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Latidos no escritório

2007, GV-executivo

O cão faz parte da convivência humana há séculos. No ocidente, em particular, suas representações sociais fizeram dele alvo de estima e carinho, com um papel importante em diversas atividades. Mais recentemente, a função social do cão está sendo ampliada. Nos EUA, ele está começando a fazer parte do quadro das empresas, sendo levado por seus donos, ao ambiente de trabalho. O artigo analisa as bases desse fenômeno e suas implicações em termos de gestão de pessoas na atualidade.

FATOR HUM ANO Latidos no escritório O cão faz parte da convivência humana há séculos. No ocidente, em particular, suas representações sociais fizeram dele alvo de estima e carinho, com um papel importante em diversas atividades. Mais recentemente, a função social do cão está sendo ampliada. Nos EUA, ele está começando a fazer parte do quadro das empresas, sendo levado por seus donos, ao ambiente de trabalho. O artigo analisa as bases desse fenômeno e suas implicações em termos de gestão de pessoas na atualidade. IMAGEM: KIPPER por Carlos Osmar Bertero FGV- EAESP O ocidente convencionou a representação de que o cão é o lugar-comum, fato é que, quando comparado a outros pri- melhor amigo do homem. Normalmente, as características matas, o comportamento do cão parece mesmo confirmar que descrevem o vínculo de homens e cães o fazem na sua natureza afetuosa e companheira, algo às vezes distante perspectiva da amizade, incluindo valores como lealdade, da compreensão mesmo dos humanos. companheirismo e uma obstinada atitude de apego e re- De um ponto de vista sociológico, a relação entre verência ao dono por parte do animal. Sendo ou não um homens e cães foi sendo construída ao longo do tempo © GV executivo • 47 FATOR HUMANO: L ATI D OS N O ESCRI TÓRI O de modo que os segundos atendem a propósitos especí- países mais “caninos” do que outros. A Inglaterra foi o berço ficos dos primeiros. Além da amizade doméstica, os cães de grande número de raças nos últimos quatro séculos. Na serviram – e servem – como companheiros de guarda em Europa ainda merecem destaque a Alemanha, a França e acampamento s; co mo auxiliares no pasto reio de gado a Itália como países que tiveram e ainda possuem grande domesticado e nas caças, e como companhia dos soldados importância para a cinofilia. nos campos de batalha. As representações dadas aos cães no ocidente depen- Porém, na atualidade, um novo uso vem sendo feito dem de uma compreensão mais ampla de alguns fenômenos dos cães. Em alguns países, como nos EUA, eles foram sociais, dos quais as mudanças no sentido e na composição levados para o ambiente de trabalho, onde fazem parte da das famílias é o mais emblemático. De fato, a família, que de rotina diária de seus donos e, em alguns casos, tornam-se extensa passou a nuclear, é hoje formada por um pequeno membros simbólicos da cultura organizacional. O propósito número de pessoas que coabitam o mesmo espaço físico deste artigo é analisar esse fenômeno corporativo recente. com laços são cada vez mais frágeis e instáveis. No sso po nto é discutir o s antecedentes que to rnaram A conseqüência dessa alteração na estrutura da família possível essa invasão de fronteiras e instigar o leitor sobre é o crescente número de pessoas vivendo sós ou então sem se o fenômeno refere-se a um novo modismo gerencial ou vínculos de longa duração entre si. Somado a isso, há tam- se, pelo contrário, tem algo a nos dizer sobre satisfação e bém a solidão resultante da mobilidade geográfica, que se produtividade nas novas condições de trabalho das em- acelerou nos últimos anos e rompeu os vínculos das pessoas presas pós-industriais. baseados em local de nascimento e tradição. Vivendo em grandes centros urbanos, elas têm de A prática de levar cães ao trabalho, apesar de, por enquanto, não ser alg o rotineiro nos EUA, tem g randes chances de vir a sêlo, e em nenhum momento questiona-se a lidar com o paradoxo de estar no meio de muitas outras, mas, ao mesmo tempo, não ter com elas qualquer vínculo social significativo. Em meio a todas essas transformações, destaca-se a função social do cão, com quem as pessoas estabelecem vínculos afetivos fortes, muitas vezes leg itimidade da idéia ou se se trata de um modismo passag eiro ou de alg uma nova ex centricidade do mundo ex ecutivo. em concorrência com as demais formas de vínculos tipicamente humanos. Na prática, o cão segue o humano – se este muda do campo para a cidade, ele o acompanha; se a estrutura da família se altera, o cão passa a conviver com Cães e humanos. Em quase todas as culturas, o cão é todos. Em resposta à nuclearização da família e à saída um animal domesticado e intocado. Apesar de sua enorme dos filhos de casa mesmo sem contraírem matrimônio, o fertilidade e facilidade reprodutiva, não é considerado ani- cão se faz presente em todos os momentos e em todas as mal de abate, salvo poucas exceções. Em algumas culturas casas e apartamentos onde as pessoas resolvam se insta- ele é considerado um animal “sujo” ou “impuro”, mas, no lar. O