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ARS
Marina Câmara e João Guilherme Dayrell*
ano 15
n. 29
Entrevista
palavras-chave:
Giuseppe Penone; entrevista;
despersonalização da arte
Entrevista com Giuseppe Penone.
Interview with Giuseppe Penone.
Em entrevista realizada em seu estúdio na cidade de Turim, em 12 de maio
de 2014, Giuseppe Penone fala sobre seu interesse na tecnologia existente
na natureza – a cultura própria à natureza –, sobre redefinições dos valores
culturais em que os artistas tomaram a natureza como ponto de partida e sobre
sua intenção de conferir-lhe uma “dignidade”, a fim de estabelecer com os
elementos naturais uma relação de paridade observando, sensivelmente, seus
comportamentos vitais. O artista, corroborando em certa medida a noção de
despersonalização da arte, ecoará Duchamp e seus ready-made, a partir da
etimologia da palavra invenção. Se há alguma invenção em sua obra, ela reside,
para Penone, nos encontros que se dão no mundo.
keywords:
Giuseppe Penone; interview;
depersonalization of art
In an interview held in his studio in Turin, on May 12, 2014, Giuseppe Penone
talks about his interest in the technology of nature – the culture proper to
nature –, about redefinitions of cultural values in which artists have taken
nature as a start point and about his intention to confer on it a "dignity", in order
to establish with the natural elements a relation of parity, observing, sensibly,
its vital behaviors. The artist, corroborating the notion of depersonalization of
art, will echo Duchamp and his ready-made, from the etymology of the word
invention. If there is any invention in his work, it resides, for Penone, in the
encounters that take place in the world.
* Universidade Federal de
Minas Gerais [UFMG].
DOI: 10.11606/issn.2178-0447.
ars.2017.123858.
Marcel Duchamp, Nota
manuscrita para "O Grande
Vidro". Manieur de gravité
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Qual influência a Arte Povera teve em sua escolha por trabalhar em estreita relação com a natureza?
Marina Câmara e
João Gulherme Dayrell
Entrevista com Giuseppe
Giuseppe Penone: O trabalho de um artista não tem um programa ou
um argumento, cada um faz aquilo que consegue fazer e aquilo que o
interessa, não há necessariamente um tema ou um argumento, pois não
é este o sentido da arte. O interesse que tenho pelas formas naturais
deriva da minha ideia de arte como forma de expressão que nasce não
da história da arte, mas da realidade que nos circunda. Nos anos 1960
e 1970, esse era um problema muito presente e perceptível: tratavase de um momento em que era necessário redefinir as convenções da
arte, muitas coisas tinham mudado com o final da Segunda Guerra
Mundial, havia uma situação de grandes mudanças econômica, social
e política, em nível global. Não acredito que tenha sido uma escolha
totalmente consciente, mas era uma necessidade, a necessidade de
redefinir a linguagem da arte. Alguns o fizeram partindo da história da
arte, outros com pressupostos diferentes. Eu o fiz partindo da realidade
que conhecia melhor, que era a da natureza e dos elementos naturais,
colocando minha pessoa e meu corpo em relação com a realidade que
me circundava. É esta, substancialmente, a direção do meu trabalho
e é preciso dizer que esta perspectiva artística sempre esteve presente
na cultura italiana, especialmente no renascimento. Naquele momento
houve uma redefinição dos valores culturais e os artistas recomeçaram a
partir da natureza enquanto objeto de análise e de interesse do ponto de
vista formal, filosófico, naturalista e científico. Pensemos em Leonardo
Da Vinci ou em Brunelleschi: em toda a obra de ambos há um grande
e fundamental interesse por aquilo que é a natureza, há a intenção de
compreender as regras e a lógica das formas naturais.
Como foi o desenvolvimento da sua sensibilidade artística?
