A delicadeza: estética, experiência e paisagens
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Denilson Lopes
A delicadeza: estética,
experiência e paisagens
Brasília, 2007
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Ficha catalográfica elaborada pela
Biblioteca Central da Universidade de Brasília
L864
Lopes, Denilson.
A delicadeza : estética, experiência e paisagens / Denilson Lopes. — Brasília :
Editora Universidade de Brasília : Finatec, 2007.
194 p. ; 21 cm
ISBN: 978-85-230-0997-7 (Editora Universidade de Brasília)
ISBN: 978-85-85862-28-2 (Finatec)
1. Estética. 2. Comunicação. 3. Contemporaneidade. 4. Cinema. 5. Literatura.
6. Música. I. Título.
CDU 18.01(
Para Heloísa Buarque de Hollanda,
a diversidade traduzida em leveza.
Sob o duplo incêndio
da lua e do neon,
sobre um parapeito
de mármore, entre duas cortinas
jogadas pela brisa marinha
que ao mesmo tempo às suas
coxas e costas dispensava
um hálito incontínuo,
inundando de rubro o estrito
perímetro de seu jarro e cerâmica
e contrastando imemorial com a
transitoriedade de tudo ali
hotel, amor, dia, noite, carros,
uma flor alheia a símbolos
atingia seu ponto máximo
de beleza.
C a rl i t o A z e v e do
Sumário
No mês do cavalo, 11
Ana Chiara
Para ouvir no volume mínimo, 17
Por uma estética da comunicação, 21
O sublime no banal, 37
A salvação pelas imagens, 53
Elogio da leveza, 71
Poética do cotidiano, 83
Nem sertão, nem favela, 101
De volta pra casa, 115
Paisagens e narrativas, 133
Andando com Paul Auster, 147
Música para desaparecer, 165
Bossatrônica e lounges, 181
No mês do cavalo
Ana Chiara1
De fora dela vem o tropel de dezenas de cavalos
soltos a patearem com cascos secos as trevas, e do
atrito dos cascos o júbilo se liberta em centelhas:
eis-me, eu e a gruta, no tempo que nos apodrecerá.
Clarice Lispector, Água viva
Vi aparecer então um cavalo branco, e seu cavaleiro
tinha um arco; foi-lhe dada uma coroa, e ele partiu
como vencedor para tornar a vencer.
Apocalipse
O cavalo é uma coisa muito masculina, o centauro é muito masculino, sagitário é muito masculino,
como então vc se quer tão fêmea assim?
Ítalo Moriconi
N
o mês do cavalo, quando incorporo meu sagitário. Quando
monto um cavalo nunca antes montado.2 Quando sou
uma cavala querendo dar coices e galopar no descampado,
espumando e sem freio, vem esse moço falar de delicadezas...
1
2
Professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e autora de Pedro
Nava – um homem no limiar (Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2001) e Ensaios de
possessão (irrespiráveis) (Rio de Janeiro: Caetés, 2006), do qual este artigo foi
gentilmente cedido.
BATAILLE, Georges. A experiência interior. Tradução Celso Libânio Coutinho,
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
Quando me perco numa égua cheia de fúria derrubando os pianos
da aurora,3 quebrando as cercas com as patas, refugando arreios, e
dando dentadas no ar, vem o moço me falar de afetos e de suaves
entardeceres em Dawson’s Creek. Eu mergulhada em plena noite e
querendo a guerra, o terror, a pornografia.
Eu que o que “escrevo é um só clímax? Meus dias são um só
clímax: vivo à beira”.4 Eu que misturo as estações de rádio mais
populares e os nomes dos autores mais respeitáveis — revelo agora
um instantâneo de todo esse movimento que dilui, dissolve e-mails,
cartas de amor, ensaios, leituras, vida acadêmica, autobiografia,
performance, ficção e muita lorota. Movimento irrespirável. Nada
de quadris travados. Nada de beijos engolidos. E o que escrevi
agora sai daqui pra lá também. Fluxos de palavras que seguram no
ar o cotidiano e brincam de peteca. Não deixam nada pousar. Tudo
compartilhado nestas páginas que não se dobram sobre si mesmas.
Espargem-se como a água de um batismo bem profano.
Lendo o texto do moço quase escuto a voz tranqüila dele a me
falar de serenidade, de suavidade, de simplicidade. Eu de partida
num barco bêbado sem temer o naufrágio, me afogando em pouca
água, e o moço me chamando pra me sentar em torno de uma colcha
de retalhos, conversando com mulheres...
No mês do cavalo, quando sou um no terreiro de candomblé,
bolando com uma entidade totalmente desconhecida, dançando
um batuque incontrolável, soltando os bichos, babando uma língua
arcaica, vem o moço bonito do Planalto querendo me trazer de
volta pro cotidiano. Eu, puro pathos, um pato suicida, querendo o
inconfessável, o incontrolável, o incontentável, o irrespirável, tenho
de ficar pisando em ovos e ajustar minha cabeça para pensar do
ponto de vista de uma geração mais jovem, uma geração que não é
3
4
Magali Montagné e Antonio Carlos Sechin. São Paulo: Ática, 1992.
MENDES, Murilo. Poema barroco. In: PICCHIO, Luciana Stegagno (Org.). Poesia
completa & prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 394.
LISPECTOR, Clarice. Água viva. São Paulo: Círculo do Livro, [s. d.], p. 11.
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No mês do cavalo - Ana Chiara
a minha, tendo que me parir num outro século, num novo clima,
novo espírito do tempo.
Eu, criada no canto de louvor à transgressão, ao excesso, ao
transtorno, procuro entender os moços e suas estratégias de resistência estética. Eu, batalhando tanto por uma experiência interior,
por um transe, um êxtase. Eu, que acabei de tatuar o ideograma
Ko (revolução) na minha omoplata esquerda, protegendo por trás
meu coração. Eu: me segura que vou dar um troço. Ele dizendo:
menos, menos, menos.
Tento chegar bem próximo do moço dessa geração para entender
o que pensa como pensa o cotidiano. Pergunto o que é cotidiano?
Posso ainda pensar o cotidiano como cotidiano? Lembro que para
minha geração o cotidiano talvez fosse o contrário da esfera pública
para onde muitos se bandearam pegando em armas, fazendo política,
sexo e rock and roll. Talvez fosse o espaço rejeitado da mediania,
o espaço tedioso da repetição, do mal-estar, do nada de extraordinário acontecendo. Lembro a canção de Chico Buarque: todo dia
ela faz tudo igual me acorda às seis horas da manhã. Lembro que
Caetano ao gravá-la deu um tom bêbado à interpretação como se a
corroesse por dentro. Caetano lembrava o quanto de cachaça para
suportar o todo dia, tudo igual... Lembro o cotidiano dos contos
de Clarice quebrados ao meio pela irrupção de algo inesperado e
perturbador. Lembro que fugíamos do cotidiano em busca de quê?
Nem me lembro mais, talvez de aventura...
Pergunto se atualmente nestes dias de relações esgarçadas, da
opressão de um sistema de trabalho competitivo e exaustivo, da
influência e sobredeterminação de imagens invasivas e da própria
violência urbana, pergunto se nestes dias o cotidiano não seria uma
elaboração defensiva diante da precariedade e imprevisibilidade das
vidas comuns ameaçadas de todos os lados, em todos os níveis. De
que cotidiano ele trata afinal? Quem poderia negar os afetos violentos
do cotidiano: medo, raiva, inveja, ciúme, sentimentos inconfessáveis e por isso mesmo todo-poderosos? Penso na guerra surda dos
afetos cotidianos Penso na tensão por detrás de afetos cotidianos,
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
das ações cotidianas. Nenhuma compaixão. Passo por mendigos
chagados todos os dias. Passo pela mulher que vive dentro do saco
de lixo na Lagoa Rodrigo de Freitas. Aos domingos escuto à noite
tiros na Rocinha. Fora a rotina, o que é o cotidiano nas cidades, o
que é o cotidiano de uma guerra?
Esta é uma historinha infantil. Mas tem sangue. Não se assuste,
não tenha medo. Era uma vez... Repito: quem nunca na vida
atirou num passarinho? Quem nunca derrubou o caminho de
uma lagartixa? É tudo a mesma coisa pretinho. Pequenininho.
No País do Bem, até na hora da morte de alguém, a gente
aprende a contar. Carneirinho. 5
A palavra cotidiano fica boiando na minha frente. Ela brilha
como uma ilusão. Como uma bolha de ar, pode ser desfeita a qualquer minuto. Basta para isso que um homem decida pegar um avião
e entrar com ele numa torre. Basta pôr um cinto de explosivos e
viajar no metrô. Basta estar passando pelas grandes vias do Rio no
meio de um tiroteio. Daí então o sublime do cotidiano, o sublime
doméstico, delicado e sutil da morte de uma Otacília se transforma
num BIGBANG SUBLIMÃO. Numa hipercatástrofe. Num filme
mirabolante que eu não quero entender e eu pergunto pra minha
filha ao telefone: Mas é um filme, não é? E ela me diz: — Mãe, você
não está entendendo?
Talvez o cotidiano contemporâneo seja essa possibilidade do
terror a cada momento ou a impossibilidade do cotidiano. Além, é
claro, do terror do cotidiano. Da mesmice. Da chatice. Da caretice.
Ou talvez seja apenas o meu terror cotidiano.
Volta a voz mansa do moço a me dizer da experiência estética
como antídoto contra o retorno do real. E eu quero me envenenar
com todos os naturalismos de Aluízios a Ferrez. Logo eu, uma
americana embriagada de real, que assino um texto dizendo que
aqui no país dos sem-dentes, o real cobra seu preço, estranho essa
5
FREIRE, Marcelino. Faz de conta que não foi nada. Angu de sangue. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2000. p. 107.
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14
•
No mês do cavalo - Ana Chiara
prevenção dos jovens contra a natureza escandalosa, artificial e
delirante da literatura naturalista.
Eu para quem a experiência estética é o provisório absoluto, a
presentificação absoluta de um outro, uma presença absoluta, uma
exigência absoluta de deslocamento, um coito absoluto, um evento
singular de violência e de violação da linguagem, procuro entender
o sinal de menos proposto por uma concepção estética fundada no
quietismo quase oriental, no silêncio, na não-ação. Eu, formada pela
estética do assalto e da guerra, quero entender o pacifismo jovem
que tenta me seduzir. Caio na conversa? Vai ser bom pra mim?
Logo agora no mês de dezembro, quando invoco meu cavalo
e quero corcovear, quero esfregar a pata no chão, tomar impulso e
me lançar mundo afora, no mundo de fora, vem o moço de Brasília
pra me falar da casa e de intimidade. Mas minha casa está uma
bagunça! Quero dizer. Mas o que é a intimidade sob as mil formas
de devassamento? O que é o espaço da intimidade? O íntimo?
O desejo? Mas sob quais garantias? A da conta do analista? Dos
prozacs? Dos viagras? Das mil maneiras de ajustes do corpo aos
padrões da imagem? O que é o espaço da intimidade quando a
morte — o evento mais íntimo e intransferível — está sob ameaça
de acabar nos condenando à decrepitude infinita? Envelhecer pra
sempre diante do espelho. Envelhecer diante dos olhos dos jovens.
O fim da picada não poder ter um fim. Tédio alastrado à eternidade.
As rugas se tornando pregas, a pele descolando das carnes.
De que se defendem estes jovens quando querem compartilhar
o espaço da intimidade, para o que estão fechando as portas de suas
casas? Quando valorizam as casas afastadas, as casas de campo, de
férias, próximas de um lago mítico, casas do arcadismo pacífico.
Casas protegidas contra o perigo das bárbaras invasões, das balas
traçantes que embelezam como fogos de artifício os céus de nossas favelas? Fecham a porta para a diferença? Querem o abrigo
do mesmo? Dos ‘copines’? Ao contrário do flâneur e do homem
da multidão querem um abrigo, um habite-se, um hábito? E eu
querendo sair no cordão, me perder no múltiplo mínimo comum,
•
15
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
ser nenhuma, dissolúvel em água, comprimido efervescente. Pura
exterioridade. Tecida de citações e referências de outros. Uma camiseta com uma frase estampada no peito. Ser o outro. Ser outra.
Livrar-me de mim. Compor novas biografias sem memória, sem
nada para lembrar. Esquecer para poder lembrar. Quero ser um
fluxo à moda de Clarice:
Nova era, esta minha, e ela me anuncia pra já. Tenho coragem?
Por enquanto estou tendo: porque venho do sofrido longe,
venho do inferno de amor mas agora estou livre de ti. Venho do
longe — de uma pesada ancestralidade. Eu que venho da dor de
viver. E não a quero mais. Quero a vibração do alegre. Quero
a isenção de Mozart. Mas quero também a inconseqüência.
Liberdade? é o meu último refúgio, forcei-me à liberdade e
agüento-a não como dom, mas com heroísmo: sou heroicamente
livre. E quero o fluxo. 6
E no mais: vivendo na cola do interior das coisas não alimento
nenhum desejo de compartilhar a minha impossível intimidade, pois,
se no íntimo, no fundo do fundo, persistir um segredo improvável,
indevassável, inconfessável, o segredo é secreto. Chave jogada fora.
Fechado numa couraça, preso dentro de conchas nacaradas, uma
ostra, um bicho, um ouriço, um monstro. Que não interessa nem
a vocês, nem a ninguém. Nem a mim. Não interessa mesmo.7
6
7
LISPECTOR, Clarice. Idem. p.17.
Este texto foi publicado no livro Ensaios de possessão (Irrespiráveis). Rio de Janeiro:
Caetés. 2006.
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16
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Para ouvir no volume mínimo
Inútil beleza
A tudo rendida,
Por delicadeza
Perdi minha vida.
Arthur Rimbaud
(trad. de Augusto de Campos)
T
udo começou, começa com o desejo de falar sobre a beleza
hoje em dia, da possibilidade da estética, após os Estudos
Culturais. Uma estética adequada a uma produção cultural
e artística que se firmaram após os anos 70 do século passado,
quando cada vez mais os meios de comunicação de massa se
tornam parte integrante da experiência cotidiana das sociedades
contemporâneas, de nossos afetos, desejos e memórias, ao mesmo
tempo em que os projetos modernos se transformam em meio ao
debate da pós-modernidade, na crise de utopias universais e do
ethos vanguardista em busca do novo. Termino com a sensação
de que a crença na beleza e a beleza da fé andaram juntas nesse
caminho. Beleza e fé.
Os ensaios têm um fio condutor na delicadeza, embora ela
nunca se explicite de todo. A delicadeza se traduz desde a busca de
uma sutilidade conceitual para apreender os trânsitos entre filmes,
romances e músicas de diferentes culturas até a seleção dos trabalhos
escolhidos, de Kieslowski, Bressane, Rafael França a Terence Davies,
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
de seriados da Sony, filmes hollywoodianos ao cinema brasileiro e
a poemas de Carlito Azevedo. Resgato Buriti, de Guimarães Rosa,
para compor uma genealogia possível na literatura brasileira de uma
poética da intimidade, presente nos romances de Adriana Lisboa
e João Almino, que se contrapõe a uma estética da violência e do
excesso tão valorizada pela crítica e pelo público hoje em dia.
A delicadeza não é, portanto, só um tema, uma forma, mas
uma opção ética e política, traduzida em recolhimento e desejo
de discrição em meio à saturação de informações. Essa busca de
pertencimento está traduzida, de forma exemplar, na ficção de Paul
Auster e Rubens Figueiredo, na música ambiente de Brian Eno,
seus herdeiros, particulamente a partir do encontro com a Bossa
Nova, realizado por Suba e Bebel Gilberto, bem como nos vídeos
de Bill Viola, nos filmes de Michael Snow e nas paisagens afetivas
de Wong Kar Wai e Julio Medem.
Cada imagem, som, narrativa, teoria, categoria me levaram
a um novo encontro. O sublime no banal. A leveza no cotidiano.
Eclipse do sujeito, do autor diante do mundo. Tudo se traduziu,
por fim, em paisagens.
Atravesso teorias como paisagens, conceitos como imagens.
As obras se dissolvem em devaneios e impressões. Pequenas ondas.
Vestígios. Pegadas. Não há tempo para parar e entender de todo.
A viagem tem que continuar.
Brasília, Rio de Janeiro e New York, três províncias do meu
coração, três livros, três caminhos. Estou pronto. O que há de vir?
Cerrado e mar se misturam.
Enquanto caminhava à beira do Walden, só nisto pensava, só
isto escrevia. Conseguiria traduzir essa rarefação da experiência
pessoal, a busca do desaparecimento, não da negação, nem da
recusa?
Estar presente no evanescimento. Folhas caídas no chão.
Transformação. Ressurreição. Gostaria de ter ajoelhado. Dizia.
Valha-me Thoreau, que, neste mesmo lugar, tantas vezes deve
ter olhado o mesmo lago. Paisagem há muito conhecida, que eu
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18
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Para ouvir no volume mínimo
seja fruto do seu ventre. Até que eu não mais seja. Nada. Nunca
mais. Agora.
Isto não é um livro, é uma prece.