histórico companheiro parece indiferente a essas ocidente, é em geral visto como amistoso, amigo da espé- mudanças que os humanos vêm fazendo em suas vidas e cie humana e merecedor de afeição e respeito. formas de convivência. Não seria inverdade afirmar que a cinofilia, enquanto amor, amizade, respeito e dedicação ao cão, tem raízes mais Cães e empresas. O s Estado s Unido s são ho je, profundas em alguns países e que, mesmo atualmente, há certamente, o país em que o cão está mais intimamente 48 • VO L.6 • Nº 3 • MAIO /JUN. 2007 FATOR HUMANO: L ATI D OS N O ESCRI TÓRI O ligado aos humanos, chegando mesmo a estimular aspec- como ambiente em que deve imperar a racionalidade, o to s radicais de relacio namento . As peculiaridades desse controle e a “seriedade”? país e a sua o rigem cultural pro veniente da Inglaterra Um olhar isento sobre algumas práticas gerenciais norte- ajudam a explicar a po sição do cão em sua so ciedade e, americanas em relação aos cães podem nos dar a resposta. co nseqüentemente, a maneira co mo se relacio na co m o s Vemos então que os cães têm por lá uma série de “atribui- humanos. Adicionalmente, é provável que o individualis- ções”. Tomemos alguns exemplos retirados do noticiário mo no rte-americano também exerça fo rça co mo matriz da imprensa norte-americana. Para Riley, um cão de 6 anos cultural em que se fundamenta o vínculo ho mem-cão que trabalha com sua dona, uma secretária, o seu trabalho naquele país. consiste em ficar deitado durante seis horas diárias aos pés Assim, não é exagero afirmar que, nos EUA, o cão é de sua dona enquanto ela digita e atende telefonemas. um substituto dos filhos, dos pais, dos irmãos e irmãs e A empresa Phelps Group, uma agência de propaganda muitas vezes é o único amigo. Dorme em casa, brinca com localizada na cidade de Santa Mônica, na Califórnia, tem em as crianças e acompanha os adultos. Quando os filhos vão seu quadro 55 humanos e 8 cães. Suas tarefas são essencial- para a universidade, levam consigo um cão; nos dormitó- mente estéticas: servem de inspiração aos profissionais hu- rios e em praticamente todas as áreas de uma universidade manos para o desenvolvimento de campanhas publicitárias e norte-americana os cães estão presentes, de modo que para a redação de textos. A agência obteve grande sucesso ao não é incomum que em muitas instituições eles assistam criar um slogan para um cliente, a Pet Company: Petco, where às aulas com seus donos. Acompanham os adultos até the pets go [“Petco, o lugar em que até os cães vão”] . mesmo na prática de esportes. Há cães caçadores e há os Já em uma outra empresa, a Urban Space Develop- que vão também a parques públicos desfrutar o lazer com ment, uma empresa imobiliária, os três cães, Lola, Leo e seus proprietários. Max, atuam como “facilitadores”. Quando as tensões entre Mais recentemente, os norte-americanos sofisticaram os clientes se exacerbam, especialmente em função de o vínculo com seus cães, passando a levá-los ao trabalho. reclamações sobre os serviços da imobiliária ou durante a Mas o que os cães fazem nas empresas? Tal movimento não negociação de contratos de locação, os três cães abanam constitui uma inversão na imagem tradicional da empresa os rabos, olham meigamente para os tensos humanos e se © GV executivo • 49 FATOR HUMANO: L ATI D OS N O ESCRI TÓRI O oferecem para receber carinhos. Segundo o presidente da de um benefício. Paradoxalmente, à medida que os demais empresa, eles contribuem para iluminar e descontrair o benefícios que empregadores costumavam oferecer aos ambiente de trabalho. seus empregados naquele país, como atraentes fundos de Mas há cães com “cargos executivos” e com respon- pensão, seguros de saúde, carreiras claramente definidas sabilidades específicas. É o caso de Charlotte, uma cadela e aumentos regulares de salários, estão em vertiginoso terrier que trabalha na Jen Lew Designs, na cidade de declínio, a compensação pela aceitação dos cães parece Mattituck, em Long Island, e cujo nome aparece em toda ser uma “inovação” para equilibrar – ou mascarar – a dura a correspondência da empresa como Chefe de Serviços vida corporativa dos trabalhadores norte-americanos de ao Consumidor, recebendo e-mails dos clientes sempre colarinho-branco. Existe, porém, alguma evidência que que surge um problema a ser solucionado. A avaliação aponte no sentido de benefícios reais na convivência com cães, especifi camente no ambiente de trabalho? P aradox almente, à medida que os A resposta para essa questão não benefícios que empreg adores costumavam pode ser dada em definitivo. Contu- oferecer aos seus empreg ados estão em do que prejuízos na interação com vertig inoso declínio, a compensação pela que, do ponto de vista prático e, di- do, aparentemente há mais benefícios cães no ambiente de trabalho. É claro gamos, “logístico”, seriam necessárias aceitação dos cães parece ser uma inovação para equilibrar a dura vida corporativa dos algumas adaptações e alterações de comportamento, tanto da parte dos canino s co mo do s humano s. Cães precisam ser treinados para conviver trabalhadores norte-americanos. em