GP: Ela certamente não se desenvolveu na Accademia di Belle Arti,
na qual me inscrevi depois de ter estudado em uma escola contábil,
que não tinha nada a ver com arte. A arte era um interesse meu, cultivado pessoal e autonomamente. Inscrevi-me na Accademia di Belle
Arti, mas comecei com meu trabalho somente depois de dois anos.
Portanto, a escola me serviu para entender, justamente, aquilo que eu
não deveria fazer.
Penone.
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A natureza como tema e como objeto artístico são inspirações vindas da
observação espontânea do real e da sua sensibilidade ou existiram fundamentos teóricos e autores que contribuíram para definir a sua visão?
GP: Foi uma reação muito espontânea sem um suporte de conhecimentos
específicos de preparação teórica. É preciso dizer, porém, que a cultura
italiana de um modo geral e o sistema escolar italiano possuem bases
humanistas profundas: por exemplo, o estudo da poesia e de Dante
naqueles anos – hoje muito menos – era um elemento muito presente
em qualquer tipo de escola. Portanto, para além da minha sensibilidade,
acredito que tenha sido essa cultura humanista de base que me consentiu
intuir valores mesmo sem um conhecimento profundo das coisas.
A consideração que fiz quando iniciei meus primeiros trabalhos
foi a constatação sobre como era posta a questão da arte dentro de uma
escola como a Accademia di Belle Arti de Turim: com tais pressupostos
escolares, que tipo de trabalho eu poderia ter feito? Eis que então a
minha intuição foi procurar trabalhar sobre a minha identidade de
pessoa – uma identidade com uma cultura muito limitada, pois aos
vinte anos não se pode ter uma cultura importante – e fazer do meu
trabalho algo que tivesse um caráter próprio, uma individualidade, uma
definição precisa. E a única definição que o meu trabalho podia ter – ou
seja, o que fazia parte do meu conhecimento e da minha formação – era
a relação com a natureza, reconectável também aos aspectos poéticos e
filosóficos da cultura humanista italiana.
Uma vez que essa intuição havia sido colhida e definida,
comecei a trabalhar autonomamente. Não abandonei a escola – pois,
caso o fizesse, teria que prestar serviço militar –, mas comecei meus
primeiros trabalhos sobre o crescimento das árvores: fotografava ou
pedia que fotografassem e levava as fotos nas galerias – naqueles anos
a galeria Sperone era muito ativa. Lá apresentei meus trabalhos sobre
o crescimento das árvores e a partir de então tudo começou, já que
os demais artistas viram estes trabalhos e Germano Celant os incluiu
no livro da Arte Povera, começando assim um percurso de trabalho.
Os primeiros trabalhos são de 1968 e eu tinha menos de vinte e três
anos e já estava no contexto das mostras. Foi, portanto, algo imediato.
Os anos de 1968 e 1969, sobretudo, foram importantes enquanto
momentos de proposições. Sucedeu a isso um momento de reflexão
que coincidiu com a crise econômica daqueles anos, a primeira grande
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crise petrolífera, a Guerra dos Seis Dias, o Egito contra os Estados
Árabes. Além disso, houve uma mudança nos modos e mecanismos da
produção industrial, que antes era baseada na cadeia de montagem e
no emprego de pessoas e, em seguida, centrou-se na robotização e na
mecanização do trabalho, o que resultou na perda de trabalho para
muitos, gerou grandes conflitos e produziu fenômenos de lutas sociais
que são associados em certos aspectos às brigate rosse e esse tipo de
radicalização da luta proletária – ainda que não se compreendesse bem
até onde era exclusivamente proletária ou ligada a outros interesses. Ao
final dos anos 1960, superada essa crise, começou um novo período de
entusiasmo e fermentação artística, com mais possibilidades e maior
disponibilidade por parte das estruturas públicas em organizar mostras
e valorizar percursos artísticos.
Você citou dois momentos importantes na sua formação, que são
a Renascença italiana e os anos 1960. Geralmente, a Renascença é
entendida como o advento do antropocentrismo e percebemos seu
trabalho em um movimento junto à natureza. Em Elevazione, por
exemplo: você fez a escultura e, no entanto, a natureza “faz” a árvore
crescer. E você também citou as guerras mundiais: os anos 1960 como
uma época posterior às duas guerras mundiais. O seu trabalho pode ser
entendido como uma crítica à própria civilização?
