na perda de faturamento
por desvio ilegítimo de clientela. A despeito da imaterialidade do bem danificado, chama-se
material o dano neste caso, em contraposição aos que afligem a própria pessoa do sujeito ativo da
obrigação de indenizar.
A classificação tem relevância jurídica em primeiro lugar em função da maior importância da
perda na hipótese de danos pessoais. Nenhuma coisa, por mais importante, necessária ou útil que
seja para seu dono, vale mais que qualquer ser humano. Este valor jurídico fundamental tem
implicação, por exemplo, na exclusão de ilicitude em razão de estado de necessidade. Lembre-se,
não é ato ilícito o que redunda danos à coisa alheia ou lesão a pessoa com o objetivo de remover
perigo iminente (CC, art. 188, II). Desse modo, não está obrigado a indenizar os danos quem age
visando preservar sua pessoa ou seus bens ou os de outrem, porque não incorreu em conduta
culposa. Note que, no estado de necessidade, o direito de um sujeito é forçosamente sacrificado
para salvar o de outro. Para que não se caracterize o ato ilícito, o sacrifício deve ser necessário e
não pode ultrapassar os limites do indispensável para remoção do perigo iminente. Faltando
qualquer um desses requisitos, quem se excedeu nos danos causados pelo estado de necessidade
tem a obrigação de indenizá-los.
Na aferição dos requisitos do estado de necessidade como excludente de ilicitude, tem
relevância a distinção entre danos materiais e pessoais. Entre duas coisas, não se exige que a
sacrificada seja menos valiosa que a salvaguardada (Monteiro, 2001, 1:291). Assim, se tanto o dano
causado por quem estava em estado de necessidade como o evitado eram materiais, o valor de
cada um deles é irrelevante para a descaracterização do ato ilícito. Claro, se o sacrifício imposto ao
bem alheio foi maior do que o necessário para a remoção do perigo de dano ao bem próprio,
haverá ilicitude, mas isto independentemente de qual dos bens valia mais ou menos.
Também não há como operar com qualquer noção de valor dos danos em questão (o causado e
o evitado) quando o perigo iminente ameaçava pessoa e, para salvaguardá-la, era necessário o
sacrifício de outra. No naufrágio em alto mar, Antonio está tendo dificuldade para manter-se à
tona porque Benedito, que não sabe nadar, agarrou-se atabalhoadamente ao seu pescoço. É lícito
que Antonio, para salvar a vida, use a força para livrar-se de Benedito, ainda que o ato signifique a
morte dele.
Quando, porém, alguém em estado de necessidade causa dano pessoal com o objetivo de evitar
dano material, a exclusão da ilicitude não tem lugar. Quem sacrifica a integridade física ou moral
ou mesmo a vida de uma pessoa para remover perigo iminente sobre coisa incorre sempre em ato
ilícito, por mais valioso que fosse o bem posto a salvo.
Danos materiais são os que atingem as coisas, inclusive os bens incorpóreos. Pessoais são os danos
infligidos a homem ou mulher que atingem sua integridade física ou moral ou causam-lhe a morte.
Além dessa implicação, a classificação entre danos materiais e pessoais tem importância no
campo dos seguros. As coberturas costumam variar para as hipóteses de dano material ou pessoal.
Para os proprietários de veículos automotores terrestres, ademais, o seguro para cobertura de
danos pessoais é obrigatório (DPVAT), mas é facultativo de danos materiais.
b) Patrimoniais ou extrapatrimoniais. Danos patrimoniais são os que reduzem o valor ou
inutilizam por completo bens do credor da indenização. Implicam sempre diminuição do
patrimônio da vítima. Extrapatrimoniais, por sua vez, são os relacionados à dor por ela
experimentada. Não repercutem no patrimônio do credor da obrigação de indenizar, e são
chamados, também, de danos morais.
O ato ilícito ou acidente podem causar somente danos patrimoniais. Considere, por exemplo, o
esbulho de um terreno baldio. Por mais incômodos que o evento traga ao proprietário, não implica
nenhuma dor merecedora de compensação pecuniária. De outro lado, eles podem implicar
somente danos extrapatrimoniais. Pense na dor experimentada por quem lê no jornal notícia falsa
do falecimento de familiar. O fato não impacta de nenhuma forma o patrimônio do leitor. É
comum, porém, que o mesmo evento danoso cause danos dessas duas espécies. Como demonstra
Aguiar Dias, em sua origem, o dano é uno, embora possa projetar efeitos patrimoniais ou
extrapatrimoniais (1954, 2:428). A perda do pai num acidente de trânsito implica para o filho
menor danos patrimoniais – representados pelos gastos com sustento, moradia, educação, lazer e
demais necessidades custeadas pelo ascendente – e extrapatrimoniais – a dor pela morte da pessoa
querida. O evento danoso, nota-se, foi um só, mas com repercussões materiais e morais.
Os danos, mesmo os morais, quase sempre se compensam em dinheiro. É pecuniária a maioria
das obrigações de indenizar nascidas da responsabilidade civil. Quando se trata de compensação
de danos patrimoniais, o valor da indenização equivale ao prejuízo. Nesta hipótese, o
cumprimento da obrigação restitui o patrimônio defasado pelo dano à condição anterior ao
evento. A vítima não enriquece com o ressarcimento dos danos patrimoniais. Já quando se
compensam danos extrapatrimoniais, o valor da indenização não pode ser estabelecido como
equivalente ao prejuízo no patrimônio da vítima, simplesmente porque este não ocorre. É ainda
compensação pelo dano moral, mas não equivalente a este. O sujeito ativo da relação obrigacional
correspondente à compensação de danos extrapatrimoniais enriquece com a indenização. A
relevância desta classificação repercute, portanto, na mensuração da indenização (Cap. 25).
Danos patrimoniais são os que reduzem o patrimônio da vítima; extrapatrimoniais os que causam-lhe
dor merecedora de compensação.
Os danos materiais são necessariamente patrimoniais e os extrapatrimoniais, sempre pessoais.
Os danos materiais são necessariamente patrimoniais. Se o evento compromete ou reduz o
valor de alguma coisa, isto repercute no patrimônio do proprietário, diminui-o. Os danos pessoais,
por sua vez, podem ser patrimoniais ou extrapatrimoniais. Se alguém tem a locomoção motora
prejudicada por atropelamento causado por culpa do motorista de um ônibus de transporte
urbano, as despesas médico-hospitalares com o tratamento, a perda de renda pelos dias parados e
o custeio de novas necessidades com utensílios e reforma da casa integram os danos patrimoniais
que devem ser indenizados pela empresa proprietária do veículo. A dor suportada pelo cônjuge
não culpado pelo rompimento do vínculo matrimonial exemplifica hipótese de danos pessoais
extrapatrimoniais. Assim, enquanto os danos patrimoniais podem ser materiais ou pessoais, os
extrapatrimoniais são invariavelmente pessoais.
c) Diretos ou indiretos. Os danos diretos são aqueles para os quais contribuiu unicamente o
evento danoso; são sua consequência imediata. Já os indiretos são os danos decorrentes dos
diretos; são a consequência mediata do evento danoso. O vizinho, aproveitando-se da ausência dos
donos da casa, faz ligação de força clandestina com o objetivo de furtar eletricidade. Por descuido,
desliga o fornecimento regular. Como consequência da falta de energia elétrica, o congelador não
funciona. Além de se perderem todos os congelados, o próprio equipamento fica imprestável pela
impregnação dos odores exalados dos alimentos deteriorados. O furto de eletricidade corresponde
ao dano direto, enquanto a perda do congelador e de seu conteúdo ao indireto.
Não se podem confundir os danos indiretos com os lucros cessantes (Gomes, 1961:273). A parte
da indenização correspondente ao que a vítima razoavelmente deixou de lucrar integra a
compensação pelos danos diretos e não deve ser considerada consequência mediata do evento
danoso.
Dano direto é a consequência imediata do evento danoso; indireto, a consequência mediata. O ato ilícito
ou fato jurídico desencadeia o dano direto e este dá ensejo ao indireto.
Em razão do princípio da indenidade, a vítima tem direito à indenização tanto pelos danos diretos como
pelos indiretos.
A tecnologia civilista tem ensinado que, em regra, os danos indiretos não são indenizáveis.
Responderia o devedor da obrigação de indenizar pelos danos indiretos apenas de forma
excepcional. Os autores brasileiros que argumentam nesse sentido não apresentam, porém, os
parâmetros da regra de exceção (Diniz, 2003:63; Gomes, 1961:273; Pereira, 1989:316). Penso que a
lição deve ser descartada, prestigiando-se o princípio da indenidade. De um lado, não há razões
para excluir da indenização o valor dos danos indiretos. De outro, a facilitação do acesso da vítima
à indenização, que tem inspirado o direito de responsabilidade civil, tem o objetivo de garantir ao
sujeito passivo da obrigação o mais completo ressarcimento. A recuperação do patrimônio do
credor à condição anterior ao evento danoso só se verifica inteiramente se os danos indiretos
forem também indenizados.
d) Individuais ou coletivos. O dano é individual quando lesa uma ou algumas pessoas e coletivo
quando um conjunto considerável (por vezes, indeterminado) de pessoas sofre a lesão.
A responsabilidade civil é uma obrigação em que no polo ativo está aquele que sofreu danos e
no passivo, o que lhe deve pagar a indenização compensatória. Como em qualquer obrigação, a
cada polo da relação jurídica corresponde uma parte, um centro de interesses convergentes. E
cada parte, por sua vez, pode referir-se a um só sujeito de direito ou a dois ou mais. Em outros
termos, a responsabilidade civil pode ser obrigação simples (um só credor prejudicado ligado a um
só devedor a quem se imputa a obrigação de indenizar) ou complexa (mais de um credor ou mais
de um devedor). A questão jurídica pertinente à complexidade da parte passiva da
responsabilidade civil diz respeito à solidariedade dos sujeitos aos quais se imputa a obrigação de
indenizar, que será examinada mais à frente (Cap. 25, item 5). A classificação dos danos em
individuais e coletivos insere-se no tema da complexidade da parte ativa da obrigação de
indenizar.
Quando mais de um sujeito de direito é credor de indenização em função da responsabilidade
civil do devedor, duas hipóteses devem ser distinguidas: na primeira, o dano lesou duas ou mais
pessoas ligadas por vínculo específico, como o de parentesco, condomínio, parceria etc. Não se
considera, aqui, malgrado a pluralidade de sujeitos ocupantes do polo ativo da relação
obrigacional, que o dano tenha sido coletivo. Se alguém culposamente atropela e mata um homem
casado com filhos menores, a viúva e os órfãos são sujeitos ativos da obrigação por
responsabilidade civil decorrente do ilícito. Quando esbulhada a posse de imóvel titularizado em
condomínio por dois ou mais amigos, o crédito pela indenização cabe aos condôminos. Caso os
interesses objeto de uma parceria sejam prejudicados por culpa de terceiros, integram a parte
ativa da relação obrigacional os parceiros. O dano, porém, não é coletivo nesses casos, porque
entre os credores há um vínculo jurídico específico.
Pense, agora, em danos ao meio ambiente, ao regular funcionamento do mercado ou a
consumidores. Aqui, estamos diante de uma hipótese diversa de complexidade da parte ativa do
vínculo obrigacional. Quando óleo vaza durante a operação de descarga de navio petroleiro,
contaminando o mar, prejudicados são não só os pescadores privados da atividade econômica
enquanto duram os trabalhos de limpeza, os moradores da região, os turistas e os que vivem do
turismo, o Estado que vê reduzida a arrecadação tributária, como até mesmo gerações futuras,
constrangidas a viver num meio ambiente menos íntegro. Por outro lado, se dois oligopolistas
combinam praticar preço igual pela mesma matéria-prima, todos os que se encontram na cadeia
de produção à jusante, bem assim os consumidores finais de produtos ou serviços que a empregam
como insumo, sofrem as consequências danosas do abuso do poder econômico perpetrado. Enfim,
se um empresário qualquer promove publicidade enganosa de seus produtos, ele pode lesar um
número considerável de consumidores. Nesses exemplos, o dano é coletivo e está-se diante de uma
espécie particular de complexidade da parte ativa da relação obrigacional por responsabilidade
civil.
Coletivos são os danos ao meio ambiente, à coletividade dos consumidores, ao funcionamento regular do
mercado e outros. A coletivização dos danos importa, no âmbito do direito civil, questões atinentes apenas à
liquidação da indenização. A constituição do vínculo obrigacional atende aos mesmos pressupostos legais,
independentemente da extensão dos danos provocados.
Os danos coletivos despertam, no âmbito do direito processual civil, questões atinentes à
legitimidade ativa para promover a responsabilização judicial dos sujeitos passivos da obrigação,
em caso de lesão a direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Para os fins do direito
civil, as questões relativas à obrigação de indenizar são idênticas, quer sejam ou não coletivos os
danos. Quem tem responsabilidade civil subjetiva só responde em caso de culpa, tenha causado
prejuízos a uma só pessoa, a muitas ou a um grupo indeterminado delas. A natureza e os
pressupostos de sua responsabilização não se alteram por ter sido coletivo o dano. Do mesmo
modo, se ao sujeito a lei imputa responsabilidade civil objetiva, ele responde independentemente
de culpa, qualquer que tenha sido a extensão do prejuízo causado. Ainda que um só homem ou
mulher tenha sido o prejudicado, a responsabilização continua prescindindo do pressuposto
subjetivo se assim estiver previsto pela lei. É indiferente se os interesses lesados são individuais
simples, homogêneos ou transindividuais – a responsabilização existirá ou não sempre em função
dos mesmos requisitos. Em suma, a extensão do dano é irrelevante na discussão dos elementos de
constituição do vínculo obrigacional: constitui-se a obrigação de indenizar segundo os mesmos
pressupostos legais, tanto na hipótese de danos individuais simples como na de coletivos. A
coletivização dos danos importa consequências, no âmbito do direito civil, unicamente na
liquidação do valor da compensação.
e) Intencionais ou acidentais. Os danos podem decorrer da deliberada intenção do agente de
causá-los. É o caso do dolo, que gera responsabilidade civil subjetiva. Mas podem acontecer sem
que ninguém tenha tido a intenção de produzi-los. Neste caso, são acidentais. Os acidentes geram
responsabilidade civil subjetiva em caso de culpa simples do agente. A negligência, imperícia ou
imprudência dão origem a danos acidentais. Também geram os acidentes responsabilidade civil
objetiva, quando o sujeito a quem se imputa a obrigação de indenizar ocupa posição econômica
que lhe permite a socialização dos custos de sua atividade. Neste caso, consideram-se inevitáveis,
quando ocorridos apesar da inexistência de culpa. A importância desta derradeira classificação é
meramente ilustrativa e didática. A extensão da obrigação mede-se, de ordinário, pelo necessário à
compensação justa da vítima; é, portanto, idêntica, sejam intencionais ou acidentais os danos.
O termo “acidente” é empregado, muitas vezes, no sentido genérico de evento causador de
danos, independentemente da intencionalidade ou não do agente. Expressões como acidente de
trânsito, de consumo ou de trabalho referem-se, respectivamente, a qualquer evento danoso na
circulação de veículos, na utilização de produto ou serviço defeituoso e no desempenho de função
laboral, e não apenas àqueles em que não houve a intenção de causar prejuízos. Quando
contraposto aos atos ilícitos, deve ser qualificado de “inevitável”.
7. Conclusão
As duas espécies de responsabilidade civil – subjetiva e objetiva – não são excludentes. Pelo
contrário, complementam-se. Há hipóteses em que convém imputar ao sujeito passivo
responsabilidade subjetiva, e há aquelas em que o mais adequado é a imputação de
responsabilidade objetiva. Em outros termos, além de definir que externalidades negativas devem
ser internalizadas, a disciplina da responsabilidade civil também estabelece como se dará a
internalização: a título de sanção ao ato ilícito do causador do dano ou de socialização de custos.
De início, pareceu aos tecnólogos civilistas que a responsabilidade objetiva tenderia a substituir
a subjetiva, numa trajetória de evolução do direito. Raymond Saleilles, por exemplo, jurista
francês a quem se atribui o mérito de ter sido um dos pioneiros na formulação da teoria objetiva,
procurou sustentar-se numa nova interpretação do mesmo dispositivo do Código Napoleão que
dispunha sobre a responsabilidade subjetiva. Para ele, a expressão faute inserida naquela norma
não poderia ser lida como culpa, mas sim como causa (fait). Ao pretender que a lei, na verdade, já
prestigiava a responsabilidade objetiva, Saleilles revela que não a tinha como espécie
complementar da subjetiva, mas como o modo mais evoluído de tratar toda hipótese de
responsabilização civil.
Enquanto a responsabilidade sem culpa era tratada como teoria de substituição do modelo
fundado na culpa, dividiram-se os tecnólogos em subjetivistas e objetivistas, envoltos num estéril
debate sobre a proeminência de uma espécie sobre a outra. Apenas com o passar do tempo e
desenvolvimento dos estudos é que a tecnologia passou a considerar a hipótese de convivência
entre as duas. Significativa ilustração dessa mudança de perspectiva encontra-se, a propósito, na
literatura jurídica brasileira: Alvino Lima, um dos mais conceituados tecnólogos dedicados ao
tema, batizara sua tese de cátedra, em 1938, como da culpa ao risco, título que sugere a evolução
de todo tipo de responsabilidade rumo à objetivação; posteriormente, ao publicá-la em 1960,
denominou-a culpa e risco, afastando do título a denotação de movimento evolutivo (Pereira,
1989:20).
É indiscutível que a responsabilidade subjetiva antecede à objetiva, na tradição jurídica
ocidental, em mais de vinte séculos – longo tempo que separa a Lei Aquília das preocupações com
a indenização dos acidentes que vitimavam operários nos fins do século XIX, marcos históricos da
responsabilidade subjetiva e objetiva, respectivamente (cf. Dias, 1954, 1:25 e 58/63). Esta tábua
cronológica, porém, não é indício suficiente de evolução de uma espécie de responsabilidade civil
para a outra; parece mais indicar a do modelo único de responsabilização para o dúplice.
O desafio que se abre à tecnologia civilista, hoje, portanto, é a de distinguir (com a máxima
clareza possível dentro dos limites de um discurso retórico) as hipóteses a que cada espécie de
responsabilização melhor se ajusta. Ter em vista as funções que cumprem os respectivos modelos
e, a partir delas, indicar quais danos devem ser indenizados com fundamento na culpa do agente
causador e quais os que devem viabilizar a socialização de custos de certas atividades. Imputar
responsabilidade objetiva a quem não se encontra em posição econômica de socializar custos é
irracional; não tem sentido. De outro lado, responsabilizar com fundamento na culpa quem se
encontra nessa posição econômica, sem ao menos estabelecer uma presunção relativa, significa
negar à vítima a indenização; também não tem sentido.
O princípio da indenidade é, sem dúvida, o objetivo que tem impulsionado a disciplina da
responsabilidade civil. Ele, porém, é infértil na identificação das externalidades que devem e das
que não devem ser internalizadas. Afirmar que a lei deve facilitar às vítimas dos acidentes o
acesso à indenização – valor jurídico e moral cuja pertinência é inquestionável – não basta à
delimitação dos fundamentos apropriados da responsabilização em cada caso. Em outros termos, a
imputação de responsabilidade objetiva a todos que se encontram em condições econômicas de
socializar custos é inspiração do princípio da indenidade. A identificação de quem responderá
objetivamente, porém, nada tem que ver com a facilitação do acesso da vítima à indenização, mas
apenas com a posição econômica que ocupa o devedor da obrigação de indenizar.
Como regra geral, a responsabilidade civil é subjetiva. Em princípio, só responde por danos causados a
outrem quem tiver sido culpado por eles. Como regra especial, ela é objetiva se expressamente prevista em
lei ou se o sujeito passivo ocupa posição econômica que lhe permite socializar os custos de sua atividade.
Para concluir, cabe destacar a forma com que se estrutura a complementaridade entre as duas
espécies de responsabilização. Como regra geral, a responsabilidade é subjetiva; em princípio,
ninguém responde por danos que não tenham sido causados por ato ilícito, ou seja, por sua
conduta culposa ou dolosa (CC, art. 927, caput). Como regra especial, a responsabilidade é objetiva
sempre que a lei expressamente o estabelece ou quando o devedor da obrigação de indenizar
ocupa posição econômica que lhe permite socializar os custos da atividade que explora entre os
beneficiários desta (CC, art. 927, parágrafo único). As hipóteses que se enquadram em cada uma
das regras de responsabilização serão examinadas nos capítulos seguintes (a geral, ou subjetiva, no
Cap. 22, e a especial, ou objetiva, no Cap. 23).
© desta edição [2020]
2020 - 02 - 12
Curso de Direito Civil - Vol. 2 - Ed. 2020
PÁGINA RB-10.1
TERCEIRA PARTE - RESPONSABILIDADE CIVIL
CAPÍTULO 22. RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA
Capítulo 22. RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA
1. Responsabilização por atos ilícitos
A responsabilidade civil subjetiva é a obrigação derivada de ato ilícito. O sujeito que incorre na
ilicitude é devedor da indenização pelos prejuízos decorrentes de sua conduta e o prejudicado, o
credor. A prestação é a entrega de dinheiro em valor correspondente aos prejuízos patrimoniais e
compensadores dos extrapatrimoniais. Ato ilícito, recorde-se, é a conduta culposa violadora de
direito que causa prejuízo a outrem (CC, art. 186). Corresponde a comportamento repudiado pela
sociedade, proibido por lei.
A imputação da responsabilidade civil subjetiva é, na verdade, apenas um dos instrumentos de
que dispõe o direito para desestimular os comportamentos indesejáveis e indicar as condutas
socialmente aceitáveis. Os outros dois instrumentos são a responsabilidade penal e a
administrativa: aquela decorre da tipificação de certas ações ou omissões humanas como delitos
(crimes ou contravenções), e esta da qualificação de atos como infração administrativa. A sanção
civil efetiva-se sempre pela imputação ao culpado pelo ilícito da obrigação de entregar ao
prejudicado dinheiro (equivalente ao prejuízo patrimonial ou compensador do extrapatrimonial).
A sanção administrativa vale-se, principalmente, da imposição da obrigação de entregar dinheiro
ao Estado (multa); adota, também, meios de execução direta, como a suspensão de atividade
(fechamento de indústria poluidora), remoção de bens (guinchamento de veículo estacionado
irregularmente) e outras. A sanção penal, por fim, é feita por medidas de restrição da liberdade
pessoal (detenção, reclusão, prisão, prestação de serviços à comunidade) por vezes conjugada com
a obrigação de entregar dinheiro ao Estado (multa penal).
Há atos simultaneamente ilícitos para o direito penal, administrativo e civil. O exemplo já
referido do motorista que transgride norma de trânsito e causa acidente com vítima fatal é desta
categoria: ele comete crime de homicídio, incorre em infração contra as normas de circulação
(CTB) e pratica ilícito civil que o obriga a ressarcir os danos provocados. Outro exemplo pode-se
apontar na repressão aos abusos do poder econômico. Os empresários que, por exemplo, se
associam para fraudar concorrência pública incorrem no ilícito administrativo consistente em
infração contra a ordem econômica (Lei n. 12.529/11, art. 36, § 3.º, I, d), praticam crime contra a
Administração Pública (Lei n. 8.666/93, art. 90) e são civilmente responsabilizáveis pelos prejuízos
decorrentes (Lei n. 12.529/11, art. 47). Ainda quando têm por pressuposto o mesmo ato, as três
esferas de sanção, de desestímulo de conduta indesejável, guardam autonomia. Por isso, o interrelacionamento delas é complexo.
Sempre que um ato é tipificado como delito ou qualificado como infração, cabe a imputação de
responsabilidade civil ao criminoso ou infrator, sem prejuízo, conforme o caso, da
responsabilidade penal ou administrativa. O sujeito que comete delito ou incorre em infração é
necessariamente devedor da indenização pelos prejuízos decorrentes. Desse modo, quem mata
alguém responde criminalmente, no sentido de sujeitar-se à pena de reclusão de 6 a 20 anos (CP,
art. 121). Além dessa sanção de direito penal, o homicida é obrigado a indenizar os prejuízos
patrimoniais e extrapatrimoniais derivados de seu crime. Se a vítima tinha filhos menores que
dela dependiam, é obrigado a indenizá-los pela perda do pai ou mãe provedores (danos
patrimoniais), bem assim pagar-lhes e ao cônjuge e ascendentes a indenização pela dor
experimentada (danos extrapatrimoniais). Neste caso, porém, não há que se falar em infração. O
ilícito tem desdobramentos apenas para o direito penal e civil.
De outro lado, se alguém se estabelece comercialmente em zona classificada como residencial
pela lei do Município, incorre em infração administrativa. Sujeita-se às sanções de multa e
fechamento da atividade, de acordo com o estabelecido pela norma municipal. Além dessa
responsabilidade de direito administrativo, o infrator terá também a obrigação de indenizar os
vizinhos prejudicados patrimonial ou extrapatrimonialmente pelo desrespeito ao zoneamento.
Não há, entretanto, nenhum crime no irregular estabelecimento comercial. Trata-se, pois, aqui, de
ilicitude somente para fins de direito administrativo e civil.
Mas, se todo ilícito penal ou administrativo importam a obrigação de reparar os danos (se
houver, claro: cap. 21, item 6), o inverso não se verifica. Nem toda responsabilidade civil tem por
pressuposto a concomitante tipificação do ato ilícito como delito ou sua qualificação como infração
administrativa. É possível a responsabilização civil de um sujeito de direito por ato que não
importa quaisquer sanções além da compensação pelos danos causados. Se, ao manobrar lenta,
mas descuidadamente o veículo na garagem do edifício onde moro, bato no automóvel de outro
condômino, minha negligência é ato ilícito para o direito civil, o que me torna devedor pela
importância equivalente aos prejuízos causados ao bem do vizinho. Meu ato não repercute,
todavia, no âmbito do direito penal ou administrativo; não é delito, nem infração administrativa.
Outro exemplo: numa troca de tiros num bar, fere-se uma criança. O autor do disparo é absolvido
na esfera criminal, porque reconhecida a excludente da legítima defesa. Não obstante, deve ser
condenado, na esfera civil, pela indenização dos danos (RT, 808/225; 789/225).
Há três diferentes órbitas de responsabilização dos atos ilícitos. No plano criminal, os delitos (crimes ou
contravenções) são punidos com penas privativas de liberdade. No administrativo, as infrações punem-se
com multa e medidas satisfativas (fechamento de atividade, remoção de bens etc.). No âmbito civil,
sancionam-se as condutas culposas pela imposição ao autor do dano da obrigação de indenizá-lo.
Há, como dito, independência entre as três esferas de responsabilização. Alguém pode incorrer
em ato ilícito para o direito civil, penal e administrativo, mas acabar não respondendo nos três
âmbitos. Se o titular do direito à indenização é um indivíduo, ele pode preferir não promover a
responsabilização judicial do culpado, por razões que só lhe dizem respeito (p. ex., o interesse em
se poupar da lembrança de fato doloroso), e ninguém poderá fazê-lo em seu lugar. Nesse caso,
embora passível de responsabilização civil, o agente não será compelido a indenizar os danos
causados. Por outro lado, a aplicação da lei penal interessa a toda a sociedade, mas se as provas
reunidas no inquérito policial são insuficientes à denúncia do crime pelo Ministério Público, o
agente permanecerá impune. Finalmente, se não chegar à autoridade administrativa o
conhecimento dos fatos que qualificam a infração, o infrator não será autuado e deixará de
responder pelo ilícito administrativo. Nesses casos, a responsabilização não se verifica porque não
se adotam as providências necessárias para tanto.
Mesmo com as providências acima indicadas (ajuizamento da ação civil de responsabilidade,
oferecimento da denúncia e autuação administrativa), o agente poderá não ser responsabilizado
nas três esferas, ou sê-lo numa delas e não nas demais. A multa pode ser judicialmente invalidada
em razão de vício formal do auto de infração (incorreta indicação do fundamento legal, p. ex.),
comprometendo a responsabilização administrativa do infrator. Isso não influirá na ação civil de
indenização, que pode concluir pela condenação do mesmo sujeito ao pagamento da indenização.
A ação civil de indenização pode ser julgada improcedente porque a vítima não conseguiu provar
a extensão de seus danos, enquanto o processo penal leva à condenação do réu por ter o promotor
de justiça provado o crime e a autoria.
No entrecruzamento das três esferas de responsabilização, deve-se observar apenas um limite à
autonomia delas: quando a existência do ato ilícito ou a identificação de seu autor estiverem
definitivamente estabelecidas no juízo criminal, estas matérias são insuscetíveis de rediscussão na
ação civil (Gonçalves, 2002:481/519). Imagine que Antonio danifica intencionalmente bem do
patrimônio de Benedito. Isso é crime (CP, art. 163) e gera responsabilidade civil (CC, art. 927, caput).
Pois bem, se Antonio é condenado no processo penal, ele não pode, ao embargar a execução para
cobrança da indenização (processo civil) que Benedito lhe move, negar o fato nem a autoria do
dano. Resta-lhe, por exemplo, discutir o valor da indenização ou alguma questão processual. Mas,
para todos os efeitos (penais ou civis), está já decidido que houve danos no patrimônio de Benedito
e que Antonio é o culpado por eles. Estabelece a lei que “a responsabilidade civil é independente
da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu
autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal” (CC, art. 935). Em
consonância com este preceito, as legislações processuais penal e civil tratam a sentença penal
condenatória transitada em julgado como título executivo judicial (CPP, art. 63; CPC, art. 515, VI).
2. O pressuposto subjetivo
Sempre que houver ato ilícito (civil, penal ou administrativo), o sujeito que o praticou é
devedor da obrigação de indenizar os prejuízos decorrentes. Há, como já examinado, dois critérios
para definir ato ilícito: no primeiro, é o ato sancionado pelo direito positivo; no segundo, o que
viola culposamente direito subjetivo (Cap. 11, item 1).
Visto como ato sancionado pelo direito positivo, o ilícito é a conduta culposa descrita na norma
como antecedente da responsabilidade civil. A lei e demais normas jurídicas sempre imputam
consequências a atos ou fatos jurídicos. Descrevem condutas às quais ligam implicações com o
objetivo de nortear a solução dos conflitos de interesses manifestados em sociedade. As
consequências imputadas pelas normas jurídicas podem ser negativas, neutras ou positivas.
Quando negativas, chamam-se sanções e estão ligadas à descrição de condutas indesejáveis. Têm,
então, o objetivo direto de punir o agente e o indireto de desestimular a repetição da conduta. A
maioria das normas jurídicas enquadra-se nesta primeira categoria. No outro extremo, quando as
consequências são positivas, chamam-se prêmios e estão ligadas às condutas especialmente
proveitosas. Seu objetivo é estimular pessoas a praticar determinados atos. Os subsídios e isenções
que a lei concede para determinadas atividades econômicas, com o objetivo de facilitar sua
exploração e contribuir para o desenvolvimento regional, são exemplos de consequências legais
desta natureza. Por fim, há as consequências neutras, ligadas às condutas que não são nem
reprováveis, nem especialmente proveitosas. Podem ser percebidas pelas pessoas a quem são
imputadas como negativas, mas isto não lhes retira a neutralidade. Com a imputação de
consequências neutras, o direito visa obter a racional alocação dos recursos e não punir ou
premiar este ou aquele sujeito. A responsabilidade civil objetiva é uma consequência neutra que a
lei associa a determinados fatos.
A imputação da obrigação de indenizar pode ser, assim, uma sanção (consequência negativa,
no sentido de procurar desestimular condutas indesejáveis) ou não (consequência neutra). Em
sendo sanção a consequência prevista em lei, o ato ao qual é conectada será ilícito. Para
identificar, então, os atos geradores de responsabilidade civil subjetiva, à luz deste primeiro
critério, deve o intérprete ou aplicador da lei vasculhar a ordem jurídica em busca de norma (geral
ou especial) que descreva a conduta culposa em foco como antecedente da obrigação de indenizar.
O critério de definição do ato ilícito em função do direito positivo, note-se, falha porque exige do
intérprete ou aplicador da lei identificar o objetivo da imputação nela veiculada – desestimular
condutas indesejáveis ou apenas realocar recursos de forma racional – mas não fornece os
parâmetros para isso.
Dois são os modos de conceituar o ato ilícito. Em função do direito positivo, ele é a conduta descrita na lei
como antecedente da sanção. Em contraposição ao direito subjetivo, é o ato culposo que o viola e causa
danos. Este último corresponde à alternativa adotada pelo Código Civil.
Visto, por outro lado, como violação a direito subjetivo, o ato ilícito define-se como a conduta
intencional, negligente, imprudente ou imperita que causa dano a um sujeito de direito. Na
caracterização do ilícito por este critério, o intérprete ou aplicador da lei volta a atenção aos traços
característicos da ação ou omissão daquele a quem se pretende imputar a obrigação de indenizar.
Preocupa-se com a identificação, neles, dos pressupostos subjetivos da responsabilização fundada
na culpa. Tomar certo ato por ilícito para fins de imputar ao agente responsabilidade civil
subjetiva corresponde ao mesmo processo argumentativo de identificar, numa situação de fato, o
pressuposto subjetivo desta espécie de responsabilização. Ato ilícito é o culposo ou o praticado
com abuso de direito.
Pois bem, em função da insuficiência do critério de definição do ilícito a partir do direito
positivo, deve-se privilegiar o de contraposição ao direito subjetivo. Nele, ato ilícito define-se como
a violação culposa e danosa do direito de outrem. É este, aliás, o critério adotado pela lei no Brasil:
“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar
dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (CC, art. 186). Neste contexto,
são três os elementos constitutivos da responsabilidade civil subjetiva: a) ato ilícito do devedor
(culposo ou abusivo); b) dano patrimonial ou extrapatrimonial para o credor; e c) ligação de
causalidade entre o ato e o dano. Os elementos estudados neste item – ato humano (subitem 2.1),
culpa (subitem 2.2) e abuso de direito (subitem 2.3) – correspondem ao primeiro deles e compõem
o “pressuposto subjetivo” da responsabilidade civil subjetiva.
2.1. Ato humano
O primeiro elemento constitutivo da responsabilidade civil subjetiva é um ato de ser humano –
de um homem ou mulher, adulto ou criança. Atendidos determinados pressupostos, esse ato
humano dará ensejo à responsabilização de um sujeito de direito. O civilmente responsável pelo
ato poderá ser a própria pessoa física que o praticou, outra pessoa física (como no caso de
responsabilidade por atos de terceiros – Cap. 23, item 6.1), uma pessoa jurídica ou mesmo um ente
despersonalizado em nome dos quais se considera praticado o ato humano. O dano causado pela
condução culposa de um carro resulta sempre de ato do motorista. Ele pode gerar
responsabilidade civil para o próprio motorista (se é o dono do veículo) ou para o seu empregador,
seja este pessoa física (o causador do dano é motorista doméstico), pessoa jurídica (dirige ônibus
de transporte urbano) ou ente despersonalizado (trabalha como manobrista para um condomínio
de edifício).
O ato característico de ilícito pode ser comissivo (um fazer) ou omissivo (um não fazer). Isto é, a
responsabilidade civil subjetiva pode originar-se tanto de ato positivo (ação) como negativo
(omissão). No primeiro caso, um movimento físico do ser humano desencadeia eventos que direta
ou indiretamente causam danos a um ou mais sujeitos de direito; no outro, a falta de um preciso
movimento físico é juridicamente considerada a causa do prejuízo. Esta é a lição tradicional da
tecnologia civilista (cf., por todos, Lopes, 2001:178). A rigor, porém, a ação e omissão
correspondem a modos diferentes de descrição da conduta culposa. A falta de movimento físico
pode ser referida como movimento também. Afirmar que certo profissional foi imperito ou que ele
não agiu com perícia resulta igual. A negligência é omissão de diligência; imprudência, ausência de
cautelas recomendáveis ou exigíveis; o dolo corresponde à falta de respeito a direito de outrem. Se
o salva-vidas não socorreu o banhista em perigo aparentemente incorreu numa omissão. Pode-se,
contudo, descrever a mesma conduta como ato positivo: o salva-vidas negligenciou a execução de
seu trabalho. Em nada altera, quanto às consequências jurídicas, a descrição do comportamento
culposo ensejador do dano como uma ação ou omissão (Cf. Alpa, 1999, 4:259/267).
A tradicional distinção tecnológica tem, no entanto, grande valor ilustrativo, cumprindo função
didática. Sua operacionalização, porém, deve ser feita sempre com atenção a esta peculiaridade.
Ninguém pode ser responsabilizado ou exonerado da obrigação de indenizar, nem se pode
pretender a subjetivação ou objetivação da responsabilidade, apenas por qualificar-se o ato
causador do dano como comissivo ou omissivo.
2.1.1. Ação
A ação é um movimento físico qualquer: acionar o gatilho de arma de fogo, acelerar o
automóvel, assinar um documento, deixar cair ou atirar um objeto, atiçar cão feroz, falar mal de
alguém, fincar cercas em terreno alheio etc. Trago exemplos de ações que podem ser relevantes
para o direito, mas qualquer movimento físico serviria para ilustrar a ação, dos simples reflexos
até os que dependem de sofisticadas operações mentais: desde levantar o braço para proteger o
rosto até digitar no teclado do microcomputador um texto de conteúdo filosófico. Como
movimento físico, a ação desencadeia necessariamente eventos, muitos dos quais não têm
importância nenhuma para o direito, são irrelevantes à solução dos conflitos de interesses
manifestados em sociedade. Quem anda desloca ar – nem a ação nem seu efeito são fatos jurídicos;
por outro lado, quem aciona o gatilho de arma de fogo pode matar alguém – neste caso, a ação é
fato jurídico.
As ações podem ser conscientes ou inconscientes, segundo a área do cérebro responsável pelo
comando. Consciente é o movimento físico em resposta a comandos processados na área do
cérebro que sugerem o completo controle da ação e seus efeitos pelo ser humano que age.
Inconsciente, o movimento que não é acompanhado por essa sensação de controle. Graduando as
ações inconscientes, distinguem-se os atos reflexos, instintivos e automáticos (cf. Iturraspe, 1982,
1:15/17). Atos reflexos são impulsos nervosos involuntários normalmente associados à defesa do
organismo. Não há nenhum controle da consciência na execução dos movimentos físicos
correspondentes. Aproximo-me da churrasqueira para conferir o ponto da carne e encosto a mão
inadvertidamente num espeto quente. A simples percepção do calor na mão é suficiente para
desencadear a ordem do cérebro no sentido de afastá-la rapidamente. Os atos reflexos podem ser
condicionados em razão de experiência direta, mas não aprendidos a partir de aquisição de
conhecimentos racionais.
Os atos instintivos, por sua vez, atendem a necessidades orgânicas e já são passíveis de controle
racional. A concupiscência desperta energia libidinosa e caso não haja ou não funcionem freios
racionais, o ser humano procura a imediata satisfação sexual. A fome também pode impulsionar
atos instintivos de busca aos alimentos, que podem levar o ser faminto até mesmo a matar por
comida, caso também não o detenham freios racionais. Os instintos não são adquiridos pelo ser
humano por condicionamento ou aprendizagem; trazemo-los, por assim dizer, em nossa herança
genética. É a “parte animal” de homens e mulheres, cuja importância para nossa vida é maior do
que gostaríamos de aceitar.
Por fim, atos automáticos são os inconscientes aprendidos com base na repetição. No início do
processo de aprendizagem, são atos conscientes praticados pelo aprendiz em função da orientação
de instrutor. Uma vez aprendidos, os atos são comandados pelo cérebro com grau mínimo de
consciência. Os atos de condução de um automóvel exemplificam-nos. O jovem, na autoescola, é
apresentado aos movimentos físicos que precisa realizar para obter determinados efeitos da
máquina. Com o passar do tempo, a repetição desses movimentos torna-os automáticos. O
motorista experiente não precisa de total consciência das ações que realiza para bem dirigir o
veículo: o pedal afunda a embreagem ao mesmo tempo em que a mão direita larga o volante e
pega o câmbio, sempre que a percepção de velocidade do carro recomenda a mudança de marcha;
a percepção da aproximação ao veículo que trafega à frente faz o pé esquecer-se do acelerador e
pressionar, em medidas variáveis, o breque. Outros atos automáticos permeiam o cotidiano das
pessoas: digitar o teclado do microcomputador, nadar, andar de bicicleta, alongar-se, observar
regras de etiqueta à mesa etc.
Nem todos os atos humanos, evidentemente, são geradores de responsabilidade civil subjetiva.
Para terem esta implicação jurídica, é necessário, antes de tudo, que sejam voluntários, isto é, que
o movimento físico desencadeador dos eventos danosos tenha sido animado pela vontade de um
homem ou mulher. Note-se que vontade e consciência não são conceitos coincidentes, nem para o
direito nem para a psicologia. A vontade é característica do ato passível de ser controlado
racionalmente com vistas a realizar certo objetivo, selecionado entre duas ou mais alternativas. Há
vontade sempre que há possibilidade de decisão. A consciência é o efetivo controle do ato. Os atos
sob controle das áreas de consciência do cérebro são sempre voluntários, mas o inverso não é
verdadeiro. Há vontades inconscientes, como a que se expressa pela imprudência na condução do
veículo. Os atos automáticos de direção podem ser controlados, e isto indica que são voluntários.
Se serão ou não postos sob o controle das áreas de consciência do cérebro do ser que age é questão
diversa.
Os atos de vontade podem ser conscientes ou não. Os atos instintivos (busca da satisfação sexual) e
automáticos (direção de veículos automotores) são inconscientes, mas voluntários, e por isso geram
responsabilidade civil quando ilícitos.
Desse modo, para gerar responsabilidade civil subjetiva o ato humano deve ser voluntário, mas
não necessariamente consciente. O estuprador muitas vezes pratica ato instintivo, de pura
satisfação da libido. Será responsabilizado (civil e penalmente, aliás) porque podia e devia ter
posto o instinto sob controle da razão. O motorista que provoca acidente por ter ultrapassado o
limite de velocidade máxima para o local onde transitava na maioria das vezes pratica, ao acelerar
o veículo, ato automático, inconsciente. Como podia e devia ter controlado o ato, é este voluntário e
gerador de responsabilidade civil subjetiva pelos danos decorrentes. Em suma, não há
responsabilidade civil subjetiva sem que o dano tenha sido causado pela vontade, consciente ou
inconsciente, de alguém.
2.1.2. Omissão
A omissão só gera responsabilidade civil subjetiva se presentes dois requisitos: a) o sujeito a
quem se imputa a responsabilidade tinha o dever de praticar o ato omitido; e b) havia razoável
expectativa (certeza ou grande probabilidade) de que a prática do ato impediria o dano. No
exemplo de Maria Helena Diniz, o instrutor distraído, ao deixar de acudir o aluno que está
morrendo afogado na piscina durante a aula de natação, responde pelos danos advindos de sua
omissão culposa (2003, 7:45). Encontram-se os dois requisitos nesse caso. O instrutor tinha, em
decorrência da função exercida, o dever de praticar o ato, isto é, acudir o aluno, e há razoável
expectativa de que o salvaria do afogamento se tivesse agido. Os demais alunos presentes à aula
não respondem pela omissão, por não terem o dever de zelar pela integridade do colega, assim
como não responderia o instrutor se demonstrado que o aluno se afogara por ter sofrido
fulminante ataque cardíaco, porque, neste caso, nenhuma ação dele seria suficiente para salvarlhe a vida.