***
Essas paisagens só puderam ser o que são devido ao encontro
e apoio de muitos amigos e colegas. Gostaria de fazer um agradecimento particular e pessoal a todos, mas não podendo, deixo aqui
esta lembrança. Desculpem algum esquecimento.
Agradeço a Silviano Santiago, Ítalo Moriconi e a George Yúdice.
Suas presenças estão por todo o livro.
Agradeço, em especial, à leitura e críticas de Adriana Lisboa, Ana
Chiara, André Queiroz, Ângela Prysthon, Angélica Madeira, César
Guimarães, Laura Podalsky e Muniz Sodré.
Agradeço à leitura amiga em momento difícil de Luciana
Martins.
Agradeço as sugestões bibliográficas, filmes e CDs, comentários,
críticas, questões e estímulo a Aline Khouri, André Brasil, André
Lemos, Anelise Corseuil, Angel Loureiro, Antônio Marcus Alves de
Souza, Benjamim Picado, Carlinda Fragale, Carlos Palombini, Célia
Pedrosa, César Braga Pinto, Cláudia Mattos, Consuelo Lins, Chris
Straayer, David Novak, DJ Dolores, Eneida Leal, Eneida Souza, Eric
Dunlap, Esther Maciel, Eucanãa Ferraz, Evando Nascimento, Fabiano
de Souza, Fernanda Goulart, Fernando Bastos, Fernão Ramos, Flora
Süssekind, Gisela Castro, Guilherme Zarvos, Hans Ulrich Gumbrecht,
Henry Abelove, Idelber Avelar, Irene Machado, Ismail Xavier, Ivone
Margulies, Janice Caiafa, Jean-Claude Bernardet, João Cezar Castro
Rocha, João Gabriel Teixeira, João Gilberto Noll, João Luiz Vieira, John
Baldwyn, John Smalley, Jorge Antunes, Julio Cabrera, Kai Fikentscher,
Karl Erik Schollhammer, Kathryn Rosenfield, Laura Gonzalez, Liv
Sovik, Luiz Augusto Carreira, Luiz Costa Lima, Luiza Jatobá, Márcia
Vitari, Márcio Seligmann, Márcio Souza Gonçalves, Marco Antônio
da Silva Mello, Mariarosaria Fabris, Marli Fantini, Mauro Porto, Mércia Pinto, Miriam Chnaiderman, Monclar Valverde, Murilo Seabra,
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
Nélia Rodrigues, Néstor Garcia Canclini, Orlando Mollica, Patrícia
Moran, Paul Miller (DJ Spooky), Paulo Sérgio Duarte, Paulo Franchetti, Paulo Paniago, Paulo Reis, Pedro Tapajós (DJ the six), Rachel
Esteves Lima, Raul Antelo, Renato Cordeiro Gomes, Ricardo Cutz,
Robert Stam, Roberto Machado, Rodrigo Duarte, Simone Pereira de
Sá, Sônia Roncador, Susanne Stemmler, Tânia Rivera, Tereza Negrão,
Vera Follain, Vladimir Safatle, Walter Menon, Wander Melo Miranda, bem como as discussões que ampliaram as possibilidades deste
trabalho feitas na UnB, UFBA, UFPE, UFRJ, PUC-Rio, UERJ, UFJF,
UFMG, UFSC, New York University, Cornell University, Princeton
University, Ohio State University, Illinois State University e nos
congressos da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema, da Associação Nacional de Pós-Graduação em Comunicação, da Associação
Brasileira de Literatura Comparada e da Latin American Studies
Association. Muitos desses encontros possibilitaram a publicação
de versões destes textos em diferentes periódicos como Alea-Estudos
Neolatinos, Ícone, Contracampo, Cinemais, ECO-PÓS, Grumo, LusoBrazilian Review, Margens/Margenes, Número e suplemento Pensar
do Correio Braziliense. Agradeço a seus editores.
Agradeço a minha familia, aos meus amigos, aos colegas da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, que me apoiaram,
especialmente no meu período de pós-doutoramento. Agradeço ao
CNPq, pela bolsa de produtividade científica, a CAPES, pela bolsa
de pós-doutoramento, e ao Centro de Estudos Latino-Americanos e
Caribenhos da New York University, por me ter acolhido.
Agradeço aos meus alunos, primeiras vítimas destas idéias,
especialmente aos meus orientandos, que desenvolveram trabalhos
mais próximos a esta pesquisa: Décio Gorini, Denise Moraes, Manoel Bastos, Maria Villar, Layo de Barros, Pablo Martins, Leonardo
Fernandes, Gustavo Falleiros, Camila Garcia, Elizabeth Medeiros
e Cicero Bezerra.
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20
•
Por uma estética da comunicação
1
Para Cláudio da Costa
Somente a dicção nobre poderia a tais alturas consolar-me. Mas não o ritmo seco dos diários que me
exigem.
Ana Cristina César
E
m meio às polêmicas que os Estudos Culturais enfrentaram
na passagem do eixo de debates da Escola de Birminghan
para a explosão multiculturalista nos EUA dos anos 80 e 90
do século passado, uma das questões mais subestimadas foi a da
estética (SARLO, 2003, p. 32). Considerada como espaço do canônico, do prazer individual e despolitizado, aparentemente pouco se
avançou nesse terreno, embora, desde o início, “os Estudos Culturais
não tivessem procurado destruir a estética, mas ampliar a definição de arte ao considerar seriamente a cultura popular” (FELSKI,
2005, p. 32). E “confundir um interesse pela cultura popular com
uma ênfase sociológica no conteúdo é desconsiderar a essência do
projeto dos Estudos Culturais” (idem, p. 33).
A proposta deste livro é resgatar esse caminho silenciado. Contudo, não se trata mais de procurar “o popular que nos interpela
a partir do massivo” (BARBERO, 1997, p. 308), mas radicalizar as
1
Uma versão anterior deste ensaio foi publicada em Mídia, cultura, comunicação 2,
organizado por Barbara Heller e outros, Editora Artes & Ciência, São Paulo, 2003.
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
propostas sobre o hibridismo (processos socioculturais de intersecção
e transação constituidoras de interculturalidades), evitando que o
multiculturalismo se torne um processo de segregação (CANCLINI,
2001, p. 14 e 20), ou, como prefiro, afirmar uma cultura pop transnacional em que há espaço para diferenças não necessariamente
decorrentes de especificidades nacionais.2
Nesse contexto, nosso desejo vai, sobretudo, no sentido de
ampliar as possibilidades da estética, menos como um manifesto
do que como um gesto. Não se trata de um retorno a tradições
clássicas, anteriores aos dilemas modernos, mas sua atualização
dentro de uma sociedade midiática.
É necessário não deixarmos esse campo apenas para um pensamento conservador3 que distancia a arte da vida e dos debates
contemporâneos; nem persistir na mera culturalização da arte,
impetrada por políticas de identidades estreitas. Para tanto, procurei
fazer dialogar o Pragmatismo com a ótica benjaminiana na busca de
uma estética da comunicação, mais centrada na experiência do que
na identidade, que se traduz numa poética do cotidiano, mediada
pelos meios de comunicação. Ao procurar revitalizar os Estudos
Culturais com o resgate da tradição democrática pragmatista,
penso que a estética é reafirmada duplamente nas suas dimensões
2
3
Alberto Moreiras (2001) pergunta se os Estudos Culturais podem desenvolver um
estilo de pensamento que não esteja mais associado com postulados estético-historicistas destinados à construção e ao fortalecimento do Estado nacional-popular.
Essa questão também me interessa nesta minha proposta que vai em sentido
diferente do de Moreiras ao resgatar a estética do projeto moderno-canônico e
atualizá-lo diante dos desafios de uma cultura midiática.
Já mapeado no contexto norte-americano (BÉRUBÉ, 2005). Para uma visão que faz
um diálogo mais rico entre os Estudos Culturais, o pensamento pós-estruturalista e
uma perspectiva latino-americana, ver os recentes livros de George Yúdice (2005) e
Silviano Santiago (2005), bem como os trabalhos de Néstor García Canclini (2005),
Eneida Souza (1993, 2002), Beatriz Resende (2004) e Ângela Prysthon (2002).
Para apreender os processos diferenciados de constituição dos Estudos Culturais
ingleses e norte-americanos e evitar o repetido discurso de uma volta “patriarcal”
à Escola de Birminghan, como se nos trabalhos de Raymond Williams, Richard
Hoggart, Stuart Hall estivessem “sua verdadeira essência” (HALL, 2003, p. 199), é
importante lembrar o trabalho de Stanley Aronowitz (1993).
•
22
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Por uma estética da comunicação
individuais e coletivas. Primeira paisagem desta viagem que está
começando.
Beauty crowds me till I die,
Beauty, mercy have on me!
But if I expire today,
Let it be in sight of thee.
Emily Dickinson
A estética entendida a partir do século XVIII como estudo do
belo e da arte se viu logo bombardeada nas suas pretensões universais e abstratas. A estética foi banida, colonizada pela política
e pela economia, isolada nas suas próprias referências. O que me
interessa no momento não é tanto falar da fragilidade do valor e
da heterogeneidade contemporânea, como apontaram diferentes
autores ao fazerem a crítica de uma estética universal e abstrata,4
quanto colocar a estética, na esteira de Foucault, como possibilidade
de existência, práticas do sujeito, mas também uma “estética das
condutas” (GALARD, 1997, p. 15) performativa, definida por uma
questão ética: como intervir no mundo.
A recuperação da estética na atualidade passa menos pelo elogio
monumentalizador das (neo)vanguardas do que pela aproximação
da arte a uma vida cotidiana, marcada pelas imagens midiáticas,
fundamentais para entender a cultura contemporânea não só ao
se falar das condições de produção e de recepção, mas na análise
do que antes chamávamos mensagem, produto, obra. Este é meu
ponto de partida: uma estética da comunicação.
Há uma diversidade de sentidos na forma como a expressão
“estética da comunicação” vem sendo utilizada, desde para traduzir
o impacto das técnicas, mídias massivas (COSTA, 1999, p. 17), especialmente das novas tecnologias da comunicação (COSTA, s.d.,
p. 38) até o processo generalizado da estetização da vida cotidiana,
4
Ver HUNTER, 1992, p. 347-372; YÚDICE, 1989 e 1997; MARQUES e VILELA,
2002; RICHARD, 2002, p. 175 e 186.
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23
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
presente no trabalho de Michel Maffesoli (GUIMARÃES, 1997;
VALVERDE, 1997) e Mike Featherstone. Interessa-me reafirmar,
seguindo um filão pragmatista,5 a necessidade de resgatar o afetivo, o
corporal, como possibilidade de comunicação, diferente de posições
meramente intelectualistas, construtivistas e cerebrais, tão presentes
na teoria e na produção marcadamente modernas que isolaram a
arte da vida, erigindo a modernidade ocidental como cânone, monumento, referência incontornável. O que vem do Pragmatismo é o
comum6 como categoria, a filosofia do homem comum, uma poética
do cotidiano, não a filosofia do super-homem nietzschiano, nem a
experiência como impossibilidade e transgressão.
Na perspectiva de uma estética da comunicação é fundamental diluir cada vez mais as fronteiras entre arte erudita, popular e
massiva, desconstruir o dualismo experimental e comercial, fazer
dialogar objetos de valor estético com produtos culturais, não para
considerá-los apenas como mercadorias dentro de uma indústria
cultural, mas como coisas dentro de uma cultura material, que
têm uma vida social (APPADURAI, 1986, p. 3 e 5). Essa estética
reafirma a centralidade da reprodutibilidade técnica do audiovisual
para pensar a arte a partir da segunda metade do século XX, de
forma diferenciada de qualquer visão instrumental da comunicação, colocando-a na esfera da possibilidade de compartilhamento
de experiência, não simples troca de informações (RODRIGUES,
2000), nem sinônimo de produção (FELD, 1994, p. 160-161).
A comunicação não é nem idéia, nem ação, mas um “processo de
intersecção pelo qual objetos e eventos por intermédio de atores
sociais se tornam significantes ou não” (idem, p. 78).
Dentro das diversas experiências estéticas, pensar uma obra
artística como fenômeno comunicacional implica não só situá-la
5
6
Ver DEWEY, 1958; PARRET, 1998 e SHUSTERMAN, 1998.
Obviamente, não se trata de restringir a questão do comum ao Pragmatismo, sendo
uma questão fundamental, para pensadores tão distintos como Emerson, Wittgenstein e Stanley Cavell, para não mencionar a própria abertura que Raymond
Williams realizou ao dizer que a “a cultura é o comum” (“culture is ordinary”),
atualizada por Bruce Robbins como “a cultura global é o comum”.
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24
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Por uma estética da comunicação
em diálogo com o solo histórico, como já o fazem há muito tempo os estudos de sociologia da cultura e da arte, notadamente de
vertente marxista, mas implodir a dialética e/ou a dualidade entre
arte e sociedade,7 bem como ir além dos estudos de representações8
sociais, radicalizando as aberturas realizadas pelo debate sobre
articulações,9 mediações10 e circuitos11 num fluxo de discursos,
imagens e processos que transitam social e temporalmente, como
uma narrativa que traduz a experiência contemporânea. Ao considerar esses fluxos como narrativas, vamos além das considerações
que enfatizam apenas seu caráter mercantil, sem nos isolarmos em
visões formalistas à medida que elas se tornam experiências dos
sujeitos contemporâneos.
Mas antes de precisarmos a compreensão desses fluxos como
narrativas, seria importante entender a abertura que o termo “experiência” possibilita, pois viabiliza uma mediação fundamental: “as
transformações do sensorium dos modos de percepção” (BARBERO,
1997, p. 72). Ainda que seja imediata na percepção, a experiência12
traz não a verdade, mas uma estória, uma verdade que é sempre
mediada por discursos sociais (SCOTT, 1999, p. 42). A partir dos
Estudos Culturais e dos Estudos de Gênero, a experiência não só se
insere num solo sócio-histórico, mas se constitui como a encarnação,
Aqui me refiro, em geral, à necessidade de ir além de uma perspectiva marxista,
e, em particular, no contexto brasileiro dos estudos literários, à importância de
arejar e não monumentalizar a herança de Antonio Candido (ver exemplo dessa
monumentalização em CEVASCO, 2003, p. 173-188).
8
Obviamente, não estamos nos referindo a obras sofisticadas como as de Auerbach
e Costa Lima centradas na discussão da mímesis.
9
“Formas de pensar as estruturas como jogo de correspondências, não-correspondências e contradições; fragmentos ao invés de unidades” (SLACK, 1996, p. 112).
10
“Lugares dos quais provêm as construções que delimitam e configuram a materialidade social e a expressividade cultural” de um meio (BARBERO, 1997, p. 292).
11
“O circuito é a estrutura de circulação dos textos. Trata-se de uma noção panorâmica, visando demarcar terrenos no plano histórico-situacional. Os circuitos determinam as molduras, os frames discursivos a partir dos quais se pode analisar mais
de perto cada obra ou trajetória autoral em particular” (MORICONI, 2005).
12
Essas reflexões se iniciaram no meu ensaio “Experiência e escritura”, publicado
no livro O homem que amava rapazes, para refletir sobre a experiência do pesquisador no ato da escrita.
7
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25
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
a narrativa de identidades, por onde transita. Identidade que deve
ser vista não como questão lógica, formal, filosófica, mas, sobretudo,
histórica, social e política. A experiência, lembrando Joan Scott,
não é origem de explicação, evidência autorizada, mas o que buscamos explicar, aquilo sobre o qual se produz conhecimento (idem,
p. 27), que nos diz que é importante refletir sobre quem fala (idem,
p. 31). Há mesmo uma convergência entre os Estudos Culturais e o
Pragmatismo, ao se enfatizar que a experiência é uma “atividade”
(ABRAHAMS, 1986, p. 77) que ocorre sempre num espaço relacional (DEWEY, 1958, p. 44), sendo uma forma de compartilhar,
uma possibilidade de diálogo.
Em contraponto a essa visão, digamos comunicacional, da
experiência, seria importante dialogá-la com outra tradição, que
podemos chamar de trágica. A experiência, para Foucault (1994,
p. 43), não é um olhar reflexivo sobre um objeto qualquer do vivido, que se defronta com o cotidiano na sua forma transitória para
lhe retirar significações, nem encontra o sujeito que se é como
efetivamente fundador nas suas funções transcendentais. A visão
de Foucault também se diferencia de uma tradição pragmatista,
em que a experiência é conhecimento acumulado e contínuo de
eventos passados, que necessita de estabilidade e descanso para
se concretizar (DEWEY, p. 16-17) e implica uma satisfação nas
lutas e conquistas (idem, p. 19) do presente. Foucault se insere
mais na tradição de Nietzsche, Bataille e Blanchot, para quem a
experiência é tentativa de atingir um certo ponto da vida que seja
o mais próximo possível do “invivível”, que requer um máximo de
intensidade e ao mesmo tempo de impossibilidade, talvez como
para Walter Benjamin, que requer muitas vezes fazer tábula rasa
para que possamos ir para a frente (1985, p. 116). A experiência
tem por função retirar o sujeito de si, fazer com que ele não seja
mais o mesmo. A experiência revela e oculta, tem espaços de luz
e de sombras. A experiência não é apreendida para ser repetida,
simplesmente, passivamente transmitida; ela acontece para migrar,
recriar, potencializar outras vivências, outras diferenças. Há uma
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26
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Por uma estética da comunicação
constante negociação para que ela exista, não se isole. Aprender
com a experiência é, sobretudo, fazer daquilo que não somos, mas
poderíamos ser, parte integrante de nosso mundo. A experiência é
mais vidente que evidente, criadora que reprodutora.