GP: O meu interesse pelo Renascimento tem a ver com a posição
dos artistas, naquele período, em relação à realidade: trata-se de um
momento de redefinição das relações entre o homem e o mundo, entre
o ser humano e a realidade que o circunda. A situação da segunda
metade do século XX é obviamente muito diferente, pois a questão
é a relação do homem com a natureza e do homem com os outros
homens. Há a necessidade de gerir relacionamentos entre populações
e culturas diferentes, de colocar em diálogo sul, norte, leste e oeste.
Nesse contexto, os artistas elaboraram linguagens e produziram
formas de expressões inclusivas. No que se refere ao tipo de relação
entre homem e natureza, eu penso que o homem seja um elemento da
natureza, e não superior a esta. Para explicar, faço uma consideração
simples: tomemos uma pedra que, do nosso ponto de vista, pode não
ter valor algum, mas que está presente sobre a Terra há milhares de
anos, enquanto o homem tem, em relação a ela, uma duração limitada.
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João Gulherme Dayrell
Entrevista com Giuseppe
Penone.
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O que é mais importante? Uma pedra ou uma pessoa? Esse aspecto
deve ser considerado.
O outro aspecto é a mudança na percepção da realidade das
coisas: se no Renascimento o homem estava no centro do mundo e
era governador dos elementos, a cultura do século XX abandonou a
ideia de uma hierarquia monoteísta com uma divindade no topo, o
homem à sua imagem e o resto do mundo – animal, vegetal, mineral
– submisso. Trata-se de uma consideração não tão óbvia, já que em
tantos aspectos da nossa cultura ocidental ainda há a ideia de que o
homem deve dominar a natureza e seus elementos.
O que eu estava dizendo antes é que, quando comecei meu percurso artístico, o mundo passava por um momento de redefinição das
relações e da linguagem. Para mim estes pensamentos não estavam tão
claros, não eram fruto de uma preparação escolar e não tinham sido
apreendidos culturalmente, mas eram uma resposta intuitiva ao momento que se vivia. Em seguida tudo isso mudou, pois nos últimos anos houve
novamente a forte necessidade de afirmar culturas específicas dominantes sobre outras; mas naqueles anos havia, ao contrário, a ideia de comunicação e não de exclusão. A exclusão é um exercício de poder, certo? Se
se excluem os outros, o poder é exercido, já que os outros passam a não
terem acesso, desconhecerem algo. Com a comunicação, ao contrário, se
cancelam esses tipos de exercício de poder. O poder é sempre prevaricador e é um problema que na cultura não deveria existir.
Estive ontem em Roma na Académie de France à Villa Medici para
receber o catálogo da sua mostra, que não está mais disponível para
venda. Nele encontrei um texto de Jean-Christophe Bailly que trata da
visão animista, em que ele diz: “esta visão e aquilo que ela favorece e
suscita entra em relação com os modos de ver típicos dos povos das regiões
em que aparecem sopros vitais e espíritos que povoam as coisas, povos
animistas para os quais não existe nenhuma fratura nítida entre natureza
e cultura”. As culturas não ocidentais podem ajudar neste pensamento de
integração. Como você considera esse tipo de visão?
