Academia.eduAcademia.edu

Vygotsky - Teresa Cristina Rego

Agradeço ao Antônio Joaquim Severino por ter me proposto o desafio de escrever este livro, à Marta Kohl de Oliveira que tanto me ensina e inspira, ao Nelson Motta Mello F. por me ajudar a descobrir tantas coisas e ao Zé Geraldo pela convivência respeitosa, solidária e tão carinhosa. Antônio Joaquim Severino Coordenador É bem provável que sua precoce curiosidade por temas de diferentes campos do conhecimento tenha sido provocada, no início, pelo acesso que tinha, no seu contexto familiar, a diversos tipos de informações. Outro traço marcante na formação de Vygotsky, e que alimentou seu gosto pela leitura, foi o aprendizado de diferentes línguas 2 , o que permitiu que entrasse em contato com materiais de diversas procedências. Assim, mesmo tendo viajado apenas uma vez para o exterior, tinha acesso a informações do restante do mundo, pois lia, desde muito cedo, mais do que as traduções russas lhe permitiam. Aos 17 anos completou o curso secundário, num colégio privado em Gomel. Nesta ocasião recebeu medalha de ouro pelo seu desempenho 3. De 1914 a 1917 estudou Direito e Literatura, na Universidade de Moscou, época em que começou sua pesquisa literária mais sistemática. O trabalho que apresentou no término desse curso foi um estudo do Hamlet, de Shakespeare: "A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca", que mais tarde, em 1925, deu origem ao livro Psychology of Art (Psicologia da Arte), que foi publicado na Rússia somente em 1965. Segundo Luria, já nesse trabalho e em outros ensaios literários posteriores, é possível identificar sua grande competência para realizar análises psicológicas, fruto das influências que recebeu dos estudiosos soviéticos interessados no efeito da linguagem sobre os processos de pensamento (LURIA, 1988, p. 22). É curioso observar que no mesmo período em que cursava a Universidade de Moscou, também participava, na Universidade Popular de Shanyavskii, de cursos de História e Filosofia (não recebeu, no entanto, nenhum título acadêmico por essas atividades). Anos mais tarde, o crescente interesse em compreender o desenvolvimento psicológico do ser humano, e, particularmente, as anormalidades físicas e mentais, levou Vygotsky a fazer cursos na Faculdade de Medicina, primeiramente em Moscou e depois em Kharkov. Assim, seu percurso acadêmico foi marcado pela interdisciplinaridade já que transitou por diversos assuntos, desde artes, literatura, linguística, antropologia, cultura, ciências sociais, psicologia, filosofia e, posteriormente, até medicina. O mesmo ocorreu com sua atuação

Teresa Cristina Rego VYGOTSKY Uma perspectiva histórico-cultural da educação COLEÇÃO EDUCAÇÃO E CONHECIMENTO Coordenador: Antônio Joaquim Severino – John Dewey – Uma filosofia para educadores em sala de aula Marcus Vinícius da Cunha – Vygotsky – Uma perspectiva histórico-cultural da educação Teresa Cristina Rego – Henri Wallon – Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil Izabel Galvão – Edgar Morin – A educação e a complexidade do ser e do saber Izabel Cristina Petraglia – Agnes Heller – Filosofia, moral e educação Maria Helena Bittencourt Granjo – Célestin Freinet – Uma pedagogia de atividade e cooperação Marisa Del Cioppo Elias – Comênio – A emergência da modernidade na educação João Luís Gasparin – Richard Rorty – A filosofia do Novo Mundo em busca de mundos novos Paulo Ghiraldelli Júnior – Adorno – O poder educativo do pensamento crítico Bruno Pucci, Newton Ramos-de-Oliveira, Antônio Álvaro Soares Zuin – Maquiavel – Educação e cidadania Lídia Maria Rodrigo – Ortega y Gasset – Uma crítica da razão pedagógica Juan Guillermo Droguett – Friedrich Froebel – O pedagogo dos jardins de infância Alessandra Arce – Norbert Elias – Formação, educação e emoções no processo de civilização Carlos da Fonseca Brandão – Bachelard – Pedagogia da razão, pedagogia da imaginação Elyana Barbosa e Marly Bulcão – Giambattista Vico – A filosofia e a educação da humanidade Humberto Guido – Max Weber – Modernidade, ciência e educação Alonso Bezerra de Carvalho – Rousseau – Educação: a máscara e o rosto Marlene de Souza Dozol – Anísio Teixeira – Experiência reflexiva e projeto democrático: a atualidade de uma filosofia da educação Pedro Angelo Pagni – Agostinho – Educação e fé na cidade de Deus Eduardo Antônio Jordão – Emilia Ferreiro – Uma concepção do desenvolvimento da escrita na criança Marilia Claret Geraes Duran – Pierre Bourdieu – Educação para além da reprodução Nadia G. Gonçalves e Sandro A. Gonçalves – Matthew Lipman – Educação para o pensar filosófico na infância Cláudio Roberto Brocanelli © 1994, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Editoração e org. literária: José Idair F. Augusto Capa: Marcos Mattos ISBN 978-85-326-4500-5 – Edição digital Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Rego, Teresa Cristina Vygotsky : uma perspectiva histórico-cultural da educação / Teresa Cristina Rego. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2012. – (Educação e conhecimento) Bibliografia. 1. Administração de serviços 2. Clientes – Contatos 3. Consumidores – Satisfação 4. Serviço ao cliente 5. Sucesso I. Título. II. Série. 94-4445 CDD-658-812 Índices para catálogo sistemático: 1. Serviços aos clientes : Administração de empresas 658.812 Editado conforme o novo acordo ortográfico. Agradecimentos Agradeço ao Antônio Joaquim Severino por ter me proposto o desafio de escrever este livro, à Marta Kohl de Oliveira que tanto me ensina e inspira, ao Nelson Motta Mello F. por me ajudar a descobrir tantas coisas e ao Zé Geraldo pela convivência respeitosa, solidária e tão carinhosa. Apresentação da coleção A história da cultura ocidental revela-nos que a educação sempre esteve intimamente ligada à teoria, produzida tanto no âmbito da filosofia como no âmbito das ciências humanas em geral. Expressando-se fundamentalmente como uma práxis social, a educação nunca deixou de referir-se a fundamentos teóricos, mesmo quando fazia deles uma utilização puramente ideológica. Este testemunho da história já seria suficiente para demonstrar o quanto é necessário, ainda hoje, manter vivo e atuante esse vínculo entre a visão filosófica e a intenção pedagógica. Vale dizer que é extremamente relevante e imprescindível a formação filosófica do educador, seja no campo da produção do conhecimento, seja no campo da avaliação dos fundamentos do agir, seja ainda no campo da construção da imagem da própria existência humana. Mas, por outro lado, além das deficiências pedagógicas e curriculares intrínsecas ao processo de formação dos profissionais da educação, também a falta de mediações e de recursos culturais dificulta muito a apropriação, por parte deles, desses elementos que deem conta da íntima vinculação da educação com seus fundamentos teóricos. Assim, o objetivo principal desta Coleção é o de ser mais uma mediação, ágil e eficaz, para colocar ao alcance dos professores, dos estudantes bem como dos demais profissionais da educação, e mesmo do público em geral, as linhas básicas do pensamento dos grandes teóricos, destacando sua contribuição para a melhor compreensão do sentido da educação. A abordagem de um texto desta natureza, intencionalmente introdutório, despertando para a relevância das construções teóricas, enquanto contribuições para a elaboração de visões do homem, do mundo, da sociedade, da cultura, do saber e do valor, para a educação, certamente incentivará o interesse do estudioso em aprofundar a análise e reflexão, nos diversos campos em que se envolve a prática educacional. Os textos propostos visam apresentar as linhas básicas do pensamento dos autores, destacando-se as implicações propriamente filosófico-educacionais desse pensamento. Quer tratando de questões diferentes ao conhecimento, quer tratando de questões referentes às condições de existência do homem, quer tratando de questões referentes ao agir, todo pensamento sistematizado traz em seu bojo elementos profundamente relacionados à educação, uma vez que esta é, na realidade, um esforço que visa, com certo grau de sistematicidade, intencionalizar o social no desdobramento do histórico. E, enquanto tal, a educação se vincula, direta e intrinsecamente, com as abordagens epistemológicas, antropológicas e axiológicas, presentes, explícita ou implicitamente, nas produções teóricas da filosofia e das ciências humanas. O Projeto desta Coleção está aproveitando os resultados de um esforço cada vez mais consistente que vem sendo desenvolvido, sobretudo no âmbito dos cursos de pós-graduação, com vistas à realização de pesquisas e de estudos que buscam refazer a construção coletiva do conhecimento na tradição cultural do Ocidente. E a proposta é de se colocar ao alcance de todos que se envolvem com a educação, essa produção teórica que, por sua própria natureza, possa contribuir para o esclarecimento e compreensão do processo educacional, independentemente da área em que essa produção se deu. A Coleção enfatiza seu objetivo de ampliar o universo das inspirações teóricas para os educadores, viabilizando-lhes o acesso a um espectro mais amplo de pensadores. Inicialmente o Projeto privilegia pensadores modernos e contemporâneos, que estão marcando mais nitidamente a reflexão nos tempos atuais. Mas em se tratando de um Projeto que se desdobrará a longo prazo, contemplará também os pensadores clássicos, da antiguidade e da modernidade. A proposta inclui também pensadores brasileiros que já deram sua contribuição ao debate teórico, subsidiando a compreensão de nossa problemática educacional. Estamos certos de estar colocando à disposição de todos os estudantes e profissionais da área mais um valioso instrumento de trabalho didático e um fecundo roteiro inicial de pesquisa e de reflexão. Antônio Joaquim Severino Coordenador Introdução O que mais impressiona, dentre vários aspectos, na leitura da obra de Vygotsky é a sua contemporaneidade. Seus escritos, elaborados há aproximadamente sessenta anos, ainda hoje têm o efeito do impacto, da ousadia, da fidelidade à investigação acerca de pontos obscuros e polêmicos no campo científico. Vygotsky viveu apenas 37 anos. Morreu de tuberculose em 1934. Apesar de breve, sua produção intelectual foi extremamente intensa e relevante: chegou a elaborar cerca de 200 estudos científicos sobre diferentes temas e sobre as controvérsias e discussões da psicologia contemporânea e das ciências humanas de um modo geral. É praticamente impossível definir o alcance da contribuição de sua obra. Para a psicologia, sem dúvida, significa um avanço, para a pedagogia uma orientação mas também sugere um rico material para a análise no campo da antropologia, da linguística, da história, da filosofia e da sociologia. O estilo de sua obra tem características que lhe são bastante peculiares. Apesar de seu interesse central ser o estudo da gênese dos processos psicológicos tipicamente humanos, em seu contexto histórico-cultural, se deteve ao longo de sua vida acadêmica e profissional, em questões de várias áreas do conhecimento: arte, literatura, linguística, filosofia, neurologia, no estudo das deficiências e temas relacionados aos problemas da educação. Como analisa WERTSCH, essa postura interdisciplinar era coerente com seu projeto de pesquisa: “Vygotsky foi capaz de agregar diferentes ramos de conhecimento em um enfoque comum que não separa os indivíduos da situação cultural em que se desenvolvem. Este enfoque integrador dos fenômenos sociais, semióticos e psicológicos tem uma capital importância hoje em dia, transcorrido meio século desde sua morte” (WERTSCH, 1988, p. 34). Além de abundantes e marcadamente interdisciplinares, as produções escritas de Vygotsky são extremamente complexas e densas em informações preliminares. Isto se deve não somente à característica pouco ortodoxa de seus trabalhos (os relatos escritos não trazem, por exemplo, detalhes sobre os procedimentos metodológicos adotados em suas pesquisas), mas também a diversos outros fatores. A maior parte de sua obra foi editada tardiamente e, em alguns casos, de forma inadequada e incompleta. Além disso, nos períodos que sua doença se agravava, ele ditava suas ideias que eram transcritas por outra pessoa; outras ideias foram conhecidas a partir de anotações feitas nas suas aulas e palestras, o que muitas vezes resultava em redações pouco claras. Apesar de alguns de seus textos serem herméticos, de difícil compreensão, expressam o enorme entusiasmo e fecundidade intelectual de um jovem pesquisador. Ler Vygotsky é, com certeza, um exercício de reunir e se apropriar da fertilidade das descobertas de um estudioso inquieto e obstinado, que dedicou sua vida ao esforço de romper, transformar e ultrapassar o estado de conhecimento e reflexão sobre o desenvolvimento humano de seu tempo. Mesmo não tendo esgotado todo o seu pretensioso projeto inicial (muitas das questões levantadas por Vygotsky continuam até hoje não respondidas), ele conseguiu não só antever o futuro, mas apresentar uma série de perspectivas e diretrizes potencialmente férteis e polêmicas que viriam a ser aprofundadas por seus colaboradores, muitas, inclusive, somente depois de sua morte. Como afirmam Cole & Scribner: “As implicações de sua teoria eram tantas e tão variadas, e o tempo tão curto, que toda sua energia concentrou-se em abrir novas linhas de investigação ao invés de perseguir uma linha em particular até esgotá-la. Essa tarefa coube aos colaboradores e sucessores de Vygotsky, que adotaram suas concepções das mais variadas maneiras, incorporando-as em novas linhas de pesquisa” (1984, p. 12). É justamente devido a estes traços bastante particulares, que os trabalhos deste psicólogo russo costumam ser considerados uma “teoria incompleta”, uma “obra aberta”, já que não se apresentam como um sistema teórico acabado, organizado e aprofundado e sim como uma produção interrompida precocemente, capaz de inspirar e lançar novas bases que viriam a ser mais bem investigadas no futuro e que ainda são bastante atuais. Este livro pretende oferecer uma interpretação sobre alguns aspectos da vida e obra de Vygotsky assim como uma reflexão de possíveis implicações de seu pensamento à educação. Esperamos que ele possa ser útil para tornar as suas ideias mais acessíveis e estimular estudos mais aprofundados de sua obra. Capítulo I A VIDA BREVE E INTENSA DE VYGOTSKY Para compreender o contexto e as razões do direcionamento da obra de Vygotsky, suas ideias centrais e contribuições, será útil ao leitor saber um pouco da sua biografia, do percurso intelectual e das condições da sociedade e da psicologia na Rússia pós-revolucionária que lhe forneceram o cenário inicial e as questões principais para suas teorias. Assim, analisaremos, a seguir, o curso de sua vida, a maneira pela qual deu forma às inúmeras influências recebidas da sua família e dos amigos, do clima intelectual e social da época em que viveu, de suas leituras e de suas lutas1. 1. PERCURSO INTELECTUAL Lev Semenovich Vygotsky nasceu a 17 de novembro de 1896 em Orsha, uma pequena cidade provinciana, na Bielo-Rússia. Sua família, de origem judaica, propiciava um ambiente bastante desafiador em termos intelectuais e estável no que diz respeito ao aspecto econômico. Seu pai, pessoa culta, trabalhava num banco e numa companhia de seguros. Sua mãe, apesar de ter dedicado grande parte de sua vida à criação dos filhos, era professora formada. Vygotsky cresceu e viveu por um longo período em Gomel, também na Bielo-Rússia, na companhia de seus pais e de seus sete irmãos. Casou-se aos 28 anos, com Roza Smekhova, com quem teve duas filhas. Faleceu em Moscou, em 11 de junho de 1934, vítima de tuberculose, doença com que conviveu durante quatorze anos. Sua educação, até os 15 anos, processou-se totalmente em casa, através de tutores particulares. Desde cedo mostrou ser um estudante dedicado e ávido por informações. Gostava de literatura e assuntos relacionados às artes em geral. Frequentava a biblioteca que tinha em sua casa e a biblioteca pública, estudava sozinho e com seus amigos. É bem provável que sua precoce curiosidade por temas de diferentes campos do conhecimento tenha sido provocada, no início, pelo acesso que tinha, no seu contexto familiar, a diversos tipos de informações. Outro traço marcante na formação de Vygotsky, e que alimentou seu gosto pela leitura, foi o aprendizado de diferentes línguas2, o que permitiu que entrasse em contato com materiais de diversas procedências. Assim, mesmo tendo viajado apenas uma vez para o exterior, tinha acesso a informações do restante do mundo, pois lia, desde muito cedo, mais do que as traduções russas lhe permitiam. Aos 17 anos completou o curso secundário, num colégio privado em Gomel. Nesta ocasião recebeu medalha de ouro pelo seu desempenho3. De 1914 a 1917 estudou Direito e Literatura, na Universidade de Moscou, época em que começou sua pesquisa literária mais sistemática. O trabalho que apresentou no término desse curso foi um estudo do Hamlet, de Shakespeare: “A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca”, que mais tarde, em 1925, deu origem ao livro Psychology of Art (Psicologia da Arte), que foi publicado na Rússia somente em 1965. Segundo Luria, já nesse trabalho e em outros ensaios literários posteriores, é possível identificar sua grande competência para realizar análises psicológicas, fruto das influências que recebeu dos estudiosos soviéticos interessados no efeito da linguagem sobre os processos de pensamento (LURIA, 1988, p. 22). É curioso observar que no mesmo período em que cursava a Universidade de Moscou, também participava, na Universidade Popular de Shanyavskii, de cursos de História e Filosofia (não recebeu, no entanto, nenhum título acadêmico por essas atividades). Anos mais tarde, o crescente interesse em compreender o desenvolvimento psicológico do ser humano, e, particularmente, as anormalidades físicas e mentais, levou Vygotsky a fazer cursos na Faculdade de Medicina, primeiramente em Moscou e depois em Kharkov. Assim, seu percurso acadêmico foi marcado pela interdisciplinaridade já que transitou por diversos assuntos, desde artes, literatura, linguística, antropologia, cultura, ciências sociais, psicologia, filosofia e, posteriormente, até medicina. O mesmo ocorreu com sua atuação profissional, que foi eclética e intensa e esteve sempre associada ao trabalho intelectual. Vygotsky começou sua carreira aos 21 anos, após a Revolução Russa de 1917. Em Gomel, no período de 1917 a 1923, além de escrever críticas literárias, lecionou e proferiu palestras sobre temas ligados a literatura4, ciência e psicologia em várias instituições. Já nesta época preocupava-se também com questões ligadas à pedagogia. Em 1922, por exemplo, publicou um estudo sobre os métodos de ensino da literatura nas escolas secundárias. Nessa fase, dirigia a seção de teatro do Departamento de Educação de Gomel. Na mesma cidade fundou ainda uma editora, uma revista literária e um laboratório de psicologia no Instituto de Treinamento de Professores, local onde ministrava cursos de psicologia. O interesse de Vygotsky pela psicologia acadêmica começou a se delinear a partir de seu contato, no trabalho de formação de professores, com os problemas de crianças com defeitos congênitos, tais como: cegueira, retardo mental severo, afasia etc. Essa experiência o estimulou a encontrar alternativas que pudessem ajudar o desenvolvimento de crianças portadoras dessas deficiências. Na verdade, seu estudo sobre a deficiência (tema a que se dedicou durante vários anos) tinha, não somente o objetivo de contribuir na reabilitação das crianças mas também significava uma excelente oportunidade de compreensão dos processos mentais humanos, assunto que viria a ser o centro de seu projeto de pesquisa. 2. UMA DÉCADA DE MUITO TRABALHO O ano de 1924 significou um grande marco na sua carreira intelectual e profissional. A partir dessa data se dedicou mais sistematicamente à psicologia. No início deste ano realizou uma palestra no II Congresso de Psicologia em Leningrado, que na época era considerado um dos principais encontros dos cientistas ligados à psicologia. Na sua exposição, o jovem de então 28 anos causou surpresa e admiração devido à complexidade do tema que abordou, à qualidade de sua exposição e à proposição de ideias revolucionárias sobre o estudo do comportamento consciente humano. Graças a esta comunicação Vygotsky foi convidado a trabalhar no Instituto de Psicologia de Moscou. Assim, no outono daquele ano ele aceita o desafio e muda-se para Moscou, onde inicialmente trabalhou no Instituto de Psicologia e, tempos depois, no Instituto de Estudos das Deficiências, por ele fundado. Simultaneamente, devido a suas investigações sobre os deficientes físicos e mentais, chegou a dirigir um Departamento de Educação, em Narcompros, voltado para este público. Naquele mesmo ano escreveu o trabalho: Problemas da Educação de Crianças cegas, surdo-mudas e retardadas, que apresentava algumas de suas reflexões sobre o assunto. Ministrou ainda cursos de Psicologia e Pedagogia em diversas instituições de Moscou e Leningrado e, anos depois, na Ucrânia. De 1924 até o ano de sua morte, apesar da doença e das frequentes hospitalizações, Vygotsky demonstrou um ritmo de produção intelectual excepcional. Ao longo desses anos, além de amadurecer seu programa de pesquisa, continuou lecionando, lendo5, escrevendo e desenvolvendo importantes investigações. Liderou também um grupo de jovens cientistas, pesquisadores da psicologia e das anormalidades físicas e mentais. O projeto principal de seu trabalho consistia na tentativa de estudar os processos de transformação do desenvolvimento humano na sua dimensão filogenética, histórico-social e ontogenética6. Deteve-se no estudo dos mecanismos psicológicos mais sofisticados (as chamadas funções psicológicas superiores), típicos da espécie humana: o controle consciente do comportamento, atenção e lembrança voluntária, memorização ativa, pensamento abstrato, raciocínio dedutivo, capacidade de planejamento etc. Seguindo as premissas do método dialético, procurou identificar as mudanças qualitativas do comportamento que ocorrem ao longo do desenvolvimento humano e sua relação com o contexto social. Coerente com este propósito, Vygotsky fez, no final da década de 20 e no início dos anos 30, relevantes reflexões sobre a questão da educação e de seu papel no desenvolvimento humano. Nessa fase se dedicou mais especialmente ao estudo da aprendizagem e desenvolvimento infantil, trabalhando numa área que, segundo ele, era mais abrangente que a psicologia: a “chamada `pedologia’ (ciência da criança, que integra os aspectos biológicos, psicológicos e antropológicos). Ele considerava essa disciplina como sendo a ciência básica do desenvolvimento humano, uma síntese das diferentes disciplinas que estudam a criança” (OLIVEIRA, 1993, p. 20). É importante ressaltar que a preocupação principal de Vygotsky não era a de elaborar uma teoria do desenvolvimento infantil. Ele recorre à infância como forma de poder explicar o comportamento humano no geral, justificando que a necessidade do estudo da criança reside no fato de ela estar no centro da pré-história do desenvolvimento cultural devido ao surgimento do uso de instrumentos e da fala humana. Apesar de não ter alcançado plenamente suas complexas metas, a obra de Vygotsky tem particular importância na medida em que “ele foi o primeiro psicólogo moderno a sugerir os mecanismos pelos quais a cultura torna-se parte da natureza de cada pessoa” (COLE & SCRIBNER, 1984, p. 7). Um dos pontos centrais de sua teoria é que as funções psicológicas superiores são de origem sociocultural e emergem de processos psicológicos elementares, de origem biológica (estruturas orgânicas). Ou seja, segundo ele, a complexidade da estrutura humana deriva do processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas relações entre história individual e social. 