A experiência é o que resta, quando as grandes idéias, os grandes
pensadores não satisfazem mais, é brechas abertas em sistemas demasiado acabados, fechados ou que se tornam fechados, ortodoxias
para crentes, cacoetes para epígonos. A liberdade do caminho, das
infidelidades e traições teóricas, dos deslocamentos institucionais,
das derivas existenciais, dos encontros ocasionais e inesperados.
Com medo, com riscos. Não se trata apenas de desaprender, de jogar
com o saber cristalizado, incrustado. Nem também lembrar o já
vivido, mas a atenção desatenta pelo momento. O ar entra limpando
a poeira. O vento passa e já esquecemos. Dançar e cantar no meio
da chuva. A experiência é instável, impressão, rastro, vestígio, não
é de um sujeito isolado, nem da linguagem sem sujeito, mas das
coisas, da matéria, do encontro. A palavra solidária, compartilhada,
mesmo quando só possa ser narrada com muita dificuldade.
Na tensão presente entre as diversas acepções sobre a experiência, apostamos na experiência que refaz mesmo a teoria pela
narrativa. Se a partir de Walter Benjamin (1985, p. 165-196), em
seu famoso ensaio “O narrador”, poderíamos pensar no declínio da narrativa e na dificuldade de intercambiar experiências,
associados à reprodutibilidade técnica da imagem e à ascensão
da informação, após o impacto da televisão e da proliferação de
novas tecnologias, trata-se menos de falar em declínio do que em
transformação, possibilidade aventada também por Benjamin
(1985, p. 114-119), em outro contexto, no ensaio “Experiência e
pobreza”, ao problematizar a noção de experiência apenas como
mero acúmulo de memória, de forma linear, e defender a descontinuidade e o esquecimento como empobrecimento necessário
da experiência, para que se tenha um olhar menos nostálgico
diante do presente. O que Benjamin desvaloriza, Silviano Santiago considera como núcleo do que podemos chamar de uma
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27
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
experiência contemporânea. Ao invés de tensionar experiência
e o acontecimento, Santiago valoriza o acontecimento como
centralidade do presente marcado pela imagem e pelo desejo,
em que o observar mesmo é uma experiência (SANTIAGO,
1989, p. 38-52).
A experiência se faz fluxo a ser narrado, compartilhado. Ao considerar o fluxo como experiência ou falarmos em experiência multimídia, estamos num horizonte em que as linguagens se cruzam
e convergem tecnologicamente, tanto na produção quanto numa
recepção cada vez mais marcada por uma simultaneidade de meios
e sensações. Se houve um momento em que o grande dilema estava
em definir as linguagens literária, fotográfica, cinematográfica e assim
por diante,13 hoje parecem mais rentáveis os espaços de intersecção,
recorrentes na tradição experimental das instalações e performances, e “entre-imagens” (BELLOUR, 1997, p. 14-17), para definir esse
espaço de passagens.
Talvez esses fluxos nos lancem a um outro tipo de experiência,
que mal vislumbramos, mas não creio que seja a volta a uma dimensão trágica da modernidade, na esteira de Blanchot e outros, mas
certamente teríamos que aprender com a arte na sua materialidade.
“A escrita da arte abre para uma experiência em que a interpretação se
dá sobre um fundo de indeterminação”, afastando-se da comparação
da obra-de-arte com a conversação, marcando uma diferença radical
entre a comunicação oral, reversível, instituída no elemento da língua
natural, entre locutores, e a instituída, por meio das linguagens de
arte, entre um criador e um fruidor (LUZ, 2002, p. 98).
Nesse horizonte, os fluxos contemporâneos são narrativas complexas de nossa época. O uso da narrativa como ato social tensiona
a demanda mercadológica por um contato maior com o público,
já marcado pela espetacularização do privado e pela demanda de
movimentos sociais em busca de uma sociedade que se pretenda
13
Trata-se aqui de me diferenciar de qualquer discurso que insista na literariedade
do discurso literário ou na especificidade do discurso cinematográfico, ou de
forma mais ampla, na artisticidade do discurso artístico.
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Por uma estética da comunicação
multicultural e democrática. O ato de narrar implica um uso afetivo,
num contexto indissociado do mercado, mas não deixa os fluxos
aprisionados no lugar-comum e no clichê, joga com esses elementos
para uma elaboração com uma pluralidade semântica em diálogo
com o público transformado em autor.
A narrativa deixa de ser algo desvalorizado como espaço dos
estereótipos, associado a produções comerciais e convencionais,
como no clássico ensaio de Laura Mulvey, Prazer visual e cinema
narrativo (1991, p. 435-454). O fascínio visual, como lembra Steven
Shaviro, seria não uma “compulsão irresistível, passiva” (SHAVIRO,
2000, p. 8), uma “fixação estabilizadora”, mas uma “mobilidade
incansável”, (idem, p. 9). No horizonte das ambigüidades pós-modernas e pós-utópicas, em que o novo e o choque deixam de ser
marcas de ruptura para se tornarem estratégias de marketing e de
produção da notícia, a narrativa e o fascínio pela imagem ganham
um novo interesse, valorizando a aproximaçao afetiva ao invés de um
distanciamento brechtiano ou do elogio da negatividade de Adorno,
álibis cada vez mais desmobilizadores, incapazes de lidar com o
contemporâneo e oferecer alternativas. Nem todo conflito implica
um ato crítico, nem toda reconciliação apaga as diferenças.
De que estética ainda podemos falar? E é dela que quero falar,
não só de crítica, leitura, interpretação de obras. Uma estética, sem
dúvida, localizada e engajada num tempo e numa sociedade, ao
invés de abstrata e universal, que emerge do embate com as materialidades, mas procura confrontá-las, compará-las, estabelecer
séries, linhagens, a partir de problemas, conceitos, categorias. Uma
estética interessada, parcial e empenhada, sem que implique uma
submissão a interesses de partidos políticos, classes e/ou grupos
sociais. Uma estética pop,14 que não tem medo do fácil, como na
14
Para reflexões que partem da música pop para discutir o conjunto da estética
contemporânea, não-formalista, afetiva, destaco Frith (1994) e Baugh (1994), que
conformam um novo mapa estético e afetivo, diferente do que Jameson (1996)
chama de esmaecimento de afetos, de afetos auto-sustentados e impessoais, marcados por uma certa euforia, por uma intensidade esquizofrênica valorizadora do
presente e uma falta de memória; diferente também do que Grossberg chamou
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29
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
canção Fácil, de Jota Quest, da redundância informativa, do descartável e que coloca no mesmo lugar o que antes chamávamos de
popular e erudito; experimentalismo e cultura de massa. Uma estética híbrida, intertextual, transemiótica, multimidiática, centrada
em categorias e conceitos transversais. Longe estão as querelas por
definir linguagens artísticas e campos do conhecimento, que só interessam aos burocratas do pensamento encastelados no poder que
a especialização pode lhes conferir. Está só começando o trabalho
de dissolução das especificidades disciplinares.
Uma estética centrada na experiência, palavra ardilosa,
múltipla, que traz uma tensão constante entre a possibilidade
de acúmulo e comunicação e/ou sua impossibilidade. Essa
experiência está sempre além da arte, mas afirma o seu lugar
como forma de conhecimento e de estar-no-mundo, indo além
da sua mera consideração como mercadoria. Uma estética da
comunicação, não dos meios de comunicação de massa. Mas
quando nosso cotidiano 15 se transformou em experiência multimidiática, o que fazer?
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APPADURAI, Arjun. Introduction: commodities and the politics
of values. The social life of things. Cambridge: Cambridge University
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15
de colapso da relação entre afeto e sentido, em que as experiências afetivas não
estariam mais ancoradas em mapas sociais, incapazes de organizar nossas vidas
(1992, 1997).
Para um outro desdobramento sobre a relação entre estética e vida cotidiana, ver
GUIMARÃES (2004).
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30
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Por uma estética da comunicação
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34
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Toda uma vida naqueles flocos de neve que imaginei
antes de ver. Penugens na janela. Um mundo todo de
delicadezas. Eu só aqui olhando minhas lembranças
enquanto a noite avança. Não mais estórias. Estou
cansado do esforço de contar. Um assobio corta a
noite. Poderia nunca mais parar. Paisagem inútil.
O sublime no banal
1
Para Ana Agra
Pudesse um poema, um amor,
pudesse qualquer esperança
viver assim o engano:
beleza, beleza
beleza,
mais nada.
Eucanãa Ferraz
Q
ue destino teria a beleza hoje em dia? Seria o de Gustav von
Aschembach em Morte em Veneza (1971), de Luchino Visconti?
Quanto mais ele procura a beleza, mais se aproxima da morte. Seria
essa impossibilidade o destino do esteta hoje em dia? Seria uma recusa
desesperada da mediocridade como no suicídio de Mishima?2 Ou seria,
antes, o puro prazer de voyeur perplexo, imobilizado como no poema
“Sob o duplo incêndio”, de Carlito Azevedo, epígrafe deste livro?
1
2
Uma versão anterior deste ensaio foi publicada em Literatura e Filosofia, organizado por Evando Nascimento e outros, Editora da UFJF, 2004.
“A atmosfera de compromisso desse tempo deve-se ao fato de que aquele que
se esforça por viver e morrer na beleza se destina a uma morte que terá toda a
aparência da ignomínia, ao passo que aquele que só aspira a uma vida e a uma
morte, que são, na realidade, repugnantes, passa dias felizes” (Yukio Mishima
apud GALARD, J., 1997, p. 14).
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
Penso ainda em Beleza americana (1999), o filme de Sam Mendes. Lester, o protagonista, se encanta por Angela, amiga de sua
filha Jane, numa coreografia antes de um jogo na escola, em que
música e desejo se fundem. Ele larga seu emprego, começa a fazer
musculação, volta a ouvir rock, procura recuperar sua juventude.
Ainda que essas cenas sejam tratadas pelo diretor como ridículas,
patéticas, é a partir desse momento que o protagonista se modifica.
No mesmo filme, o jovem Ricky é quem mais parece traduzir a possibilidade transformadora da beleza na vida cotidiana. Ele filma o
que o rodeia, buscando não só ser voyeur, mas estar-no-mundo. Ao
relatar a Jane o que de mais belo tinha filmado, um saco que por 15
minutos volteava à sua frente, ele se aproxima como nunca até então
de outra pessoa. É pela beleza que acontece esta possibilidade, por
breve que seja, de estar-no-mundo; trata-se mais de uma “intensidade” do que de uma “elevação” (LYOTARD, 1988, p. 111).
Falar da beleza não é um discurso inútil. Me coloca, ao mesmo
tempo, no mundo novamente reencantado (BAUMAN, 1997, p. 42)
e na minha própria solidão, ao “reunir/ cada fragmento nosso,
perdido,/ de dor e de delicadeza” (Carlito Azevedo, “Na Gávea”).
Ou seria este desejo, isto tudo ilusão? A beleza e nada mais sigo.
Essa busca da beleza passa primeiro pelo elogio, pelo retorno do
sublime, seja como programa, seja como provocação. Estaria mesmo
todo sentimento de encantamento e fascínio diante do mundo, das
pessoas, reduzido a mero olhar de consumidor, marcado por padrões
publicitários, que encobrem a realidade? É necessário mesmo uma
viagem de redescoberta, de reaprendizado, sem medo da beleza uma
vez mais, sem confundir estética com esteticismo,3 nem se limitar a
salões de beleza ou academias de musculação. Uma viagem como a que
o poeta Basho fez em Trilha estreita ao confim apenas para contemplar
a lua cheia nascendo sobre as montanhas do santuário de Kasima.
3
Confusão ou redução das possibilidades da estética hoje em dia a um esteticismo
fora de tempo é o que coloca Jameson (1998, p. 135), de forma candente: “Hoje,
toda beleza é prostituída e seu apelo por um pseudo-esteticismo contemporâneo
não é uma postura crítica e, sim, uma manobra ideológica”.
•
38
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O sublime no banal
Mas o que fazer quando nosso cotidiano se transformou em
experiência multimidiática? Acelerar, ir mais rápido, ser mais veloz,
aderir ao simulacro4 ou estabelecer pausas, silêncios, recolhimento?
Opto agora pelo sublime. O sublime não só como uma categoria
do gosto, da experiência, nem como limite da representação moderna, mas, sobretudo, como uma categoria analítica e concreta5
de articulação das obras contemporâneas, para além dos impasses
da arte moderna.
Sem me alongar, parto de uma primeira e precária definição
do sublime. O sublime seria a experiência entre horror e prazer,
experiência de fascínio diante de uma paisagem, uma pessoa ou
uma obra-de-arte. Como nos lembra Nelson Brissac Peixoto (1997,
p. 301-302), é “o impensável, o indiscernível”, “evidência de algo
que não podemos ver nem definir, mas que nos arrebata”, “desejo
indeterminado e imenso”, “o inomeável, inenarrável”.
O sublime entra em cena no mundo latino (Longino, Cecílio,
Plotino); aparece, com força, nos séculos XVIII e XIX, sobretudo
na filosofia alemã, do Iluminismo (Kant) ao Romantismo (Schiller, Schelling), e mais recentemente é retomado, entre outros, por
Lyotard. Só ressalto dessa história o que interessa para discutir sua
atualidade. Se para Longino (1996, p. 18), o sublime é “o eco da
grandeza da alma”, essa aproximação do sublime com o grandioso
continua para além do caráter épico presente em Longino, até em
Kant (1995, p. 93), ao remeter ao absolutamente grande, ou nos
românticos, no fascínio pelo indefinido e pela natureza. Mas já
pelo menos em Burke (1993, p. 78 e 84), ou mesmo em Longino,
4
5
Explorei o simulacro — essa outra categoria que tensionada com o sublime é
fundamental para a compreensão dos rumos da cultura e da arte contemporâneas
— como base para uma estética do artifício, tanto no contexto do imaginário
neobarroco (LOPES, 1999, p. 92-94) quanto no camp (LOPES, 2002, p. 104-111).
Neste sentido, estaríamos na contramão da posição de Lyotard (1993, p. 33): “Não
há objeto sublime. E, se há uma demanda de sublime ou de absoluto no campo
estético, cabe-lhe permanecer insatisfeita. Quando o comércio se apodera do sublime, transforma-o em ridículo. E já não existe estética do sublime, pois o sublime
é um sentimento que extrai seu poder amargo da nulidade da aesthesis”.
•
39
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
há simultaneamente a associação do sublime com a infinitude, a
magnificência, mas também surge uma outra tradição, bastante fecunda na modernidade, ao associar o sublime com o extremamente
pequeno, possível de ser identificado na “fisionomia do comum”
por Kierkegaard (CAVELL, 2003, p. 25) ou posteriormente, por
exemplo, na memória involuntária de Proust. À medida que cada
vez mais o grandioso, o monumental6 pode ser associado à arte dos
vencedores, de impérios autoritários, da arte nazista, do Realismo
Socialista aos épicos hollywoodianos, é justamente no cotidiano,
no detalhe, no incidente, no menor, que residirá o espaço da resistência, da diferença.
Uma primeira aproximação seria possível entre o sublime e o
sagrado. Tanto o êxtase místico quanto o sublime são marcados
por uma suspensão e uma dificuldade em nomear o vivenciado,
experiências que podem ser vistas como análogas ao orgasmo7 e
à própria busca da arte moderna em representar o irrepresentável
(NANCY, 1988), em transgredir os limites, transitar entre o ruído
e o silêncio, explorar o fora da tela, das galerias, o fora do palco.
Mas apesar de o sublime, nos séculos XVIII e XIX, ser fruto
da passagem de uma sociedade centrada em Deus e na religião
como aparato institucional para uma sociedade laica, há uma perda do privilégio do encantamento diante de santos e deuses para
que o mundo material possa também ser fonte dessa experiência
(CADETE, 1997, p. 21). Hoje, esse reencantamento do mundo
vem acoplado a toda uma discussão sobre o retorno do sagrado.
Sem que a discussão do sublime perca sua especificidade, acreditamos que ela possa ser mais bem compreendida neste contexto
mais amplo, que vai desde os novos e velhos fundamentalismos
religiosos à cultura da New Age e a artistas contemporâneos tão
6
7
Para um resgate diferenciado do monumental, como categoria histórica contingente e instável, ver HUYSSEN, 2003, p. 40.
É comum o uso de metáforas eróticas na literatura mística e de metáforas sacras
na literatura erótica.
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O sublime no banal
sofisticados como Tarkovski, Paradjanov, Sokurov e Bill Viola,
quanto a música de Gorecki, Preisner e até na esfera da cultura
pop, como a música de Moby.