Somente se presentes esses dois requisitos a omissão é tida como causa do dano. Ausente
qualquer um deles, a falta de ação poderá ser eventualmente uma condição do dano, mas não será
sua causa jurídica. Explico. Alguém é assaltado na rua, quando não havia por perto nenhum
policial. É provável que o policiamento ostensivo e preventivo na região tivesse evitado o crime. A
falta do policiamento, então, contribuiu de alguma forma para o ocorrido. Ela não pode, porém,
ser considerada causa do dano experimentado pelo cidadão assaltado. Foi mera condição do
evento, já que a presença da força policial poderia ter evitado o assalto, mas não o ocasionou. Se,
contudo, a metros do local do assalto havia policiais que o perceberam e nada fizeram para
socorrer o cidadão, a omissão deles é considerada juridicamente causa do evento danoso. Como é
dever daqueles funcionários públicos atuar na repressão ao crime e havendo razoável expectativa
de que a intervenção deles pouparia o cidadão da perda, para a lei o evento causador desta foi o
ato omissivo dos policiais. O Estado, assim, não pode ser responsabilizado pela omissão-condição,
mas é inteiramente responsável pela omissão-causa do evento danoso (cf. Mello, 1981:144/147).
A falta de movimento físico impeditivo da concretização do dano considera-se causa deste (e,
portanto, geradora de responsabilidade civil) se a ação omitida é exigível e eficiente. A
exigibilidade da ação omitida verifica-se quando o omisso tinha o dever de praticá-la; a eficiência,
quando a ação evitaria o dano com certeza ou grande probabilidade. Se quem se omitiu não tinha
dever de agir ou se a ação seria insuficiente para evitar o dano, a omissão deve ser tida como mera
condição deste.
A omissão pode ser causa ou condição do evento danoso. Será causa se quem nela incorreu tinha o dever
de agir e sua ação teria, com grande probabilidade, evitado o dano. Ausente qualquer um desses requisitos, é
condição.
Apenas a omissão-causa implica responsabilidade civil pelos danos que a ação teria evitado.
A exemplo das ações, as omissões desencadeadoras de responsabilidade civil subjetiva devem
ser voluntárias, mas não precisam ser necessariamente conscientes. Se, no exemplo anterior, o
policial não enfrenta o assaltante por medo, o instinto de sobrevivência que lhe trava a ação é
juridicamente a causa do dano experimentado pelo cidadão assaltado. O Estado, neste caso, é
obrigado a indenizar os prejuízos.
2.2. Culpa
A identificação da culpa como pressuposto da responsabilidade civil remonta, como visto, ao
direito romano. Mais precisamente, à Lei Aquília, que afastou a solução ditada pela pena de Talião
quando o dano acometia bens de produção (escravos e animais de rebanho, especificamente). Em
razão disso, a expressão “responsabilidade aquiliana” tornou-se referência à obrigação de
indenizar não derivada de relação contratual entre causador e vítima dos danos. Atualmente, com
a duplicidade de fundamentos assentada no campo da responsabilidade civil, “aquiliana” passou a
ser referência à obrigação de indenizar derivada de culpa. Em suma, é hoje sinônimo de
responsabilidade civil subjetiva.
Culposo é o ato negligente, imprudente, imperito ou intencionalmente destinado a prejudicar
alguém. É, por definição, antijurídico, violador de direitos subjetivos alheios (Bevilaqua, 1934,
4:219; Gonçalves, 2002:35/37). Daí confundir-se com a própria noção de ato ilícito. Ao praticar ato
culposo, nunca se age de acordo com a lei.
Reparte-se a culpa em atos intencionais e não intencionais. No primeiro caso, é chamada de
dolo. Age dolosamente quem provoca prejuízos a outrem, ao praticar atos com o objetivo ou o risco
de causá-los. Esta modalidade de culpa compreende tanto o dolo direto, em que o prejuízo é a
finalidade perseguida pelo agente, como o indireto, em que o dano ocasionado não era
propriamente o objetivo, mas o agente assumiu de forma consciente o risco de provocá-lo. Quando
Antonio, querendo prejudicar Benedito, incendeia a casa deste, há dolo direto. O objetivo
perseguido era especificamente o de pôr fogo na morada de Benedito, para afligir-lhe a perda. Se,
porém, a intenção de Antonio, ao queimar umas tábuas velhas no jardim da casa de Benedito, era
apenas a de fazer uma brincadeira com este, confiando que as chamas não sairiam de seu
controle, o dolo será indireto se a casa for incendiada e perder-se. O objetivo, aqui, não era
incendiar a morada de Benedito, mas Antonio assumiu de forma consciente o risco de produzir
esse dano ao fazer a infeliz brincadeira.
De outro lado, a culpa por atos não intencionais abrange a negligência, imprudência e
imperícia (culpa simples). O negligente não faz o que deveria fazer e o imprudente faz o que não
deveria. No trânsito, o motorista que não aciona o pisca-pisca antes de fazer a conversão é
negligente (deveria acioná-lo), e o que atravessa o semáforo vermelho, imprudente (não poderia
atravessar o cruzamento naquele momento). A exata classificação de determinado ato culposo
como negligência ou imprudência, porém, não é relevante. Em primeiro lugar, porque as
consequências são iguais para qualquer uma dessas hipóteses. Além disso, os atos correspondentes
a fazer ou não fazer podem ser descritos de forma inversa sem maiores dificuldades. A omissão de
acionar o pisca-pisca ao convergir pode ser descrita também como a ação de convergir sem
acionamento do pisca-pisca, e o que era não fazer o que deveria passa a ser fazer o que não deveria.
Imperícia, por fim, é a culpa não intencional no desempenho de profissão ou ofício. Difere-se
da negligência ou imperícia por pressupor uma habilidade especial, formação superior ou mesmo
conhecimento técnico ou específico do agente culpado. O dentista que não obtura adequadamente
a cárie é imperito, por exemplo. A imperícia não foi referida especificamente na lei civil brasileira,
que menciona unicamente as hipóteses de negligência e imprudência na configuração do ato ilícito
(CC, art. 186). Refere-se a ela, porém, a lei penal (CP, art. 18, II), inexistindo motivos para não a
considerar como forma particular de ato negligente ou imprudente. Também sob o ponto de vista
dos desdobramentos práticos, não tem maior importância a questão, já que a imperícia conduz às
mesmas consequências das demais espécies de culpa simples.
A culpa que dá ensejo à responsabilidade civil corresponde a ato voluntário, que deveria ter sido
diferente. Sem a exigibilidade de conduta diversa, não há ação ou omissão culposa.
Embora sempre voluntária, a culpa pode corresponder a ato intencional ou não. No primeiro caso,
chama-se dolo, que pode ser direto (o dano causado era a intenção do seu autor) ou indireto (o autor
assumiu o risco de causar o dano). A culpa não intencional, a seu turno, é a negligência, imprudência ou
imperícia.
Para a constituição da obrigação de indenizar por responsabilidade civil subjetiva, a regra é a
da irrelevância da gravidade da culpa. Exceto em casos excepcionais (item 7), qualquer que tenha
sido a natureza da ação ou omissão causadora do dano – isto é, tenha ela derivado de dolo,
negligência, imprudência ou imperícia –, constitui-se a relação obrigacional entre o prejudicado
(credor) e o autor do dano (devedor). Responde pela indenização tanto o que incorre na mais
levíssima negligência como o movido pela intenção deliberada de prejudicar. Neste aspecto – o da
constituição do vínculo obrigacional –, a responsabilidade civil subjetiva e a obrigação de
indenizar por descumprimento de obrigação contratual se assemelham. Tanto num como no outro
caso, o grau da culpa é, em princípio, irrelevante.
Atente, porém, para aspecto diverso da matéria, o da quantificação da indenização. Neste,
distanciam-se a responsabilidade civil subjetiva e a obrigação de indenizar decorrente da
inexecução culposa das obrigações contratuais. Submete-se a responsabilidade civil subjetiva a
norma especial, que autoriza o juiz a reduzir equitativamente o valor da indenização quando
“houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano” (CC, art. 944). A seu turno,
como a obrigação de indenizar em decorrência do inadimplemento de obrigação contratual não
está sujeita a nenhuma regra especial, aplica-se a geral, que desconsidera o grau da culpa na
quantificação dos consectários (Cap. 18, item 4).
A questão é relevante apenas na hipótese de sobreposição de responsabilidade civil subjetiva e
inexecução culposa de contrato. Quando não há sobreposição, inexistem dúvidas acerca da
aplicação da regra especial. Se o motorista incorre em infração de trânsito levíssima e causa danos
imensos à vítima, o juiz, atento à pequena gravidade da culpa, pode reduzir equitativamente a
indenização. Como não há qualquer vínculo contratual entre devedor e credor da indenização, o
conflito de interesses entre eles é superável segundo as normas especiais da responsabilidade civil
subjetiva, não se cogitando a aplicação das gerais do direito das obrigações. Havendo, contudo,
sobreposição, a dúvida poderia surgir: resolvido o conflito de interesses a partir das regras sobre
responsabilização aquiliana, caberia a redução equitativa em função da gravidade da culpa;
resolvido, porém, a partir das regras gerais de inadimplemento das obrigações, descaberia a
redução. Assim, por exemplo, se pequeno erro médico causou dano de monta ao paciente, a
obrigação de indenizar decorre da responsabilidade civil do profissional ou do inadimplemento do
contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes? Se se fundar a condenação do
profissional nas regras de responsabilidade civil subjetiva, é cabível a redução equitativa em
função da pouca gravidade da culpa; ao contrário, fundando-se no inadimplemento do contrato de
prestação de serviços, não terá lugar essa diminuição.
Como resolver o impasse? Considero que a resposta se encontra na natureza da obrigação de
indenizar. Quando não há vínculo contratual nenhum entre credor e devedor dessa obrigação, os
conflitos de interesses entre eles resolvem-se sempre pelas regras da responsabilidade civil.
Quanto a isso, estão todos de acordo. Entretanto, se houver entre credor e devedor da obrigação de
indenizar um vínculo negocial, é necessário verificar se nele está o fundamento dela. Em outros
termos, deve-se examinar se a indenização é devida como prestação ou como consectário. Se o
vínculo negocial entre credor e devedor da obrigação não é essencial para a constituição desta,
mas secundário, circunstancial, então a indenização é a prestação devida e os conflitos de
interesse se resolvem segundo as normas da responsabilidade civil. Se, de outro lado, é essencial, a
indenização deve-se a título de consectário. Para saber se o negócio jurídico é essencial ou
circunstancial, basta fazer o “teste da invalidação”, ou seja, verificar se a obrigação de indenizar
subsistiria ou não se ele fosse nulo. Feito o teste, se se concluir que a obrigação de indenizar
continuaria existindo mesmo na hipótese de invalidade absoluta, então o negócio jurídico não é
essencial, e a indenização é devida em função da responsabilidade civil do devedor. Por outro
lado, se se concluir que ela deixaria de existir caso fosse nulo o negócio, então ele não é
circunstancial, e a indenização é apenas devida como consequência do inadimplemento da
obrigação negocial. No primeiro caso, ela é a prestação; no segundo, mero consectário.
Sempre que houver entre credor e devedor da indenização vínculo negocial, é necessário verificar se ele
é o fundamento da obrigação ou mera circunstância.
Se a obrigação de indenizar nasceu do negócio jurídico, a indenização tem caráter de consectário e
submete-se às normas do inadimplemento.
Se a obrigação decorreu de ato ilícito ou fato jurídico, a indenização representa a própria prestação e
segue as normas da responsabilidade civil.
Imagine que o engenheiro civil é contratado para construir uma casa em certo prazo. Se ele
ultrapassa o prazo contratado, ocorre o inadimplemento e ele é obrigado a pagar ao dono da obra,
entre outros consectários, a indenização por perdas e danos. Aqui, o fundamento para a obrigação
de indenizar é o negócio jurídico, e a indenização é mera consequência do inadimplemento. Se o
contrato fosse nulo – pense no caso de objeto ilícito, porque a casa, em razão da lei ambiental, não
poderia ser legalmente construída naquele lugar –, a indenização pelo atraso nas obras não seria
devida. Considere, agora, que a casa, depois de pronta, ruiu e matou o filho do dono da obra.
Agora, o fundamento da obrigação de indenizar é a imperícia do engenheiro civil; quer dizer, sua
culpa, o ato ilícito que praticou. A circunstância de haver entre credor e devedor da indenização
um contrato de construção é de nenhuma relevância. Tanto assim que sua eventual nulidade não
extingue a obrigação de o engenheiro responder pelo ato de imperícia.
2.3. Abuso de direito
Segundo a lei vigente no Brasil, considera-se ato ilícito o exercício de direito sem a observância
dos “limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (CC,
art. 187). Em princípio, o exercício de um direito corresponde a ato lícito e não pode, por isso,
implicar a responsabilidade aquiliana do sujeito que o titulariza. Ao contrário, o titular de um
direito deve ver assegurada pelo Estado a oportunidade de exercê-lo plenamente. Faltando esta
segurança, falta o próprio direito, já que o seu titular não poderá opor-se aos que eventualmente o
impedem de praticar os atos em que a faculdade ou a prerrogativa jurídica se manifestam. Para
merecer a tutela do Estado, contudo, o direito subjetivo deve ser exercido regularmente. Quem
exerce direito extravasando os limites da regularidade – ditados pelo fim econômico ou social
deste, pela boa-fé e bons costumes – não pode buscar amparo aos seus atos. Mais: se causar danos,
será responsável por indenizá-los.
Esta particular ilicitude – o exercício de direito sem observância dos limites que o cercam – tem
sido referida pela noção de abuso de direito (Cap. 11, item 2). Ilustram sua aplicação casos famosos
como o Clément-Bayard, da jurisprudência francesa do início do século XX, em que certo
fazendeiro, proprietário de imóvel contíguo ao de um hangar de dirigíveis, foi condenado a
desfazer a divisa que havia erguido, por consistir esta em altas colunas de madeira com
pontiagudas varas de ferro. A estranha opção para a divisória dos terrenos não tinha outra
justificativa senão pôr em risco os dirigíveis em manobra de pouso ou decolagem. Não trazia
qualquer proveito para quem a erguera e impedia o regular desenvolvimento da atividade
econômica do hangar. Não convenceu a defesa do fazendeiro escudada no exercício do direito de
propriedade. A divisória estava em seu imóvel, onde, em tese, como proprietário, poderia fazer
tudo o que a lei não proibisse. Por inexistir proibição expressa de dividir terrenos com altas varas
pontiagudas, pretendia o fazendeiro mantê-las, a despeito dos prejuízos para o vizinho. A
condenação é invocada como exemplo do que propõe a teoria do abuso de direito: quem exerce
seu direito ultrapassando os limites ditados pela finalidade econômica ou social, boa-fé ou bons
costumes, não pratica ato lícito.
A noção de abuso de direito suscitou, na tecnologia jurídica dos países de tradição românica,
um intenso debate. O questionamento partiu da pertinência da expressão. Como criticava Planiol,
“a nova doutrina se assenta inteiramente numa linguagem insuficientemente estudada; a sua
fórmula, o uso abusivo dos direitos, é uma logomaquia porque, se eu exerço o próprio direito, o
meu ato é lícito, e quando é ilícito é porque excedo o meu direito e atuo sem direito. É preciso não
nos deixarmos enganar pelas palavras; o direito cessa onde o abuso começa, e não pode haver uso
abusivo dum direito, pela razão irrefutável que um só e mesmo ato não pode ser, ao mesmo
tempo, conforme ao direito e contrário a ele” (Planiol-Ripert, 1952, 6:798/806).
Na verdade, o debate despertava maior interesse até meados do século passado, quando a lei
costumava tratar de forma absoluta certos direitos, principalmente o de propriedade. Mas, à
medida que, desde então, foram-se incorporando às ordens jurídicas de diversos países
(Alemanha, Suíça, Portugal, Argentina e mesmo na antiga União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas) normas que, implícita ou explicitamente, fazem referência à ilicitude da extrapolação
dos limites do direito subjetivo, a relevância da discussão tem arrefecido. Substitui-se o debate dos
fundamentos da noção de abuso de direito pela interpretação e aplicação da norma legal
correspondente.
Em síntese, duas são as questões fundamentais para o entendimento da matéria. A primeira diz
respeito à configuração do abuso de direito; a segunda, à sua classificação. A lei brasileira traz
resposta inequívoca para ambas, daí o desinteresse em alongar-se nos meandros da rica discussão
travada, no passado, sobre o tema.
Procuraram solucionar a questão da configuração do abuso de direito três proposições
diferentes. De acordo com a primeira, abusivo é o ato desprovido de moralidade, ou seja,
atentatório ao preceito moral básico que manda não prejudicarmos intencionalmente o próximo.
Era esta a posição de Georges Ripert. A segunda proposição buscou caracterizar o abuso em função
dos seus efeitos. Seria abusivo o exercício de um direito sempre que dele decorressem danos
anormais. Defenderam-na Charmont e Carbonnier. Por fim, a proposição que configurava o abuso
de direito de forma objetiva, pela extrapolação dos limites fixados pelos seus fins econômicos ou
sociais, cuja paternidade é atribuída a Josserand (cf. Ripert, 1925:186/190; Sá, 1973:330, 349/357 e
404/420).
Como se percebe da simples leitura do art. 187 do CC, a lei brasileira optou pela terceira
proposição na questão da configuração. Desse modo, no Brasil, ainda que não transgrida nenhuma
proibição legal específica, exerce abusivamente o direito o titular que transpõe determinados
limites que o circunscrevem. Esses limites são ditados por três vetores:
a) Finalidade econômica ou social. Os direitos subjetivos não são tutelados pela ordem jurídica
com atenção apenas aos interesses do titular. Evidentemente, esses interesses não são
desconsiderados, visto representarem a razão de ser da atribuição dos direitos subjetivos. É na
compatibilização dos interesses do titular do direito subjetivo com os dos demais sujeitos com que
interage e a própria comunidade que se encontra o limite ditado pela finalidade econômica ou
social dele.
Exemplo de abuso de direito que transgride o limite da finalidade econômica encontra-se na
concorrência desleal. Todos titularizam o direito à liberdade de iniciativa e competição, por força
de preceitos constitucionais que o asseguram (CF, art. 170). A finalidade econômica desse direito é
estruturar o mercado com vistas ao seu regular funcionamento. Por isso, quem exerce o direito à
liberdade de iniciativa e competição praticando atos de concorrência desleal – como espionagem
empresarial, divulgação de falsa notícia sobre concorrente, exploração de segredo de empresa
alheio etc. – tumultua o funcionamento regular do mercado e ultrapassa os limites do direito
subjetivo à livre iniciativa e competição. Abusa dele, portanto. Em decorrência, a concorrência
desleal gera responsabilidade civil se tipificada como crime ou se prejudicial à reputação ou aos
negócios alheios (Lei n. 9.279/96, arts. 195 e 209).
Por sua vez, exemplifica o abuso transgressor dos limites impostos por sua finalidade social a
outorga de emancipação do filho feita com o objetivo de exonerar os pais de responsabilidade civil
por atos dele. Em determinadas condições, isto é, quando o menor se encontra sob a autoridade e
em companhia dos pais, estes são civilmente responsáveis pelos danos causados por ele. A
emancipação por outorga é direito não só dos pais como, num certo sentido, do filho mesmo. Tem
lugar quando este, antes de alcançar a maioridade, já dá mostras de suficiente amadurecimento
para administrar diretamente seus negócios e interesses. Quando falta este pressuposto de fato, o
exercício do direito é abusivo, e a emancipação por outorga não produzirá o efeito pretendido de
liberar os pais de responsabilidade pelos atos do filho menor.
b) Boa-fé. A harmoniosa convivência em sociedade pressupõe a boa-fé de todos em qualquer
interação. Mentir, ocultar a verdade, não explicitar intenções claramente ou buscar proveitos
ilegítimos induzindo outros sujeitos em erro são condutas qualificadas pela má-fé, ainda que
tenham a aparência de regular exercício de direito. A alegação pelo demandado, como matéria de
defesa em juízo, de fatos que sabe inverídicos, com o objetivo de postergar a tramitação do
processo, é exemplo de abuso de direito transgressor dos limites impostos pela boa-fé. Todos
titularizam direito à ampla defesa e ao contraditório (CF, art. 5.º, LV). Este direito constitucional,
porém, deve ser exercido de boa-fé – como outro qualquer, aliás. A lei coíbe, por conseguinte, a
litigância de má-fé (CPC, arts. 79 a 81).
c) Bons costumes. Este vetor limitativo dos direitos é, dos três indicados pela lei, o de menor
importância. Os bons costumes correspondem às condutas que, pela expectativa geralmente
nutrida pelas pessoas, serão observadas em determinadas situações. O restaurante tem o direito de
reservar mesas a determinados clientes, segundo seus próprios critérios. Normalmente estabelece
um limite temporal para a aceitação da reserva. Entre as pessoas que não reservaram mesas com
antecedência, o bom costume é observar a ordem de chegada, na destinação das que se vagam.
Quando o restaurante dá preferência a pessoa famosa (artista, político ou esportista), mesmo ela
não tendo feito a reserva antecipada, incorre em exercício abusivo de seu direito, por transgredir
limites ditados pelos bons costumes.
A lei brasileira configura o abuso de direito pela exorbitância dos limites fixados por sua finalidade
econômica ou social, boa-fé e bons costumes. E o classifica como ato ilícito.
No plano da classificação do ato abusivo, três tendências diferentes manifestaram-se. A
primeira o arrolava entre os atos ilícitos. Era a posição de Planiol, por exemplo, que, abstraída sua
contundente crítica à expressão, nunca se posicionou contrariamente ao objetivo de coibir o
exercício irregular dos direitos subjetivos. A segunda tendência tratava o abuso de direito como
categoria sui generis, situada entre os atos lícitos e os ilícitos. Segundo esta concepção, os atos
jurídicos dividir-se-iam em conformes e não conformes. Aquela categoria abrigaria os atos lícitos,
ao passo que esta se desdobraria em desconformes lógico-formais (ilícitos) e desconformes
axiológico-materias (abusivos). Advogaram-na com variações mais ou menos sutis, por exemplo,
Cunha de Sá e Josserand. Por fim, houve quem abstraísse a classificação entre os lícitos e ilícitos
para tratar a figura da abusividade como instrumento de interpretação e flexibilização das normas
jurídicas (Sá, 1973:331, 337/342 e 471; Martins, 1935).
Também resulta da mera leitura do dispositivo legal em foco (CC, art. 187) que o direito
brasileiro acolheu a primeira das tendências de classificação do abuso de direito. Ele se enquadra
indiscutivelmente entre os atos ilícitos. Disso decorre, entre outras implicações, a responsabilidade
civil do titular do direito abusivamente exercido pelos danos a que deu causa. Em decorrência da
classificação do abuso de direito como ato ilícito, considera-se a culpa inerente à extrapolação dos
limites de seu exercício. Transgredir os fins econômicos ou sociais de um direito, a boa-fé ou os
bons costumes é conduta culposa que importa a obrigação de indenizar eventuais danos
decorrentes.
Antes de encerrar esse tópico, convém destacar que, para o jurista português José de Oliveira
Ascensão, o art. 187 do CC não teria incorporado ao direito brasileiro norma expressa coibindo o
abuso de direito. Para ele, trata o dispositivo de algumas (e não de todas) as formas de exercício
irregular do direito, deixando de contemplar os atos emulativos, que correspondem ao núcleo
histórico do abuso de direito (2005).
3. Profissionais liberais
Profissionais liberais são os prestadores autônomos de serviços especializados que, pela
relevância e complexidade destes, devem possuir formação superior e habilitação dada pelo órgão
específico de fiscalização. Dois, portanto, são os elementos que identificam o profissional liberal:
de um lado, a necessidade de formação superior e sujeição a controle específico, nos termos da lei
reguladora da atividade em foco (elemento institucional), e, de outro, a autonomia econômica como
prestador de serviços (elemento econômico). São profissionais liberais, desde que estabelecidos
autonomamente, médicos, dentistas, psicólogos, advogados, engenheiros civis, arquitetos,
contadores, veterinários etc.
O elemento institucional de identificação do profissional liberal liga-se às especificidades do
serviço que presta aos seus clientes. São serviços de alta complexidade, para cuja execução é
necessário dominar conhecimento científico e tecnológico. Tratar enfermidades, defender
interesses num conflito ou administrar construções são atividades ao alcance apenas de quem se
dedicou a aprofundados estudos e práticas supervisionadas. Conhecimentos técnicos, cursos
rápidos, treinamentos, habilidades manuais ou simples experiência em ateliês, escritórios ou
oficinas não bastam para o adequado desempenho dessas complexas atividades. Em vista de tais
particularidades, a lei só permite prestar os serviços correspondentes depois de preenchidas duas
exigências formais: diplomação em curso superior em instituição de ensino autorizada a funcionar
pelo governo federal e inscrição no correspondente órgão de classe (Conselho Profissional ou
Ordem).
O profissional liberal deve ter formação superior, e preferivelmente deve atualizar-se de forma
constante (participando de entidades profissionais e seus congressos, fazendo pós-graduação e
cursos de educação continuada, assinando revistas especializadas, adquirindo livros etc.), não só
porque os serviços que presta o exigem, mas tendo em vista a sua relevância para a sociedade. As
mesmas razões encontram-se nos fundamentos da fiscalização do exercício profissional por órgãos
de classe. Os Conselhos Profissionais (CRM, CREA, CRO, CRP, CRMV etc.) e a Ordem dos Advogados
do Brasil são autarquias corporativas encarregadas pela lei de habilitar os profissionais liberais e
fiscalizar o exercício da profissão. Note que não basta a existência de órgão de classe para que a
atividade fiscalizada se defina como profissão liberal. Se não for exigida formação superior, o
prestador de serviços não se considera profissional liberal. É o caso, por exemplo, dos
representantes comerciais ou dos corretores de imóveis, que, malgrado tenham as atividades
sujeitas a controles similares aos das profissões liberais (pelo Conselho Federal e Conselhos
Regionais), não são prestadores de serviços desta categoria porque inexigível a diplomação em
curso superior.
O elemento econômico de identificação diz respeito à forma como a atividade é desenvolvida.
Para ser liberal, o profissional deve ter sua própria organização de prestação de serviços. Não é
liberal, assim, ainda que preenchido o elemento institucional, o profissional de formação superior
que trabalha numa empresa ou organização pública prestadora de serviços. Se o médico é, por
exemplo, empregado de um hospital, clínica ou operadora de plano privado de assistência à saúde
(OPPAS) ou é funcionário público, ele não exerce sua atividade profissional como liberal. Da
mesma forma, não se considera assim o advogado empregado de empresa ou de escritório de
advocacia que não lhe pertence.
Considera-se profissional liberal o prestador autônomo (elemento econômico) de serviços especializados,
para cuja execução exige a lei formação superior e sujeição à fiscalização pelo órgão de classe (elemento
institucional). A lei imputa-lhe responsabilidade civil aquiliana pelos danos que causar aos contratantes de
seus serviços.
A lei define expressamente como subjetiva a responsabilidade civil do profissional liberal: “A
responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”
(CDC, art. 14, § 4.º). Na aplicação deste preceito, deve-se pesquisar a presença do elemento
econômico de identificação do profissional liberal. Se cometido o erro médico por profissional
empregado de hospital ou OPPAS, a responsabilidade por indenizar o paciente é do empregador; é,
ademais, objetiva (cf. Stoco, 1995). Se cometido por profissional liberal, é dele apenas a
responsabilidade civil; e subjetiva.
Veja que boa parte das cirurgias é feita em hospital, mas só desta circunstância não deriva sua
responsabilidade, caso o erro seja do cirurgião. Isso porque o médico imperito podia ser ou não
liberal. Os cirurgiões liberais operam no hospital em que estão cadastrados, do qual não são
empregados – aliás, o modelo tem-se espalhado por todas as especialidades médicas tornando os
grandes hospitais, na verdade, apenas o local devidamente equipado para a prestação de serviços
por profissionais liberais. Se for esse o caso, a responsabilidade pelo erro médico é subjetiva, e o
hospital não responde (a menos, é claro, que seja imputável a ele o defeito do serviço –
equipamentos ou instrumentos imperfeitos, erros de seus empregados que auxiliaram a cirurgia
etc.) (cf. Zuliani, 2003:56).
Os profissionais liberais respondem subjetivamente pelos danos que causam a seus clientes
porque desempenham sua relevante atividade de forma não empresarial (CC, art. 966, parágrafo
único). Não ocupam, em decorrência, posição econômica que lhes permita socializar os custos da
atividade. A receita que auferem com a aplicação dos conhecimentos especializados adquiridos no
curso superior e na prática profissional, descontados os custos de organização da prestação dos
serviços, destina-se ao seu sustento e de sua família; não pode ser considerada lucro pela
exploração de atividade empresarial (Cap. 23, item 4). É racional, portanto, que a responsabilidade
civil dos profissionais liberais seja fundada na culpa. Aliás, em outros países, como os Estados
Unidos, os profissionais liberais também respondem apenas por imperícia, e nunca objetivamente
(Phillips, 1974:100/103).
Há atividades relevantes e complexas, para cuja execução é exigida formação superior e
fiscalização por órgão de classe, mas que raramente são exploradas de forma autônoma.
Enfermeiros, agrônomos, administradores de empresa, economistas, jornalistas e engenheiros de
certas especialidades (químicos, mecânicos, mecatrônicos, de produção etc.) são exemplos de
profissionais de formação superior em relação aos quais o elemento econômico de identificação da
atividade liberal não é comum. Esta, porém, é mera questão de fato, que nada altera no direito a
aplicar. Se e quando qualquer um deles se estabelecer autonomamente, a responsabilidade civil
por danos derivados de sua atividade será subjetiva.
3.1. Questão de ordem
Parte da tecnologia jurídica civilista toma a expressão responsabilidade civil como gênero,
desdobrado nas espécies contratual e extracontratual. Entre as hipóteses albergadas na
responsabilidade contratual estuda a dos profissionais liberais. De fato, entre eles e seus clientes,
há sempre um contrato, oral ou escrito, circunstância que justifica a classificação (cf., por todos,
Gonçalves, 2002). Outra parte prefere dividir as obrigações em contratuais e acontratuais,
inserindo a responsabilidade civil, inclusive a dos profissionais liberais, entre estas últimas (cf.,
por todos, Lopes, 2001). As duas alternativas são satisfatórias na estruturação do entendimento
sobre o assunto.
Qualquer que seja a forma de organizar a exposição da matéria, concordam todos que, na
responsabilidade dos profissionais liberais pelos danos que causam no exercício de suas
atividades, verifica-se a sobreposição dos regimes da responsabilidade contratual e aquiliana. Sob
a vigência do Código Bevilaqua, a sobreposição não despertava maiores preocupações, sendo
irrelevante, para fins de constituição e quantificação da obrigação de indenizar, se a lesão fosse
entendida como inadimplemento de obrigação contratual ou imperícia profissional. Com a
entrada em vigor do Código Reale, no entanto, a sobreposição desperta uma questão específica, na
medida em que a lei passou a autorizar, na quantificação da indenização por responsabilidade
civil (obrigação não negocial), a redução equitativa do seu valor pelo juiz em função da pouca
gravidade da culpa do causador do dano (CC, art. 944, parágrafo único). Como a autorização não
existe para a responsabilidade derivada de descumprimento de contrato, passa a ser relevante o
regime disciplinar da indenização: contratual ou aquiliana? Como já assentado acima, a natureza
da indenização – se prestação ou consectário – resolve a questão (subitem 2.2).
3.2. Profissionais da saúde
Os profissionais liberais da saúde são os que desenvolvem atividades especializadas ligadas à
condição do organismo humano. O médico é o exemplo imediato. Tomo-o por referência para
discutir os aspectos ligados à responsabilização civil desta categoria de profissionais. As
observações que seguem, tecidas em torno do trabalho dos médicos, são também pertinentes à
responsabilidade civil de outros profissionais liberais de saúde, como dentistas, fisioterapeutas,
nutricionistas, instrutores de educação física etc. Todos assumem obrigações de meio, e não de
resultado, e respondem apenas por danos causados por imperícia na aplicação dos conhecimentos
especializados de sua área.
3.2.1. Médicos
De Hipócrates até o século XIX, os médicos consideravam que a causa de algumas doenças era a
impureza do sangue. Com base na difundida teoria dos humores, os males eram vistos como
manifestação do humor viciado em certas partes do organismo, principalmente o sangue.
Prescreviam, então, como tratamento a sangria. Tirando do doente a maior quantidade possível de
sangue ruim, a tendência seria a melhora de seu estado de saúde. O procedimento largamente
adotado fundava-se em raciocínio lógico sustentado pelas autoridades acadêmicas da área.
Correspondia, em suma, à ciência da época. Desde o século. XIX, sangrar o paciente com o objetivo
de curá-lo passou a ser visto como inconcebível despropósito, uma verdadeira iatrogenia. A
sangria não só não curava o paciente como também o privava de valiosa força orgânica de
combate da doença que o acometia. Dizem que George Washington, primeiro presidente dos EUA,
morreu em razão das sangrias que lhe aplicaram respeitáveis médicos da época no tratamento de
uma amidalite. A premissa da impureza do sangue como causa de enfermidades era equivocada.
Esse episódio da história da medicina é assustador. Os procedimentos atualmente adotados
pelos médicos são sustentados em pesquisas empíricas e raciocínios lógicos aceitos pelas
autoridades acadêmicas da área. Isto é, sua eficiência no tratamento de enfermidades sustenta-se
no mesmo fundamento que fazia a medicina, no passado, recomendar a sangria. Aprimorou-se,
sem dúvida, a ciência – inclusive porque aprendeu com seus erros –, mas ninguém tem ou pode
dar qualquer garantia de infalibilidade. O funcionamento do organismo humano é muito
complexo, e cada pessoa tem suas peculiaridades, podendo reagir de forma única aos
procedimentos geralmente adotados para casos idênticos. A receita infalível na cura de milhões de
pacientes pode mostrar-se ineficaz num caso particular, sem explicação conhecida para isso.
A obrigação dos médicos, neste cenário, só pode ser de meio, e não de resultado. Com efeito,
mesmo usando os instrumentos de diagnose mais avançados, empregando corretamente as
técnicas mais aprimoradas, prescrevendo com precisão as terapias e medicamentos mais
desenvolvidos, a enfermidade pode não ser curada. Soluções plenamente eficazes no tratamento
de pacientes com o mesmo mal podem não surtir igual efeito numa pessoa determinada. É
humanamente impossível, portanto, obrigar o médico pelo resultado. Obriga-se ele simplesmente
a adotar os procedimentos recomendados pela medicina com o maior zelo e dedicação
profissional, informando o paciente sobre os benefícios e riscos da terapêutica indicada. O
resultado pretendido – a cura da enfermidade – está fora do alcance do mais capacitado
profissional médico.
Note que a obrigação do médico é de meio e não de resultado em função de sua própria
natureza, em razão da grande complexidade do funcionamento do organismo humano e dos
limites da ciência. Não decorre do contrato entre o profissional e o paciente. É claro que, se o
médico está bastante seguro de sua competência – ou é um tolo irresponsável – e assume
contratualmente obrigação de resultado (a cura), não obtido este pode o paciente reclamar a
indenização por inadimplemento de contrato. Não existindo, porém, específica combinação neste
sentido entre as partes, a responsabilidade do profissional será necessariamente de meio.
Adotando com perícia os procedimentos recomendados para o caso do paciente, o médico não
responderá se, no final, mostrarem-se estes insuficientes à cura.
São exemplos de imperícia médica: não suspender terapia que causa reação anormal no
paciente; esquecer instrumento cirúrgico no interior do corpo do paciente; não observar normas
técnicas de assepsia; negligenciar na solicitação dos testes pré-operatórios (RT, 798/376);
prescrever medicamento ou anestésico sem atentar à idiossincrasia do paciente; errar na dosagem
do medicamento; retardar a cesariana quando já constatada a inviabilidade do parto normal;
empregar técnica ultrapassada condenada pela literatura atualizada; trocar exames; atuar em área
estranha à da respectiva especialidade sem o devido preparo e atualização (cf. Diniz, 2002:269/270;
Gonçalves, 2002:375/380; Zuliani, 2003).
O médico tem, pela natureza de suas funções e não pelo contrato que estabelece com o paciente,
obrigações de meio e não de resultado. Não é responsável, em outros termos, pela cura dos enfermos que
trata, mas pela perita adoção dos procedimentos recomendados pela medicina.
No trabalho em equipe, cada profissional responde pelos seus próprios atos, não existindo
solidariedade pela imperícia alheia. Foi-se o tempo em que se considerava o chefe da equipe
médica responsável por culpa in eligendo dos demais profissionais (cf. Gonçalves, 2003:205/207).
Em vista da imensa especialização do conhecimento médico e da complexidade inerente a cada
área, cada membro da equipe responde apenas pelos atos que pratica. Numa cesariana, por
exemplo, o cirurgião obstetra ocupa-se dos procedimentos relacionados à liberação do bebê do
útero. Cortado o cordão umbilical, sua atenção volta-se exclusivamente à mãe. O pediatra neonatal
responsabiliza-se pela recepção do recém-nascido. No seu canto, o anestesista cuida do fluxo do
anestésico e monitora as funções vitais da parturiente. É essencial que cada membro da equipe
médica concentre-se na sua função. A imputação de responsabilidade a um deles pelo trabalho do
outro pressupõe um dever de fiscalização por tudo incompatível com a divisão de tarefas
recomendadas pelas modernas técnicas cirúrgicas e altamente prejudicial ao paciente. A
responsabilidade subjetiva dos profissionais liberais é individual, ainda que trabalhando em
equipe.
3.2.2. Medicina de embelezamento
Quero insistir que o tipo da obrigação do médico (obrigação de meio) decorre da natureza de
sua atividade, e não do contrato com o paciente: em matéria de responsabilidade civil, o negócio
jurídico eventualmente existente entre credor e devedor da indenização é, como visto,
circunstancial. Insisto para questionar o entendimento da jurisprudência no sentido de existir
uma hipótese em que o médico teria responsabilidade de resultado: a cirurgia plástica destinada
unicamente ao embelezamento do paciente (mal denominada cirurgia estética). Pelo que
predomina nos tribunais, se a cirurgia plástica se destina a corrigir deformidade congênita ou
adquirida (num acidente de trânsito ou de trabalho, p. ex.), o cirurgião atua nas mesmas condições
que seus colegas médicos de outras especialidades. Assume, então, obrigação de meio. Mas, se o
procedimento tem o objetivo único do embelezamento, não havendo propriamente um mal a
curar, o cirurgião assume obrigação de resultado. Obrigar-se-ia, neste caso, a alcançar, com sua
técnica cirúrgica e habilidades, o padrão de beleza prometido. Neste caso, não alcançado o objetivo
contratado, ele responderia por indenizar o paciente (cf. Gonçalves, 2002:366/370).
Em primeiro lugar, é necessário desfazer a enorme distância entre a plástica corretiva e a
estética que a retórica jurídica estabeleceu. Não há fundamentos para tratar as duas hipóteses
como essencialmente diversas. Deve-se o distanciamento a resquícios do preconceito que cercou,
no início, a cirurgia plástica de objetivos meramente estéticos. A doutrina noticia célebre julgado
da primeira metade do século passado, em França, em que o cirurgião plástico foi condenado, por
erro médico, a indenizar a paciente (Dias, 1954, 1:303/310). O interesse no caso não reside tanto na
decisão condenatória – afinal, os relatos indicam ter mesmo ocorrido uma deplorável imperícia do
profissional. O interesse está, como aponta Aguiar Dias, na condenação do próprio procedimento:
considerou-se que a responsabilidade do médico decorria de ter concordado em fazer operação
plástica em pessoa completamente sã, apenas com o objetivo de aprimoramento estético. A jovem
paciente era bonita e esbelta, mas tinha as pernas desproporcionalmente grandes. O objetivo da
intervenção foi reduzi-las por ablação de gordura (o que foi motivo de verdadeiro escândalo
naquela época é hoje largamente aceito e praticado nas inúmeras clínicas de lipoaspiração de todo
o mundo). Em outros termos, assentou-se que, se o único objetivo da operação cirúrgica é
aformoseamento estético de pessoa saudável, realizá-la já é, por si, conduta culposa.
Julgados como esse – cujos fundamentos ainda se encontram na jurisprudência francesa dos
anos 1960 (Lopes, 2001:232) – ilustram a fase que Caio Mário da Silva Pereira designa como a de
rejeição pelo direito da cirurgia plástica de razões meramente estéticas (1989:155/156). Os
resquícios da rejeição ainda ecoam no preconceituoso tratamento jurisprudencial do
procedimento de objetivo exclusivamente estético como um caso à parte. Na verdade, a
extraordinária melhora de autoestima que a cirurgia plástica bem-sucedida proporciona, em
homens e mulheres, é fator de saúde, independentemente de seu caráter corretivo ou de simples
aformoseamento.
Mas o que, decisivamente, sustenta a natureza de obrigação de meio dos cirurgiões plásticos
nas intervenções motivadas apenas por razões estéticas é a presença das mesmas razões que
impossibilitam os médicos das demais especialidades de assumir compromissos de resultado. A
ciência médica, embora possa estabelecer padrões gerais altamente confiáveis para os
procedimentos que recomenda, não consegue controlá-los de forma absoluta. Em casos
correspondentes a certas margens estatísticas, manifestar-se-ão especificidades que fogem ao
controle da medicina. Cada organismo reage diferentemente à “agressão” da cirurgia, e influi
enormemente nos resultados da plástica o estado psíquico do paciente. Este quadro encontra-se
em todas as especialidades médicas, inclusive na medicina de embelezamento. Em suma, a
intervenção cirúrgica de razões meramente estéticas expõe o paciente a riscos, tanto quanto
qualquer outra (Aguiar Jr., 1995:40).
Ao contrário do que entende a jurisprudência, ao realizar cirurgia plástica de razões puramente
estéticas, o médico assume também obrigação de meio, e não de resultado. A medicina de embelezamento
está sujeita aos mesmos limites das demais áreas de especialidade médica.
Afirma-se, por outro lado, que a obrigação do cirurgião plástico, nesta hipótese, seria de
resultado porque o paciente, ao submeter-se à cirurgia de razões meramente estéticas, quer
alcançar um objetivo específico – o embelezamento – e não apenas contar com a diligente e
competente atuação do profissional (Lopes, 1980:62). Este argumento, porém, não procede. Em
primeiro lugar, porque nada há de específico nas expectativas do paciente por ter a cirurgia razões
puramente estéticas. Sempre que alguém procura um médico quer alcançar um objetivo
específico: a cura de doença, melhoria do estado geral de saúde, controles preventivos etc. Deste
fato, porém, não decorre seja a obrigação do médico de resultado. Em segundo lugar, porque não é
possível, mesmo na cirurgia de motivos meramente estéticos, garantir de forma absoluta o
resultado satisfatório. Em outros termos, a questão não pode ser resolvida pelo que deseja o
cliente, mas sim pelo que é objetivamente factível.
A medicina de embelezamento, hoje em dia, não se resume à cirurgia plástica. Dermatologistas
têm-se dedicado, cada vez mais, a tratamentos de objetivos meramente estéticos. Também
respondem por obrigações de meio, e não de resultado. Em idênticas condições encontram-se os
dentistas, quando realizam trabalhos de finalidades de puro aformoseamento, como o
branqueamento dos dentes, o alinhamento sem caráter de correção funcional, colocação de
jaquetas etc. Assumem esses profissionais de saúde obrigação de se empenharem com perícia e
diligência na execução do trabalho e não pelo resultado alcançado.