GP: Eu falaria sobre o problema da linguagem expressiva, pois eu faço
um trabalho que é baseado nos materiais. O princípio de equivalência
entre pessoa, árvore e pedra ao qual me referi antes não define uma relação de poder entre as coisas, mas sim uma relação paritária. Em vir-
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tude dessa relação paritária se confere dignidade ao material, à pedra,
à árvore, à água, a todos os elementos e se entra em uma lógica que
efetivamente não está muito distante da lógica do animismo, ainda
que não tenha nada a ver com o animismo. O passo entre considerar
os elementos conferindo-lhes dignidade e atribuir a eles uma vitalidade pode parecer breve, mas aquilo que eu faço é revelar a forma
dos elementos. Quando faço um trabalho com a madeira, não estou
usando a madeira para fazer sabe-se lá que tipo de trabalho ou que
tipo de forma. O que eu faço é revelar a própria forma da madeira. E
isso pode parecer algo ligado a sua materialidade ou a sua sensibilidade. O mesmo vale para quando trabalho o bronze, que é um material
produzido pelo homem, mas do qual eu procuro as características e
os componentes, buscando compreender seus processos de criação, a
lógica da fusão em bronze e, a partir de então, eu consigo fazer a obra.
Não uso o bronze para fazer qualquer coisa, pois ele tem um caráter
e não se pode usá-lo para tudo. Se faço um trabalho em pedra, eu
coloco em relevo os veios do mármore, refaço sua forma, analisando o
processo de escultura em pedra.
Minha posição não é, portanto, a de inventar, mas sim de indicar
formas existentes. É um trabalho de indicação mais que de criação. A
palavra invenzione deriva do latim invenire, quer dizer, achar, encontrar. Ou seja, acham-se as coisas, não se inventa elas. As coisas existem
e essa é uma leitura que se faz da realidade. Quando precisamos de
algo, o encontramos. O mesmo acontece quando temos um problema:
abre-se um livro ao acaso e encontra-se uma frase que ajuda a resolvê-lo. Acredito que aconteça com todos. Isto porque lemos a realidade
segundo as nossas necessidades.
É nesse sentido que eu falava sobre a linguagem e o uso dos
materiais. Eles têm suas características próprias e específicas, que
não podem ser desconsideradas, caso contrário obtém-se uma forma
sem interesse.
Você acaba de falar sobre o real. Como seria a relação entre seu trabalho
e essa dimensão do real?
GP: É uma relação física. Eu faço escultura. A escultura é um objeto,
é um volume. Um volume pressupõe uma compreensão que é visual,
mas também tátil: o toque. Se você fecha os olhos e toca algo, não tem
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uma dimensão precisa, já que não está olhando ao mesmo tempo. A
sensação de tocar é algo que ocupa o espaço da sua mente de um modo
sem confins. É essa a relação com a realidade, ou seja, aquela se dá
nos limites do infinito, em um ponto preciso. Por exemplo, este trabalho que você está vendo [indica Spoglia d’oro su spine d’acacia (bocca),
2001-2002] é um aumento de uma marca de boca. Eu o fiz com esta
dimensão [o trabalho tem 3m de largura], mas eu poderia fazê-lo muito,
muito maior. Quando se fecha os olhos, se tem uma concentração da
mente. Através do tato não se tem a dimensão visual, de mensuração,
não se tem a medida, pois esta se torna sem limites. Esta é uma relação
real com as coisas: o contato. Podemos dizer que o contato é a relação
com a realidade e essa relação pode se dar em um ambiente limitado,
por exemplo, com as coisas que nos circundam em um quarto.
Quase todos os textos sobre seus trabalhos insistem muito sobre a concepção
do tempo. Que tipo de relação existe entre o tempo e suas esculturas?
GP: O tempo é sobretudo um elemento necessário para a realização da
obra. Nos trabalhos que fiz em 1968, a consideração do tempo era muito importante, porque quem produzia a obra era o tempo do crescimento das árvores. Porém, em um processo normal de trabalho existe um
tempo de execução, de realização. Ele pode ser muito rápido, quando
se trata de um gesto; muito lento, quando são muitos gestos. O tempo
é, portanto, importante, mas o mais importante é o processo no sentido
da consequência da ação que se realiza para se obter a obra. É fundamental encontrar a lógica do processo para que se possa realizar a obra.