Pode parecer surpreendente que no espaço da cultura pop e,
notadamente, na música eletrônica, comumente associada a bpms
acelerados, à celebração do corpo e ao hedonismo, houvesse uma
possibilidade de contemplação e quietude. No entanto, Moby não
está sozinho, mas, sem dúvida, sua God moving over the faces of the
water, música instrumental de nove minutos, encena um caminhar a
partir de explosões sonoras que aumentam e diminuem de volume,
simulando aproximação e distanciamento do ouvinte. Num mundo
em que qualquer experiência é banalizada, Deus ou o sublime não
tem palavra, só música
Insistimos, contudo, que o sublime, afastado de uma dimensão
metafísica, dualista, não implica a negação do mundo, do corpo
e dos sentidos em favor do espírito. Como quando nos referimos
à beleza, aqui também ao falarmos sobre o sublime, queremos
atualizar o debate sobre a fé, sem aderirmos a visões conservadoras
e institucionalizadas de discursos religiosos.
Sem dúvida, trata-se de uma suspensão. Mas se não podemos
viver em constante encantamento e fascínio, aprendemos algo
dessa suspensão? O que nos resta depois do gozo, a não ser talvez
lembrar o sentido? Ou, ainda, a experiência do sublime poderia ser
imemorial em meio à transitoriedade de tudo? Sua própria força
estaria não em uma transcendência, mas num mergulho mesmo
no mundo das coisas, no aqui e no agora (LYOTARD, 1988, p. 104)
— experiência próxima à tradição Zen-Budista (LISBOA, s. d.) — e
não só no indelimitado cultivado pelos românticos.
Longe de localizar o sublime apenas numa tradição canonizadora do moderno, conservadora, nostálgica de sentidos em meio à
rapidez das imagens e máscaras, como talvez seja o caso de Lyotard
ao eleger o pintor abstrato Barnett Newman quando resgata o sublime em busca de uma “estética desnaturada, portanto negativa” (l993,
p. 69), mais próxima à alta modernidade do que diante da condição
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
pós-moderna que outrora defendia; acredito e aposto numa linhagem
do sublime, em tom menor, no cotidiano, em personagens comuns,
presente na poesia de Manuel Bandeira e nas crônicas de Rubem
Braga, como bem a mapeou Davi Arrigucci (1990, 1987). A “poesia
menor” de Bandeira pode ser atualizada como uma “poética da despreocupação”, “uma dis-tensão precisamente da tensão que provoca
a experiência-limite”, aliada a um pensamento débil, para usar os
termos de Vattimo, alternativa a um pensamento forte, marcado por
uma luta de poder, como ato estratégico e crítico (HERNANDEZ,
1999, p. 10). Essa poética da desprecupação, longe de uma postura
de isolamento do mundo como numa torre de marfim esteticista,
afirma um distanciamento para uma melhor compreensão (idem,
p. 42), uma opção pela experiência mínima, cotidiana, não-gloriosa
de cada dia, um desejo de dissolução no universo, de desaparecer
discretamente (idem, p. 11).
Essa linhagem desdobra-se, também, num desejo de revalorização da narrativa como forma de se aproximar do público,
de se aproximar do mundo contemporâneo, seja no cinema, seja
na literatura, de Kiarostami, Wong Kar Wai, Kieslowski a Mike
Leigh, Hal Hartley; do último Almodóvar a Terence Davies, em
Kazuo Ishiguro, David Leavitt e Michael Cunninghan; no Brasil,
em Walter Salles e Eduardo Coutinho, Adriana Lisboa e Rubens
Figueiredo. Trata-se da possibilidade de uma experiência de beleza
que emerge de um cotidiano povoado de clichês, implica repensar
o banal. Essa experiência se situa de forma tensa entre a dimensão
transgressora e transcendental do sublime associado ao grandioso
e do belo, marcado pelo agradável, convencional. Consideramos o
sublime e o belo não como pares opostos, mas como complementos,
gradações de uma mesma experiência.8 O sublime no banal está no
meio do caminho entre o belo e o sublime. Do belo tem a modéstia,
a luminosidade, a delicadeza; do sublime, tem a não-convencionalidade, a não-submissão à racionalidade numa tradição romântica.
8
Ver SCHELLING, 1997, p. 127; SCHOPENHAUER, 2001, p. 212; LYOTARD,
1988, p. 109; ROLFE, 1998, p. 39.
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O sublime no banal
Podemos mesmo entender que “a confusão entre beleza e sublime
que domina o discurso contemporâneo pode ser apreciada como
parte da política pós-moderna de colocar em colapso as hierarquias
modernas” (MCEVILLEY, 2001, p. 75).
O sublime no banal não nega a arte, diante da dissolução provisória dos limites do sujeito. O sublime no banal não se confunde
com a busca de uma autenticidade perdida no mundo da reprodutibilidade técnica e eletrônica da imagem, da aura benjaminiana.
Aproxima-se do que Ítalo Moriconi (1998a) chamou de dessublimação, ao incorporar o corporal, mas talvez por não compartilhar
o mesmo solo cultural de onde suas reflexões parecem emergir,
marcadas pela contracultura, pelo desbunde e pela poesia marginal, distante de qualquer possibilidade iconoclástica, de virulência
transgressora, mesmo que paródica. O sublime no banal estabelece
mais um jogo de tensões entre a contemplação e o olhar distraído,
a rapidez e a lentidão e prefere apostar mais na sutileza, na leveza,
nas palavras que não canso de repetir de Ana Chiara (1999): “Sem
muito desespero, que é inútil, sem pieguice, que é meio de mau
gosto, sem cinismo, porque já basta a desrazão, mas com suave
ironia para poder suportar o peso”.
Esse sublime está traduzido exemplarmente no último filme de
Rafael França, Prelúdio de uma morte anunciada (1991), concluído
pouco antes de sua morte. Abraços e toques acontecem entre dois
homens de quem não vemos os rostos. É do que me lembro. Nomes atravessam a tela. Não uma lista de pessoas, mas sucessão de
lembranças. Na ansiedade do encontro e da despedida anunciada
no título, não há mais tempo para memórias detalhadas, falas
longas, elaboradas, só flashes de nomes e gestos. Nada para ser
dito ou falado a não ser tocar. As pessoas restam em nomes. Antes
de serem perdidos, esquecidos. Não se trata de saciar um último
desejo. Não há tanto frenesi. Não há sexo, orgasmo. Apenas a superfície da pele se apresenta simplesmente, como se pudesse reter
pela delicadeza, dizer.
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
Seria o sublime, portanto, um enobrecimento do banal, dar ênfase, foco ao que não tem? Sem dúvida, o sublime se situa no quadro
em que a arte foi se tornando cada vez mais um conceito ampliado
e complexo, em que a beleza se afastou de objetos específicos. Tudo
pode ser belo, mesmo um cadáver, como no famoso poema de Baudelaire. Qualquer coisa pode ser arte, como nos impactou Duchamp.
Todo mundo pode ser artista, como reafirmaram os punks. O sublime
pode estar no grotesco desde Victor Hugo (GUERLAC, 1990) até
no abjeto, como quando a protagonista de A paixão segundo G. H.,
de Clarice Lispector, engole uma barata.
Mas, hoje, não se trata tanto de uma militância virulenta e sim de
produzir sentidos precários, recolher cacos, vestígios, habitar ruínas.
Não esperar a revelação, a epifania, a iluminação, nem idealizar o
simples, o cotidiano, mas certamente desmistificar o grandioso, o
monumental. Dessa forma, o sublime não se apresentaria como,
em críticas originárias dos Estudos Culturais, “espaço da reconciliação burguesa”, que implica a volta à estética como produtora
de hierarquias e distinções (DELFINO, 1997, p. 104), nem como
“oposto ao sentimento de solidariedade social” (HEBDIGE, 1998,
p. 141), por “atomizar a sociedade ao confrontar cada indivíduo
com a perspectiva de sua própria destruição iminente e solitária”
(idem, p. 137). Ao contrário, o sublime estaria mais próximo de
um exercício democrático, marcado por uma diversidade cultural
(SOMMER, 2004, p. 131 e 141).
O sublime seria uma experiência aristocrática? Seria mais uma
experiência daqueles que têm tempo? Seria o tempo um privilégio
de classe? Mas também os que têm muito dinheiro estão muitas
vezes interessados em gastar seu tempo em terem mais dinheiro
ou manterem o que têm. O sublime certamente implica uma outra
relação com o mundo não marcada exclusivamente pelo trabalho
e pela produção.
Como produzir imagens e narrativas que ainda tenham força
diante do excesso informacional? É possível falar em um “sublime
tecnológico”, não apenas como “objeto de uma produção controlada e
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O sublime no banal
de um consumo socializado” (COSTA, 1995 , p. 49), como se as novas
tecnologias por si instaurassem uma nova situação material (idem,
p. 37), pois, no momento, os meios de comunicação de massa não
são elementos externos, são cotidiano, memória e afeto. Como no
romance Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu (LOPES,
2002, p. 213-246), mergulhamos numa atmosfera em que o sujeito
humanista se dissolve, seu excesso se esvazia. E mesmo as paisagens
mais marcadas pela transformação industrial podem se transformar
em “paisagens fabricadas”, como as fotos de Edward Burtinsky.
Há mais de vinte anos, Roland Barthes falava da solidão do discurso
amoroso em uma sociedade centrada cada vez mais na sexualidade.
Talvez a estética (ISER, 1994; BECKLEY e SHAPIRO, 1998) tenha se
tornado uma outra solidão. Todos falam de cultura, mercado. Sim, é
claro, isso ajuda a compreender, mas não esgota o encantamento, a
perdição desta experiência: o sublime. Falar do sublime não para ter
saudade de algo que nós perdemos, de canonizar e monumentalizar a
alta modernidade, mas nos referindo a algo que podemos encontrar
quando menos esperamos, sobretudo quando não esperamos mais
nada, não como ato restaurador, mas de transformação, de acolhimento do outro, de ser outro (BLOOM, 2001, p. 22).
Nada de grandioso, transcendental, mas menor, banal, cotidiano,
concreto, material. O sublime é uma alternativa ao discurso fatigado das transgressões tardo-modernas (que artistas performáticos,
cineastas experimentais insistem em ressuscitar) e à ladainha de
um mundo povoado de imagens, clichês e informações, não para
recusá-lo, mas de dentro dele afirmar uma adesão. Como nos provoca Nelson Brissac Peixoto: “O destino das imagens não está mais
sendo jogado no experimentalismo da vanguarda nem no engajamento ideológico, discursos completamente integrados no sistema
de produção de clichês. O futuro das imagens está na produção do
sublime” (PEIXOTO, 1997, p. 318). O sublime midiático, tecnológico,
o sublime pop. O sublime não como fuga do mundo, escapismo,
mas afirmação da possibilidade do encontro, da presença.
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
O sublime é a base de uma educação dos sentidos a partir do precário, do fugaz, do contingente, de tudo o que evanesce rápido, mas
que brilha inesperada e sutilmente. Um tesouro para ser guardado.
O sublime faz da arte uma ambiência, uma paisagem onde se
pode habitar e caminhar lentamente como se houvesse o tempo todo
do mundo, é a volta em torno de um lago que bem pode ser uma
vida, é o retorno ao mar, ao indefinido, ao inumano, que bem pode
estar não só na natureza, como para Kant e os românticos, mas numa
tela de televisão criada por computadores (ROLFE, 1998, p. 51), ou
nos espaços urbanos (PEIXOTO, 1997, p. 310-311). O sublime não
implica mais a perda do eu como triunfo da linguagem, mas que o
próprio sujeito seja traduzido como paisagem.
Talvez todo esse esforço tenha sido em vão. Por que buscar renomear, torcer uma palavra com sentidos tão arraigados, por que
não falar em outra palavra: leveza? O sublime é um posicionamento
ético e estético diante do mundo frente ao populismo midiático
sem ignorar os meios de comunicação, mas pensando-os em sua
diversidade. Pensar os frágeis limites entre o sublime e o banal implica recolocar a atualidade ou não de uma estética hoje em dia. Em
contraponto a um discurso da negação e de transgressão, reduzido
hoje a uma estratégia de marketing, defendo uma gentil subversão.
Também em contraponto a uma estética da violência, ao fascínio pelo
grotesco e pelo abjeto, o sublime se traduz em leveza e delicadeza.
Não consigo deixar de pensar no primeiro princípio da estética de
Nietzsche (1999, p. 11): “O que é bom é leve, tudo divino se move
com pés delicados”. Mas essa já seria uma outra paisagem.
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49
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A vertigem do ato, a beleza convulsiva se aplainam.
A planície se faz até o horizonte. Caminhar ou não
caminhar parece ser indiferente. Quem há de notar
um ou dois passos? Mas é o que posso dar. Um, dois
passos. Não mais mágoa, ressentimento, não há nada
a confessar. Apenas as coisas. A janela. A criança se
esconde na pilastra. Um homem sozinho escreve no
fim de tarde.
A salvação pelas imagens
1
Para Andréa França
Às vezes é melhor
sorrir que imaginar
às vezes é melhor
não insistir e deixar rolar
e tratar as sombras com ternura
o medo com ternura
e esperar.
Lobão
D
iante da fragmentação das imagens televisivas e, mais
recentemente, das imagens virtuais, o cinema estaria na
encruzilhada de resgatar a lentidão (DELEUZE, 1992,
p. 126), a possibilidade de contemplação; aderir à lógica televisiva
ou buscar formas intermediárias entre as duas situações. A aposta
nessa última possibilidade é que nos interessa mais.
Diferente da estratégia marcante dos anos 1980 em que o
cinema se viu acoplado a um desejo de revisitação do cinema
clássico sob o signo do pastiche, do fascínio pelo cinema de
gênero; nos anos 1990, firma-se uma outra estratégia que, ao
invés de um cinema do cinema, cinema publicitário, cinema do
simulacro marcado pelo artificialismo, que resgata o cotidiano,
1
Versão anterior deste ensaio foi publicada em Cinema dos anos 90, organizado
por mim, Editora Argos, Chapecó, 2005.
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
pessoas e estórias simples, com imagens despojadas, presente
em Sexo, mentiras e videotapes (1989), de Steven Soderbegh,
filme paradigmático dessa guinada, e, como nos lembra Nelson
Brissac Peixoto (1991, p. 326), filme que encerrava a década de
1980 e a centralidade de um “voyeurismo socializado” e cinéfilo
(LABAKI, 1991, p. 9).
Entre os vários cineastas que me fascinam na década passada
o nome de Kieslowski vem em primeiro lugar, especialmente no
encerramento da trilogia em homenagem à Revolução Francesa,
seu filme-testamento, A fraternidade é vermelha (1994). Talvez
nenhum outro diretor, depois de Tarkovski, tenha construído
uma obra tão sustentada pelo tema do sagrado, por uma mundivisão espiritualizada, que encare o desafio heideggeriano: “Só
um Deus é que nos pode salvar. Resta-nos uma só possibilidade:
preparar, com o pensamento e a poesia, uma disposição para o
aparecimento ou para a ausência de Deus no ocaso ou seja para
sucumbirmos na vigência do Deus ausente” (HEIDEGGER,
1977, p. 81).
O que redime Tarkovski do seu obscurantismo ideológico
é seu materialismo cinemático, a gravidade pesada da Terra,
a corporalidade espiritual. O acesso ao espiritual se dá pelo
intenso contato físico e direto com o peso da Terra. O sujeito
entra no domínio dos sonhos quando abandona o peso do intelecto e se relaciona intimamente com a realidade material.
Tarkovski compõe uma espécie de “teologia material” (ZIZEK,
2001, p. 102-103).
Kieslowski não é um pregador do obscurantismo da nova Era.
Quando a ciência falha, a fundamentação religiosa também se
fragmenta (idem, p. 121). Também, e ainda mais, a salvação para
Kieslowski não está num outro mundo, mas está neste mundo,
na concretude da imagem, talvez por isso seu início de carreira
como documentarista sempre tenha ficado presente (MASSON,
1994, p. 15), evitando alegorias, simbolismos, metáforas fáceis
para tratar do invisível bem como clichês do cinema político para
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A salvação pelas imagens
tratar a realidade polonesa do fim dos anos 1980,2 da ascensão do
Solidariedade ao desmantelamento do Socialismo Real. A política
parece sutil pano de fundo, sendo substituída cada vez mais pelo
cotidiano empobrecido de construções pré-fabricadas. As questões
éticas descem de um plano abstrato, como no caso dos dez mandamentos bíblicos e das palavras de ordem da Revolução Francesa,
para um plano mais concreto, afetivo e atual. Isto se dá numa sutil
mudança de olhar, quando em A dupla vida de Véronique (1991)
passa uma estátua (se não me engano, de Lênin) sendo retirada de
seu lugar ou quando ocorre o encontro das duas protagonistas em
meio a manifestações estudantis. É como se Kieslowski dissesse: “Sei
que esses fatos existem, eles estão lá, mas não é deles que quero falar,
ou pelo menos, não diretamente”. Chega assim a ficar bem próximo
aos dilemas dos artistas brasileiros no processo de abertura do fim
dos anos 1970: o que falar quando não há mais censura, quando o
inimigo não é mais identificado? (STOK, 1993, p. 151-152).