3.2.3. Prova da culpa
Os médicos liberais respondem civilmente pelos danos infligidos à integridade física ou moral e
à saúde, ou pelo falecimento de seus pacientes, se decorrentes de sua imperícia. Não se pode
perder de vista que a deterioração progressiva do organismo, cuja velocidade é ditada pela maior
ou menor capacidade de reação às cotidianas agressões do ambiente, bem como a morte são
inevitáveis. O médico que age com perícia pode apenas eventualmente adiá-las. Responde, claro,
por dolo, quando teve a intenção de infligir danos ao paciente, firmou atestado falso ou omitiu
deliberadamente o socorro que tinha o dever de dar. Afora hipótese de culpa intencional, contudo,
a responsabilidade civil constitui-se só quando sua imperita atuação precipita os processos
naturais de deterioração, capacidade de reação ao ambiente e morte do organismo humano.
Em razão da complexidade dos procedimentos da medicina atual e para realizar os objetivos do
princípio da indenidade, o juiz deve inverter o ônus da prova do pressuposto subjetivo da responsabilidade
aquiliana dos médicos sempre que verossímil a alegação apresentada pelo paciente.
Desse modo, não provada a culpa do profissional na adoção dos procedimentos recomendados
pela ciência médica, o dano deve ser suportado pelo próprio paciente. A prova do dolo ou
imperícia cabe, em regra, à vítima, mas, em vista da crescente complexidade da matéria e em
atenção ao princípio da indenidade, deve o juiz determinar a inversão do ônus probatório com
base na lei de tutela dos consumidores (CDC, art. 6.º, VIII) sempre que verossímil a alegação
apresentada, como ensina Ênio Santarelli Zuliani (2003). Neste caso, não será exigido da vítima
provar a culpa do médico que a atendeu, mas deste demonstrar que se conduziu exatamente como
recomenda a medicina. Não se trata de uma presunção de culpa estabelecida na lei para todo e
qualquer demanda de indenização por erro médico, mas de inversão que o juiz pode ou não
determinar, em vista dos elementos levados pela vítima aos autos. Se forem inverossímeis as
alegações aduzidas, não tem lugar a inversão do ônus probatório.
3.3. Advogados
É necessariamente de meio a obrigação profissional do advogado. Quando atua na advocacia
contenciosa, não tem como comprometer-se a obter o resultado da demanda favorável ao cliente.
Por maior que seja a tendência do julgamento num sentido, não há garantia absoluta de vitória em
nenhuma contenda judicial. Se advogado consultivo, também não tem obrigação de resultado:
caso seu parecer não prevaleça, ele não pode ser responsabilizado. Obriga-se, na verdade, a
empenhar-se na defesa em juízo dos interesses de seus clientes ou no estudo aprofundado da
questão que lhe é submetida.
O advogado tem, em decorrência, responsabilidade civil subjetiva pelos danos que causa ao
cliente quando falta ao cumprimento da obrigação de meio, quando comete erro no desempenho
da profissão. São exemplos de imperícia profissional de advogado: perder o prazo da contestação
ou recurso; deixar de protestar títulos que lhe foram confiados à cobrança, sustentar a conclusão
de parecer em dispositivo de lei revogado, caso vigore outro com comando em sentido oposto; não
propor a discussão de cláusula essencial aos interesses do cliente no transcurso de negociações
dum contrato; não advertir, oralmente ou por escrito, o cliente acerca do risco, quando houver, de
determinadas condutas ou decisões serem consideradas ilegais (cf. Dias, 1954, 1:328/338).
A configuração do erro no desempenho da profissão de advogado liberal nem sempre é fácil.
Algumas falhas são inequivocamente produto da ignorância e por elas devem responder os
profissionais, sem perdão. Mas a crescente complexidade da matéria jurídica, a multiplicação de
dissensos jurisprudenciais e o esgarçamento de valores tradicionais do Direito dificultam
distinguir, em determinadas hipóteses-limite, se ocorreu ou não o erro. Ninguém discorda que a
perda de prazo para a prática de ato processual é culpa grave do advogado. Mas, em alguns casos,
a jurisprudência diverge sobre o prazo em vigor (p. ex.: o de embargos na execução de Cédula de
Crédito Industrial: 48 horas ou 10 dias? – Coelho, 1995:439). Se o profissional protocoliza a
manifestação no prazo mais largo, está sendo imprudente, em vista da divergência nos tribunais?
Deve ser responsabilizado se restar decidido que atuou extemporaneamente, mesmo tendo acerca
do prazo legal a mesma convicção de parte considerável da jurisprudência e doutrina? Nestes
casos de dúvida, sempre que o advogado puder sustentar o ato praticado em precedentes
jurisprudenciais, entendimentos doutrinários autorizados ou mesmo em argumentos jurídicos
sólidos, ele não responderá por eventuais danos sofridos pelo cliente.
A responsabilidade civil dos advogados liberais por danos aos clientes cabe na hipótese de
descumprimento das obrigações de meio ínsitas à sua função. Cumprindo com diligência e perícia sua
atividade, não pode o advogado ser responsabilizado pelo resultado do processo judicial eventualmente
desfavorável ao cliente.
Além da hipótese de imperícia no cumprimento da obrigação de meio, o advogado,
evidentemente, responde também por dolo, se teve a intenção de infligir danos a quem contratou
seus serviços ou assumiu deliberadamente o risco de causá-los. O exemplo típico é o da traição de
mandato. Se o advogado recebe pagamento ou vantagem da parte adversária para fraquejar na
defesa dos interesses de seu constituinte, ou mesmo para praticar ato que o sacrifique, incorre em
ato doloso constitutivo de responsabilidade civil subjetiva.
3.4. Engenheiros civis
A denominação engenheiro civil deve-se à primeira classificação que a profissão teve no Brasil:
de um lado, os especializados na construção de fortes e armamentos, ou seja, os engenheiros
militares; de outro, os demais, os civis. Hoje em dia, ela designa os profissionais da engenharia de
construção, em vista da crescente lista de especializações (químico, eletricista, mecânico, de
comunicação, de produção etc.).
O engenheiro civil é profissional liberal com responsabilidade pelo resultado de seu trabalho.
Se contratado para construir a residência do cliente, ele responde pela solidez e segurança do
imóvel construído, bem como pela conformidade com os projetos (arquitetônico, estrutural,
elétrico, hidráulico, de paisagismo etc.). Note que o engenheiro civil pode ser contratado para
empreitar a obra ou simplesmente para gerenciá-la, e a diferença é essencial para delimitação de
sua responsabilidade.
No primeiro caso, o contrato com o cliente é de empreitada, regido por disposições específicas
do Código Civil (arts. 610 a 626). Nele, o engenheiro assume a obrigação de construir o imóvel com
sua equipe (pedreiros, pintores, eletricistas etc.), fornecendo também os materiais ou não. A lei
disciplina a responsabilidade do empreiteiro, fixando os prazos para manifestação dos defeitos (5
anos, a contar da conclusão do serviço) e interpelação pelo dono da obra (180 dias).
No segundo caso, o contrato é de prestação de serviços, obrigando-se o engenheiro a
administrar a obra. Aqui, ele cota o preço dos materiais, seleciona empreiteiras, providencia
licenças e registros, fiscaliza o andamento dos trabalhos e propõe soluções técnicas ao seu cliente.
Sua obrigação é também de resultado, mas limitada ao escopo das funções gerenciais que
desempenha. Ocorrendo problema com o material empregado, o dono da obra não pode reclamar
contra o engenheiro civil se era oculto o defeito. A reclamação terá que ser feita contra o
fornecedor do material. Se oriundo de má execução dos serviços do empreiteiro, é contra este que
deverá voltar-se a queixa do dono da obra. Mas, se o problema decorre de solução técnica
inadequada ou deficiência de gerenciamento – que, muitas vezes, atrasa o cronograma da obra –, o
engenheiro é o responsável. Outra diferença em relação ao contrato de empreitada está no prazo
para a reclamação contra defeitos, que é o da lei de tutela dos consumidores: 5 anos, a contar do
conhecimento do dano e de sua autoria (CDC, art. 27).
Suponha, então, que uma casa recém-construída desabou e causou danos pessoais e materiais.
Considere que o desabamento decorreu de erro na construção: as fundações não haviam sido
feitas como indicado pelo projeto estrutural. Neste caso, o engenheiro civil responde pelos danos,
qualquer que tenha sido a relação contratual com o dono da obra (empreitada, em qualquer de
suas modalidades, ou gerenciamento), já que se obrigara pelo resultado, isto é, por entregar ao
dono da obra um imóvel sólido, seguro e construído em conformidade com os projetos.
O engenheiro civil liberal assume obrigação subjetiva pelo resultado da obra que executa como
empreiteiro ou administra. Se o prédio não apresentar a solidez e segurança exigíveis, ou estiver
gravemente desconforme com os projetos respectivos, havendo culpa do engenheiro, deve ele indenizar o
dono da obra pelos prejuízos patrimoniais e extrapatrimoniais.
Igual à responsabilidade do engenheiro civil tem o arquiteto que, além de projetar, também
executa ou gerencia a obra.
4. Acidente de trânsito
O trânsito é um ambiente propício aos acidentes. Os motoristas, mesmo os mais cautelosos,
incorrem em erros constantemente e parte deles causam danos. Embora não sejam, em tese,
sempre evitáveis, os acidentes de trânsito geram responsabilidade civil subjetiva. Em primeiro
lugar, porque os condutores, exceto se dirigem veículos pertencentes a empresas ou ao Estado, não
geram evento danoso em que o responsável se encontre em posição econômica que lhe possibilite
socializar os custos da atividade. Mas não é isto apenas. A responsabilidade subjetiva é importante
como sanção imposta às condutas imprudentes dos motoristas, com o objetivo de contribuir para a
redução dos acidentes de trânsito e suas graves consequências para a sociedade e economia
brasileiras.
Sendo subjetiva a responsabilidade ligada aos acidentes de trânsito, cabe à vítima provar a
culpa do motorista demandado (ou empregado do demandado). Em alguns casos, essa prova é tão
singela que sugere até mesmo certa objetivação da responsabilidade. Pense no caso do
abalroamento de veículo estacionado na via pública. O motorista que conduzia o carro abalroador
evidentemente é o culpado, já que o outro automóvel envolvido no desastre estava imóvel. É tão
clara a exclusiva responsabilidade da imprudência do condutor do veículo em movimento pelo
acidente que não se dá relevância ao fato de o outro encontrar-se eventualmente parado em local
proibido (Gonçalves, 2002:791/793). Não há aqui, entretanto, responsabilidade objetiva ou
presunção de culpa, mas simplesmente uma hipótese de prova fácil do ato ilícito, pela evidência da
conduta culposa do demandado.
Não há dificuldade também na prova da culpa do motorista na hipótese, por exemplo, de
atropelamento de pedestre que caminhava pela calçada. Se o veículo, para atingir a vítima,
abandonou o leito carroçável e avançou sobre o passeio, é claro que nada mais é necessário à
demonstração da imprudência do condutor. Veja que se está tratando aqui só do elemento
subjetivo. Pode ser que o demandado não seja responsabilizado se demonstrar que não se
encontram presentes outros elementos da responsabilidade aquiliana, como a relação de
causalidade, por exemplo. Ou seja, se ele prova a ocorrência de caso fortuito (quebra do eixo da
direção) ou ato de terceiros (acabara de ter sido abalroado por outro veículo em alta velocidade),
elide sua responsabilidade.
Também é relativamente fácil a prova da culpa pelo acidente de trânsito no caso de desrespeito
às regras de preferência. Todos os motoristas as conhecem ou intuem, embora nem sempre as
respeitem. Em termos gerais, a preferência é estabelecida por sinal luminoso (semáforo, farol ou
sinaleira) cujas cores atendem a padrão internacional: verde significa a preferência para
atravessar; vermelho, a obrigatoriedade de dar preferência; e amarelo, a transição entre aquela
condição e esta, alertando os motoristas sobre a mudança no sentido da preferência. Age com
culpa quem desrespeita os significados dessas cores (RT, 792/280). Não havendo o sinal luminoso, o
direito à preferência é do veículo que trafega pela via preferencial. Quem vai pela secundária –
identificada pela placa “Pare” ou pelo triângulo branco de moldura vermelha com a base para
cima – deve aguardar, pacientemente, a oportunidade para atravessar.
A via preferencial não é identificada pela maior largura, pela denominação mais sugestiva
(“avenida” em vez de “rua”), pelo maior volume de tráfego ou pelo melhor tipo de calçamento. É a
sinalização sempre o critério decisivo para identificação da ordem de preferência. Para os
cruzamentos não sinalizados, as regras são as seguintes: nas rotatórias, tem preferência o veículo
que nela já ingressou; nos demais, o que vem da direita (Gonçalves, 2002:791/814).
Têm preferência, independentemente da via em que trafegam, os veículos especiais destinados
a transportes de emergência, como as ambulâncias, viaturas de polícia ou do corpo de bombeiros,
desde que acionem o sinal sonoro indicativo da urgência (sirene), bem como os de altas
autoridades acompanhados de batedores.
Entre o veículo motorizado e o não motorizado ou o pedestre, a preferência é, em princípio,
destes últimos. Quando há ciclovias sinalizadas ou faixa de segurança, não há exceções: o
motorista deve parar o automóvel e aguardar a travessia da bicicleta ou pedestre. Mesmo que o
sinal luminoso esteja verde (ou “aberto”) para o motorista, se o pedestre ainda não concluiu a
travessia na faixa de segurança, é deste último a preferência. Nas áreas em que inexistem as
sinalizações indicadas, a preferência é do veículo motorizado. O pedestre que deseja atravessar a
rua fora da faixa de segurança, ou nos cruzamentos em que ela não foi pintada, deve aguardar a
passagem do automóvel.
Quando o demandante prova em juízo que o demandado descumprira regra de preferência e
isto dera ensejo ao acidente de trânsito, desincumbe-se do ônus de provar a culpa. Nada mais lhe é
exigido relativamente à demonstração do elemento subjetivo. De novo, não se trata de objetivação
da responsabilidade ou presunção de culpa, mas unicamente de exemplo em que não é difícil ao
credor da indenização produzir a prova do comportamento culposo do devedor.
Note, o motorista titular da preferência não está autorizado a conduzir-se imprudentemente. O
direito de preferência não dispensa o motorista das mesmíssimas cautelas que está sempre
obrigado a observar enquanto dirige. Assim, se o pedestre está atravessando a rua fora da faixa e o
motorista o vê a tempo de reduzir a velocidade do veículo e até mesmo pará-lo, se necessário, para
evitar o atropelamento, é seu dever fazê-lo. Não se livra de responsabilidade invocando a
preferência. Só será exonerado de indenizar o pedestre atropelado se provar que este atravessara
a rua de forma abrupta, ou lançara-se contra o veículo, movendo-se em tempo curto demais para
que o motorista pudesse evitar o choque de forma eficiente. Nestes casos, porém, a prova da culpa
ou de sua inexistência é mais complexa.
Pode-se considerar, por fim, também fácil a prova da culpa do motorista ao colidir na traseira
do veículo que trafegava à frente no curso normal de rolamento. A facilidade deriva da evidente
transgressão à regra de trânsito que obriga aos condutores observar razoável distância em relação
ao veículo da frente (cf. Azevedo, 1994:50).
A responsabilidade pelos acidentes de trânsito é subjetiva, cabendo à vítima provar a culpa do
demandado ou seu preposto. Em diversas situações, quando flagrantemente desrespeitadas as leis do
trânsito, é fácil produzir a prova: atropelamento de pedestre na calçada, colisão com veículo estacionado,
abalroamento por trás do veículo e inobservância de regra de preferência.
Quando não for fácil a produção da prova da culpa, deve o juiz, em atenção ao princípio da indenidade,
ser tolerante na avaliação dos indícios apresentados pela vítima e severo no exame do prontuário do
motorista demandado.
Embora extensa a lista de hipóteses em que a prova da culpa do demandado não representa
dificuldade para o demandante, não se pode generalizar a noção. Em vários acidentes de trânsito,
a prova do elemento subjetivo representa difícil obstáculo para a vítima transpor ao pleitear a
indenização. Não há, para esses casos, nenhuma norma legal estabelecendo a inversão do ônus da
prova em função da verossimilhança do alegado pela vítima, já que não existe entre as partes
relação de consumo. Em prestígio ao princípio da indenidade, o juiz deve ser tolerante na
apreciação das provas produzidas, considerando com especial atenção os indícios trazidos pelo
demandante e os antecedentes do demandado (se no seu prontuário há, p. ex., o registro de
infrações graves ou gravíssimas, se já respondeu por outros acidentes de trânsito etc.).
A subjetivação da responsabilidade por acidentes de trânsito não corresponde à solução
adotada por todos os países de tradição românica. Em França ou na Itália, por exemplo, acidentes
de circulação geram responsabilidade objetiva (Tunc, 1989; Alpa-Bessone, 2001:460/470). Em
lugares sob a influência da tradição anglo-saxã, são mais comuns os mecanismos de direito
público, como os sistemas no-fault, que, nos anos 1970, eram adotados por cerca de metade dos
estados norte- -americanos (Alpa-Bessone, 1976:377/383) e pela Nova Zelândia.
5. Acidente de trabalho
No início da segunda revolução industrial, na Inglaterra, considerava-se que os operários, ao
aceitarem o emprego nas fábricas, assumiam diretamente o risco de suportar os danos de acidente
de trabalho (Tunc, 1989:66). Até 1891, dava-se, no caso de acidentes laborais, interpretação
extensiva a princípio assente na common law, segundo o qual era vedado ao sujeito que
concordara em correr riscos reclamar contra os danos correspondentes (volenti non fit injuria).
Entendia-se, então, que a simples ciência dos riscos pelo trabalhador era suficiente para a
presunção de que tinha concordado em assumi-los. Caso não tivesse considerado suficientemente
seguras as condições oferecidas pelo empregador, não devia ter aceito o trabalho. Naquele ano, no
famoso caso Smith vs. Baker, a Casa dos Lordes mudou o tratamento da matéria, ao afastar a
presunção pelo simples conhecimento do risco. A máxima volenti non fit injuria só deveria ter
aplicação, segundo esse julgado, quando fosse expressa a assunção dos riscos (Street,
1906:164/170).
Com o acúmulo de capitais e a decorrente mudança nos valores cultivados pela sociedade,
passou-se a considerar que as repercussões econômicas do acidente de trabalho deveriam ser
suportadas não só por todos os empregados expostos ao risco como pelos beneficiários diretos e
indiretos das perigosas atividades laborais que executam. Ao longo do século passado, criaram-se,
então, com contribuições de empregados, empregadores e de toda a sociedade, os sistemas de
seguro social para a cobertura dos acidentes laborais. No Brasil, o INSS é o responsável pelo
pagamento do benefício previsto na legislação previdenciária (Lei n. 8.213/91, arts. 19 a 21). Ele é
devido em qualquer acidente de trabalho, independentemente da causa. Além desse benefício, tem
o acidentado direito de reclamar do empregador a indenização, caso tenha sido deste a culpa pelo
evento danoso.
Em outros termos, um acidente de trabalho pode ser causado por motivos vários. Em primeiro
lugar, por caso fortuito. Imagine que o funcionário da distribuidora de energia elétrica está
consertando a antena de sustentação de cabos de alta tensão no exato momento em que ela é
atingida por um raio. Outra hipótese é a de acidente causado por imprudência ou negligência do
próprio empregado. Estudos mostram que a rotina do trabalho manual desconcentra a atenção do
trabalhador, que, então, descuida da própria segurança. De qualquer modo, a culpa pelo acidente
de trabalho pode ser, e muitas vezes é, do acidentado. Se o pedreiro trabalha na construção civil
sem capacete, porque se esqueceu de colocá-lo ou se recusa a fazê-lo, e é atingido pela queda de
um tijolo, ocorre acidente de trabalho por culpa do empregado. Em terceiro lugar, o acidente pode
derivar de culpa de terceiros. Pense na secretária que, retornando de ônibus do escritório em que
trabalha para sua casa, fere-se num acidente de trânsito. Por força de lei, considera-se o evento
acidente de trabalho, porque ocorrido no trajeto deste para a casa do trabalhador. Finalmente, a
culpa do acidente pode ser do empregador. Se, intencionalmente ou não, faltam no local de
trabalho os equipamentos de segurança, ou os empregados não são adequadamente informados
(inclusive por treinamentos periódicos, se necessário) sobre os riscos a que se expõem, ou não há
devida manutenção dos equipamentos e máquinas, a culpa pelo acidente de trabalho é do
empregador.
Como dito, em qualquer das quatro situações acima delineadas em função da causa do
acidente, o acidentado tem direito de pleitear, ao INSS, o benefício da legislação previdenciária. A
responsabilidade, neste caso, é objetiva pura. Desse aspecto da matéria, todavia, não cuida o
direito civil, mas ramos específicos do direito público. Sem prejuízo do recebimento do benefício,
porém, pode o acidentado demandar a indenização pelos danos correspondentes quando o
acidente de trabalho tiver sido causado por conduta culposa de alguém (RT, 787/371). São as duas
últimas situações acima indicadas. Na do acidente de trânsito, o empregado tem direito de ser
indenizado pelo causador do evento. A responsabilidade, como já examinado, é subjetiva nesse
caso: o empregado acidentado deve provar a culpa do terceiro para responsabilizá-lo pelos danos
(item 4).
Finalmente, no caso de acidente de trabalho ocasionado pela culpa do empregador, tem o
acidentado direito à indenização plena de seus prejuízos (patrimoniais e extrapatrimoniais). Tratase de responsabilidade aquiliana, fundada na culpa (Diniz, 2003, 7:438). Se o empregador é pessoa
preocupada com a segurança no trabalho, investe sempre na melhoria do ambiente de trabalho,
treina seus empregados periodicamente, põe à disposição deles roupas, acessórios, instrumentos e
equipamentos de proteção, estimula seu correto uso, orienta os supervisores a não tolerarem o
descaso com os riscos, quando, enfim, adota todas as providências exigíveis à adequada prevenção
dos acidentes de trabalho, não se pode imputar-lhe culpa pelo evento danoso. Se, por outro lado,
negligencia nas providências e investimentos, incorre em imprudência na organização do
ambiente de trabalho com vistas a economizar custos, não treina nem orienta seus empregados de
forma eficiente, então, ausente o fortuito, culpa exclusiva da vítima ou ato de terceiro, é dele a
responsabilidade pelo acidente de trabalho.
A responsabilidade do empregador pelos danos advindos de acidente de trabalho é subjetiva. Ele
só está obrigado a indenizar os acidentes se causados por sua culpa ou dolo na adoção das medidas
de segurança do trabalho.
A natureza subjetiva da responsabilidade do empregador por acidente de trabalho decorre de
norma constitucional. O art. 7.º, XXVIII, da CF imputa ao empregador a obrigatoriedade de
contratar seguro contra acidentes de trabalho e a responsabilidade pelos causados por seu dolo ou
culpa. Essa norma é especial e hierarquicamente superior ao Código Civil, e, por isso, não foi
alterada pela configuração dada à responsabilidade dos empresários pela entrada em vigor deste
(Cap. 23, item 4). A indenização devida diretamente pelo empregador corresponde à diferença
entre o valor coberto pelo seguro obrigatório e o do total dos danos sofridos pelo empregado em
razão do acidente de trabalho originado de culpa ou dolo do primeiro. O restante é pago pela
seguradora denunciada à lide ou diretamente na liquidação do seguro. Em devoção ao princípio
da indenidade, deve-se admitir a ação direta do empregador contra a seguradora contratada pelo
empregado, especialmente em situações especiais, como a da falência deste.
Concluindo, a vítima do acidente de trabalho causado por culpa ou dolo do empregador tem,
em princípio, o ônus de provar o elemento subjetivo, o dano e a relação de causalidade (RT,
803/264). Não prevê a lei nenhuma regra específica de inversão do ônus da prova em favor do
acidentado em caso de verossimilhança. Atende, no entanto, ao princípio da indenidade, e à
facilitação do acesso da vítima à indenização, a valoração mais tolerante do conjunto probatório
pelo juiz. Fortes indícios de negligência do empregador no trato dos assuntos relacionados à
segurança e higiene do trabalho podem ser acolhidos como prova de sua culpa.
6. Responsabilidade com culpa presumida: ruína de prédio
Em termos gerais, a ruína de prédio (pronto ou em construção) pode ser causada por fatores
naturais – como abalos sísmicos, desmoronamentos, enchentes ou tempestades – ou pela falta de
reparos. Naquela hipótese, verifica-se o caso fortuito, excludente de qualquer responsabilidade
subjetiva. O prejudicado pela ruína deve suportar os danos. Já a ruína causada por falta de reparos
pode gerar responsabilidade para o proprietário ou para a incorporadora ou construtora.
Começo pela hipótese mais abrangente: a responsabilidade da incorporadora ou construtora,
com fundamento na legislação de tutela dos consumidores. É responsabilidade objetiva, independe
de culpa do empresário responsável pelo empreendimento (CDC, art. 12). Tem lugar a
responsabilização sempre que verificado qualquer defeito de construção, manifesto ou oculto. O
prazo para efetivá-la é de 5 anos, contados do conhecimento do dano e de sua autoria (CDC, art.
27). Desse modo, se ruir edifício de apartamentos causando danos aos vizinhos ou transeuntes,
eles têm direito à indenização a ser paga pela incorporadora ou construtora, em caso de defeito de
construção. Os vizinhos ou transeuntes, nesse caso, não têm ação contra os proprietários (ou
promitentes compradores) das unidades condominiais.
O dono do prédio responde pelos danos derivados da ruína quando sua causa não for natural
nem defeito de construção. Em outros termos, quando for culpado pela precária manutenção do
imóvel.
É importante destacar que o proprietário tem responsabilidade subjetiva. Quer dizer, se tiver
sido diligente na manutenção do prédio, mandando fazer os reparos periódicos que a construção
comporta, ele não responde pelos danos derivados da ruína. Se o defeito de manutenção era
oculto, não se podendo prever o desabamento, não existe o elemento subjetivo indispensável à
constituição da obrigação de indenizar. A imprevisibilidade do evento danoso afasta a culpa do
proprietário e configura a ocorrência do fortuito. A consequência é a mesma da ruína causada por
fatores naturais: cada prejudicado arca com seu próprio prejuízo.
A responsabilização do proprietário pelos danos causados pela ruína de prédio representa a
única hipótese remanescente no direito brasileiro de culpa presumida. Trata-se de presunção
relativa, em que a prova pelo demandado da inexistência de conduta culposa o exonera de
qualquer obrigação (Rodrigues, 2002:128), a despeito dos esforços de parte da doutrina no sentido
de pretendê-la absoluta (Dias, 1954, 2:82; Lima, 1960:131/137). De acordo com a lei, “o dono de
edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ruína, se esta provier de falta
de reparos, cuja necessidade fosse manifesta” (CC, art. 937). Em vista deste preceito, considera-se
que à vítima cabe unicamente a prova do dano e da relação de causalidade entre ele e a ruína do
prédio pertencente ao demandado (Gonçalves, 2003:504). Se não demonstrar que o evento
originou-se de defeito de construção ou de defeito oculto de manutenção, o dono do prédio em
ruína será obrigado a indenizar os danos. Se restar provado que o bem ruiu por defeito de
construção, à vítima restará pleitear o ressarcimento perante o fornecedor do produto
(incorporadora ou construtora); mas, se o defeito de manutenção não era manifesto, a
imprevisibilidade da ruína acarreta a irressarcibilidade dos danos.
Na responsabilização do dono do prédio pela ruína decorrente de defeito manifesto de manutenção,
presume-se a culpa. Cabe ao prejudicado provar os danos e a relação de causalidade; a seu turno, o
proprietário apenas se livra de responsabilidade provando que o defeito era de construção e não de
manutenção, ou que este era oculto.
Antes de concluir, deve-se considerar ainda a hipótese de defeito de construção em obra feita
por engenheiro civil liberal. Aqui, não existe nenhum empresário incorporador ou construtor que
possa ser responsabilizado objetivamente pelos danos. Todavia, se a vítima provar a culpa do
engenheiro, é ele responsável por indenizar-lhe os prejuízos, nos termos da legislação tutelar dos
consumidores (CDC, arts. 14, § 4.º, e 17), independentemente do formato de sua atuação –
empreitada ou gerenciamento de obra (subitem 3.4). Neste caso, contudo, o proprietário também
pode ser responsabilizado pelos danos, com direito de regresso contra o profissional liberal. Não
existe, ressalte-se, norma de presunção de culpa para a situação. O art. 937 do CC aplica-se apenas
aos defeitos de manutenção. Em consequência, a vítima de prejuízos causados por ruína de prédio
em razão de defeito de construção deve provar a culpa in eligendo do proprietário, se pretender
receber o ressarcimento deste. Provar, em síntese, que o demandado não se cercou das cautelas
normalmente exigíveis na contratação dos serviços profissionais de engenheiro civil: não
pesquisou como devia a idoneidade e competência do contratado, optou pelo menor preço em
detrimento da qualidade dos serviços etc.
7. Responsabilidade em função do grau de culpa
O grau da culpa, em regra, não é relevante para a constituição da obrigação de indenizar
fundada em responsabilidade civil, no direito brasileiro. Se determinado sujeito de direito tem
responsabilidade civil subjetiva por seus atos, tanto faz se incorre neles por negligência levíssima
ou dolo hediondo, é devedor da indenização pelos danos causados. Existem, porém, duas exceções,
em que o grau da culpa é elemento de constituição da obrigação: a do transporte de cortesia
(subitem 7.1) e a da cobrança indevida (subitem 7.2).
7.1. Transporte de cortesia
Não existe preceito legal nenhum tratando a hipótese de forma excepcional. A jurisprudência,
porém, tem considerado o grau da culpa na imputação de responsabilidade por transporte de
cortesia. Diz a Súmula 145 do STJ: “No transporte desinteressado, de simples cortesia, o
transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando
incorrer em dolo ou culpa grave”. Quando é leve a culpa do transportador desinteressado, ele não
responde pelos danos infligidos ao carona, no acidente por ele causado.
Note-se que todo transporte de cortesia é gratuito, mas o inverso não se verifica. As empresas
de transporte coletivo urbano são obrigadas, por força de leis municipais e do Estatuto do Idoso
(Lei n. 10.741/03, art. 39), a transportar gratuitamente pessoas com mais de 65 anos de idade. Não
o fazem por cortesia, mas apenas porque estão obrigadas a isso. Respondem por danos que esses
passageiros não pagantes vierem a sofrer também de forma objetiva (RT, 805/262) (Cap. 23, item
4.5). Apenas se condiciona a responsabilização ao grau de culpa na hipótese de transporte de
cortesia, isto é, o gratuito oferecido por cortesia do transportador. Em suma, no caso de carona.
O transportador desinteressado não deve ser responsabilizado de forma objetiva como no caso
de transporte oneroso de pessoas. Quem concede a carona está apenas sendo cortês com o
passageiro ou passageiros de seu veículo. A inexistência de pagamento pelo transporte impede,
ademais, qualquer socialização de custos. Sua responsabilidade deve ser, portanto, subjetiva,
fundada na culpa. Desse modo, se o carona se machuca num acidente de trânsito pelo qual não é
culpado seu gentil transportador, terá direito de pleitear a indenização apenas contra o terceiro
causador do evento danoso. Não há sequer solidariedade entre o transportador desinteressado e o
culpado pelo acidente.
Para constituir-se a obrigação de indenizar os prejuízos sofridos pelo usuário de transporte
desinteressado (carona), é necessário que o transportador tenha agido com culpa grave ou dolo.
O tratamento excepcional do transporte de cortesia dado pela jurisprudência é criticado pela
doutrina. Maria Helena Diniz sustenta que o transportador deve ter o mesmo zelo pela
incolumidade dos passageiros que traz em seu veículo, tanto no transporte gratuito como no
oneroso (2003, 7:494). Concordo. Se existem razões para tratar diferentemente o transporte de
cortesia do oneroso, submetendo aquele à responsabilidade subjetiva e este à objetiva, não há
motivo para excluir a responsabilização pela pequena gravidade do ato ilícito. Ainda seguindo a
lição de Maria Helena Diniz, a exemplo do que se verifica com as demais hipóteses de
responsabilização subjetiva desde a entrada em vigor do Código Reale (CC, art. 944, parágrafo
único), as culpas leve e levíssima devem somente influir na liquidação da indenização, isto é, na
quantificação do valor a ressarcir (cf. 2003, 7:494).
7.2. Cobrança indevida
A cobrança indevida pode gerar responsabilidade civil do credor, dependendo do grau de sua
culpa. A responsabilidade civil decorrente de cobrança indevida implica a obrigação de restituir o
indébito e mais um acréscimo. Este plus tem a natureza de indenização punitiva (punitive damage);
é uma sanção civil pela ilicitude praticada. Variam, contudo, os pressupostos e o critério de
quantificação do acréscimo segundo algumas circunstâncias.
Inicialmente, é necessário verificar se há ou não, entre credor e devedor, uma relação de
consumo. Se o credor se enquadra no conceito legal de fornecedor (CDC, art. 3.º: explora atividade
de venda de bens ou prestação de serviços) e o devedor, no de consumidor (CDC, art. 2.º: adquire
bem ou serviço como consumidor final), a relação jurídica entre eles é de consumo. Se não se
enquadram os sujeitos da obrigação num ou noutro conceito legal, a relação jurídica entre eles é
civil. É o caso, por exemplo, da relação entre o banco financiador (credor) e o empresário
financiado (devedor), ou da derivada da venda de carro usado a prazo para o amigo, entre o
vendedor (credor) e o comprador (devedor).
Se a cobrança indevida se insere numa relação de consumo, há um pressuposto específico para
a imposição da indenização punitiva: o consumidor deve efetivamente ter pago o indébito. Se o
fornecedor cobra valor superior ao seu crédito, mas o consumidor atento recusa-se a pagar o
excesso, não incide a norma de responsabilização civil. Este pressuposto não tem pertinência se a
cobrança indevida se referir a relação civil. Neste caso, a indenização punitiva é exigível, mesmo
que o devedor não tenha efetivamente feito o pagamento. Para este caso, o pressuposto é diverso:
consiste no ajuizamento da cobrança. Enquanto o credor adota medidas extrajudiciais somente,
não há fundamento para a imputação de responsabilidade. Resulta isto claramente da previsão de
exoneração da responsabilidade, se antes da contestação o credor desistir da cobrança judicial (CC,
art. 941).
Outra diferença significativa entre as duas hipóteses relaciona-se ao grau de culpa exigido para
a responsabilização. Na relação de consumo, exonera-se o fornecedor em caso de “engano
justificável” (CDC, art. 42, parágrafo único, in fine). Quer dizer, para constituir-se a obrigação, neste
caso, é necessário dolo ou culpa grave do credor. Já na cobrança indevida numa relação civil, tem
considerado a jurisprudência que apenas havendo prova irrefutável de dolo é devida a
indenização punitiva (RT, 806/379). A “cobrança excessiva, mas de boa-fé, não dá lugar às sanções”
aqui examinadas, afirma a Súmula 159 do STF. A culpa, mesmo grave, não acarreta a
responsabilidade aquiliana de credores duma relação civil. Se a incabível cobrança judicial se
explica pela falta de controles administrativos adequados dos pagamentos recebidos, por mais
grave que seja a negligência do credor, ele arca apenas com os ônus próprios da sucumbência,
previstos na legislação processual civil, e não se sujeita à indenização punitiva.
A derradeira diferença entre as duas hipóteses de responsabilidade por cobrança indevida diz
respeito à quantificação do acréscimo. Na relação de consumo, presentes os pressupostos
assinalados (prévio pagamento do indébito pelo consumidor e culpa grave ou dolo do fornecedor),
além da restituição do indébito, é devido o equivalente ao pagamento em excesso. Diz a lei que “o
consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao
dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de
engano justificável” (CDC, art. 42, parágrafo único). Desse modo, se o consumidor pagou $20,
quando devia apenas $15, não sendo justificável o engano do fornecedor, este deve restituir-lhe os
$5 excedentes e pagar-lhe mais $5 de indenização punitiva.
Para a hipótese de cobrança indevida prevê a lei brasileira a imposição de indenização punitiva. Os
pressupostos e o critério de quantificação desses danos variam conforme exista, ou não, entre credor e
devedor uma relação de consumo.
Por sua vez, na responsabilidade por cobrança indevida derivada de relação civil, distingue a
lei duas situações. De um lado, a cobrança de valor já pago, no todo ou em parte, sem ressalvas; de
outro, a de valor superior ao devido. No primeiro caso, o dolo do credor implica indenização
punitiva no valor do “dobro do que houver cobrado” do devedor; “e, no segundo, o equivalente do
que dele exigir” (CC, art. 940). Assim, considere que Antonio é credor de $100 de Benedito,
importância da qual já recebera, como parte do pagamento, $30. Se Antonio ajuizar dolosamente
cobrança judicial por $100, o valor da indenização punitiva a que se sujeita é $200 (o dobro do que
cobra). Se, por outro lado, Benedito não havia feito pagamento parcial nenhum, e Antonio cobralhe em juízo $120 em vez de $100, também agindo com dolo, a indenização punitiva será de $120
(o equivalente ao exigido).
Por fim, a cobrança indevida na relação civil é disciplinada também no caso de o credor
demandar o devedor antes do vencimento da obrigação. Neste caso, a indenização punitiva
consiste no desconto dos juros correspondentes, tenham sido ou não convencionados, e no
pagamento do dobro das custas (CC, art. 939).
© desta edição [2020]
2020 - 02 - 12
Curso de Direito Civil - Vol. 2 - Ed. 2020
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TERCEIRA PARTE - RESPONSABILIDADE CIVIL
CAPÍTULO 23. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA
Capítulo 23. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA
1. Responsabilização por atos lícitos
Por duas formas, o sujeito de direito pode ser responsabilizado objetivamente, isto é, por danos
causados em razão de atos lícitos. A primeira é a específica previsão legal; a segunda, a exploração
de atividade em posição que lhe permita socializar os custos entre os beneficiados por ela.
Denomino aquela de formal, e esta, de material. Tem, assim, responsabilidade objetiva formal o
sujeito de direito a quem norma legal específica atribui a obrigação de indenizar danos
independentemente de culpa. De outro lado, tem responsabilidade objetiva material o sujeito
obrigado a indenizar, mesmo sem ser culpado pelo dano, por ocupar posição econômica que lhe
permite socializar os custos de sua atividade. As duas hipóteses estão albergadas no parágrafo
único do art. 927 do CC: “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos
casos especificados em lei” (responsabilidade objetiva formal) “ou quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”
(responsabilidade objetiva material).
Pode ocorrer a sobreposição das duas modalidades de responsabilidade objetiva. Quer dizer, a
lei pode estabelecer, ao lado da norma geral de objetivação do art. 927, parágrafo único, in fine,
uma norma específica que a reforce. É o caso, por exemplo, dos empresários fornecedores de
produtos. Para eles, o Código Civil objetiva a responsabilidade não somente no preceito geral
mencionado, como num específico, o art. 931. Sobrepõem-se, então, no caso de empresários que
fornecem ao mercado produtos (os industriais, construtores etc.) as duas modalidades de
responsabilidade objetiva: a formal, no art. 931 do CC (e também no art. 12 do CDC), e a material,
no fim do art. 927, parágrafo único. A norma de responsabilização material, por evidente, pode
integrar qualquer diploma legal, e não necessariamente o Código Civil. Assim, há também a
sobreposição no caso dos empresários prestadores de serviços, tendo em conta o art. 14 do CDC, e
no do Estado, considerando-se o art. 37, § 6.º, da CF.
Em virtude da possibilidade de sobreposição, a distinção entre os dois fundamentos de
responsabilidade civil objetiva, no atual estágio de evolução do direito positivo brasileiro, pode
não apresentar, em alguns casos, maior importância prática. Isto porque a maioria das hipóteses
em que caberia a responsabilidade objetiva material está já prevista num dispositivo de lei
específico – no Código Civil, no Código de Defesa do Consumidor, na Constituição ou em leis
esparsas.
São duas as modalidades de responsabilidade objetiva: a prevista em preceito específico de lei
(responsabilidade formal) e a derivada da exploração de atividade cujos custos podem ser socializados entre
os beneficiários (responsabilidade material). Quando o legislador, atento à segurança nas relações jurídicas,
prevê em preceito próprio hipótese de responsabilidade objetiva material, a distinção entre as modalidades
perde importância prática.
A sobreposição entre as duas modalidades não é completa. Há, de um lado, sujeitos com
responsabilidade objetiva material sem que lei específica a preveja. Uma cooperativa de grande
porte, capaz de socializar seus custos, responde objetivamente pelos danos derivados de sua
atividade, malgrado inexista qualquer disposição específica nesse sentido (subitem 4.2). Há, de
outro lado, sujeitos com responsabilidade objetiva formal que não dispõem de meios para
socializar custos. É o caso, entre outros, dos pais pelos atos do filho menor que se encontra sob sua
autoridade e na companhia de pelo menos um deles. Não têm os pais como repassar as
repercussões do dano; ao contrário, devem absorvê-las por completo. A responsabilidade objetiva
exclusivamente formal, assim, não se justifica pela racionalidade na alocação dos recursos
econômicos. Cumpre, no exemplo, a função de compatibilizar os interesses da vítima (no sentido
de ser indenizada) e os do agente causador dos danos, que, por ser incapaz, merece particular
proteção da ordem jurídica. Na responsabilização dos pais, em determinadas situações, pelos
danos causados por filhos menores, a responsabilidade objetiva compatibiliza os interesses destes
(protegidos em razão da incapacidade) e os do prejudicado.
A responsabilidade objetiva, formal ou material, corresponde sempre a norma especial,
aplicável a casos particulares. A regra geral continua sendo a da responsabilidade civil subjetiva,
isto é, por ato ilícito. Desse modo, se ausentes os pressupostos da lei para a responsabilização
objetiva, a vítima poderá pleitear indenização provando a culpa do demandado. Ainda no exemplo
da responsabilidade dos pais por atos dos filhos menores: a imputação objetiva está sujeita ao
pressuposto de que se encontrem estes sob a autoridade e em companhia daqueles (CC, art. 932, I).
Não preenchido o pressuposto, portanto, os pais não têm a responsabilidade objetiva. Podem,
porém, ser subjetivamente responsabilizados se a vítima provar a culpa deles no evento danoso.
Imagine que Antonio empreste o carro para seu filho menor Benedito dirigir. Evidentemente,
Benedito não é habilitado, porque não tem a idade mínima para isso (18 anos). Se ele causar
acidente de trânsito sem estar na companhia de Antonio, não se atende ao pressuposto legal de
atribuição de responsabilidade objetiva aos pais por atos de filhos menores. Mas Antonio poderá
ainda ser responsabilizado por culpa, já que incorreu num ato ilícito ao emprestar o automóvel ao
filho.
A regra geral é a de imputação de responsabilidade civil subjetiva: todos respondem pelos seus atos
ilícitos. A responsabilização objetiva é regra especial. Quando ausentes os pressupostos da imputação de
responsabilidade objetiva, mas presente o elemento subjetivo, caberá a responsabilização do demandado
por culpa.
Os elementos da responsabilidade civil objetiva são dois: os danos patrimoniais ou
extrapatrimoniais do credor e a relação de causalidade entre eles e ato ou atividade do devedor.
Não se discute o elemento subjetivo, por ser irrelevante eventual culpa do sujeito passivo do
vínculo obrigacional. Destaco que não ocorre, na objetivação, a presunção de culpa do obrigado a
indenizar, mas sua completa desqualificação como elemento constitutivo da responsabilidade
civil. Quando alguém é objetivamente obrigado a indenizar danos, na imputação da obrigação não
há qualquer desaprovação jurídica ou moral aos atos praticados, como ocorre na
responsabilização subjetiva. A obrigação de indenizar é apenas a operacionalização de um
eficiente mecanismo de alocação de recursos na sociedade.