Se não se encontra a lógica, a necessidade e também a compreensão
das diversas passagens, não se consegue realizar a obra. Isso é algo mais
significativo em escultura que em pintura, já que em escultura existem
diversos momentos que não são a obra, que são fases intermediárias –
às vezes não muito fortes e extraordinários – para se chegar até a obra,
mas cuja forma não será evidenciada no trabalho final. Ao passo que,
em pintura, todo o processo fica evidente na obra.
Mas se a obra foi realizada seguindo uma lógica, ela consegue
manter sua necessidade, sua urgência: a forma não é casual, tem seu
porquê. E é isto que permite que a obra tenha características apropriadas ou tenha sua beleza estética, sua perfeição estética, já que a estética
é uma lógica da forma e não algo de abstrato. Isso é verificável em um
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utensílio, certo? Quando se tem um utensílio qualquer, um martelo,
uma faca, se ele tem uma forma que funciona melhor que outra, normalmente ele também é mais belo esteticamente, tem uma exatidão em
todas as suas partes. Esse processo também é evidente em outras culturas: pensando nas ferramentas e nos instrumentos japoneses – que
têm uma cultura muito ritualística –, vemos isso ser transposto para a
necessidade de perfeição do objeto. O mesmo vale para a obra de arte:
no momento em que emerge a lógica da forma, a obra se constrói sozinha... Às vezes se faz a obra e depois se acha a lógica que a produziu,
ou segue-se a lógica e se obtém a obra.
Tendo em vista que a cultura ocidental é uma cultura do progresso e da
produção, a arte é um espaço privilegiado para que nós tenhamos uma
relação de outra ordem com a natureza?
GP: A ideia do progresso é um problema muito presente em algumas culturas e menos presente em outras. Na arte, como poderíamos dizer que
há um progresso? Na cultura anglo-saxã, por exemplo nos EUA, se tem
uma ideia de progresso e de continuidade para as quais as novas realidades são melhores do que as velhas. Quando fazem uma mostra de um artista, procuram sempre quais são seus antecedentes, quais são os artistas
que inspiraram seu trabalho, como se houvesse uma continuidade, como
se o artista considerasse o trabalho feito por outra artista que o precedeu
e, em seguida, continuasse, pegasse seus valores e desse continuidade;
produzisse algo e, em seguida, um outro artista prosseguisse naquilo.
Esta concepção é, ao meu ver, um tanto ridícula, não verdadeira, já que
podemos ter reflexões atuais sobre obras que existiram há dois mil anos
atrás. A questão da arte e o interesse que há nela é justamente aquilo que
não está na ciência. Na ciência, uma invenção, uma descoberta científica, anula a precedente, certo? Uma nova formulação da ideia do espaço,
do tempo, anula a precedente. Na arte, entretanto, você vê uma obra de
dois ou três mil anos atrás e tem interesse por ela – provavelmente um interesse diferente do que tinham os contemporâneos de quem a fez – e experimenta emoções, já que ela se baseia em sentimentos da realidade do
homem. É uma necessidade parecida com a de comer, de amar, de dormir
e, logo, muito basilar e, por isso, no fundo, não muda. Por esse motivo,
a questão do progresso na arte não procede. O progresso em arte pode
ter um sentido quando se pensa em instrumentos de domínio, de poder.
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João Gulherme Dayrell
Entrevista com Giuseppe
Penone.
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Tomemos uma outra questão, ligada à comunicação, à linguagem: suponhamos que você se emocione ao ver o nascer do sol e queira
transmitir essa emoção. Se tentar transmiti-la através da linguagem dos
artistas que precederam você, não conseguirá exprimir sua visão pessoal, já que seu trabalho estará propagando o trabalho de outros, você
estará lançando mão de uma linguagem e de um modo preexistente de
dizer coisas. Portanto, é necessário dizer, talvez, as mesmas coisas, mas
de modos diferentes. E esse é um problema que nasceu com a cultura
ocidental. Por exemplo, na cultura bizantina não havia a questão do
indivíduo. Havia um esquema de representação e o artista continuava a
reproduzi-lo, de um jeito melhor ou pior. Foi no Renascimento que surgiu a ideia do homem que, através da linguagem da arte, se reinventa e
pode-se, então, identificar o autor pela linguagem.