Não por pudor ou censura, foi a fidelidade ao real que levou
Kieslowski a abandonar o documentário (ZIZEK, 2001, p. 71) e a
percepção de que nem tudo pode ser registrado (idem, p. 72), como
antídoto à proliferação incessante e obscena de imagens. Não se
trata de representar os ideais ou pensá-los de forma abstrata, mas,
ao recusar definir, Kieslowski circunscreve, usa traços sutis, indícios
desses valores confrontados com situações cotidianas (FRANÇA,
1996, p. 29). Como no caso da velha senhora que atravessa vários
filmes de Kieslowski em direção a um cesto de lixo para colocar uma
garrafa e finalmente consegue auxílio em A fraternidade é vermelha.
Ao contrário da mera pose, o gesto, que “nada mais é que o ato
considerado na totalidade de seu desenrolar, percebido enquanto
tal, observado, captado” (GALARD, 1997, p. 27), é uma “constante
nos filmes de Kieslowski, que revela o inexprimível, o indecidível”
2
Kieslowski é bastante consciente na sua recusa de falar de política, dando exemplo como “mostrar filas nas lojas, cartões de racionamento” (apud STOK, 1993,
p. 145).
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
(idem, p. 158). E esse gesto gratuito vale mais a pena ser dito do que
o registro das grandes transformações sociais (BRET, 1994, p. 50).
Talvez o compromisso ético, percebido no nosso mundo como
ridiculamente anacrônico, seja mais subversivo do que qualquer perversão (ZIZEK, 2001, p. 143). O tempo dos grandes acontecimentos
cede lugar ao tempo dos afetos, sem temer o sentimentalismo, nem
aderir a um populismo fácil que no fundo desconsidera o público.
“A paixão como a experiência do mundo visível é a exploração de
um invisível” (HEYNEMAN, 2000, p. 98).
Nesse quadro, a música do seu colaborador Preisner tem um papel fundamental ao falar do que não está em cena, mas é pressentido,
ao concretizar o invisível como possibilidade de unir o distante, o
aleatório, fundamental para diluir, enquadrar a narrativa dentro de
uma atmosfera em que “os atores atravessam a história enquanto os
objetos falam” (FANTUZZI, 2003, p. 100). Os objetos não funcionam
como desencadeadores de uma memória psicológica, mas revelam
na sua fragilidade um estado de espírito (FRANÇA, 1996, p. 30-31).
O uso de lentes, óculos, espelhos e vidros faz com que a realidade
apareça filtrada, às vezes distorcida, produzindo ligeiramente um
estranhamento, mas sem caminhar para a mera abstração.
Sem recusar os meios de comunicação de massa, nem aderir a
uma recuperação nostálgica3 e fundamentalista da fé, a experiência
do sagrado emerge do cotidiano e do banal. Quando a personagem
Valentine fala, no fim de A fraternidade é vermelha, no último diálogo com o ex-juiz, que algo está acontecendo sem dizer o que é.
Essa fala resume todo o impasse do cinema de Kieslowski: como
traduzir o invisível, o sagrado, o encantamento no mundo em que
vivemos.
A valorização de um encantamento pelo mundo não implica
escapismo, nem idealização do mundo, como podemos ver pelos
protagonistas desse filme, eles não podem servir como modelos
3
Fredric Jameson (2002, p. 140), de forma oposta, chama os filmes de Kieslowski
de “simulacros de religião como produtos nostálgicos” dentro de um processo
de estetização da religião, de uma “síndrome da Terceira Sinfonia de Gorecki”.
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A salvação pelas imagens
de pessoas sem problemas: Joseph Kern, um ex-juiz solitário atormentado pelo passado, e Valentine, estudante da Universidade de
Genebra e modelo, com uma relação difícil com o namorado e um
irmão envolvido com drogas. Sem dúvida, com toda a dor, temos
uma apresentação delicada do ser humano em que sua própria
fragilidade é sua maior força. Não são personagens épicos nem
trágicos, são personagens comuns, com vidas comuns, mas não por
isso são ridicularizados, patéticos. Há pouco humor em Kieslowski,
há piedade. A crença num mundo não está mais na utopia socialista,
como podemos ver em A dupla vida de Véronique. Num mundo em
transição, em que o passado evanesce e o futuro de uma sociedade
de consumo não parece alentador, a saída de Kieslowski é resgatar
um olhar estético sobre o mundo, que o captura no tempo e nos
seus detalhes (FRANÇA, 1996, p. 44 e 48).
A fraternidade é vermelha é um filme sobre o encantamento,
sobre a beleza, palavras que perdemos o hábito de pronunciar
sem a marca do cinismo ou da ironia. Trata-se da beleza que tem
valor ético, não de como julgar o que é certo ou errado, virtude ou
pecado, mas de o que fazer diante do mundo, como viver e não só
sobreviver. Em Kieslowski, o divino não é sempre visível, nem sua
presença evidente e o questionamento ético é temporal (CAMPAN,
1993, p. 51).
O cinema de Kieslowski é um cinema da crença e da aposta.
Sua delicadeza em A fraternidade é vermelha não aponta apenas
para um país estável, a Suíça, sem aparentes grandes problemas
políticos e econômicos. O encantamento não é um privilégio de
classe, mas traduz uma certa busca de equilíbrio, talvez um ideário contemplativo em meio ao frenesi da urbanidade. A busca é a
procura de um outro ritmo em meio ao mundo do trabalho e da
produção, dos afazeres, obrigações e horários marcados, como vemos em Valentine, tirando fotos, em aula de ballet, desfilando etc.
A busca é a procura de um outro olhar, de uma outra forma de vida.
A possibilidade de contemplar, de fazer da cidade uma paisagem é
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
mais uma atitude diante do presente do que uma nostalgia de um
mundo rural, mais lento.
Por mais que vivamos numa sociedade pós-Revolução Francesa,
que afirmou um mundo laico em detrimento de um mundo teocêntrico, o desafio de Kieslowski foi o de resgatar o que foi recalcado
nessa passagem. Não se trata de pensar o sagrado associado aos
grandes temas, a santos e a Deus. Isso a indústria das igrejas neopentecostais e da Nova Era já o fez à exaustão, mas de aproximá-lo
do cotidiano. Talvez mais do que um cinema do sagrado, estejamos
diante de um cinema do sublime e da conciliação.
Para o que nos interessa aqui, pensemos no sublime4 como o
inefável, o indescritível, o inomeável, e mais ainda, para além do
desatino, do horror, uma experiência de encantamento e fascínio.
Na tradição moderna, o sublime irá se encontrar não só em grandes
eventos, fatos históricos, mas no banal, no cotidiano, aqui neste
filme, povoado pelos meios de comunicação, telefones, jornais.
Como esquecer que uma das imagens mais impactantes do filme é a
de um outdoor, propaganda de chiclete que Valentine está fazendo,
recuperada no fim, no seu rosto captado por uma reportagem telejornalística? O outdoor e a televisão aparecem menos como “denúncia de utilização dos dramas de nosso tempo com usos mercantis”
(FRANÇA, 1996, p. 144) do que possibilidade de encantamento no
mais banal dos meios de comunicação de massa. Extrair o fascínio
do menor, do insignificante, do detalhe, do gesto imperceptível é
nesse veio que Kieslowski se situa, numa busca de uma leveza difícil
de ser mantida hoje em dia. Essa busca faz dialogar ética e estética,
faz da busca da beleza uma decisão de vida, não uma mera estetização,5 nem equivalência do belo com o bem, mas um entranhamento
na existência pela experiência estética, traduzida na possibilidade
de encontro com o mundo e com o outro. Cinema do sim, apesar
4
5
Como já foi desenvolvido anteriormente no ensaio “O sublime no banal”.
Procuro responder ao comentário de Walter Menon ao notar que tudo em Kieslowski, sobretudo nos seus últimos filmes, é bonito demais, cada momento é marcante
ou poderia ser. O que faz com que o banal se perca diante do esteticismo.
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A salvação pelas imagens
de tudo, sem temor de ser grandiloqüente. Talvez haja um momento
que não se possa recear sequer isso. A questão para Kieslowski é:
como se utilizar da imagem sem impor ao espectador o lugar de
um juiz, o lugar de um voyeur? como se utilizar da imagem sem
que ela imponha uma verdade? (idem, p. 14) “Se nos defrontamos
constantemente com alguma coisa que nos escapa, como nos restituir
o mundo, o eu, as palavras, as coisas?” (idem, p. 87).
A crueldade, o grotesco, a abjeção, a violência estão no mundo com toda sua força, mas há a possibilidade do encontro. Se
há um impasse, encarnado mesmo na solidão, na dificuldade da
conversação, há também a possibilidade do encontro casual, que
faz com que mais do que um filme de Kieslowski tenha uma estrutura dual, com dois protagonistas, estórias paralelas contadas
em montagens alternadas, mundos diferentes que se tocam. Como
apreender desses frágeis momentos de encantamento? O encontro
improvável, mas não impossível, entre Joseph Kern e Valentine é
um exercício de real aprendizado com a diferença, de diálogo em
meio ao excesso de informações e imagens. A fraternidade aí aflora
de forma bastante concreta quando estamos prontos para escutar
o outro (idem, p. 38).
Desde o início, somos convidados pelo cineasta para compartilhar do cotidiano de Valentine. Nada a ver com reality shows e
programas de auditório em que vemos pessoas se expondo num
grande espetáculo de variedade. O que a nós é oferecido é algo que,
por mais íntimo que seja, sempre é ambíguo e misterioso, delicado
e incompleto. No início do filme, Valentine diz ao namorado que se
sentira só na noite anterior. Somos convidados a ser companheiros
de vida dessa solidão que nos é oferecida como algo de muito precioso, se formos ainda capazes de aceitar essa oferenda.
Há uma aposta no diálogo e na conversação que, na falta de
grandes ideais e causas, fornecem as motivações para viver a vida
na sua precariedade, sempre pressentindo que há algo maior, que
não se traduz num estar-fora-do-mundo, ao contrário. O encontro dos personagens, marcados pelo acaso e pela deriva, sempre
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
aponta para uma maior presença no mundo. Mesmo no fim, após
o naufrágio do barco que conduzia não só o jovem estudante de
direito e a modelo, mas todos os protagonistas dos outros dois filmes
anteriores da trilogia, terminam com a possibilidade de encontro.
É a própria imagem da reportagem da televisão que os aproxima
diante do olhar do ex-juiz que assiste pela televisão.
Se em A dupla vida de Véronique há um paralelismo entre
as duas personagens, uma vivendo na Polônia, outra vivendo na
França, interpretadas pela mesma atriz e com nomes próximos, em
A fraternidade é vermelha, a estória do jovem estudante de direito
não é mera repetição da estória de juventude do ex-juiz, mas uma
aposta no presente, no encontro e no futuro, simbolizada pelos
filhotes nascidos da cachorra acidentada no início do filme.
O ex-juiz, ao contar sua estória silenciada há tanto tempo para
Valentine, liberta-se de um passado de mágoas. Passado e presente se
cruzam de tantas formas que o uso do acaso como um clichê romântico
ou elemento de uma narrativa fantástica acaba apenas por ser uma
possibilidade em meio a tantas que temos e, no domínio da ética, sustenta o jogo das imagens reticentes (CAMPAN, 1993, p. 118 e 125).6
Como nos lembra Badiou (apud HEYNEMANN, 2000, p. 99), toda
verdade depende do acaso de um evento e seu processo só pode ser
capturado pela via poética. Kieslowski está interessado no instante
preciso em que o mais insignificante dos fenômenos chama a atenção
do olhar e direciona/muda a vida (CAMPAN, 1993, p. 10). O que
traz conseqüências na narração. A busca de não fechar um filme
dentro de um esquema lógico, ideológico, moral é que está por
trás do gosto do acaso, da eventualidade que modifica (FRANÇA,
6
Para lembrar uma outra possibilidade de resgate do acaso, ver o trabalho de
Julio Medem, sobretudo Os amantes do Círculo Polar (1998), bem diverso dos
filmes hollywoodianos mais convencionais, como nos lembra Mark Cooper
(2002, p. 151) em sua análise de Sintonia de amor (1993), de Nora Ephron, em
que diferente dos filmes de Medem, fora dos EUA é o vazio, sua forma e conteúdos existem para conjurar o excesso espacial: “A estória de amor evoca uma
multiplicidade de espaços no sentido de fazer a partir da segurança, destino e
resolução uma homogeneidade espacial”.
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A salvação pelas imagens
1996, p. 15). No acaso como fio condutor, a ação é substituída pela
perambulação (DELEUZE, 1985, p. 245-246) e a imagem, como
na crise da imagem-ação, na passagem do cinema clássico para o
cinema moderno, não remete mais a uma situação globalizante ou
sintética, mas dispersiva (idem, p. 254). O acaso e o destino não
ecoam sequer uma nostalgia da unidade perdida, diferente de outros
discursos de retorno do sagrado hoje em dia.
O acaso presente no próprio encontro entre o ex-juiz e a modelo, propiciado quando ela atropela a cadela do ex-juiz e vai devolvê-la, não diz respeito ao encontro romântico e improvável que
termina com o “felizes para sempre”, afirmando a inevitabilidade
de almas gêmeas se encontrarem. Aqui nem ao menos sabemos
se é uma estória de amor. Algo se passa entre os dois, certamente
uma experiência transformadora. O ex-juiz começa a se interessar
mais pelos outros, para além de ser mero espectador do drama do
mundo, sai de casa, assiste TV. Valentine também é capaz de gestos
que não esperava, como ligar e desejar a morte para o traficante,
vizinho do juiz. Para além do bem e do mal, cada ato implica uma
suavidade e uma crueldade. Uma injustiça pode se revelar justa,
bem como o contrário. Não há nada que possamos fazer a não ser
estar à altura de cada momento, de cada decisão. A cada fato, outro
inesperado acontece. Para reencontrar Valentine, mas não só por
isso, o ex-juiz se denuncia. Ele sai da indiferença e passa a esperar
algo. E “despertar uma disposição de espera é o máximo que se
pode fazer” (HEIDEGGER, 1977, p. 81).
No fim, ainda que Valentine não fique com o juiz, há a possibilidade de um novo encontro, para os dois e com outros, com o mundo.
O juiz que se aposentou após julgar culpado o ex-amante da única
mulher que tinha amado, se redime da mágoa que o acompanhava
dessa desilusão. Não mais tinha amado outra pessoa até o encontro
com Valentine. O olhar do juiz que encerra o filme é um olhar
de cuidado, de uma espera serena (HEIDEGGER, [s. d.], p. 25 e
57) e atenta ao mundo, olhar que não leva à passividade, como
o olhar solidário e fraterno de Valentine seja diante do próprio
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
juiz, seja recolhendo a cachorra atropelada. É o mesmo olhar que
o diretor parece ter com todos os protagonistas dessa trilogia, ao
salvá-los, entre os 1.400 passageiros da balsa que naufraga no canal
da Mancha.
Joseph Kern deixou de ser juiz por não acreditar mais na sua
capacidade de julgar, por não acreditar mais num mundo marcado
pela moral do julgamento, por não acreditar mais simplesmente.
Quando Valentine o encontra, ele vive uma vida isolada, indiferente em relação a tudo e a todos, a não ser o prazer de escutar
conversas telefônicas, numa espécie de flânerie sonora sem sair do
lugar, na ilusão que poderia conhecer mais as pessoas ao devassar
sua intimidade, mergulhando na crueldade de um mundo desesperançado. O encontro com Valentine é a volta a um mundo da
luz, como fora quando se apaixonara há muito tempo. A própria
aparição de Valentine é marcada por um estranho, inesperado raio
de luz que a ilumina em meio à penumbra da casa do juiz, ao mesmo
tempo concreto e transcendente, que suspende momentaneamente
a narrativa.
O juiz passa da culpa, do remorso, da mágoa e da indiferença
para um mundo marcado pela vitalidade, pela ética entendida
como conduta diante do mundo, como agir o melhor que se possa
em cada situação, mas, sobretudo, não recalcar, mas se deixar levar
pelo esquecimento do mundo, para talvez ser mais livre. Diferente
de Dora, em Central do Brasil (1998), de Walter Salles, esse outro
filme de resgate do encontro, em que temos a redenção da mágoa
pela nostalgia, aqui há um vislumbre de um outro viver, um outro
mundo, do estar além da mágoa, das perdas, como em O doce
amanhã (1997), de Atom Egoyan, Felizes juntos (1997) de Wong
Kar Wai, e O fim de um longo dia (1992), de Terence Davies, todos
filmes dos anos que compõem uma constelação de um cinema da
delicadeza, de um sublime no banal.
Talvez fosse interessante, fazendo um parêntese e uma contraposição final, comparar a estratégia de Kieslowski na busca de
um sublime no cotidiano à de Julio Bressane (TEIXEIRA, 2003).