2. Teoria do risco
Até agora, não fiz referência à teoria do risco. A postergação tem sido, claro, intencional e há
uma razão para isso: nela há ainda o ranço da desaprovação jurídica ou moral do devedor, que
importa certa relativização da objetividade buscada. Justificar a imputação da responsabilidade
objetiva pelo mecanismo de socialização de custos das atividades – abstraindo por completo a
criação dos riscos como fundamento da obrigação – afasta a relativização. Nenhuma exposição
tecnológica do direito civil brasileiro pode, contudo, ignorar a teoria do risco. Ela inspirou os
elaboradores do Código Civil, e isto é motivo suficiente para seu estudo. Ademais, corresponde à
fundamentação tecnológica mais aceita e difundida, até o momento, para a imputação de
responsabilidade objetiva.
De acordo com a teoria, toda atividade humana gera proveitos para quem a explora e riscos
para outrem. O transporte ferroviário, por exemplo, é atividade lucrativa para a estrada de ferro.
Com o preço das passagens vendidas, custeia a atividade e proporciona lucro ao proprietário. De
outro lado, os passageiros, os donos da carga transportada e os dos imóveis lindeiros à ferrovia
correm riscos de dano em decorrência do transporte ferroviário. Pois bem, pela teoria do risco,
imputa-se responsabilidade objetiva ao explorador da atividade fundado numa relação axiológica
entre proveito e risco: quem tem o proveito deve suportar também os riscos (ubi emolumentum, ibi
onus). Se, para a estrada de ferro, é impossível exercer sua atividade sem criar riscos para
terceiros, vindo estes a sofrer danos em virtude do transporte ferroviário, deve ela ser obrigada a
indenizá-los. Em outros termos, porque a estrada de ferro objetiva lucrar com a atividade criadora
do risco, ela tem também a obrigação de suportar os danos decorrentes.
A atribuição da responsabilidade pelos danos a quem aproveita a atividade geradora dos riscos
é a formulação mais corrente da teoria. Chama-se teoria do risco-proveito. Notam-se, contudo,
algumas variações que põem maior ênfase num ou noutro aspecto da questão. Assim, se o
fundamento da responsabilidade objetiva repousa na exposição aos riscos da atividade, fala-se em
risco-criado; se na sua inevitabilidade, em risco-profissional.
Fernando Noronha desmembra os riscos de atividades a que se refere o art. 927, parágrafo
único, do CC em três. O primeiro, denomina risco de empresa. Está relacionado aos acidentes de
consumo, de trabalho e demais derivados da exploração de atividade empresarial. O empresário –
quem exerce profissionalmente atividade econômica para a produção ou circulação de bens ou
serviços – deve suportar todos os ônus resultantes de eventos danosos acarretados por sua
atividade econômica. Ao segundo, refere-se por risco administrativo. Diz respeito à obrigação
imposta à pessoa jurídica pública de indenizar os danos derivados da realização do interesse
público, para distribuí-los pela coletividade beneficiada. Finalmente, o risco-perigo. Quem se
aproveita duma atividade lícita potencialmente perigosa deve responsabilizar-se pelos danos que
causar. Noronha esclarece que, inicialmente, a responsabilidade objetiva assentava-se no perigo
de danos, noção que, hoje em dia, complementa a do risco de empresa e administrativo (2003:486).
De fato, há direitos positivos, como o italiano, português ou mexicano, que enfatizam a
periculosidade da atividade na caracterização da responsabilidade objetiva por danos (Gonçalves,
2003:314/315; Alpa-Bessone, 2001:331/335).
A teoria do risco é amplamente difundida nos países de tradição românica. Despertou críticas,
no início, dos subjetivistas, no contexto dos debates que contrapunham as espécies de
responsabilidade civil, e resistiu muito bem a elas (Lima, 1960:189/202). Não tem sido, porém, alvo
de maiores questionamentos da parte de quem admite hipóteses de responsabilização sem culpa.
A tecnologia jurídica dá-se, em suma, por satisfeita com a concepção de justiça distributiva que
nela se encerra: a quem ganha com a atividade cabe o ônus de arcar com os riscos dela.
Pela teoria do risco, quem tem o proveito de certa atividade deve arcar também com os danos por ela
gerados (ubi emolumentum, ibi onus). Em decorrência, deve ser imputada responsabilidade objetiva a quem
explora atividade geradora de risco para que não venha a titularizar vantagem injurídica.
Há três espécies de risco: risco de empresa (o empresário que busca o lucro com a atividade econômica
explorada tem o ônus de arcar com os eventos danosos por ela desencadeados), risco administrativo (o
Estado deve ser objetivamente responsabilizado para distribuir as repercussões econômicas da realização do
interesse público entre os beneficiados) e risco-perigo (quem se aproveita de atividade que expõe direitos de
outrem a perigo deve responder na hipótese de danos).
Há, contudo, na teoria do risco, resquícios da responsabilização civil como resposta a certo tipo
de desconformidade em relação ao direito. O princípio nenhuma responsabilidade sem culpa é de
tal forma arraigado à cultura jurídica dos países de tradição românica, que dificulta a aceitação da
noção de responsabilidade civil desacompanhada de qualquer desaprovação jurídica ou moral do
ato ou atividade causadora do dano. No fundo, como dito, encontra-se o apego à ideologia
individualista da vontade como fonte última das obrigações (Cap. 21, subitem 3.1). Por essa razão,
o processo de amadurecimento da responsabilidade objetiva na tecnologia jurídica é lento, não
linear e ainda está em curso.
Ao estabelecer a relação entre proveito e ônus, a teoria do risco sugere que a falta de
responsabilização importaria vantagens indevidas para quem explora a atividade. Se o sujeito a
quem beneficia não respondesse pelos danos causados em função dos riscos criados, ocorreria um
enriquecimento injurídico – está implícito nos fundamentos da teoria. Resquícios da natureza
sancionatória da responsabilidade subjetiva encontram-se ainda na noção da oneração do
beneficiado pela criação do risco como fundamento da objetivação.
Todavia, a menção aos riscos na elaboração dos fundamentos racionais e axiológicos da
responsabilidade objetiva é por tudo dispensável, assim como é também o estabelecimento de
relação entre proveito e ônus no contexto da justiça distributivista. A socialização dos custos da
atividade entre os beneficiários – tal como descrita (Cap. 21, subitem 3.2) – fornece suficiente
fundamento moral, jurídico e econômico para a imputação de responsabilidade por atos lícitos. É
cabível e oportuno espancar de vez todas as resistências à plena objetivação da responsabilidade
civil, sempre que presentes seus pressupostos.
3. Significado de “atividade”
A responsabilidade objetiva material é imposta, pela parte final do parágrafo único do art. 927
do CC, àqueles cuja atividade normalmente desenvolvida implica, por sua natureza, risco para os
direitos de outrem. Que significado se deve atribuir à expressão “atividade” nesse dispositivo?
Quando é “normalmente desenvolvida”, e quando não? Responder estas questões é necessário
para delimitar o alcance da imputação. Neste item, abstraio a responsabilidade objetiva formal,
com vistas a tornar os argumentos menos complexos. Não há prejuízo nesta abstração, visto que a
previsão específica em lei leva à imputação da responsabilidade objetiva, independentemente das
respostas apresentadas.
Atividade, para os fins do dispositivo em foco, não pode ter o significado singelo de conjunto
ordenado de atos. Esta solução implicaria tratar toda responsabilidade por ato isolado de forma
subjetiva fundado no caput do art. 927 do CC, e a derivada de dois ou mais atos ordenados, sempre
de forma objetiva, lastreado na parte final do parágrafo único desse dispositivo. Explico. Se
atividade é tomada no sentido mais corriqueiro de multiplicidade de atos articulados em vistas de
um objetivo, somente a hipótese de danos causados por um único ato poderia implicar
responsabilidade aquiliana. Esse, porém, não pode ser o critério de distinção entre as espécies de
responsabilidade, porque não haveria fundamento na discriminação. Interpretar atividade como
conjunto ordenado de atos implicaria inconsistências jurídicas como a seguinte: se pessoa
enfurecida danifica o carro do desafeto com uma única e certeira martelada, a responsabilidade
seria subjetiva; se o danifica sem furor e sopesando friamente cada ato, mediante sucessivos e
cotidianos agravos ao veículo, responderia de forma objetiva.
A sucessão de atos ordenados, ressalto, é essencial para a identificação da atividade ensejadora
de responsabilidade objetiva material. Não basta, porém, se se querem descartar implicações
desarrazoadas como a assinalada. Poder-se-ia argumentar com a adjetivação empreendida pela lei,
no sentido de que a atividade geradora de responsabilidade objetiva seria a que o agente
reiteradamente explora. No dispositivo fala-se em “atividade normalmente desenvolvida”, o que
sugere um conjunto de atos ordenados e habituais. Mas ainda assim não será suficiente, porque
não tem sentido tratar subjetiva ou objetivamente certa hipótese em função da reiteração ou
habitualidade do que o agente faz. Se qualquer conjunto ordenado de atos com vistas a alcançar
certo objetivo, repetitiva ou habitualmente praticados, gerasse responsabilidade objetiva material,
chegar-se-ia a conclusão também inconsistente sob o ponto de vista jurídico: o motorista que
diariamente faz determinado trajeto da casa para o escritório teria responsabilidade objetiva se
causasse acidente de trânsito, porque dirigir ali seria uma atividade normalmente desenvolvida
por ele; mas, no dia em que variasse o trajeto, sua responsabilidade por acidente de trânsito
passaria a ser subjetiva, porque dirigir por aquelas outras vias não correspondia a atividade
normalmente exercida por ele.
Também não resolve as questões propostas o dito final do dispositivo de lei referido. Para gerar
responsabilidade civil objetiva material, a atividade deve expor a riscos direitos de outrem, mas
não basta a presença dessa exposição para a constituição da obrigação de indenizar. Como
assentado (Cap. 21, item 1), a convivência em sociedade implica necessariamente interações: quem
age influi na situação, interesses e bens de outra ou outras pessoas sempre. As implicações que a
conduta de alguém traz para a situação, interesses e bens de outrem podem ser positivas ou
negativas. Não são, porém, todas as externalidades negativas que comportam internalização. Quer
dizer, não é simplesmente da circunstância de gerar risco que decorre a responsabilidade. Há
atividades que importam risco a direitos de outrem e que não geram responsabilidade civil de
quem as explora. Por exemplo: os administradores de empresas ou de investimentos especulativos
são contratados, muitas vezes, para serem criadores de risco. Como o retorno financeiro é
diretamente proporcional ao risco de perda, há profissionais cuja atividade importa
inegavelmente criação de risco a direitos de pessoas interessadas em lucros extraordinários. Os
danos porventura relacionados a esses riscos não são indenizáveis. Outro exemplo: o portador de
doença rara sofre as consequências da falta de investimentos na pesquisa de meios de tratamento.
É certo que a atividade da indústria farmacêutica não gera o risco da doença rara, mas dela deriva
a inexistência de pesquisas que levem à cura.
A prática de atos racionalmente ordenados e com habitualidade bem como a exposição a riscos
de direitos de outrem são essenciais à identificação da atividade constitutiva da responsabilidade
civil objetiva material, mas, de novo, não bastam. A atividade a que se refere a lei, na parte final
do parágrafo único do art. 927 do CC, é a que viabiliza a socialização de custos. Não havendo
específica previsão legal atribuindo responsabilidade objetiva, ninguém deve ser responsabilizado
por ato lícito, se não tiver meios de socializar os custos de sua atividade.
Por “atividade normalmente desenvolvida”, que implica, “por sua natureza, risco para os direitos de
outrem” (CC, art. 927, parágrafo único), deve-se entender aquela em que for possível a socialização dos
custos.
O empresário responde por acidentes de consumo porque são estatisticamente previsíveis.
Dessa forma, ele pode incorporar ao preço dos produtos ou serviços que oferece ao mercado algo
como uma “taxa” de absorção de riscos de danos. Os consumidores, um dos beneficiários da
atividade em questão (sem ela, não teriam acesso aos bens ou serviços de que necessitam ou
querem consumir), ao pagarem preço um pouco mais elevado pelos produtos ou serviços, estão
assumindo sua parcela na repercussão dos acidentes marginalmente inevitáveis. Opera-se, desse
modo, a socialização dos custos. Quem não se encontra em condições de realizá-la, à falta de
específica previsão legal atributiva de responsabilidade objetiva, não pode ser responsabilizado
sem culpa. É o caso dos profissionais liberais pelos danos relacionados à sua atividade, dos
motoristas pelos acidentes de circulação, dos empregados ou administradores pelos prejuízos que
suas atividades provocam a seus empregadores ou contratantes etc.
4. Responsabilidade dos empresários
Antes da entrada em vigor do Código Reale, já previa o direito brasileiro algumas hipóteses de
responsabilidade objetiva dos empresários. O exemplo mais significativo encontra-se na
responsabilização por acidente de consumo, que, nos termos do Código de Defesa do Consumidor,
independe de culpa (arts. 12 e 14). Afora, porém, nas situações alcançadas por essas previsões
esparsas, a responsabilidade dos empresários era, como a dos demais sujeitos de direito, em regra,
subjetiva. O Código Reale mudou substancialmente o tratamento da matéria. Atento ao fato de os
empresários sempre ocuparem posição econômica que lhes permite socializar os custos da
atividade empresarial entre os consumidores dos produtos ou serviços oferecidos ao mercado,
passou a lei a imputar-lhes responsabilidade objetiva por todos os danos a ela associados.
Exemplo da mudança empreendida encontra-se na responsabilização por acidentes de trânsito.
Antes da vigência do Código Reale, era subjetiva a responsabilidade dos empresários pelos danos
causados por seus empregados motoristas, na condução dos veículos da empresa. Não existia
norma afastando a incidência do princípio nenhuma responsabilidade sem culpa. Ao entrar em
vigor a nova codificação, os empresários passaram a ter responsabilidade objetiva por todos os
danos relacionados à sua atividade, por se submeterem sempre à parte final do parágrafo único do
art. 927 do CC (responsabilidade objetiva material). Considere, para ilustrar, o acidente de trânsito
causado pelo motorista de um caminhão de empresa de mudanças. Antes da vigência do Código
Reale, tinha natureza diversa a responsabilidade do empresário relativamente aos danos sofridos,
de um lado, pelo consumidor de seus serviços e, de outro, pelo pedestre ou o proprietário do outro
veículo envolvido. Pelos danos infligidos ao consumidor – a perda dos móveis e utensílios
transportados, o atraso na organização da nova morada etc. – respondia objetivamente (CDC, art.
14), mas, pelos acarretados aos não consumidores – o pedestre atropelado, o proprietário do
veículo abalroado etc. –, a responsabilidade era subjetiva. Hoje, não há mais essa divisão. Todo e
qualquer prejudicado por dano imputável a empresário é indenizado no regime da objetividade,
ou seja, independentemente da culpa.
Restou, no direito brasileiro, uma só hipótese de responsabilização subjetiva dos empresários, a
dos acidentes de trabalho. Por força de preceito constitucional, o empresário é responsável pela
indenização dos danos sofridos por seus empregados no trabalho apenas quando os causou por
culpa ou dolo (CF, art. 7.º, XXVIII). A exceção se justifica, na medida em que os custos relacionados
a esses acidentes associados à atividade empresarial já se encontram socializados, por meio dos
instrumentos do direito previdenciário. Ao se obrigar o INSS a pagar ao acidentado o valor do
benefício correspondente, a lei distribui a repercussão econômica do evento entre os empregados
expostos ao risco e os beneficiários da atividade laboral, isto é, os empregadores e toda a
sociedade. A imputação de responsabilidade objetiva aos empresários por acidente de trabalho
apenas alteraria o universo das pessoas alcançadas pela socialização: em vez dos contribuintes do
sistema de seguro social, seriam os consumidores daquele específico produto ou serviço a arcarem
com as repercussões econômicas do acidente de trabalho. Deve continuar subjetiva, portanto, a
responsabilidade dos empresários neste caso.
A imputação, em regra, de responsabilidade objetiva aos empresários é plenamente justificável.
Encontram-se eles sempre numa posição econômica que lhes permite socializar, entre os seus
consumidores, os custos da atividade empresarial. Note-se, não é a objetivação da
responsabilidade que induz o empresário a repartir com seus consumidores os custos associados
aos acidentes. Se assim fosse, caberia até mesmo questionar sua pertinência e justiça. Afinal, se
estivesse ao alcance do direito poupar os consumidores das repercussões dos acidentes associados
às atividades empresariais, recomendariam os valores de justiça que o fizesse. Isso, porém, está
fora do alcance da ordem jurídica. Não é a responsabilidade objetiva que gera a socialização dos
custos – ela acontece de qualquer modo, já que o preço dos produtos e serviços pago pelos
consumidores deve sempre ser suficiente para o empresário recuperar investimento e custos, além
de obter lucro. É ínsito ao sistema capitalista de produção, portanto, o mecanismo descrito pela
noção de socialização de custos. A responsabilidade objetiva, na verdade, apenas tem lugar
quando o devedor está em condições de socializar os custos de sua atividade. A lei aproveita-se de
uma situação de fato para, de um lado, facilitar o acesso da vítima à indenização (princípio da
indenidade) e, de outro, realocar os recursos econômicos de forma mais racional.
A responsabilidade dos empresários pelos danos associados à exploração de atividade empresarial é, em
regra, objetiva. Apenas pelos acidentes de trabalho eles respondem por culpa ou dolo.
A responsabilidade objetiva dos empresários é simultaneamente material (por encontrarem-se eles
sempre numa posição econômica que lhes permite socializar os custos da atividade empresarial entre seus
consumidores) e formal (em vista de diversos preceitos, do Código Civil e de outras leis, que mencionam
expressamente a irrelevância da culpa para sua imputação).
A responsabilidade objetiva dos empresários suscita diversas questões, a maioria delas tratada
por outros ramos da tecnologia jurídica (direito comercial, do consumidor, ambiental etc.). Em
sede de direito civil, cabe o exame dos lineamentos gerais da matéria.
4.1. Conceito de empresário
O Código Civil define “empresário” dando à expressão um significado técnico. Ele deve ser
conhecido e sempre respeitado na aplicação das normas jurídicas. O intérprete e o aplicador da lei
devem desconsiderar significados não técnicos das expressões sempre que houver uma definição
legal. Devem tratar o preceito que abriga a definição como parte de todas as normas jurídicas em
que for empregada.
Empresário, nos termos da lei, é a pessoa que “exerce profissionalmente atividade econômica
organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços” (CC, art. 966, caput). Desmembrase, aqui, a definição em três elementos com o objetivo de examiná-la:
a) Atividade econômica e organizada. A atividade explorada pelo empresário ostenta duas
características: é econômica e organizada. A atividade é econômica se tem aptidão para gerar
lucro a quem a explora. Ter aptidão, note-se, não significa alcançar necessariamente o efeito para
o qual se está apto. Quer dizer, a atividade econômica é explorada tendo em vista seu potencial de
lucratividade. Não há garantia nenhuma, porém, de que ela será realmente lucrativa. Há sempre o
risco de insucesso para qualquer atividade econômica, por mais aprimorados e conclusivos que
tenham sido os estudos indicativos de sua viabilidade e potencialidade. Veja que abstraio, por ora,
a questão da finalidade lucrativa. Interessa, aqui, apenas apontar a aptidão para gerar lucros que
torna econômica a atividade. Quem explora atividades estéreis na geração de lucros, assim
consideradas as de proveito meramente moral, intelectual, físico ou social, não se considera
empresário.
A organização da atividade, por sua vez, diz respeito à forma como ela é explorada. Este é o
elemento mais importante da definição de empresário. O exercente de atividade econômica
considera-se empresário, para efeitos técnicos, quando lhe dá um determinado nível de
organização, isto é, quando emprega mão de obra, compra insumos, adquire ou desenvolve
tecnologia e investe capital num determinado volume característico da empresarialidade. A mesma
atividade econômica pode ser ou não desenvolvida de forma organizada, empresarial. Pense no
comércio de algumas peças do vestuário, como camisetas ou bonés. Tanto a loja de departamentos
como o comerciante ambulante podem explorar essa atividade econômica. É certo que a primeira
o faz de modo empresarial, ao contrário do ambulante, no caso de ele contar apenas com seu
próprio trabalho e do de familiares, investir pouco dinheiro e prescindir de conhecimentos
especializados de administração de negócios.
b) Produção ou circulação de bens ou serviços. A atividade do empresário consiste em produzir
ou circular bens ou serviços. A produção de bens corresponde à indústria e construção civil. A
montadora de automóveis, o fabricante de roupas, de remédios, de eletrodomésticos, bem como as
construtoras de prédios de apartamento ou escritórios são exemplos de empresários. A circulação
de bens é a atividade comercial de intermediação na cadeia de escoamento de mercadorias. O
supermercado, a concessionária de automóveis, a loja de departamentos e a farmácia são
empresários. Produção de serviços, a seu turno, significa a prestação de serviços. Desse modo, o
hotel, hospital, estacionamento, instituto de beleza são também empresários. Por fim, a circulação
de serviços liga-se à intermediação na prestação de serviços. A agência de turismo e a de
propaganda são empresários que circulam serviços. Claro que não basta, como visto, dedicar-se à
produção ou circulação de bens ou serviços para ser empresário. Se não houver a organização da
atividade como uma empresa, quem produz ou circula bens ou serviços não é considerado
tecnicamente empresário.
Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a
produção ou circulação de bens ou serviços.
c) Profissionalidade. O requisito da profissionalidade desdobra-se em dois: habitualidade e
intuito lucrativo. Para ser considerado empresário o exercente da atividade econômica deve
habitualmente organizá-la. Quem, precisando ganhar dinheiro rapidamente para atender a certa
necessidade, vende alguns móveis e objetos de arte pode até mesmo fazê-lo com organização
empresarial, mas não será empresário por faltar-lhe o atributo da habitualidade.
Por fim, o intuito lucrativo. A atividade econômica pode ser explorada com ou sem objetivo de
lucro. Ela, por definição, é a atividade apta a gerar lucros, mas quem a explora pode estar
motivado por interesses altruístas, culturais, sociais etc. Considere a associação que mantém um
hospital para tratamento de crianças portadoras de deficiência física. A organização e prestação de
serviços hospitalares é atividade econômica – porque tem a aptidão de gerar lucros. Mas a
associação não os explora com a finalidade lucrativa. As diferenças que eventualmente conquista
entre receitas e despesas aplicam-se na realização dos fins caritativos que a inspiram. Para que o
exercente de atividade econômica organizada seja considerado juridicamente empresário, seu
móvel deve ser o lucro. Não há atividade empresarial sem finalidade lucrativa.
4.2. Atividades econômicas não empresariais
A empresarialidade na produção ou circulação de bens ou serviços – isto é, volume na
contratação de mão de obra, no capital investido, na compra de insumos e no emprego de
tecnologias – é, no campo do direito privado, a condição para a socialização de custos. Por essa
razão, a lei imputa aos empresários responsabilidade objetiva pelos danos relacionados à
atividade que exploram. A produção ou circulação de bens ou serviços só se considera, como visto,
empresa se reúnem também as características da organização e profissionalismo. Quem explora
atividade econômica não organizada empresarialmente – comerciante ambulante, pequeno
feirante, professor particular de língua estrangeira etc. – não é empresário. Também não o é quem
o faz sem profissionalidade – a fundação cultural ao vender bonés para sustentar suas atividades,
a associação de pais e mestres ao organizar a festa junina etc.
A produção ou circulação de bens ou serviços também não é empresarial quando a lei assim o
estabelece de modo particular. Com efeito, há certas atividades que são legalmente definidas como
não empresariais, ainda que presentes todos os requisitos do conceito de empresário. São três as
hipóteses mais relevantes: as atividades rurais, as dos profissionais liberais e as das cooperativas.
Exercem atividade rural os que extraem da natureza produtos úteis ao consumo humano. O
fazendeiro, pescador, extrativista, pecuarista pertencem a esta categoria de profissionais. Para
eles, a lei brasileira reservou uma sistemática sui generis, atenta a duas realidades extremamente
diversas, que são a da grande empresa capitalista do campo (responsável pelos agronegócios, p.
ex.) e a dos pequenos produtores (ligados à agricultura familiar, p. ex.). O exercente de atividade
rural pode optar por ser empresário ou não. Se quiser se submeter às regras próprias a que se
sujeitam os empresários (inclusive a objetivação na responsabilidade civil), ele deve inscrever-se
na Junta Comercial; caso contrário, não será juridicamente considerado empresário (CC, art. 971).
Desse modo, a grande empresa capitalista do campo é explorada por quem atende a essa
formalidade, enquanto o pequeno produtor tende a desenvolver seu negócio sem ela. A questão,
embora se resolva aparentemente por simples pesquisa aos assentamentos do registro de
empresas, esconde uma complexidade. O exercente de atividade rural sem inscrição na Junta
Comercial pode ou não ter responsabilidade objetiva pelos danos por ela causados. Ele não se
submete às regras aplicáveis aos empresários, e sua responsabilidade não é, portanto,
necessariamente objetiva. Depende a resposta à questão da capacidade econômica de socializar
custos. Uma questão de fato, para cuja solução é irrelevante a inexistência da formalidade do
registro.
Em outros termos, o exercente de atividade rural sem inscrição na Junta Comercial não é
empresário e, por isso, não se sujeita à regra da responsabilidade objetiva formal (CC, art. 931).
Mas, se estiver em condições de socializar os custos de sua atividade entre os adquirentes dos
produtos que retira diretamente da natureza, submete-se à regra da responsabilidade objetiva
material (CC, art. 927, parágrafo único, in fine). Assim, a responsabilidade do exercente de
atividade rural não registrado na Junta Comercial é subjetiva, a menos que a vítima demonstre
que ele, em razão da dimensão da atividade explorada, dispõe de instrumentos de socialização de
custos.
Os profissionais liberais são prestadores de serviços, mas submetem-se aos regimes próprios de
sua formação. Mesmo que contem com o auxílio de colaboradores ou auxiliares não se consideram
empresários, por expressa previsão da lei (CC, art. 966, parágrafo único). Médicos, advogados,
engenheiros, arquitetos, psicólogos, veterinários e outros prestadores de serviços especializados,
para cuja execução é legalmente exigida formação superior e sujeição à fiscalização pelos pares,
não são juridicamente considerados exercentes de atividade empresarial. Viu-se, aliás, que sua
responsabilidade é subjetiva (Cap. 22, item 3).
Não são considerados empresários, ainda que a atividade exercida reúna as características das
empresariais: os profissionais liberais (salvo se são elementos de empresa), os exercentes de atividades
rurais (exceto se inscritos na Junta Comercial) e as cooperativas.
A questão dos profissionais liberais, contudo, não é simples como a dos exercentes de
atividades rurais. A lei excepciona da exclusão do conceito de empresário (reenquadrando-o,
portanto, neste) os profissionais liberais que sejam elemento de empresa. Quer dizer, quando a
unidade produtora de serviços profissionais cresce a ponto de ocupar o titular basicamente com as
tarefas de sua organização, afastando-o, pouco ou muito, do cotidiano da profissão liberal,
caracteriza-se a exceção da exceção. Quer dizer, o profissional liberal, neste caso, é empresário.
Desse modo, o médico em seu consultório não é empresário, ainda que contrate auxiliares e
colaboradores. Já o médico dono de um grande hospital, que trabalha muito mais na organização
do estabelecimento do que clinicando, é elemento de empresa e, portanto, empresário. Sua
responsabilidade será, então, objetiva, igual à dos demais empresários.
A exceção da exceção não tem pertinência no caso dos advogados, que, por força da legislação
reguladora da atividade, nunca podem ser considerados empresários. Mesmo o escritório de
advocacia com enorme quantidade de advogados, que adote padrões de organização empresarial
na estruturação e prestação de seus serviços, terá invariavelmente responsabilidade subjetiva.
Em regime jurídico idêntico aos dos profissionais liberais encontram-se artistas e escritores (CC,
art. 966, parágrafo único).
A responsabilidade civil dos profissionais liberais não empresários é subjetiva. Se são elementos de
empresa, passa a ser objetiva. A dos exercentes de atividades rurais não inscritos na Junta e a das
cooperativas é subjetiva, a menos que se lhes possa atribuir a responsabilidade objetiva material, em vista
do porte do negócio.
Finalmente, as cooperativas. Quando a atividade econômica é explorada por sociedade desta
específica categoria, por expressa disposição de lei, não se considera empresarial (CC, art. 982,
parágrafo único). Trata-se, aqui, de mera questão formal. Sempre que para explorar certa
atividade de produção ou circulação de bens ou serviços os agentes se unem como cooperativados,
desveste-se ela do caráter empresarial. Consequentemente, a cooperativa tem, em princípio,
responsabilidade subjetiva. Poderá, contudo, dependendo de seu porte, ser objetivamente
responsabilizada, quando tiver meios de socializar os custos da atividade entre os beneficiários
dela. Responde, então, objetivamente não porque seja empresária (o que decididamente não é),
mas por estarem presentes os requisitos da responsabilidade objetiva material, assentados no art.
927, parágrafo único, in fine, do CC.
4.3. Empresário individual e sociedade empresária
O empresário pode ser uma pessoa física ou jurídica. No primeiro caso, é empresário individual;
no segundo, sociedade empresária.
Atualmente, as atividades econômicas de importância são exploradas por sociedades
empresárias. Raramente a pessoa física se interessa por desenvolvê-las de forma individual. Em
primeiro lugar, porque exigem capital elevado, que apenas a reunião de investidores e
empreendedores em sociedade é capaz de levantar. Em segundo, porque, para limitar a
responsabilidade pelas obrigações relacionadas à atividade econômica, atenuando os efeitos de
eventual insucesso da empresa, a constituição de sociedade empresária é indispensável. Deve-se
atentar, por outro lado, para o fato de que as sociedades empresárias, embora possam assumir
outras formas, adotam praticamente apenas a da limitada ou da anônima. Correspondem estes
tipos societários a mais de 99% das sociedades empresárias registradas nas Juntas Comerciais de
todo o País. Não há interesse nos demais tipos (nome coletivo, comandita simples ou comandita por
ações) porque os objetivos da limitação da responsabilidade e atenuação dos riscos de insucesso
não se alcançam inteiramente por meio deles (Coelho, 1998, 2:22/23).
Interessa ter presente a distinção entre empresário individual e sociedade empresária, no
exame da matéria relativa à responsabilidade civil, para os fins de identificar a pessoa a quem se
imputa responsabilidade objetiva. É sempre o empresário que responde pelos danos advindos da
exploração da atividade empresarial. Quando é ele pessoa jurídica, será a sociedade empresária,
portanto, a responsável, e não os seus sócios. Em razão da autonomia das pessoas jurídicas,
examinada anteriormente (Cap. 8, itens 1, 2 e 4), os sócios da sociedade empresária não são
empresários. Eles não têm, em consequência, responsabilidade objetiva pelos danos derivados da
exploração de atividade empresarial. A vítima do acidente de consumo, por exemplo, pode pleitear
a indenização contra a sociedade empresária que forneceu o produto ou serviço perigoso ou
defeituoso, sem provar-lhe a culpa. Mas nenhum direito tem contra sócio da sociedade
empresária, a menos que prove ter sido o dano causado diretamente por conduta culposa do
demandado.
Em outros termos, a sociedade empresária limitada ou anônima responde objetivamente pelos
danos relacionados à atividade econômica que ela, pessoa jurídica, explora. Os seus sócios ou
acionistas, contudo, não têm responsabilidade objetiva por tais danos. Apenas demonstrando a
eventual culpa de um ou mais deles, cuja conduta tenha concorrido diretamente para o evento
danoso, poderá ser-lhes imputada responsabilidade. Esta é, portanto, subjetiva. A
responsabilização dos sócios da sociedade empresária, aliás, terá especial lugar se a conduta
culposa ensejadora da obrigação de indenizar consistiu na manipulação fraudulenta da autonomia
patrimonial da pessoa jurídica aparentemente responsável; isso porque, neste caso, caberá a
desconsideração da personalidade jurídica, permitindo a imputação da obrigação diretamente ao
sócio que praticou o ato fraudulento ou o abuso de direito (Coelho, 1998, 2:31/56). De qualquer
modo, não existindo culpa do sócio da sociedade empresária pelo dano, ele não poderá ser
responsabilizado.
Empresário pode ser pessoa física ou jurídica. No primeiro caso, denomina-se empresário individual; no
segundo, sociedade empresária. Tanto numa como noutra hipótese, sua responsabilidade pelos danos
relacionados à exploração de atividade econômica é objetiva, independente de culpa.
Os sócios da sociedade empresária não são tecnicamente falando empresários. Eles, portanto, não têm
responsabilidade objetiva e só se obrigam a indenizar os danos decorrentes da atividade da sociedade se
tiverem concorrido, com culpa, para sua ocorrência. Sua responsabilidade, quando houver – inclusive por
força da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária –, é sempre subjetiva.
Para encerrar, preste atenção ao adjetivo que o Código Civil empregou na identificação da
pessoa jurídica exploradora de atividade empresarial: é uma sociedade empresária e não
empresarial. Quer dizer, ela própria é o sujeito empresário, e não os seus integrantes. É a pessoa
jurídica que investe capital, adquire ou desenvolve tecnologia, circula insumos e contrata mão de
obra, e não os seus sócios. Sugeriria consequências jurídicas bem distintas a opção pelo outro
adjetivo; neste caso, seria uma sociedade de empresários.
4.4. Acidente de consumo
O empresário responde pela qualidade dos produtos ou serviços que fornece ao mercado de
consumo. Para entender a extensão da obrigação legal, convém distinguirmos entre
periculosidade, defeituosidade e vício de fornecimento (Coelho, 1994:54/100; 1998, 1:245/286).
O fornecimento é perigoso quando o produto ou serviço não apresenta nenhuma
impropriedade, mas o consumidor sofre dano ao usá-lo em razão do desconhecimento acerca dos
riscos a que fica exposto. A definição da periculosidade, note-se, não decorre das características
inerentes ao produto ou serviço. Nenhum fornecimento é perigoso em si. Ele se torna perigoso em
função das informações que o consumidor tem acerca dos riscos envolvidos com o seu consumo.
Mal informado sobre os danos que pode eventualmente sofrer, usa o produto ou serviço de forma
inapropriada e se lesiona.
Considerem-se, no aclaramento do conceito, dois produtos: a faca e o cinto de segurança. Com a
primeira, pode-se ferir seriamente ou até mesmo matar alguém; a faca, contudo, não é produto
perigoso. O cinto de segurança, por sua vez, é produto feito para a proteção do consumidor, mas
pode ser perigoso. A chave para estas questões encontra-se no conjunto de informações detidas
pelo consumidor médio. A faca não é perigosa, porque todos nós temos total conhecimento dos
riscos a que nos expomos ao manuseá-la. Desde pequenos, somos treinados em casa para tomar
cuidados com os talheres, e a faca participa de nossa vida de tal modo que nenhum consumidor
ignora os riscos a ela associados. De outro lado, o cinto de segurança pode tornar-se um produto
perigoso, caso não seja convenientemente utilizado. Quem viaja com o cinto afivelado no banco de
passageiro totalmente reclinado pode, em caso de choque frontal do veículo, morrer estrangulado.
A pessoa sobrevive ao impacto, mas morre por falta de ar. Aparentemente, ao reclinar o banco
para a viagem o passageiro estaria mais seguro com o cinto. É a deficiência nas informações sobre
o uso adequado do produto que o torna perigoso.
Fornecimento defeituoso, por sua vez, é aquele em que o produto ou serviço apresenta uma
impropriedade, e é ela que provoca o dano ao consumidor. Ao contrário do perigoso, o consumidor
utiliza o produto ou serviço tal como deveria, e encontra-se normalmente bem informado acerca
dos riscos envolvidos. O acidente de consumo acontece porque há alguma coisa de errado no
fornecimento. O remédio em cujo processo de fabricação adicionou-se dose equivocada do
elemento ativo, a garrafa de refrigerante com concentração de gás superior à tolerável pelo vidro,
a queda do avião motivada por falha humana (erro do piloto) e o consumo de comida estragada no
restaurante são exemplos de fornecimentos defeituosos. A impropriedade no produto ou serviço é
a causa do dano experimentado pelo consumidor, por isso, se não houvesse o defeito, o acidente
não teria acontecido.
Finalmente, o fornecimento é viciado quando a impropriedade no produto ou serviço existe,
mas é inócua, no sentido de não causar danos de monta aos consumidores. Se o eletrodoméstico
simplesmente não funciona, o pacote não contém a quantidade indicada do produto, a agência de
turismo esqueceu-se de comunicar a reserva ao hotel, o banco não informou adequadamente o
correntista sobre as taxas que cobra por seus serviços, ou, em casos semelhantes, o consumidor
sofre dissabores e prejuízos de pouca importância, mas a impropriedade é sanada com o conserto
ou troca do produto, reexecução do serviço, desfazimento do contrato ou indenização.
A mesma impropriedade pode caracterizar fornecimento defeituoso ou viciado – depende se
causa ou não danos de monta ao consumidor (cf. Lisboa, 2003:512/514). Se o problema no sistema
de freios manifesta-se quando o automóvel trafega em baixa velocidade, não há danos relevantes
para o consumidor. Trata-se de fornecimento viciado, que se resolverá com o reparo ou
substituição do bem, ou rescisão do contrato de consumo. Já, se aquele problema aparece quando
o automóvel viajava em alta velocidade, e disso decorre sério acidente com danos materiais e
pessoais, então a hipótese é de fornecimento defeituoso.
O fornecimento de produtos ou serviços sem qualidade pode ser de três categorias: perigoso, defeituoso
ou viciado.
Perigoso é o fornecimento em que o produto ou serviço não apresenta nenhuma impropriedade. Os
danos são devidos à má utilização pelo consumidor deficientemente informado sobre os riscos.
Defeituoso, aquele em que o produto ou serviço tem uma impropriedade e ela é a causa do dano.
Viciado, por fim, é o fornecimento em que a impropriedade do produto ou serviço não gera danos de
monta ao consumidor.
Verifica-se acidente de consumo nas hipóteses de fornecimento perigoso e defeituoso.
Sintetizo: no fornecimento perigoso, não há nenhuma impropriedade no produto ou serviço.
Eles são exatamente o que deveriam ser. O dano ao consumidor não decorre, então, de defeito,
mas da insuficiência de sua informação acerca dos riscos envolvidos no ato de consumo. Já nos
fornecimentos defeituoso e viciado, há impropriedade no produto ou serviço. Eles não são o que
deveriam ser. Diferem-se pela relevância dos danos decorrentes. Se a impropriedade causa danos
de monta ao consumidor, é defeito; caso contrário, limitando-se a alguns desconfortos ou a valores
que o consumidor pode absorver, é vício.
O acidente de consumo pode ter por causa fornecimento perigoso ou defeituoso. Nas duas
hipóteses, a responsabilidade do empresário é objetiva, mas há certas particularidades a
examinar.
4.4.1. Fornecimento perigoso
Viu-se que o fornecimento é perigoso não em função das características do produto ou serviço,
mas pelo grau de informação dos consumidores acerca dos riscos envolvidos com o ato de
consumo. A responsabilidade do fornecedor pelo acidente causado por fornecimento perigoso
decorre, neste contexto, da ausência de informações suficientes e adequadas aos consumidores
acerca dos riscos à saúde ou integridade física e patrimônio deles. Estabelece a lei que “o
fornecedor de produtos ou serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança
deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito de sua nocividade ou
periculosidade”; dispõe, também, que “a oferta e apresentação de produtos ou serviços devem
assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre (...) os
riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores” (CDC, arts. 9.º e 31). Se o
empresário vende ao mercado produtos ou presta serviços sem fazê-los acompanhar de
informações que atendam aos ditames da lei, ele responde por todos os acidentes de consumo
decorrentes.
Em outros termos, o consumidor deve ser capacitado a manusear o produto ou gozar o serviço
sem riscos, a partir das informações a ele prestadas pelo empresário. Se determinado produto ou
serviço simplesmente não pode ser consumido sem riscos, mesmo após a assimilação das
informações de segurança pelos consumidores, então se trata da hipótese referida em lei como
“alto grau de nocividade ou periculosidade”. Neste caso, o fornecimento é proibido (CDC, art. 10).
Se restar demonstrado que a simples transmissão de informações em embalagens ou no manual
seria insuficiente para preservar os consumidores dos riscos associados ao produto ou serviço –
para a completa segurança de quem os manuseia seria indispensável, por exemplo, formação
superior ou treinamento técnico específico -, o empresário não poderia tê-los fornecido ao
mercado de consumo, por apresentarem alto grau de nocividade ou periculosidade. Se transgrediu
a proibição e os forneceu, será responsável pelo acidente de consumo, mesmo que tenha fornecido
as informações da melhor forma possível.
Se o empresário fornece informações adequadas e suficientes acerca dos riscos do produto ou serviço
que oferece ao mercado, e não há nestes nenhuma impropriedade, eventual acidente de consumo só pode
decorrer de culpa exclusiva da vítima. Se as informações não eram adequadas e suficientes, ou se o
manuseio sem riscos do produto ou serviço não era possível sem formação ou treinamentos específicos, o
empresário responde pelo acidente. Neste caso, não tem relevância jurídica eventual má utilização do
produto ou serviço pelo consumidor.
Em relação ao fornecimento que não apresenta alto grau de nocividade ou periculosidade, a
transmissão de informações de segurança aos consumidores no próprio produto, sua embalagem
ou manual, ou pelo funcionário encarregado da execução do serviço, exonera o empresário de
responsabilidade se atendidos os requisitos da lei (ostensividade, correção, clareza, precisão etc.).
Desse modo, se a embalagem do brinquedo trazia a advertência de ser “inapropriado para
menores de 3 anos, por conter peças pequenas que podem ser engolidas”, o empresário atendeu à
exigência legal de transmitir aos consumidores informação suficiente sobre os riscos associados ao
produto. Caso a criança morra sufocada por ter-se entalado em sua garganta uma peça do
brinquedo, não será imputável ao empresário qualquer responsabilidade pelo acidente de
consumo.
O fornecimento perigoso caracteriza-se pela deficiência das informações sobre os riscos. Neste
caso, considera-se que o consumidor mal informado pelo empresário não é o responsável pelo
evento danoso. Cabe, então, ao empresário responder objetivamente pelos danos sofridos pelo
consumidor (RT, 794/404). Sendo, contudo, suficientes e adequadas as informações que o
empresário presta acerca dos riscos de seu produto ou serviço, a culpa pelo evento danoso é
exclusiva do consumidor.
4.4.2. Fornecimento defeituoso
A falibilidade é inerente a qualquer ação humana. Tome-se uma atividade econômica qualquer.
É sempre o resultado de um conjunto articulado de ações de homens e mulheres: os trabalhadores
e administradores da empresa. Por mais que se controle a qualidade dessas ações, alguns produtos
ou serviços serão oferecidos no mercado com defeitos. Até mesmo porque o controle de qualidade
é também uma ação humana, e, portanto, falível. Há inafastavelmente uma margem estatística de
defeituosidade em todos os fornecimentos. Ela dará ensejo a inevitáveis acidentes de consumo. Os
danos causados por fornecimento defeituoso não decorrem, portanto, de culpa do empresário, mas
da insuperável falibilidade do ser humano (cf. Leães, 1987:125/165).