Mas retomando a ideia de que o mundo ocidental segue sempre mais rapidamente na linha progressista desenvolvimentista, ou de desenvolvimento
progressista, a arte seria um modo de resistir a este quadro?
GP: É provável que ela tenha, sim, essa função. A tal propósito, me
vem à mente uma reflexão sobre o uso da tecnologia. Pensando na tela
de um Iphone, por exemplo: você toca e algo aparece. É uma coisa
maravilhosa, mas essa maravilha se exaure muito rapidamente, já que
depois que você usou cinco vezes, você mesmo se lembra daquela
aparição. Ora, a tecnologia se limita à própria dimensão econômica. Usa-se a tecnologia para realizar uma obra de arte e baseia-se o
interesse da obra no encanto e na maravilha oferecidos pela tecnologia; assim, a obra é imediatamente velha, já que a tecnologia é feita
de modo que se torna velha no momento em que é usada. Já existe
uma nova tecnologia que supera aquela. E tem também a questão da
atividade econômica de determinadas sociedades: no momento em
que não existe mais a necessidade econômica naquela sociedade, o
produto é abandonado. O mesmo não vale para um pedaço de argila,
que existe há milhares de anos, existe hoje e existirá no futuro, sendo,
portanto, um material que tem uma perspectiva no futuro, coisa que
a tecnologia não tem.
Para a arte, é importante se colocar esse tipo de reflexão, pois
torna claro e evita equívocos sobre a ideia de progresso do homem, que
pode ser não tão justo ou pode ser instrumental.
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Tem algo importante na sua arte que é a saída do museu, a superação
do espaço do museu, do confinamento ao museu. Enfim, eu gostaria que
você falasse um pouco mais sobre esta relação arte-vida, pensando no
gesto do Duchamp – quando coloca um mictório – de questionamento
do espaço institucional da arte, e também em uma frase do Hélio Oiticica, que diz que o museu é o mundo. Enfim, gostaria que você falasse
também um pouco mais sobre essa preocupação quase ecológica que
parece ter sua arte, também pensando na crise ambiental que vivemos
hoje em dia.
Marina Câmara e
João Gulherme Dayrell
Entrevista com Giuseppe
Penone.
GP: Eu respondo com uma reflexão que emergiu do meu trabalho.
Nos anos 1980 fiz uma obra pegando uma pedra de um rio. Fui até
a pedreira onde tinha o mesmo tipo de pedra, retirei um bloco e dele
recriei uma pedra igual, pensando que a técnica da escultura é muito
parecida com o processo ao qual é submetida uma pedra trabalhada
pela água do rio. Portanto, o título da obra foi Essere fiume (Ser rio).
Ora, realizar a obra tem para mim um interesse e um valor; produzir
a pedra e colocá-la no contexto do mundo tem um valor para mim.
Mas, caso eu não colocasse ao lado dela a pedra que peguei no rio,
ninguém compreenderia esse valor. Por isso é importante reproduzi-la
de modo não perfeito.
Fig.1
Giuseppe Penone
Essere fiume 1. 1981.
Cortesia do artista.
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Outro exemplo é a obra que tenho aqui [indica Albero di dodici
metri]. Se dela tiro a parte de baixo, não terei uma escultura e sim
uma árvore. O trabalho perfeito seria remover tudo, deixando somente a forma da árvore, mas neste caso eu teria um elemento que possui
um valor natural, mas não um valor de linguagem artística, enquanto
escultura.