3. A PSICOLOGIA E A SOCIEDADE SOVIÉTICA PÓSREVOLUCIONÁRIA Podemos afirmar que tanto o “clima de renovação” da sociedade soviética pós-revolucionária quanto os dilemas presentes na psicologia da época em que Vygotsky viveu foram definidores de seu programa de trabalho. Ao analisarmos seu percurso acadêmico e profissional notamos as marcas do contexto sociopolítico e cultural em que esteve inserido. O fato de ter sido um intelectual russo, que iniciou sua carreira no auge do período pósrevolucionário, contribuiu para que se envolvesse ativamente na construção de uma abordagem transformadora da psicologia e da ciência soviética vigentes até aquele período. Nessa sociedade, a ciência era extremamente valorizada devido à expectativa de que os avanços científicos trouxessem a solução dos prementes problemas sociais e econômicos do povo soviético. A necessidade de afirmação ideológica e as demandas práticas exigidas pelo governo influenciavam a elaboração de teorias nos diversos campos do conhecimento. A produção acadêmica desse período, além de intensa, tinha um ponto em comum: a preocupação pelo desenvolvimento de abordagens históricas para a pesquisa de diferentes objetos de estudo. Desse modo, a atmosfera de sua época era de grande inquietação e estímulo para a busca de respostas às exigências de uma sociedade em franco processo de transformação. Um bom exemplo destas aspirações era o enorme poder atribuído à educação, que se traduzia no esforço de elaboração de programas educacionais eficientes, que erradicassem o analfabetismo e oferecessem melhores oportunidades aos cidadãos. O ideal revolucionário contagiava a todos, pois trazia o desejo de concretização de rápidos e significativos progressos para todo o povo, num brevíssimo espaço de tempo. Como avalia Luria, já com aproximadamente 70 anos, num trecho de sua autobiografia: “A Revolução nos libertou – especialmente a geração mais jovem – para a discussão de novas ideias, novas filosofias e sistemas sociais. [...] Fomos arrebatados por um grandioso movimento histórico. Nossos interesses pessoais foram consumidos em favor das metas mais amplas de uma nova sociedade coletiva. A atmosfera que se seguiu imediatamente à Revolução proporcionou a energia para muitos empreendimentos ambiciosos” (LURIA, 1992, p. 24 e 25). Assim a proposta de reestruturar a teoria e a pesquisa psicológica expressa por Vygotsky estava em fina sintonia com os projetos sociais e políticos de seu país. Nas primeiras décadas do século XX, a psicologia soviética (assim como a europeia e americana) estava dividida em duas tendências radicalmente antagônicas: “um ramo com características de ciência natural, que poderia explicar os processos elementares sensoriais e reflexos, e um outro com características de ciência mental, que descreveria as propriedades emergentes dos processos psicológicos superiores” (COLE & SCRIBNER, 1984, p. 6). Desse modo, existia de um lado um grupo que, baseado em pressupostos da filosofia empirista, via a psicologia como ciência natural que devia se deter na descrição das formas exteriores de comportamento, entendidas como habilidades mecanicamente constituídas. Esse grupo limitava-se à análise dos processos mais elementares e ignorava os fenômenos complexos da atividade consciente, especificamente humana. Já de outro lado, o outro grupo, inspirado nos princípios da filosofia idealista, entendia a psicologia como ciência mental, acreditando que a vida psíquica humana não poderia ser objeto de estudo da ciência objetiva, já que era manifestação do espírito. Este grupo não ignorava as funções mais complexas do ser humano, mas se detinha na descrição subjetiva de tais fenômenos. 4. A PROPOSIÇÃO DE UMA NOVA PSICOLOGIA Vygotsky entendia que ambas tendências, além de não possibilitarem a fundamentação necessária para a construção de uma teoria consistente sobre os processos psicológicos tipicamente humanos, acabaram promovendo uma séria crise na psicologia. Ao mesmo tempo que tecia críticas contundentes às correntes idealista e mecanicista, buscava a superação desta situação através da aplicação dos métodos e princípios do materialismo dialético, para a compreensão do aspecto intelectual humano. Ele acreditava que através desta abordagem abrangente seria possível não somente descrever mas também explicar as funções psicológicas superiores. Pretendia construir, assim, sobre bases teóricas completamente diferentes, uma “nova psicologia” que sintetizasse e transformasse as duas abordagens radicais anteriores: uma teoria marxista do funcionamento intelectual humano. Essa nova abordagem deveria incluir: “[...] a identificação dos mecanismos cerebrais subjacentes a uma determinada função: a explicação detalhada da sua história ao longo do desenvolvimento, com o objetivo de estabelecer as relações entre formas simples e complexas daquilo que aparentava ser o mesmo comportamento; e, de forma importante, deveria incluir a especificação do contexto social em que se deu o desenvolvimento de comportamento” (COLE & SCRIBNER, 1984, p. 6). Essa grande “empreitada intelectual” contava com a participação de talentosos pesquisadores, dentre eles, Alexander Romanovich Luria (19021977) e Alexei Nikolaievich Leontiev (1904-1979), principais colaboradores de Vygotsky e que o acompanharam até a sua morte, uma década mais tarde7. Juntos eles constituíram a chamada “troika”, que traduzia as aspirações, o idealismo e a efervescência cultural de uma sociedade pós-revolucionária. Como avalia Luria: “Com Vygotsky como líder reconhecido, empreendemos uma revisão crítica da história e da situação da psicologia na Rússia e no resto do mundo. Nosso propósito, superambicioso como tudo na época, era criar um novo modo, mais abrangente, de estudar os processos psicológicos humanos” (LURIA, 1988, p. 22). Vygotsky e seus colaboradores se encontravam com bastante frequência (aproximadamente seis horas por dia, duas vezes por semana), inicialmente no apartamento de Vygotsky. Embora centrada na psicologia, a curiosidade do grupo pela investigação do ser humano era ilimitada. Nestes encontros estudavam com avidez os trabalhos produzidos nos cinquenta anos precedentes nos campos da psicologia, da sociologia, da biologia e da linguística, por pensadores russos e também de autores estrangeiros. Pelo fato de eles lerem em latim, espanhol, alemão, inglês e francês, tinham acesso a uma série de publicações estrangeiras. No final da década de 20 e início da década de 30 eles promoveram a tradução de livros, publicaram importantes artigos sobre esses estudos e escreveram prefácios onde interpretavam as ideias de autores da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Entre 1927 e 1928, a “troika” associou-se e transferiu-se para o laboratório de psicologia do Instituto de Educação Comunista, ao qual se associou. Foi nesse mesmo período que Vygotsky começou a criar o Instituto de Estudos da Deficiência, com o objetivo de estudar o desenvolvimento de crianças anormais. Nessa fase, além de estudarem e criticarem de modo mais sistemático as escolas existentes de psicologia, coordenavam um grupo de jovens estudantes que era orientado no sentido de realizar experimentos coerentes com o estilo de pesquisa e pensamento que desenvolviam (muitos desses estudantes vieram, no pós-guerra, a assumir papel de destaque na psicologia soviética). Partindo do pressuposto da necessidade de estudar o comportamento humano enquanto fenômeno histórico e socialmente determinado, Vygotsky e seus seguidores se dedicavam principalmente à construção de estudospilotos que pudessem atestar a ideia de que o pensamento adulto é culturalmente mediado, sendo que a linguagem é o meio principal desta mediação. Neste período Vygotsky escreveu alguns importantes trabalhos, dentre eles: Os princípios da educação social de crianças surdas-mudas (1925), O consciente como problema da psicologia do comportamento (1925), O significado histórico da crise da psicologia (1926), A pedologia de crianças em idade escolar (1928), Estudos sobre a história do comportamento (escrito juntamente com Luria) (1930), O instrumento e o símbolo no desenvolvimento das crianças (1930), A história do desenvolvimento das funções psicológicas superiores (1931), Lições de psicologia (1932), Fundamentos da Pedologia (1934), Pensamento e linguagem (1934), Desenvolvimento mental da criança durante a educação (1935) e A criança retardada (1935). Dedicou-se também à escrita de alguns trabalhos durante vários anos de sua vida, tais como: Pedologia da juventude: características do comportamento do adolescente, O problema do desenvolvimento cultural da criança e A criança cega. Como é possível observar, é significativa a variedade das questões tratadas por Vygotsky nos últimos dez anos de sua vida profissional. Seus trabalhos expressam o objetivo de compreender os diferentes aspectos da conduta humana através do esforço de reunir informações de campos distintos. Concordamos com Bronckart quando afirma que a variedade dos temas abordados por Vygotsky não resultaram em trabalhos superficiais, nem tampouco dispersos, pelo contrário, “sob a diversidade dos temas, se desenvolve um pensamento profundamente unitário” (1985, p. 11). 5. PRINCIPAIS INFLUÊNCIAS Foram inúmeras as influências recebidas por Vygotsky ao longo de sua vida intelectual. Como já mencionamos, ele teve uma significativa influência de pesqui- sadores da área da linguística, que, a partir de uma abordagem histórica, se dedicavam ao estudo da origem da linguagem e sua relação com o desenvolvimento do pensamento, tais como os russos A.A. Potebnya e Alexander von Humboldt. Vygotsky também se interessou pelo estudo comparativo entre o comportamento animal e humano, particularmente pelas pesquisas do especialista soviético V.A. Wagner. O pensamento marxista também foi para ele uma fonte científica valiosa. Podemos identificar os pressupostos filosóficos, epistemológicos e metodológicos de sua obra na teoria dialético-materialista. As concepções de Marx e Engels sobre a sociedade, o trabalho humano, o uso dos instrumentos, e a interação dialética entre o homem e a natureza serviram como fundamento principal às suas teses sobre o desenvolvimento humano profundamente enraizado na sociedade e na cultura. Na União Soviética, nos anos 20, vários teóricos se utilizavam das abordagens históricas e do desenvolvimento no estudo da natureza humana; dentre eles, os que exerceram maior influência sobre as ideias de Vygotsky foram K.N. Kornilov e P.P. Blonsky. As pesquisas desses psicólogos soviéticos contribuíram para que Vygotsky percebesse a necessidade do estudo do comportamento humano enquanto fenômeno histórico e socialmente determinado. Finalmente, podemos entender que parte do enorme interesse de Vygotsky pelo estudo do desenvolvimento dos processos mentais ao longo da história da espécie e em diferentes culturas esteja relacionado às influências dos trabalhos de sociólogos e antropólogos europeus ocidentais, tais como R. Thurnwald e L. Levy-Bruhl. Na ciência foram seus contemporâneos os adeptos das teorias comportamentais, privilegiadores da associação estímulo-resposta, entre eles, Ivan Pavlov, Wladimir Betkterev e John B. Watson e os fundadores do movimento da Gestalt na psicologia, tais como: Wertheimer, Wolfgang Kohler, Koffka e Kurt Lewin. Os trabalhos produzidos por estes estudiosos serviram como contraponto importante ao pensamento elaborado por Vygotsky. Ele foi também contemporâneo do epistemólogo suíço Jean Piaget. No entanto, só teve contato com os trabalhos de Piaget produzidos no início dos anos 20. Leu essas produções com muito interesse; chegou inclusive a escrever o prefácio para a edição russa de dois livros de Piaget: A linguagem e pensamento na criança e O raciocínio da criança. Na época fez importantes críticas às teses defendidas por Piaget (que soube desses comentários bem mais tarde, depois que Vygotsky já havia morrido). Apesar de apontar suas divergências (como, por exemplo, quanto à interpretação da relação entre pensamento e linguagem), reconheceu a riqueza do método clínico adotado por Piaget, no estudo do processo cognitivo individual, e a semelhança de interesse no estudo da gênese dos processos psicológicos. 6. A PROIBIÇÃO E REDESCOBERTA DE SUA OBRA A obra de Vygotsky começou a receber severas críticas, na Rússia, a partir de 1932. Durante o governo de Stalin, suas teorias foram consideradas “idealistas” pelas autoridades soviéticas. Nessa época, os trabalhos de Pavlov eram muito valorizados justamente porque ele defendia a enorme plasticidade e as potencialidades dos seres humanos diante das pressões do meio ambiente. Vygotsky, apesar de concordar com a ideia da plasticidade do homem, frente às influências da cultura, era bastante crítico à abordagem de PAVLOV. Argumentava que os seres humanos não deveriam ser considerados, pelos marxistas, apenas em função de suas reações ao ambiente exterior, mas também a maneira pela qual eles criam seu ambiente, o que por sua vez dá origem a novas formas de consciência. As críticas dirigidas a ele parecem ter sido provocadas pelo fato de ele ter sido “exigente demais e profundamente marxista para se submeter aos dogmas impostos à ciência pelo stalinismo” (BRONCKART, 1985, p. 15). Após sua morte, Vygotsky teve a publicação de suas obras proibida na União Soviética, no período de 1936 a 1956, devido à censura do totalitário regime stalinista e foi, por um longo período, ignorado no Ocidente. Começou a ser redescoberto somente a partir de 1956, data da reedição soviética do livro: Pensamento e linguagem. As ideias de Vygotsky puderam ser conhecidas no Ocidente a partir de 1962, data da primeira edição americana do livro Pensamento e linguagem. No Brasil o contato com seu pensamento foi ainda mais tardio: somente a partir de 1984, data da publicação do livro A formação social da mente. Atualmente, alguns dos numerosos escritos de Vygotsky já foram traduzidos para diversas línguas, dentre elas, para o inglês, espanhol, italiano, português e francês. É com relativa rapidez que suas ideias vêm sendo disseminadas, discutidas e valorizadas. Esses debates vêm dando origem a relevantes estudos que visam não só a um conhecimento mais aprofundado de seus postulados como à realização de pesquisas que avancem no sentido por ele apontado8. No entanto, os países ocidentais não tiveram, até o atual momento, acesso à totalidade de sua produção intelectual, já que grande parte de seus textos somente agora começa a ser traduzida no russo, sendo que alguns, inclusive, não foram editados nem mesmo na União Soviética. Apesar do conhecimento tardio e incompleto de sua obra, Vygotsky é hoje considerado um dos mais importantes psicólogos do nosso século. É significativa a influência e repercussão que a obra vygotskiana vem provocando na psicologia e educação, não só no Brasil como em outros países ocidentais. 1. Maiores referências sobre a biografia do autor podem ser encontradas em Cole & Scribner (1978), Levitin (1982), Bronckart (1985), Luria (1988), Wertsch (1988) e Oliveira (1993). 2. Vygotsky chegou a estudar alemão, latim, hebraico, francês e inglês. 3. Apesar das evidências de sua brilhante capacidade intelectual Vygotsky, por ser judeu, teve enormes dificuldades de ingressar na Universidade. Nessa época na Rússia, os judeus sofriam as mais diversas formas de discriminação, tinham que viver em territórios restritos, se sujeitar a um número limitado de vagas nas universidades (por exemplo, na Universidade de Moscou apenas 3% das vagas podiam ser ocupadas por estudantes judeus), eram impedidos de exercer todas as profissões etc. (WERTSCH, 1988, p. 23). 4. Vygotsky se interessava pela estética, particularmente pelo significado histórico e psicológico da obra de arte de um modo geral. Buscava a interpretação dessas obras a partir da teoria das emoções de Spinoza (BRONCKART, 1985, p. 7). 5. Ao longo desse período Vygotsky lia com avidez obras de diversas áreas do conhecimento. “Entre os autores que se destacavam nas leituras de Vygotsky figuravam poetas como Tyuchev, Blok, Mandel’shtam e Pushkin, escritores de ficção como Tolstoy e Dostoyevsky, Bely e Bunin e filósofos como James e, especialmente, Spinoza. Também leu as obras de Freud, Marx, Engels, Hegel, Pavlov e o filólogo russo Potebnya.” (WERTSCH, 1988, p. 27). 6. Wertsch (1988) identifica ainda, nos postulados vygotskianos, um outro domínio: o microgenético. Segundo ele, os comentários de Vygotsky acerca dos procedimentos experimentais em psicologia evidenciam sua concepção sobre a necessária análise da dimensão microgenética envolvida na formação e manifestação de determinado processo psicológico. 7. Luria tornou-se um dos mais renomados neuropsicólogos do mundo. Produziu uma obra científica bastante relevante (boa parte de seus trabalhos já foram publicados no Brasil), onde tratou de diversos temas, tais como: a questão do funcionamento cerebral, os processos psicológicos e os diferentes contextos culturais, distúrbios da linguagem etc. Leontiev, apesar de ter produzido menos e ter alcançado menor repercussão do que Luria no Ocidente, trouxe importantes colaborações à obra iniciada por Vygotsky. Dedicou-se ao estudo das relações entre o psiquismo humano e a cultura, especialmente a partir da análise da atividade humana. 8. Sendo assim, o estudo mais aprofundado do pensamento de Vygotsky por parte dos pesquisadores brasileiros tem se viabilizado graças ao acesso a publicações estrangeiras de seus textos, de seus principais colaboradores e de seus “intérpretes contemporâneos”, tais como J.V. Wertsch, M. Cole, J. Valsiner, R.V. Veer, S. Scribner, E. Forman, A. Cazden, J.B. Bronckart, A. Rivière e V.D. Davidov. Capítulo II A CULTURA TORNA-SE PARTE DA NATUREZA HUMANA Uma das principais características da obra de Vygotsky é a riqueza e diversidade dos assuntos que abordou. Dedicou-se à análise de diversos temas relacionados a seu problema central, dentre eles, a crise da psicologia, as diferenças entre o psiquismo animal e humano, a gênese social das funções psicológicas superiores, as relações entre pensamento e linguagem, a questão da mediação simbólica, as relações entre desenvolvimento e aprendizagem e os processos de aprendizagem que ocorrem no contexto escolar e extraescolar, o problema das deficiências física e mental, o papel das diferentes culturas no desenvolvimento das funções psíquicas, a questão do brinquedo, a evolução da escrita na criança e a psicologia da arte. Essa variedade era coerente com seu projeto que visava articular informações dos diferentes componentes que integram os processos mentais: neurológico, psicológico, linguístico e cultural. Dentro dos limites do presente trabalho não é possível abordar todos os aspectos de sua obra. Vamos, no entanto, fazer uma síntese das principais ideias fundadas nos seus postulados e desenvolvidas em seus escritos, particularmente aquelas que propiciam reflexões no campo da educação. As propostas de Vygotsky foram aprofundadas por seus colaboradores. Assim, sempre que necessário recorreremos aos escritos de Luria e Leontiev com o objetivo de conhecer melhor suas concepções. Nossa intenção é possibilitar ao leitor uma análise geral e necessariamente introdutória, que estimule a consulta, o estudo e o aprofundamento da obra deste importante autor. O texto está organizado da seguinte maneira: primeiramente procuraremos esclarecer os objetivos principais que orientaram as pesquisas experimentais e as formulações teóricas de Vygotsky; em seguida, nos deteremos na análise de alguns temas centrais de seu pensamento. 1. O PROGRAMA DE PESQUISA A teoria histórico-cultural (ou sócio-histórica) do psiquismo, também conhecida como abordagem sociointeracionista elaborada por Vygotsky, tem como objetivo central “caracterizar os aspectos tipicamente humanos do comportamento e elaborar hipóteses de como essas características se formaram ao longo da história humana e de como se desenvolvem durante a vida de um indivíduo” (VYGOTSKY, 1984, p. 21). Este projeto objetivava dar respostas a três questões fundamentais que, segundo ele, vinham sendo tratadas de forma inadequada pelos estudiosos interessados na psicologia humana e animal. A primeira se referia à tentativa de compreender a relação entre os seres humanos e o seu ambiente físico e social. A segunda, à intenção de identificar as formas novas de atividade que fizeram com que o trabalho fosse o meio fundamental de relacionamento entre homem e natureza, assim como examinar as consequências psicológicas dessas formas de atividade. A terceira e última questão se relacionava à análise da natureza das relações entre o uso de instrumentos e o desenvolvimento da linguagem (VYGOTSKY, 1984, p. 21). Vygotsky se dedicou ao estudo das chamadas funções psicológicas superiores, que consistem no modo de funcionamento psicológico tipicamente humano, tais como a capacidade de planejamento, memória voluntária, imaginação, etc. Estes processos mentais são considerados sofisticados e “superiores”, porque referem-se a mecanismos intencionais, ações conscientemente controladas, processos voluntários que dão ao indivíduo a possibilidade de independência em relação às características do momento e espaço presente. Segundo ele, estes processos não são inatos, eles se originam nas relações entre indivíduos humanos e se desenvolvem ao longo do processo de internalização de formas culturais de comportamento. Diferem, portanto, dos processos psicológicos elementares (presentes na criança pequena e nos animais), tais como, reações automáticas, ações reflexas e associações simples, que são de origem biológica. Vygotsky e seus colaboradores buscaram a comprovação dessas ideias através de experimentos com crianças e de investigações das formas de organização dos processos mentais em indivíduos de diferentes culturas. O estudo dos processos psicológicos à luz da abordagem sócio-histórica permitiu a definição de diversas linhas de pesquisa, tais como: estudo do desenvolvimento de uma criança, de um grupo cultural e “da dissolução de processos psicológicos, uma vez que as doenças e traumatismos desfazem aquilo que a evolução e a experiência cultural ajudaram a construir” (COLE, 1992, p. 212). Desse modo, podemos considerar que seus trabalhos pertencem ao campo da psicologia genética9, já que se preocupou com o estudo da gênese, formação e evolução dos processos psíquicos superiores do ser humano. Para a psicologia genética, o psiquismo humano se constitui ao longo da vida do sujeito; não é, portanto, uma “propriedade” ou “faculdade” primitivamente existente no indivíduo. A psicologia genética estuda a infância justamente para tentar compreender a formação dos complexos processos psíquicos e das etapas pelos quais eles passam em sua evolução. O seu programa de pesquisa traduzia a tentativa de buscar uma abordagem alternativa, que superasse as tendências antagônicas presentes na psicologia de sua época. Baseado nos princípios do materialismo dialético, procurou construir uma “nova psicologia”, com o objetivo de integrar, “numa mesma perspectiva, o homem enquanto corpo e mente, enquanto ser biológico e social, enquanto membro da espécie humana e participante de um processo histórico” (OLIVEIRA, 1993, p. 23). 2. PRINCIPAIS IDEIAS DE VYGOTSKY A compreensão dessa abordagem diferente depende do estabelecimento das teses básicas presentes em toda a sua obra e que serão explorados ao longo deste livro. Quais são estas teses? A primeira se refere à relação indivíduo/sociedade. Vygotsky afirma que as características tipicamente humanas não estão presentes desde o nascimento do indivíduo, nem são mero resultado das pressões do meio externo. Elas resultam da interação dialética do homem e seu meio sociocultural. Ao mesmo tempo em que o ser humano transforma o seu meio para atender suas necessidades básicas, transforma-se a si mesmo. Em outras palavras, quando o homem modifica o ambiente através de seu próprio comportamento, essa mesma modificação vai influenciar seu comportamento futuro. Notamos, neste princípio, a integração dos aspectos biológicos e sociais do indivíduo: “as funções psicológicas superiores do ser humano surgem da interação dos fatores biológicos, que são parte da constituição física do Homo sapiens, com os fatores culturais, que evoluíram através das dezenas de milhares de anos de história humana” (LURIA, 1992, p. 60). A segunda é decorrência da ideia anterior, e se refere à origem cultural das funções psíquicas. As funções psicológicas especificamente humanas se originam nas relações do indivíduo e seu contexto cultural e social. Isto é, o desenvolvimento mental humano não é dado a priori, não é imutável e universal, não é passivo, nem tampouco independente do desenvolvimento histórico e das formas sociais da vida humana. A cultura é, portanto, parte constitutiva da natureza humana, já que sua característica psicológica se dá através da internalização dos modos historicamente determinados e culturalmente organizados de operar com informações. A terceira tese se refere à base biológica do funcionamento psicológico: o cérebro, visto como órgão principal da atividade mental. O cérebro, produto de uma longa evolução, é o substrato material da atividade psíquica que cada membro da espécie traz consigo ao nascer. No entanto, esta base material não significa um sistema imutável e fixo. O cérebro é entendido como um “sistema aberto, de grande plasticidade, cuja estrutura e modos de funcionamento são moldados ao longo da história da espécie e do desenvolvimento individual. [...] o cérebro pode servir a novas funções, criadas na história do homem, sem que sejam necessárias transformações no órgão físico” (Oliveira, 1993, p. 24). O quarto postulado diz respeito à característica mediação presente em toda atividade humana. São os instrumentos técnicos e os sistemas de signos, construídos historicamente, que fazem a mediação dos seres humanos entre si e deles com o mundo. A linguagem é um signo mediador por excelência, pois ela carrega em si os conceitos generalizados e elaborados pela cultura humana. Entende-se assim que a relação do homem com o mundo não é uma relação direta, pois é mediada por meios, que se constituem nas “ferramentas auxiliares” da atividade humana. A capacidade de criar essas “ferramentas” é exclusiva da espécie humana. O pressuposto da mediação é fundamental na perspectiva sócio-histórica justamente porque é através dos instrumentos e signos que os processos de funcionamento psicológico são fornecidos pela cultura. É por isso que Vygotsky confere à linguagem um papel de destaque no processo de pensamentos. A quinta tese postula que a análise psicológica deve ser capaz de conservar as características básicas dos processos psicológicos, exclusivamente humanos. Este princípio está baseado na ideia de que os processos psicológicos complexos se diferenciam dos mecanismos mais elementares e não podem, portanto, ser reduzidos à cadeia de reflexos. Estes modos de funcionamento psicológicos mais sofisticados, que se desenvolvem num processo histórico, podem ser explicados e descritos. Assim, ao abordar a consciência humana como produto da história social, aponta na direção da necessidade do estudo das mudanças que ocorrem no desenvolvimento mental a partir do contexto social. 