É claro que, sendo o empresário o culpado pelo defeito – no caso de negligenciar no constante
aprimoramento do processo de produção ou nos controles de qualidade, por exemplo –, sempre foi
obrigado a indenizar o acidente. Os elementos da responsabilidade subjetiva estão todos presentes
na hipótese: a culpa do empresário, o dano sofrido pela vítima do acidente de consumo e a relação
de causalidade entre uma e outro. Por isso, antes da afirmação da responsabilidade objetiva do
empresário pelos acidentes de consumo (que, no Brasil, se verifica com a vigência do CDC, em
1991), os inevitáveis, assim entendidos aqueles para os quais não concorrera qualquer conduta
culposa do empresário, eram tratados como fortuito. Em decorrência, suportava a vítima
diretamente os seus prejuízos.
Com a objetivação da responsabilidade do empresário, a questão da culpa na colocação de
produtos defeituosos no mercado é desqualificada. Desvincula-se a responsabilidade pelos danos
do acidente de consumo de qualquer valoração da conduta do empresário (Marins, 1993:94/97).
Responde o empresário, tenha ou não agido negligentemente no trato da questão. A vítima do
acidente de consumo – que pode ser o consumidor ou qualquer outra pessoa (CDC, art. 17) – deve
provar apenas que sofreu danos e que eles foram causados por fornecimento defeituoso (Lopes,
1992:63/66).
A responsabilidade dos empresários pelos acidentes derivados de defeito nos seus produtos ou serviços é
objetiva, porque não há meios humanamente possíveis de evitá-los de forma absoluta.
O produto ou serviço é defeituoso quando não oferece a “segurança que dele legitimamente se
espera” (CDC, art. 12, § 1.º). A avaliação da deficiência de segurança deve ser feita não em função
das expectativas nutridas pelos consumidores, mas pelas condições objetivas do próprio produto,
considerando-se o desenvolvimento da ciência e tecnologia, o perfil do público-alvo a ser atendido
e até mesmo a conjuntura econômica (cf. Alpa, 1989:30/36). Não pode ser considerado defeituoso
um automóvel popular, por exemplo, por não ter airbag. O custo deste acessório de segurança
ainda é alto e inviabiliza sua colocação em produtos destinados a atender as necessidades de
consumo de camadas da população de menor poder aquisitivo.
4.5. Empresários do ramo de transporte
Na noite chuvosa de 6 de maio de 1937, durante as manobras de pouso no aeródromo de
Lakehurst, próximo a Nova York, concluindo a viagem iniciada em Frankfurt, o dirigível
Hindenburg incendiou-se. Em segundos, o fogo consumiu por completo a imensa fuselagem, que
pareceu evaporar. Filmado, foi talvez o primeiro acidente de grandes proporções transformado
em espetáculo. Nos noticiários que era costume exibir no início das sessões de cinema, foi visto por
milhares de pessoas nas cidades mais populosas. Mais de sessenta anos depois, na manhã
ensolarada de 25 de julho de 2000, logo após decolar do aeroporto Charles de Gaulle, nos arredores
de Paris, um supersônico concorde da Air France espatifou-se no solo. O estouro de um dos pneus
teria causado choque interno no tanque de combustíveis, ocasionando o incêndio do avião.
Registrado por diversas câmaras domésticas, o espetacular acidente foi visto pelo mundo todo no
noticiário televisivo do mesmo dia.
Os dois acidentes foram marcantes. O de Nova York assinalou o fim da era dos dirigíveis de
passageiros, e o de Paris, o da única experiência de aviões supersônicos em operações comerciais.
Erra, no entanto, quem pensa que a suspensão desses meios de transporte deu-se em razão da
insegurança. Embora o espetáculo dos acidentes sugira o contrário, as estatísticas não são
impressionantes. Entre 1928 e 1937, somente os dois maiores dirigíveis do mundo (o Graff
Zeppelin e o Hindenburg) realizaram 181 travessias oceânicas e transportaram mais de vinte mil
pessoas, sãs e salvas. No acidente de Nova York, dos 97 passageiros transportados, 61
sobreviveram. Os concordes da Air France e da British Airways, por sua vez, transportaram a
média anual de cinquenta mil passageiros em voos regulares entre a Europa e os Estados Unidos.
Operaram de 1976 a 2003, e no único acidente com vítimas de sua história faleceram 113 pessoas.
As razões para a desativação desses meios de transporte foram comerciais: dirigíveis e
supersônicos representaram, cada um a seu tempo, meios de transporte charmosos porém
economicamente inviáveis.
Um dos primeiros temas a revelar a insuficiência do princípio nenhuma responsabilidade sem
culpa no tratamento dos acidentes da era contemporânea foi o dos danos derivados de um tipo de
transporte, o ferroviário. A partir de sua larga difusão em várias partes do mundo, no fim do
século XIX, em relativamente pouco tempo, surgiram legislações disciplinando a responsabilidade
das estradas de ferro de modo particular. Valendo-se de uma das formulações de transição,
estabeleceu a lei a presunção absoluta de culpa delas pelos acidentes associados ao transporte
ferroviário. O Brasil acompanhou a tendência editando, em 1912, o Decreto n. 2.681. Nele se
estabelece a responsabilidade objetiva (viu-se que a presunção absoluta de culpa equivale à
desqualificação do pressuposto subjetivo) das estradas de ferro por todos os acidentes ligados à
atividade empresarial que exploram. Desse modo, elas respondem pela perda total ou parcial,
furto ou avaria das mercadorias transportadas (art. 1.º), pelo atraso no transporte (art. 7.º, 2.ª
alínea), por danos pessoais (art. 17) e materiais (art. 23) em caso de desastre, ainda que causado
por culpa de terceiros (art. 18) e também pelos prejuízos que provocarem aos proprietários
marginais (art. 26).
A responsabilidade objetiva das estradas de ferro foi estendida, pela jurisprudência, aos
empresários de outros ramos de transporte. De início, o Decreto n. 2.681 foi aplicado
analogicamente aos danos no transporte urbano por bondes elétricos; em seguida, associados ao
transporte por ônibus (RT, 792/272). Em 1952, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que a
responsabilidade do transportador, independente do veículo utilizado, é sempre objetiva
(Rodrigues, 2002:99/101).
A responsabilidade objetiva das estradas de ferro, estabelecida no direito brasileiro em 1912, foi
estendida pela jurisprudência para todos os transportadores em meados do século passado. Hoje, a matéria é
disciplinada pelo CDC e pelo CC.
Avançado para sua época, o Decreto n. 2.681/12 adotou princípios de responsabilização que, no
direito brasileiro de hoje, são aplicáveis a todos os empresários, e não somente aos de transporte:
quanto aos prejuízos sofridos pelos consumidores, desde 1991, com a entrada em vigor do CDC; em
relação aos infligidos a não consumidores, desde 2003, com a vigência do CC. Atualmente,
portanto, o transportador responde objetivamente por indenizar os danos causados ao remetente
de mercadorias e ao passageiro, nos termos do art. 14 do CDC, e aos proprietários marginais e
qualquer outro prejudicado, em razão dos arts. 927, parágrafo único, in fine, e 931 do CC.
4.6. Empresários do ramo de albergaria
A responsabilização objetiva dos empresários do ramo de hospedagem encontra-se nos
dispositivos do Código Civil específicos da responsabilidade por atos de outrem (CC, arts. 932, IV, e
933). Deve-se isso apenas ao descuido na sistematização da matéria. Hotéis, hospedarias, albergues
e quaisquer outros estabelecimentos do ramo de hospedagem respondem pelos danos sofridos por
seus consumidores, tal como qualquer outro empresário. Respondem, inclusive quando
provenientes de conduta de outros hóspedes. Se alguém hospedado num hotel é furtado pelo
ocupante do quarto contíguo, terá direito de reclamar a indenização contra o fornecedor dos
serviços de hospedagem.
Os empresários do ramo de hotelaria, bem assim os de estabelecimentos de educação ou saúde que
prestam serviços em regime de internação, respondem objetivamente pelos danos provenientes de atos dos
seus consumidores neles albergados.
Idêntica regra deve ser observada na responsabilização de empresários que, mesmo não
operando diretamente no ramo de hospedagem, albergam seus consumidores. É o caso dos
estabelecimentos de educação que prestam serviços em regime de internato. Se, num colégio
interno, dois estudantes se envolvem numa briga, pelos danos que mutuamente um infligir ao
outro responde o estabelecimento educacional. Se os educandos causam danos a terceiros,
também responde o educandário. Este é o caso igualmente dos hospitais e hospícios. Quem é neles
internado para tratamento tem direito à indenização, caso venha a sofrer danos pela ação de outro
paciente. Assim como deve ser indenizada qualquer pessoa prejudicada por atos dos doentes
internados nessas instituições. Se o louco que fugiu do hospício agride o pedestre, o
estabelecimento de saúde responde objetivamente pelos danos.
5. Responsabilidade do Estado
A Constituição Imperial (1824-1891) prescrevia: “a Pessoa do Imperador é inviolável e Sagrada:
Elle não está sujeito a responsabilidade alguma” (art. 99). Esse dispositivo, que parece aos nossos
olhos uma anacrônica curiosidade histórica, na verdade, expressava secular princípio jurídico
nascido nas monarquias absolutistas. Na origem, o princípio da infalibilidade real do direito inglês
(the king can do no wrong) preservava não só a pessoa do rei, mas também o Estado de
responsabilidade. Quando se expressou na Constituição Imperial brasileira, porém, já tinha
sentido restrito e punha a salvo de qualquer responsabilização civil ou penal apenas o monarca e
membros da família real. Pelo dano causado por culpa de seus funcionários ou servidores sempre
respondeu o Estado no Brasil (Mello, 1981:159).
Nosso primeiro Código Civil continha dispositivo imputando às pessoas jurídicas de direito
público responsabilidade subjetiva. Para obter indenização pelos prejuízos sofridos em razão da
atuação estatal, cabiam ao demandante as mesmas provas exigidas nas hipóteses gerais de
responsabilização civil, incluindo a do pressuposto subjetivo. Se o prejudicado não provasse a
conduta culposa do agente público, não tinha direito ao ressarcimento. A responsabilidade
subjetiva do Estado foi prevista também nas Cartas de 1934 e 1937.
A Constituição de 1946 mudou a regra. A responsabilidade civil do Estado passou a ser objetiva
e tem sido desta espécie desde então. A transição de um para outro regime, contudo, não foi
imediata. Esbarrou na distinção que doutrina e jurisprudência faziam entre atos de império e de
gestão, procurando circunscrever a estes últimos a responsabilidade do Estado (Meirelles,
1964:616). Na ordem jurídica vigente, a objetivação é afirmada no plano constitucional (CF, art. 37,
§ 6.º: “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços
públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros,
assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”) e legal (CC, art.
43: “as pessoas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes
que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores
do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo”).
A objetivação da responsabilidade do Estado viabiliza a socialização dos custos da atividade
estatal. Ela se destina, necessariamente, à realização do interesse público e deve ser suportada por
toda a sociedade. Como os custos da atividade estatal são pagos com recursos provenientes,
mediata ou imediatamente, dos tributos recolhidos dos contribuintes, a indenização dos danos
causados pelos agentes do Estado é, em última análise, paga pela sociedade. Não é relevante a
questão da licitude ou ilicitude do ato causador do dano; a indenização será devida em qualquer
hipótese pelo Estado. Note-se que, se houver ato ilícito (dolo ou culpa) por parte de seu agente, terá
o Estado direito de regresso contra ele. Paga, então, ao prejudicado e recupera com o agente
culpado o valor da indenização. Sempre que eficaz o exercício do direito de regresso, não se
verifica a socialização dos custos da atividade estatal.
A responsabilidade objetiva do Estado imputa-se às pessoas jurídicas de direito público (União,
Estados-membros, Distrito Federal, Municípios e autarquias como INSS, INPI, OAB, CRM etc.) e às
de direito privado que prestam serviços públicos (empresas de transporte aéreo, concessionárias
de rodovias ou de alguns serviços de telecomunicações etc.).
A responsabilidade do Estado é objetiva em qualquer hipótese, independentemente da
natureza do ato que deu ensejo ao prejuízo. Para Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, contudo, ela
tem lugar apenas se os danos decorrem de atos comissivos. Pelas omissões, a responsabilidade da
pessoa jurídica de direito público seria ainda subjetiva (1974:487). No mesmo sentido é o
entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello (1980:822/823; 1981:149). Essa distinção, note-se,
não tem sido aceita pelos tribunais, que responsabilizam o Estado independentemente de culpa do
agente tanto no caso de ação como de omissão danosa na prestação do serviço público (Gonçalves,
2003:290). E ela, realmente, não tem sentido. A rigor, como já assentado, ação e omissão são
apenas modos diferentes de descrever a mesma conduta. Se o motorista do carro oficial não detém
o veículo a tempo de evitar o choque, sua conduta pode ser descrita como ato omissivo (deixou
negligentemente de frear) ou comissivo (continuou acelerando imprudentemente). Não há, desse
modo, fundamento na proposição tecnológica referida.
Para que o Estado se responsabilize objetivamente pelo dano, não se exige que o causador seja
funcionário público efetivo ou comissionado. O preceito normativo menciona a responsabilidade
das pessoas jurídicas de direito público pelos danos causados por seus agentes, conceito amplo que
alcança toda e qualquer pessoa a serviço do Estado. Por outro lado, se o dano é provocado por
quem não cumpre essa condição, o Estado não é responsabilizável. Se integrantes de movimentos
ecológicos radicais destroem a plantação de produtos transgênicos, não haverá responsabilidade
civil do Estado porque os causadores do dano não são seus agentes. A responsabilidade objetiva do
Poder Público não equivale a um seguro social de indenidade (Meirelles, 1964:615/616). Para que o
Estado seja responsabilizável por atos causados por quem não é seu agente, torna-se
imprescindível lei específica. É o caso, por exemplo, dos danos advindos de atentados terroristas
contra aeronaves de matrícula brasileira operadas por empresas nacionais de transporte aéreo
público. Por eles responde a União, até o limite de um bilhão de dólares, por força do
expressamente estabelecido pela Lei n. 10.744/03. Sua origem remota é a Medida Provisória n. 2
(posteriormente convertida na Lei n. 10.309/01), editada alguns dias após os atentados às torres
gêmeas do World Trade Center em Nova York, em 11 de setembro de 2001. Ao estabelecer a
responsabilidade do Estado por atos de terceiros que não são seus agentes, a lei muda o universo
de pessoas que arcarão com as repercussões dos danos. Em vista da lei mencionada, se avião
brasileiro for derrubado por terroristas, caberá à sociedade brasileira como um todo – e não aos
consumidores dos serviços de transporte aéreo da empresa atingida no atentado – arcar, em
última instância, com os danos.
A responsabilidade do Estado pelos danos causados por atos ou omissões de seus agentes, nesta
qualidade, é objetiva. Desse modo, toda a sociedade arca com o custo da realização do interesse público.
Para encerrar, algumas observações sobre a responsabilização do Estado por atos
jurisdicionais. O juiz é, sem dúvida, agente público. E pode errar. Não existem, portanto, motivos
para afastar-se a responsabilidade objetiva do Estado por erro dos membros do Poder Judiciário,
como pensavam no passado os que temiam pela autonomia do magistrado (cf. Gonçalves,
2002:206). A condenação de inocente implica relevantes danos ao réu; não reconhecer a eficácia de
título executivo prejudica o credor, assim como reconhecê-la quando não há traz danos ao
devedor; imputar responsabilidade objetiva a quem responde por culpa, ou vice-versa, acarreta
danos ao demandante ou ao demandado, conforme o caso; obrigar sócio por dívida da sociedade
em hipótese não autorizada por lei prejudica-o, assim como resta prejudicado o credor na hipótese
inversa se o Judiciário não imputar ao sócio a obrigação social. Nesses casos todos, não há razões
morais, lógicas, econômicas ou jurídicas para afastar-se a responsabilidade objetiva do Estado. A
Constituição, aliás, prevê sua responsabilidade por indevida condenação ou excesso no
cumprimento da pena: “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que
ficar preso além do tempo fixado na sentença” (CF, art. 5.º, LXXV).
Note-se que a jurisprudência não hesita em responsabilizar o Estado por atos judiciais não
jurisdicionais – isto é, os que o juiz pratica quando não está dizendo o direito: administração de
pessoal lotado no cartório judicial, expedição de alvará em inventários, aprovação de honorários
periciais, levantamento de dinheiro depositado em juízo etc. –, se evidente dolo ou fraude do
magistrado. Há julgados condenando o Estado a indenizar, por exemplo, a apropriação pelo juiz de
dinheiro do espólio, por meio da expedição de alvará ilegal. Mas a jurisprudência parece resistir
na imputação de responsabilidade à pessoa jurídica de direito público por erro em ato
jurisdicional, mesmo em casos de rescisão de sentença ou acórdão (Araújo, 1981:144/179). A
resistência, aqui, não deriva unicamente da dificuldade de distinguir erro de interpretação
divergente no enfrentamento de matérias jurídicas – ventilada no exame da responsabilidade civil
dos advogados (Cap. 22, item 3.3) –, mas também do temor de afrontar a autonomia do juiz. As
dificuldades, porém, devem ser enfrentadas e o temor dissipado, quando não houver fundados
motivos para ele. A objetivação da responsabilidade, lembre-se, implica a abstração de qualquer
juízo de valor sobre a conduta ensejadora do dano. Trata-se apenas de distribuir riscos, alocando
os recursos econômicos de forma racional. Erros nos atos jurisdicionais acontecem, porque os
juízes são humanos e falíveis. A responsabilidade objetiva permite que as repercussões
econômicas desses erros sejam distribuídas entre os beneficiários em geral da atuação do Poder
Judiciário (identificados na figura dos contribuintes) e não apenas pelos jurisdicionados vitimados.
6. Responsabilidade puramente formal
A responsabilidade objetiva puramente formal é a prevista num dispositivo específico de lei,
mas não referente a devedor em condições de socializar os custos da atividade geradora do dano.
Sua fundamentação não se encontra na racional alocação dos recursos, mas no privilegiamento do
interesse da vítima de ser indenizada. Por vezes, quando os interesses do causador do dano
também são merecedores de tutela especial pelo direito, como é o caso dos incapazes, a imputação
de responsabilidade objetiva puramente formal procura temperá-los com a indenidade do
prejudicado.
A responsabilidade objetiva puramente formal alcança: a) os pais pelos atos dos filhos menores
(subitem 6.1.1); b) tutores e curadores pelos atos dos tutelados e curatelados (subitem 6.1.1); c)
empregadores pelos atos dos empregados (subitem 6.1.2); d) o habitante de prédio ou parte dele
pelos danos causados por queda ou arremesso de coisa (subitem 6.2.a); e) os que agem para
remover perigo iminente, se o prejudicado não foi o culpado (subitem 6.2.b); e f) o dono ou
detentor do animal, pelos danos que este causar (subitem 6.2.c).
Não são hipóteses de responsabilidade puramente formal as albergadas nos incisos IV e V do
art. 932 do CC, que se referem respectivamente aos “donos de hotéis, hospedarias, casas ou
estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus
hóspedes, moradores e educandos” e “os que gratuitamente houverem participado nos produtos
do crime, até a concorrente quantia”. Os primeiros porque são empresários e, como tais,
submetem-se também à responsabilização objetiva material (item 4.6). Os últimos porque sua
obrigação de restituir funda-se na repressão ao enriquecimento sem causa e não decorre
propriamente de responsabilidade civil (Dias, 1954, 2:202).
6.1. Responsabilidade por ato de outrem
Em princípio, cada sujeito de direito responde pelas consequências de seus próprios atos.
Quando a sociedade empresária é obrigada a indenizar dano ambiental causado por seu
empregado no desempenho das funções laborais, ela, na verdade, está sendo responsabilizada por
ato próprio. Sendo pessoa jurídica, age sempre por intermédio de pessoa ou pessoas físicas, ou
seja, pelos representantes legais, empregados e administradores que trabalham na sua
organização empresarial. Há, contudo, certas situações em que a lei responsabiliza um sujeito de
direito por ato de outrem. É chamada de complexa a responsabilidade civil referente a dano ou
acidente causado por ato de terceiro. Para facilitar a exposição da matéria, chamo o sujeito de
direito a quem é imputada a responsabilidade por ato alheio de responsável, e aquele cuja conduta
deu causa ao dano de causador.
A responsabilidade complexa é objetiva, no sentido de que independe de culpa do sujeito
passivo (CC, art. 933). O prejudicado deve provar a culpa do causador, mas não a do responsável.
Se o menor de 18 anos, ao dirigir o automóvel do pai, sob a autoridade deste e na sua companhia,
causou acidente de trânsito, o prejudicado deve demandar a indenização contra o genitor. Para
tanto, tem o ônus de provar a culpa do filho (causador) pelo acidente de trânsito, mas não precisa
provar a do pai (responsável). Se não houve culpa do filho pelo dano que sofreu, a vítima não terá
direito ao crédito pela indenização em face do pai. Somente a responsabilidade civil deste último é
objetiva.
Note-se que, em termos estritos, pode ser questionável a possibilidade de qualificar a conduta
do incapaz como culposa. A incapacidade conduz à inimputabilidade: não podem ser ilícitos os
atos dos incapazes. O argumento, contudo, não deve impressionar. Qualquer conduta pode ser
examinada com abstração de seu agente e reputada culposa ou não em função da lesão a direitos
alheios. Se criança de 4 anos aciona o gatilho de arma de fogo e mata um adulto, é possível
abstrair-se sua inimputabilidade e vislumbrar a ação como imprudência (culpa simples) caso
tivesse sido praticada por agente capaz.
Em consequência da objetivação da responsabilidade complexa, perdem importância as
discussões que permeavam a tecnologia civilista do passado sobre a culpa in vigilando e in eligendo
– aquela diz respeito à falha dos pais no cumprimento de seus deveres de bem educar e fiscalizar
os filhos menores ou do dono do animal no de guardá-lo adequadamente, enquanto esta liga-se à
má escolha dos empregados e prepostos. Com a entrada em vigor do Código Reale, essas categorias
só se operacionalizam se não tiverem sido preenchidas todas as condições legais da imputação
objetiva, mas houver fundamento para obrigar o responsável a indenizar os danos sob o regime da
responsabilidade subjetiva.
Em casos especiais, a lei atribui a um sujeito de direito (responsável) o dever de indenizar os danos
devidos à ação culposa de outro (causador). Chama-se, nestes casos, a responsabilidade de complexa.
No estudo da imputação a um sujeito de direito da obrigação de indenizar por danos causados
por outrem, convém distinguir, de um lado, a responsabilidade por ato de terceiro incapaz, como
os menores e interditos (subitem 6.1.1), e, de outro, por ato de terceiro capaz, que são os
empregados domésticos, serviçais e prepostos (subitem 6.1.2).
6.1.1. Ato de incapaz
São três as hipóteses de responsabilidade complexa por ato de terceiro incapaz: a dos pais pelos
filhos menores, a do tutor pelos pupilos e a do curador pelos curatelados. São postos em tutela os
menores quando falecidos ou julgados ausentes os pais, ou se decaídos do poder familiar. Nestes
casos, nomeia-se tutor, ao qual compete dirigir a educação do menor, defendê-lo e prestar-lhe
alimentos, cumprindo os deveres que normalmente são dos pais. A seu turno, estão sujeitos à
curatela os incapazes interditos (deficientes mentais, viciados em tóxicos etc.). O curador os
representa ou assiste, segundo o grau de incapacidade do interdito. As condições para a
constituição da obrigação de indenizar são iguais nas três situações: o causador deve estar sob a
autoridade do responsável e na companhia dele (CC, art. 932, I e II).
Essa última condição não é difícil de caracterizar: se o responsável não estiver fisicamente
próximo ao causador no momento em que a conduta culposa deste desencadeia o evento danoso,
não se pode considerar que estejam um na companhia do outro. A pressuposição é a de que os
pais, tutor ou curador têm o dever de evitar a ação danosa do filho, tutelado ou curatelado,
detendo-o com eficiência e prontidão. A proximidade física do responsável e do causador é, assim,
essencial para demonstrar que este se encontrava na companhia daquele. Dispensar a
proximidade física do responsável por ato de incapaz, na constituição de sua obrigação de
indenizar, significa ignorar condição expressa estabelecida pela lei para a responsabilidade
objetiva dele; significa ignorar, em suma, a lei. Não há, assim, responsabilidade complexa por ato
de incapaz se o responsável não estava presente no local do evento danoso. No caso de
responsabilidade dos pais pelos atos dos filhos menores, basta a companhia de um só deles (o pai
ou a mãe) para cumprir-se a condição legal.
Por sua vez, a condição da autoridade na relação entre responsável e causador envolve maior
complexidade. Estar sob a autoridade do responsável é uma situação especial, em que não se
encontram todos os causadores incapazes. Não tem, por exemplo, na relação de filiação, o mesmo
significado de poder familiar. Como todos os filhos menores estão sempre sob o poder familiar (CC,
art. 1.630), disso decorre que apenas em situações especiais eles se encontram sob a autoridade
dos pais. A lei não tem expressões inúteis, e o legislador ter-se-ia valido do termo técnico “poder
familiar” se quisesse a ele se referir. Pois bem, se estar sob a autoridade dos pais é mais restrito
que submeter-se ao poder familiar, é necessário divisarem-se as situações em que isso se verifica.
Há autoridade paterna e materna quando as ordens do pai e da mãe são normalmente acatadas
e respeitadas pelos filhos. Atualmente, os jovens são estimulados pela educação e pela mídia a
cultivar opiniões próprias, a ter atitudes independentes. Este aparentemente salutar processo de
autoafirmação é, porém, acompanhado da erosão da autoridade dos pais, principalmente na
adolescência. Cada vez mais, é difícil aos pais exercer sua autoridade. Por isso, se restar
demonstrado pelo demandado que, embora estivesse em sua companhia, o causador não mais se
submetia à autoridade dele, não se preenche uma das condições legais da responsabilização
objetiva.
Os pais respondem objetivamente pelos atos dos filhos menores que estiverem em sua companhia e sob
sua autoridade. Nas mesmas condições, respondem os tutores e curadores pelos atos dos respectivos pupilos
e curatelados.
Em suma, os pais, tutores e curadores respondem por atos dos filhos, pupilos e curatelados se
estavam presentes ao evento danoso (requisito legal da companhia) e se os causadores não tinham
o hábito de desobedecer-lhes as ordens (requisito legal da autoridade). Apenas quando presentes
essas duas condições, é possível cogitar de imputação ao responsável da obrigação de indenizar.
Veja que elas não reintroduzem o pressuposto subjetivo na imputação da responsabilidade civil.
Continua irrelevante se o responsável colaborou ou não culposamente para o dano, se
negligenciou especificamente no momento em que deveria ter detido o causador.
Quando não estiverem presentes esses requisitos, os pais, tutores e curadores não têm a
obrigação de indenizar os atos dos filhos, pupilos e curatelados. Nesta situação, a vítima não ficará
ao desamparo, porque preserva o direito de ser indenizada pelo incapaz causador do dano (CC,
art. 928, primeira parte). Igual direito terá a vítima caso os responsáveis não disponham de meios
suficientes para o pagamento da indenização (CC, art. 928, segunda parte). Nessas hipóteses,
contudo, além de reger-se a obrigação pelo regime da responsabilidade subjetiva, o valor da
indenização será apurado de forma equitativa e nunca poderá privar do necessário o incapaz ou
seus dependentes (CC, art. 928, parágrafo único).
Para encerrar, cabe ligeira observação sobre a responsabilidade no caso de acidente causado
por pessoa desprovida de discernimento. Houve tempo em que se equiparavam ao caso fortuito os
danos derivados de conduta de amental, por não ter o agente a inteira compreensão das
consequências de seus atos. A agressão de um louco era vista, no enquadramento jurídico do fato,
como algo semelhante à do ataque de animal selvagem sem dono. O princípio da indenidade e a
imputação de responsabilidade objetiva aos curadores, hoje, fornecem a base para a indenização
da vítima pelos danos causados por amental (cf. Gonçalves, 2003:391/396).
6.1.2. Ato de capaz
Responde o empregador objetivamente pelos danos causados por seu empregado, no exercício
do trabalho ou em razão dele (CC, arts. 932, III, e 933). A hipótese diz respeito, basicamente, ao
empregado doméstico. É claro que pelos danos causados por empregado de empresa responde
também o empregador objetivamente, mas este fato está englobado nos que geram
responsabilidade para os empresários, matéria já examinada (item 4).
Desse modo, se o motorista particular causa acidente de trânsito, o prejudicado tem direito à
indenização a ser paga pelo empregador. Deve provar a culpa do empregado doméstico causador
do acidente, mas está dispensado de provar a do empregador responsável.
É irrelevante para a responsabilização do empregador se o causador estava regularmente
registrado como seu empregado ou não. Basta a existência entre eles da relação de subordinação
característica do vínculo de emprego (CLT, art. 3.º), para que surja a obrigação de indenizar.
Havendo a subordinação hierárquica, presume-se que o subordinado cumpria ordens do superior
ou que, se não, pelo menos trabalhava em benefício deste. É presunção absoluta, na medida em
que prevê a lei a responsabilização objetiva do empregador. Quer dizer, a demonstração de que o
empregado, ao causar o dano, havia desobedecido específica orientação ou ordem do empregador
não o exonera de responsabilidade. Dá ensejo apenas ao direito de regresso do responsável contra
o causador.
O empregador responde pelos danos causados pelo empregado na execução do trabalho ou em razão
deste. A responsabilidade é objetiva tanto na hipótese de ser o empregador empresário como na de
empregado doméstico.
Igual à responsabilidade objetiva do empregador é a do comitente pelos atos dos serviçais e
prepostos. São hipóteses tratadas na lei, mas de rara ocorrência. Sempre que houver entre dois
sujeitos relação de subordinação hierárquica, ainda que ausentes os demais elementos
característicos do vínculo de emprego (remuneração assalariada e habitualidade), o superior é
responsável objetivamente pelos danos derivados de conduta do subordinado, na execução de
tarefa de interesse do primeiro.
6.2. Outras hipóteses
Além da responsabilidade complexa, em três outras hipóteses o direito brasileiro imputa a
obrigação de indenizar a sujeitos que não se encontram em posição econômica que lhes permita
socializar os custos da atividade. São elas:
a) queda ou arremesso de coisas. O sujeito atingido por coisas caídas ou lançadas de um prédio
tem o direito à indenização pelos danos que sofrer. Devedor da obrigação de indenizar é, em
princípio, o habitante do prédio, aquele que nele reside ou exerce atividade econômica ou
profissional. O habitante pode ser o proprietário, possuidor, usufrutuário, locatário ou
comodatário do imóvel. Sua responsabilidade decorre do fato de usar o bem. Estando desabitado o
imóvel, a responsabilidade é imputada ao proprietário.
A responsabilidade é objetiva e, portanto, independe de culpa: tanto faz se a coisa caiu por
descuido ou foi propositadamente lançada, responde pelos danos o habitante. Nos termos da lei,
“aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele
caírem ou forem lançadas em lugar indevido” (CC, art. 938).
O dispositivo refere-se à queda ou lançamento de coisas sólidas (dejectis) ou líquidas (effusis), e,
para constituir-se a obrigação, deve ser inapropriado o local em que se projetam. O atingido deve
ter a expectativa da indenidade, por encontrar-se em lugar onde não se devem arremessar coisas.
Havendo, por exemplo, demarcação ostensiva e clara de ser a área destinada a recolha de entulho
nas proximidades de uma demolição, não incide esta específica norma de responsabilidade
objetiva (Gonçalves, 2002:242/243).
Em alguns casos, pode ser impossível à vítima identificar de que parte do prédio a coisa caiu ou
foi arremessada. Num condomínio de edifício, cada apartamento ou escritório é uma unidade
autônoma. Se o pedestre na calçada é atingido por coisa lançada dum prédio de apartamentos,
nem sempre se consegue identificar com precisão a unidade do responsável. Ela pode ter sido
arremessada, por exemplo, de qualquer dos apartamentos com janelas para a rua, situados entre o
quinto e o décimo pavimento, mas não se consegue individuar com maior exatidão a unidade de
que partiu o arremesso. Em casos tais, a responsabilidade será solidária entre todos os habitantes
de cujas unidades a coisa poderia ter sido lançada. Note-se que, nesta hipótese, o condomínio não é
o sujeito passivo da relação obrigacional; são-nos os habitantes de todas as unidades de que
poderia ter partido a coisa (Rodrigues, 2002:131/132; Pereira, 1989:114/115).
O habitante do prédio, ou de parte dele, responde objetivamente pelos danos ocasionados pela queda ou
arremesso de coisas sólidas ou líquidas em lugares indevidos.
Caindo a coisa acidentalmente, o fato tem repercussões exclusivas na órbita civil, criando a
obrigação de o habitante indenizar os danos eventualmente causados. Quando dolosamente
arremessada, porém, caracteriza-se também ilícito penal. Lembra Maria Helena Diniz, no
tratamento do tema, a contravenção penal tipificada como “arremessar ou derramar, em via
pública, ou em lugar de uso comum, ou de uso alheio, coisa que possa ofender, sujar ou molestar
alguém” (Dec.-lei n. 3.688/41, art. 37) (2003:492).
b) Estado de necessidade e legítima defesa de terceiro. A remoção de perigo iminente não
constitui ato ilícito, por expressa determinação legal (CC, art. 188, II). Aquele que sacrifica direito
alheio para salvar o seu de perigo iminente não pratica ato ilícito. Mas os danos derivados da
remoção de perigo iminente devem ser indenizados. Por se tratar de indenização por ato lícito, é
ela objetiva, independente de culpa. Se alguém, para fugir de assalto, acelera o carro e, na fuga
empreendida, danifica outro veículo ou atropela pedestre, seu ato é plenamente lícito porque
destinado a remover perigo iminente. Deverá, contudo, indenizar os prejuízos provocados (CC, art.
929).
A obrigação de indenizar danos causados pela remoção de perigo iminente não existe se o
prejudicado teve culpa pelo risco. Só é devida a indenização pelo autor de danos na remoção de
perigo, quando criado este por terceiro (RT, 509/69). São, então, três os personagens envolvidos: o
culpado pelo risco, o autor do dano e o prejudicado. Embora lícito o comportamento do autor do
dano, deve ele indenizar o prejudicado. Terá, contudo, direito de regresso contra o culpado (CC,
art. 930, caput). Por exemplo: Antonio, para não ser atropelado por Benedito – que trafegava com
seu veículo em alta velocidade numa rua exclusiva de pedestres –, joga-se para o lado e acaba
caindo sobre Carlos, machucando-o seriamente. Antonio, autor dos danos, é obrigado a indenizar
Carlos, o prejudicado, e, depois, pode cobrar o valor pago de Benedito, o culpado pelo perigo. Notese que, sendo o risco causado por fortuito, como na hipótese de desgoverno do veículo, não haverá
obrigação de indenizar, porque descaracterizada a relação de causalidade. Neste caso, cada um
arca com os prejuízos que sofreu (Cap. 11, item 3.c).
Igual ação tem o autor dos danos contra o beneficiado por ato de legítima defesa de terceiro
(CC, art. 930, parágrafo único). Aqui a situação é semelhante à do estado de necessidade, mas
envolve quatro personagens: o agressor, o defendido, o defensor e a vítima. Se o defensor, para
impedir que o agressor lese o defendido, acaba causando danos à vítima, ele é obrigado a
indenizá-los (RT, 795/156), malgrado sua ação de legítima defesa tenha sido lícita (CC, art. 188, I).
Por exemplo: Darcy aponta arma de fogo contra Evaristo, ameaçando-o de morte. Nesse momento,
chega Fabrício, irmão de Evaristo. Ele também está armado e dispara contra Darcy, que consegue
fugir ileso. O projétil disparado por Fabrício, porém, mata Germano, que transitava pelo lugar. O
ato de Fabrício (defensor) é lícito, porque praticado em legítima defesa da vida do irmão Evaristo
(defendido), mas ele tem responsabilidade objetiva pelos danos causados aos dependentes de
Germano (vítima). Deve pagar a indenização e, depois, cobrá-la em regresso de Darcy (agressor).
Os danos causados na remoção de perigo iminente (estado de necessidade) ou legítima defesa devem ser
indenizados se o prejudicado não tiver sido o culpado. Trata-se de responsabilidade objetiva porque o ato
causador dos danos é lícito.
c) Danos causados por animal. O dono ou o detentor do animal responde objetivamente pelos
danos por ele causados (CC, art. 936). Hipóteses ilustrativas encontram-se nos lamentáveis casos de
lesão física ou mesmo morte causadas por cães de guarda (em especial, de raças de maior
agressividade, como doberman, fila, rotweiller, pitbull etc.). Como é objetiva a responsabilidade,
não interessa se o dono teve ou não culpa, se mantinha ou não o bicho sob devida vigilância e
guarda, se o educara convenientemente ou não. Basta, para sua responsabilização, que o animal
tenha causado dano a outrem. A responsabilidade do detentor também é objetiva. Se o animal não
pertencia a quem se encontrava na posse dele no momento do evento danoso, o prejudicado pode
pleitear a indenização contra o dono ou o possuidor. Se o cavalo morde criança quando montado
por amigo do seu proprietário, respondem ambos (dono e detentor) pelos danos.
O dono ou detentor do animal só não responde pelos danos se provarem a culpa da vítima ou
força maior. Assim, se o cão mordeu alguém que o atiçava ou o gado danificou o veículo que
trafegava pelo pasto, não há responsabilidade do dono por ser da vítima a culpa. Por outro lado, se
o dono trazia o cão de guarda à coleira, de forma regular, mas sofreu fulminante ataque cardíaco e
não pôde mais segurar o animal, verifica-se o fortuito excludente de responsabilização.
A responsabilidade por fato do animal é objetiva, qualquer que seja a natureza deste. Não há
dúvidas de que danos provocados por animal domesticado (cães, gatos, cavalos etc.) geram a
obrigação de indenizar. Também não há quanto à responsabilidade dos donos ou detentores de
animais selvagens sobre os quais exerçam a guarda (leões de circo, tigres do jardim zoológico etc.).
Mas, os fatos de animais silvestres ou selvagens que vivem soltos no habitat natural correspondem
a casos fortuitos. Por eles não responde, por exemplo, o proprietário do imóvel onde se verificou o
dano. Outro aspecto da questão a considerar é a irrelevância do caráter da ação do animal. É
indiferente se o bicho agiu conforme a expectativa normalmente nutrida em relação à sua espécie
ou raça (secundum naturam) ou de modo inesperado (contra naturam sui generis); nas duas
hipóteses, o dono ou detentor terá responsabilidade objetiva (Pereira, 1989:107). Não se exonera,
portanto, da obrigação de indenizar o proprietário do cão de raça tida como dócil que, frustrando
a expectativa nutrida em relação ao seu comportamento, morde violenta e repentinamente
alguém.
O dono ou detentor responde objetivamente pelos danos causados pelo animal, mesmo que seu
comportamento tenha sido inesperado em razão da espécie ou raça. Libera-se da obrigação apenas se provar
culpa da vítima ou força maior.
Se o dano provocado pelo animal verifica-se numa rodovia, a titular ou concessionária desta
também tem responsabilidade objetiva pela indenização (CDC, art. 14; CTB, art. 1.º, § 3.º) (RT,
803/243), malgrado entendimento jurisprudencial em sentido contrário (RT, 815/187). O
prejudicado, neste caso, pode optar por responsabilizá-la ou ao dono ou detentor do animal.
Tenderá a demandar a titular ou concessionária da rodovia, até mesmo porque, de ordinário,
faltar-lhe-ão meios para identificar o dono ou detentor.
7. Responsabilidade por dano ambiental
Até meados do século passado, os impactos trazidos pelas atividades econômicas ao meio
ambiente eram considerados ônus da sociedade. Suportá-las era necessário para que pudéssemos
ter acesso aos produtos industrializados, a transportes mais rápidos, à comodidade da vida
urbana. Toda atividade humana representa uma interação com o meio ambiente; mas, a partir de
certa medida, essa interação o degrada. Em meados do século passado, percebeu-se a urgência na
adoção, no mundo todo, de medidas de sustentabilidade do meio ambiente. As atividades
produtivas deveriam reduzir a degradação a limites controláveis, que não pusessem em risco a
natural sobrevivência do planeta e dos seres que nele habitam. Formulou-se, então, o princípio
jurídico do poluidor-pagador, que transferiu o ônus da degradação do meio ambiente de toda a
sociedade para o exercente da atividade poluidora.
No Brasil, a lei imputa ao poluidor a responsabilidade objetiva pelos danos causados ao meio
ambiente por sua atividade (Lei n. 6.938/81, art. 14, § 1.º), expressando, assim, o princípio do
poluidor-pagador. Há os que consideram a objetivação da responsabilidade por danos ao meio
ambiente fundada em norma constitucional (Venosa, 2001, 4:149/153). Apontam o art. 225, § 3.º, da
CF como disposição atributiva de responsabilidade civil objetiva. Não concordo. O preceito
constitucional em foco cuida das atividades consideradas lesivas ao meio ambiente passíveis de
sanção penal e administrativa, e, portanto, de atos ilícitos. Trata-se de norma sobre
responsabilidade aquiliana. No Brasil, assim, a responsabilidade do poluidor é objetiva por força
de lei ordinária em vigor desde 1981.
Qualquer sujeito de direito – pessoa física ou jurídica, pública ou privada – é poluidor quando
desenvolve atividade causadora de degradação ambiental (art. 3.º, IV). Os empresários e o Estado,
assim, são objetivamente responsáveis pelos danos ao meio ambiente que as respectivas
atividades causarem. Veja que qualquer pessoa pode contribuir para a degradação do meio
ambiente. O consumidor, ao jogar pilhas usadas no lixo comum, o dono de automóvel de passeio,
ao expelir o motor de seu veículo gás carbônico, e o proprietário de terreno em cidade praiana, ao
remover árvores para construir a casa de veraneio, estão sendo poluidores do meio ambiente. A
imputação da responsabilidade objetiva pelos danos, porém, não consegue alcançar todas as
hipóteses de degradação ambiental, até mesmo porque a lei menciona a exploração de uma
atividade como sua causa.
Em razão do princípio poluidor-pagador, a pessoa física ou jurídica, pública ou privada, ao explorar
atividade que importe degradação do meio ambiente, torna-se objetivamente responsável pela indenização
dos danos.
Além da regra geral atributiva de responsabilidade civil objetiva por danos ao meio ambiente, a
ordem jurídica cuida de hipóteses específicas, sempre responsabilizando o poluidor
independentemente de culpa. Por exemplo, nos casos de acidentes nucleares (CF, art. 21, XXIII, c;
Lei n. 6.453/77, art. 4.º), rejeitos radioativos (Lei n. 10.308/01, arts. 19 e 20) e resíduos de
agrotóxicos (Lei n. 7.802/89).
A complexidade da matéria relacionada à indenização dos danos causados ao meio ambiente
justifica seu estudo aprofundado em disciplina própria, o direito ambiental. Num compêndio de
direito civil, cabe apenas mencioná-la brevemente na lista das hipóteses de responsabilidade
objetiva.
© desta edição [2020]
2020 - 02 - 12
Curso de Direito Civil - Vol. 2 - Ed. 2020
PÁGINA RB-12.1
TERCEIRA PARTE - RESPONSABILIDADE CIVIL
CAPÍTULO 24. EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE
Capítulo 24. EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE
1. ELEMENTOS E EXCLUDENTES DA RESPONSABILIDADE
Recordando: os elementos da responsabilidade civil variam segundo a espécie. Quando
subjetiva, são três: a) culpa do devedor; b) dano patrimonial ou extrapatrimonial do credor; c)
relação de causalidade entre a conduta culposa do devedor e o dano do credor. Já no caso da
objetiva, dois: a) dano patrimonial ou extrapatrimonial do devedor; b) relação de causalidade
entre ato ou atividade do devedor e o dano do credor.