Portanto, a ideia de que o museu é o mundo é algo muito belo
de se dizer, algo poético, mas não é real, visto que, a fim de que as
obras tenham um interesse, devem estar inseridas em um contexto
ou em um debate cultural que advém, por sua vez, das galerias, dos
museus, das revistas de arte. Logo, se o artista faz suas obras sem
dizer que está fazendo arte, por sua conta, e em seguida desfruta da
estrutura de um museu ou de uma galeria, torna-se contraditório. É
como artistas que, por exemplo, fotografam os índios da Amazônia e
vendem suas imagens dizendo “vejam quanto são malvados os colonos que matam essas pessoas para perdê-las, derrubá-las; devemos
protegê-las” etc., mas em seguida vendem este produto nas galerias
de Nova Iorque. Há um contrassenso enorme, do meu ponto de vista,
inclusive moral. Por mim, tudo bem, mas é contraditório.
A arte é uma linguagem e como tal possui um instrumento,
uma estrutura que em uma época já foi a Igreja e muda segundo
o tempo histórico e econômico. Hoje são os museus e as galerias,
onde se dão os debates sobre tais problemáticas. Nos anos 1960, por
exemplo, se dizia: “Basta com os museus, a revolução somos nós.”
Mas os mesmos artistas que o diziam, se apresentavam nos museus.
E há também o problema ligado aos materiais da arte, já que a arte
ocupa um espaço e, caso seja um objeto, ocupa um espaço físico bem
preciso. Logo, para que seja vista por outras pessoas, precisa ter uma
duração no tempo. Se se faz uma obra que não tem uma duração, que
se consome em tempos breves, ela será vista por pouquíssimas pessoas ou será preciso registrá-la e, uma vez mais, tem-se uma contradição
em relação ao efêmero na arte.
Essas minhas considerações sobre as problemáticas da linguagem da arte podem soar como um discurso reacionário, mas eu acredito que realizar uma obra persistente, com materiais duradouros e
que possa ser colocada em um contexto preciso seja uma vantagem
para a obra que, deste modo, tem a possiblidade de permanecer e de
se propagar no tempo.
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Já em relação à questão da ecologia, a minha opinião é muito
simples: o amor que devemos ter para com a natureza é uma questão
de sobrevivência da nossa espécie; para a natureza – natureza enquanto forma geral – é irrelevante se a espécie dominante sobre a terra é o
homem ou se são as formigas. A ecologia é um problema totalmente
humano, uma questão egoísta de tutela da própria espécie, pois se
compreendeu que, se o ambiente não é preservado, o homem será o
primeiro a sofrer os danos. A ecologia tem esta ambiguidade.
Considerando as relações que você indica entre os materiais, nós mesmos
e os diferentes elementos do mundo, parece que a metamorfose é uma
ideia presente em seu trabalho.
GP: A metamorfose é mudança de uma forma de vida para outra, do
casulo à borboleta, da semente para a folha. E isto é algo que sempre fascinou o homem e também a fantasia poética, a visão poética
da realidade, já que toca profundamente a imaginação. Por exemplo,
Goethe realizou estudos sobre a metamorfose dos vegetais e iniciou
a partir de uma semente onde, segundo seus estudos, já existe toda a
estrutura da árvore desenvolvida. As flores, por sua vez, são uma outra
forma das folhas. A partir desses importantes estudos científicos, ele
formulou a ideia de que o crânio do homem é uma vértebra modificada da coluna vertebral, que se submeteu a uma metamorfose. E,
para demonstrá-lo, quando se observa o crânio, há uma vértebra – um
pequeno ossinho – que Goethe localizou, localizada no queixo. Essa
é uma demonstração de que o crânio é uma metamorfose da vértebra.
Portanto, pode-se passar da análise de um aspecto da realidade a outro, encontrando regras, lógicas comuns e afins.
Não me lembro mais do título, mas é um estudo que faz parte da
sua obra científica, sobre a botânica e a natureza. Não sei se respondi a
sua pergunta sobre a metamorfose.
Sim, mas para além das transformações na forma dentro de uma mesma
estrutura, se pensarmos nas identificações que você realiza, por exemplo
entre a nossa estrutura e o crescimento das árvores que, de todo modo,
são transformações formais – seria possível pensar em uniões entre os
reinos mineral, vegetal etc.?
Marina Câmara e
João Gulherme Dayrell
Entrevista com Giuseppe
Penone.