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A salvação pelas imagens
Bressane é fiel ao cinema moderno até hoje, embora estabeleça
alguns deslocamentos para longe da matriz do Cinema Marginal
a que esteve vinculado no início de sua carreira e seu gosto pelo
abjeto em direção ao resgate de um encantamento pela imagem,
que nos interessa sobretudo no resgate de duas figuras históricas:
padre Antônio Vieira e são Jerônimo. O caótico vira suave ironia,
brincadeira; da violência urbana contemporânea, migramos, não
para um passado morto, mas redivivo, sempre capaz de retornar
pela sua força. Ao invés do interesse de Kieslowski pelo banal,
apresentação de grandes nomes da cultura, projeto ambicioso, mas
sem complexo de inferioridade, nem “necessidade de radiografia
sociológica do Brasil” (PEREIRA, 1999, p. 86) ao recuperar tanto
Nietzsche quanto Lamartine Babo, tanto Isadora Duncan quanto
Oswald de Andrade, para citar figuras, fantasmas de outros filmes,
como acontece na música: Bach é vizinho de Caetano Veloso, Wagner
próximo a um samba. Mesmo o deserto de São Jerônimo (1999) é
recriado no sertão nordestino. Da Turin de Nietzsche pode-se ver
o Pão de Açúcar, não como mais um elemento de cenários, nem só
fragmentação antropofágico-tropicalista do arcaico e do novo, do
estrangeiro e do nacional.
Contudo, uma paisagem atravessa a obra de Bressane: o mar.
Só substituído pelo deserto em São Jerônimo, ambas imagens da
infinitude possível. Ainda assim, o deserto aparece como “oceano
de luz” (BRESSANE, 2000, p. 13), e “o mundo material é a luz em
si” (idem, p. 12), recuperando toda a preferência da escola francesa
pela água (DELEUZE, 1985, p. 60), em que tudo existe para a luz
(idem, p. 62). Diferente do Expressionismo, em que o sublime está
no reencontro com o infinito no espírito do mal (idem, p. 72), nessa
tradição impressionista, o sublime está na luz e no movimento.
A água aparece como promessa ou a indicação de um outro estado de
percepção, uma percepção mais que humana, não mais talhada nos
meios sólidos (idem, p. 105), não o mar romântico, nostálgico, mas o
mar material concreto, passando por La mer, de Debussy, As ondas,
de Virginia Woolf, e Wavelength (1967), de Michael Snow.
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
Já o deserto, ao invés de sua representação contemporânea em
filmes como Paris, Texas (1984), de Wim Wenders, ou mesmo em
Antonioni, não se trata apenas da ausência da imagem, da recusa
do sentido; ele é recuperado no seu sentido radical, talvez mais
tradicional, como “privilegiado centro de percepção dos rumores
e ecos da inquietação espiritual” (BRESSANE, 2000, p. 61). Talvez,
por isso, Bressane pareça em São Jerônimo mais hierático e canônico
diante do sagrado do que Kieslowski, no caminho de uma escrita
da imagem, “lugar do neutro, não mais linguagem cinematográfica
ou literária, [que] exige a morte da linguagem, do estilo e do ator.
A escrita da imagem no cinema é a escrita do tempo, do pensamento
e da sensação (COSTA, 2001, p. 190), em que a imagem, a partir
de Blanchot, não é um substituto representacional do objeto tanto
quanto um traço material ou resíduo do fracasso do objeto em desaparecer totalmente (SHAVIRO, 2000, p. 17); a imagem não como
sintoma de falta, mas “estranho e excessivo resíduo que subsiste
quando tudo está faltando”, “não o índice de algo que está faltando,
mas a insistência de algo que se recusa a desaparecer”, “banalmente
auto-evidente e autocontida, mas sua superficialidade e obviedade
é também um estranho espaço em branco, uma resistência ao fechamento da definição ou a qualquer imposição de sentido”, “nem
verdadeira nem falsa, nem real nem artificial, nem presente, nem
ausente”, “radicalmente desprovida de essência”, “simulacros vazios,
cópias sem original” (idem, p. 17). Não o cinema da verdade, mas
a verdade do cinema (DELEUZE, 1990, p. 185-186).
Nesse contexto, sobretudo em São Jerônimo, é que podemos
ver o diálogo com a pintura como alternativa ao sentimento de
redundância do cinema narrativo, marcado pela hegemonia da
televisão (AUMONT, 1995, p. 1-2), como também o fazem Passion
(1982), de Godard, A hipótese do quadro roubado (1978), de Raul
Ruiz, Il sol del membrillo (2000), de Victor Erice, e A bela intrigante
(1991), de Jacques Rivette. O fascínio pela paisagem e por planos
estáticos articula esse diálogo, não tanto devido a citações de
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A salvação pelas imagens
quadros específicos, mas por colocar questões “como o que acontece
diante de um olhar prolongado?” (idem, p. 58).
***
O cinema de Kieslowski me lançou num impasse, numa espera.
Quando numa mostra de seu trabalho, foi anunciada sua morte, a
sensação primeira foi de desamparo. Menos delicadeza no mundo,
me dizia. Lá se foram alguns anos, Irene Jacob, sua musa maior,
andou por produções norte-americanas medianas. Paraíso (2002),
um roteiro de Kieslowski, parte inicial de nova trilogia, virou filme
pelas mãos de Tom Tykwer, diretor de outro filme importante dos
anos 1990, Corra, Lola, corra (1998), mas a pergunta que sua morte
deixa não é a mesma solidão de Godard ou de Bressane, cinemas
do fim, fim do cinema, é, sim, uma pausa, uma suspensão, um
canto de onde talvez se possa observar o que vivemos e sentimos,
nossas faltas. Chegamos a um porto seguro, mesmo que provisório,
ilusório e precário, antes da próxima tempestade. Talvez o cinema
de Kieslowski envelheça, não sei, mas a cada vez que o revejo, a
emoção se renova. Enquanto houver uma esperança de uma vida
bela em toda a sua plenitude, o nome de Kieslowski ainda ecoará.
Eu acredito.
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67
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O vento nas árvores visto pela vidraça não tem barulho.
Os galhos, as folhas suaves se movem. Uma onda verde
cruza o ar. Não me pertencem. Estou do outro lado.
Elogio da leveza
1
Para Adalberto Müller
Pairo no ar ao silenciar meu canto.
O vôo sai das gargantas, e não das asas.
Fabrício Carpinejar
C
omo falar de leveza hoje em dia? Perder peso seria uma adesão
à velocidade ou à possibilidade de pausa? Parto da idéia simples
de que a leveza estabelece um diálogo constante com o peso,
para que saibamos tanto voar como cair, tanto mover como repousar
(BACHELARD, 2001, p. 22). Para além de avaliações subjetivas, de
gosto, a leveza se apresentaria mais como um destino, uma procura,
do que um conceito rigoroso. A partir de algumas imagens, podemos
contar estórias e impressões que envolvem seu elogio, sem nunca
aprisioná-la. Defini-la seria como querer pegar água com as mãos.
O melhor sempre escorre. Talvez um método, um caminho melhor,
como sugere Ítalo Calvino, seria não olhá-la, sem esquecer de que há
uma presença indelével em tudo o que se possa falar sobre a leveza.
Me vejo de repente, sempre à procura da leveza, primeiro na
melancolia, “a tristeza que se tornou leve” (CALVINO, 1997, p. 32),
agora no que chamei de sublime no banal, um sublime em tom
1
Versão deste texto será publicada em De olho na imagem — Cinema e audiovisual,
organizado por Tânia Montoro para a Editora Universidade de Brasília.
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
menor traduzido em um mergulho no esquecimento, memória
evanescente, recusa do ressentimento, renascimento no devaneio, o
sonho tornado leve. Diferente do sublime, que possui uma espessura
filosófica, a leveza ainda não a tem. Talvez, por isso mesmo, podemos entendê-la mais como uma categoria que emerge sobretudo
dos discursos poéticos, mesmo quando são de pensadores como
Nietzsche, Bachelard e Serres.
O mérito de Calvino ao colocar a leveza como o primeiro valor
a ser preservado no nosso milênio é uma lição de humildade e de
generosidade, para só levarmos o essencial, o que pudermos carregar
e o resto deixarmos de lado (CALVINO, 1997, p. 41). Na sua mais
bela palestra, Calvino defende a leveza, de forma bastante concreta,
que implica mesmo procedimentos formais, como um despojamento
da linguagem (talvez contra toda uma literatura barroquizante, de
excessos) e o uso de uma narração sutil (idem, p. 29-30).
Ao considerar a leveza de forma positiva, Calvino já se diferencia
de todo artista que confunde peso com importância e densidade
com sisudez. Calvino tem até um certo pudor ao afastar a leveza do
pensamento, “a vivacidade e a mobilidade da inteligência” (idem,
p. 19) da mera leviandade, superficialidade (idem, p. 22), como
depois, em outra palestra, terá em elogiar a rapidez, definida pela
agilidade, desenvoltura, mobilidade, sem negar os prazeres da lentidão (idem, p. 59), nem se deixar confundir com mera vertigem
midiática que reduz e homogeneiza tudo (idem, p. 58). O mais importante é que radicaliza as conseqüências de tirar o peso das coisas,
lugares e personagens como estratégia para resgatar a narrativa de
todos aqueles que a vêem morta, sem sentido.
A leveza representa não só questões formais, mas um estar
diferenciado no mundo. Em Milan Kundera, por mais que haja um
drama da leveza que perdoa tudo, mesmo as maiores atrocidades
históricas sob o véu da nostalgia (KUNDERA, 1985, p. 10), há
“a insustentável leveza do ser” no protagonista de seu romance
mais conhecido, que acaba por se transformar num “inelutável
peso do viver” (CALVINO, 1997, p.19); há uma alegria ao se
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Elogio da leveza
resgatar a narrativa capaz de lidar com o mundo que nos escapa
entre os dedos, diante de nós. Trata-se de buscar uma nova aventura tão antiga como as lendas e mitos, tão nova como o mundo
da informação, um mistério que emerge mesmo de um mundo
transparente e claro. Existe um desígnio solar nesse resgate, um
fascínio diante do mundo tal qual ele é, por mais maravilhosas,
fantasiosas, incomuns que sejam algumas das ficções de Calvino. Ou mesmo em resgatar a história “tão leve quanto a vida do
indivíduo, insustentavelmente leve, leve como uma pluma, como
uma poeira que voa, como uma coisa que vai desaparecer amanhã”
(KUNDERA, 1985, p. 224).
A leveza de Calvino é uma força menor, para brincar com o livro
A força maior, de Clément Rosset, uma prima modesta da alegria
nietzschiana, mais discreta, menos trágica, menos marcada pelo
discurso da potência e mais pelo da sutileza. Se o eterno retorno
evoca uma dimensão trágica, a leveza de algo que não volta possibilita colher insignificâncias, levar a brincadeira a sério, sem temer
o sentimentalismo, por sabermos que “antes de sermos esquecidos,
seremos transformados em kitsch. O kitsch é a estação intermediária
entre o ser e o esquecimento” (KUNDERA, 1985, p. 279). Como na
ascensão final dos protagonistas em fuga de Paraíso (2002), de Tom
Tykwer, a partir de roteiro de Kieslowski, belo exemplo de alegria
aérea, que é, sobretudo, a liberdade (BACHELARD, 2001, p. 136).
Tantos momentos, encontros. Tantas fugas, pausas. Esses e os que
hão de vir. Agora e aqui, suspensos no ar transparente. Apenas uma
luz emerge pura, como no início dos tempos. O dia avança. Nada
a desejar a não ser o mover imóvel do helicóptero. Todos os anos
passados e por vir se elevam. Não evanescem, concentram-se. Todas
as horas, todos os sentimentos. “Um dia sobre nós também/vai cair
o esquecimento/como a chuva no telhado/e sermos esquecidos/será
quase a felicidade” (LEMINSKI, 1991, p. 91).
A alegria aérea também pode ser vista como a superação do
medo do vôo, uma libertação do passado, como em A arte de subir
em telhados, da Armazém Companhia de Teatro, ou em Os sonhos
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73
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
de Einstein, da Intrépida Trupe, síntese de uma trajetória, bem como
em toda uma família de companhias de dança contemporânea, que,
distantes tanto de uma herança pesada do teatro quanto de uma
assepsia minimalista, mantêm a suavidade do ballet clássico sem o
fechamento das formas, de Paul Taylor, David Parsons a Mark Morris
e Shen Wei, quando não o próprio bailarino se dilui na coreografia,
na construção de esculturas e paisagens pop, como nos melhores
trabalhos de Philobolus, no delicado encontro amoroso nos ares em
Star-cross’d, presente também nas performances do Momix, desde
Opus cactus a Lunar sea, em que seres em movimento são feitos
para dançar para sempre na gravidade zero, seres de um devaneio
de uma noite de luar.
Para um terrestre tudo se dispersa e se perde ao deixar a
terra, para um aéreo tudo se reúne, tudo se enriquece ao subir
(BACHELARD, 2001, p. 50), como o protagonista de Mr. Vertigo,
de Paul Auster, menino que aprende a voar e só se encontra no
ar (AUSTER, 1994, p. 66). Mesmo após a queda, como em todo
personagem que voa alto, literal e metaforicamente, resta ainda
um aprendizado, um resgate positivo da leveza como invisibilidade, não como opressão, anonimato mediocrizante, mas como
um outro tipo de subjetividade:
Precisamos aprender a parar de sermos nós mesmos. É aí que começa,
e tudo mais continua deste ponto. Devemos evaporar, deixar nossos
músculos se entorpecerem, respirar até sentir a alma sair de nosso
corpo. E depois fechar os olhos. É assim que se faz. O vazio dentro
de nosso corpo se torna mais leve que o ar ao redor. Aos poucos, começamos a pesar menos do que nada. Fechamos os olhos. Abrimos
os braços. Evaporamos. E então, aos poucos, subimos no ar. Assim
(AUSTER, 1994, p. 284).
A leveza está mais próxima do prazer barthesiano (BARTHES,
1999, p. 7) que se desloca sem cessar, para não se acomodar, reificar;
que, ao invés de enfrentar, como Perseu diante da Medusa (CALVINO, 1997, p.16-17), muda de posição, mas não deixa de olhar a
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Elogio da leveza
monstruosidade da realidade. Ao invés da simples fuga, a leveza é
mais um mergulho no mundo. Frente a uma arte do estardalhaço
e do escândalo, na mídia, nas polêmicas, a discrição como prática,
traduzida de forma exemplar em Nelson Freire, de João Moreira
Salles (2003). O silêncio e a cegueira aparecem não como negação
do mundo, mas forma de ouvir melhor, ver melhor. “Não quero fazer
guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar!
E, tudo somado em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que
diz Sim!” (NIETZSCHE, 2002, p.188). Uma posição discreta, não
do cínico ou cético distante, mas de um companheiro de jornada,
que não vai nem na frente, nem atrás, apenas ao lado, solidário.
Até onde pode levar a leveza? Como saber se ela já não acabou?
E por todos os dias e horas que virão não se deixar abater antes do
tempo. Ter ainda a curiosidade da criança, do viajante, do anjo,
esses mensageiros da leveza no nosso mundo. Sem saber o que virá,
mas buscar a força do presente, das coisas do mundo. Buscar as
“paisagens efêmeras” marcadas por “motivos irregulares e leves: ar,
nuvem, gás ou bruma” (GLUCKSMANN, 2003, p. 64) que traduzem
toda uma sutileza de afetos, como em Além das nuvens (1995), de
Michelangelo Antonioni e Wim Wenders. Por mais que tudo tenha
passado rápido demais, foi esse o momento e não outro. Há uma
salvação pelas fragilidades e precariedades, não por verdades acabadas, sistemas fechados, pesados. Por mais que o mundo nos pese,
ainda resta uma brecha, nem que seja para rirmos de nós mesmos,
de onde estamos, até onde caímos. E neste riso, num gesto tolo,
num ato gratuito, voa algo que não se pode prender.
Mas retomando a questão inicial: afirmar a leveza não seria
afirmar o mundo da rapidez, da informação e da ausência da memória? A leveza apenas diria do mundo como ele é e cada vez mais
é? Sem amarras, soltos e sós, mariposas esvoaçando batendo umas
contra as outras e contra a luz até que não haja mais luz? Talvez,
mas pensaria uma outra imagem. A cada batida a mariposa deixa
partes de seu corpo até não ser mais que luz, incêndio e cinzas.
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75
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
Quem haveria de dizer que foi de todo em vão, se houve tanta
violência, mas tanta beleza, no caminho, até o fim? Nós que, como
Calvino, somos melancólicos em busca da alegria, saturninos que
desejamos ser mercuriais (CALVINO, 1997, p. 65), poderíamos pedir
modestamente, todos os dias, “mais leveza”, como uma promessa e
prece, presença e utopia.
Haveria uma leveza no efêmero (GLUCKSMANN, 2003, p.16),
na rapidez, uma leveza da dissolução, em que o próprio movimento
rarefaz qualquer possibilidade de contato, ou pelo menos reduz
tudo ao movimento? De obras futuristas a filmes como Corra,
Lola, corra (1998), de Tom Tykwer, muito haveria para se dizer.
A celebração da velocidade como império da máquina é difícil de
se sustentar hoje em dia, mas há o fascínio, o êxtase mesmo da diluição, no ritmo mesmo acelerado de qualquer festa, dança, como
ouvindo gradualmente a intensidade da música até entrar no club,
num novo milênio, numa nova vida em Millenium mambo (2001),
de Hou Hsiao Hsien.
