FATOR HUM ANO
Latidos no
escritório
O
cão faz parte da convivência humana há séculos. No ocidente, em particular, suas representações sociais fizeram
dele alvo de estima e carinho, com um papel importante
em diversas atividades. Mais recentemente, a função social do
cão está sendo ampliada. Nos EUA, ele está começando a fazer
parte do quadro das empresas, sendo levado por seus donos, ao
ambiente de trabalho. O artigo analisa as bases desse fenômeno e
suas implicações em termos de gestão de pessoas na atualidade.
IMAGEM: KIPPER
por Carlos Osmar Bertero FGV- EAESP
O ocidente convencionou a representação de que o cão é o
lugar-comum, fato é que, quando comparado a outros pri-
melhor amigo do homem. Normalmente, as características
matas, o comportamento do cão parece mesmo confirmar
que descrevem o vínculo de homens e cães o fazem na
sua natureza afetuosa e companheira, algo às vezes distante
perspectiva da amizade, incluindo valores como lealdade,
da compreensão mesmo dos humanos.
companheirismo e uma obstinada atitude de apego e re-
De um ponto de vista sociológico, a relação entre
verência ao dono por parte do animal. Sendo ou não um
homens e cães foi sendo construída ao longo do tempo
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de modo que os segundos atendem a propósitos especí-
países mais “caninos” do que outros. A Inglaterra foi o berço
ficos dos primeiros. Além da amizade doméstica, os cães
de grande número de raças nos últimos quatro séculos. Na
serviram – e servem – como companheiros de guarda em
Europa ainda merecem destaque a Alemanha, a França e
acampamento s; co mo auxiliares no pasto reio de gado
a Itália como países que tiveram e ainda possuem grande
domesticado e nas caças, e como companhia dos soldados
importância para a cinofilia.
nos campos de batalha.
As representações dadas aos cães no ocidente depen-
Porém, na atualidade, um novo uso vem sendo feito
dem de uma compreensão mais ampla de alguns fenômenos
dos cães. Em alguns países, como nos EUA, eles foram
sociais, dos quais as mudanças no sentido e na composição
levados para o ambiente de trabalho, onde fazem parte da
das famílias é o mais emblemático. De fato, a família, que de
rotina diária de seus donos e, em alguns casos, tornam-se
extensa passou a nuclear, é hoje formada por um pequeno
membros simbólicos da cultura organizacional. O propósito
número de pessoas que coabitam o mesmo espaço físico
deste artigo é analisar esse fenômeno corporativo recente.
com laços são cada vez mais frágeis e instáveis.
No sso po nto é discutir o s antecedentes que to rnaram
A conseqüência dessa alteração na estrutura da família
possível essa invasão de fronteiras e instigar o leitor sobre
é o crescente número de pessoas vivendo sós ou então sem
se o fenômeno refere-se a um novo modismo gerencial ou
vínculos de longa duração entre si. Somado a isso, há tam-
se, pelo contrário, tem algo a nos dizer sobre satisfação e
bém a solidão resultante da mobilidade geográfica, que se
produtividade nas novas condições de trabalho das em-
acelerou nos últimos anos e rompeu os vínculos das pessoas
presas pós-industriais.
baseados em local de nascimento e tradição. Vivendo em
grandes centros urbanos, elas têm de
A prática de levar cães ao trabalho, apesar
de, por enquanto, não ser alg o rotineiro
nos EUA, tem g randes chances de vir a sêlo, e em nenhum momento questiona-se a
lidar com o paradoxo de estar no meio
de muitas outras, mas, ao mesmo tempo, não ter com elas qualquer vínculo
social significativo.
Em meio a todas essas transformações, destaca-se a função social do
cão, com quem as pessoas estabelecem
vínculos afetivos fortes, muitas vezes
leg itimidade da idéia ou se se trata de um
modismo passag eiro ou de alg uma nova
ex centricidade do mundo ex ecutivo.
em concorrência com as demais formas de vínculos tipicamente humanos.
Na prática, o cão segue o humano – se
este muda do campo para a cidade, ele
o acompanha; se a estrutura da família
se altera, o cão passa a conviver com
Cães e humanos. Em quase todas as culturas, o cão é
todos. Em resposta à nuclearização da família e à saída
um animal domesticado e intocado. Apesar de sua enorme
dos filhos de casa mesmo sem contraírem matrimônio, o
fertilidade e facilidade reprodutiva, não é considerado ani-
cão se faz presente em todos os momentos e em todas as
mal de abate, salvo poucas exceções. Em algumas culturas
casas e apartamentos onde as pessoas resolvam se insta-
ele é considerado um animal “sujo” ou “impuro”, mas, no
lar. O histórico companheiro parece indiferente a essas
ocidente, é em geral visto como amistoso, amigo da espé-
mudanças que os humanos vêm fazendo em suas vidas e
cie humana e merecedor de afeição e respeito.
formas de convivência.