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Fig. 2
Giuseppe Penone.
Spoglia d'oro pine d'accacia
(boca), 2002. Fonte: Giuseppe
Penone on Twitter,
GP: Esse exemplo de Goethe se encaixa bem, pois há nele um paralelo entre o mundo vegetal e o mundo animal. Evidentemente existem
transformações que ocorrem de modo específico, como a madeira fossilizada, ou seja, o silício que ocupa o espaço do carbono, mas que, de
todo modo, se torna pedra pois a água se infiltra no seu interior. É o
resultado de um processo no qual componentes orgânicos do vegetal
são completamente substituídos por minerais como o silício. Essas
transformações são surpreendentes.
E há um aspecto da realidade da metamorfose que interessou
muito a poesia e as artes visuais. Por exemplo, umas das histórias
ligadas à metamorfose é o mito clássico de Dafne e Apolo: Dafne,
em grego, é uma planta que em italiano se chama alloro (louro), uma
planta perfumada. Dafne é uma garota que foge da perseguição de
Apolo e ela pede a Zeus para que seja salva. Este, para tanto, a transforma em uma árvore de louro. Essa é a história, mas para além disso
ela traz um fundamento de observação muito profundo da realidade.
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Ora, se você não toca o louro, ele não perfuma, pois seu perfume é
um mecanismo de defesa. De fato, o louro era usado nos jardins do
Mediterrâneo, pois mantinha os pernilongos afastados, já que eles
são repelidos tanto pelo perfume do louro quanto pelo dos gerânios,
por exemplo, e por isso há tantos gerânios nas janelas. Trata-se, portanto, de uma compreensão e de uma inteligência que é próxima à
inteligência animal, mas pertencente à planta: uma defesa.
Marina Câmara e
João Gulherme Dayrell
Entrevista com Giuseppe
Penone.
Fig. 3
Giuseppe Penone. Spoglia
d’oro sus pine d’accacia (boca),
2001-2002. Cortesia do artista.
Neste meu trabalho [indica Spoglia d’oro su spine d’acacia
(bocca), 2001-2002] usei espinhos de acácia. Comecei a recolher
os espinhos de acácia no bosque para fazer este trabalho e percebi
que havia um determinado lugar em que os espinhos eram muito
maiores que os demais. Isso porque os espinhos são a defesa do broto
e, onde há novas folhas se desenvolvendo, os brotos se direcionam
para cima e os espinhos para baixo, para protegê-los dos animais que
deles se alimentam. Como neste local havia um cabo elétrico que
cortava continuamente os espinhos, a planta desenvolvia espinhos
sempre maiores que os habituais. Um mecanismo muito próximo
ao comportamento animal. E existem muitos estudos botânicos que
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confirmam que há um pensamento e uma reação das plantas que
não são distantes do pensamento e das reações humanas. Algo que
se desenvolve nas raízes, que são consideradas o cérebro das plantas.
Com as novas tecnologias está sendo possível compreender muitas
coisas do mundo vegetal, como sua notável capacidade de pensamento.
Marina Câmara é professora-substituta da Escola de Belas Artes UFMG, doutora em
Artes pela mesma escola, com período sanduíche na Université Paris 1 PanthéonSorbonne; Mestre em Comunicação e Artes (PUC-MG); Possui Master de Nível I em
Comunicação pela Università degli Studi di Siena e Especialização em Projetação e
Produção Artística pela IUAV de Veneza. Pesquisadora, crítica e curadora independente.
João Guilherme Dayrell é pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Estudos
Literários da UFMG, oferecendo disciplinas obrigatórias e optativas para o curso de
Graduação. Doutor pelo mesmo Programa com período sanduíche na Ecole des Hautes
Études en Sciences Sociales sob orientação de Emanuele Coccia. Mestre em Literatura
Artigo recebido em 08 de
dezembro de 2016.
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista pelo Instituto de
Educação Continuada da PUC-MG (IEC).