O ônus de provar os elementos constitutivos da responsabilidade civil é, em princípio, da
vítima (demandante). Assim é independentemente da espécie de responsabilidade, subjetiva ou
objetiva. Em alguns casos particulares, com o objetivo de prestigiar o princípio da indenidade, essa
regra geral é excepcionada. Assim, quando o dano decorre de ruína de prédio em construção ou
pronto, a lei presume a culpa do proprietário (Cap. 22, item 6). Outro exemplo: nos acidentes de
consumo, quando verossímil a alegação do consumidor lesado, a lei autoriza a inversão do ônus
probatório. Neste caso, ao fornecedor demandado caberá provar a inexistência dos elementos de
sua responsabilidade. Se responde subjetivamente, como os profissionais liberais, poderá
exonerar-se provando inclusive a inexistência de culpa; mas, se a responsabilidade é objetiva, só
será liberado da obrigação de indenizar provando a inexistência do dano ou da relação de
causalidade.
Mesmo quando o ônus de prova dos elementos da responsabilidade civil cabe à vítima, o
demandado pode resistir à pretensão aduzida suscitando uma excludente de responsabilidade. Se o
fizer, é dele o ônus de prová-la. Note-se, ao réu duma ação de indenização civil abrem-se duas
alternativas estratégicas: aguardar o autor se desincumbir do ônus de provar os elementos da
responsabilidade, apostando no seu insucesso, ou arguir e provar uma ou mais excludentes. Os
riscos e vantagens de cada estratégia serão sopesados pelo advogado que patrocina a defesa dos
interesses do demandado.
São três as excludentes de responsabilidade: inexistência de dano ou da relação de causalidade
e a cláusula de não indenizar.
Verificada a excludente, a responsabilidade civil não se constitui.
São três as razões de exclusão da responsabilidade civil, subjetiva ou objetiva: a inexistência de danos ou
da relação de causalidade e a cláusula de não indenizar.
À vítima, em princípio, cabe provar os elementos constitutivos da responsabilidade civil, enquanto ao
demandado incumbe a prova da excludente que tiver suscitado.
As excludentes são comuns a ambas as espécies de responsabilidade civil, tendo em vista que,
abstraído o pressuposto subjetivo (conduta culposa do devedor), equivalem-se seus elementos
constitutivos da obrigação de indenizar: dano e relação de causalidade. A inexistência de dano
(item 2) ou da relação de causalidade (item 3), bem como a cláusula de irresponsabilidade (item 4)
excluem tanto a responsabilidade civil subjetiva como a objetiva.
2. Inexistência de dano
O dano do credor é indispensável à constituição da obrigação de indenizar. Pode ser pequeno
ou grande, individual ou coletivo, patrimonial ou não – sua ocorrência é condição inafastável da
responsabilidade civil subjetiva ou objetiva. Mesmo que o ato do demandado tenha sido ilícito ou
sua atividade tenha exposto direitos do demandante a consideráveis riscos, se não houve danos,
não se cria qualquer vínculo obrigacional.
A prova do dano compete à vítima. Ela deve apresentar documentos, produzir perícia ou trazer
testemunhas que comprovem, em juízo, o prejuízo sofrido. É de sua responsabilidade, também, a
prova da extensão dos danos (RT, 803/391). Em homenagem ao princípio da indenidade,
assentaram-se certos padrões que facilitam a prova. Assim, admite-se que o proprietário de
veículo abalroado em acidente de trânsito orce o conserto em duas ou três oficinas idôneas,
contrate o serviço da mais barata delas, pague por eles e, na sequência, ajuíze a ação reparatória
pleiteando a indenização. Este procedimento, embora não previsto em lei, é tradicionalmente
adotado, com vistas a abreviar o tempo de não uso do veículo danificado e reduzir, no interesse
também do devedor, o montante dos prejuízos.
Todos os danos devem ser provados, porque não se presumem. Quando se trata de prejuízos ao
patrimônio do credor, a prova costuma ser mais fácil. Fotografia do bem danificado e documentos
como recibos de despesas, notas fiscais e orçamentos muitas vezes são suficientes para a
demonstração do dano e sua extensão. Em casos mais complexos, assim os de acidente de
consumo, danos ambientais ou ao patrimônio histórico, uma perícia técnica pode ser necessária.
Já em relação aos danos morais, por ser inacessível a intimidade emocional da vítima, a prova é
mais difícil. Há a tendência de se presumir a dor em casos específicos, como a morte de filho (RT,
802/176, 794/308). Ela, porém, não representa a melhor forma de tratar a matéria. A demonstração
do sofrimento moral digno de compensação pecuniária deve ser feita pela vítima (RT, 797/277),
ainda que por elementos indiciários, variáveis segundo as circunstâncias do caso. A presunção do
dano estimula a autovitimização e a simulação da dor, e não tem base no direito positivo.
Caso a vítima não prove a verificação do dano e sua extensão, não terá direito à indenização,
mesmo que o demandado não tenha suscitado qualquer excludente de responsabilidade.
Se o demandado alegar que não existiu dano, é dele o ônus de prova deste fato desconstitutivo
do direito à indenização (RT, 803/391). A regra é igual para os danos patrimoniais e morais. Se o
réu afirma que a vítima não experimentou nenhuma dor merecedora de reparação pecuniária,
deve demonstrá-lo. Também é dele o ônus de provar a presença de qualquer fator de redução do
valor da indenização, como o baixo grau de sua culpa, a culpa concorrente da vítima ou, no caso
de danos morais, a pouca sensibilidade dela para eventos como o danoso (Cap. 25, subitens 1.1 e
3.4).
O dano e sua extensão devem ser provados pela vítima, tanto na hipótese de responsabilidade subjetiva
como na objetiva. A regra também se aplica aos danos morais, que não devem ser presumidos em nenhum
caso. Se o demandado alegar a inexistência do dano ou questionar a extensão pretendida pela vítima, é dele
o ônus de provar os fatos correspondentes.
Do cotejo das provas produzidas (ou não) pelas partes do processo, o juiz, norteado pelas regras
de distribuição do ônus probatório, decidirá se ocorreu o dano e, em caso positivo, qual a extensão.
3. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CAUSALIDADE
Para que se constitua a responsabilidade civil, em qualquer caso, é necessário que exista um
liame entre credor e devedor. A responsabilidade civil existe quando não há vínculo negocial
entre os sujeitos obrigados ou ele é circunstancial, quer dizer, irrelevante para a constituição da
obrigação de indenizar. A relação creditória deriva, então, necessariamente de vínculo diverso da
manifestação de vontade dos sujeitos obrigados (ou de um deles apenas). Praticado o ato ilícito ou
verificado o fato descrito na norma jurídica (provocar culposamente acidente de trânsito, oferecer
bens ou serviços ao mercado de consumo, ter filho menor causador de prejuízo, cometer crime
etc.), constitui-se o vínculo obrigacional.
A norma descritiva dos fatos ensejadores da responsabilidade civil toma como causa do dano
algum ato ou atividade do devedor. Somente se constitui o vínculo obrigacional se cumprido este
requisito, portanto. Quer dizer, quando o dano sofrido pelo demandante não foi causado pelo
demandado, não há direito à indenização. O atropelado deve ser indenizado pelo motorista do
veículo apenas quando a causa do acidente for imputável a este último. Se o atropelamento
ocorreu por culpa da própria vítima (desatenta ao atravessar a rua fora da faixa), de terceiro (que
deu um tiro no pneu do carro, desgovernando-o) ou por fortuito (motorista jovem e saudável
sofreu fulminante ataque cardíaco enquanto dirigia), não há relação de causalidade entre o dano
do demandante e a conduta do demandado.
A relação de causalidade é condição da obrigação de indenizar tanto na hipótese de
responsabilidade subjetiva como objetiva – é dispensada apenas na subespécie objetiva pura, de
cujo estudo se ocupam ramos do direito público (Cap. 21, subitem 5.2). A exclusão deste elemento
de responsabilização verifica-se em três hipóteses: caso fortuito ou de força maior (subitem 3.1),
culpa de terceiro (subitem 3.2) e culpa exclusiva da vítima (subitem 3.3). Desse modo, ao
demandante compete a prova da relação de causalidade entre o dano que sofreu e ato ou atividade
do demandado (cf. Noronha, 2003a:748/450). A este último, caso tenha alegado a excludente de
inexistência da relação, cabe provar o fortuito, a culpa de terceiro ou exclusiva da vítima.
3.1. Caso fortuito ou de força maior
Fortuito – caso fortuito e de força maior são sinônimos (Fonseca, 1932:85/103), por isso uso
apenas a primeira expressão – é todo evento desencadeador de danos em que não há culpa de
ninguém. Caracteriza-se por sua imprevisibilidade ou inevitabilidade. No dizer da lei argentina,
corresponde a todo fato “imprevisível ou, se previsível, inevitável” (cf. Iturraspe, 1982, 3:39).
Assim, nem todo fortuito é imprevisível, mas sempre será inevitável. A inevitabilidade do dano
pode originar-se da impossibilidade de antecipar-se a ocorrência do evento desencadeador ou da
de obstar seus efeitos. A queda de um cometa na Terra pode ser evento previsível, mas, por
enquanto, é totalmente inevitável. Em ocorrendo, os danos que provocar não serão indenizáveis.
A inevitabilidade pode ter razões diversas. Em primeiro lugar, como visto, explica-se pelo
desconhecimento de sua ocorrência. Se o dano é imprevisível, não há como evitá-lo, claro. Raios
“caem” no solo a todo momento, mas não é possível antecipar o seu local exato. Está-se aqui diante
de inevitabilidade cognoscitiva. Em segundo lugar, pode decorrer da insuficiência dos
conhecimentos científicos e tecnológicos amealhados pela humanidade. A queda do cometa ilustra
a hipótese. Neste caso, a inevitabilidade é material, porque em nenhuma circunstância o fato
previsível poderia ter seus efeitos bloqueados. Em terceiro lugar, o inevitável pode derivar da falta
de economicidade nas medidas destinadas a obstar os efeitos do evento. Num carro popular, não
há condições de se instalar airbag. De fato, o custo dessa instalação aumentaria o preço do veículo
de tal modo, que ele deixaria de ser popular; não mais atenderia ao consumidor de baixa renda. Os
danos pessoais que poderiam ser evitados por aquele dispositivo de segurança tornam-se
inevitáveis não pela imprevisibilidade ou materialidade do evento, mas apenas por razões de
racionalidade econômica. Trata-se, aqui, de inevitabilidade econômica.
Em todos os casos de inevitabilidade, verifica-se o fortuito e não haverá relação de causalidade
entre o dano do credor e ato ou atividade do devedor. Na hipótese de inevitabilidade econômica, é
necessário distinguir a inexistência de recursos da sua utilização mais racional. Explico com dois
exemplos. Em São Paulo, em dois ou três dias por ano, devido às fortes chuvas do verão, a
passagem de nível do vale do Anhangabaú enche de água, causando danos aos motoristas
surpreendidos com a enchente. Trata-se de evento totalmente previsível, mas o custo das obras
capazes de evitar seus efeitos é enorme, muito maior que os danos causados. A Prefeitura até
dispõe dos recursos para realizá-las, mas decididamente há outras demandas muito mais
relevantes a serem atendidas, não só no melhoramento da malha viária como no campo da saúde,
educação, moradia e transportes públicos. Destinar os recursos existentes para evitar a enchente
no local naqueles poucos dias do verão não parece ser o emprego mais racional deles, em face de
outras demandas que poderiam atender. Aqui, não há fortuito, e as vítimas devem ser indenizadas
pelos danos daquelas enchentes anuais. Pense, agora, num município pobre, em que os recursos
econômicos são inquestionavelmente insuficientes para a manutenção dum hospital ou de
ambulância aérea. Os doentes devem, sempre que precisam de internação hospitalar, viajar
centenas de quilômetros, por estradas de terra ou asfalto precário, até a capital. É previsível que a
falta do hospital e o tempo da viagem causem a morte de algumas pessoas. Como não há recursos
para obstar os efeitos desses fatos, porém, verifica-se a inevitabilidade do fortuito. Não há direito à
indenização, neste caso.
Dois são os tipos de fortuito. De um lado, os fatos da natureza, como a queda do cometa, de raio,
inundação, furacão, terremoto, desmoronamento etc. Vou chamá-lo fortuito natural. De outro, atos
humanos não culposos, como a produção em massa, prestação de serviços empresariais,
atendimento ao interesse público etc. Designo-o fortuito humano.
Não basta para caracterizar o fortuito natural, note-se, que o evento desencadeador dos danos
seja fato da natureza (Dias, 1954, 2:364). É necessário que também se verifique a inevitabilidade
(cognoscitiva, material ou econômica). Se, num ano, fortes chuvas de verão, em nível
pluviométrico recorde, causa inundações diversas pela cidade, em pontos que nunca antes se
tinham verificado, há fortuito. Se danos de igual intensidade se repetem mais uma ou duas vezes,
ainda é possível falar em imprevisto. A partir da terceira repetição, porém, não há mais
imprevisibilidade (inevitabilidade cognoscitiva). Se houver meios de prevenir os efeitos danosos
(evitabilidade material) e recursos para custeá-los (evitabilidade econômica), deixa de existir o
fortuito. Considera-se, então, que a falta de obras de prevenção é a causa dos danos (RT, 787/425).
O fortuito humano caracteriza-se também pela inevitabilidade dos danos. Como já assentado,
por mais diligente e cuidadoso que seja o empresário a respeito do controle de qualidade de seus
produtos e serviços, por maior que seja sua preocupação quanto à segurança de trabalhadores e
consumidores, dentro duma margem estatística, erros acontecem inevitavelmente. Deve-se isto à
falibilidade inerente à condição humana, fator desencadeador de danos que nenhum empresário
tem meios de neutralizar de forma absoluta. A inevitabilidade é material. Não se pode falar em
culpa, porque o empresário e seus empregados e colaboradores não são negligentes, imprudentes,
imperitos, nem têm a intenção deliberada de provocar prejuízos. Ao contrário, são diligentes,
prudentes, competentes e bem intencionados. Como são humanos, porém, falham, e de suas falhas
decorrem danos. Causam um típico acidente inevitável da era contemporânea.
Os autores que consideram qualquer hipótese de responsabilização como decorrência de ato
com algum traço de desconformidade relativamente ao Direito e que, portanto, rejeitam a ideia da
responsabilidade objetiva como consequência de prática lícita, por coerência questionam a noção
de fortuito humano. Para Jorge Mosset Iturraspe, por exemplo, o fortuito é tipicamente um fato da
natureza (1982, 3:39/46).
O fortuito é todo evento desencadeador de danos não originado pela culpa de alguém. Pode referir-se a
fatos da natureza (enchentes, queda de raio, terremoto) ou humanos (produção em massa, prestação de
serviços empresariais).
A característica fundamental do fortuito é a inevitabilidade. O evento é inevitável em razão da
imprevisibilidade (inevitabilidade cognoscitiva), da incapacidade humana de obstar seus efeitos danosos
(inevitabilidade material) ou da falta de racionalidade econômica em obstá-los (inevitabilidade econômica).
O fortuito natural ou humano é sempre excludente da responsabilidade civil subjetiva, porque
descaracteriza a relação de causalidade entre o dano do credor e a conduta culposa do devedor. Quando
objetiva a responsabilidade, porém, apenas o fortuito natural descaracteriza a relação de causalidade.
O fortuito, natural ou humano, exclui a responsabilidade subjetiva em qualquer hipótese. Se o
prédio ruiu em razão de fato natural imprevisível, o dono não é obrigado pelos danos. Da mesma
forma, se o empresário emprega os mais modernos instrumentos de segurança do trabalho e
treina adequadamente seus empregados, o acidente de trabalho certamente não decorreu de culpa
sua e pode ter derivado de fortuito humano. Por isso, o empresário não será responsável pela
indenização do empregado acidentado. No tocante à responsabilidade objetiva, contudo, apenas o
fortuito natural é excludente. A objetivação da responsabilidade visa transferir as consequências
do fortuito humano – da vítima para o agente que detém as condições econômicas de socializar
custos. Para alcançar tal objetivo, este tipo de fortuito não pode evidentemente servir de
excludente. Desse modo, se o jovem que assistia a show de rock no gramado dum estádio é
atingido por um raio (não atraído pelos para-raios do local), o fortuito natural exclui a
responsabilidade do empresário promotor do espetáculo. Ao contrário, se aquele jovem é
pisoteado por outros espectadores, que procuravam atabalhoadamente abandonar o local quando
o palco incendiou-se, o defeito no serviço causador de acidente de consumo não é excludente de
responsabilidade do empresário, mesmo caracterizando-se como fortuito humano por não ter
havido culpa de ninguém pelo incêndio.
3.2. Culpa de terceiro
A culpa de terceiro desfaz o liame de causalidade entre a conduta do devedor (culposa ou não)
e os danos cuja indenização se pleiteia. O exemplo típico é o do acidente de trânsito entre três
veículos que trafegam no mesmo sentido por via de dupla mão de direção. O motorista do veículo
A, que vai à frente, para convergir à esquerda em manobra não permitida naquele local. Logo
atrás, para também o veículo B. O motorista do veículo C, que vinha por último, porém, não freia e
provoca a colisão (Azevedo, 1994:52). O proprietário do veículo A não tem direito de pleitear a
indenização contra o motorista do veículo B, embora seu carro tenha sido danificado por este. Não
há relação de causalidade entre a conduta do motorista do veículo B e os danos em A, porque a
culpa do acidente de trânsito é de terceiro, isto é, do condutor de C. A infração de trânsito cometida
por quem dirigia A, embora represente conduta reprovável e culposa, não poderia ter sido, por ela
apenas, causa do evento danoso. Por esta razão, o único responsável pela indenização é o condutor
de C, que não brecou o veículo a tempo de evitar o choque (RT, 607/117).
A exemplo do fortuito, o ato culposo de terceiro, para descaracterizar a relação de causa e
efeito e excluir a responsabilidade do demandado, deve ser inevitável (Rodrigues, 2002:173). A
inevitabilidade pode originar-se de sua imprevisibilidade ou de obstáculos materiais. O buraco na
rodovia sem a devida sinalização deve-se à culpa da concessionária. A imprevisibilidade deriva da
legítima presunção do motorista de que não seria surpreendido por um defeito dessa ordem na
pista. A inevitabilidade material encontra-se no exemplo acima da colisão envolvendo três
veículos. O motorista do veículo B podia, pelo espelho retrovisor, antever a colisão, mas nada
poderia fazer para impedi-la.
Quando a culpa pelo evento danoso é de terceiro, desconstitui-se a relação de causa e efeito entre o
prejuízo da vítima e o ato ou atividade do demandado. Neste caso de excludente, a vítima terá direito de
promover a responsabilização do terceiro culpado.
Quando a culpa é do terceiro, exclui-se a responsabilidade do demandado cuja conduta ou
atividade não causou o dano. Não se exclui, por evidente, a do terceiro responsável, contra quem a
vítima deve voltar-se. Note-se que são independentes as situações do primeiro e do segundo
demandado. Aquele pode ter responsabilidade subjetiva e este, objetiva, ou vice-versa. Cada qual
responderá segundo o direito aplicável. Se o motorista bate seu carro em outro, em razão da
manobra que fez para contornar o imprevisível buraco na rodovia, o primeiro demandado teria
em tese responsabilidade subjetiva. A alegação e prova da excludente de culpa de terceiro (no
caso, a concessionária rodoviária) exonera-o de qualquer obrigação. Quando a vítima demandar a
concessionária, imputará àquele segundo demandado responsabilidade objetiva.
A excludente relacionada a culpa de terceiro, no contexto da responsabilidade objetiva, envolve
uma especificidade. Deve-se distinguir entre atos de terceiros internos e externos (cf. Dias, 1954,
2:360). Note-se que alguns autores preferem falar em fortuito interno ou externo (Rodrigues,
2002:178/179), ao tratar do mesmo assunto. De qualquer modo, apenas os externos são excludentes
de responsabilidade.
A classificação do ato culposo de terceiro como interno ou externo depende do exame da
atividade do demandado e das expectativas legítimas que ela desperta nas pessoas expostas aos
seus riscos. Se o demandado explora atividade de que se espera certa garantia, será interno o ato
culposo de terceiro que a frustre. Haverá, neste caso, responsabilização pelos danos decorrentes.
De outro lado, se da atividade explorada pelo demandado não se espera determinada garantia, a
frustração desta por culpa de terceiro configura ato externo. Aqui, opera-se a excludente da
responsabilidade objetiva, e a vítima só pode demandar o causador culpado do dano.
Para compreender o critério de classificação cogite-se de duas atividades empresariais: banco e
transporte urbano por ônibus. Em relação à primeira, nutre-se legítima expectativa de segurança
relativamente aos crimes contra o patrimônio. O banco organiza-se fortemente para proteger seu
patrimônio. Espera-se, pois, que a segurança organizada pelo empresário no interesse de seu
próprio negócio também ampare os clientes enquanto se encontram no interior da agência
bancária. Em havendo roubo, furto, estelionato, latrocínio ou outros crimes que vitimem alguém
que se encontrava numa agência de banco, verifica-se ato de terceiro interno. O banco, assim, é
responsável por indenizar o cliente na hipótese de furto de talonário de cheques e cartão emitido
em seu nome praticado na agência por quem não era seu empregado ou preposto (RT, 784/186;
806/193).
Ao seu turno, o empresário do transporte coletivo por ônibus explora atividade de que se
esperam legitimamente determinadas garantias associadas ao meio empregado. Se ocorrer
acidente de trânsito, o passageiro deve ser indenizado pela empresa de transporte, ainda que o
evento danoso tenha sido causado por clara culpa do motorista do outro veículo envolvido. Neste
caso, o ato do terceiro é interno à atividade do devedor, porque diretamente ligado ao serviço de
transporte pelas ruas da cidade, onde a possibilidade de acidente de trânsito está sempre presente.
Observa-se, então, a Súmula 187 do STF, pertinente a qualquer meio de transporte: “a
responsabilidade contratual do transportador, pelo acidente com passageiro, não é ilidida por
culpa de terceiro, contra a qual tenha ação regressiva”.
Quando, porém, o dano decorre de frustração a garantia que não se espera especificamente da
atividade em questão, o ato culposo de terceiro que o causa é classificado como externo. Se
motorista tresloucado lança seu veículo sobre o caixa eletrônico e causa danos ao cliente que se
encontrava em seu interior, não há responsabilidade do banco. Da mesma forma, a empresa de
transporte de pessoas não responde por assalto a seus passageiros (RT, 785/396), assim como a de
carga não pode ser responsabilizada pelo seu roubo à mão armada (RT, 816/232).
A exclusão de responsabilidade objetiva por ato de terceiro é, contudo, ainda controvertida.
Não é pacífico que a excludente tem cabimento só quando a conduta culposa do terceiro é externa
à atividade do demandado. Há decisões judiciais, de um lado, isentando empresas de transporte
coletivo urbano da obrigação de indenizar quando o acidente de trânsito tenha sido provocado por
terceiros (RT, 799/246) e, de outro, imputando-lhes responsabilidade por danos decorrentes de um
crime de estupro, porque a vítima começou a ser perseguida pelos estupradores dentro do ônibus
(Couto, 2001, julgado 050), ou de ferimento à bala de passageiro que se encontrava na plataforma
de embarque (RT, 795/228).
3.3. Culpa exclusiva da vítima
Quando o dano decorre de culpa exclusiva da vítima, também não se estabelece a relação de
causalidade entre ele e o ato ou atividade do demandado. Na verdade, neste caso, é a vítima que
causou o dano e não há razões para imputar-se a quem quer que seja a responsabilidade pela
indenização dos prejuízos. A vítima deve suportá-los inteiramente porque foi apenas dela a culpa
pelo evento danoso. Não basta que o demandado tenha-se envolvido direta ou indiretamente com
o dano para que surja sua responsabilidade. É necessário que seus atos ou atividades tenham sido
a causa do prejuízo. A culpa exclusiva da vítima afasta esta possibilidade.
Mesmo se objetiva a responsabilidade, a culpa exclusiva da vítima é excludente. Assim, se foi
seriamente lesada por mordidas de ferozes cães de guarda ao adentrar sem autorização em imóvel
alheio, não terá direito à indenização porque foi exclusivamente dela a culpa (RT, 787/229). Da
mesma forma, se as informações prestadas pelo empresário acerca dos riscos oferecidos por seus
produtos ou serviços são adequadas e suficientes, e o consumidor sofre danos por ignorar as
recomendações de segurança, não haverá acidente de consumo por periculosidade.
Descaracteriza-se a relação de causalidade entre os danos e a atividade empresarial do fornecedor
porque a culpa pelo acidente é exclusiva da vítima (CDC, art. 12, § 3.º, III). Se o semáforo não
estava funcionando, mas o acidente de trânsito ocorreu por comprovada imprudência do
motorista, não responde o Poder Público, porque não se estabelece relação de causalidade entre o
evento danoso e a falha na prestação do serviço público. Em outros termos, mesmo que o
semáforo estivesse em perfeitas condições de funcionamento, o acidente teria ocorrido caso o
demandante não tivesse sido prudente. A culpa pelo dano, assim, é da própria vítima e exclui a
responsabilidade objetiva do Estado (RT, 804/251).
A culpa exclusiva da vítima também é excludente na hipótese de danos extrapatrimoniais. Se
exame laboratorial de tipagem sanguínea indica incompatibilidade do fator RH entre o filho e seus
pais, mas estes só se interessam em fazer novo exame um ano depois, pela dor experimentada
nesse período não responde o laboratório. O sofrimento deveu-se a culpa exclusiva das vítimas
(RT, 783/395).
Se provado que o dano decorreu de culpa exclusiva da vítima, descaracteriza-se a relação de causalidade
entre ele e a conduta ou atividade do demandado. Exclui-se, em decorrência, a responsabilidade deste.
Para excluir a responsabilidade civil, a culpa da vítima deve ser exclusiva. Quando há
concorrência de culpa, ou seja, quando tanto demandante como demandado agiram culposamente
e causaram o dano, verifica-se fato que, no direito brasileiro, repercute unicamente no valor da
indenização (CC, art. 945). Se a vítima, portanto, teve qualquer participação culposa no evento,
fará jus à indenização, mas o valor desta deve ser reduzido proporcionalmente ao grau de sua
culpa (Cap. 25, subitem 1.1.2).
4. Cláusula de não indenizar
Credor e devedor da obrigação de indenizar em razão de responsabilidade civil podem,
circunstancialmente, estar ligados por um negócio jurídico. Isto ocorre nas hipóteses que a
doutrina tradicionalmente chama de responsabilidade civil contratual: imperícia do profissional
liberal (erro médico, falha culposa do advogado ou do engenheiro civil etc.), acidente durante o
transporte (por qualquer meio), acidentes de consumo quando o causador do defeito no produto
ou serviço é o fornecedor direto (varejista) etc.
Viu-se já que o negócio jurídico não é o fundamento da responsabilidade civil, porque o
devedor responde não em razão do acordo feito com o credor, mas sim por ter incorrido em ato
ilícito (responsabilidade civil subjetiva) ou por ter-se caracterizado o fato jurídico imputador da
obrigação (responsabilidade civil objetiva). Mesmo que o negócio jurídico seja nulo – por
incapacidade da parte, ilicitude do objeto ou inadequação da forma –, a obrigação de indenizar
continua existindo, porque sua fonte é diversa.
Pois bem, o negócio jurídico, se, de um lado, não é o fundamento da responsabilidade civil, de
outro, pode conter dispositivo que a exclua. As partes podem, por acordo de vontades, estabelecer
que determinados danos não serão indenizados, ou o serão dentro de um limite. É a cláusula de
não indenizar ou de irresponsabilidade (Pereira, 1989:305/306). Trata-se de excludente que
pressupõe necessariamente vínculo negocial de contrato entre os sujeitos envolvidos (cf. Dias,
1947:241/246). Por meio dela, as partes concordam em repartir as repercussões de eventos
danosos.
Em termos gerais, por força do princípio da autonomia da vontade, qualquer dano pode ser
excluído por cláusula contratual. O sujeito pondera seus interesses e manifesta a concordância em
arcar sozinho com os danos que eventualmente vier a sofrer na execução do contrato,
renunciando ao direito de pleitear indenização contra o outro contratante, mesmo que seja da
culpa deste. Numa situação, porém, a lei a considera nula: nas relações de consumo em que o
consumidor é pessoa física (CDC, art. 51, I). Nesta hipótese, ainda que tenha sido pactuada entre as
partes, a obrigação de indenizar por responsabilidade civil existe. Nos contratos civis ou
empresariais, ou mesmo nos de consumo em que o consumidor é pessoa jurídica (associação,
fundação, sociedade microempresária destinatária final do produto etc.), é plenamente válida a
exclusão ou limitação de responsabilidade por vontade das partes.
Quando os sujeitos da obrigação de indenizar por responsabilidade civil estão vinculados também a
negócio jurídico, a vontade das partes não é o fundamento da indenização, mas pode excluí-la ou limitá-la. A
cláusula de não indenizar ou de irresponsabilidade é válida, salvo nas relações de consumo em que o
consumidor é pessoa física (CDC, art. 51, I).
A cláusula de não indenizar deve ser expressa. Não cabe concluir sua existência do conjunto de
disposições de vontade albergadas no instrumento contratual, se não existir expressa menção à
exclusão ou limitação da responsabilidade civil de um ou de ambos os contratantes. Não existe
cláusula de não indenizar implícita. Isso porque veicula renúncia a direito, e a presunção é de que
ninguém concorda com a restrição aos seus direitos senão de forma inequívoca. A cláusula de
irresponsabilidade não é excludente de indenização nos casos de culpa grave ou dolo.
Normalmente, a ressalva é escrita no instrumento contratual. Mas, ainda que não venha, o
contratante que tiver agido com culpa grave ou dolo deve a indenização dos danos que provocar, a
menos que haja circunstâncias especialíssimas a marcar o caso. A cláusula deve ser expressa, mas
a ressalva quanto à culpa grave ou dolo pode ser implícita. Afinal, a cláusula de irresponsabilidade
não é uma autorização para o contratante descuidar-se na execução do contrato ou, pior, para
intencionalmente prejudicar a outra parte.
© desta edição [2020]
2020 - 02 - 12
Curso de Direito Civil - Vol. 2 - Ed. 2020
PÁGINA RB-13.1
TERCEIRA PARTE - RESPONSABILIDADE CIVIL
CAPÍTULO 25. INDENIZAÇÃO
Capítulo 25. INDENIZAÇÃO
1. O valor da indenização
A obrigação de indenizar oriunda da responsabilidade civil é, na quase totalidade das vezes,
pecuniária: o devedor a paga mediante entrega de dinheiro ao credor. Excepcionalmente pode ser
não pecuniária, quando o devedor cumpre sua obrigação repondo as coisas à situação em que se
encontravam antes do evento danoso. Em tese, assim, os danos sofridos pelo proprietário do
automóvel abalroado no acidente de trânsito poderiam ser compensados de duas maneiras pelo
devedor: consertando o veículo ou entregando ao prejudicado o dinheiro suficiente para isso.
Adotada a primeira maneira, ter-se-ia a responsabilidade civil como obrigação não pecuniária (ou,
como se costuma mencionar, reparação natural ou in natura); a segunda, pecuniária. Nada impede,
com efeito, que o devedor seja condenado a reparar diretamente os danos do acidente em vez de
pagar ao credor o valor correspondente ao prejuízo (sobre a execução específica da obrigação de
indenizar, ver Yarshell, 1996). No direito positivo brasileiro, porém, há uma só hipótese de
indenização que compreende a reposição da coisa objeto de lesão: é a derivada de usurpação ou
esbulho (CC, art. 951).
Há quem considere a reparação natural melhor que a pecuniária, principalmente na
composição de danos extrapatrimoniais (cf. Cianci, 2003:59/62). Na Argentina, a lei a privilegia no
atendimento aos danos morais, reservando à indenização em dinheiro função subsidiária (cf.
Iturraspe, 1982, 4:179/180). Não há, porém, esta primazia. Ao contrário, a indenização pecuniária é
sempre preferível à reparação natural. Impor ao devedor a obrigação de desfazer o dano nunca é
melhor que solucionar o conflito mediante entrega de dinheiro. Claro que a alternativa tem lugar
apenas naquelas situações em que é materialmente possível o desfazimento do dano, o retorno da
coisa à situação anterior ao evento danoso. No caso de danos morais, essa possibilidade
simplesmente não existe. Não há como apagar a dor vivenciada pelos pais em razão da morte do
filho causada por erro médico, do jovem vítima de dano estético num acidente de trânsito, da
mulher estuprada, da pessoa honrada cujo nome foi indevidamente lançado em cadastro de
inadimplentes, do trabalhador exposto a vexame ao ser acusado de roubo num supermercado, da
irrecuperável perda de coisa com valor de afeição, e assim por diante.
A reparação natural, a rigor, é mais inconveniente que a solução pecuniária. Em primeiro
lugar, porque o devedor costuma não ter o mesmo empenho que o credor teria no refazimento do
estado anterior ao dano. Normalmente, o prejudicado está muito mais interessado na recuperação
da coisa do que o condenado a fazê-la. Em razão do menor interesse, é provável que o devedor
procure economizar nos custos, negligencie no controle de qualidade, não se incomode com a
ausência de caprichos. O resultado da reparação natural costuma ser inferior ao que adviria de
refazimento encomendado e gerenciado pelo credor da indenização. Em segundo, tende a
eternizar o conflito, porque é consideravelmente maior a complexidade envolvida na outorga de
quitação. Se o cumprimento da obrigação consiste em entregar quantia certa de dinheiro, não há
nenhuma dificuldade em confirmá-lo ou desconfirmá-lo. Já, se consiste num fazer, o cumprimento
desperta questões atinentes a prazo, especificações e qualidade, cuja solução reclama muitas vezes
custosas perícias técnicas. Pense num dano ambiental ou ao patrimônio histórico e as dificuldades
que envolvem os trabalhos de restauro. Em terceiro lugar, a solução pecuniária é mais eficiente
sob o ponto de vista econômico para ambas as partes. De um lado, para o devedor, a entrega da
soma correspondente à completa recuperação do dano importa a transferência do gerenciamento
da restauração e de seus riscos. De outro, o credor da indenização, porque não está obrigado a
gastar o dinheiro correspondente à prestação no refazimento da coisa danificada, pode dar-lhe
emprego diverso que atenda melhor ao seu interesse do momento. Diante da enormidade dos
gastos, incorridos pelo causador de grave acidente ambiental no Alasca, no salvamento de alguns
poucos animais, ambientalistas lúcidos questionaram se não seria melhor usar o mesmo dinheiro
na solução de problemas ecológicos de maior urgência e envergadura. Em suma, por força das
inconveniências apresentadas pela reparação natural, é normalmente pecuniária a
responsabilidade civil.
Embora a obrigação de indenizar possa ser cumprida mediante a reposição pelo devedor da coisa à
condição anterior ao evento danoso (reparação natural ou in natura), o mais comum é que tenha a natureza
pecuniária e cumpra-se pela entrega ao credor do dinheiro compensador do prejuízo patrimonial e
extrapatrimonial sofrido.
O valor da indenização dos danos pode ser fixado por acordo de vontades entre credor e
devedor. São questões relativamente autônomas as da existência e extensão da obrigação. As
partes podem estar de acordo quanto a uma, mas divergirem no tocante à outra. Se o motorista
causador do acidente de trânsito é pessoa leal e honesta, tende a assumir a responsabilidade pela
indenização dos danos de pronto. Neste caso, não haverá conflito de interesses acerca da
constituição da obrigação de indenizar. Caso concorde com o valor proposto pelo motorista do
veículo danificado, o encontro de vontades alcançará também a extensão da obrigação. Se
discordarem acerca do montante dos danos, provavelmente este será objeto de discussão judicial.
De igual modo, haverá disputa em juízo se inexistir consenso sobre a culpa pelo acidente, mesmo
concordando as partes acerca do valor dos danos. Produzida a prova da culpa, e assentada forte
propensão à responsabilização, podem chegar a acordo judicial com mais facilidade. De qualquer
modo, quando o valor da indenização é objeto de acordo entre prejudicado e responsável, a
obrigação passa a ser negocial, sujeita às regras próprias dos negócios jurídicos bilaterais.
Quando não há acordo sobre a obrigação de indenizar por responsabilidade civil, a existência e
extensão dessas são estabelecidas pelo juiz a partir dos parâmetros do direito positivo. As normas
que norteiam a decisão sobre a existência dessa obrigação não negocial foram já examinadas nos
capítulos antecedentes: constitui-se a responsabilidade civil com o atendimento dos pressupostos
próprios de cada espécie – na subjetiva, a culpa do devedor, o dano do credor e a relação de
causalidade; na objetiva, o dano e a relação de causalidade –, caso não se verifique excludente.
Resta examinar as normas referentes à extensão da obrigação.
Sempre que a lei cria uma obrigação não negocial ela deve fixar, e em geral fixa, os critérios
para a mensuração da prestação. Ao imputar a determinados sujeitos a obrigação de prestar
alimentos, ela preceitua que o valor da prestação atenderá às necessidades do alimentado e às
possibilidades do alimentador (CC, art. 1.694, § 1.º). Ao atribuir ao acionista o direito essencial ao
recesso, na hipótese de dissidência relativamente a certas deliberações da assembleia geral,
enuncia que o devido pela sociedade anônima a título de reembolso será calculado com base no
valor patrimonial ou econômico da ação (LSA, art. 45). Para a quantificação da obrigação de
indenizar por responsabilidade civil, as balizas são estabelecidas por algumas normas legais e, em
relação aos danos extrapatrimoniais, por vastíssima contribuição da jurisprudência. O objeto deste
capítulo final da parte dedicada à responsabilidade civil é o estudo dessas balizas.
1.1. A culpa e o valor da indenização
A culpa pode influir no valor da indenização. Quando referente ao sujeito passivo da obrigação
de indenizar, sua desproporção em face do valor dos danos possibilita a redução equitativa pelo
juiz, nos termos do art. 944, parágrafo único, do CC (subitem 1.1.1); quando referente ao ativo, sua
contribuição para o evento danoso reduz a indenização, por força do art. 945 do CC (subitem
1.1.2).
1.1.1. Grau de culpa do devedor
A influência do grau de culpa do devedor no valor da indenização é recente no direito
brasileiro. Sob a vigência do Código Beviláqua, o grau de culpa era irrelevante para quaisquer
efeitos de responsabilidade civil. A existência e extensão da obrigação de indenizar independiam
de ter sido a culpa do autor dos danos levíssima ou de extrema gravidade. Se pequeno erro médico
causava danos de monta ao paciente, isso não diminuía a quantia devida pelo profissional. A
entrada em vigor do Código Reale alterou significativamente a disciplina da matéria. Sempre que
tiver sido pouca a culpa do devedor, em confronto com a dimensão dos danos, abre-se ao juiz a
possibilidade de fixar indenização menor.
Claro que a redução equitativa da indenização em razão do grau de culpa do devedor impõe à
vítima responsabilidade por parte dos danos sofridos. Ela arca diretamente com a parcela
correspondente à redução proporcionada. Opera-se, então, distribuição equitativa do valor dos
danos entre responsável e prejudicado. Quanto menor o grau de culpa do devedor, mais a hipótese
aproxima-se do fortuito, em termos jurídicos, justificando-se assim a solução por equidade. O juiz
não deve, nos casos de culpa leve ou levíssima, tratar o devedor da mesma forma que os culpados
em maior grau; não deve, por outro lado, deixar a vítima desprotegida. Na ponderação que fizer,
deve buscar o equilíbrio entre os dois polos de interesses.
Cabe a redução equitativa em qualquer hipótese de responsabilização em que tenha havido
baixo grau de culpa do devedor. Nas de responsabilidade subjetiva, sempre será cabível avaliar a
intensidade da conduta culposa do devedor, tendo em vista que sem culpa não há a obrigação
desta espécie. Mesmo nas hipóteses de responsabilidade objetiva, cabe avaliar o grau de diligência
e zelo do devedor nas questões afetas à segurança de sua atividade. A presença ou ausência de
culpa, e o grau desta, como assentado, é sempre irrelevante para a questão da existência da
obrigação. Para definir-se sua extensão, porém, é relevante. Se o dono do animal provar que o
guardava cercado de todos os cuidados possíveis, ele não se exonera da obrigação porque é esta
objetiva, independe de culpa; mas pode o juiz, reconhecendo a leveza da culpa, reduzir
equitativamente o valor da indenização. Do mesmo modo, o empresário responde por acidente de
consumo de forma objetiva, quer dizer, ainda que tenha empregado diligentemente na produção
os mais avançados processos disponíveis e o melhor controle de qualidade. Mas não é justo tratar
igualmente o empresário relapso e o preocupado com a questão da segurança. Obrigado ele está, a
despeito de sua diligência, mas o valor da indenização pode ser menor em função dela.
Na hipótese de ter sido baixo o grau de culpa do devedor e elevado o montante dos danos, a lei faculta ao
juiz que reduza equitativamente o valor da indenização. Neste caso, distribuem-se, por equidade, os danos
entre a vítima e o responsável.
De outro lado, cabe a redução equitativa qualquer que seja a natureza dos danos a indenizar. A
indenização compensatória tanto dos patrimoniais como dos extrapatrimoniais pode ter o valor
influenciado pelo grau de culpa do devedor. Especialmente na fixação do valor dos danos morais,
deve o juiz fazer a ponderação equitativa, quando tiver sido de menor gravidade a culpa do
devedor; com efeito, neste caso o impacto da distribuição equitativa no patrimônio do credor será
menor ou, por vezes, neutro. Se, numa determinada hipótese, têm os tribunais fixado o dano
moral em torno de 500 salários mínimos, o juiz pode, diante da pouca gravidade da culpa do
devedor, reduzir a indenização correspondente a 400 ou 300 salários mínimos, por exemplo.
1.1.2. Culpa concorrente do credor
É possível, e não raro, que o dano tenha decorrido de culpa concorrente das partes. Pode-se
verificar a concorrência da culpa do credor para o prejuízo tanto nas hipóteses regidas pela
responsabilidade subjetiva como pela objetiva. Se os motoristas dos dois veículos colidentes
trafegavam em velocidade excessiva, não se pode atribuir a culpa pelo acidente a nenhum deles
isoladamente (RT, 791/367). Se o consumidor comprovadamente sabia do recall e, mesmo assim,
não levou o veículo ao conserto, é dele também em parte a culpa pelos danos do acidente de
consumo que vier a ocorrer. Se o empregado concordou em executar tarefa perigosa para a qual
não estava habilitado e o empregador não se opôs, há concorrência de culpas (RT, 797/306).
São duas as formas de o direito da responsabilidade civil tratar a concorrência de culpa da
vítima: considerá-la excludente de responsabilidade ou fator de redução da indenização. Nos
Estados Unidos, em que a responsabilidade civil é matéria de competência estadual e não da
Federação, varia de estado para estado a disciplina legal aplicável. Alguns estados norteamericanos adotam o princípio da contributory negligence, em que a vítima que concorreu
culposamente para o evento danoso perde o direito à indenização. Outros consagram princípio
diverso, da comparative negligence, em que a vítima, malgrado o concurso de culpa, tem direito à
indenização, mas em valor reduzido proporcionalmente à sua participação no evento danoso.
Richard Posner registra, a propósito, que o único estudo empírico disponível concluiu ser menor o
cuidado tomado pelos motoristas nos estados em que vigora o comparative negligence
(1992:171/175). A confirmar-se tal conclusão em outros estudos, seria o caso de se considerar a
concorrência de culpa como excludente de responsabilidade uma alternativa melhor, no contexto da
política de prevenção de acidentes.