3. DIFERENÇAS ENTRE O PSIQUISMO DOS ANIMAIS E DO HOMEM Coerente com o propósito de pesquisar a origem das características psicológicas tipicamente humanas, Vygotsky se interessou pelos estudos do comportamento e psiquismo dos animais (particularmente dos mamíferos superiores como os chimpanzés, que estão mais próximos da espécie humana), com o objetivo de identificar as principais diferenças e possíveis semelhanças com o ser humano. A comparação entre os processos mentais dos animais e dos homens é constante ao longo de sua obra, portanto, será útil ao leitor compreender as suas concepções sobre o assunto10. Ele e seus seguidores identificam basicamente três traços característicos no comportamento do animal que o diferencia do psiquismo do ser humano, a saber: 1. Diferentemente do comportamento humano, todo comportamento do animal conserva sua ligação com os motivos biológicos. A atividade dos animais é instintiva e marcada pela satisfação de suas necessidades biológicas (de alimento, autoconservação ou necessidade sexual). Ou seja, ela permanece sempre dentro dos limites das suas relações biológicas, instintivas, com a natureza. O modo de perceber o mundo pelo animal, a forma de se relacionar com seus semelhantes e até as possibilidades de aquisição de novas atividades, são determinadas por suas características inatas. Vejamos alguns exemplos:11 Num experimento propuseram a vários chimpanzés o seguinte problema: colocaram uma banana num lugar alto, porém visível aos animais, e deixaram à disposição vários caixotes para que eles pudessem empilhar, para sobre eles trepar e alcançar o alimento. Embora cada macaco individualmente fosse capaz de resolver o problema, em grupo não conseguiram, pois cada um agia como se estivesse sozinho, o que acabava promovendo situações de luta e acirrada disputa pela posse dos caixotes até a desistência de alcançar o alimento. Este experimento demonstra que o animal não consegue organizar uma ação comum (onde cada um teria uma tarefa), pois cada um busca, instintivamente, saciar sua necessidade (no caso alcançar o alimento) e, como consequência, não estebelece relações com seus semelhantes. Um outro exemplo interessante é o caso das abelhas que só desempenham papéis diferentes (por exemplo, as operárias fabricam as células, a rainha deposita os ovos), devido a fatores biológicos herdados. Podemos verificar ainda as limitações do programa congênito no comportamento no que diz respeito à possibilidade de aprendizagem de novas atividades, como por exemplo: o leão marinho aprende com facilidade a fazer malabarismos com uma bola ou agarrá-la porque estas atividades estão associadas às habilidades inatas de sua espécie: o mergulho e a perseguição à presa. A maior parte dos atos humanos não se baseia em inclinações biológicas. Ao contrário, de modo geral, a ação do homem é motivada por complexas necessidades, tais como: a necessidade de adquirir novos conhecimentos, de se comunicar, de ocupar determinado papel na sociedade, de ser coerente com seus princípios e valores etc. São inúmeros os exemplos que ilustram a independência do comportamento do ser humano em relação aos motivos biológicos: devido a convicções políticas ou religiosas, o homem é capaz, por exemplo, de jejuar, fazer sacrifícios, se autoflagelar e até morrer, ou seja, através do controle intencional de seu comportamento, além de não se sujeitar a elas, ele reprime e até contraria suas necessidades puramente biológicas. 2. Diferente gesto do comportamento animal, o comportamento humano não é forçosamente determinado por estímulos imediatamente perceptíveis ou pela experiência passada. As reações dos animais se baseiam nas impressões evidentes recebidas do meio exterior ou pela experiência anterior. Ele é, portanto, incapaz de abstrair, fazer relações ou planejar ações. Alguns exemplos poderão ilustrar esta característica: se num churrasco, deixarmos por esquecimento uma carne próxima a um cachorro com fome ele provavelmente a comerá, ou seja, não conseguirá perceber que aquela carne se destina às pessoas, nem prever as consequências de seus atos, muito menos controlar seu comportamento (aguardar o momento em que lhe oferecerão comida). Luria cita uma pesquisa (feita pelo psicólogo holandês Buytendijk) que esclarece a dependência do animal de suas experiências anteriores: “Ele colocou diante de um animal várias caixas nas quais poder-se-ia encontrar alimento. No primeiro teste, o alimento foi posto aos olhos do animal na primeira caixa, permitindo-se ao animal apanhá-lo. No segundo teste, o alimento (também aos olhos do animal) foi transferido para uma segunda caixa, em seguida para uma terceira. Depois, nos experimentos seguintes, começou-se (já sem que o animal percebesse) a transferir sucessivamente o alimento para cada caixa seguinte, permitindo sempre ao animal correr livremente para a caixa onde ele supunha encontrar o alimento. A pesquisa demonstrou que o animal corre sempre para a caixa onde vira que havia sido posto o alimento” (LURIA, 1991, p. 69). O animal não conseguia considerar o princípio abstrato da sequência, do deslocamento sucessivo do alimento entre as caixas. Diferente do animal, o ser humano não se orienta somente pela impressão imediata e pela experiência anterior, pois pode abstrair, fazer relações, reconhecer as causas e fazer previsões sobre os acontecimentos, e depois de refletir e interpretar, tomar decisões. Nesse sentido, ele é livre e independente das condições do momento e do espaço presentes. Por exemplo, mesmo doente e precisando tomar determinado medicamento, o homem poderá deixar de tomar o remédio caso o prazo de validade já tenha vencido. Mesmo com sede, provavelmente evitará tomar uma água que esteja contaminada. Mesmo com fome, poderá recusar um suculento prato de comida, caso saiba que este alimento foi preparado sem as mínimas condições de higiene. “Assim, ao sair a passeio num claro dia de outono, o homem pode levar guarda-chuva, pois sabe que o tempo é instável no outono. Aqui ele obedece a um profundo conhecimento das leis da natureza e não à impressão imediata de um tempo de sol e céu claro” (LURIA, 1991, p. 72). Em síntese, o homem não vive somente no mundo das impressões imediatas (como os animais), mas também no universo dos conceitos abstratos, já que “dispõe, não só de um conhecimento sensorial, mas também de um conhecimento racional, possui a capacidade de penetrar mais profundamente na essência das coisas do que lhe permitem os órgãos dos sentidos; quer dizer que, com a passagem do mundo animal à história humana, dá-se um enorme salto no processo de conhecimento desde o sensorial até o racional” (LURIA, 1986, p. 12). 3. As diferenças das fontes de comportamento do homem e do animal. As fontes de comportamento do animal são limitadas: uma é a experiência da espécie, que é transmitida hereditariamente (comportamento instintivo, inato); a outra é sua experiência imediata e individual (mecanismos de adaptação individual ao meio), responsável pela variação no comportamento dos animais. A imitação ocupa um lugar muito insignificante na formação do comportamento animal. Ou seja, diferentemente do homem, o animal não transmite a sua experiência, não assimila a experiência alheia, nem tampouco é capaz de transmitir (ou aprender) a experiência das gerações anteriores. Uma das principais características que distingue radicalmente o homem dos animais é justamente o fato de que, além das definições hereditárias e da experiência individual, a atividade consciente do homem tem uma terceira fonte, responsável pela grande maioria dos conhecimentos, habilidades e procedimentos comportamentais: a assimilação da experiência de toda a humanidade, acumulada no processo da história social e transmitida no processo de aprendizagem. Podemos entender que, nesta perspectiva, o desenvolvimento do psiquismo animal é determinado pelas leis da evolução biológica e o do ser humano está submetido às leis do desenvolvimento sócio-histórico. As características do funcionamento psicológico tipicamente humano não são transmitidas por hereditariedade (portanto, não estão presentes desde o nascimento do indivíduo), nem são adquiridas passivamente graças à pressão do ambiente externo. Elas são construídas ao longo da vida do indivíduo através de um processo de interação do homem e seu meio físico e social, que possibilita a apropriação da cultura elaborada pelas gerações precedentes, ao longo de milênios. Como afirmou Leontiev: “Cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana” (LEONTIEV, 1978, p. 267). Assim, Vygotsky, profundamente influenciado pelos postulados marxistas, afirma que as origens das atividades psicológicas mais sofisticadas devem ser procuradas nas relações sociais do indivíduo com o meio externo. Entende que o ser humano não só é um produto de seu contexto social, mas também um agente ativo na criação deste contexto. Acredita que para compreender as formas especificamente humanas é necessário (e possível) descobrir a relação entre a dimensão biológica (os processos naturais, como: a maturação física e os mecanismos sensoriais) e a cultural (mecanismos gerais através do qual a sociedade e a história moldam a estrutura humana). Coerente com este ponto de vista, procurou examinar a origem do complexo psiquismo humano nas condições sociais de vida historicamente formadas, que, segundo ele, estão relacionadas ao trabalho social, ao emprego de instrumentos e ao surgimento da linguagem. Estas são as “ferramentas” que foram construídas e aperfeiçoadas pela humanidade ao longo de sua história e fazem a mediação entre o homem e o mundo: através delas, o homem não só domina o meio ambiente como o seu próprio comportamento. É por essa razão que Vygotsky procura compreender a evolução da cultura humana (aspecto sociogenético), o processo de desenvolvimento individual (aspecto ontogenético) e se detém especialmente, no estudo do desenvolvimento infantil, período em que estas “ferramentas” são aprendidas, ou seja, é nesse período que acontece o surgimento do uso de instrumentos e da fala humana. No tópico seguinte, abordaremos mais detidamente a questão das raízes histórico-sociais e o conceito de mediação do desenvolvimento humano, já que estes são um dos temas centrais das teses formuladas por Vygotsky. 4. AS RAÍZES HISTÓRICO-SOCIAIS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO E A QUESTÃO DA MEDIAÇÃO SIMBÓLICA Compreender a questão da mediação, que caracteriza a relação do homem com o mundo e com os outros homens, é de fundamental importância justamente porque é através deste processo que as funções psicológicas superiores, especificamente humanas, se desenvolvem. Vygotsky distingue dois elementos básicos responsáveis por essa mediação: o instrumento, que tem a função de regular as ações sobre os objetos e o signo, que regula as ações sobre o psiquismo das pessoas12. A invenção desses elementos mediadores significou o salto evolutivo da espécie humana. Vygotsky esclarece que o uso de instrumentos e dos signos, embora diferentes, estão mutuamente ligados ao longo da evolução da espécie humana e do desenvolvimento de cada indivíduo. Na ontogênese esta ligação pode ser verificada através de experimentos. É por isso que ele e seus colaboradores realizaram uma série de pesquisas com o objetivo de investigar o papel mediador dos instrumentos e signos na ati- vidade psicológica e as transformações que ocorrem ao longo do desenvolvimento do indivíduo. De acordo com Marx, o desenvolvimento de habilidades e funções específicas do homem, assim como a origem da sociedade humana, são resultados do surgimento do trabalho. É através do trabalho que o homem, ao mesmo tempo que transforma a natureza (objetivando satisfazer suas necessidades), se transforma. Para realizar sua atividade, o homem se relaciona com seus semelhantes e fabrica os meios, os instrumentos: “o uso e a criação de meios de trabalho, embora existam em germe em algumas espécies animais, caracterizam de forma eminente o trabalho humano” (MARX, 1972). Isto quer dizer que as relações dos homens entre si e com a natureza são mediadas pelo trabalho. Partindo destes princípios, Vygotsky procura analisar a função mediadora presente nos instrumentos elaborados para a realização da atividade humana. O instrumento é provocador de mudanças externas, pois amplia a possibilidade de intervenção na natureza (na caça, por exemplo, o uso da flecha permite o alcance de um animal distante ou, para cortar uma árvore, a utilização de um objeto cortante é mais eficiente do que as mãos). Diferente de outras espécies animais, os homens não só produzem seus instrumentos para a realização de tarefas específicas, como também são capazes de conservá-los para uso posterior, de preservar e transmitir sua função aos membros de seu grupo, de aperfeiçoar antigos instrumentos e de criar novos13. Vygotsky faz uma interessante comparação entre a criação e a utilização de instrumentos como auxílio nas ações concretas e os signos, que ele chama de “instrumentos psicológicos”, que têm a função de auxiliar o homem nas suas atividades psíquicas, portanto, internas ao indivíduo: a “invenção e o uso de signos auxiliares para solucionar um dado problema psicológico (lembrar, comparar coisas, relatar, escolher, etc.) é análoga à invenção e uso de instrumentos, só que agora no campo psicológico. O signo age como um instrumento da atividade psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento no trabalho” (VYGOTSKY, 1984, p. 59-60). Com o auxílio dos signos, o homem pode controlar voluntariamente sua atividade psicológica e ampliar sua capacidade de atenção, memória e acúmulo de informações, como, por exemplo, pode se utilizar de um sorteio para tomar uma decisão, amarrar um barbante no dedo para não esquecer um encontro, anotar um comportamento na agenda, escrever um diário para não esquecer detalhes vividos, consultar um atlas para localizar um país etc. Vygotsky dedica particular atenção à questão da linguagem, entendida como um sistema simbólico fundamental em todos os grupos humanos, elaborado no curso da história social, que organiza os signos em estruturas complexas e desempenha um papel imprescindível na formação das características psicológicas humanas. Através da linguagem é possível designar os objetos do mundo exterior (como, por exemplo, a palavra faca que desiga um utensílio usado na alimentação), ações (como cortar, andar, ferver), qualidades dos objetos (como flexível, áspero) e as que se referem às relações entre os objetos (tais como: abaixo, acima, próximo). O surgimento da linguagem imprime três mudanças essenciais nos processos psíquicos do homem. A primeira se relaciona ao fato de que a linguagem permite lidar com os objetos do mundo exterior mesmo quando eles estão ausentes. Por exemplo, a frase “O vaso caiu” permite a compreensão do evento mesmo sem tê-lo presenciado, pois operamos com esta informação internamente. A segunda se refere ao processo de abstração e generalização que a linguagem possibilita, isto é, através da linguagem é possível analisar, abstrair e generalizar as características dos objetos, eventos, situações presentes na realidade. Como, por exemplo, a palavra “árvore” designa qualquer árvore (independentemente de seu tamanho, se é frutífera ou não etc.). Nesse caso, a palavra generaliza o objeto e o inclui numa determinada categoria. Desse modo a linguagem não somente designa os elementos presentes na realidade, mas também fornece conceitos e modos de ordenar o real em categorias conceituais. A terceira está associada à função de comunicação entre os homens que garante, como consequência, a preservação, transmissão e assimilação de informações e experiências acumuladas pela humanidade ao longo da história. A linguagem é um sistema de signos que possibilita o intercâmbio social entre indivíduos que compartilhem desse sistema de representação da realidade. Cada palavra indica significados específicos, como por exemplo a palavra “pássaro” traduz o conceito deste elemento presente na natureza, é nesse sentido que representa (ou substitui) a realidade. É justamente por fornecer significados precisos que a linguagem permite a comunicação entre os homens. Essa linguagem não existe entre os animais, que apenas emitem sons que expressam seus estados e contagiam seus semelhantes, como por exemplo: o “guia de um bando de cegonhas, ao sentir o perigo, solta gritos alarmantes aos quais o bando reage vivamente. Numa manada de macacos podemos observar todo um conjunto de sons, que expressa satisfação, agressão, medo ao perigo etc. [...] Mas a linguagem dos animais nunca designa coisas, não distingue ações nem qualidades, portanto, não é linguagem na verdadeira acepção da palavra” (LURIA, 1991, p. 78). Estas ideias deram origem a um programa de pesquisa (iniciado por Vygotsky mas aprofundado por seus colaboradores) que visava à análise de como a relação entre o uso de instrumentos e a fala (e a função mediadora que os caracteriza) afeta várias funções psicológicas, em particular a percepção, as operações sensório-motoras, e a atenção. Considerando uma das funções de cada vez, procurou investigar como a fala introduz mudanças qualitativas na sua forma e na sua relação com as outras funções. Buscou também observar de forma esquemática as leis básicas que caracterizam a estrutura e o desenvolvimento das operações com signos da criança, relacionando-os com a memória. O interesse por esse tipo de análise se deve ao fato de ele acreditar que “a verdadeira essência da memória humana (que a distingue dos animais) está no fato de os seres humanos serem capazes de lembrar, ativamente, com a ajuda de signos” (VYGOTSKY, 1984, p. 58). Esse programa de pesquisa era coerente com a ideia de que a internalização dos sistemas de signos (a linguagem, a escrita, o sistema de números) produzidos culturalmente provoca mudanças cruciais no comportamento humano. Desse modo, os sistemas simbólicos (entendidos como sistemas de representação da realidade), especialmente a linguagem, funcionam como elementos mediadores que permitem a comunicação entre os indivíduos, o estabelecimento de significados compartilhados por determinado grupo cultural, a percepção e interpretação dos objetos, eventos e situações do mundo circundante. É por essa razão que Vygotsky afirma que os processos de funcionamento mental do homem são fornecidos pela cultura, através da mediação simbólica. A partir de sua inserção num dado contexto cultural, de sua interação com membros de seu grupo e de sua participação em práticas sociais historicamente construídas, a criança incorpora ativamente as formas de comportamento já consolidadas na experiência humana. É importante sublinhar que a “cultura, entretanto, não é pensada por Vygotsky como algo pronto, um sistema estático ao qual o indivíduo se submete, mas como uma espécie de “palco de negociações”, em que seus membros estão num constante movimento de recriação e reinterpretação de informações, conceitos e significados” (OLIVEIRA, 1993, p. 38). Na perspectiva vygotskiana, a internalização das práticas culturais, que constituem o desenvolvimento humano, assume papel de destaque. Conforme veremos a seguir, uma de suas principais preocupações era a de analisar a dinâmica do movimento de passagem de ações realizadas no plano social (isto é, entre as pessoas, interpsicológico) para ações internalizadas ou intramentais (no interior do indivíduo, portanto, intrapsicológico). 5. O DESENVOLVIMENTO INFANTIL NA PERSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA Vygotsky atribui enorme importância ao papel da interação social no desenvolvimento do ser humano. Uma das mais significativas contribuições das teses que formulou está na tentativa de explicitar (e não apenas pressupor) como o processo de desenvolvimento é socialmente constituído14. Essa é a principal razão de seu interesse no estudo da infância. É curioso conhecer suas críticas aos paradigmas “botânicos” e “zoológicos” adotados, na pesquisa psicológica, para explicar o desenvolvimento infantil. Segundo ele, a primeira tendência compara o estudo da criança à botânica, ou seja, entende que o desenvolvimento da criança depende de um processo de maturação do organismo como um todo15. Esta concepção se apóia na ideia de que “a mente da criança contém todos os estágios do futuro desenvolvimento intelectual: eles existem já na sua forma completa, esperando o momento adequado para emergir” (Vygotsky, 1984, p. 26). Para ele, no entanto, a maturação biológica é um fator secundário no desenvolvimento das formas complexas do comportamento humano pois essas dependem da interação da criança e sua cultura. Afirma que a segunda abordagem, apesar de mais avançada que a anterior, é também equivocada na medida em que busca respostas às questões sobre a criança, a partir de experiências no reino animal. Admite que esses experimentos contribuíram para o estudo das bases biológicas do comportamento humano (identificaram, por exemplo, algumas semelhanças nos processos psicológicos elementares entre os macacos antropoides e a criança pequena). Sua crítica reside no fato de que a convergência da psicologia animal e da criança tem limites sérios para a explicação dos processos intelectuais mais sofisticados, que são especificamente humanos. Seu ponto de vista é bastante diferente dos anteriores. Segundo ela, a estrutura fisiológica humana, aquilo que é inato, não é suficiente para produzir o indivíduo humano, na ausência do ambiente social. As características individuais (modo de agir, de pensar, de sentir, valores, conhecimentos, visão de mundo etc.) depende da interação do ser humano com o meio físico e social. Vygotsky chama atenção para a ação recíproca existente entre o organismo e o meio e atribui especial importância ao fator humano presente no ambiente. O caso verídico de duas crianças (as chamadas “meninas-lobas”) que foram encontradas, na Índia, vivendo no meio de uma manada de lobos, demonstra que para se humanizar o indivíduo precisa crescer num ambiente social e interagir com outras pessoas. Quando encontradas, praticamente não apresentavam um comportamento humano: não conseguiam permanecer em pé, andavam com o apoio das mãos, não falavam, se alimentavam de carne crua ou podre, não sabiam usar utensílios (tais como, copo, garfo etc.) nem pensar de modo lógico (DAVIS & OLIVEIRA, 1990, p. 16). Quando isolado, privado do contato com outros seres, entregue apenas a suas próprias condições e a favor dos recursos da natureza, o homem é fraco e insuficiente. Devido a essas características especificamente humanas torna-se impossível considerar o desenvolvimento do sujeito como um processo previsível, universal, linear ou gradual. O desenvolvimento está intimamente relacionado ao contexto sociocultural em que a pessoa se insere e se processa de forma dinâmica (e dialética) através de rupturas e desequilíbrios provocadores de contínuas reorganizações por parte do indivíduo. Se comparado com as demais espécies animais, o bebê humano é o mais indefeso e despreparado para lidar com os desafios de seu meio. A sua sobrevivência depende dos sujeitos mais experientes de seu grupo, que se responsabilizam pelo atendimento de suas necessidades básicas (locomoção, abrigo, alimentação, higiene etc.), afetivas (carinho, atenção) e pela formação do comportamento tipicamente humano. Devido à característica imaturidade motora do bebê é longo o período de dependência dos adultos. Inicialmente, sua atividade psicológica é bastante elementar e determinada por sua herança biológica. Vygotsky ressalta que os fatores biológicos têm preponderância sobre os sociais somente no início da vida da criança. Aos poucos as interações com seu grupo social e com os objetos de sua cultura passam a governar o comportamento e o desenvolvimento de seu pensamento. Dessa forma, no processo da constituição humana é possível distinguir “duas linhas qualitativamente diferentes de desenvolvimento, diferindo quanto à sua origem: de um lado, os processos elementares, que são de origem biológica; de outro, as funções psicológicas superiores, de origem sociocultural. A história do comportamento da criança nasce do entrelaçamento dessas duas linhas” (VYGOTSKY, 1984, p. 52). Desde o nascimento, o bebê está em constante interação com os adultos, que não só asseguram sua sobrevivência, mas também medeiam a sua relação com o mundo. Os