Essa leveza na rapidez pode também se radicalizar na leveza
da viagem de tantos road movies, no se deixar ser estrangeiro, sem
raízes, ser outro constantemente até se perder, como Profissão:
repórter (1973), de Antonioni. Deixando a melancolia de lado,
procuramos a “alegria estrangeira” (KRISTEVA, 1994), que faz
do próprio exílio, desterramento, uma espécie de encontro, um
pertencimento aéreo, uma casa móvel, mais gregária do que geográfica. Ou ainda, se há um “efêmero melancólico, constitutivo do
barroco histórico ou do moderno (Baudelaire, Benjamin, Pessoa
etc.)” (GLUCKSMANN, 2003, p. 27) “que revive e reatualiza sem
fim o passado e seus traços” (idem, p. 61); há, “de outra parte, um
efêmero positivo, mais explicitamente cósmico, que atravessa já a
história do olhar na França do século XIX (cf. Monet) e que me
pareceu servir de ‘ponto’ teórico e estético entre a Ásia e o Ocidente”
(idem, p. 27), “que integra, aceita e transforma a ‘fluidez’ dos fluxos
eletrônicos, mudando seus efeitos e criando imagens-fluxo que
tentam ignorar a ‘urgência-simulacro’ do mercado” (idem, p. 61).
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Elogio da leveza
“Um efêmero sem melancolia, que retrabalharia, no precário e no
frágil, os extratos do tempo, suas paisagens, suas feições e seus
imaginários” (idem, p. 73).
Se Calvino preferia a leveza do pássaro à leveza da pluma,
preferindo a precisão e a determinação em detrimento do vago e
do aleatório (CALVINO, 1997, p. 28), poderíamos pensar as duas
levezas como complementares. A leveza do pássaro é uma leveza
da ação, da vontade afirmada, da narrativa precisa, do trajeto estabelecido, que vê de uma certa distância, transformando a paisagem
em mapa; enquanto a leveza da pluma no ar, da espuma no mar é a
leveza da deriva, incerta, cheia de surpresas e marcada pelo acaso,
no seu próprio caminho, leveza que aceita a realidade de perto, sem
restrições e ainda sim se alegra, tão presente nas manifestações que
incorporam o acaso, o momentâneo, o fugaz. Mas não só.
Essa segunda leveza decorre mesmo da pausa, do silêncio. Há
muito ruído, desejo de comunicação travestido de excesso de informação. A leveza no cotidiano, do pequeno gesto, das pequenas
coisas. A leveza que aguarda e guarda o mundo na sua impureza.
“Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la/(...) Guardar
uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por/admirá-la, isto é, iluminá-la
ou ser por ela iluminado./(...) Por isto melhor se guarda o vôo de
um pássaro/Do que um pássaro sem vôos” (CICERO, 1996, p. 11).
Leveza presente mesmo em meio ao maior descontrole. Em meio
ao delírio, do mundo, caminhar como à beira de um lago plácido.
Não indiferença, mas uma inocência, um destino ou uma escolha,
uma conquista quando nada mais esperamos, quando já sofremos o
peso da existência. Na serenidade heideggeriana, ao deixarmos ser
atravessados pelo mundo sem que nos dissolvamos de todo, ou na
meditação Zen-Budista que intensifica o estar-no-mundo, imprimimos uma direção discreta, como numa tempestade em alto-mar,
em que se debater em demasia, fazer mais, pode apenas antecipar
o naufrágio. Saber flutuar, posicionar-se em meio à deriva, uma
meta. Insistir uma vez mais diante da sedução do peso, do êxtase
do naufrágio. Levantar os olhos quando toda a realidade parece ser
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
o fundo, a queda. Esquecer para poder se deslocar, desvencilharse do peso das mágoas, dos ressentimentos, do passado, da perda
como em Doce amanhã (1997), de Atom Egoyan. A criança é o pai
do homem sereno. É um reaprender, quando podíamos nos afundar
e ousamos voar, como um Ariel liberto do Próspero, é parte dele
mesmo que se liberta.
A leveza é o antídoto para a melancolia. Frente à dor suave, do
passado que não passa, a modesta alegria simplesmente por viver,
não por ter ganho algo. Não resistir ao apequenamento das coisas
e pessoas. O retrato embaçado. A água saindo pelo ralo. A poça
onde antes era um mar. Um momento onde antes era toda a vida,
o que importava. A leveza da deriva, a liberdade frente ao peso da
orfandade. Vestígios de desejos tardiamente percebidos. Encanto
ao conseguir lembrar feliz as perdas. Suave delicadeza de um ocaso.
“Antes de desaparecer totalmente do mundo, a beleza existirá ainda
alguns instantes, mas por engano. A beleza por engano é o último
estágio da história da beleza” (KUNDERA, 1985, p. 107). Uma última
imagem da leveza, uma “filosofia do apagamento” (BACHELARD,
2001, p. 171). “O mundo é belo antes de ser verdadeiro. O mundo é
admirado antes de ser verificado” (idem, p. 169), mundo de “extrema
solidão em que a matéria se dissolve, se perde” (idem, p. 171).
A felicidade fácil nada prova a não ser a generosidade da vida
para quem a recebe. Ser feliz em meio a tormentas é o desafio e o
aprendizado. Quando nada ou pouco satisfaz, retirar a força da
dor. Sorrir diante da luz que cega. Cantar quando o tapa humilha.
Caminhar delicadamente diante das vaias. Diante do abismo resistir
ao mergulho na loucura, no suicídio, no útero da morte. Caminhar
diante do peso das coisas, com a leveza na alma.
Referências
AUSTER, Paul. Mr. Vertigo. São Paulo: Best Seller, 1994.
______; CORTANZE, Gerard de. La solitude du labyrinthe. Paris:
Actes Sud, 1997.
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78
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Elogio da leveza
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. 5. ed. São Paulo: Perspectiva,
1999.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. 2. ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.
CICERO, Antonio. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.
GLUCKSMANN, Christine Buci-. L’ oeil cartographique de l’ art.
Paris: Galilée, 1996.
______. L’ esthétique du temps au Japon. Du zen au virtuel. Paris:
Galilée, 2001.
______. Esthétique de l’ ephémère. Paris: Galilée, 2003.
HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget. [s. d.]
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros a nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco,
1994.
KUNDERA, Milan. A insustentavel leveza do ser. 20. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
LEMINSKI, Paulo. La vie en close. 2. ed. São Paulo: Brasiliense,
2001.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
ROSSET, Clément. A alegria: a força maior. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2000.
SERRES, Michel. A lenda dos anjos. São Paulo: Aleph, 1995.
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Hoje não tenho norte. Vou pra casa. O mundo se faz
paisagem, mesmo que não veja o que há para fora da
janela. Motocicletas, carros. O pequeno sino toca na
entrada da porta. Todos dormem. Desliguei a televisão.
O sono vem. O sino volta e meia toca. Ondas batem
na praia. As pedras entram no mar. Céu nublado. As
ondas. Outra motocicleta passa. As espumas morrem
na areia. Nada fere. A cada momento vou me retirando.
Há ainda tempo.
Poética do cotidiano
1
Para Asdrubal Borges
Eu bem gostaria de prometer-lhes —
a vida real.
Sérgio Nazar
S
e a utilização do cotidiano já era uma arma política proposta
por Benjamin contra o sublime apropriado pelo espetáculo
fascista (MORICONI, 1998, p. 53), propor uma poética do
cotidiano para a contemporaneidade, quando este é dilacerado
pelas transformações urbanas e midiáticas, implica enfrentar o
embate ético e estético de pensar os espaços e as narrativas da
intimidade, especialmente o da casa. Sem repetir a crítica comum
de que, por não estar inscrita imediata e diretamente na estrutura
produtiva, a cotidianidade seja “despolitizada e assim considerada
irrelevante, in-significante” (BARBERO, 2003, p. 301), compreendida como espaço de alienação no capitalismo reificador, ou parte
de uma cultura do “intimismo à sombra do poder” (COUTINHO,
1990, p. 30), também procuraremos evitar sua celebração acrítica
e populista como espaço de prazer, e, portanto, naturalmente
de resistência (SILVERSTONE, 1997, p. 161-163). Sem aderir
1
Versão anterior deste texto será publicado em Comunicação e experiência estética,
organizado por César Guimarães, Bruno Souza Leal e Carlos Camargo Mendonça,
pela Editora UFMG.
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
necessariamente à politização do cotidiano proposta pelos situacionistas (GARDINER, 2000), nem por vários movimentos
minoritários, é importante reafirmar com Bakhtin que “a imaginação prosaica pode entender a completude, a contingência,
a complexidade e a ‘confusão’ da vida cotidiana e reconhecer
o próprio fenômeno da diferença e da alteridade” (apud idem,
2000, p. 52), sem pretender que o cotidiano seja, como para Henri
Lefebvre “um tecido conectivo de todos os pensamentos e atividades humanos” (apud idem, p. 2), ou seja, uma nova totalidade.
Mas simplesmente afirmar ou lembrar que o nosso mundo não
é “totalmente administrado, colonizado pela reificação” (idem,
p. 15), o que já seria um gesto profundamente político.
Para avaliarmos as possibilidades dessa poética do cotidiano
é que temos de enfrentar o problema do Real. O que fazer quando
o Real se transforma mais e mais em experiência midiática? Seria
o Real o último espetáculo, como afirma Zizek (2003, p. 31), ou
o fim da sociedade do espetáculo, como aponta Baudrillard? Essas
questões nos serviram como um pano de fundo para marcar nosso
interesse nesse debate sobre a questão do Real na arte contemporânea
a partir da presença dos meios de comunicação de massa não só
como técnica ou mercadoria, mas experiência, afeto, memória.
A paixão pelo Real (ZIZEK, 2003, p. 19) se traduziu no século
XX como alternativa ao centramento da utopia no século XIX e
à realização direta da esperada nova ordem, a coisa em si. O Real
em sua violência extrema dissolve o corpo em carne, o mundo
em matéria, presente tanto na pornografia quanto no terrorismo.
Estratégia afirmadora, mesmo quando desesperada, da realidade,
contra a angústia insuportável de se sentir inexistente (idem, p. 24),
mesmo quando culmina no seu oposto aparente, num espetáculo
teatral (idem, p. 23). A paixão pós-moderna do semblante termina
numa violenta volta ao Real (idem, p. 24), numa crítica no que as
estratégias do simulacro, como revela a parte mais popular dos trabalhos de Baudrillard, possam ter de desmobilizadoras (CHIARA
2004, p. 23).
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84
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Poética do cotidiano
Podemos ainda ver, a partir de Mario Perniola (2002, p. 17),
duas tendências opostas na arte: uma dirigida à celebração da aparência, tendo como atitudes estéticas a catarse e a desrealização;
outra, orientada para a experiência da realidade, pensando a arte
como perturbação, fulguração, choque. Na primeira, a tarefa da
arte estaria em se distanciar da realidade e liberar de seu peso, e na
segunda, sua tarefa seria a de proporcionar uma percepção mais
forte e intensa da realidade.
Em contraponto e em diálogo com uma estética do artifício
centrada no simulacro, que teve seu apogeu nos anos 1980 (LOPES,
2002, p. 104-110), nos anos 1990, a irrupção do Real apareceria
não como a representação mais verídica e possível da realidade e
sim como uma exposição direta e pobre em mediações simbólicas
que suscitam horror, aversão, abjeção, centrada numa experiência
perturbadora em que o corpo aparece com máximo de destaque
(PERNIOLA, p.18), mesmo no encontro do ser humano com a
máquina (idem, p.18-19).
Portanto, temos que enfrentar o problema do Real, menos por
uma perspectiva forte nos estudos cinematográficos e no cinema
desde pelo menos Bazin (1987, p. 271-272) — ao associar o real ao
uso do plano-sequência que valoriza a continuidade e à profundidade de campo2 —, e o Neo-Realismo — pelo uso de filmagens ao
ar livre e de atores não-profissionais — do que como entendido por
debates sobre os rumos da arte contemporânea, nos últimos dez
anos, sintetizados pelo mote/slogan “volta do Real”.
Essas discussões devem ser compreendidas em um quadro mais
amplo do que o da arte, como uma estratégia de atuação. Trata-se
de encarar nosso mundo com todas as suas precariedades ao invés
de nostalgias, pastiches, estética do simulacro, que nos enredaram
e nos enredam em auto-referências, citações. Trata-se pelo menos
de uma estratégia de arejamento diante da virada semiótica e
2
Para uma bela leitura do Real no cinema contemporâneo a partir da obra de
Kiarostami, ver ISHAGHPOUR, 2000, bem como o livro mais recente de JeanClaude Bernardet (2004). Ver também MARGULIES, 1996.
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85
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
textualista dos anos 1970, afastando-se não só da arte moderna,
mas da crítica gerada a partir dela (FOSTER 1996, XIV).3
A cena desse retorno do Real, ao menos nos anos 1990, seguiria o caminho não tanto do resgate das neovanguardas, como na
perspectiva de Foster (idem, XVI), encarnadas no minimalismo,
tão caro a ele e a vários críticos de sua geração, mas, sobretudo, o
do Real midiático constituído pela cultura contemporânea.4 Como
o próprio Foster reconhece, a reconexão entre arte e vida aconteceu
nos termos da indústria cultural, não das neovanguardas (idem,
p. 21). Nosso desafio agora não parte mais tanto de uma convicção,
de um enraizamento na alta modernidade.
A volta do Real em Foster aponta para pelo menos dois caminhos
em contraponto ao paradigma do texto: primeiro, a volta do Real
como trauma, traduzido em corpos violados e numa estética do
excesso e do abjeto. Entendendo o traumático como um encontro
perdido com o Real (idem, p. 132). Enquanto tal, o Real não pode
ser representado, pode ser só repetido, deve ser repetido. A repetição
3
4
Obviamente, de um ponto de vista teórico, não se trata de negar a realidade
como linguagem, mas problematizar este lugar-comum do século XX ao buscar
não mediações, mas correspondências inusitadas, uma maior fluidez conceitual,
como defendemos no primeiro ensaio deste livro, dissolvendo as tentações dualistas presentes nas perspectivas centradas no estudo das representações sociais,
tão bem realizadas por Walter Benjamin, alternativa à matriz mais canônica do
pensamento marxista; ou, numa outra clave, pelo pensar por rizomas e platôs,
desenvolvido por Gilles Deleuze.
Seria importante frisar que o Minimalismo, embora se distancie da imanência
e da banalidade pop, é uma importante reação a um espaço transcendental do
Modernismo ao reafirmar que o menos é mais e “what you see is what you see”, na
famosa frase de Frank Stella (apud FOSTER, 1996, p. 36); esforço de quebra da
dualidade sujeito/objeto (FOSTER, 1996, p. 40) que recoloca objetos e redefine
lugares, na sua recusa tanto de uma perspectiva antropomórfica como ilusionista
(idem, p. 42). O importante é que o Minimalismo é um marco importante de
redirecionamento da arte para o cotidiano, o utilitário, o não-artistico (idem,
p. 38). O Minimalismo contradiz dois modelos modernos dominantes: o artista
como criador existencial (presente no Expressionismo Abstrato) e como crítico
formal (idem, p. 40). O Minimalismo anuncia um novo interesse no corpo,
mas não na forma antropomórfica (idem, p. 43) e uma ampliação do sentido
da obra-de-arte como material, forma, processo (idem, p. 46).
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86
•
Poética do cotidiano
não é reprodução no sentido de representação de referente nem
simulacro. Essa passagem do Real como efeito de representação,
simulacro para uma coisa do trauma pode ser observada na trajetória
dos trabalhos de Cindy Sherman (idem, p. 146), de Matthew Barney,
bem como em filmes de Cronenberg, Lars von Triers e David Lynch.
Outro caminho que também vem sendo explorado seria a volta do
referente vinculado a uma comunidade ou identidade dentro da
perspectiva dos Estudos Culturais.
Tento uma alternativa diferente, não o Real inassimilável, irrepresentável, nem o Neonaturalismo, que afirma o papel do artista
como observador e fotógrafo da realidade, mas um real em tom
menor, espaço de conciliação, possibilidade de encontro, habitado
por um corpo que se dissolve na paisagem, nem mero observador,
nem agente, apenas fazendo parte do quadro, da cena; o repouso
ativo do devaneio em que o mundo e a paisagem implodem o sujeito,
seus dramas íntimos e psicológicos. Trata-se de trazer o fora para
dentro, não ir para dentro, nem colocar o eu para fora. Não mais
a dor, a catástrofe, o trauma, mas a plenitude do vazio do real.
É no ínfimo que eu vejo a exuberância.