No direito brasileiro vigente, de qualquer modo, a concorrência de culpa do credor não influi
na questão da existência da obrigação de indenizar. Esta se constitui, mesmo que tenha havido
culpa grave do prejudicado no evento danoso. Tem ela importância apenas na questão
concernente à extensão da obrigação. Quando o credor contribuiu, com sua conduta culposa, para
o dano, sua indenização não pode ser integral; deve ser reduzida proporcionalmente ao grau das
culpas dos sujeitos envolvidos. Diz a lei que a concorrência de culpa do credor dá lugar à redução
proporcional da indenização: “se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a
sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do
autor do dano” (CC, art. 945).
A redução proporcional por concorrência de culpa cabe, também, em qualquer hipótese de
responsabilização. Não há, na lei, nenhuma discriminação que autorize o intérprete a considerá-la
inaplicável, por exemplo, à responsabilidade objetiva. Se para o acidente, além dos buracos na
pista da rodovia, foi decisivo também o excesso de velocidade do motorista, há culpa concorrente e
o valor da indenização deve ser proporcional, a despeito de ser objetiva a responsabilidade da
concessionária (RT, 785/255). Ademais, a regra da redução por concorrência de culpa deve ser
prestigiada até mesmo para evitar-se o enriquecimento sem causa daquele que conscientemente
busca envolver-se num evento danoso (claro, de repercussões que não o incomodam em demasia)
com o objetivo único de pleitear a indenização. É o caso, por exemplo, daqueles que, tendo o
cheque devolvido pelo banco indevidamente, não se preocupam em esclarecer logo o assunto.
Aguardam a comunicação da ocorrência ao cadastro de emitentes de cheques sem fundos (CCF),
para que tenha fundamento o seu futuro pleito judicial de responsabilização. Se é certo que ao
demandante, na maioria das vezes, não interessa suportar os danos, não se deve ser ingênuo a
ponto de desconhecer a figura da “vítima profissional”. De qualquer modo, mesmo que não tenha
havido a intenção de ser envolvida pelo dano, a culpa concorrente da vítima é ato ilícito;
corresponde a conduta reprovável pela sociedade. O credor que contribuiu para a ocorrência do
prejuízo e o simplesmente alcançado pelo dano não podem ser tratados da mesma forma. Em
suma, tanto na responsabilidade civil subjetiva como na objetiva, se o credor concorreu
culposamente para a ocorrência do prejuízo, só terá direito à indenização parcial, e deve suportar
a parte do valor dos danos correspondente à proporção de sua culpa.
É obrigatória a redução proporcional da indenização independentemente da natureza do dano.
A culpa concorrente da vítima reduz o crédito tanto da indenização dos danos patrimoniais como
dos extrapatrimoniais. Se o prejuízo no patrimônio e a dor experimentada pelo sujeito ativo
deveram-se, em parte, à sua própria negligência, imprudência, imperícia ou ato intencional, o
valor da indenização deve ser fixado de modo a refletir esse fato.
Sempre que a vítima tiver concorrido, com sua conduta culposa, para a ocorrência do evento danoso,
determina a lei que o valor da indenização reflita a proporção de sua participação. A redução proporcional é
devida, mesmo nas hipóteses de responsabilidade objetiva e de compensação de danos extrapatrimoniais.
Diferentemente da redução equitativa em função do leve grau de culpa do devedor – que é uma
faculdade aberta pela lei ao juiz –, a relacionada à concorrência da culpa do credor é impositiva.
Quer dizer, tendo o credor contribuído culposamente para o dano, o juiz não pode deixar de
reduzir o valor do seu crédito pela indenização.
Por fim, havendo concorrência de culpa, é provável que as partes da relação obrigacional sejam
reciprocamente credora e devedora. No acidente de trânsito em que os dois motoristas foram
culpados, cada um deles deve ao outro a indenização pelos danos que causou. Dá-se, então, a
compensação total ou parcial. Compensam-se totalmente as obrigações recíprocas quando os
danos sofridos por cada parte se equivalem. Aqui, ninguém deve nada a ninguém. A compensação
parcial ocorre, por sua vez, quando são diversos os montantes dos danos experimentados por cada
sujeito obrigado. Se apenas um dos veículos capota ou se choca a um poste em razão do acidente
causado por culpa concorrente, é provável que o crédito por indenização titularizado pelo seu
proprietário supere o do outro. Também é relevante, para que se verifique a compensação, o
ajuizamento das ações pelos dois sujeitos, que serão julgadas simultaneamente (conexão de
causas), ou a apresentação de reconvenção pelo primeiro a ser demandado (ação do réu contra o
autor dentro do mesmo processo). Se apenas um dos envolvidos no acidente ingressa em juízo
atrás da indenização, e o réu limita-se a contestar a demanda, em sendo acolhida a ação, não
haverá créditos a compensar, mas apenas a obrigação de o condenado indenizar o demandante.
1.2. Indenização tarifada
A indenização é tarifada quando a lei estabelece limite para sua fixação pelo juiz. Por razões
diversas, pode a lei considerar que determinado dano deva ser suportado em parte pela vítima por
não atender ao interesse público a imputação ao sujeito passivo de responsabilidade por seu valor
integral.
Em razão do princípio da indenidade, a tarifação da indenização tem sido desprestigiada. A
jurisprudência não tem aplicado, por exemplo, os limites estabelecidos na Lei n. 7.565/86 (Código
Brasileiro de Aeronáutica – CBA) para a responsabilização civil do transportador aéreo, construtor
aeronáutico e empresa de administração de aeroporto. As tarifas são, por exemplo: 3.500 OTNs por
passageiro ou tripulante, para a responsabilidade por danos pessoais (art. 257); 150 OTNs em caso
de atraso do transporte (art. 257) ou dano, perda ou avaria de bagagem (art. 260); 3 OTNs por
quilo, para atraso, dano, perda ou avaria de carga, salvo declaração especial de valor (art. 262) etc.
Em função da indexação das tarifas em Obrigações do Tesouro Nacional (OTNs), que já não mais
circulam, é necessário proceder-se à atualização dos limites legais, mediante a substituição do
indexador (RT, 799/243). Atualizada, a tarifa estabelece o valor máximo da indenização devida. No
plano internacional, convenções também limitam a responsabilidade civil das empresas de
aviação (RT, 785/256). O CBA afasta a limitação da responsabilidade civil nas hipóteses de dolo ou
culpa grave da empresa devedora, embora a definição dada a esta última corresponda,
tecnicamente, à de dolo indireto (art. 248, § 1.º). A vítima de acidente aéreo, segundo a lei, só tem
direito à indenização completa de seus prejuízos quando provar a intenção da empresa
demandada, ou de seus prepostos, no sentido de provocar o resultado danoso ou a de correr o
risco de causá-lo (RT, 790/335).
Carlos Roberto Gonçalves, um dos mais profundos doutrinadores brasileiros da atualidade, em
matéria de responsabilidade civil, apoiando-se em precedente do STJ, sustenta que nenhum dos
dispositivos de tarifação da indenização por danos morais foi recepcionado pela ordem
constitucional inaugurada em 1988 (2002:40/41). De fato, como a Carta em vigor assegura a
“indenização por dano material, moral ou à imagem” no dispositivo referente ao direito de
resposta (art. 5.º, V), sem estabelecer qualquer limitação, tem a doutrina concluído que a lei
ordinária não poderia tarifá-la.
A limitação da responsabilidade pelos danos associados ao transporte aéreo, contudo, justificase como medida necessária à viabilização econômica da atividade. Os riscos do ar devem ser
repartidos entre a empresa transportadora e os passageiros, para possibilitarem preços
relativamente acessíveis a estes e capacidade de investimento para aquela (cf. Rodrigues,
2002:239/246). Como os acidentes aéreos costumam implicar enormes danos materiais e pessoais,
e, dentro duma margem estatística, não são evitáveis, a repartição dos riscos entre fornecedor e
consumidor do serviço é necessária.
Ainda em relação à tarifação dos danos associados ao transporte aéreo, têm doutrina e
jurisprudência considerado que ela não mais subsiste desde a vigência da Constituição de 1988. O
argumento aponta para a mudança operada na extensão da responsabilidade objetiva do Estado às
pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos (CF, art. 37, § 6.º). Antes da
Carta em vigor, a norma constitucional estabelecia a objetivação da responsabilidade, no preceito
equivalente, apenas às pessoas jurídicas de direito público. As empresas de transporte aéreo e de
infraestrutura aeronáutica encaixam-se, sem dúvida, nesse conceito: são de direito privado e
exploram serviço público. Em seguida, o argumento contrário à recepção da norma tarifadora
conclui da responsabilidade objetiva constitucional a impossibilidade de limitação. Não havendo
limite para a responsabilidade civil do Estado, entende Carlos Roberto Gonçalves, em suas
atualizadas lições sobre o tema, que também não poderia haver para as concessionárias e
permissionárias de serviços públicos, por terem o mesmo fundamento constitucional (2002:294).
Há, também, os que reputam as normas de tarifação do CBA revogadas pelo CDC (RT, 815/366).
Indenização tarifada é a limitada pela lei para compatibilizar o interesse privado da vítima voltado à
indenização dos danos e um interesse público. O Código Brasileiro de Aeronáutica também tarifa a
responsabilidade das transportadoras aéreas, construtoras aeronáuticas e empresas de infraestrutura
aeroportuária, para viabilizar a acessibilidade dos preços dos serviços de transportes aéreos e a preservação
da capacidade de investimentos delas.
Considero, contudo, ainda vigentes e constitucionais os preceitos do CBA que tarifam a
responsabilidade civil. Deve-se, com efeito, distinguir entre os pressupostos de constituição da
obrigação de indenizar e os critérios de fixação do valor da indenização – aqueles são pertinentes
à existência da obrigação, estes à extensão. Não há nenhuma incompatibilidade entre a
objetividade e a tarifação da responsabilidade civil, porque dizem respeito a aspectos diversos da
matéria. Alguém pode ser responsabilizado independentemente de culpa dentro de limites, se o
interesse público – expresso em lei – assim o recomendar. A imputação de responsabilidade
objetiva às pessoas de direito privado prestadoras de serviço público diz respeito à existência da
obrigação, mas não à sua extensão. Trata-se, a meu ver, de salto lógico concluir das normas
constitucionais invocadas a proibição da indenização tarifada pela lei ordinária.
Quanto à alegada revogação do CBA pelo CDC, deve-se rejeitar o argumento em vista da
especificidade das normas de tarifação nas indenizações devidas aos consumidores de serviços
ligados aos transportes aéreos, que subsistem à entrada em vigor dos preceitos gerais do código
consumerista. A lei geral, lembre-se, não revoga a lei especial.
Antes de encerrar, para registro histórico, lembro a discussão sobre a tarifação de danos
extrapatrimoniais relacionados ao exercício da liberdade de manifestação do pensamento. A
inconstitucionalidade desta tarifação foi afirmada pela jurisprudência, na fixação da indenização
por ofensa à honra por informação injuriosa, caluniosa ou difamatória veiculada pela imprensa. A
Lei n. 5.250/67 (Lei de Imprensa) tarifava a responsabilidade civil dos jornalistas (art. 51) e das
empresas de comunicação (art. 52): aqueles respondiam, conforme o caso, até limites máximos
que variavam de 2 a 20 salários mínimos, enquanto estas tinham a responsabilidade limitada a
200 salários mínimos.
O STF, em 2009, considerou não ter sido a Lei de Imprensa recepcionada pela Constituição
Federal, razão pela qual deixou de vigorar, desde 1988, a tarifação nela prevista. Ela era, contudo,
justificável, tendo em vista a necessidade de se compatibilizarem dois valores extremamente
importantes para a sociedade: de um lado, o interesse privado à própria honra, expressão de um
direito da personalidade, e, de outro, o público na liberdade de imprensa e manifestação do
pensamento. A tarifação da indenização visava, em suma, impedir que indenizações elevadas
pudessem pôr em risco a liberdade de imprensa e de manifestação do pensamento. Como a
indenização é custo da atividade jornalística, quem as suporta, no final, são os consumidores de
jornais. Tarifar a responsabilidade civil de jornalistas e empresas de comunicações atende ao
interesse público de qualquer sociedade democrática no tocante à ampla difusão das informações.
Em cidades de menor porte, uma só condenação por responsabilidade civil pode levar à
falência seu único jornal, com prejuízo indiscutível à população da região. Mas os dispositivos
estabelecendo os limites tarifários da lei não têm tido ampla eficácia. Algumas doutrinas e
jurisprudências consideravam inconstitucional a tarifação das indenizações morais estabelecida
na Lei de Imprensa.
2. Danos patrimoniais
A indenização mede-se pela extensão do dano. É este o critério geral para a fixação do valor
devido a título de ressarcimento dos danos patrimoniais (CC, art. 944, caput). Quantifica-se, em
decorrência, o valor da redução experimentada pelo patrimônio do credor, em todos os seus
aspectos, e fixa-se, então, o principal da prestação do devedor. Sobre ele incidem juros, correção
monetária e honorários de advogado, nas condições examinadas para as obrigações em geral (Cap.
18).
Para ser completa, a indenização dos danos patrimoniais deve abranger também os lucros
cessantes, e não apenas as perdas ocorridas. Isto é, na avaliação da redução experimentada pelo
patrimônio do credor, não se pode ignorar o custo de oportunidade, quer dizer, o potencial de
geração de riquezas representado pelos bens dele suprimidos pelo evento danoso. Se o veículo
acidentado era usado pelo proprietário numa atividade econômica qualquer, a indenização não
estará completa se restrita aos reparos. O bem danificado criava oportunidades de ganhos para o
seu titular, que, por isso, deve receber também o valor do lucro perdido em razão dos dias
parados. A norma do art. 402 do CC, portanto, aplica-se integralmente à liquidação dos danos
cobertos pela responsabilidade civil: “as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que
ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar”.
Ao fixar como critério geral da indenização dos danos patrimoniais a extensão do dano, a lei
afasta qualquer forma de enriquecimento do credor. O valor da indenização deve limitar-se a
repor, da forma mais completa possível, o patrimônio da vítima ao estado anterior ao evento
danoso. Apenas na indenização por danos extrapatrimoniais verifica-se necessariamente o
enriquecimento do credor, que, por ter causa jurídica legítima, é objeto de proteção do direito
(Cap. 20, item 5). A vítima de danos exclusivamente patrimoniais, portanto, não pode enriquecer
com o recebimento da indenização.
Ao lado do parâmetro geral de mensuração da indenização dos danos patrimoniais segundo a
extensão do dano, a lei estabelece também alguns critérios especiais. Destinam-se a nortear a
liquidação do dano em casos específicos. São eles:
a) homicídio. A lei apresenta elenco exemplificativo de reparações necessariamente incluídas
na indenização devida pelo homicida: a.i) “pagamento das despesas com o tratamento da vítima,
seu funeral e o luto da família” (CC, art. 948, I); e a.ii) “prestação de alimentos às pessoas a quem o
morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima” (inciso II). Em relação
às reparações mencionadas em a.i, nunca se discutiu sua pertinência quem quer que tivesse
morrido. As discussões giravam em torno do padrão do funeral, da indenizabilidade das despesas
com a construção de jazigo e com a realização das cerimônias fúnebres da religião professada pelo
defunto ou seus familiares. Não há dúvidas de que a indenização deve ser a mais completa
possível, abrangendo todas as despesas que não teriam sido feitas, pelo menos nãonaquele
momento, se não fosse o homicídio.
Em relação, porém, às reparações referidas em a.ii, nota-se a evolução da jurisprudência no
tratamento do tema em função da pessoa falecida. Quando morto o homem, presumia-se ser ele o
responsável pelo sustento da família. Os filhos têm, neste caso, direito à indenização que lhes
garanta sustento e educação. Devem receber do homicida o que receberiam do pai, caso ele não
tivesse falecido. Os limites temporais para essa indenização são dois, prevalecendo o que primeiro
se verificar: de um lado, a expectativa de vida do provedor, mensurada em função da dos
brasileiros em geral – 65,5 anos para os homens e 72 para as mulheres, segundo a OMS (RT,
802/194; 799/288); de outro, a idade em que normalmente as pessoas com oportunidade de estudo
concluem a formação superior e podem prover o próprio sustento – 25 anos (cf. RT, 806/137).
Observa-se, que se tinha a vítima mais de 65 anos, o homicida vem sendo condenado a indenizar
seu ato pelo prazo correspondente à sobrevida estimável de 5 anos (RT, 785/363).
Quando morta a mulher administradora do lar (isto é, sem trabalho fora de casa) ou o filho
menor, a jurisprudência evoluiu da negativa à aceitação da indenizabilidade. No caso da
administradora do lar, de início considerava-se que o marido deixava de ter despesas com a sua
morte, não havendo o que se indenizar portanto. Hoje, reconhecendo-se a importância e valor do
seu trabalho na organização da casa, imputa-se ao homicida também a obrigação de indenizar os
danos patrimoniais correspondentes infligidos aos que dele se beneficiavam (marido, filhos,
ascendentes etc.). De modo similar, quando morto filho menor sem atividade remunerada,
também evoluiu no mesmo sentido a jurisprudência. No início, quando o incapaz não tinha ainda
atividade remunerada, concluía-se pela inexistência de danos patrimoniais, já que não contribuía
para as despesas da casa. Hoje, entende-se que é devida a indenização pelos danos patrimoniais
correspondentes caso as condições econômicas da família indiquem que o menor, se tivesse
sobrevivido, começaria a trabalhar assim que possível e contribuiria para as despesas do lar
enquanto morasse com os pais (isto é, até os 25 ou 30 anos). Indeniza-se, nesse caso, a frustração
da legítima expectativa de futuro amparo na velhice que os pais nutrem em relação aos filhos (RT,
790/288; 786/301).
O valor da reparação a.ii tem correspondido a dois terços da remuneração aferida pelo falecido,
na presunção mais que razoável de que pelo menos um terço de seus ganhos era despendido com
seu próprio sustento (RT, 791/367). O devedor é condenado a pagá-la em prestações mensais,
corrigidas pela variação do salário mínimo. Dependendo da condição econômica do devedor, o
juiz tem-no obrigado a constituir um capital (p. ex., investimento em títulos públicos, por meio de
fundo administrado por instituição financeira) que garanta o pagamento das indenizações
mensais (RT, 799/289).
O critério geral para quantificação do valor da indenização pelos danos patrimoniais é o da extensão do
prejuízo. Compreende as perdas efetivamente sofridas e os lucros razoáveis não ganhos.
Além desse critério geral, são previstas normas específicas para as hipóteses de homicídio, lesão à saúde,
lesão à capacidade de trabalho, danos por perícia de profissionais da saúde e usurpação ou esbulho de coisa.
b) Lesão à saúde. O critério da lei para a indenização das lesões à saúde é o do ressarcimento
“das despesas de tratamento e dos lucros cessantes até o fim da convalescença, além de algum
outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido” (CC, art. 949). Na verdade, embora abrigado
num preceito específico, o critério reproduz o parâmetro geral das perdas efetivamente sofridas e
dos razoáveis lucros não ganhos. Desse modo, se a vítima de atropelamento submeteu-se a cirurgia
e só pôde retornar à sua atividade produtiva após meses de recuperação, sua indenização abrange
o valor das despesas médico-hospitalares e o dos ganhos não aferidos no período.
O dano estético que pode acarretar a lesão à saúde é sempre extrapatrimonial (subitem 3.3.e) e
esporadicamente patrimonial. Verifica-se a última hipótese se a vítima vivia da imagem, como os
artistas ou modelos (Cap. 7, subitem 4.4.3), e esta restou prejudicada pelo dano estético. Aqui, o
causador da lesão indeniza também danos patrimoniais, representados pelo comprometimento da
expectativa de razoáveis ganhos.
c) Lesão à capacidade de trabalho. Se a vítima teve sua capacidade de trabalho inteiramente
comprometida ou diminuída, a indenização deve compreender, “além das despesas do tratamento
e lucros cessantes até ao fim da convalescença (...), pensão correspondente à importância do
trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu” (CC, art. 950, caput). O devedor
da indenização, assim, é condenado a pagar mensalmente à vítima a remuneração equivalente à
que recebia em caso de inabilitação ou parte proporcional, se ocorreu apenas redução da
capacidade de trabalho. Na apreciação do caso em julgamento, deve o juiz compatibilizar os
interesses da vítima em ser indenizada da forma mais completa possível com os da integração dos
portadores de deficiência à sociedade. A indenização, em suma, não deve ser discriminatória no
sentido de imputar à vítima a pecha da inutilidade. Se o acidentado fica tetraplégico, é provável
que sua inabilitação para atividades laborativas seja plena. Mas, se perdeu um membro, não deve
ser desestimulado a continuar produtivo. No exemplo de Silvio Rodrigues, o violonista que perde o
braço num acidente não pode mais desempenhar seu trabalho de músico, mas não está excluído
de outros mercados de trabalho (2002:233).
O limite temporal da indenização, neste caso, é o da duração da vida da vítima. Em outros
termos, o devedor responsabiliza-se pelo pagamento de uma pensão vitalícia ao credor (RT,
791/297). Aqui, não tem sentido levar em conta a expectativa de vida, já que o lesado sobreviveu ao
evento danoso. Se o prejudicado era menor e ainda não exercia nenhuma atividade lucrativa, tem
decidido a jurisprudência que o valor da pensão seja liquidado quando o menor alcance a idade
em que provavelmente começaria a trabalhar (entre 14 e 25 anos, dependendo da situação
econômica da família), para que haja elementos mais confiáveis ao cálculo da redução ou do
comprometimento da capacidade laborativa.
Admite a lei que, por escolha do credor, a indenização arbitrada pelo juiz em razão da
diminuição ou perda da capacidade laborativa seja-lhe paga não em prestações mensais, mas de
uma só vez (CC, art. 950, parágrafo único). Esta alternativa, embora mencionada na lei apenas para
o caso de lesão à capacidade de trabalho, estende-se a qualquer hipótese de crédito por
indenização paga em prestações (Rodrigues, 2002:217).
d) Profissionais da saúde. Os profissionais da saúde – médicos, enfermeiros, dentistas,
nutricionistas etc. – respondem subjetivamente pelos danos que sua imperícia ocasionar à vida ou
integridade física dos pacientes por eles atendidos (Cap. 22, subitem 3.2). A lei determina que se
observem, neste caso, os mesmos critérios de mensuração da indenização fixados para as
hipóteses de homicídio, lesão à saúde e à capacidade de trabalho aqui examinados (CC, art. 951).
e) Usurpação ou esbulho. Na fixação do critério de mensuração da indenização por usurpação
ou esbulho, prevê o direito positivo brasileiro a sua única hipótese de reparação in natura.
Consiste na restituição da coisa, se ainda existir ao tempo do cumprimento da obrigação. Esclarece
a lei que a devolução do bem usurpado ou objeto de esbulho não exonera o devedor do pagamento
de valor a título de reparação pela deterioração e lucros cessantes (CC, art. 952, primeira parte). Se
alguém subtrai o táxi pertencente ao vizinho e se vale do veículo para ganhar dinheiro
transportando passageiros recolhidos na rua, fica obrigado a restituí-lo ao proprietário, pagar o
correspondente ao desgaste do bem durante o período do desapossamento e os ganhos que tiver
auferido.
Se a coisa não existe mais ao tempo da restituição, a indenização deve compreender o seu
valor, estimado pelo preço de mercado (art. 952, parágrafo único, primeira parte). Continua, de
qualquer modo, o devedor obrigado ao pagamento da reparação pela deterioração (desvalorização
do veículo) e dos lucros cessantes. Com isso, são compensados os danos patrimoniais. Se a coisa
usurpada ou objeto de esbulho tinha especial valor para seu dono (valor de afeição), é devida ainda
a indenização extrapatrimonial (subitem 3.3.f).
3. Danos extrapatrimoniais ou morais
A trajetória da indenização por danos morais no direito brasileiro pode ser dividida em duas
fases nítidas: antes e depois de 1988. A fase anterior é marcada pela discussão sobre seu
cabimento; vou chamá-la fase do questionamento. A segunda, pela superação de qualquer dúvida,
na doutrina e jurisprudência, acerca de sua pertinência; chamo-a fase do consenso.
Na fase do questionamento, dividiam-se os estudiosos e julgadores em duas grandes posições.
De um lado, punham-se os que rejeitavam a indenização por danos morais. Seus frágeis
argumentos iam desde a afirmação da imoralidade do ato de compensar a dor com dinheiro até a
impossibilidade de calcular o valor exato da compensação (cf. suma das teses de rejeição em Diniz,
2003, 7:87/98). Não é o caso de aprofundá-los e discuti-los neste compêndio, tendo em vista serem
hoje meras curiosidades históricas, inoperantes na interpretação e aplicação do direito. A rejeição
da indenização por danos morais predominou na doutrina e jurisprudência até os anos 1960.
Na admissão da indenizabilidade dos danos morais, na fase de questionamento, predominavam
os entendimentos de aceitação relativa. E, curiosamente, opunham-se, de um lado, os que só
aceitavam os danos morais se houvesse também condenação em danos patrimoniais aos que, de
outro, só os admitiam quando não houvesse nenhum dano patrimonial. Aqueles argumentavam
que a indenização não poderia limitar-se aos danos morais (por qualquer razão próxima às teses
de rejeição), mas que, em havendo danos patrimoniais, a compensação pela dor deveria integrar o
ressarcimento do credor, para que fosse completo (RT, 496/172). Se não tivesse havido dano
patrimonial, porém, não caberia compensar exclusivamente a dor. Os últimos consideravam, por
sua vez, que o instituto se destinava apenas àquelas situações em que o ilícito não gerava prejuízos
pessoais ou materiais, mas só ofensa à honra do credor, como no protesto indevido de títulos.
Neste caso, para não ficar a vítima sem qualquer indenização, caberia compensar-lhe os danos
extrapatrimoniais. De outro lado, se os danos patrimoniais já estavam adequadamente compostos,
não caberia acrescer-se nada a título de compensação pelos morais (RT, 503/237; 501/192) (cf.
Rodrigues, 2002:189/200; Dias, 1954, 2:393/458; Gomes, 1961:271). A divergência foi superada em
favor da possibilidade de cumulação, já na fase do consenso, pela Súmula 37 do STJ (“são
cumuláveis as indenizações por danos material e moral oriundos do mesmo fato”).
No plano legislativo, o Código Beviláqua trazia já algumas figuras que sugeriam a
indenizabilidade dos danos extrapatrimoniais – como o direito ao dote titularizado pela mulher
virgem e solteira que havia sido deflorada por quem se recusava a casar com ela, o cálculo da
indenização do ofendido na honra que não tivesse sofrido dano patrimonial etc. Além disso, a
indenização por danos morais começou a ser especificamente mencionada em alguns diplomas
esparsos, como o Código Brasileiro de Telecomunicações (1962), a Lei de Imprensa (1967), o Código
Eleitoral (1965) e a Lei dos Direitos Autorais (1973) (Carmignani, 1996:41 e 44).
Mas, o que assinala a transição da fase do questionamento para a do consenso é a Constituição
Federal de 1988 (Zuliani, 2002:202). Em dois dispositivos o constituinte fez menção ao instituto; a
partir de então, todos, repentinamente, puseram-se de pleno acordo, sem maiores elaborações, no
sentido de que essas normas constitucionais resolviam em definitivo a questão (cf. Pereira,
1989:58). Os danos morais ganham, então, autonomia em face dos patrimoniais, e seu cabimento
passa a ser admitido sem reservas pela doutrina e jurisprudência.
Os dois dispositivos da Constituição referentes aos danos extrapatrimoniais inserem-se no art.
5.º, sobre direitos e garantias fundamentais. São os incisos V (“é assegurado o direito de resposta,
proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral e à imagem”) e X (“são
invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”). Embaladas na vaga
modernizante da nova Carta, doutrina e jurisprudência não deram atenção ao fato de o texto
constitucional limitar-se às hipóteses de lesão a certos direitos da personalidade, e convergiram
para a conclusão da indenizabilidade dos danos morais em toda e qualquer situação de prejuízo.
Há julgado, por exemplo, em que o dispositivo constitucional é invocado como fundamento da
indenização moral estabelecida em favor da vítima de coação na assinatura de documentos (RT,
804/226). Penso que a Constituição de 1988 marca a aceitação absoluta dos danos morais não
propriamente em razão do conteúdo daqueles dispositivos, mas de sua hierarquia. Ninguém mais
precisava sustentar desconfortáveis argumentos do passado, porque estava sendo inaugurada uma
nova ordem jurídica.
No direito brasileiro, considera-se, desde a Constituição Federal de 1988, que a indenização pelos danos
morais é admissível em qualquer hipótese. O Código Reale estipula seu cabimento na responsabilidade civil
subjetiva. Normas esparsas preveem a indenização pelos danos morais no contexto da responsabilidade civil
objetiva, mas não existe, em relação a esta, nenhum preceito de âmbito geral.
A rigor, contudo, mesmo após a entrada em vigor do Código Reale, a única norma na ordem
jurídica brasileira que prevê, como regra de âmbito geral, a indenização pelos danos morais
insere-se na disciplina da responsabilidade civil subjetiva. É a resultante dos arts. 186 e 927 do CC:
“aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar
dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”; “aquele que, por ato ilícito
(...), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Em relação à responsabilidade civil objetiva,
há normas de âmbito específico, como, por exemplo, as pertinentes aos acidentes de consumo
(CDC, art. 6.º, VI: é direito básico “do consumidor a efetiva prevenção e reparação de danos
patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”). Não existe, contudo, norma geral de
indenizabilidade dos danos morais na disciplina da responsabilidade civil objetiva.
3.1. Função dos danos morais
Todo evento danoso importa, para quem o sofre, no mínimo algum desconforto ou dissabor. Se
alguém bate no meu carro, ainda que pague todas as despesas de conserto e o táxi durante sua
realização, sofrerei algum desgosto com a perda de tempo, chateação com o dano, adiamento de
alguns compromissos etc. São aborrecimentos plenamente absorvíveis pela generalidade das
pessoas (RT, 789/193; 789/256). Também o causador do acidente experimentará dissabores, mas
destes – grandes ou pequenos – a lei não cuida.
Por mais variado que seja o seu grau, não há evento danoso sem sofrimentos para a vítima;
sofrimentos de ordem não patrimonial. A grande maioria deles não é e não deve ser objeto de
preocupação pelo direito. Cada um cuida de seus humores (RT, 802/309). A indenização por danos
morais é uma compensação pecuniária por sofrimentos de grande intensidade, pela tormentosa
dor experimentada pela vítima em alguns eventos danosos. Imagine o que sente a mulher
estuprada, o pai que assiste ao bárbaro espancamento do filho, o paciente vítima de erro médico
numa cirurgia plástica, o trabalhador honrado contra quem foi tirado indevido protesto de título.
Não são sofrimentos irrelevantes, desprezíveis, facilmente absorvíveis, mesmo pelas pessoas mais
amadurecidas e experimentadas. Agride os valores de justiça cultivados pela civilização do nosso
tempo deixar de atender a esses doídos desdobramentos dos eventos danosos.
A dor não pode ser desfeita. Mesmo sensações posteriores de vingança ou de alívio financeiro
não a desfazem. O único instrumento, na sociedade democrática dos nossos tempos, que pode
servir como resposta ao anseio da vítima de ver também este aspecto do evento danoso
equacionado é o dinheiro. O devedor da obrigação de indenizar paga ao credor certa quantia com
o objetivo específico de compensar a dor. O pagamento da indenização não repõe os danos morais,
apenas os compensam (Reis, 1991:103). Não há ressarcimento, mas enriquecimento patrimonial. O
aumento do patrimônio da vítima é a única forma, atualmente desenvolvida pelo Direito, para que
sua indenização seja a mais justa possível.
Os danos morais podem ocorrer acompanhados ou desacompanhados dos patrimoniais. A
rigor, quem fala em danos está-se referindo aos efeitos do evento, que podem projetar-se no
patrimônio da vítima ou além dele. Têm-se eventos de efeitos exclusivamente patrimoniais, como
o acidente de trânsito sem danos pessoais; de efeitos exclusivamente extrapatrimoniais, como o
protesto indevido de título sem perda de crédito; e de efeitos patrimoniais e morais, como o
acidente de trabalho (Lotufo, 1996). Há quem distinga entre danos extrapatrimoniais e morais,
propondo que aqueles correspondem aos sofrimentos compensáveis que acompanham os
prejuízos patrimoniais e estes os manifestados isoladamente (Gomes, 1961:271). Aqui, não se faz a
distinção: danos extrapatrimoniais e morais são expressões sinônimas.
A função dos danos morais é exclusivamente compensar a dor extremada da vítima, quando
ela se verifica. Quer dizer, só cabe obrigar o devedor a compensar os danos morais do credor
quando este tiver experimentado um sofrimento atroz, de envergadura. Os juízes devem ser muito
prudentes ao decidir pelo cabimento da indenização, para que não se deixem enganar pela
simulação da dor. Quanto menos doloroso tiver sido o evento danoso para a vítima, mas fácil será
fingir o sofrimento. Não cabem presunções. Afirmar, por exemplo, que a dor da mãe ou do pai
pela perda do filho independe de prova, por ser evidente, é uma ingenuidade imperdoável num
magistrado.
A única função dos danos morais é compensar a pungente dor que algumas vítimas sofrem. É
importante repisar o conceito para desvestir por completo a indenização dos danos morais de
qualquer caráter sancionatório (cf. Iturraspe, 1982, 4:175/179). Apesar de várias decisões que os
instrumentalizam como medida dissuasória e preventiva (RT, 803/233; 785/347), objetivam os
danos morais tão somente compensar a dor; não se destinam a sancionar o devedor ou prevenir
novos eventos danosos. Eles não se confundem com a indenização punitiva (punitive damages),
cujo objetivo, sim, é a penalização do descaso absoluto pelos direitos alheios (item 4).
Na tecnologia jurídica brasileira, há uma enorme confusão sobre o tema. A lição de Carlos
Alberto Bittar enfatiza a ligação entre a indenização dos danos morais e o corretivo à conduta do
devedor. Na quantificação dos danos, ensina, o montante deveria servir de advertência ao lesante
quanto à repulsa do ato lesivo. Deveria ser significativo, em vista da condição econômica do
devedor, de modo a desestimulá-lo (1993:220/222; 1994). Também Maria Helena Diniz, ao apontar
a natureza jurídica da reparação moral, prioriza o aspecto que chama de penal. Aliás, mesmo ao
mencionar seu outro aspecto, chamado compensatório ou satisfatório, a ilustre doutrinadora
reforça a ideia dos danos morais como medida de repressão, justificando-os como resposta ao
menoscabo a interesses jurídicos extrapatrimoniais da parte do lesante (2003,7:98). A confusão
entre danos morais e indenização punitiva também a fazem Aguiar Dias e Pontes de Miranda (cf.
Dias, 1954, 2:439/440).
Os danos morais têm a função específica de compensar a dor. Evidentemente, como ingrediente
temático da responsabilidade civil, são relacionáveis em tese às funções gerais da disciplina (Cap.
21, item 4). Desse modo, no contexto da responsabilidade civil subjetiva, podem até ser entendidos
como sanção, já que o pressuposto desta é a prática de ato ilícito. Fora deste contexto, porém,
afirmar a função sancionatória dos danos morais é inconsistente. Na responsabilidade objetiva, os
danos morais decididamente não têm, não podem ter, o sentido de pena. Neste caso, o devedor
está respondendo por danos provenientes de ato lícito e obriga-se a indenizar não porque tenha
feito algo que não deveria, mas simplesmente porque está em condições econômicas de socializar
os custos de sua atividade. Quando o sujeito de direito é responsabilizado objetivamente pelos
danos sofridos por alguém, a indenização não significa reprovação social, moral ou jurídica aos
atos praticados. Pelo contrário, abstrai-se por completo a questão da licitude ou ilicitude deles.
De qualquer modo, não se podem confundir as funções gerais da responsabilidade civil, que
variam conforme a espécie, com a específica dos danos morais. Ou seja, se o credor não tiver
sofrido dor extremada, ainda que tenha sido o dano proveniente de ato ilícito altamente
reprovável, não são cabíveis danos morais. De outro lado, se a sofreu, terá direito à compensação,
mesmo que vitimada em acidente inevitável originada de atos lícitos. Imagine que pessoa drogada
e embriagada cause dolosamente danos de monta ao estabelecimento comercial pertencente a
supermercado de rede multinacional, lançando por diversas vezes o seu veículo contra as vitrinas.
Causa o delinquente graves danos, mas exclusivamente materiais, malgrado o enorme risco a que
muitas pessoas (consumidores, transeuntes e empregados) se expuseram em razão de suas
condenáveis atitudes. Não é o caso, aqui, de danos morais, porque ninguém sofreu nenhuma
tormentosa dor. Veja, agora, outra hipótese. Apesar das muitas providências que a empresa
transportadora aérea efetivamente adota quanto à segurança dos seus voos, ocorre acidente com
diversas mortes. É devida indenização moral pela grande dor da perda de entes queridos, embora
nenhum ato ilícito tenha sido praticado.
Naquelas hipóteses em que a conduta do devedor foi particularmente repulsiva, é devida
indenização punitiva, que não se confunde com os danos morais. São funções diversas que cada
verba indenizatória cumpre. Desse modo, o motorista drogado e embriagado do exemplo acima
deve ser obrigado a pagar indenização punitiva, como forma de sancioná-lo pelos atos praticados,
enquanto a transportadora aérea não. Já num caso em que, de um lado, o credor sofre dor
extremada e, de outro, é particularmente reprovável a conduta do devedor, são cabíveis
cumulativamente os danos morais e a indenização punitiva.
Não é correto, em suma, relacionar especificamente a indenização dos danos morais a qualquer
medida corretiva da conduta do devedor, porque seu pressuposto reside na gravidade dos efeitos
extrapatrimoniais do evento danoso. Apenas a grande intensidade da dor da vítima deve ser
levada em conta na condenação do sujeito passivo no pagamento de danos morais.
A única função dos danos morais é compensar a dor da vítima, quando esta é particularmente
tormentosa, pungente. Não têm natureza de sanção, por ser irrelevante a licitude ou ilicitude da conduta do
devedor ou mesmo a especial repulsa que causa. Não se confundem, assim, com a indenização punitiva.
Para encerrar, deve-se distinguir a indenização pela dor da devida em função de distúrbios
psíquicos ocasionados pelo evento danoso. A vítima pode ter sofrido, em razão do acidente
inevitável ou do ato ilícito que a alcançou, perturbação psíquica capaz de dificultar-lhe o
rendimento no trabalho ou os relacionamentos familiares e afetivos. A mulher estuprada, o
atropelado ou o sobrevivente de desastre aéreo podem, depois do evento danoso, retrair-se social e
emocionalmente. O medo de passar de novo por evento de igual dor intimida-os. São esses efeitos
lesões à saúde mental da vítima. A indenização devida em razão delas tem natureza patrimonial
(itens 2.b e 2.c), não se confundem com os danos morais.
3.2. Titulares do crédito
Uma das questões discutidas em relação aos danos morais diz respeito aos titulares do direito
ao crédito. Quando o credor da indenização é a própria vítima, e trata-se de pessoa física com
pleno discernimento, não há dúvida de ser ela credora da indenização. Em alguns casos
específicos, porém, as características do sujeito ativo da relação obrigacional suscitam
questionamentos. São os casos seguintes:
a) Grau de parentesco com o falecido. A perda prematura de filho ou dos pais, num acidente
inevitável ou por força de ato ilícito imputável a terceiro, costuma causar dor respectivamente no
ascendente ou descendente. Costuma ser também doloroso para irmãos, tios, sobrinhos, avós,
netos, genro, nora, sogra etc. É necessário fixar um limite, um determinado grau de parentesco
além do qual não será mais indenizável o dano moral. Caso contrário, teriam direito à indenização
aqueles que, por remotas relações de parentesco, ligam-se de algum modo ao falecido. Entende-se
que a legitimidade para pleitear os danos morais cabe aos ascendentes, descendentes e colaterais
até o quarto grau apenas. A partir daí, a lei considera não existir relação afetiva suficiente para
justificar, por exemplo, a vocação hereditária (CC, art. 1.839). O mesmo critério deve ser adotado
para fins de responsabilidade civil. Se mais de um parente aduz em juízo a pretensão à
indenização moral, devem-se reunir os processos para que o demandado não seja condenado a
valores excessivos. De qualquer forma, os vínculos afetivos de cada demandante com a pessoa
falecida e a intensidade da dor por eles experimentada serão examinados de forma autônoma (RT,
788/265).
Em nenhum caso se deve, como afirmado, presumir a dor. Mas as circunstâncias a partir das
quais se considera ter sido especialmente dolorosa a experiência da perda prematura devem
variar segundo o grau de parentesco entre credor e vítima direta. Entre pais e filhos, deve ser
reconhecida a dor extremada merecedora da indenização moral a menos que alguma
circunstância particular indique que ela não ocorreu. Se não se falavam há anos, um não
frequentava a casa do outro, o filho deixara a casa paterna abruptamente – são indícios de que
talvez a relação entre eles não fosse afetiva o suficiente para justificar o pagamento dos danos
morais. Já no caso de falecer o tio num acidente, o sobrinho só deve ter direito à indenização por
danos morais se as circunstâncias específicas do caso revelarem uma especial relação afetiva entre
eles que fugisse do padrão. Em suma, quanto mais distante o grau de parentesco entre o
prematuramente morto e o demandante dos danos morais, maior deve ser a relação de afeto, para
que a dor experimentada seja juridicamente apta a gerar a obrigação. Não basta, assim, a
existência da relação de parentesco; é necessário demonstrar (por menos ou mais circunstâncias
de fato, dependendo do grau) que a morte prematura imprimiu pungente dor no espírito do
demandante.
Apenas se deve reconhecer o direito à indenização por danos morais em caso de morte prematura de
familiar aos que mantinham com o falecido relação como ascendente, descendente ou colateral até quarto
grau. Além do grau de parentesco, é necessário demonstrar o sofrimento digno de compensação pecuniária.
Tem-se reconhecido, por fim, o direito da noiva do morto aos danos morais, se provada a
seriedade do compromisso pré-nupcial (RT, 790/438).
b) Dano indireto. Os danos pessoais normalmente geram sofrimentos não apenas na pessoa
diretamente vitimada pelo acidente inevitável ou ato ilícito, mas em seus familiares mais próximos
e, eventualmente, em amigos íntimos. Em geral, se o filho sofre lesão corporal grave, que lhe
acarreta sofrimento atroz, não só ele, mas também os pais passam pela experiência dolorosa;
quando um dos cônjuges fica paralítico, o outro, se há amor entre eles, sofre também dor de
mesma intensidade; quem nutre amor fraternal sofre tanto quanto o irmão atropelado, e assim
por diante. Podem-se divisar, portanto, danos morais diretos e indiretos – estes últimos também
chamados em ricochete. Pois bem, os que sofrem dor extremada em função de ato lícito ou ilícito
que vitima pessoa querida têm direito à indenização?
O tema ainda é controvertido na doutrina e jurisprudência. De um lado, resiste-se à ideia da
indenizabilidade dos danos morais indiretos, sob o argumento de que o recebimento da
indenização pelo acidentado exclui a possibilidade de familiares receberem a compensação,
mesmo tendo sofrido dor moral. De outro, mantém-se o mesmo valor total da condenação, para
que se divida em tantos quantos forem os familiares atingidos (Cianci, 2003:77/81).