adultos procuram incorporar as crianças à sua cultura, atribuindo significado às condutas e aos objetos culturais que se formaram ao longo da história. O comportamento da criança recebe influências dos costumes e objetos de sua cultura, como por exemplo em nossa cultura urbana ocidental: dorme no berço, usa roupas para se aquecer e, mais tarde, talheres para comer, sapatos para andar etc. Inicialmente a relação da criança com o mundo dos objetos é mediada pelos adultos; por exemplo, eles aproximam os objetos que a criança quer apanhar, agitam o brinquedo que faz barulho, alimentam- na com a mamadeira etc. Com a ajuda do adulto, as crianças assimilam ativamente aquelas habilidades que foram construídas pela história social ao longo de milênios: ela aprende a sentar, a andar, a controlar os esfíncteres, a falar, a sentar-se à mesa, a comer com talheres, a tomar líquidos em copos etc. Através das intervenções constantes do adulto (e de crianças mais experientes) os processos psicológicos mais complexos começam a se formar. Um exemplo poderá ilustrar o quanto a interação que o indivíduo estabelece com o universo social em que se insere, particularmente como os parceiros mais experientes de seu grupo, é fundamental para a formação do comportamento e do pensamento humano. Um pai, ao passear com o filho de aproximadamente 2 anos, costuma chamar a atenção para todos os carros que vão encontrando no caminho. Na medida em que mostra o carro fala o seu nome, marca e tece outros tipos de comentários. Depois, em outras ocasiões, essa criança demonstra o quanto incorporou das informações que recebeu: brincando na escola nomeia com desenvoltura os carrinhos de brinquedo, ou passeando com sua mãe demonstra reconhecer as marcas dos carros que avista pela rua. Pode, com isto, provocar surpresa e admiração por parte dos adultos que talvez julguem esta competência como um sinal de perspicácia ou inteligência inata da criança. No entanto, podemos interpretar este episódio de uma outra forma, como evidência de que as conquistas individuais resultam de um processo compartilhado. Podemos concluir que, para Vygotsky, o desenvolvimento do sujeito humano se dá a partir das constantes interações com o meio social em que vive, já que as formas psicológicas mais sofisticadas emergem da vida social. Assim, o desenvolvimento do psiquismo humano é sempre mediado pelo outro (outras pessoas do grupo cultural), que indica, delimita e atribui significados à realidade. Por intermédio dessas mediações, os membros imaturos da espécie humana vão pouco a pouco se apropriando dos modos de funcionamento psicológico, do comportamento e da cultura, enfim, do patrimônio da história da humanidade e de seu grupo cultural. Quando internalizados, estes processos começam a ocorrer sem a intermediação de outras pessoas. Desse modo, a atividade que antes precisou ser mediada (regulação interpsicológica ou atividade interpessoal) passa a constituir-se um processo voluntário e independente (regulação intrapsicológica ou atividade intrapessoal). “Desde os primeiros dias do desenvolvimento da criança, suas atividades adquirem um significado próprio num sistema de comportamento social e, sendo dirigidas a objetivos definidos, são refratadas através do prisma do ambiente da criança. O caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa através de outra pessoa. Essa estrutura humana complexa é o produto de um processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas ligações entre história individual e história social” (VYGOTSKY, 1984, p. 33). A fala (entendida como instrumento ou signo) tem um papel fundamental de organizadora da atividade prática e das funções psicológicas humanas. É por isso que Vygotsky se preocupa em pesquisar o desenvolvimento da inteligência prática da criança na fase em que começa a falar. Segundo ele, a verdadeira essência do comportamento humano complexo se dá a partir da unidade dialética da atividade simbólica (a fala) e a atividade prática: “o momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual, que dá origem às formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata, acontece quando a fala e a atividade prática, então duas linhas completamente independentes de desenvolvimento, convergem” (VYGOTSKY, 1984, p. 27). Em síntese, na perspectiva vygotskiana o desenvolvimento das funções intelectuais especificamente humanas é mediado socialmente pelos signos e pelo outro. Ao internalizar as experiências fornecidas pela cultura, a criança reconstrói individualmente os modos de ação realizados externamente e aprende a organizar os próprios processos mentais. O indivíduo deixa, portanto, de se basear em signos externos e começa a se apoiar em recursos internalizados (imagens, representações mentais, conceitos etc.). Concordamos com Smolka e Góes quando afirmam que “o que parece fundamental nessa interpretação da formação do sujeito é que o movimento de individuação se dá a partir das experiências propiciadas pela cultura. O desenvolvimento envolve processos, que se constituem mutuamente, de imersão na cultura e emergência da individualidade. Num processo de desenvolvimento que tem caráter mais de revolução que de evolução, o sujeito se faz como ser diferenciado do outro, mas formado na relação com o outro: singular, mas constituído socialmente, e, por isso mesmo, numa composição individual, mas não homogênea” (1993, p. 10). 6. RELAÇÕES ENTRE PENSAMENTO E LINGUAGEM O estudo das relações entre pensamento e linguagem é considerado um dos temas mais complexos da psicologia. Vygotsky se dedicou a este assunto durante muitos anos de sua vida16. Ele e seus colaboradores trouxeram importantes contribuições sobre o tema, principalmente no que se refere à questão da compreensão das raízes genéticas da relação entre o pensamento e a linguagem. Afirma que a relação entre o pensamento e a fala passa por várias mudanças ao longo da vida do indivíduo. Apesar de terem origens diferentes e de se desenvolverem de modo independente, numa certa altura, graças à inserção da criança num grupo cultural, o pensamento e a linguagem se encontram e dão origem ao modo de funcionamento psicológico mais sofisticado, tipicamente humano. Segundo Vygotsky, a conquista da linguagem representa um marco no desenvolvimento do homem: “a capacitação especificamente humana para a linguagem habilita as crianças a providenciarem instrumentos auxiliares na solução de tarefas difíceis, a superarem a ação impulsiva, a planejarem a solução para um problema antes de sua execução e a controlarem seu próprio comportamento. Signos e palavras constituem para as crianças, primeiro e acima de tudo, um meio de contato social com outras pessoas. As funções cognitivas e comunicativas da linguagem tornam-se, então, a base de uma forma nova e superior de atividade nas crianças, distinguindo-as dos animais” (VYGOTSKY, 1984, p. 31). Sendo assim, a linguagem tanto expressa o pensamento da criança como age como organizadora desse pensamento. Vejamos como isto se processa. Tanto nas crianças como nos adultos, a função primordial da fala é o contato social, a comunicação; isto quer dizer que o desenvolvimento da linguagem é impulsionado pela necessidade de comunicação. Assim, mesmo a fala mais primitiva da criança é social. Nos primeiros meses de vida, o balbucio, o riso, o choro, as expressões faciais ou as primeiras palavras da criança cumprem não somente a função de alívio emocional (como por exemplo manifestação de conforto ou incômodo) como também são meios de contato com os membros de seu grupo. No entanto, esses sons, gestos ou expressões são manifestações bastante difusas, pois não indicam significados específicos (por exemplo, o choro do bebê pode significar dor de barriga, fome etc.). Vygotsky chamou esta fase de estágio pré-intelectual do desenvolvimento da fala. Antes de aprender a falar a criança demonstra uma inteligência prática que consiste na sua capacidade de agir no ambiente e resolver problemas práticos, inclusive com o auxílio de instrumentos intermediários (por exemplo, é capaz de se utilizar de um baldinho para encher de areia ou de subir num banco para alcançar um objeto), mas sem a mediação da linguagem. Segundo Vygotsky, esse é o estágio pré-linguístico do desenvolvimento do pensamento. Através de inúmeras oportunidades de diálogo, os adultos, que já dominam a linguagem, não só interpretam e atribuem significados aos gestos, posturas, expressões e sons da criança como também a inserem no mundo simbólico de sua cultura. Na medida em que a criança interage e dialoga com os membros mais maduros de sua cultura, aprende a usar a linguagem como instrumento do pensamento e como meio de comunicação. Nesse momento o pensamento e a linguagem se associam, consequentemente o pensamento torna-se verbal e a fala racional17. É interessante analisar com mais detalhes as explicações de Vygotsky sobre o processo de conquista da utilização da linguagem como instrumento de pensamento, que evidencia o modo pelo qual a criança interioriza os padrões de comportamento fornecidos por seu grupo cultural. Através de seus experimentos, pôde observar que este processo, apesar de dinâmico e não linear, passa por estágios que obedecem à seguinte trajetória: a fala evolui de uma fala exterior para uma fala egocêntrica e, desta, para uma fala interior. A fala egocêntrica é entendida como um estágio de transição entre a fala exterior (fruto das atividades interpsíquicas, que ocorrem no plano social) e a fala interior (atividade intrapsíquica, individual). Primeiramente a criança utiliza a fala como meio de comunicação, de estabelecimento de contato com outras pessoas. Para a resolução de um problema, por exemplo (como alcançar um brigadeiro que está em cima de uma geladeira), a criança faz apelos verbais a um adulto. Nesse estágio a fala é global, tem múltiplas funções, mas não serve ainda como um planejamento de sequências a serem realizadas; assim não é utilizada como um instrumento do pensamento. Vygotsky chamou essa fala de discurso socializado. Aos poucos, a fala socializada, que antes era dirigida ao adulto para resolver um problema, é internalizada, ou seja, a criança passa a apelar para si mesma para solucionar uma questão: é o chamado discurso interior. Deste modo, além das funções emocionais e comunicativas, a fala começa a ter também a função planejadora. Nesse caso, a criança estabelece um diálogo com ela mesma, sem vocalização, com vistas a encontrar uma forma de solucionar o problema (é como se ela falasse para ela mesma: “Preciso arrumar um jeito de alcançar esse doce. Posso usar uma escada ou um banco”). Portanto, a fala passa a preceder a ação e funcionar como auxílio de um plano já concebido, mas ainda não executado. Ao aprender a usar a linguagem para planejar uma ação futura, a criança consegue ir além das experiências imediatas. Esta “visão do futuro” (ausente nos animais) permite que as crianças realizem operações psicológicas bem mais complexas (passa a poder prever, comparar, deduzir etc.). Vygotsky explica que existe um tipo de fala intermediária que funciona como uma espécie de transição entre o discurso socializado e o interior. A característica principal dessa fala é que ela acompanha a ação e se dirige ao próprio sujeito da ação18. Nesse estágio a criança fala alto, mas não se dirige a nenhum interlocutor, dialoga consigo mesma. Também serve para planejar e solucionar um problema, só que é como se planejasse em voz alta, antes ou ao longo da realização da atividade (por exemplo: “Como eu posso pegar aquele brigadeiro que está tão longe? Ah... já sei! Vou subir na mesa!”) Vygotsky esclarece as características da função planejadora da fala a partir de uma interessante analogia com a fala das crianças enquanto desenham. As crianças menores tendem a nomear seus desenhos somente após realizá-los e vê-los. A decisão do que serão é assim, posterior à atividade. Uma criança um pouco mais velha nomeia o seu desenho quando este já está quase pronto e, mais tarde, geralmente decidem previamente o que desenharão. Nesse caso, a fala é anterior à atividade e, portanto, dirige a ação. Quando a fala se desloca para o início da atividade, uma nova relação entre fala e ação se estabelece. Como foi possível verificar, na perspectiva esboçada, o domínio da linguagem promove mudanças radicais na criança, principalmente no seu modo de se relacionar com o seu meio, pois possibilita novas formas de comunicação com os indivíduos e de organização de seu modo de agir e pensar. 7. A AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA Vygotsky afirma que não é somente através da aquisição da linguagem falada que o indivíduo adquire formas mais complexas de se relacionar com o mundo que o cerca. O aprendizado da linguagem escrita representa um novo e considerável salto no desenvolvimento da pessoa. “Algumas pesquisas demonstraram que este processo ativa uma fase de desenvolvimento dos processos psicointelectuais inteiramente nova e muito complexa, e que o aparecimento destes processos origina uma mudança radical das características gerais, psicointelectuais da criança” [...] (VYGOTSKY, 1988, p. 116). O domínio desse sistema complexo de signos fornece novo instrumento de pensamento (na medida em que aumenta a capacidade de memória, registro de informações etc.), propicia diferentes formas de organizar a ação e permite um outro tipo de acesso ao patrimônio da cultura humana (que se encontra registrado nos livros e outros portadores de textos). Enfim, promove modos diferentes e ainda mais abstratos de pensar, de se relacionar com as pessoas e com o conhecimento. Partindo desse pressuposto, Vygotsky faz importantes críticas à visão, presente tanto na Psicologia como na Pedagogia, que considera o aprendizado da escrita apenas como habilidade motora: “Ensina-se as crianças a desenhar letras e construir palavras com elas, mas não se ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de ler o que está escrito que se acaba obscurecendo a linguagem escrita como tal” (VYGOTSKY, 1984, p. 119). O aprendizado da escrita, esse produto cultural construído ao longo da história da humanidade, é entendido por Vygotsky como um processo bastante complexo, que é iniciado para a criança “muito antes da primeira vez que o professor coloca um lápis em sua mão e mostra como formar letras” (VYGOTSKY, L.S., et al. 1988, p. 143). A complexidade desse processo está associada ao fato de a escrita ser um sistema de representação da realidade extremamente sofisticado, que se constitui num conjunto de “símbolos de segunda ordem, os símbolos escritos funcionam como designações dos símbolos verbais. A compreensão da linguagem escrita é efetuada, primeiramente, através da linguagem falada: no entanto, gradualmente essa via é reduzida, abreviada, e a linguagem falada desaparece como elo intermediário” (VYGOTSKY, 1984, p. 131). Sendo assim, o aprendizado da linguagem escrita envolve a elaboração de todo um sistema de representação simbólica da realidade. É por isso que ele identifica uma espécie de continuidade entre as diversas atividades simbólicas: os gestos, o desenho e o brinquedo. Em outras palavras, estas atividades contribuem para o desenvolvimento da representação simbólica (onde signos representam significados), e, consequentemente, para o processo de aquisição da linguagem escrita. Considerando a importância do domínio da linguagem escrita para o indivíduo, Vygotsky enfatiza a necessidade de investigações que procurem desvendar a gênese da escrita, o caminho que a criança percorre para aprender a ler e escrever, particularmente antes que se submeta ao ensino sistemático desta linguagem na escola: “A primeira tarefa de investigação científica é revelar essa pré-história da linguagem escrita; mostrar o que leva as crianças a escrever; mostrar os pontos importantes pelos quais passa esse desenvolvimento pré-histórico e qual a sua relação com o aprendizado escolar” (VYGOTSKY, 1984, p. 121). Esse programa de pesquisa foi realizado por Luria, que, através de experimentos, procurou identificar o percurso da pré-história da escrita, a gênese da linguagem escrita na criança19. 8. INTERAÇÃO ENTRE APRENDIZADO E DESENVOLVIMENTO: A ZONA DE DESENVOLVIMENTO PROXIMAL Como vimos até agora, Vygotsky não ignora as definições biológicas da espécie humana; no entanto, atribui uma enorme importância à dimensão social, que fornece instrumentos e símbolos (assim como todos os elementos presentes no ambiente humano impregnados de significado cultural) que medeiam a relação do indivíduo com o mundo, e que acabam por fornecer também seus mecanismos psicológicos e formas de agir nesse mundo. O aprendizado é considerado, assim, um aspecto necessário e fundamental no processo de desenvolvimento das funções psicológicas superiores20. Portanto, o desenvolvimento pleno do ser humano depende do aprendizado que realiza num determinado grupo cultural, a partir da interação com outros indivíduos da sua espécie. Isto quer dizer que, por exemplo, um indivíduo criado numa tribo indígena, que desconhece o sistema de escrita e não tem nenhum tipo de contato com um ambiente letrado, não se alfabetizará. O mesmo ocorre com a aquisição da fala. A criança só aprenderá a falar se pertencer a uma comunidade de falantes, ou seja, as condições orgânicas (possuir o aparelho fonador), embora necessárias, não são suficientes para que o indivíduo adquira a linguagem. Nessa perspectiva, é o aprendizado que possibilita e movimenta o processo de desenvolvimento: “o aprendizado pressupõe uma natureza social específica e um processo através do qual as crianças penetram na vida intelectual daqueles que as cercam” (VYGOTSKY, 1984, p. 99). Desse ponto de vista, o aprendizado é o aspecto necessário e universal, uma espécie de garantia do desenvolvimento das características psicológicas especificamente humanas e culturalmente organizadas. É justamente por isso que as relações entre desenvolvimento e aprendizagem ocupam lugar de destaque na obra de Vygotsky21. Ele analisa essa complexa questão sob dois ângulos: um é o que se refere à compreensão da relação geral entre o aprendizado e o desenvolvimento; o outro, às peculiaridades dessa relação no período escolar. Faz esta distinção porque acredita que, embora o aprendizado da criança se inicie muito antes de ela frequentar a escola, o aprendizado escolar introduz elementos novos no seu desenvolvimento. Vygotsky identifica dois níveis de desenvolvimento: um se refere às conquistas já efetivadas, que ele chama de nível de desenvolvimento real ou efetivo, e o outro, o nível de desenvolvimento potencial, que se relaciona às capacidades em vias de serem construídas, conforme explicaremos a seguir. O nível de desenvolvimento real pode ser entendido como referente àquelas conquistas que já estão consolidadas na criança, aquelas funções ou capacidades que ela já aprendeu e domina, pois já consegue utilizar sozinha, sem assistência de alguém mais experiente da cultura (pai, mãe, professor, criança mais velha etc.). Este nível indica, assim, os processos mentais da criança que já se estabeleceram, ciclos de desenvolvimento que já se completaram. Desse modo, quando nos referimos àquelas atividades e tarefas que a criança já sabe fazer de forma independente, como por exemplo: andar de bicicleta, cortar com a tesoura ou resolver determinado problema matemático, estamos tratando de um nível de desenvolvimento já estabelecido, isto é, estamos olhando o desenvolvimento retrospectivamente. Nas escolas, na vida cotidiana e nas pesquisas sobre o desenvolvimento infantil, costuma-se avaliar a criança somente neste nível, isto é, supõe-se que somente aquilo que ela é capaz de fazer, sem a colaboração de outros, é que é representativo de seu desenvolvimento. O nível de desenvolvimento potencial também se refere àquilo que a criança é capaz de fazer, só que mediante a ajuda de outra pessoa (adultos ou crianças mais experientes). Nesse caso, a criança realiza tarefas e soluciona problemas através do diálogo, da colaboração, da imitação, da experiência compartilhada e das pistas que lhe são fornecidas. Como por exemplo, uma criança de cinco anos pode não conseguir, numa primeira vez, montar sozinha um quebra-cabeças que tenha muitas peças, mas com a assistência de seu irmão mais velho ou mesmo de uma criança de sua idade mas que já tenha experiência neste jogo, pode realizar a tarefa. Este nível é, para Vygotsky, bem mais indicativo de seu desenvolvimento mental do que aquilo que ela consegue fazer sozinha. A distância entre aquilo que ela é capaz de fazer de forma autônoma (nível de desenvolvimento real) e aquilo que ela realiza em colaboração com os outros elementos de seu grupo social (nível de desenvolvimento potencial) caracteriza aquilo que Vygotsky chamou de “zona de desenvolvimento potencial ou proximal”. Neste sentido, o desenvolvimento da criança é visto de forma prospectiva pois a “zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentes em estado embrionário. Essas funções poderiam ser chamadas de “brotos” ou “flores” do desenvolvimento, ao invés de “frutos” do desenvolvimento” (VYGOTSKY, 1984, p. 97). Deste modo, pode-se afirmar que o conhecimento adequado do desenvolvimento individual envolve a consideração tanto do nível de desenvolvimento real quanto do potencial. O aprendizado é o responsável por criar a zona de desenvolvimento proximal, na medida em que, em interação com outras pessoas, a criança é capaz de colocar em movimento vários processos de desenvolvimento que, sem a ajuda externa, seriam impossíveis de ocorrer. Esses processos se internalizam e passam a fazer parte das aquisições do seu desenvolvimento individual. É por isso que Vygotsky afirma que “aquilo que é a zona de desenvolvimento proximal hoje será o nível de desenvolvimento real amanhã – ou seja, aquilo que uma criança pode fazer com assistência hoje, ela será capaz de fazer sozinha amanhã” (VYGOTSKY, 1984, p. 98). O conceito de zona de desenvolvimento proximal é de extrema importância para as pesquisas do desenvolvimento infantil e para o plano educacional, justamente porque permite a compreensão da dinâmica interna do desenvolvimento individual. Através da consideração da zona de desenvolvimento proximal, é possível verificar não somente os ciclos já completados, como também os que estão em via de formação, o que permite o delineamento da competência da criança e de suas futuras conquistas, assim como a elaboração de estratégias pedagó- gicas que a auxiliem nesse processo. Esse conceito possibilita analisar ainda os limites desta competência, ou seja, aquilo que está “além” da zona de desenvolvimento proximal da criança, aquelas tarefas que mesmo com a interferência de outras pessoas, ela não é capaz de fazer. Por exemplo: uma criança de 6 anos pode conseguir completar um esquema de Palavras Cruzadas com a ajuda de um adulto ou em colaboração com algum parceiro. No entanto, uma criança de 2 anos não será capaz de realizar esta tarefa, mesmo com a assistência de alguém. Segundo Vygotsky, o aprendizado de modo geral e o aprendizado escolar em particular, não só possibilitam como orientam e estimulam processos de desenvolvimento. Nesse sentido argumenta: “[...] todas as pesquisas experimentais sobre a natureza psicológica dos processos de aprendizagem da aritmética, da escrita, das ciências naturais e de outras matérias na escola elementar demonstram que o seu fundamento, o eixo em torno do qual se montam, é uma nova formação que se produz em idade escolar. Estes processos estão todos ligados ao desenvolvimento do sistema nervoso central. [...] Cada matéria escolar tem uma relação própria com o curso do desenvolvimento da criança, relação que muda com a passagem da criança de uma etapa para outra. Isto obriga a reexaminar todo o problema das disciplinas formais, ou seja, do papel e da importância de cada matéria no posterior desenvolvimento psicointelectual geral da criança” (VYGOTSKY, 1988, p. 116-117). 