ambientes sociais; por seu turno, os humanos têm de arranjar o am- da supervisora imediata de Charlotte, a proprietária da biente de modo a acomodá-los da melhor maneira possível empresa, Jenifer Lew, é de que seu desempenho no cargo para ambos. é excelente, poupando à empresa grandes dores de cabeça, especialmente com clientes mais difíceis e exigentes. A despeito disso, os resultados podem ser positivos: para o s humano s, a co mpanhia do s cães parece fato r importante que os encoraja a permanecer na empresa. R H e cães. Os fatos referidos nos parágrafos anteriores Também não se pode negar que seres humanos parecem foram extraídos da coluna de Lisa Belkin, publicada quin- melhorar quando interagem com cães. Embora a interface zenalmente no prestigiado The New York Times. A coluna é homem-animal ainda seja pouco estudada e conhecida, voltada para questões sobre “intersecção entre o trabalho há evidências de que pessoas que vivem sós têm mais e a vida pessoal” das pessoas. No diagnóstico de Belkin, a problemas com depressão do que as que vivem com cães. prática de levar cães ao trabalho, apesar de, por enquanto, Além disso, existem benefícios que cães promovem aos não ser algo rotineiro nos EUA, tem grandes chances de vir humanos, como se observa nos diversos serviços de apoio a sê-lo, e em nenhum momento questiona-se a legitimidade a pacientes em hospitais. da idéia ou se se trata de um modismo passageiro ou de Mesmo assim, não é algo fácil desenvolver uma cadeia alguma nova excentricidade típica do mundo executivo causal que assegure uma relação positiva entre a presença norte-americano. de cães no local de trabalho e a melhoria do clima organiza- Primeiro, porque as empresas fazem questão de dar à cional, levando ao melhor relacionamento entre as pessoas aceitação de cães na empresa o caráter de uma concessão e e ao aumento de motivação com reflexos positivos sobre a 50 • VO L.6 • Nº 3 • MAIO /JUN. 2007 FATOR HUMANO: L ATI D OS N O ESCRI TÓRI O produtividade da empresa e a qualidade de seus produtos e serviços. Todas essas relações, embora freqüentemente repetidas na retórica da gestão de pessoas, são de difícil e problemática comprovação. Neste ponto podemos nos questionar se a prática de levar cães ao escritório não é algo que apenas faz sentido à luz da realidade norte-americana, tendo em vista o valor que o cão possui naquela cultura. Desse modo, haveria algum sentido em estender essa prática às empresas brasileiras? Cães e empresas no Brasil. Já foram apontadas as diferenças culturais com relação ao relacionamento entre homens e cães quando se afirmou que há países “mais caninos” que outros. E como é o nosso país? Aparentemente, os cães aqui estão em alta. Indicadores são fornecidos pela indústria de alimentos para cães, que registram substanciais aumentos de faturamento, o que indica mais cães e especialmente cães mais bem cuidados e alimentados. Outro dado é que também aumentou o núme- e, de resto, a maior parte de nossas vidas. Se comparadas ro de pet shops e de consultórios de veterinários no país. com o passado pré-industrial, veremos que, na origem, as No entanto, é enorme o número de cães abandonados a pessoas viviam e trabalhavam em suas casas, de sorte que perambular por ruas e estradas, com suas vidas reduzidas a residência e o local de trabalho estavam unificados. pela falta de alimento, sendo maltratados e mortos por atropelamentos em ruas e estradas. Com a industrialização e a urbanização, os locais de trabalho e moradia foram separados. Conseqüentemente, Esse abandono indica uma sociedade que ainda não passa-se hoje mais tempo no trabalho do que no lar. Não é co nvive em termo s civilizado s co m no sso mais antigo de estranhar, pelo menos à primeira vista, que os cães, que amigo. Ademais, no Brasil ainda há uma resistência e sérias conosco estavam em casa, também conosco fossem para reservas à presença do cão na maioria dos locais. Há não o trabalho. A convivência ao longo dos séculos tem sido muito tempo uma passageira cega com seu cão-guia foi mutuamente (para eles e para nós) gratificante e recom- barrada em uma estação do metrô de São Paulo. Depois de pensadora. Talvez tenha chegado a hora de testá-los em algum tumulto e intervenção da Justiça, a empresa teve de ambientes industriais e pós-industriais, em organizações alterar sua prática e aceitar cães-guias. Nos Estados Unidos intensivas em conhecimento e que usam as mais avançadas cães-guias viajam até em aviões com seus proprietários tecnologias. cegos e com direto a assento na cabine de passageiros ao lado do dono. Portanto, parece que ainda estamos a alguma distância de termos no país cães latindo nos escritórios. Mas, nesses dias de mudanças rápidas e especialmente em que as práticas se difundem com grande velocidade, o exemplo que nos vem dos Estados Unidos é interessante. A empresa é o local onde passamos a maior parte do tempo Carlos Osmar Bertero Doutor em Administração pela Cornell University Prof. do Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da FGV-EAESP E-mail: carlos.bertero@ fgv.br © GV executivo • 51