A indenizabilidade dos danos morais indiretos deve ser fixada com as mesmas cautelas
recomendadas para a identificação dos familiares de pessoa falecida merecedores da
compensação. Não se deve, em primeiro lugar, reconhecer o direito a quem mantinha com a
vítima relação de parentesco colateral de mais de quatro graus. Ademais, cabe sempre examinar
as circunstâncias do relacionamento afetivo que o unia à vítima, para conferir se era provável ter
o evento danoso causado dor extrema. Em suma, os danos morais em ricochete não devem ser
negados tão somente pelo fato de já os ter recebido a vítima direta do evento.
Os danos morais indiretos ou “em ricochete” também são indenizáveis, desde que observadas as mesmas
cautelas na aferição do sofrimento no caso de morte prematura de familiar.
c) Pessoa jurídica. A pessoa jurídica, evidentemente, não sente dor; isto é atributo exclusivo da
pessoa natural. Mas, como a lei estende a ela determinados direitos da personalidade (Cap. 8, item
9), a jurisprudência não pode deixar de considerá-la também credora por danos morais. A matéria
está pacificada na Súmula n. 227 do STJ: “a pessoa jurídica pode sofrer dano moral”.
Para saber se uma determinada pessoa jurídica é credora de danos morais, o critério é simples.
Abstrai-se sua condição de sujeito de direito não humano e a substitui por um homem ou mulher.
Se desta simulação resultar que pessoa física, posta na mesma situação da jurídica, experimentaria
dor suscetível de compensação, então não há razões para negá-la. Caso contrário, a pessoa jurídica
não é credora dos danos morais.
Pessoas jurídicas, em especial as sociedades empresárias, têm demandado, até agora,
indenização por danos morais basicamente em duas hipóteses: descumprimento de obrigação
contratual e abalo de crédito por protesto indevido de título. No primeiro caso, não obtêm sucesso.
O descumprimento de contrato não é causa de padecimento do contratante. Por mais dissabores
que causa, o inadimplemento contratual não deve ser considerado fundamento para esta
indenização. Qualquer pessoa física, posta na mesma situação, não estaria sofrendo o suficiente
para ter direito aos danos morais. Já na hipótese de protesto indevido de título, cabe a
compensação, porque igual injustiça levaria qualquer pessoa física (honesta) a experimentar
intenso sofrimento (RT, 797/222).
Vez por outra, justifica-se o pagamento de danos morais em favor da pessoa jurídica pela lesão
à sua honra objetiva, isto é, a reputação que goza. Lembra-se, então, que o protesto indevido de
títulos costuma abalar o crédito e dificultar novos negócios (cf. Motta, 1999). Isso é verdade, mas
repercussões dessa ordem do protesto indevido compõem os danos patrimoniais e não os morais.
A pessoa jurídica tem direito à indenização por danos morais se estiver numa situação em que pessoa
física normalmente sofreria dor digna de compensação pecuniária.
Assim como se tem reconhecido o direito à indenização pelos danos morais às pessoas jurídicas,
deve-se reconhecê-lo também aos entes despersonalizados (espólio, massa falida, condomínio de
edificação etc.), quando pessoa física posta na mesma situação experimentasse sofrimento digno
de compensação pecuniária.
d) Deficientes mentais. Questionou-se, de início, se as pessoas portadoras de deficiência mental
poderiam ser credoras por danos morais. Afirmava-se que elas, em razão da deficiência, pela má
compreensão dos fatos, seriam incapazes de sofrer. Puro preconceito. Se deficiente mental é
discriminado à porta de um restaurante, cujos funcionários lhe barram a entrada, seu dano é
exclusivamente extrapatrimonial e é claro que terá direito de ser indenizado. Mesmo sem ter
completa compreensão da realidade, sente angústia, medo, humilhação, principalmente pela
reação das pessoas amigas que o acompanham. Atualmente se consideram inexistentes quaisquer
motivos para negar aos deficientes mentais a indenização por dano moral.
Os deficientes mentais têm direito à indenização por danos morais, porque, apesar da incompleta
compreensão da realidade, são capazes de manifestar sentimentos dignos de compensação pecuniária.
e) Sucessores por morte. Questiona-se a transmissibilidade dos danos morais. Se a pessoa que
havia experimentado a dor extrema merecedora de compensação pecuniária falece, seus
sucessores podem demandar o pagamento? Veja que não está em questão aqui a indenização por
danos extrapatrimoniais ligados à morte prematura de familiar. Se Antonio morre num acidente
de trabalho, seu único filho e herdeiro Benedito pode ter direito à indenização por danos morais.
Neste caso, contudo, não está sucedendo o pai em nenhum direito, mas pleiteando compensação
por dano direto, pela dor que o acidente lhe infligiu. Imagine, no entanto, que Antonio teve um
cheque devolvido indevidamente. Trabalhador honesto e reiterado cumpridor de suas obrigações,
sofre com a injustiça; amargurado, nem conta o episódio ao filho. Como tem direito à indenização
pelos danos morais correspondentes, procura um advogado para promover a ação judicial. Antes
do ajuizamento do processo, Antonio morre num acidente de trânsito. Neste caso, Benedito, que
nada sofreu com a devolução indevida do cheque, é sucessor do pai no direito?
Apegada à ideia de que o sentimento psíquico da dor não integra o patrimônio do de cujus, e
desaparece por completo com o falecimento, a resposta mais usual da doutrina tem sido a negativa
(cf. Silva, 1955:469; Cahali, 2000:698; Cianci, 2003:23/29). O direito à indenização por danos morais
é personalíssimo, sustentam os que advogam a tese de sua intransmissibilidade. A jurisprudência,
a seu turno, tende a admitir a transmissão do direito à indenização moral (RT, 799/207; 802/203;
792/295).
Os danos morais são transmissíveis. Em primeiro lugar porque, na lei, a regra da transmissão
do direito à indenização não exclui os danos extrapatrimoniais (CC, art. 943). Além disso, o direito
de ser compensado pecuniariamente surge com o evento danoso e, desde logo, incorpora-se ao
patrimônio da vítima. Não é a condenação judicial que faz surgir o direito à compensação dos
danos morais, mas o ato lícito (na responsabilidade objetiva) ou ilícito (na subjetiva) danoso.
Apenas a liquidação dos danos morais depende de decisão judicial. Incorpora-se, como tantos
outros direitos, ainda ilíquido ao patrimônio da vítima. E, dessa forma, transmite-se aos herdeiros.
Não é a dor, claro, que está sendo transmitida; esta, de fato, é personalíssima e desapareceu com a
morte de quem a sentia. O que se transmite é o direito à compensação pecuniária pelo dano
extrapatrimonial.
O crédito pela compensação da dor surge, ainda ilíquido, no momento do acidente inevitável ou do ato
ilícito. Incorpora-se, desde então, ao patrimônio da vítima. Os efeitos do dano são extrapatrimoniais, mas
sua compensação será sempre uma forma de enriquecimento patrimonial da vítima. Transmite-se, assim,
aos herdeiros e sucessores o direito de exigir reparação moral.
Em outros termos, como não há meio diverso de compensar a dor extremada a não ser
mediante a obrigação pecuniária de indenizar, o efeito extrapatrimonial do dano implica sempre
enriquecimento patrimonial. O de cujus, portanto, transmite a seus herdeiros um patrimônio
enriquecido pelo crédito nascido da lesão extrapatrimonial (cf. Gonçalves, 2003:517).
3.3. Hipóteses de danos morais
Em qualquer hipótese de responsabilidade civil, subjetiva ou objetiva, o credor terá direito à
indenização pelos danos morais se tiver experimentado uma dor excepcional, considerável,
significativa, tormentosa, pungente, grande. Desse modo, a lista de hipóteses de danos morais que
segue é meramente exemplificativa e contempla apenas as mais comuns.
a) Morte prematura. A morte de pessoa querida é sempre muito dolorosa. A sensação de perda
irremediável que desperta é única. Relembra a pequeneza de nossa vida, sua inacreditável falta de
sentido. A religião pode dar algum conforto aos crentes, mas por vezes camufla a dor em vez de
diminuí-la. Costuma provocar sofrimento, maior ou menor, a morte de alguém próximo ou
conhecido em qualquer circunstância. A dor despertada pelo passamento de pessoa querida é
maior, contudo, quando prematura. A certeza de que todos vamos morrer um dia não atenua a
sensação de injusto abreviamento nos casos de acidentes (de trânsito, de consumo, do trabalho,
aéreo etc.), erros (imperícia médica) ou crimes (homicídio, latrocínio). É quase insuportável a ideia
de que a vida se perdeu por pouco. Quando morre o ente querido por velhice ou doença, a dor é
grande, mas parece que a morte foi “natural”; quando morre por outras razões, ela parece
“prematura” e a dor é imensa. Quanto maior o desenvolvimento da ciência médica, e as
possibilidades de cura, maior a sensação de fim irreversível e prematuro. Se falece o recémnascido por não haver, na localidade, UTI neonatal vaga para recebê-lo, pode-se calcular o enorme
sentimento de injustiça que toma conta do coração dos pais: por que o meu filho? Não há, contudo,
ninguém a responsabilizar apenas pela falta do equipamento. Se tivesse nascido anos antes, ele
não teria sobrevivido da mesma maneira, por não existir lá nenhuma UTI neonatal. Para que a dor
da morte seja indenizável, é necessário tenha sido causada por evento danoso imputável, por
regra de responsabilidade subjetiva ou objetiva, ao devedor.
b) Ofensa à honra. Na hipótese de calúnia (CP, art. 138: imputar falsamente a alguém fato
definido como crime), difamação (CP, art. 139: imputar a alguém fato ofensivo à sua reputação) ou
injúria (CP, art. 140: ofender a dignidade ou o decoro de alguém), cabe a indenização dos danos
patrimoniais e morais decorrentes (CC, art. 953). Se a ofensa à honra dá-se num órgão de
imprensa, a lei reconhece o direito à indenização, mas procura compatibilizá-lo com a tutela do
interesse público representado pela liberdade de manifestação de pensamento, mediante a
tarifação da indenização (subitem 1.2) e brevidade do prazo decadencial para propositura da ação
(Lei n. 5.250/67).
c) Ofensa à liberdade pessoal. Na hipótese de ofensa à liberdade pessoal, tem o prejudicado
direito à indenização pelos danos patrimoniais e morais sofridos. Caracteriza-se a ofensa pelo
cárcere privado, dolosa apresentação de queixa ou denúncia falsa e prisão ilegal (CC, art. 954). O
autor direto da ofensa é o sujeito passivo da relação obrigacional nas hipóteses de cárcere privado
e dolosa apresentação de queixa falsa (RT, 798/339); o Estado responde nas de dolosa denúncia
falsa e prisão ilegal, já que estes atos só podem ser praticados por seus agentes.
d) Inscrição indevida em cadastros de inadimplentes. O inadimplemento de obrigações é
registrado, na sociedade urbana contemporânea, em imensos cadastros (bancos de dados). Os mais
conhecidos são os dos serviços de proteção ao crédito prestados pelas associações comerciais (SPC)
ou por empresas privadas (Serasa), os dos cartórios de protestos de títulos (embora sua função
jurídica primordial seja diversa) e o cadastro de emitentes de cheques sem fundos (CCF) mantido
pelo Banco Central. Em vista da grande complexidade que os cerca e da quantidade de registros
que realizam, os bancos de dados podem incorrer, por ato próprio ou de terceiros, em erros.
Pessoas cumpridoras de suas obrigações, que nunca emitiram cheques sem fundos podem, por
força deles, ver seus nomes inscritos nesses bancos de dados. É injusto e causa considerável dor
moral. Cabe a indenização compensatória dela, sem prejuízo da dos danos patrimoniais que
venham eventualmente a ocorrer (RT, 806/274; 803/407).
A jurisprudência considera que a pessoa já regularmente inscrita em cadastro de
inadimplentes não tem direito à indenização por danos morais pela sobrevinda de inscrição
irregular (STJ, Súm. 385). Não é crível que alguém justamente inscrito como inadimplente em
cadastro de consumidores possa sofrer qualquer dor passível de indenização pela nova inscrição,
já que sua situação psicológica em nada se altera com esta.
e) Dano estético. Por dano estético considera-se qualquer enfeamento na aparência física da
pessoa, segundo os padrões de beleza nutridos pela sociedade (Silva, 1961; Magalhães, 1980:18). No
passado, dissertava-se sobre o tema como se limitado às mulheres jovens e solteiras, para as quais
o dano estético podia significar obstáculo intransponível ao casamento e infelicidade eterna. Hoje,
desvestido dos preconceitos de antanho, o tema é relacionado a qualquer pessoa, homem ou
mulher, jovem ou não, independente do seu estado civil. A beleza da aparência física é sumamente
importante para a autoestima, principalmente num país tropical. Se a feiúra foi causada por
acidente inevitável ou ato ilícito, o enfeado tem direito à indenização moral (RT, 795/369). Note-se
bem: ocorrendo dano estético, a indenização a ele relacionada compensa já o prejuízo
extrapatrimonial da vítima pela dor vivenciada. Não há que falar, portanto, em indenização em
separado do dano estético e da dor (RT, 789/361).
Claro que, sendo o lesado profissional da imagem (artista, apresentador de televisão, modelo
etc.), a indenização deverá ser também patrimonial.
f) Valor de afeição. Na hipótese de usurpação ou esbulho de coisa alheia, se não for possível a
restituição do próprio bem usurpado ou esbulhado, o devedor é obrigado a pagar ao credor da
indenização o seu valor de mercado (a lei fala em “preço ordinário”). Em se tratando, porém, de
coisa pela qual o credor nutria especial afeição, como joias de família, antiguidades raras, edição
esgotada de um livro etc., determina a lei o pagamento do dano moral, referido pela noção de
valor de afeição (CC, art. 952, parágrafo único, in fine). Trata-se da única hipótese em que a lei
estabeleceu critério de quantificação da indenização moral; limitou-a ao preço ordinário. Desse
modo, na melhor das hipóteses para o credor, na perda de coisa com valor de afeição, ele tem
direito ao dobro do valor de mercado dela.
g) Assédio sexual. O elemento característico do assédio sexual é a insistência do assediador. Na
cultura brasileira, flertes com algum tempero malicioso não representam necessariamente
desconforto insuportável para o destinatário ou danos à sua reputação. O assédio surge quando o
assediado já fez ver ao assediador não ser bem-vinda a sugestão de intimidade sexual entre eles,
mas a mensagem não é respeitada. A insistência desautorizada do assediador, principalmente em
ambiente de trabalho, dá ensejo à responsabilização por danos morais. A prova do assédio
normalmente é indiciária, tendo especial relevo a palavra da vítima, se é pessoa equilibrada (RT,
806/319). Para que se verifique a responsabilidade, não é necessário que o assediador seja superior
hierárquico ou tenha qualquer outra ascendência sobre o assediado. É irrelevante também o sexo
de um ou de outro, se iguais ou diferentes.
h) Dissolução do casamento. A dissolução do casamento costuma representar perdas
patrimoniais para os que se separam. Eduardo de Oliveira Leite lembra a estimativa feita pela
Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da USP, que aponta aumento nos gastos na ordem de
25% quando o marido sai de casa e vai morar sozinho, índice que sobe para 35%, se ele passa a
sustentar outra mulher, e para 50%, se tem outros filhos (2002:133). Essas perdas não são
indenizáveis, devendo cada um dos antigos cônjuges reorganizar sua vida com os bens a que tem
direito e eventual alimentos. De outro lado, quando a dissolução do casamento é acompanhada de
dor expressiva para o cônjuge inocente, cabe indenização dos danos morais (cf. Bittar, 2003). É
necessário, como em qualquer outra hipótese, que tenha o credor da indenização sofrido uma dor
tormentosa, mais grave que o simples aborrecimento e stress que toda separação provoca. Se, por
exemplo, nas vezes anteriores em que o cônjuge havia sido infiel, houve interesse na continuidade
do casamento, nova infidelidade pode ser causa do rompimento do vínculo matrimonial, mas não
é provável que inflija ao inocente dor extrema digna de compensação pecuniária; por isso, não
deve ser paga indenização por danos morais nesse caso.
Sempre que o evento danoso implicar excepcional dor à pessoa vitimada ou a familiar, será devida
indenização por danos morais. Os casos mais comuns dizem respeito a: morte prematura de parente, ofensa
à honra ou à liberdade, inscrição indevida em cadastros de inadimplentes, danos estéticos, perda de coisa
com valor de afeição, assédio sexual e dissolução do casamento ou noivado.
Nas mesmas condições, a dissolução da relação concubinária e mesmo do noivado também dá
ensejo à indenização dos danos morais.
3.4. Quantificação do dano moral
A quantificação dos danos morais é a questão mais difícil das que suscita a matéria. Como fixar,
em reais, o valor que compense a dor extremada que o credor sentiu? De início, convém assentar
que não há critério de mensuração objetivo. A dor não se mede por variáveis controladas
quantitativamente. Desse modo, embora fosse desejável eliminar as diferenças entre os valores
das condenações em casos semelhantes, estas têm sido significativas (cf. Zuliani, 2002:212/215). Do
exame da jurisprudência, de qualquer modo, pode-se concluir um padrão geral e alguns fatores de
redução, aquele e estes sempre subjetivos, isto é, atentos às peculiaridades dos sujeitos envolvidos.
O padrão geral é o da intensidade da dor. Quanto maior o pesar experimentado pelo sujeito
ativo, maior o valor da indenização. Não há e é provável que nunca haja instrumentos de medição
da dor. Assim, em termos objetivos, não se consegue estabelecer relações quantitativas entre o
sofrimento das pessoas. Mas o julgador pode extremar ou hierarquizar duas ou mais situações
dolorosas, pela sua própria experiência de vida. Se o filho é barbaramente espancado até a morte
por policiais, a dor experimentada pelos pais será grande de qualquer forma; se eles presenciaram
os fatos, porém, é ainda maior. Qualquer um pode intuí-lo.
Para fixar o valor da indenização em função do padrão geral, o juiz deve informar-se sobre os
precedentes jurisprudenciais. Considero, inclusive, oportuno que os tribunais criem bancos de
dados das decisões proferidas em primeiro e segundo grau sobre danos morais, alimentados
segundo metodologia que permita comparar valores atualizados, e dos quais possa valer-se quem
queira conhecer a média em reais das condenações, classificadas por tipo de lesão.
Alcançado o valor dos danos morais pelo padrão geral, cabe ao juiz verificar o cabimento de
algum fator de redução. Do exame geral da doutrina e jurisprudência, conclui-se a pertinência dos
seguintes: a) reduzido grau de culpa do devedor: como examinado, a lei brasileira autoriza o juiz a
reduzir o valor da indenização na hipótese de desproporção entre os danos e o grau de culpa do
devedor (subitem 1.1.1); b) concorrência da culpa da vítima: se para o evento danoso concorreu
culposamente a vítima, o valor da indenização deve ser reduzido proporcionalmente à
participação dela (subitem 1.1.2); c) demora no ajuizamento da ação: como a dor com o tempo se
esvaece, a circunstância de o demandante não ajuizar a ação de indenização tão logo pudesse fazêlo indica que, mesmo tendo sido ela significativa no momento do dano, não é mais ao tempo da
demanda (RT, 803/193); d) pouca sensibilidade da vítima: é indispensável levar em consideração o
caráter do demandante; se, por exemplo, ele tinha já diversos títulos protestados, sua dor diante de
um protesto indevido é consideravelmente menor que a sentida pelo trabalhador honesto que
nunca inadimpliu suas obrigações; e) atuação do devedor: se a pronta e leal atuação do responsável
pelo evento danoso diminuiu o constrangimento ou sofrimento da vítima, dentro dos limites do
humanamente factível, o valor da indenização deve ser também reduzido (RT, 802/266); f) ser
devedor o Estado: reduz-se a indenização moral imposta às pessoas jurídicas de direito público,
tendo em vista ser a sociedade como um todo que realmente arca com seu pagamento neste caso
(Cianci, 2003:62/84; Couto, 2001, julgados com remissão preço da dor; Gonçalves, 2002:569/578,
2003:366/367; Diniz, 2002, 7:96; Alpa, 1999:656/657; Martins-Costa, 2001; Assis, 1999:759).
O padrão geral de quantificação do dano moral é o da intensidade da dor. Estabelecido o valor, em reais,
que a compense, deve o juiz verificar se não há, no caso, a incidência de algum fator de redução, como o
reduzido grau de culpa do devedor, a culpa concorrente da vítima, a demora no ajuizamento da ação de
indenização, a conduta do devedor ou a imposição da obrigação ao Estado.
Tanto na aplicação do padrão geral como na dos fatores de redução, deve o juiz julgar por
equidade (Casilo, 1987:98) e convém não dar importância acentuada às condições econômicas dos
sujeitos. Apesar de alguns pronunciamentos judiciais recomendando considerar a condição
socioeconômica das partes na fixação dos danos morais (RT, 795/198), repugna os valores
cultivados pela moderna sociedade democrática discriminar a pessoa em função desses fatores.
Quer dizer, 500 salários mínimos como compensação da dor da morte prematura do filho podem
representar, para um operário, a oportunidade de adquirir sua casa própria. O mesmo dinheiro
não muda nada a vida de próspero banqueiro. Não poderia o juiz, contudo, para que a indenização
realmente tivesse significado para este último, decuplicar-lhe o valor apenas em função da sua
condição econômica. A dor do pobre não pode valer menos que a do rico, nem vice-versa. Não
deve impressionar o julgador se a indenização por danos morais, assim, vai enriquecer muito ou
pouco o sujeito ativo. Enriquecimento, como visto, sempre haverá. Proporcionalizá-lo em vista da
condição econômica do lesado importa discriminação não tolerada pelo princípio constitucional
da igualdade.
3.5. Um mundo de não me toques
A indenização dos danos morais está exposta a dois tipos de desvirtuamentos: de um lado, a
banalização da dor; de outro, o exagero na fixação do valor devido. Não estou aqui considerando
situações de abuso de autoridade ou corrupção no Judiciário, que, embora representem também
objeto de grande preocupação, possuem causas e desdobramentos gerais, não específicos da
matéria da responsabilidade civil por dano moral (cf. Passos, 2002). Cuido de decisões proferidas
por magistrados honestos e bem-intencionados, que, no afã de garantir à vítima a completa
indenização e pensando aplicar o corretivo ao demandado que imaginam eficiente, consideram
passíveis de indenização simples desconfortos ou fixam elevadas somas na condenação.
O primeiro cuidado do juiz, no julgamento de ações em que é pleiteada indenização por danos
morais, deve ser o de não banalizar a dor. Destina-se o instituto a atender àquelas pessoas
atingidas por acidentes ou atos ilícitos que lhe causaram profundo sofrimento. Se os sentimentos
experimentados não se caracterizam como uma dor tormentosa, excepcional, significativa, não é o
caso de fixar indenização por danos morais. Desde sempre, a doutrina tem recomendado
moderação no trato da matéria, para que não se tome por referência nem as pessoas frias e
insensíveis, nem as de sensibilidade extremada e doentia, mas as médias (Silva, 1955:513).
Também deve ficar atento o magistrado para não cair ingenuamente nas artimanhas da
indústria da vitimização. Há os que, diante da chance de se envolverem em situações
embaraçosas, propositadamente não reagem a tempo de desfazer o mal-entendido, com o objetivo
de enriquecer com os danos morais. A hipótese de simulação da dor nunca pode ser descartada,
principalmente quando o evento não importou danos à vida ou integridade física do prejudicado.
Em todos os casos, porém, o juiz não pode contentar-se com a simples alegação do demandante. Se
os fatos e circunstâncias constantes dos autos não sugerirem o experimento de profunda dor, não
deve impor ao demandado a indenização moral.
Quanto ao segundo desvirtuamento, deve o valor da indenização moral destinar-se unicamente
à compensação da dor experimentada. A liquidação dos danos morais não presta à sanção dos
devedores da obrigação de indenizar. Se a conduta do demandado for particularmente reprovável,
pode o juiz até mesmo fixar indenização punitiva, mas convém deixar claro, na decisão, que o
valor correspondente à sanção não integra os danos morais. A responsabilidade civil não tem
caráter sancionatório quando objetiva, porque os danos objeto de indenização (inclusive os
morais) decorrem de atos lícitos. Os acidentes inevitáveis da era contemporânea não deixarão de
acontecer pelo aumento no valor das indenizações. Eles continuarão ocorrendo enquanto homens
e mulheres forem falíveis. Indenizações elevadas apenas importarão, na maioria das vezes,
carestia e inflação, porque serão, sempre que possível, socializadas.
Dois desvirtuamentos podem comprometer o instituto dos danos morais: a banalização da dor e a
elevação dos valores da indenização. Se dissabores forem considerados indenizáveis e o valor dos danos
morais for utilizado como medida de desestímulo quando o acidente é inevitável, estaremos criando um
mundo de não me toques que não interessa à sociedade e à economia.
Em suma, a indenização por danos morais será instituto tanto mais prestigiado e justo quanto
menos for desvirtuado. Não interessa à sociedade ou à economia que dissabores, desconfortos,
aborrecimentos ou apoquentação gerem custos socializáveis. Definitivamente, não interessa
criarmos um mundo de não me toques.
4. Indenização punitiva (punitive damages)
A indenização punitiva é criação do direito anglo-saxão. O objetivo originário do instituto é
impor ao sujeito passivo a majoração do valor da indenização, com o sentido de sancionar
condutas especialmente reprováveis. Como o próprio nome indica, é uma pena civil, que reverte
em favor da vítima dos danos. Não se confundem a indenização punitiva (punitive damages) e a
compensação pelos danos morais (pain and suffering damages): a primeira é devida quando o
demandado agiu no evento danoso com dolo, malícia ou imprudência, revelando indiferença
quanto aos direitos dos outros; a última, se houver danos pessoais graves (cf. Sustein-Hastie-PayneSchkade-Viscusi, 2002:10/12). A pertinência e eficiência da indenização punitiva são questionáveis.
As elevadas condenações são apontadas como um dos motivos do litigation boom iniciado nos anos
1990 nos Estados Unidos, e, na Inglaterra, há quem proponha sua abolição (Alpa, 1999:610/611;
Tunc, 1989:171).
Pois bem, a indenização punitiva cabe no direito brasileiro?
Os autores que enfrentaram a questão de forma correta (isto é, tendo clara a distinção entre ela
e os danos morais) concluem pela sua inadmissibilidade sem lei que a estabeleça. Carlos Roberto
Gonçalves, entre eles, destaca que a função punitiva da indenização é meramente reflexa ou
indireta, que sua finalidade precípua é recompor o patrimônio do lesado. Diverge, então, dos que
recomendam um plus na indenização por danos morais, a título de pena civil. Sustenta seu
argumento não somente nas diferenças econômicas, históricas e dos costumes verificáveis entre o
Brasil e os Estados Unidos, mas também nos conteúdos e limites dos poderes dos juízes e nos
sistemas de seguros dos dois países. Por fim, valendo-se de lição de José Ignácio Botelho de
Mesquita, conclui que o princípio constitucional da reserva legal em matéria de penas (CF, art. 5.º,
XXXIX) impede, na ordem jurídica brasileira, a imposição da indenização punitiva, sem que lei a
preveja e fixe os valores mínimo e máximo (2003:363/366).
De fato, a lei contempla, no Brasil, algumas hipóteses de indenização punitiva. Cabe, por
exemplo, na cobrança indevida (CC, arts. 939 e 940; CDC, art. 42, parágrafo único – Cap. 22, subitem
7.2), na construção que invade solo alheio se houver má-fé (CC, arts. 1.258, parágrafo único, e
1.259) e nas relações internas do condomínio edilício (CC, art. 1.337). Não há, portanto,
incompatibilidade entre o direito brasileiro e o instituto. A questão, em essência, reside na
definição do alcance do princípio da reserva legal. Diz o inciso XXXIX do art. 5.º da Constituição
que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. A sanção
civil, a exemplo da penal, não pode existir sem prévia lei que a estabeleça?
Em vista da autonomia das esferas de responsabilização jurídica (civil, penal e administrativa),
segue cada tipo de sanção seu regime próprio. O princípio da reserva legal aplica-se às sanções de
natureza pecuniária cujo resultado reverte para o Estado. É esse o caso das multas de direito penal
e administrativas. E, com certeza, para impor ao responsável por danos qualquer sanção
pecuniária a ser satisfeita mediante pagamento ao Estado, é necessário prévia lei que a comine.
Mas a indenização que se reverte em favor do próprio prejudicado (sanção civil) não se submete
àquele princípio constitucional. Aliás, se fosse aplicável à liquidação dos danos o art. 5.º, XXXIX, da
CF, a indenização moral não caberia nas hipóteses de responsabilidade objetiva (estranhas às
relações de consumo) em que inexistisse específica previsão legal, já que a norma de âmbito geral
do art. 186 do CC aplica-se apenas à responsabilidade subjetiva.
Entendo, portanto, ser cabível no direito brasileiro, mesmo sem lei que a estabeleça em termos
gerais ou específicos, a indenização punitiva nos casos em que a conduta do demandado tiver sido
particularmente reprovável. Se restar provado que o cirurgião foi totalmente displicente, sem a
mínima consideração para com o paciente, indiferente aos efeitos de sua desatenta conduta, a
indenização não deve limitar-se à compensação dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais da
vítima. Cabe acrescer-lhe uma verba a título de sanção civil, que integrará o crédito da
indenização. Este profissional não pode ser tratado de modo igual ao colega que, embora
incorrendo em erro médico, havia agido com total apreço pelos direitos do paciente.
O objetivo da indenização punitiva é sancionar a desconsideração aos direitos alheios manifestada pelo
responsável pelo acidente inevitável ou ato ilícito. Não se confunde com os danos morais, que visam
compensar a vítima pela dor extremada que vivenciou.
A indenização punitiva só pode ser imposta ao devedor da obrigação de indenizar quando
exacerbada a reprovabilidade de sua conduta. Desse modo, sendo subjetiva a responsabilidade, à
prova da culpa deve acrescer-se a da desconsideração aos direitos alheios, para ter cabimento a
imposição. Sendo objetiva a responsabilidade, também caberá à vítima fazer as mesmas provas.
Note-se que a objetivação da responsabilidade desqualifica a discussão da culpa para fins de
indenização compensatória (dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais). Em postulando a vítima
também a indenização punitiva, chama para si o ônus de provar não só a culpa como a
desconsideração dos direitos alheios na conduta do demandado. Se não forem exigidas essas
provas do demandante, a natureza punitiva da indenização conduziria ao absurdo da sanção
imposta a condutas lícitas. Claro que, se a vítima não produzir de modo satisfatório a prova da
culpa do demandado e do seu desprezo pelos direitos dos outros, não fará jus à indenização
punitiva, mas continuará titularizando o direito à indenização compensatória (dos danos
patrimoniais e extrapatrimoniais), quando objetiva a responsabilidade do demandado.
5. Solidariedade e direito de regresso
Podem ser dois ou mais os sujeitos causadores do dano. Neste caso, haverá solidariedade entre
eles (CC, art. 942, in fine). Isso significa, de um lado, que o credor pode acionar qualquer um dos
autores do prejuízo pelo valor integral da indenização, e, de outro, que o valor dos danos é
dividido entre eles em regresso. Assim, se um grupo de desordeiros vandaliza obra de arte exposta
em praça pública, qualquer um é responsável pela totalidade dos danos e pode, em ação
regressiva, cobrar a quota-parte dos demais. Há também solidariedade entre responsável e
causador nas hipóteses de responsabilidade complexa. Assim, se a vítima preferir, pode demandar
o aluno causador dos danos em vez do estabelecimento escolar em que está matriculado em
regime de internato, por exemplo.
Em tema de responsabilidade civil, o direito de regresso entre devedores solidários deve
observar a proporcionalidade da culpa. Diz a lei que “aquele que ressarcir dano causado por
outrem pode reaver o que houver pago daquele por quem pagou” (CC, art. 934, primeira parte).
Isso significa que cada um responde pela sua participação culposa no evento danoso, a menos que
seja impossível estabelecê-la. No exemplo dos vândalos, para a Prefeitura credora da indenização é
indiferente a participação de cada um no prejuízo. Ela tem direito de cobrar a totalidade dos danos
de qualquer um deles. Na ação regressiva, porém, o que pagou a indenização pode provar a maior
culpa de um ou outro do grupo, perante a qual sua contribuição para o prejuízo mostra-se
relativamente pequena; assim fazendo, poderá cobrar em regresso dos demais desordeiros valor
correspondente à participação de cada um. Em outros termos, no regresso regido pelo direito da
responsabilidade civil, a quota-parte dos devedores solidários não é simplesmente aritmética (total
dos danos dividido pelo número de autores) se for provada a diferente participação culposa de
cada um para o resultado danoso.
Essa forma peculiar de distribuir a obrigação entre os solidários na ação regressiva tem
implicações de relevo. Se um devedor não contribuiu para o prejuízo com qualquer ação culposa,
ele não deve arcar, no final, com nenhuma quota da indenização. Se tiver sido cobrado em juízo
pelo lesado e não conseguiu provar a ausência de culpa, deve, evidentemente, pagar-lhe em razão
da solidariedade. Mas, em regresso, provando ter sido da culpa exclusiva dos demais causadores o
evento danoso, pode cobrar a integralidade do que pagou.
Se são dois ou mais os autores do dano, respondem solidariamente pela indenização. Há solidariedade,
também, entre o responsável e o causador nos casos de responsabilidade complexa. Em regresso, a
indenização é repartida entre os devedores solidários proporcionalmente à culpa de cada um para o evento
danoso.
Também tem implicações relevantes a regra da proporcionalidade da culpa na composição
regressiva entre os devedores solidários quando se trata de responsabilidade objetiva. Se o tutor é
responsabilizado por danos causados pelo pupilo, mas não concorreu de nenhuma maneira para o
dano, ele pode, em regresso, cobrar do tutelado a totalidade do que pagou ao prejudicado. Se o
empregado foi o único culpado pelo dano, o empregador pode reaver dele, na ação regressiva, o
valor total pago ao terceiro prejudicado. Quando há culpa ou dolo do agente público, o Estado
pode, em regresso, recuperar o valor completo da indenização paga (cf. Azevedo, 1993).
A regra da proporcionalidade na quotização regressiva entre os devedores solidários da
indenização tem importância, por fim, quando eles respondem objetivamente, mas apenas um
deles foi o culpado pelo dano. Se o animal, ao atravessar a rodovia, chocou-se com um veículo,
tanto o seu dono como a concessionária são objetivamente responsáveis pela indenização. O
proprietário do veículo pode escolher qualquer um deles para demandar e, como assinalado,
tenderá a escolher a concessionária. Pois bem, se ela indenizar o prejudicado, poderá promover
ação regressiva contra o dono do animal. Se não provar a culpa do dono, a concessionária poderá
cobrar apenas a metade do valor desembolsado na indenização do terceiro, já que a
responsabilidade dos dois é objetiva. Mas, se ela provar que o dono não era diligente na guarda de
seus animais, a culpa pelo acidente é inteira dele e não da concessionária. Neste caso, então, ela
poderá exigir do dono do animal tudo o que tiver pago ao terceiro prejudicado.
O regime específico da solidariedade entre devedores da obrigação de indenizar oriunda de
responsabilidade civil veda, por fim, o direito de regresso numa hipótese: se o causador do dano é
descendente menor do responsável (CC, art. 934, in fine). O pai ou a mãe que indeniza danos
causados pelo filho menor (absoluta ou relativamente incapaz) não tem o direito de reaver deste o
que pagou. Trata-se de norma de constitucionalidade duvidosa, em face do princípio
constitucional da igualdade. Em situações especiais, inclusive para a proteção dos interesses de
outros filhos do mesmo responsável, em que a injustiça da vedação do regresso mostrar-se mais
intensa, ela simplesmente não deve ser aplicada pelo juiz.
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Curso de Direito Civil - Vol. 2 - Ed. 2020
ÍNDICE-ALFABÉTICO-REMISSIVO
ÍNDICE-ALFABÉTICO-REMISSIVO
(O primeiro número refere-se ao capítulo e o segundo, ao item ou subitem.)
Abuso de direito
– responsabilidade civil: 22:2.3
Acidente de consumo
– fornecimento defeituoso: 23:4.4.2
– fornecimento perigoso: 23:4.4.1
– fornecimento viciado: 23:4.4
– globalização: 19:3
– responsabilidade do empresário: 23:4
Acidente de trabalho
– responsabilidade civil: 22:5
– responsabilidade do empresário: 23:4
Acidente de trânsito
– responsabilidade civil: 22:4
– transporte de cortesia: 22:7.1
Advogados
– responsabilidade civil: 22:3.3
Arquitetos
– responsabilidade civil: 22:3.4
Assunção de dívida
– conceito: 15:3
Atividades econômicas
– conceito: 23:3
– não empresariais: 23:4.2
PÁGINA V
Atos unilaterais
– conceito: 20:1
Caso fortuito
– força maior: 18:5
– inadimplemento involuntário: 18:5
Cessão de crédito
– conceito: 15:2
– endosso: 15:2.2
– e novação: 17:2
Cláusula de não indenizar
– conceito: 24:4
Cláusula penal
– obrigações não pecuniárias: 18:4. 2.4
– obrigações pecuniárias: 18:4.1.2.4
Compensação
– conceito: 17:3
Concentração
– conceito: 14:5.1
– obrigação de dar coisa incerta: 14:2.3
Concursos
– de mérito: 20:2.1
– promocionais: 20:2.2
Confusão
– conceito: 17:4
Consumidor
– cobrança indevida: 22:7.2
Correção monetária
– consectário: 18:4.1.2.3
– enriquecimento indevido: 20:5
Credor
– aparente: 16:2.2
– putativo:16:2.2
Dano
– ambiental: 23:7
– classificação: 21:6
– inexistência: 24:2
Danos morais
– caracterização: 24:2
– consectário: 18:4.1.2.1
– extensão: 25:3
– função: 21:4 e 25:3.1
– hipóteses: 25:3.3
– quantificação: 25:3.4
– titulares do crédito: 25:3.2
Danos patrimoniais
– extensão: 25:2
Delegação
– conceito: 17:2
Depósito
– irregular: 14:2.5
– regular: 14:2.5
Dever
– conceito: 13:8
Direito das obrigações
– flexibilização: 13:9
– globalização: 19:3
Empresários
– conceito: 23:4.1
– do ramo de albergaria: 23:4.6
– do ramo dos transportes: 23:4.5
– responsabilidade civil: 23:4
Engenheiros civis
– responsabilidade civil: 22:3.4
Enriquecimento sem causa
– conceito: 20:5
– externalidades: 21:1
Estado
– atos jurisdicionais: 23:5
– responsabilidade civil: 23:5
Execução
– da obrigação de fazer: 14:3.3
– específica:13:2 e 14:3.3
– subsidiária: 13:2 e 14:3.3
Expromissão
– conceito: 17:2
Externalidades
– internalização: 21:1
Gestão de negócios
– conceito: 20:3
Honorários de advogado
– conceito: 18:4.1.2.5
Inadimplemento
– absoluto: 18:4.2.1
– consectários: 18:4.1.2
– consequências gerais: 18:2
– execução judicial: 18:6
– insolvência: 18:7
– involuntário: 18:5
– voluntário: 18:4
Indenização
– culpa concorrente do credor: 25:1.1.2
– grau de culpa do devedor: 25:1.1.1
– punitiva: 22:7.2
– tarifada: 25:1.2
– valor da: 25:1
Inexecução
– conceito: 18:1
Jogo
– dívida de: 13:5
Juros
– obrigações não pecuniárias: 18:4.2.3
– obrigações pecuniárias: 18:4.1.2.2
Médicos
– medicina de embelezamento: 22:3.2.2
– responsabilidade civil: 22:3.2.1
Mora
– conceito: 18:3
– inadimplemento relativo: 18:1
– obrigações não pecuniárias: 18:4.2.2
– obrigações pecuniárias: 18:4.1.1
– purgação ou emenda: 18:3
Multa convencional
– obrigações pecuniárias: 18:4.1.2.4
Nova Zelândia
– estado mutualista: 21:5.1
Novação
– conceito: 17:2
– flexibilização do direito: 13:9
Obrigação
– classificação: 13:4
– como processo: 13:9
– conceito: 13:1
– descumprimento: 18:1
– doutrina dualista: 18:6
– elementos da: 13:3
– genérica: 14:2.3
– natural: 13:5
Obrigações
– alternativas: 14:5
– cumulativas: 14:5
– de dar: 14:2
– de dar coisa certa: 14:2.1
– de dar coisa incerta: 14:2.3
– de fazer: 14:3, 3.1 e 3.2
– de não fazer: 14:4
– de restituir: 14:2.5
– divisíveis e indivisíveis: 14:6
– facultativas: 14:5.4
– não pecuniárias: 18:4.2
Obrigações imperfeitas
– não compensáveis: 17:3.2
– obrigação natural: 13:5 e 8
Obrigações pecuniárias
– cláusula penal: 18:4.1.2.4
– conceito: 14:2.6
– inadimplemento: 18:4.1
– líquidas ou ilíquidas: 13:4 e 14:2.6
Pagamento
– conceito: 16:1
– dação em pagamento: 16:4 e 8.3; 17:2
– em consignação: 16:8.1 e 17:5
– imputação do: 16:9 e 17:3.3
– indevido: 20:4
– indireto: 16:8
– lugar: 16:6
– objeto do: 16:3 e 4
– prova: 16:5
– sujeitos do: 16:2
– tempo: 16:7
Patrimonialidade
– elemento da obrigação: 13:3
– obrigações de dar: 14:2
Patrimônio
– líquido: 13:6
– obrigação e patrimônio: 13:6
Perdas e danos
– consectário: 18:4.1.2.1
Princípio da indenidade
– acidente de trabalho: 22:5
– distorção: 21:5.3
– formulação: 21:5
– ônus de prova: 24:1
Profissionais liberais
– atividade: 23:4.2
– caracterização: 22:3
Promessa de recompensa
– conceito: 20:2
Quitação
– prova do pagamento: 16:5
Relação de causalidade
– caso fortuito: 24:3.1
– culpa da vítima: 24:3.3
– culpa de terceiro: 24:3.2
– inexistência: 24:3
Remissão de dívidas
– conceito: 17:5
– renúncia: 17:5
Responsabilidade
– por ato de outrem: 23:6.1
Responsabilidade civil
– classificação: 21:2
– culpa administrativa: 21:3.3
– espécies: 21:3
– guarda da coisa: 21:3.3
– presunção de culpa: 21:3.3 e 5.2; 22:6
Responsabilidade civil objetiva
– formal: 23:1 e 6
– fundamento: 21:3.2 e 23:1
– pura: 21:5.2
– teoria do risco: 23:2
Responsabilidade civil subjetiva
– culpa e dolo: 22:2.2
– fundamento: 21:3.1 e 22:1
– grau de culpa: 22:7
– pressuposto subjetivo: 22:2
Ruína de prédio
– responsabilidade civil: 22:6
SELIC
– cálculo da taxa: 18:4.1.2.2
Solidariedade
– e confusão: 17:4
– obrigações solidárias: 14:7
– responsabilidade civil: 25:5
Sub-rogação
– e novação: 17:2
– pagamento com: 16:8.2
– solvens: 16:2.1
Sucessos da coisa
– certa: 14:2.2
– deterioração: 14:2.2, 2.5 e 5.3
– melhoramento: 14:2.2, 2.5 e 5.3
– obrigações alternativas: 14:5.3
– perda: 14:2.2, 2.5 e 5.3
Transmissão da obrigação
– espécies: 15:1
Vencimento
– antecipado: 16:7
– da obrigação: 16:7
– funções: 21:4
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Curso de Direito Civil - Vol. 2 - Ed. 2020
PÁGINA VI
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