9. O PROCESSO DE FORMAÇÃO DE CONCEITOS E O PAPEL DESEMPENHADO PELO ENSINO ESCOLAR Este é um tema de extrema importância nas proposições de Vygotsky, pois integra e sintetiza suas principais teses acerca do desenvolvimento humano: as relações entre pensamento e linguagem, o papel mediador da cultura na constituição do modo de funcionamento psicológico do indivíduo e o processo de internalização de conhecimentos e significados elaborados socialmente. Na perspectiva vygotskiana, os conceitos são entendidos como um sistema de relações e generalização contidos nas palavras e determinado por um processo histórico cultural: “são construções culturais, internalizadas pelos indivíduos ao longo de seu processo de desenvolvimento. Os atributos necessários e suficientes para definir um conceito são estabelecidos por características dos elementos encontrados no mundo real, selecionados como relevantes pelos diversos grupos culturais. É o grupo cultural onde o indivíduo se desenvolve que vai lhe fornecer, pois, o universo de significados que ordena o real em categorias (conceitos), nomeadas por palavras da língua desse grupo” (OLIVEIRA, 1992, p. 28). De acordo com Vygotsky, o desenvolvimento e a aprendizagem estão interrelacionados desde o nascimento da criança. Como já mencionamos, desde muito pequenas, através da interação com o meio físico e social, as crianças realizam uma série de aprendizados. No seu cotidiano, observando, experimentando, imitando e recebendo instruções das pessoas mais experientes de sua cultura, aprende a fazer perguntas e também a obter respostas para uma série de questões. Como membro de um grupo sociocultural determinado, ela vivencia um conjunto de experiências e opera sobre todo o material cultural (conceitos, valores, ideias, objetos concretos, concepção de mundo etc.) a que tem acesso. Deste modo, muito antes de entrar na escola, já construiu uma série de conhecimentos do mundo que a cerca. Por exemplo, antes de estudar matemática na escola, a criança já teve experiências com quantidades e, portanto, já lidou com noções matemáticas. No entanto, ao ingressar na escola, um outro tipo de conhecimento se processa. Para explicar o papel da escola no processo de desenvolvimento do indivíduo, Vygotsky faz uma importante distinção entre os conhecimentos construídos na experiência pessoal, concreta e cotidiana das crianças, que ele chamou conceitos cotidianos ou espontâneos e aqueles elaborados na sala de aula, adquiridos por meio do ensino sistemático, que chamou conceitos científicos22. Mas vejamos no que consiste cada um desses conceitos. Os conceitos cotidianos referem-se àqueles conceitos construídos a partir da observação, manipulação e vivência direta da criança. Por exemplo, a partir de seu dia a dia, a criança pode construir o conceito “gato”. Esta palavra resume e generaliza as características deste animal (não importa o tamanho, a raça, a cor etc.) e o distingue de outras categorias tal como livro, estante, pássaro. Os conceitos científicos se relacionam àqueles eventos não diretamente acessíveis à observação ou ação imediata da criança: são os conhecimentos sistematizados, adquiridos nas interações escolarizadas. Por exemplo, na escola (provavelmente na aula de ciências), o conceito “gato” pode ser ampliado e tornar-se ainda mais abstrato e abrangente. Será incluído num sistema conceitual de abstrações graduais, com diferentes graus de generalização: gato, mamífero, vertebrado, animal, ser vivo constituem uma sequência de palavras que, partindo do objeto concreto “gato” adquirem cada vez mais abrangência e complexidade. Apesar de diferentes, os dois tipos de conceito estão intimamente relacionados e se influenciam mutuamente, pois fazem parte, na verdade, de um único processo: o desenvolvimento da formação de conceitos. “Frente a um conceito sistematizado desconhecido, a criança busca significá-lo através de sua aproximação com outros já conhecidos, já elaborados e internalizados. Ela busca enraizá-lo na experiência concreta. Do mesmo modo, um conceito espontâneo nebuloso, aproximado a um conceito sistematizado, coloca-se num quadro de generalização” (FONTANA, 1993, p. 125). O processo de formação de conceitos, fundamental no desenvolvimento dos processos psicológicos superiores, é longo e complexo, pois envolve operações intelectuais dirigidas pelo uso das palavras (tais como: atenção deliberada, memória lógica, abstração, capacidade para comparar e diferenciar). Para aprender um conceito é necessário, além das informações recebidas do exterior, uma intensa atividade mental por parte da criança. Portanto, um conceito não é aprendido por meio de um treinamento mecânico, nem tampouco pode ser meramente transmitido pelo professor ao aluno: “o ensino direto de conceitos é impossível e infrutífero. Um professor que tenta fazer isso geralmente não obtém qualquer resultado, exceto o verbalismo vazio, uma repetição de palavras pela criança, semelhante a de um papagaio, que simula um conhecimento dos conceitos correspondentes, mas que na realidade oculta um vácuo” (VYGOTSKY, 1987, p. 72). As formas de atividade intelectual típicas do adulto (pensamento conceitual) estão embrionariamente presentes no pensamento infantil: “o desenvolvimento dos processos, que finalmente resultam na formação de conceitos, começa na fase mais precoce da infância, mas as funções intelectuais que, numa combinação específica, formam a base psicológica do processo de formação de conceitos amadurece, se configura e se desenvolve somente na puberdade” (VYGOTSKY, 1987, p. 50). Vygotsky ressalta, no entanto, que, se o meio ambiente não desafiar, exigir e estimular o intelecto do adolescente, esse processo poderá se atrasar ou mesmo não se completar, ou seja, poderá não chegar a conquistar estágios mais elevados de raciocínio. Isto quer dizer que o pensamento conceitual é uma conquista que depende não somente do esforço individual mas principalmente do contexto em que o indivíduo se insere, que define, aliás, seu “ponto de chegada”. Na perspectiva vygotskiana, embora os conceitos não sejam assimilados prontos, o ensino escolar desempenha um papel importante na formação dos conceitos de um modo geral e dos científicos em particular. A escola propicia às crianças um conhecimento sistemático sobre aspectos que não estão associados ao seu campo de visão ou vivência direta (como no caso dos conceitos espontâneos). Possibilita que o indivíduo tenha acesso ao conhecimento científico construído e acumulado pela humanidade. Por envolver operações que exigem consciência e controle deliberado, permite ainda que as crianças se conscientizem dos seus próprios processos mentais (processo metacognitivo). Podemos concluir que, desse ponto de vista, o aprendizado escolar exerce significativa influência no desenvolvimento das funções psicológicas superiores, justamente na fase em que elas estão em amadurecimento. 10. A FUNÇÃO DA BRINCADEIRA NO DESENVOLVIMENTO INFANTIL É interessante observar que, para Vygotsky, o ensino sistemático não é o único fator responsável por alargar os horizontes da zona de desenvolvimento proximal. Ele considera o brinquedo uma importante fonte de promoção de desenvolvimento. Afirma que, apesar do brinquedo não ser o aspecto predominante da infância, ele exerce uma enorme influência no desenvolvimento infantil23. O termo “brinquedo”, empregado por Vygotsky num sentido amplo, se refere principalmente à atividade, ao ato de brincar. É necessário ressaltar também que embora ele analise o desenvolvimento do brinquedo e mencione outras modalidades (como, por exemplo, os jogos esportivos), dedica-se mais especialmente ao jogo de papéis ou à brincadeira de “faz de conta” (como, por exemplo, brincar de polícia e ladrão, de médico, de vendinha etc.). Este tipo de brincadeira é característico nas crianças que aprendem a falar, e que, portanto, já são capazes de representar simbolicamente e de se envolver numa situação imaginária. A imaginação é um modo de funcionamento psicológico especificamente humano que não está presente nos animais nem na criança muito pequena. É, portanto, impossível a participação da criança muito pequena numa situação imaginária. Ela tende a querer satisfazer seus desejos imediatamente: “ninguém jamais encontrou uma criança muito pequena, com menos de três anos de idade, que quisesse fazer alguma coisa dali a alguns dias, no futuro” (VYGOTSKY, 1984, p. 106). Até essa fase seu comportamento é dependente das restrições impostas pelo ambiente. Vygotsky exemplifica o quanto sua ação é determinada pelo campo visual externo: “a grande dificuldade que uma criança pequena tem em perceber que, para sentar numa pedra, é preciso primeiro virar-se de costas para ela” (Vygotsky, 1984, p. 109). Nesse período ela ainda não consegue agir de forma independente daquilo que vê: “há uma fusão muito íntima entre o significado e o que é visto. Quando se pede a uma criança de dois anos que repita a sentença “Tânia está de pé”, quando Tânia está sentada na sua frente, ela mudará a frase para “Tânia está sentada” (VYGOTSKY, 1984, p. 110). De acordo com Vygotsky, através do brinquedo, a criança aprende a atuar numa esfera cognitiva que depende de motivações internas. Nessa fase (idade pré- escolar) ocorre uma diferenciação entre os campos de significado e da visão. O pensamento que antes era determinado pelos objetos do exterior passa a ser regido pelas ideias. A criança poderá utilizar materiais que servirão para representar uma realidade ausente, por exemplo, uma vareta de madeira como uma espada, um boneco como filho no jogo de casinha, papéis cortados como dinheiro para ser usado na brincadeira de lojinha etc. Nesses casos ela será capaz de imaginar, abstrair as características dos objetos reais (o boneco, a vareta e os pedaços de papel) e se deter no significado definido pela brincadeira. A criança passa a criar uma situação ilusória e imaginária, como forma de satisfazer seus desejos não realizáveis. Esta é, aliás, a característica que define o brinquedo de um modo geral. A criança brinca pela necessidade de agir em relação ao mundo mais amplo dos adultos e não apenas ao universo dos objetos a que ela tem acesso. A brincadeira representa a possibilidade de solução do impasse causado, de um lado, pela necessidade de ação da criança e, de outro, por sua impossibilidade de executar as operações exigidas por essas ações. “A criança quer, ela mesma, guiar o carro; ela quer remar o barco sozinha, mas não pode agir assim, e não pode principalmente porque ainda não dominou e não pode dominar as operações exigidas pelas condições objetivas reais da ação dada” (LEONTIEV, 1988, p. 121). Assim, através do brinquedo, a criança projeta-se nas atividades dos adultos procurando ser coerente com os papéis assumidos. Toda situação imaginária contém regras de comportamento condizentes com aquilo que está sendo representado. Por exemplo, ao brincar de “lojinha” e desempenhar o papel de vendedora ou de cliente, a criança buscará agir de modo bastante próximo àquele que ela observou nos vendedores e clientes no contexto real. O esforço em desempenhar com fidelidade aquilo que observa em sua realidade faz com que ela atue num nível bastante superior ao que na verdade se encontra, no “brinquedo a criança sempre se comporta além do comportamento habitual de sua idade, além de seu comportamento diário: no brinquedo é como se ela fosse maior do que é na realidade” (VYGOTSKY, 1984, p. 117). Mesmo havendo uma significativa distância entre o comportamento na vida real e o comportamento no brinquedo, a atuação no mundo imaginário e o estabelecimento de regras a serem seguidas criam uma zona de desenvolvimento proximal, na medida em que impulsionam conceitos e processos em desenvolvimento. 9. É importante esclarecer que, neste caso, o termo “genético” se refere ao estudo da origem, da formação das características psicológicas. Não está, portanto, associado a genes, à transmissão dos caracteres hereditários nos indivíduos. 10. Este interesse também é bastante evidente na obra de seus colaboradores, principalmente nos trabalhos de Luria (1991) e Leontiev (1978). Assim, sempre que necessário recorreremos aos seus escritos com o objetivo de tornar mais claro os postulados de Vygotsky. 11. Estes exemplos foram extraídos do livro O desenvolvimento do psiquismo (LEONTIEV, 1978, p. 64 e 65). 12. De modo geral, o signo pode ser considerado aquilo (objeto, forma, fenômeno, gesto, figura ou som) que representa algo diferente de si mesmo. Ou seja, substitui e expressa eventos, ideias, situações e objetos, servindo como auxílio da memória e da atenção humana. Como por exemplo, no código de trânsito, a cor vermelha é o signo que indica a necessidade de parar, assim como a palavra copo é um signo que representa o utensílio usado para beber água. 13. Vygotsky admite que alguns animais também se utilizam de instrumentos (cita, por exemplo, os experimentos feitos com chipanzés que se utilizaram de varas para alcançar alimentos em locais a que não tinham acesso); no entanto, afirma que existe uma grande diferença no uso de instrumentos entre os animais e o homem. Diferentemente do homem, os animais são incapazes de construir intencionalmente os instrumentos para realizar determinadas tarefas, de conservá-los e de transmitir sua função aos seus semelhantes. 14. Embora as formulações de Vygotsky sobre a gênese do desenvolvimento humano não se apresentem como um sistema teórico organizado e articulado como o do epistemólogo suíço Jean Piaget e do psicólogo francês Henri Wallon, que chegaram a delinear os traços fundamentais do processo de estruturação psicológica do bebê até a fase adulta, encontramos em seu pensamento reflexões abrangentes e relevantes acerca dos processos de desenvolvimento e aprendizagem do ser humano. 15. Vygotsky chama a atenção para a relação do termo “jardim de infância”, usado para designar os primeiros anos de educação infantil, e a concepção botânica. 16. Para um estudo mais aprofundado das ideias de Vygotsky sobre a questão da linguagem e suas relações com o pensamento, ver o livro Pensamento e linguagem (VYGOTSKY, 1987). 17. Vygotsky afirma que a partir desse momento o pensamento verbal passa a ser predominante na atividade psicológica humana. No entanto, o pensamento não verbal (por exemplo, nas atividades que exigem apenas o uso da inteligência prática) e a linguagem não intelectual (por exemplo, quando um indivíduo recita um poema decorado ou nas linguagens emocionais), continuam presentes tanto nos adultos como nas crianças. 18. Piaget chamou este tipo de fala de discurso ou fala egocêntrica. A questão da fala egocêntrica é um dos pontos de grande discordância entre Vygotsky e Piaget, como esclarece Oliveira: “Para Piaget a função da fala egocêntrica é exatamente oposta àquela proposta por Vygotsky: ela seria uma transição entre estados mentais individuais não verbais, de um lado, e o discurso socializado e o pensamento lógico, de outro. Piaget postula uma trajetória de dentro para fora, enquanto Vygotsky considera que o percurso é de fora para dentro do indivíduo” (1993, p. 53). 19. Os resultados desse trabalho podem ser conhecidos através do artigo escrito por Luria: “O desenvolvimento da escrita na criança”. In: Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem (VYGOTSKY, L.S. et. al, 1988 p. 143-189). É interessante observar que as ideias de Vygotsky, que inspiraram as investigações efetivadas por Luria nos anos 20 e 30, guardam muitas semelhanças com os postulados elaborados pela pesquisadora argentina Emília Ferreiro e seus colaboradores, a partir dos anos 70. Para uma análise das proximidades e divergências entre esses trabalhos consultar M.T.F. Rocco (1990) e M. da G.A.B. Santos (1991). 20. Sobre este assunto, ver especialmente o artigo: “Interação entre aprendizado e desenvolvimento”. In: A formação social da mente (VYGOTSKY, 1984, p. 89-103). 21. O termo aprendizado deve ser entendido num sentido mais amplo do que o usado na língua portuguesa. Quando Vygotsky fala em aprendizado (OBUCHENIE em russo) ele se refere tanto ao processo de ensino quanto ao de aprendizagem, isto porque ele não acha possível tratar destes dois aspectos de forma independente. 22. Nos artigos “Um estudo experimental da formação de conceitos” e “O desenvolvimento dos conceitos científicos na infância” do livro Pensamento e linguagem (1987) Vygotsky se dedica à análise desse tema. 23. Maiores informações sobre o estudo desse tema poderão ser obtidas nos artigos “O papel do brinquedo no desenvolvimento”. In: A formação social da mente (VYGOTSKY, 1984, p. 105-118). Ver também o artigo de Leontiev “Os princípios psicológicos da brincadeira pré-escolar”. In: Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem (VYGOTSKY et al., 1988, 119-142). Capítulo III PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS E IMPLICAÇÕES EDUCACIONAIS DO PENSAMENTO VYGOTSKIANO 1. AS CONCEPÇÕES INATISTA E AMBIENTALISTA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO E AS IMPLICAÇÕES EDUCACIONAIS Para que possamos compreender a originalidade das contribuições de Vygotsky à área da educação é necessário que examinemos, ainda que brevemente, as teorias psicológicas já formuladas sobre a constituição do psiquismo humano: o inatismo e o ambientalismo. Essas abordagens revelam diferentes concepções e modos de explicar as dimensões biológicas e culturais do homem e a forma pela qual o sujeito aprende e se desenvolve, e, mais particularmente, as possibilidades da ação educativa. Cada uma delas é marcada pelas características do momento e do contexto sócio-histórico em que foi formulada e pelos diversos paradigmas e pressupostos filosóficos, metodológicos e epistemológicos que as inspiraram. A abordagem inatista (também conhecida como apriorista ou nativista), inspirada nas premissas da filosofia racionalista e idealista24, se baseia na crença de que as capacidades básicas de cada ser humano (personalidade, potencial, valores, comportamentos, formas de pen- pensar e de conhecer são inatas, ou seja, já se encontram praticamente prontas no momento do nascimento ou potencialmente determinadas e na dependência do amadurecimento para se manifestar. Enfatiza assim os fatores maturacionais e hereditários como definidores da constituição do ser humano e do processo de conhecimento. Exclui, consequentemente, as interações socioculturais na formação das estruturas comportamentais e cognitivas da criança. Nessa visão o desenvolvimento é pré-re- quisito para o aprendizado e o desenvolvimento mental é visto de modo restrospectivo. Essa perspectiva pode trazer uma série de comprometimentos ao aspecto pedagógico, na medida em que entende que a educação pouco ou quase nada altera as determinações inatas. Os processos de ensino só podem se realizar na medida em que a criança estiver “pronta”, madura para efetivar determinada aprendizagem. A prática escolar não desafia, não amplia nem instrumentaliza o desenvolvimento de cada indivíduo, pois se restringe àquilo que ele já conquistou. Esse paradigma promove uma expectativa significativamente limitada do papel da educação para o desenvolvimento individual, na medida em que considera o desempenho do aluno fruto de suas capacidades inatas. O processo educativo fica assim na dependência de seus traços comportamentais ou cognitivos. Desse modo, acaba gerando um certo imobilismo e resignação provocados pela convicção de que as diferenças não serão superáveis pela educação. Na prática escolar, podemos identificar as consequências da abordagem inatista, não só no que diz respeito ao desempenho intelectual, mas também no que se refere à forma de compreender o comportamento de um modo geral do aluno. As características comportamentais manifestas pelas crianças, tais como, agressividade, impetuosidade, sensibilidade ou passividade, acabam sendo interpretadas como inatas, e, portanto, têm reduzida chance de se modificarem. Os postulados inatistas podem servir, assim, para justificar práticas pedagógicas espontaneístas, pouco desafiadoras e que, na maior parte das vezes, subestimam a capacidade intelectual do indivíduo, na medida em que seu sucesso ou fracasso depende quase exclusivamente de seu talento, aptidão, dom ou maturidade. Desconfiam, portanto, do valor da educação e do papel interveniente e mediador do professor. Sua atuação se restringe ao respeito às diferenças individuais, aos desejos, aos interesses e capacidades manifestas pelo indivíduo (ou pelo grupo), ao reforço das “características inatas” ou ainda à espera de que processos maturacionais ocorram. Consequentemente, o desempenho das crianças na escola deixa de ser responsabilidade do sistema educacional. Terá sucesso a criança que tiver algumas qualidades e aptidões básicas, que implicarão na garantia de aprendizagem, tais como: inteligência, esforço, atenção, interesse ou mesmo maturidade (desenvolvimento de pré- requisitos) para aprender. Assim, a responsabilidade está na criança (e no máximo em sua família) e não na sua relação com o contexto social mais amplo, nem tampouco na própria dinâmica interna da escola. Em contrapartida, a concepção ambientalista (também chamada de associacionista, comportamentalista ou behaviorista), inspirada na filosofia empirista e positivista25, atribui exclusivamente ao ambiente a constituição das características humanas e privilegia a experiência como fonte de conhecimento e de formação de hábitos de comportamento. Assim, as características individuais são determinadas por fatores externos ao indivíduo. Nesta abordagem desenvolvimento e aprendizagem se confundem e ocorrem simultaneamente. Os postulados do ambientalismo podem servir para legitimar e justificar diferentes (e muitas vezes antagônicas) práticas pedagógicas que variam entre o assistencialismo, o conservadorismo, o diretivismo, o tecnicismo e até o espontaneísmo. O impacto da abordagem ambientalista na educação pode ser verificado nos programas educacionais elaborados com o objetivo de estimular e intervir no desenvolvimento das crianças provenientes das camadas populares ou compensar, de forma assistencialista, as “carências sociais” dos indivíduos. Nesses casos o que está subjacente é a ideia de que a escola tem não somente o poder de formar e transformar o indivíduo, como também a incumbência de corrigir os problemas sociais. A visão e a prática da pedagogia tradicional (na sua versão conservadora, diretiva ou tecnicista) é permeada pelos pressupostos do ambientalismo. O papel da escola e do ensino é supervalorizado, já que o aluno é um receptáculo vazio (alguém que em princípio nada sabe). A transmissão de um grande número de informações torna-se de extrema relevância. A função primordial da escola é a preparação moral e intelectual do aluno para assumir sua posição na sociedade. O compromisso da escola é com a “transmissão da cultura” e a “modelagem comportamental” das crianças. Nessa perspectiva os conteúdos e procedimentos didáticos não precisam ter nenhuma relação com o cotidiano do aluno e muito menos com as realidades sociais. É a predominância da palavra do professor, das regras impostas e da transmissão verbal do conhecimento. Na pedagogia que superdimensiona a “cultura geral” que deve ser transmitida, o educando assume uma posição secundária e marcadamente passiva, devido a sua imaturidade e inexperiência. Cabe ao aluno apenas executar prescrições que lhes são fixadas por autoridades exteriores a ele. Valoriza-se o trabalho individual, a atenção, a concentração, o esforço e a disciplina, como garantias para a apreensão do conhecimento. As trocas de informações, os questionamentos, as dúvidas e a comunicação entre os alunos, enfim a interação entre pares, são interpretadas como falta de respeito, dispersão, bagunça, indisciplina e “conversas paralelas”. Dá-se, portanto, privilégio à interação adulto-criança. O adulto é considerado o homem acabado, pronto e completo, ou seja, o modelo perfeito que deve ensinar as crianças e, principalmente, moldar seu caráter, comportamento e conhecimento. Assim, o ensino, em todas as formas desse tipo de abordagem, será centrado no professor, que monta programas a partir de uma progressão de grau de complexidade da matéria (definidos a partir de seu referencial). Cabe a ele ser exigente e rigoroso na tarefa de direcionar, punir, treinar, vigiar, organizar conteúdos e meios eficientes que garantam o ensino e a aprendizagem. O professor, por ser o elemento central e único detentor do saber, é quem corrige, avalia e julga as produções e comportamentos dos alunos, principalmente seus “erros e dificuldades”, detendo-se quase que exclusivamente no produto da aprendizagem, naquilo que a criança é capaz de fazer sozinha. As possibilidades de sucessão do professor estão intimamente relacionadas a sua competência de promover situações propícias para que se processem associações entre estímulos e respostas corretas, pois o erro deve ser eliminado. É necessário observar que, neste paradigma, a aprendizagem é confundida com memorização de um conjunto de conteúdos desarticulados, conseguida através da repetição de exercícios sistemáticos de fixação e cópia e estimulada por reforços positivos (elogios, recompensas) ou negativos (notas baixas, castigos etc.). O método é baseado na exposição verbal, análise e conclusão do conteúdo por parte do professor. A verificação da aprendizagem se dá através de periódicas avaliações (vistas como instrumentos de controle e de checagem da necessidade de reformulação das técnicas empregadas). Esta abordagem pode servir não exclusivamente para justificar atuações diretivistas e autoritárias mas também como fundamento a práticas espontaneístas. Podemos identificar estes pressupostos na pedagogia que valoriza o laissez-faire, a experiência e o contato com os objetos concretos. Nesta concepção, entende-se que a construção de conhecimentos se dá exclusivamente através das relações que as crianças estabelecem de forma “espontânea e livre” com os objetos de seu meio físico. Dessa maneira, um ambiente rico de estímulos proporcionará desafios e aprendizagens. O papel do professor se restringe à criação de um ambiente “democrático”, onde não há hierarquia, pois busca estabelecer uma relação de simetria e igualdade com o grupo de alunos. É como se o educador tivesse que abdicar de sua autoridade e se contentar em atuar como árbitro ou moderador das desavenças surgidas no cotidiano e interferir o mínimo necessário, para não inibir “a descoberta, a criatividade e o interesse infantil”. Nessa perspectiva o mero contato ou experiência com os objetos é sinônimo de aprendizagem. Uma outra faceta do espontaneísmo, baseado nesses pressupostos, se fundamenta na convicção de que o desempenho e as características individuais do aluno são resultantes da educação recebida em sua família e do ambiente socioeconômico em que vive. Muitas vezes as causas de suas dificuldades na escola são atribuídas exclusivamente aos fatores do universo social, tais como: a pobreza, a desnutrição, a composição familiar, a crise econômica que o país atravessa, ao ambiente em que vive, à violência da sociedade atual, a influência da televisão etc. Assim, já que dependem de fatores externos à escola, a solução não está ao alcance dos educadores. Consequentemente, é insignificante o valor da educação. Ou seja, é tamanha a força modeladora (e opressora) do contexto social, que a escola se torna impotente e sem instrumentos para lidar com a criança, principalmente aquela proveniente das camadas populares. É bastante curioso observar como abordagens tão distintas, como o inatismo e o ambientalismo, baseadas em pressupostos epistemológicos tão diferentes, podem ser utilizadas para justificar uma mesma perspectiva pedagógica: o espontaneísmo. Esta identificação se dá na medida em que ambas reforçam a ideia de um determinismo prévio (por razões inatas ou adquiridas), que acarreta uma espécie de perplexidade e imobilismo do sistema educacional. A escola se vê, assim, desvalorizada e isenta de cumprir o seu papel de possibilitadora e desafiadora (ainda que não exclusiva) do processo de constituição do sujeito, do ponto de vista do seu comportamento de um modo geral e da construção de conhecimentos. 