Não seria inverdade afirmar que a cinofilia, enquanto
amor, amizade, respeito e dedicação ao cão, tem raízes mais
Cães e empresas. O s Estado s Unido s são ho je,
profundas em alguns países e que, mesmo atualmente, há
certamente, o país em que o cão está mais intimamente
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ligado aos humanos, chegando mesmo a estimular aspec-
como ambiente em que deve imperar a racionalidade, o
to s radicais de relacio namento . As peculiaridades desse
controle e a “seriedade”?
país e a sua o rigem cultural pro veniente da Inglaterra
Um olhar isento sobre algumas práticas gerenciais norte-
ajudam a explicar a po sição do cão em sua so ciedade e,
americanas em relação aos cães podem nos dar a resposta.
co nseqüentemente, a maneira co mo se relacio na co m o s
Vemos então que os cães têm por lá uma série de “atribui-
humanos. Adicionalmente, é provável que o individualis-
ções”. Tomemos alguns exemplos retirados do noticiário
mo no rte-americano também exerça fo rça co mo matriz
da imprensa norte-americana. Para Riley, um cão de 6 anos
cultural em que se fundamenta o vínculo ho mem-cão
que trabalha com sua dona, uma secretária, o seu trabalho
naquele país.
consiste em ficar deitado durante seis horas diárias aos pés
Assim, não é exagero afirmar que, nos EUA, o cão é
de sua dona enquanto ela digita e atende telefonemas.
um substituto dos filhos, dos pais, dos irmãos e irmãs e
A empresa Phelps Group, uma agência de propaganda
muitas vezes é o único amigo. Dorme em casa, brinca com
localizada na cidade de Santa Mônica, na Califórnia, tem em
as crianças e acompanha os adultos. Quando os filhos vão
seu quadro 55 humanos e 8 cães. Suas tarefas são essencial-
para a universidade, levam consigo um cão; nos dormitó-
mente estéticas: servem de inspiração aos profissionais hu-
rios e em praticamente todas as áreas de uma universidade
manos para o desenvolvimento de campanhas publicitárias e
norte-americana os cães estão presentes, de modo que
para a redação de textos. A agência obteve grande sucesso ao
não é incomum que em muitas instituições eles assistam
criar um slogan para um cliente, a Pet Company: Petco, where
às aulas com seus donos. Acompanham os adultos até
the pets go [“Petco, o lugar em que até os cães vão”] .
mesmo na prática de esportes. Há cães caçadores e há os
Já em uma outra empresa, a Urban Space Develop-
que vão também a parques públicos desfrutar o lazer com
ment, uma empresa imobiliária, os três cães, Lola, Leo e
seus proprietários.
Max, atuam como “facilitadores”. Quando as tensões entre
Mais recentemente, os norte-americanos sofisticaram
os clientes se exacerbam, especialmente em função de
o vínculo com seus cães, passando a levá-los ao trabalho.
reclamações sobre os serviços da imobiliária ou durante a
Mas o que os cães fazem nas empresas? Tal movimento não
negociação de contratos de locação, os três cães abanam
constitui uma inversão na imagem tradicional da empresa
os rabos, olham meigamente para os tensos humanos e se
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oferecem para receber carinhos. Segundo o presidente da
de um benefício. Paradoxalmente, à medida que os demais
empresa, eles contribuem para iluminar e descontrair o
benefícios que empregadores costumavam oferecer aos
ambiente de trabalho.
seus empregados naquele país, como atraentes fundos de
Mas há cães com “cargos executivos” e com respon-
pensão, seguros de saúde, carreiras claramente definidas
sabilidades específicas. É o caso de Charlotte, uma cadela
e aumentos regulares de salários, estão em vertiginoso
terrier que trabalha na Jen Lew Designs, na cidade de
declínio, a compensação pela aceitação dos cães parece
Mattituck, em Long Island, e cujo nome aparece em toda
ser uma “inovação” para equilibrar – ou mascarar – a dura
a correspondência da empresa como Chefe de Serviços
vida corporativa dos trabalhadores norte-americanos de
ao Consumidor, recebendo e-mails dos clientes sempre
colarinho-branco. Existe, porém, alguma evidência que
que surge um problema a ser solucionado. A avaliação
aponte no sentido de benefícios reais na convivência com
cães, especifi camente no ambiente
de trabalho?
P aradox almente, à medida que os
A resposta para essa questão não
benefícios que empreg adores costumavam
pode ser dada em definitivo. Contu-
oferecer aos seus empreg ados estão em
do que prejuízos na interação com
vertig inoso declínio, a compensação pela
que, do ponto de vista prático e, di-
do, aparentemente há mais benefícios
cães no ambiente de trabalho. É claro
gamos, “logístico”, seriam necessárias
aceitação dos cães parece ser uma inovação
para equilibrar a dura vida corporativa dos
algumas adaptações e alterações de
comportamento, tanto da parte dos
canino s co mo do s humano s. Cães
precisam ser treinados para conviver
trabalhadores norte-americanos.
em ambientes sociais; por seu turno,
os humanos têm de arranjar o am-
da supervisora imediata de Charlotte, a proprietária da
biente de modo a acomodá-los da melhor maneira possível
empresa, Jenifer Lew, é de que seu desempenho no cargo
para ambos.