2. A ABORDAGEM SOCIOINTERACIONISTA DE VYGOTSKY Conforme descrito no capítulo anterior, os postulados de Vygotsky são radicalmente diferentes das concepções expostas acima. Podemos considerálo representante de uma outra maneira de entender a origem e evolução do psiquismo humano, as relações entre indivíduo e sociedade e, como consequência, um modo diferente de entender a educação: a concepção interacionista. Vygotsky, inspirado nos princípios do materialismo dialético, considera o desenvolvimento da complexidade da estrutura humana como um processo de apropriação pelo homem da experiência histórica e cultural. Segundo ele, organismo e meio exercem influência recíproca, portanto o biológico e o social não estão dissociados. Nesta perspectiva, a premissa é de que o homem constitui-se como tal através de suas interações sociais, portanto, é visto como alguém que transforma e é transformado nas relações produzidas em uma determinada cultura. É por isso que seu pensamento costuma ser chamado de sociointeracionista. Ao admitir a interação do indivíduo com o meio como característica definidora da constituição humana, Vygotsky refuta as teses antagônicas e radicais que dicotomizavam o inato e o adquirido: as abordagens ambientalistas (pela exagerada e exclusiva ênfase às pressões do meio) e nativistas (pelo desprezo às influências externas e pela supervalorização do aspecto hereditário e maturacional). Suas proposições parecem apontar para uma superação das oposições consagradas no campo teórico da Psi- cologia, na medida em que indicam novas bases para a compreensão da atividade humana. É necessário ressaltar que, na abordagem vygotskiana, o que ocorre não é uma somatória entre fatores inatos e adquiridos e sim uma interação dialética que se dá, desde o nascimento, entre o ser humano e o meio social e cultural que se insere. Vygotsky rejeita os modelos baseados em pressupostos inatistas que preescrevem características comportamentais universais do ser humano, como por exemplo, as definições de comportamento por faixa etária, por entender que o homem é um sujeito datado, atrelado às determinações de sua estrutura biológica e de sua conjuntura histórica. Sendo assim, a Psicologia (particularmente a que se ocupa das questões do desenvolvimento) não tem grande poder de generalização, já que se circunscreve a determinadas características profundamente relacionadas à dimensão cultural e histórica do grupo tratado26. Deve se restringir, portanto, à descrição de determinadas características psicológicas em estágios específicos da vida (na infância, adolescência e idade adulta) em sua interação com o contexto sociocultural. Discorda também da visão ambientalista pois, para ele, o indivíduo não é resultado de um determinismo cultural, ou seja, não é um receptáculo vazio, um ser passivo, que só reage frente às pressões do meio, e sim um sujeito que realiza uma atividade organizadora na sua interação com o mundo, capaz inclusive de renovar a própria cultura. Parte do pressuposto de que as características de cada indivíduo vão sendo formadas a partir da constante interação com o meio, entendido como mundo físico e social, que inclui as dimensões interpessoal e cultural. Nesse processo, o indivíduo ao mesmo tempo que internaliza as formas culturais, as transforma e intervém em seu meio. É, portanto na relação dialética com o mundo que o sujeito se constitui e se liberta. É possível constatar que o ponto de vista de Vy- gotsky é que o desenvolvimento humano é compreendido não como a decorrência de fatores isolados que amadurecem, nem tampouco de fatores ambientais que agem sobre o organismo controlando seu comportamento, mas sim através de trocas recíprocas, que se estabelecem durante toda a vida, entre indivíduo e meio, cada aspecto influindo sobre o outro. Analisaremos a seguir, mais detalhadamente, os pressupostos filosóficos e epistemológicos subjacentes a essas teses elaboradas por Vygotsky. Posteriormente faremos algumas reflexões acerca contribuições de seu pensamento ao plano educacional. das possíveis 3. A INFLUÊNCIA DO MATERIALISMO DIALÉTICO A perspectiva histórico-cultural do psiquismo, elaborada por Vygotsky, fundamenta-se no método e nos princípios teóricos do materialismo histórico-dialético. Assim, analisaremos, ainda que em linhas gerais, alguns aspectos do pensamento (particularmente aqueles que influenciaram diretamente seu trabalho) dos responsáveis pela formulação desta abordagem: Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), no intuito de esclarecer as raízes filosóficas destes pressupostos e principalmente identificar suas bases epistemológicas.27 Marx e Engels propõem uma perspectiva materialista-dialética para a compreensão do real, para a construção de conhecimento e para o entendimento do homem. Segundo eles, os fenômenos materiais são processos. Coloca assim como princípio último da realidade a própria matéria. A matéria é um princípio dinâmico, ainda não constituído, está em processo, evolui dialeticamente, segundo a tríade tese, antítese e síntese. De acordo com essa abordagem, o pressuposto primeiro de toda a história humana é a existência de indivíduos concretos, que na luta pela sobrevivência organizam-se em torno do trabalho estabelecendo relações entre si e com a natureza. Apesar de fazer parte da natureza (é um ser natural, criado pela natureza e submetido às suas leis), o homem se diferencia dela na medida em que é capaz de transformá-la conscientemente segundo suas necessidades. É através dessa interação, que provoca transformações recíprocas, que o homem se faz homem. Dessa forma, a compreensão do ser humano implica necessariamente na compreensão de sua relação com a natureza, já que é nesta relação que o homem constrói e transforma a si mesmo e a própria natureza, criando novas condições para sua existência. É através do trabalho, uma atividade prática e consciente, que o homem atua sobre a natureza. Ao produzir seus meios de vida, o homem produz indiretamente sua própria vida material. A noção de produção pelo trabalho (encarado como motor do processo histórico) não apenas diferencia o homem dos animais como também o explica: é pela produção que se desvenda o caráter social e histórico do homem. O homem é um ser social e histórico e é a satisfação de suas necessidades que o leva a trabalhar e transformar a natureza, estabelecer relações com seus semelhantes, produzir conhecimentos, construir a sociedade e fazer a história. É entendido assim como um ser em permanente construção, que vai se constituindo no espaço social e no tempo histórico. A necessidade de intercâmbio entre os homens no processo de trabalho possibilitou o aparecimento da linguagem como veículo de comunicação e apropriação do conhecimento historicamente construído pela espécie humana. Sendo assim, o desenvolvimento de sua consciência não se limita a sua experiência pessoal, pois seu pensamento passa a ser mediado pela linguagem. Diferente dos animais, o produto da atividade (do trabalho) humana existe antes na mente do sujeito como imagens psíquicas (conteúdo de sua consciência), que mediatizam a sua realização. Segundo o materialismo histórico dialético, o processo de vida social, política e econômica é condicionado pelo modo de produção de vida material. São as condições materiais que formam a base da sociedade, da sua construção, das suas instituições e regras, das suas ideias e valores. Nessa perspectiva, a realidade (natural e social) evolui por contradição e se constitui num processo histórico. São os conflitos internos desta realidade que provocam as mudanças que ocorrem de forma dialética. Esse processo é resultante das intervenções das práticas humanas. Já que a formação e transformação da sociedade humana ocorre de modo dinâmico, contraditório e através de conflitos, precisa ser compreendida como um processo em constante mudança e desenvolvimento. Ao construírem um sistema explicativo da história e da sociedade, Marx e Engels elaboram e estabelecem os princípios epistemológicos que orientam sua análise. Ainda que de forma implícita é possível perceber uma proposta para a produção do conhecimento. De acordo com a perspectiva dialética, sujeito e objeto de conhecimento se relacionam de modo recíproco (um depende do outro) e se constituem pelo processo histórico-social. Podemos entender então que as ideias são decorrência da interação do homem com a natureza e o conhecimento é determinado pela matéria, pela realidade objetiva. O homem faz parte da natureza e a recria em suas ideias a partir de sua interação com ela. Sendo assim, o desenvolvimento das funções psíquicas humanas (a produção das ideias, das representações, do pensamento, enfim da consciência) está intimamente relacionada à atividade material e ao intercâmbio entre os homens. Em síntese, nesta abordagem, o sujeito produtor de conhecimento não é um mero receptáculo que absorve e contempla o real nem o portador de verdades oriundas de um plano ideal; pelo contrário, é um sujeito ativo que em sua relação com o mundo, com seu objeto de estudo, reconstrói (no seu pensamento) este mundo. O conhecimento envolve sempre um fazer, um atuar do homem. A noção de constituição do homem como ser histórico traz implícita a concepção de que não há uma essência humana dada e imutável, pelo contrário, supõe um homem ativo no processo contínuo e infinito de construção de si mesmo, da natureza e da história. Esse processo não é linear e unidirecional pois está intimamente relacionado à evolução histórica das necessidades e dos interesses culturais. De acordo com esses postulados, deve-se partir da atividade real deste homem para estudar o processo de seu desenvolvimento intelectual. Marx e Engels propõem o método dialético-materialista para o qual o pensamento analítico deve tomar como ponto de partida, e de chegada, a prática dos homens historicamente situados. 4. A CONSTRUÇÃO DA PSICOLOGIA HISTÓRICOCULTURAL A partir dessas colocações iniciais é possível identificar as inúmeras aproximações entre a proposta metodológica e as teses formuladas por Vygotsky e a epis- temologia dialético-materialista. Utilizando-se dos pressupostos construídos por Marx e Engels, Vygotsky e seus colaboradores objetivaram elaborar uma psicologia histórico-cultural, ampliando, assim, os horizontes da ciência psicológica. Diferente de muitos intelectuais soviéticos, que se apressavam em fazer suas teorias de acordo com as mais recentes interpretações do marxismo, formulando coletâneas de citações de Marx e Engels sobre os diversos aspectos da psicologia humana, Vygotsky viu, nos métodos e princípios do materialismo dialético, a solução dos paradoxos científicos com que se defrontavam seus contemporâneos e, como consequência, a possibilidade de superação do estado de crise da Psicologia. Vygotsky procurou desenvolver um método que permitisse a compreensão da natureza do comportamento humano, enquanto parte do desenvolvimento histórico geral de nossa espécie. Acabou sistematizando uma abordagem fundamentalmente nova sobre o processo de desenvolvimento do pensamento e das funções cognitivas complexas de um sujeito contextualizado e, portanto, histórico. A essência deste novo método é o princípio de que todos os fenômenos têm uma história caracterizada por mudanças qualitativas e quantitativas, portanto devem ser estudados como processos em movimento e mudança. A tarefa do cientista, em termos de Psicologia, é justamente a de reconstruir a origem e o curso do desenvolvimento do comportamento e da consciência (COLE & SCRIBNER, 1984, p. 7). Vygotsky entendia que a compreensão do ser humano dependia do estudo do processo de internalização das formas culturalmente dadas de funcionamento psicológico. Foi a partir dessa premissa que tentou explicar a transformação dos processos psicológicos elementares, relacionados aos fatores biológicos do desenvolvimento, em processos superiores, resultantes da inserção do homem num determinado contexto sócio-histórico. Não é exagero afirmar que, num certo sentido, a obra de Vygotsky, Marx e Engels se completam. O psicólogo soviético buscou, a partir das influências do materialismo-dialético, avançar e substanciar a caracterização do desenvolvimento do psiquismo humano. Conforme exposto no capítulo 2, através de seu estudo sobre as funções psicológicas mais sofisticadas, exclusivamente humanas, Vygotsky esclarece em que medida o ser humano constitui-se enquanto tal na sua relação com o outro social. Baseando-se no pressuposto de que não há essência humana a priori imutável, investiga a construção do sujeito na interação com o mundo, sua relação com os demais indivíduos, a gênese das estruturas de seu pensamento, a construção do conhecimento. Conseguindo, finalmente, explicitar como a cultura torna-se parte da natureza humana num processo histórico que, ao longo do desenvolvimento da espécie e do indivíduo, forma o funcionamento psicológico do homem. As concepções de Vygotsky sobre a base biológica do funcionamento psicológico também se fundamentam no paradigma materialista-dialético. Vygotsky dá especial importância ao estudo do cérebro, entendido como o órgão material da atividade mental. O cérebro é visto como um sistema flexível capaz de servir a novas e diferentes funções, sem que sejam necessárias transformações no orgão físico. O funcionamento cerebral é moldado, assim, ao longo da história da espécie e do desenvolvimento individual. Ou seja, para Vygotsky, a estrutura e o funcionamento do cérebro humano, que levaram milhões de anos para evoluir, também passam por mudanças no curso do desenvolvimento do indivíduo, devido à interação do homem com o meio físico e social. As aproximações entre a epistemologia dialética materialista e a perspectiva vygotskiana não se esgotam nessas primeiras colocações. Como já foi mencionado, na filosofia marxista, o homem é concebido como sujeito ativo que cria o meio, a realidade (age na natureza) e como produto deste meio (a natureza age sobre os homens). Nesse processo dialético, o sujeito do conhecimento não tem um comportamento contemplativo diante da realidade. Pelo contrário, é constantemente estimulado pelo mundo externo e como consequência internaliza (de modo ativo), o conhecimento (conceitos, valores, significados) construído pelos homens ao longo da história. Vygotsky parte deste princípio e postula que é na atividade prática, nas interações estabelecidas entre os homens e a natureza que as funcões psíquicas, especificamente humanas, nascem e se desenvolvem. Detém-se na investigação do surgimento de novas estruturas cognitivas a partir da demanda social, da necessidade de novos instrumentos de trabalho e de pensamento. O conceito de mediação, um dos pilares das teses vygotskianas, também revela grandes aproximações com a abordagem do materialismo históricodialético. Como vimos no capítulo anterior, Vygotsky estendeu a noção de mediação homem-mundo pelo trabalho e o uso de instrumentos ao uso de signos. Afirma que a relação do indivíduo com o ambiente é mediada, pois este, enquanto sujeito de conhecimento, não tem acesso imediato aos objetos e sim a sistemas simbólicos que representam a realidade. Essa é a razão de atribuir um papel de destaque à linguagem (já que é o sistema simbólico principal de todos os grupos humanos), que se interpõe entre sujeito e objeto de conhecimento. Podemos concluir que a abordagem marxista, que orientou os estudos de Vygotsky, representou uma mudança significativa na interpretação que até então vinha se dando, nas pesquisas acerca dos fenômenos psíquicos e da caracterização do ser humano. O indivíduo, agora contextualizado (histórica e socialmente), pode ser desnudado e estudado dialeticamente com relação às leis de sua evolução biológica e às leis de seu desenvolvimento sóciohistórico. 5. ALGUMAS IMPLICAÇÕES DA ABORDAGEM VYGOTSKIANA PARA A EDUCAÇÃO A obra de Vygotsky pode significar uma grande contribuição para a área da educação, na medida em que traz importantes reflexões sobre o processo de formação das características psicológicas tipicamente humanas e, como consequência, suscita questionamentos, aponta diretrizes e instiga a formulação de alternativas no plano pedagógico. No entanto, vale ressaltar que não é possível encontrar, nas suas teses (como em outras propostas teóricas), soluções práticas ou instrumentos metodológicos de imediata aplicação na prática educativa cotidiana. Esse impedimento se deve não somente às peculiaridades de sua obra, como também à própria problemática envolvida no complexo estabelecimento de diálogo entre as teorias e a prática pedagógica. Guardadas as devidas limitações, suas produções possibilitam a análise psicológica de algumas questões relacionadas ao ensino e sugerem uma reavaliação de aspectos já consagrados no campo educacional. Ao desenvolver o conceito de zona de desenvolvimento proximal e outras teses, Vygotsky oferece elementos importantes para a compreensão de como se dá a integração entre ensino, aprendizagem e desenvolvimento. Faremos, a seguir, uma reflexão sobre algumas implicações de suas ideias. [Valorização do papel da escola:] A leitura da obra de Vygotsky permite identificar, em várias passagens, a atenção especial que dedica à educação escolar. Sua preocupação com esse tema é coerente com a perspectiva histórica, que considera fundamental a análise das condições concretas para o desenvolvimento de um determinado tipo de cognição. Conforme abordado no capítulo anterior, ele chama a atenção para o fato de que a escola, por oferecer conteúdos e desenvolver modalidades de pensamento bastante específicos, tem um papel diferente e insubstituível, na apropriação pelo sujeito da experiência culturalmente acumulada. Justamente por isso, ela representa o elemento imprescindível para a realização plena do desenvolvimento dos indivíduos (que vivem em sociedades escolarizadas) já que promove um modo mais sofisticado de analisar e generalizar os elementos da realidade: o pensamento conceitual. Na escola, as atividades educativas, diferentes daquelas que ocorrem no cotidiano extraescolar, são sistemáticas, têm uma intencionalidade deliberada e compromis- so explícito (legitimado historicamente) em tornar acessível o conhecimento formalmente organizado. Nesse contexto, as crianças são desafiadas a entender as bases dos sistemas de concepções científicas e a tomar consciência de seus próprios processos mentais. Ao interagir com esses conhecimentos, o ser humano se transforma: aprender a ler e a escrever, obter o domínio de formas complexas de cálculos, construir significados a partir das informações descontextualizadas, ampliar seus conhecimentos, lidar com conceitos científicos hierarquicamente relacionados, são atividades extremamente importantes e complexas, que possibilitam novas formas de pensamento, de inserção e atuação em seu meio. Isto quer dizer que as atividades desenvolvidas e os conceitos aprendidos na escola (que Vygotsky chama de científicos) introduzem novos modos de operação intelectual: abstrações e generalizações mais amplas acerca da realidade (que por sua vez transformam os modos de utilização da linguagem). Como consequência, na medida em que a criança expande seus conhecimentos, modifica sua relação cognitiva com o mundo. O pensamento de Vygotsky nos remete imediatamente a uma discussão acerca dos aspectos sociopolíticos envolvidos na questão do saber: será que o conhecimento construído pelo grupo humano está sendo, de fato, socialmente distribuído? Se a escolarização desempenha um papel tão fundamental na constituição do indivíduo que vive numa sociedade letrada e complexa como a nossa, a exclusão, o fracasso e o abandono da escola, por parte dos alunos, constituem-se, nessa perspectiva, fatores de extrema gravidade. Isto quer dizer que o fato de o indivíduo não ter acesso à escola significa um impedimento da apropriação do saber sistematizado, da construção de funções psicológicas mais sofisticadas, de instrumentos de atuação e transformação de seu meio social e de condições para a construção de novos conhecimentos. Todavia, é importante ressaltar que seria ingênuo supor que a frequência da criança à escola seja suficiente para que os processos mencionados acima ocorram. Sabemos que a presença na escola não é garantia de que o indivíduo se apropria do acervo de conhecimentos sobre áreas básicas daquilo que foi elaborado por seu grupo cultural. O acesso a esse saber dependerá, entre outros fatores de ordem social e política e econômica, da qualidade do ensino oferecido28. Nesse sentido, o pensamento de Vygotsky traz uma outra implicação: contribui para suscitar a necessidade de uma avaliação mais criteriosa de como essa agência educativa vem desempenhando sua tão relevante função. O ensino verbalista, baseado na transmissão oral de conhecimentos por parte do professor, assim como as práticas espontaneístas, que abdicam de seu papel de desafiar e intervir no processo de apropriação de conhecimentos por parte das crianças e adolescentes, são, na perspectiva vygotskiana, além de infrutíferos, extremamente inadequados. Seus postulados apontam para a necessidade de criação de melhores condições na escola, para que todos os alunos tenham acesso às informações e experiências e possam efetivamente aprender. [O bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento:] A qualidade do trabalho pedagógico está associada, nessa abordagem, à capacidade de promoção de avanços no desenvolvimento do aluno. Conforme abordamos no capítulo anterior, podemos encontrar o fundamento dessa posição no conceito de zona de desenvolvimento proximal que descreve o “espaço” entre as conquistas já adquiridas pela criança (aquilo que ela já sabe, que é capaz de desempenhar sozinha) e aquelas que, para se efetivar, dependem da participação de elementos mais capazes (aquilo que a criança tem a competência de saber ou de desempenhar somente com a colaboração de outros sujeitos). Esse princípio desestabiliza algumas crenças bastante cristalizadas no âmbito pedagógico. De modo geral, nos meios educacionais, ainda parece prevalecer a visão de que o desenvolvimento é pré-requisito para o aprendizado. Um bom exemplo disso são os difundidos trabalhos de “prontidão”, normalmente desenvolvidos no período pré-escolar, que têm a intenção explícita de desenvolver, na criança, determinadas habilidades (tais como discriminação áudio-viso-motora, noções de lateralidade e orientação espacial, etc.) com o objetivo de “prepará-las” para o futuro aprendizado da língua escrita. Do ponto de vista da teoria histórico-cultural, isto é uma contradição, já que os processos de desenvolvimento são impulsionados pelo aprendizado. Ou seja, só “amadurecerá”, se aprender. Assim, no caso do exemplo citado, a criança só poderá aprender a ler e a escrever, se tiver acesso a informações sobre esse objeto de conhecimento e participar de situações planejadas de leitura e escrita. Portanto, não tem sentido esperar que primeiro ocorra o desenvolvimento para que só então seja permitido que a criança aprenda. Esta inversão, que parece apenas um jogo de palavras, sugere, na verdade, uma mudança significativa no modo de entender (e praticar) o ensino. Vygotsky afirma que o bom ensino é aquele que se adianta ao desenvolvimento, ou seja, que se dirige às funções psicológicas que estão em vias de se completarem. Essa dimensão prospectiva do desenvolvimento psicológico é de grande importância para a educação, pois permite a compreensão de processos de desenvolvimento que, embora presentes no indivíduo, necessitam da intervenção, da colaboração de parceiros mais experientes da cultura para se consolidarem e, como consequência, ajuda a definir o campo e as possibilidades da atuação pedagógica. Assim, por exemplo, ensinar a grafia dos números de 0 a 10 para uma criança de 7 anos que já os conhece e os escreve com desenvoltura, porque está acostumada a lidar com dinheiro, a fazer trocos e operações matemáticas simples, não provocará nenhum tipo de transformação no seu processo psicológico. Será igualmente improdutivo tentar ensinar para essa mesma criança operações matemáticas muito sofisticadas, como equações de 2º grau. Enfim, ensinar o que o aluno já sabe ou aquilo que está totalmente longe da sua possibilidade de aprender é totalmente ineficaz. A escola desempenhará bem seu papel, na medida em que, partindo daquilo que a criança já sabe (o conhecimento que ela traz de seu cotidiano, suas ideias a respeito dos objetos, fatos e fenômenos, suas “teorias” acerca do que observa no mundo), ela for capaz de ampliar e desafiar a construção de novos conhecimentos, na linguagem vygotskiana, incidir na zona de desenvolvimento potencial dos educandos. Desta forma poderá estimular processos internos que acabarão por se efetivar, passando a constituir a base que possibilitará novas aprendizagens. São bastante oportunas as colocações, baseadas nos pressupostos de Vygotsky, feitas pelo russo Davidov, sobre o tipo de ensino que de fato impulsiona o desenvolvimento das capacidades dos alunos. Afirma que a escola deve ser capaz de desenvolver nos alunos capacidades intelectuais que lhes permitam assimilar plenamente os conhecimentos acumulados. Isto quer dizer que ela não deve se restringir à transmissão de conteúdos, mas, principalmente, ensinar o aluno a pensar, ensinar formas de acesso e apropriação do conhecimento elaborado, de modo que ele possa praticá-las autonomamente ao longo de sua vida, além de sua permanência na escola. Essa é, segundo ele, a tarefa principal da escola contemporânea frente às exigências das sociedades modernas (DAVIDOV, 1988, p. 3). [O papel do outro na construção do conhecimento:] É preciso que examinemos, mais detalhadamente, os postulados de Vygotsky sobre a formação do conhecimento, já que este é um tema fundamental na área da educação. Para que possamos analisar esta questão é necessário que retomemos algumas ideias expostas até agora. Como vimos, segundo a teoria histórico-cultural, o indivíduo se constitui enquanto tal não somente devido aos processos de maturação orgânica, mas, principalmente, através de suas interações sociais, a partir das trocas estabelecidas com seus semelhantes. As funções psíquicas humanas estão intimamente vinculadas ao aprendizado, à apropriação (por intermédio da linguagem) do legado cultural de seu grupo. Esse patrimônio, material e simbólico, consiste no conjunto de valores, conhecimentos, sistemas de representação, construtos materiais, técnicas, formas de pensar e de se comportar que a humanidade construiu ao longo de sua história. Para que a criança possa dominar esses conhecimentos é fundamental a mediação de indivíduos, sobretudo dos mais experientes de seu grupo cultural. Mas para que exista apropriação é preciso também que exista internalização, que implica na transformação dos processos externos (concretizado nas atividades entre as pessoas), em um processo intrapsicológico (onde a atividade é reconstruída internamente). O longo caminho do desenvolvimento humano segue, portanto, a direção do social para o individual. Portanto, na perspectiva de Vygotsky, construir conhecimentos implica numa ação partilhada, já que é através dos outros que as relações entre sujeito e objeto de conhecimento são estabelecidas. O paradigma esboçado sugere, assim, um redimensionamento do valor das interações sociais (entre os alunos e o professor e entre as crianças) no contexto escolar. Essas passam a ser entendidas como condição necessária para a produção de conhecimentos por parte dos alunos, particularmente aquelas que permitam o diálogo, a cooperação e troca de informações mútuas, o confronto de pontos de vista divergentes e que implicam na divisão de tarefas onde cada um tem uma responsabilidade que, somadas, resultarão no alcance de um objetivo comum. Cabe, portanto, ao professor não somente permitir que elas ocorram, como também promovê-las no cotidiano das salas de aula. Dessa maneira, a heterogeneidade, característica presente em qualquer grupo humano, passa a ser vista como fator imprescindível para as interações na sala de aula. Os diferentes ritmos, comportamentos, experiências, trajetórias pessoais, contexto familiares, valores e níveis de conhecimentos de cada criança (e do professor) imprimem ao cotidiano escolar a possibilidade de troca de repertórios, de visão de mundo, confrontos, ajuda mútua e consequente ampliação das capacidades individuais. Em síntese, uma prática escolar baseada nesses princípios deverá necessariamente considerar o sujeito ativo (e interativo) no seu processo de conhecimento, já que ele não é visto como aquele que recebe passivamente as informações do exterior. Todavia, a atividade espontânea e individual da criança, apesar de importante, não é suficiente para a apropriação dos conhecimentos acumulados pela humanidade. Portanto, deverá considerar também a importância da intervenção do professor (entendido como alguém mais experiente da cultura) e, finalmente, as trocas efetivadas entre as crianças (que também contribuem para os desenvolvimentos individuais). [Papel da imitação no aprendizado:] Vygotsky dá uma nova dimensão também ao papel da imitação no aprendizado. Geralmente associa-se a atividade imitativa a um processo puramente mecânico, de cópia e repetição. Entretanto, como vimos, para Vygotsky, a imitação oferece a oportunidade de reconstrução (interna) daquilo que o indivíduo observa exter- namente. A imitação pode ser entendida como um dos possíveis caminhos para o aprendizado, um instrumento de compreensão do sujeito. Através da imitação as crianças são capazes de realizar ações que ultrapassam o limite de suas capacidades, como por exemplo, uma criança pequena, ainda não alfabetizada, pode imitar seu irmão e “escrever” uma lista com os nomes dos jogadores de seu time preferido. Deste modo ela estará internalizando os usos e funções da escrita e promovendo o desenvolvimento de funções psicológicas que permitirão o domínio da escrita. É nesse sentido que Vygotsky afirma que a imitação é uma das formas das crianças internalizarem o conhecimento externo. Vista por esse ângulo, a imitação de modelos fornecidos pelos sujeitos assume um papel estruturante pois amplia a capacidade cognitiva individual. Todavia, ressalta que o indivíduo só consegue imitar aquilo que está no seu nível de desenvolvimento, por exemplo: “se uma criança tem dificuldade com um problema de aritmética e o professor o resolve no quadro-negro, a criança pode captar a solução num instante. Se, no entanto, o professor solucionasse o problema usando a matemática superior, a criança seria incapaz de compreender a solução, não importando quantas vezes a copiasse” (VYGOTSKY, 1984, p. 99). Esses postulados trazem uma importante implicação à educação escolar. Já que através da imitação (instrumento de reconstrução no sentido vygotskiano) o indivíduo aprende, o fornecimento de sugestões, exemplos e demonstrações no contexto escolar adquirem um papel de extrema importância. É interessante, pois, que se promovam situações que permitam a imitação, observação e reprodução de modelos. Apesar de potencialmente fértil para o cotidiano escolar, essa questão precisa ser analisada com cautela, para que não corramos o risco de interpretar de maneira equivocada as ideias originalmente expressas por Vygotsky. Existe obviamente uma enorme diferença em propor atividades descontextualizadas que visam à mera repetição sem sentido de um modelo observado e aquelas que de fato intervêm e desencadeiam o processo de aprendizagem dos alunos. Quando Vygotsky fala em imitação não está se referindo, obviamente, aos “rituais de cópia” ou propostas de imitações mecânicas e literais de modelos fornecidos pelo adulto. Recorreremos a alguns exemplos com a intenção de esclarecer essa distinção. Propor que as crianças copiem da lousa desenhos já prontos (feitos pela professora ou retirados de alguma cartilha) é sem dúvida uma tarefa pouco significativa e desafiadora, que não favorecerá o processo de criação da criança. Atividades como essa servem, na maior parte das vezes, para inibir e estereotipar sua expressão. Isso é bastante diferente de uma situação em que, por exemplo, o professor sugere que as crianças observem, apreciem, teçam comentários sobre os desenhos elaborados pelo grupo (que se encontram expostos na parede) ou sobre as obras de artistas variados (que podem ser conhecidas através dos livros de arte disponíveis na sala). Finalmente propõe que escolham, entre os trabalhos observados, alguma característica que queiram reproduzir, como por exemplo, quanto à cor, material ou técnica empregada. O objetivo desse professor é mais amplo do que a mera repetição, sua intenção é ampliar o repertório de cada criança, permitir a troca de informações e experiências entre os colegas e também propiciar o contato das crianças com a arte produzida pelos homens ao longo de sua história. A discussão de Vygotsky sobre o papel da imitação nos remete à questão da brincadeira e de sua importância no contexto escolar. Conforme exposto no capítulo anterior, a brincadeira tem uma função significativa no processo de desenvolvimento infantil. Ela também é responsável por criar “uma zona de desenvolvimento proximal”, justamente porque, através da imitação realizada na brincadeira, a criança internaliza regras de conduta, valores, modos de agir e pensar de seu grupo social, que passam a orientar o seu próprio comportamento e desenvolvimento cognitivo. Assim, o brinquedo não só possibilita o desenvolvimento de processos psíquicos por parte da criança como também serve como um instrumento para “conhecer o mundo físico e seus fenômenos, os objetos (e seus usos sociais) e, finalmente, entender os diferentes modos de comportamento humano (os papéis que desempenham, como se relacionam e os hábitos culturais)” (REGO, 1992, p. 7). Portanto, no contexto escolar (principalmente no período pré-escolar) a brincadeira não deveria ser entendida como uma atividade secundária ou como um “mero passatempo” das crianças. Ao contrário, deveria ser valorizada e estimulada, já que tem uma importante função pedagógica. Para que as brincadeiras infantis tenham lugar garantido no cotidiano das instituições educativas é fundamental a atuação do educador. É importante que as crianças tenham espaço para brincar, assim como opções de mexer no mobiliário, que possam, por exemplo, montar casinhas, cabanas, tendas de circo etc. O tempo que as crianças têm à disposição para brincar também deve ser considerado: é importante dar tempo suficiente para que as brincadeiras surjam, se desenvolvam e se encerrem. O educador pode, assim, auxiliar não somente na organização do espaço e tempo para as brincadeiras como também auxiliar na escolha de utensílios para o incremento do jogo. Como por exemplo, oferecer sucatas (que são materiais extremamente ricos, pois apresentam uma enorme variedade de cores, formas, texturas e tamanhos) que possibilitam que as crianças montem, desmontem e construam (castelos, comidinhas para o doente, um navio etc.) inúmeras situações imaginárias. [O papel mediador do professor na dinâmica das interações interpessoais e na interação das crianças com os objetos de conhecimento:] A partir do exame das teses expressas por Vygotsky é importante que façamos algumas considerações acerca do papel do professor. O referencial analisado sugere a necessidade de redefinição de sua função. Podemos dizer que, nessa abordagem, o professor deixa de ser visto como agente exclusivo de informação e formação dos alunos, uma vez que as interações estabelecidas entre as crianças também têm um papel fundamental na promoção de avanços no desenvolvimento individual. Isto não significa, no entanto, que seu papel seja dispensável ou menos importante. Muito pelo contrário, a função que ele desempenha no contexto escolar é de extrema relevância já que é o elemento mediador (e possibilitador) das interações entre os alunos e das crianças com os objetos de conhecimento. No cotidiano escolar, a intervenção “nas zonas de desenvolvimento proximal” dos alunos é de responsabilidade (ainda que não exclusiva) do professor visto como o parceiro privilegiado, justamente porque tem maior experiência, informações e a incumbência, entre outras funções, de tornar acessível ao aluno o patrimônio cultural já formulado pelos homens e portanto, desafiar através do ensino os processos de aprendizagem e desenvolvimento infantil. Nessa perspectiva, as demonstrações, explicações, justificativas, abstrações e questionamentos do professor são fundamentais no processo educativo. Isto não quer dizer que ele deva “dar sempre a resposta pronta”. Tão importante quanto seu fornecimento de informações e pistas, é a promoção de situações que incentivem a curiosidade das crianças, que possibilitem a troca de informações entre os alunos e que permitam o aprendizado das fontes de acesso ao conhecimento. Nesse caso é oportuno que se planejem atividades que envolvam observação (por exemplo, de fenômenos da natureza), pesquisa sobre determinado tema (em casa, na biblioteca, com os parentes etc.), resolução de questões específicas (que podem tentar ser respondidas individualmente, em duplas ou grupos maiores) ou mesmo proposta de estudos e preparação de seminários, palestras ou outras apresentações. Mas para que ele possa intervir e planejar estratégias que permitam avanços, reestruturação e ampliação do conhecimento já estabelecido pelo grupo de alunos, é necessário que conheça o nível efetivo das crianças, ou melhor, as suas descobertas, hipóteses, informações, crenças, opiniões, enfim, suas “teorias” acerca do mundo circundante. Este deve ser considerado o “ponto de partida”. Para tanto, é preciso que, no cotidiano, o professor estabeleça uma relação de diálogo com as crianças e que crie situações em que elas possam expressar aquilo que já sabem. Enfim, é necessário que o professor se disponha a ouvir e notar as manifestações infantis. Nesse sentido, a observação e o registro (como por exemplo, através de diários, relatórios etc.) das características do grupo de crianças (como produzem, de que modo interagem, como se relacionam com os diversos objetos de conhecimento, suas descobertas, principais dúvidas e dificuldades, interesses, como brincam etc.) pode ser uma fonte preciosa para o planejamento de atividades significativas e eficientes em termos dos objetivos que se quer alcançar. Mas para que o professor possa desempenhar com competência sua função é preciso que, além de melhores condições salariais e de trabalho, ele também seja escutado. Os professores têm ideias, hipóteses, princípios explicativos e conhecimentos (baseados na sua experiência de vida e na sua trajetória como aluno e profissional) que, quando revelados, podem oferecer importantes pistas e subsídios na busca de novos modos de ação junto a eles. Os que trabalham na área de formação de professores não podem esperar mudanças na atuação do professor junto a seus alunos, se não mudarem a sua forma de atuar junto aos professores. Para que se possa ajudá-los na construção de novos conhecimentos (incidir na sua “zona de desenvolvimento proximal”) é preciso partir daquilo que ele sabe. Nesse sentido, entendemos que o pensamento de Vygotsky também inspira reflexões, no que se refere à questão da formação dos professores29. Várias outras reflexões sobre a prática escolar ainda poderiam ser feitas, a partir das inspirações trazidas pelas ideias de Vygotsky. Chamamos a atenção apenas para alguns aspectos, que, no nosso entender, contribuem para uma análise da questão pedagógica. Finalmente, gostaríamos de observar que talvez a maior contribuição de seu pensamento esteja no fato de ele suscitar questionamentos em torno de temas nevrálgicos e ainda mal resolvidos no sistema educacional vigente em nossa realidade. Os postulados de Vygotsky parecem apontar para a necessidade de criação de uma escola bem diferente da que conhecemos. Uma escola em que as pessoas possam dialogar, duvidar, discutir, questionar e compartilhar saberes. Onde há espaço para transformações, para as diferenças, para o erro, para as contradições, para a colaboração mútua e para a criatividade. Uma escola em que professores e alunos tenham autonomia, possam pensar, refletir sobre o seu próprio processo de construção de conhecimentos e ter acesso a novas informações. Uma escola em que o conhecimento já sistematizado não é tratado de forma dogmática e esvaziado de significado. 24. É na obra do francês Renê Descartes (1596-1650), considerado pai do racionalismo moderno e nos filósofos que nele se inspiraram: Malebranche (1646-1715), Espinoza (1632-1677), Leibniz (1646-1716) e Wolff (1679-1754), que identificamos as principais formulações racionalistas. 25. Os expoentes da filosofia empirista foram os ingleses Francis Bacon (1561-1626), Tomás Hobbes (1578-1679), John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753), David Hume (1711-1776) e o francês Augusto Comte (1798-1857). 26. Oliveira chama a atenção para dois aspectos que podem ser considerados “fenômenos psicológicos universais”, nas teses elaboradas por Vygotsky. O primeiro é a plasticidade que caracteriza todo cérebro humano, entendido como um sistema aberto à informação cultural, ou seja, um sistema flexível, que serve a diferentes funções (definidas pela demanda social) sem alterar sua estrutura física. O outro aspecto é que todo indivíduo depende das interações com a cultura para constituir-se como tal (OLIVEIRA, 1992, p. 104). 27. Embora Marx e Engels tenham sistematizado o pensamento materialista dialético no século XIX, a perspectiva dialética já havia sido apontada na filosofia grega pré-socrática por Heráclito e pelos representantes do idealismo alemão: Hegel e Feuerbach. 28. A relação entre ensino e aprendizagem é um fenômeno complexo, pois diversos fatores de ordem social, política e econômica interferem na dinâmica da sala de aula, isto porque a escola não é uma instituição independente, está inserida na trama do tecido social. Desse modo, as interações estabelecidas na escola revelam múltiplas facetas do contexto mais amplo em que o ensino se insere. 29. Utilizando do referencial teórico de Vygotsky, realizei no seu mestrado um estudo com professores que atuam na pré-escola e nas séries iniciais do primeiro grau, com o objetivo de compreender suas hipóteses acerca dos processos de desenvolvimento e aprendizagem do ser humano (Rego, 1994). Capítulo IV VYGOTSKY: ABRANGÊNCIA, CONTRIBUIÇÃO E ESTILO Neste capítulo nos dedicaremos à análise, ainda que breve, de dois aspectos que consideramos importantes para alimentar o debate em torno da obra de Vygotsky e de seus desdobramentos ao campo educacional. Primeiramente tentaremos esclarecer a questão do lugar ocupado pelo tema da afetividade na teoria vygotskiana. Num segundo momento, teceremos alguns comentários em torno da recente e rápida difusão das teses de Vygotsky nos meios educacionais. 1. A QUESTÃO DA AFETIVIDADE NA OBRA DE VYGOTSKY A dificuldade do acesso à totalidade dos trabalhos de Vygotsky prejudicam e impedem o conhecimento mais refinado e abrangente de seu pensamento. Até o momento, os temas mais divulgados da sua obra estão relacionados mais diretamente à dimensão cognitiva, o que aparentemente pode levar a crer que ele tenha se dedicado exclusivamente ao estudo do aspecto intelectual do indivíduo. Entretanto, este modo de ver seu trabalho, além de ser um equívoco, é também uma injustiça com Vygotsky, já que ao longo de sua breve carreira procurou incessantemente superar justamente a tendência, presente na psicologia de sua época, de contrapor e analisar separadamen- te o sentimento e a razão. Ao longo de seus escritos é possível perceber, ainda que de modo implícito, sua profunda preocupação em integrar (e analisar de modo dialético) os aspectos cognitivos e afetivos do funcionamento psicológico humano30. Conforme poderemos constatar, nas suas próprias palavras, Vygotsky concebe o homem como um ser que pensa, raciocina, deduz e abstrai, mas também como alguém que sente, se emociona, deseja, imagina e se sensibiliza: “Referimo-nos à relação entre intelecto e afeto. A sua separação enquanto objetos de estudo e uma das principais deficiências da psicologia tradicional, uma vez que esta apresenta o processo de pensamento como um fluxo autônomo de pensamentos que pensam a si próprios, dissociado da plenitude da vida, das necessidades e dos interesses pessoais, das inclinações e dos impulsos daquele que pensa. Esse pensamento dissociado deve ser considerado um epifenômeno sem significado, incapaz de modificar qualquer coisa na vida ou na conduta de uma pessoa, como alguma espécie de força primeva, e exercer influência sobre a vida pessoal, de um modo misterioso e inexplicável. Assim, fecham-se as portas à questão da causa e origem de nossos pensamentos, uma vez que a análise determinista exigiria o esclarecimento das forças motrizes que dirigem o pensamento para esse ou aquele canal. Justamente por isso, a antiga abordagem impede qualquer estudo do processo inverso, ou seja, a influência do pensamento sobre o afeto e a volição. A análise em unidades indica o caminho para a solução desses problemas de importância vital. Demonstra a existência de um sistema dinâmico de significados em que o afetivo e o intelectual se unem. Mostra que cada ideia contém uma atitude afetiva transmutada com relação ao fragmento de realidade ao qual se refere. Permite-nos ainda seguir a trajetória que vai das necessidades e impulsos de uma pessoa até a direção específica tomada por seus pensamentos, e o caminho inverso, a partir de seus pensamentos até o seu comportamento e a sua atividade” (VYGOTSKY, 1988, p. 6-7). Esse trecho, extraído do livro Pensamento e linguagem escrito por Vygotsky no início dos anos 30, nos indica sua posição em relação à articulação entre as dimensões intelectuais e afetivas na constituição humana. Vygotsky não separa o intelecto do afeto porque busca uma abordagem abrangente, que seja capaz de entender o sujeito como uma totalidade. Segundo ele são os desejos, necessidades, emoções, motivações, interesses, impulsos e inclinações do indivíduo que dão origem ao pensamento e este, por sua vez, exerce influência sobre o aspecto afetivovolitivo. Como é possível observar, na sua perspectiva, cognição e afeto não se encontram dissociadas no ser humano, pelo contrário, se inter-relacionam e exercem influências recíprocas ao longo de toda a história do desenvolvimento do indivíduo. Apesar de diferentes, formam uma unidade no processo dinâmico do desenvolvimento psíquico, portanto, é impossível compreendê-los separadamente. É justamente por isso que aponta para a necessidade de uma abordagem unificadora dos aspectos intelectuais e afetivos no estudo do funcionamento psicológico. A busca dessa integração é coerente com o seu projeto de construção de uma nova psicologia e expressa a sua luta em fazer avançar o estado de conhecimento de seu tempo. Sabemos que Vygotsky foi bastante crítico em relação às teorias, inspiradas nas tradições idealistas e empiristas, disponíveis na psicologia no início do século, que forneciam um conhecimento parcial e fragmentado do psiquismo humano. As várias correntes elaboradas tratavam de forma dicotomizada as complexas relações entre indivíduo e sociedade, herdado e adquirido, universal e particular, mente e corpo, biológico e cultural, espírito e matéria, orgânico e social, sujeito e objeto e, como decorrência, tratavam também de forma polarizada e contraposta a relação entre intelecto e afeto. Os postulados de Vygotsky acerca da questão da afetividade impressionam por sua atualidade. Concordamos com Oliveira quando afirma que refletir sobre o “lugar do afetivo na obra de Vygotsky torna-se particularmente interessante pelo fato de que esse autor, que produziu sua obra nos anos 20 e 30 deste século e poderia ser atualmente considerado um cognitivista, propõe uma abordagem unificadora das dimensões afetiva e cognitiva do funcionamento psicológico que muito se aproxima das tendências contemporâneas” (OLIVEIRA, 1992, p. 83). 