é excelente, poupando à empresa grandes dores de cabeça,
especialmente com clientes mais difíceis e exigentes.
A despeito disso, os resultados podem ser positivos:
para o s humano s, a co mpanhia do s cães parece fato r
importante que os encoraja a permanecer na empresa.
R H e cães. Os fatos referidos nos parágrafos anteriores
Também não se pode negar que seres humanos parecem
foram extraídos da coluna de Lisa Belkin, publicada quin-
melhorar quando interagem com cães. Embora a interface
zenalmente no prestigiado The New York Times. A coluna é
homem-animal ainda seja pouco estudada e conhecida,
voltada para questões sobre “intersecção entre o trabalho
há evidências de que pessoas que vivem sós têm mais
e a vida pessoal” das pessoas. No diagnóstico de Belkin, a
problemas com depressão do que as que vivem com cães.
prática de levar cães ao trabalho, apesar de, por enquanto,
Além disso, existem benefícios que cães promovem aos
não ser algo rotineiro nos EUA, tem grandes chances de vir
humanos, como se observa nos diversos serviços de apoio
a sê-lo, e em nenhum momento questiona-se a legitimidade
a pacientes em hospitais.
da idéia ou se se trata de um modismo passageiro ou de
Mesmo assim, não é algo fácil desenvolver uma cadeia
alguma nova excentricidade típica do mundo executivo
causal que assegure uma relação positiva entre a presença
norte-americano.
de cães no local de trabalho e a melhoria do clima organiza-
Primeiro, porque as empresas fazem questão de dar à
cional, levando ao melhor relacionamento entre as pessoas
aceitação de cães na empresa o caráter de uma concessão e
e ao aumento de motivação com reflexos positivos sobre a
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produtividade da empresa e a qualidade de seus produtos
e serviços. Todas essas relações, embora freqüentemente
repetidas na retórica da gestão de pessoas, são de difícil e
problemática comprovação.
Neste ponto podemos nos questionar se a prática de
levar cães ao escritório não é algo que apenas faz sentido à
luz da realidade norte-americana, tendo em vista o valor que
o cão possui naquela cultura. Desse modo, haveria algum
sentido em estender essa prática às empresas brasileiras?
Cães e empresas no Brasil. Já foram apontadas
as diferenças culturais com relação ao relacionamento entre homens e cães quando
se afirmou que há países “mais
caninos” que outros. E como é o
nosso país? Aparentemente, os cães
aqui estão em alta. Indicadores são fornecidos pela indústria de alimentos para
cães, que registram substanciais aumentos de
faturamento, o que indica mais cães e especialmente cães mais bem cuidados e alimentados.
Outro dado é que também aumentou o núme-
e, de resto, a maior parte de nossas vidas. Se comparadas
ro de pet shops e de consultórios de veterinários no país.
com o passado pré-industrial, veremos que, na origem, as
No entanto, é enorme o número de cães abandonados a
pessoas viviam e trabalhavam em suas casas, de sorte que
perambular por ruas e estradas, com suas vidas reduzidas
a residência e o local de trabalho estavam unificados.
pela falta de alimento, sendo maltratados e mortos por
atropelamentos em ruas e estradas.
Com a industrialização e a urbanização, os locais de
trabalho e moradia foram separados. Conseqüentemente,
Esse abandono indica uma sociedade que ainda não
passa-se hoje mais tempo no trabalho do que no lar. Não é
co nvive em termo s civilizado s co m no sso mais antigo
de estranhar, pelo menos à primeira vista, que os cães, que
amigo. Ademais, no Brasil ainda há uma resistência e sérias
conosco estavam em casa, também conosco fossem para
reservas à presença do cão na maioria dos locais. Há não
o trabalho. A convivência ao longo dos séculos tem sido
muito tempo uma passageira cega com seu cão-guia foi
mutuamente (para eles e para nós) gratificante e recom-
barrada em uma estação do metrô de São Paulo. Depois de
pensadora. Talvez tenha chegado a hora de testá-los em
algum tumulto e intervenção da Justiça, a empresa teve de
ambientes industriais e pós-industriais, em organizações
alterar sua prática e aceitar cães-guias. Nos Estados Unidos
intensivas em conhecimento e que usam as mais avançadas
cães-guias viajam até em aviões com seus proprietários
tecnologias.
cegos e com direto a assento na cabine de passageiros ao
lado do dono. Portanto, parece que ainda estamos a alguma
distância de termos no país cães latindo nos escritórios.
Mas, nesses dias de mudanças rápidas e especialmente
em que as práticas se difundem com grande velocidade, o
exemplo que nos vem dos Estados Unidos é interessante.
A empresa é o local onde passamos a maior parte do tempo
Carlos Osmar Bertero
Doutor em Administração pela Cornell University
Prof. do Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da FGV-EAESP
E-mail: carlos.bertero@ fgv.br
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