2. A PENETRAÇÃO DAS IDEIAS DE VYGOTSKY NO MUNDO ACADÊMICO E NAS REDES DE ENSINO “É crucial que os professores tenham acesso ao conhecimento produzido nos vários campos, mas é preciso dimensionar esse conhecimento na provisoriedade que o caracteriza, superando-se modismos apressados, classificações levianas da prática escolar e propostas de mudanças rápidas e superficiais. Do contrário, mais uma vez gato será comprado por lebre e, novamente, a criança e o professor serão responsabilizados pelo fracasso” (SOUZA & KRAMER, 1991, p. 70). A epígrafe acima nos inspira a fazer algumas refle- xões sobre a problemática envolvida na complexa relação das teorias psicológicas e a dimensão da prática educativa. Essa reflexão é particularmente oportuna na medida em que as ideias de Vygotsky vêm alcançando no Brasil uma significativa repercussão. Tanto nas universidades como nos meios educacionais é crescente o número de encontros, cursos, seminários, conferências, palestras, grupos de estudo e trabalhos que discutem as contribuições da escola soviética. Podemos entender a rapidez com que essas ideias se difundem nas redes de ensino como indicativo da necessidade de teses mais abrangentes, que possam contextualizar, fundamentar e orientar a realização de uma prática pedagógica eficiente. No entanto, paralelo ao esforço de compreensão da complexidade do ato pedagógico, parece que incorremos no risco de tratar esses conhecimentos de forma dogmática, equivocada, apressada e superficial, usando-os como panaceia de todos os males, ou como um modismo que em breve poderá ser substituído. A qualidade e originalidade do pensamento de Vy- gotsky é inegável, assim como suas contribuições ao plano educacional, já que sugere um novo paradigma que possibilita um modo diferente de olhar a escola, o conhecimento, a criança, o professor e até a sociedade. Todavia, a educação escolar não pode querer se alimentar única e exclusivamente de seus princípios, já que esta abordagem (assim como as demais correntes teóricas da Psicologia) não tem condições de dar respostas a todas as inúmeras questões suscitadas na prática cotidiana. A educação, por ser uma prática de intervenção na realidade social, é um fenômeno multifacetado composto por um conjunto complexo de perspectivas e enfoques. Não pode, portanto, ser considerada como uma ciência isolada nem tampouco apreendida mediante categorias de um único campo epistemológico, já que várias disciplinas autônomas convergem para a constituição de seu objeto. Ou seja, a prática pedagógica é influenciada por múltiplas dimensões: social e política, filosófica, ética, técnica, histórica etc., e, dentre essas, a dimensão psicológica (SEVERINO, 1991, p. 36). Apesar da psicologia não conseguir dar conta sozinha da complexidade do ato educativo, pode significar uma contribuição efetiva para melhorias no plano pedagógico. Respeitadas as devidas limitações, os estudos psicológicos poderão servir como um importante instrumento para a compreensão das características psicológicas e socioculturais do aluno e de como se dão as relações entre aprendizado, desenvolvimento e educação. Por isso é necessário que o educador tenha acesso a informações de diversas áreas do conhecimento e, dentro da psicologia, as diferentes teorias já elaboradas. Sendo assim, não é o caso de ter que fazer, por exemplo, uma escolha entre a obra de Vygotsky, a do biólogo e epistemólogo suíço Jean Piaget, ou do médico, psicólogo e educador francês Henri Wallon, já que as diferentes perspectivas apontadas por cada um desses pesquisadores pode significar um fator de enriquecimento no esforço de aprimoramento da prática pedagógica. Mais do que escolha, confronto e oposições, é necessário que suas teorias sejam examinadas com minúcia e cautela com relação aos pressupostos filosóficos, projeto teórico, extensão e alcance de suas obras considerando, principalmente, a época, o contexto sociopolítico, assim como o tempo de vida de cada autor ao elaborar seus estudos. Desse modo, as complementaridades, diferenças e até divergências entre as teorias poderão ser identificadas e analisadas de forma mais consequente31. É justamente pelas razões mencionadas acima que acreditamos ser infrutífera e inadequada a tentativa de aplicação imediata dos postulados vygotskianos à prática pedagógica ou mesmo da escolha de seu referencial como o único possível. Tratar os postulados de Vygotsky de modo dogmático contraria inclusive a sua forma de encarar o conhecimento, já que foi um pesquisador inquieto e interdisciplinar, que tentou buscar informações de diversas áreas do conhecimento com vistas a ultrapassar o estado de conhecimento de seu tempo. Ser coerente com suas proposições significa, portanto, entender suas ideias não como ponto de chegada, mas sim como de partida para novos estudos e descobertas. TEXTO ORIGINAL DE VYGOTSKY “O que a criança pode fazer hoje com o auxílio dos adultos poderá fazê-lo amanhã por si só. A área de desenvolvimento potencial permite-nos, pois, determinar os futuros passos da criança e a dinâmica do seu desenvolvimento e examinar não só o que o desenvolvimento já produziu, mas também o que produzirá no processo de maturação. [...] Portanto, o estado do desenvolvimento mental da criança só pode ser determinado referindo-se pelo menos a dois níveis: o nível de desenvolvimento efetivo e área de desenvolvimento potencial. Esse fato que em si pode parecer pouco significativo, tem na realidade enorme importância e põe em dúvida todas as teorias sobre a relação entre processos de aprendizagem e desenvolvimento na criança. Em especial, altera a tradicional concepção da orientação pedagógica desejável, uma vez diagnósticado o desenvolvimento. Até agora a questão tinha se apresentado do seguinte modo: com o auxílio dos testes pretendemos determinar o nível de desenvolvimento psicointelectual da criança, que o educador deve considerar como um limite não superável pela criança. Precisamente, este modo de apresentar o problema contém a ideia de que o ensino deve orientar-se baseando-se no desenvolvimento já produzido, na etapa já superada. O aspecto negativo deste ponto de vista foi reconhecido, na prática, muito antes de se tê-lo compreendido claramente na teoria: pode demonstrar-se em relação ao ensino ministrado às crianças mentalmente atrasadas. Como se sabe, a pesquisa estabeleceu que essas crianças têm pouca capacidade de pensamento abstrato. Portanto, os docentes das escolas especiais, ao adotarem o que parecia uma orientação correta, decidiram limitar todo o seu ensino aos meios visuais. Depois de muitas experiências, esta orientação resultou profundamente insatisfatória. Provou-se que um sistema de ensino baseado exclusivamente em meios visuais, e que excluísse tudo quanto respeita ao pensamento abstrato, não só não ajuda a criança a superar uma incapacidade natural, mas na realidade consolida tal incapacidade, dado que ao insistir sobre o pensamento visual elimina os germes do pensamento abstrato nessas crianças. A criança atrasada, abandonada a si mesma, não pode atingir nenhuma forma evolucionada de pensamento abstrato, e precisamente por isso, a tarefa concreta da escola consiste em fazer todos os esforços para encaminhar a criança nessa direção, para desenvolver o que lhe falta. Nos atuais métodos das escolas pode-se observar uma benéfica mudança a respeito do passado, que se caracterizava por um emprego exclusivo de meios visuais de ensino. Acentuar os aspectos visuais é necessário, e não acarreta nenhum risco se se considerar apenas como etapa do desenvolvimento do pensamento abstrato, como meio e não como um fim em si. Considerações análogas são igualmente válidas para o desenvolvimento da criança normal. Um ensino orientado até uma etapa de desenvolvimento já realizado é ineficaz do ponto de vista do desenvolvimento geral da criança, não é capaz de dirigir o processo de desenvolvimento, mas vai atrás dele. A teoria do âmbito de desenvolvimento potencial origina uma fórmula que contradiz exatamente a orientação tradicional: o único bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento. Sabemos por uma grande quantidade de pesquisas – a que no momento apenas podemos aludir – que o desenvolvimento das funções psicointelectuais superiores na criança, dessas funções especificamente humanas, formadas no decurso da história do gênero humano, é um processo absolutamente único. Podemos formular a lei fundamental desse desenvolvimento do seguinte modo: Todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíquicas; a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como funções intrapsíquicas. O desenvolvimento da linguagem serve como paradigma de todo o problema examinado. A linguagem origina-se em primeiro lugar como meio de comunicação entre a criança e as pessoas que a rodeiam. Só depois, convertido em linguagem interna, transforma-se em função mental interna, que fornece os meios fundamentais ao pensamento da criança. As pesquisas de Bolduina, Rignano e Piaget demonstraram que a necessidade de verificar o pensamento nasce pela primeira vez quando há uma discussão entre crianças, e só depois disso o pensamento apresenta-se na criança como atividade interna, cuja característica é o fato de a criança começar a conhecer e a verificar os fundamentos do seu próprio pensamento. Cremos facilmente na palavra – diz Piaget – mas só no processo de comunicação surge a possibilidade de verificar e confirmar o pensamento. Como a linguagem interior e o pensamento nascem do complexo de interrelações entre a criança e as pessoas que a rodeiam, assim estas interrelações são também a origem dos processos volitivos da criança. No seu último trabalho, Piaget demonstrou que a cooperação favorece o desenvolvimento do sentido moral na criança. Pesquisas precedentes estabeleceram que a capacidade da criança para controlar o seu próprio comportamento surge antes de tudo no jogo coletivo, e que só depois se desenvolve como força interna o controle voluntário do comportamento. Os exemplos diferentes que apresentamos aqui indicam um esquema de regulação geral no desenvolvimento das funções psicointelectuais superiores na infância, que, do nosso ponto de vista, se referem ao processo de aprendizagem da criança no seu conjunto. Dito isso, não é necessário sublinhar que a característica essencial da aprendizagem é que engendra a área de desenvolvimento potencial, ou seja, que faz nascer, estimula e ativa na criança um grupo de processos internos de desenvolvimento no âmbito das inter-relações com outros, que, na continuação, são absorvidos pelo curso interior de desenvolvimento e se convertem em aquisições internas da criança. Considerada deste ponto de vista, a aprendizagem não é, em si mesma, desenvolvimento, mas uma correta organização da aprendizagem da criança. Conduz ao desenvolvimento mental, ativa todo um grupo de processos de desenvolvimento, e esta ativação não poderia produzir-se sem a aprendizagem. Por isso, a aprendizagem é um momento intrinsecamente necessário e universal para que se desenvolvam na criança essas características humanas não naturais, mas formadas historicamente” (VYGOTSKY, 1988, p. 113-115). 30. Nos anos que antecederam sua morte, Vygotsky chegou inclusive a escrever vários textos onde abordou especificamente temas relacionados à afetividade, tais como: “A base biológica do afeto”, “O problema do desenvolvimento de interesses”, “Estudo das emoções”, “Estudos das emoções à luz da psiconeurologia contemporânea”, “Duas direções na compreensão da natureza das emoções na psicologia estrangeira, no início do século XX”. No entanto, a maior parte desses textos ainda não foram traduzidos do russo. 31. Nas reflexões contemporâneas este tema vem merecendo papel de destaque. É significativo o número de artigos, teses, livros e debates que procuram encontrar pontos de convergência e de oposição entre as teorias interacionistas. De modo geral parece haver uma certa tendência em compreender as obras de Wallon e Vygotsky como complementares. A polêmica maior se instaura nas comparações e constatações de distância entre o interacionismo construtivista de Piaget e o sociointeracionismo (ou as chamadas teorias sócio-históricas) postuladas por Vygotsky e Wallon. Bibliografia Obras de Lev S. Vygotsky (editadas no Brasil) Embora Vygotsky tenha uma produção escrita extensa e suas ideias estejam alcançando grande repercussão no Brasil, ainda é extremamente reduzido o número de publicações nacionais deste autor. Atualmente temos à disposição apenas três publicações brasileiras (traduzidas das edições americanas). Desse modo, o conhecimento de sua obra ainda é parcial. O acesso a seus trabalhos tem sido possível através de publicações estrangeiras e de alguns artigos, livros e trabalhos acadêmicos de autores brasileiros, que utilizam seu pensamento como referência. Com o início da publicação nos Estados Unidos e Espanha das Obras Escolhidas de Vygotsky (publicadas originalmente em seis volumes em Moscou no início da década de 80) o estudo de sua obra poderá ser aprofundado. VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984. Esse livro, organizado por pesquisadores americanos, é constituído de manuscritos, palestras e ensaios elaborados pelo autor. Divide-se basicamente em duas partes: a primeira reúne textos que tratam mais especificamente de temas pertencentes à psicologia cognitiva, dentre eles: a questão do instrumento e o símbolo no desenvolvimento infantil. O problema da percepção, atenção e memória e a internalização das funções psicológicas superiores. A segunda esclarece pontos acerca das implicações educacionais decorrentes dessa teoria, tais como: as relações entre aprendizado e desenvolvimento, a importância do brinquedo e do aprendizado da língua escrita. No final desse livro os organizadores apresentam uma relação (em ordem cronológica) dos inúmeros trabalhos de Vygotsky publicados em russo e dos traduzidos para o inglês. A primeira edição americana é de 1978. ______. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987. O livro apresenta alguns experimentos e principais teses de Vygotsky sobre as relações entre pensamento e linguagem. Nesse trabalho, Vygotsky expõe a metodologia utilizada para realizar suas pesquisas, critica outras teorias (como a de Piaget) e trata de aspectos importantes relacionados ao assunto, dentre eles: a gênese e evolução do pensamento e da linguagem e a questão da formação dos conceitos. Sua leitura requer uma certa familiaridade com o tema e com os postulados vygotskianos. Essa obra (que originalmente tinha 350 p.) foi publicada na URSS em 1934, meses após a morte do autor. Nos Estados Unidos foi publicada uma versão reduzida (200 p.) somente em 1962. VYGOTSKY, L.S. et al. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone/Edusp, 1988. Trata-se de uma coletânea que reúne textos de Vygotsky, Luria e Leontiev. Os organizadores dessa publicação, professores da Universidade de São Paulo de diferentes áreas do conhecimento, procuraram selecionar artigos que fossem suficientemente representativos da riqueza temática do trabalho de Vygotsky. Os autores abordam questões relacionadas às diferenças culturais de pensamento, ao desenvolvimento infantil e temas ligados à psicologia cognitiva. É uma obra bastante abrangente e ilustrativa, que permite ao leitor conhecer um pouco melhor as ideias de Vygotsky e os programas de pesquisa que ele inspirou. VYGOTSKY, L.S. The Psychology of Art. Cambridge, Mass.: The M.I.T. Press, 1971. Estudos sobre ele ou sobre sua obra BRONCKART, J.P. et al. Vygotsky aujourd’ hui. Neuchatel: Delachaux et Niestlé, 1985. CENTRO DE ESTUDOS EDUCAÇÃO E SOCIEDADE. “Pensamento e linguagem: estudos na perspectiva da psicologia soviética”. In: Cadernos Cedes, 24. Campinas: Papirus, 1991. COLE, M. “Epílogo”. In: LURIA, A.R. A construção da mente. São Paulo: Ícone, 1992. ______. “Prólogo”. In: LURIA, A.R. Desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos culturais e sociais. São Paulo: Ícone, 1990. ______. “La zona de desarrollo próximo: donde cultura y conocimiento se generan mutuamente”. In: Infância y Aprendizaje. Madri, Siglo XXI, 25, 317, 1984. COLE, M. & SCRIBNER, S. “Introdução”. In: VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984. COLL, C. “Estrutura grupal, interacción entre alumnos y aprendizaje escolar”. In: Infância y Aprendizaje. Madrid: Siglo XXI, 1984, 27/28, 119138. DANIEL, H. (org.). Vygotsky em foco: pressupostos e desdobramentos. Campinas: Papirus, 1994. DAVIDOV, V. La ensenanza escolar y el desarrollo psiquico: investigación psicológica teórica y experimental. Moscou: Editorial Progresso, 1988. DE LA TAILLE, Y.; OLIVEIRA, M.K. & DANTAS, H. Piaget, Vygotsky e Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, 1992. FONTANA, R.A.C. “A elaboração conceitual: a dinâmica das interações na sala de aula”. In: SMOLKA, A.L.B. & GÓES, M.C. de (orgs.). A linguagem e outro no espaço escolar: Vygotsky e a construção do conhecimento. Campinas: Papirus, 1993. FORMAN, E.A. & CAZDEN. C.A. “Exploring vygotskian perspectives in education the cognitive value of peer interaction”. In: J.V. Wertsch (org.) Culture, communication and cognition: vygotskian perspectives. Cambridge, Cambridge University Press, 1985. FREITAS, M.T. de A. O pensamento de Vygotsky e Bakhtin no Brasil. Campinas: Papirus, 1994. FREITAS, M.T. de A. Vygotsky e Bakhtin. Psicologia e Educação: um intertexto. São Paulo: Ática, 1994. JOBIM, S. & KRAMER, S. “O debate Piaget/Vygotsky e as políticas educacionais”. In: Cadernos de Pesquisa, 77: 69-80, maio de 1991. LEVITIN, K. One is not born a personality: Profiles of Soviet education psychologists. Moscou: Progress Publishers, 1982. LURIA, A.R. “Vigotskii”. In: VYGOTSKY, L.S. et al. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 1988. OLIVEIRA, M.K. de Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento, um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 1993. ______. “Vygotsky: alguns equívocos na interpretação de seu pensamento”. In: Cadernos de Pesquisa. 81: 67-69, maio de 1992. ______. “Vygotsky e o processo de formação de conceitos”. In: LA TAILLE, I. de et al. Piaget, Vygotsky e Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, 1992. ______. “Construtivismo em educação: a teoria de Vygotsky”. In: Dois Pontos. I (11) 18-19, out. 1991. ______. “A abordagem de Vygotsky: principais postulados teóricos”. In: Piaget e Vygotsky: implicações educacionais. Secretaria de Estado da Educação-São Paulo. São Paulo: Cenp, 1990. OLIVEIRA, M.K. de; LA TAILLE, Y. & DANTAS, H. “Mesa-redonda: três perguntas a vygotskianos, wallonianos a piagetianos”. In: Cadernos de Pesquisa, 76: 57-64, fev. 1991. PALANGANA, I.C. Desenvolvimento e aprendizagem em Piaget e Vygotsky: a relevância do social numa perspectiva interacionista. PUC, 1989 [Dissertação de mestrado]. PINO, A. “A interação social: perspectivas sócio-históricas” In: Ideias, 20: 49-58. Fundação para o Desenvolvimento da Educação, 1993. REGO, T.C.R. Origem da constituição da singularidade do ser humano – Análise das hipóteses de educadores à luz da perspectiva de Lev Semenovich Vygotsky. Faculdade da Educação da USP, 1994 [Tese de mestrado (mimeo.)]. RIVIÈRE, A. La psicologia de Vygotsky. Madri: Visor, 1985. ______. La psicologia de Vygotsky: sobre la larga proyeccion de una corte biografia. Infancia y Aprendizaje 27/28, 7/86, 1994. SEVE, L. “Dialectique et psychologie chez Vygotsky”. In: Vygotsky (18961934). Enfance, Vêndome: PUF, 42, 1-2, p. 11-16, 1989. SIGUAN, M. (coord.) Atualidade de Lev S. Vygotsky. Barcelona: Anthropos, 1987. SMOLKA, A.L.B. & GÓES, C. (orgs.). A linguagem e o outro no espaço escolar: Vygotsky e a construção do conhecimento. Campinas: Papirus, 1993. VALSINER, J. Developmental Psychology in the Soviet Union. Sussex: The Harvester Press, 1988. VAN DER VEER, R. & VALSINER, J. Understanding Vygotsky: a quest for synthesis. Oxford: Basil Blackwell, 1991. WERTSCH, J.V. (org.). Vygotsky y la formación social de la mente. Barcelona: Paidós, 1988. ______. The Concept of Activity in Soviet Psychology. Nova York: M.E. Sharpe, 1981. ZAZZO, R. “Vygotsky (1896-1934)”. Enfance. Vêndome: PUF, 42, 1-2, p. 310, 1989. Estudos outros correlacionados ao tema do autor DAVIS, C. & OLIVEIRA, Z. de M.R. Psicologia na Educação. São Paulo: Cortez, 1990. DIETZCH, M.J.M. Um texto – Vários autores. São Paulo: PUC, 1988 [Tese de doutorado (mimeo.)]. KRAMER, S. Por entre as pedras: arma e sonho na escola. São Paulo: Ática, 1993. LEITE, L.B. “Considerações sobre as perspectivas construtivista e interacionista em psicologia: o papel do professor”. In: Ideias. 19: 57-65. Fundação para o Desenvolvimento da Educação, 1993. LEONTIEV, A. “Os princípios psicológicos da brincadeira pré-escolar”. In: VYGOTSKY, L.S. et al. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 1988. ______. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Horizonte Universitário, 1978. LEONTIEV, VYGOTSKY et al. Psicologia e Pedagogia 1: Bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1991. LURIA, A.R. A construção da mente. São Paulo: Ícone, 1992. ______. Curso de psicologia geral. V. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. ______. Desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos culturais e sociais. São Paulo: Ícone, 1990. ______. Pensamento e linguagem: as últimas conferências de Luria. Porto Alegre: [s.e.], 1986. ______. Curso de psicologia geral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979 [4 vols.]. MARX, K. Manuscrits de 1844. Paris: Editions Sociales, 1972. OLIVEIRA, Z. de M.R. de. “A natureza do ensino segundo uma perspectiva sociointernacionalista”. In: Revista Ande, 18: 37-40, 1992. ______. O jogo de papéis: uma perspectiva para análise do desenvolvimento humano. São Paulo: PUC, 1988 [Tese de doutorado (mimeo.)]. OLIVEIRA, Z. de M.R. de et al. Creches: crianças, faz de conta & cia. Petrópolis: Vozes, 1992. REGO, T.C.R. A origem da singularidade do ser humano – Análise das hipóteses de educadores à luz da perspectiva de Vygotsky. São Paulo: Feusp, 1994 [Dissertação de mestrado (mimeo.)]. ______. Brincar é coisa séria. São Paulo: Fundação Samuel, 1992. ROCCO, M.T.F. “Acesso ao mundo da escrita: os caminhos paralelos de Luria e Ferreiro”. In: Cadernos de Pesquisa, 75: 25-33, nov. 1990. SANTOS, M. da G.A.B. O grafismo infantil: processos e perspectivas. Faculdade de Educação da USP, 1991 [Dissertação de mestrado (mimeo.)]. ______. “A formação profissional do educador: pressupostos filosóficos e implicações curriculares”. Revista Ande, Cortez, ano 10, nº 17: 29-40, 1991. SMOLKA, A.L.B. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo. São Paulo: Cortez e Editora da Unicamp, 1988. Textos de capa Contracapa “Os postulados de Vygotsky parecem apontar para a necessidade de criação de uma escola bem diferente da que conhecemos. Uma escola em que as pessoas possam dialogar, duvidar, discutir, questionar e compartilhar saberes. Onde há espaço para transformações, para as diferenças, para o erro, para as contradições, para a colaboração mútua e para a criatividade. Uma escola em que professores e alunos tenham autonomia, possam pensar, refletir sobre o seu próprio processo de construção de conhecimentos e ter acesso a novas informações. Uma escola em que o conhecimento já sistematizado não é tratado de forma dogmática e esvaziado de significado.” Orelhas Vygotsky atualmente é considerado um dos mais importantes psicólogos do nosso século. Seus escritos, elaborados há aproximadamente sessenta anos, ainda hoje têm o efeito do impacto, da ousadia, da fidelidade à investigação acerca de pontos obscuros e polêmicos no campo científico. Apesar do conhecimento tardio de sua obra, é com relativa rapidez que suas ideias vêm sendo disseminadas, discutidas e valorizadas. É significativa a influência e repercussão que seus postulados vêm provocando na psicologia e educação, não só no Brasil como em outros países ocidentais. A obra de Vygotsky pode significar uma grande contribuição para a área da educação, na medida em que traz importantes reflexões sobre o processo de formação das características psicológicas tipicamente humanas e sobre as relações entre ensino, aprendizagem e desenvolvimento. Como consequência, suscita questionamentos, aponta diretrizes, instiga a formulação de alternativas no plano pedagógico, e, principalmente, sugere uma reavaliação de aspectos já consagrados no campo educacional. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação pretende oferecer uma interpretação sobre alguns aspectos da vida e obra do autor, assim como uma reflexão de possíveis implicações de seu pensamento na educação. A intenção é possibilitar ao leitor uma análise geral e necessariamente introdutória que estimule a consulta, o estudo e o aprofundamento das teses e descobertas deste estudioso inquieto e obstinado, que dedicou sua vida ao esforço de romper, transformar e ultrapassar o estado de conhecimento e reflexão de seu tempo. Teresa Cristina Rego é professora da graduação, licenciatura e pósgraduação da Faculdade de Educação da USP e coeditora da Revista Educação e Pesquisa (Feusp). É mestre e doutora em Educação pela USP e pós-doutora pela Universidad Autónoma de Madrid. É pesquisadora do CNPq e autora, entre outros, de Vygotsky: uma perspectiva histórico cultural da educação (Vozes, 21. ed., 2010), Memórias de escola: cultura escolar e constituição de singularidades (Vozes, 2003) e coautora de Psicologia, educação e as temáticas da vida contemporânea (Moderna, 3. ed., 2008). Pela Editora Segmento coordenou as coleções Pedagogia Contemporânea (2009), História da Pedagogia (2010), Educadores Brasileiros (2010 e 2011) e, em conjunto com Julio Groppa Aquino, a Série Biblioteca do Professor (2006-2009).