Manoel de Barros
Diferentemente da coisa real como valor destrutivo (FOSTER,
1996, p. 26; SAFATLE, 2004), talvez mais eficiente para a compreensão de um quadro moderno canônico, estou mais interessado em
uma poética do cotidiano encenada por uma arte que se coloca
no horizonte do contigencial, do comum, categoria revalorizada
epistemologicamente por Michel Maffesoli, em Conhecimento
comum (1988).5
5
Base para uma antidisciplina defendida por Michel de Certeau (1998a, p. 42 e
319), na esteira de Henri Lefebvre, centrada na sua própria narratividade e no
retorno associado a uma estetização do saber implícito no saber-fazer (idem,
p. 142), em que o relato não exprime, realiza uma prática (idem, p. 156), sendo
sempre um relato de um espaço (idem, p. 200). Sem esquecer que a cotidianidade,
longe de mero tema da moda, “tornou-se um tema epistemológico ao longo dos
anos 90 do século passado [século XIX] e enquanto substituto da noção filosófica
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
A própria existência aparece como fragmentada, polissêmica
(CERTEAU, 1998a, p. 203), sem que isso implique um retorno ao
atomismo social (idem, p. 37). O reconhecimento do banal na trama
social nos conduz à valorização de seu espaço natural: a comunidade, a multidão, o ser/estar junto com, a vida coletiva desordenada
e multicolorida (MAFFESOLI, 1988, p. 229) que se traduz em três
palavras programáticas: senso comum, presente, empatia (idem,
p. 229). Como já nos lembrava Agnes Heller, “a vida cotidiana é
a vida de todo homem” (2000, p. 17), “do homem inteiro” (idem,
p. 17). Ainda que o resgate do cotidiano possa ajudar a pensar essa
inteireza, essa dimensão ativa diante do mundo, ela não precisa
ser confundida com totalidade, mas com uma intensidade e uma
presença diante do mundo, da realidade, com os seus desejos, fantasias, delírios, sonhos, utopias; com uma dimensão de fé e confiança
(idem, p. 33), espaço frágil, instável, fluido e ambivalente.
É adulto quem é capaz de viver por si mesmo a sua cotidianidade
(HELLER, 2000, p. 18), não tanto por manipular as coisas (idem,
p. 19), mas por se deixar tocar, sem nelas naufragar completamente. Talvez seja esse um ideal, diante do mesmo e da repetição, ser
sutilmente diverso.
Ideal que implica resgatar valores como as sete características do
Zen que são encontradas na arte japonesa, segundo Shiniche Hisamatsu (apud ZEMAN, 1990, p. 113): assimetria ou o sagrado profano;
simplicidade, para eliminar o que não for essencial; naturalidade, que
se traduz em certa inocência, ausência de compulsão e em acontecimentos isentos de tensão; latência, como se o paraíso infinito estivesse
numa poça de água; informalidade, que leva à ausência de um grande
tema e à descoberta dos aspectos do absoluto na vida cotidiana; quietude; e maturidade como perspectiva serena de vida. Características
que Martin Zeman vê no cinema de Yasujiro Ozu,6 numa espécie de
6
da ‘Verdade’, [o que] contribuiu para a emergência da ‘sociologia’ como uma
disciplina acadêmica” (GUMBREHCT, 1994, p. 91).
Este é um tópico importante na recepção da obra de Ozu nos EUA (RITCHIE,
1974, p. XII ), mas que apesar de críticas mais recentes ainda considero relevante
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88
•
Poética do cotidiano
realismo superior ao realismo da Boca do Lixo, sem favelas ou malandros que corrompem pessoas inocentes, mas realismo que implica
um compartilhar as emoções, como uma espécie de impressionismo
(idem, p. 125-126).
Essa poética do cotidiano aponta, portanto, para a serenidade,
“como uma reação contra a sociedade violenta em que estamos forçados a viver” (BOBBIO, 1998, p. 45-46). Serenidade aqui entendida
como uma “virtude ativa e social” (idem, p. 35), ainda que talvez
seja “a mais impolítica das virtudes” (idem, p. 39), por ser marcada
pela suavidade e pela simplicidade (idem, p. 43), “virtude fraca, mas
não a virtude dos fracos”, sem ser “confundida nem com a submissão nem com a concessão” (idem, p. 13). “Toda serenidade requer
alguma destruição anterior” (FIGUEIREDO, 1998, p. 150).
Resumindo, o cotidiano é marcado por uma heterogeneidade
hierárquica (HELLER, 2000, p. 18), por uma dimensão histórica
em que o individual não desaparece (idem, p. 20), por um ritmo
fixo, pela repetição, por uma rigorosa regularidade que se articula
com a espontaneidade (idem, p. 30), pela incorporação poética
do acaso (CERTEAU 1998a, p. 43), pelo pragmatismo, por juízos
provisórios, generalizações (HELLER, 2000, p. 37). Em meio a um
cotidiano marcado duplamente pelo esvaziamento do tempo da
fábrica moderna à burocracia governamental, das práticas de
trabalho atomizadas nos escritórios à industrialização da casa e
a uma busca de mistério em culturas exóticas, no inconsciente, em
narrativas góticas (HIGHMORE, 2002, p. 4), me interessaria menos
o mundo do trabalho, da cidade e mais os mundos da intimidade,
em que o habitar é já construir (HEIDEGGER, 2002, p. 124), ter
a ilusão humana de pertencer e permanecer por pouco que seja.
não só para a obra de Ozu, como para diretores que dialogam ostensivamente
com sua obra, como Wim Wenders, Jim Jarmusch, Wayne Wang (BORDWELL,
1988, p. 175), Hou Hsiao-Hsien, que presta uma homenagem explícita em Café
Lumière, e que poderia ser melhor explorada até em filmes de cineastas japoneses
mais contemporâneos, não só em exemplos mais óbvios como o de Jun Ichikawa (SCHILLING, 1999), como também de Hirokazu Koreeda e mesmo Shinji
Aoyama.
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
Entre a leveza e o peso, habitar é resguardar (idem, p. 130), mas
sem aprisionar e se aprisionar. Esse habitar assume uma dimensão
poética como forma de habitar “esta terra”. “A poesia não sobrevoa
e nem se eleva sobre a terra a fim de abandoná-la e pairar sobre ela.
É a poesia que traz o homem para a terra, para ela, e assim o traz
para um habitar” (idem, p. 169).
Defender o silêncio, a sutileza e a invisibilidade, como no
gesto de Brígida Baltar (2001) ao capturar neblina ou as imagens
líquidas que dissolvem o drama familiar no tempo largo dos oceanos e desertos em The passing (1991), de Bill Viola, é, ao mesmo
tempo, uma estratégia à altura de uma “sociedade do espetáculo
[em que] o poder e o controle são discursivamente sutis” (SODRÉ,
1996, p. 23), e um contraponto a uma arte que fala demais, produz
imagens demais, sem perder de vista a questão ética: “O que fazer
quando se está diante de uma realidade cruel?” (SCHOLLHAMMER e LEVY, 2002, p. 23). Ao invés da estética do efeito, implícita
nas técnicas expositivas do choque, do grotesco e do escândalo;
o desafio artístico se colocaria em termos de uma estética do afeto,
entendida aqui como o surgimento de um estímulo imaginativo que
liga a ética diretamente à estética; não mais uma arte de limites, de
transgressão, mas de possibilidades (idem, p. 16).
Para além das tensões entre o público e o privado, da rua e da
casa, interessa-me compreender o cotidiano não só como espaço de
sociabilidade, mas como paisagem (PEIXOTO, 1996); ao contrário
dos espaços marcados pela impessoalidade, um não-lugar para
usar conhecida conceituação da Marc Augé. Na contracorrente da
suposta imaterialidade e obsolescência decorrente da fugacidade
das imagens simulacrais, entender o cotidiano como paisagem
material implica resgatar tanto a contribuição de Auerbach na sua
leitura mesma de uma obra a partir de uma cena no seu clássico
Mímesis, como também as contribuições contemporâneas de
Hans Ulrich Gumbrecht (1998, p.146-147), no sentido de uma
materialidade da comunicação em que, a partir do trabalho de
Friedrich Kittler, aponta para a acoplagem entre a materialidade
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90
•
Poética do cotidiano
de um meio de comunicação7 e a materialidade de um movimento
corporal marcado por esse meio de comunicação, que também
implica pensar a narrativa mais como uma materialidade do que
um suporte (ROCHA, 2003, p. 51). O cotidiano é considerado aqui
na sua inserção no tecido social que se abre para toda uma história
que não vê mais este espaço como o da opressão, do isolamento
ou da repetição do mesmo, mas, na esteira do Feminismo, como
espaço de resistência, espaço mesmo poético, sem perder de vista
os contextos urbano, midiático, da intimidade e da afetividade,
nem suas conseqüências epistemológicas, a que já me referi.
Assim, a casa é entendida como espaço geográfico e gregário,
poético, institucional e social, lugar de controle, mas também de
pertencimento, um “canto no mundo” (BACHELARD, 2000, p. 24).
A casa, mais ainda do que paisagem, é um estado de alma (idem,
p. 84). Alojado em toda parte, mas sem estar preso a lugar algum:
esta é a divisa do sonhador de moradas (idem, p. 75), mas também
de um ativista do espaço como Thoreau, precursor dos movimentos
ambientalistas, para quem um lema era “não ter uma casa em particular, mas também estar em casa, em qualquer lugar” (THOREAU
[s. d.], p. 104). A intimidade da casa aponta para a intimidade do
mundo (idem, p. 79).
O familiar não é necessariamente o conhecido.
Hegel
Desse modo, poderíamos pensar filmes bastante comerciais
como Entre amigos (1991), de Joe Mantello, e Colcha de retalhos
(1995), de Jocelyn Moorehouse, como estratégias de redefinição
do cotidiano, da casa e da intimidade. Em Entre amigos, diferente
do modelo tradicional de narrativa de transitar do exterior para o
interior, do macro para o micro, a voz do narrador, dono da casa
em que um grupo de amigos passa três fins de semana, nos apresenta primeiro a casa por dentro, terminando com um convite ao
7
Para problematizações para a área de comunicação, ver FELINTO, 2001; e SÁ, 2004.
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
espectador como a um visitante recém-chegado, um novo amigo
que nunca estivera ali: make yourself at home (esteja à vontade
como na sua casa).8
Casa distante da cidade, próxima da natureza, em que homens
gays de diferentes gerações convivem, se traduz menos em espaço
misógino e heterofóbico, gueto, do que espaço de trocas em que a
afetividade entre homens, tão escondida, mesmo demonizada no
Ocidente para não ser confundida com homossexualidade, mas
possuindo sutil genealogia histórica (BUSH, 1998), incluindo o
amparo, a camaradagem, a solidariedade, a amizade, o amor, reconfigura o próprio sentido da família centrada em uma relação
monogâmica, estável, heteronormativa, tantos nos modelos patriarcais rurais como nos mononucleares urbanos. O que não quer dizer
que preconceitos contra pobres, latinos e afeminados não sejam
explicitados por seus personagens nesse meio predominantemente
branco de classe média.
Por mais que os feriados sejam momentos excepcionais, fora
da lógica do trabalho, período de tempo livre; uma intimidade se
constrói em meio às tensões e fragmentações contemporâneas.
O encontro na casa à beira de um lago evoca uma melancolia e
uma fragilidade de tudo, traduzida tanto na cena em que os amigos
dançam O lago do cisne, momento de encontro e êxtase, mas que
também prenuncia a morte de cada um dos personagens; quanto
no banho noturno no lago em que todos nus parecem caminhar
para a vida, apesar da morte, apesar do mundo, com a morte, com
o mundo.
Também em Colcha de retalhos, há um espaço quase monossexual, aqui majoritariamente feminino, representado por uma
casa, por uma sala de estar em que um grupo de amigas se encontra
para costurar uma imensa colcha de retalhos, ao mesmo tempo
juntando suas lembranças e suas vidas, num mesmo lugar, mas de
8
Esse mesmo sentido foi representado na adaptação desta peça para a Broadway
com a utilização de uma casa em miniatura no centro do palco, onde o cenário
era outra casa em tamanho normal.
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Poética do cotidiano
forma diferente. A colcha de retalhos, como o arco-íris, imagem
rica da democracia multicultural, tão utilizada nas manifestações
públicas como demonstração de afeto dos parentes e amigos dos
que morreram de Aids, aqui, na sua perspectiva feminina, refaz
a própria sociedade norte-americana e sua história, não do ponto
de vista do rancor, do ressentimento, mas da aposta, como na cena
em que uma das personagens refaz seu gesto de juventude ao pular
do trampolim mais alto na piscina. Trata-se menos de nostalgia do
que de uma recuperação de possibilidade de futuro.
Se passássemos aos seriados de televisão, não posso deixar de me
referir a Dawson’ s creek, que me desculpem os fãs de Felicity ou os
mais populares: Friends e Sex and the city. Longe dos seriados com
risos ao fundo, aqui tudo é sério, até sério demais. Dawson’ s creek
possui menos uma idealização do que uma delicadeza inesperada
num produto midiático. Jovens inteligentes e belos se encontram
e desencontram, namoram e se odeiam, são amigos enfim. Essas
imagens acendem não o passado perdido, mas o que ficou de nossos sonhos e o que podemos fazer com eles e seguir. A luz entra
pela casa. Um cais. Jovens conversam enquanto a câmara se afasta.
Apesar de toda dor que possa existir e existe, acreditar na alegria,
na serenidade conquistadas.
O seriado reencena a passagem do tempo. Quando envelhecemos? Quando perdemos nossos pais? Quando nossos corações são
tão destroçados que ficamos irremediavelmente amargos, cínicos
ou apenas céticos? Dawson’ s creek é um vento nos filmes de adolescente. As falas interessam como as pausas. Tudo passa como a
vida, como um sonho, como um seriado de TV. Que diferença do
festival de clichês de Malhação ou da transformação de Barrados
no baile ou Melrose num quase Dallas. Dawson’ s creek tinha o frescor do que não volta mais ou nunca aconteceu, ocupa um lugar
utópico em que a distância ou a mágoa, por maiores que sejam,
são nada diante da possibilidade do encontro. Não estamos diante
de trabalho autoral, mas o que importa se a televisão pode trazer
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93
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
essa experiência tão rara em tantas outras mídias, que confundem
grosseria com contundência?
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Poética do cotidiano
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97
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Pela Janela
Marrom líquido entre verdes arborescentes. O azul
limpo. Distantes águas pacatas. O vento alastra o
brotar. Pios de pássaros perdidos vindos não sei de
onde. Mulheres começam a falar. Um homem levanta,
toma café, ouve música. Muitos ainda dormem nesta
manhã de domingo.
Nem sertão, nem favela
1
Para André Luís da Cunha
Só a neblina não deixava rastro.
Rubens Figueiredo
A
realidade contemporânea é unidimensionalizada em duplo
clichê: assim como não se pode falar no contexto internacional que não passe pela agenda pós-11 de setembro,
que hipervaloriza temas como o terrorismo, de um ponto de vista
conservador, ou temas como estado de exceção e sociedade do
controle, de um ponto de vista mais crítico, no plano intranacional,
as guerras civis, os conflitos multiétnicos urbanos, o narcotráfico
emergem como a representação apocalítpica e desesperançada da
barbárie de nossa época, num quadro de esvaziamento da transgressão e da revolução.
Pensar uma poética do cotidiano, centrada na sutileza e na
delicadeza, é propor uma outra forma de encenar a realidade,
um antídoto tanto para um cinismo simulacral que apenas vê na
proliferação de imagens uma perda geral de sentidos quanto para
o ressurgimento de um Neonaturalismo, que afirma o papel do artista
1
Versão reduzida deste texto foi publicada em Estudos de cinema: SOCINE, ano
VI, organizado por Mariarosaria Fabris,Wilton Garcia e Afrânio Mendes Catani,
Editora Nojosa, São Paulo, 2005.
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
como observador e fotógrafo da realidade. Sua recorrência, ao menos
na literatura brasileira, já foi bem identificada (SÜSSEKIND, 1979),
presente hoje desde uma produção de/sobre sujeitos periféricos como
no rap, passando pelo filme de Fernando Meirelles e Katia Lund
(2002) e livro de Paulo Lins Cidade de Deus até as obras de Marçal
Aquino, Fernando Bonassi e Beto Brant, a “literatura do entrave” de
Marcelo Mirisola (AZEVEDO, 2004, p. 28-30), hibridismos “com
procedimentos da estética da ruptura modernista” em Luiz Ruffato
(CHIARA, 2004, p. 33), atualizados como uma estética do excesso,
da violência e da crueldade, considerada estratégia vitoriosa e mais
eficiente em lidar com nossa época.
Por que rumos o cotidiano e a delicadeza vêm sendo recuperados
ou não no cinema brasileiro?2 Fiel ao peso do Naturalismo em nossa
tradição literária, o espaço público, representado pelas imagenssínteses do sertão e da favela, tem um forte desdobramento, pelo
menos desde o marco do Cinema Novo, estrategicamente resgatado
por muitos do chamado “Cinema da Retomada”, como forma de
recuperar uma visibilidade no exterior, em festivais e junto a um
público cinéfilo. Essa visibilidade, conquistada pelo Cinema Novo,
nunca mais foi retomada nos mesmos patamares. Tem-se, hoje em
dia, ao mesmo tempo, o desejo de resgatar o público e o mercado
internos. É bem verdade que o resgate dessas imagens-sínteses,
microcosmos e alegorias3 da realidade brasileira, não mais ecoam
2
3
Para uma visão mais ampla do cinema brasileiro recente, consultar Lúcia Nagib
(2002), Luiz Zanin Oricchio (2003) e Daniel Caetano (2005).
Ismail Xavier (1997, p. 5-6) realiza uma leitura clássica do Cinema Novo e do
Cinema Marginal, a partir da alegoria como clave prioritária para a articulação
entre o filme e a realidade brasileira e revê a conhecida afirmação polêmica de
Fredric Jameson (2000, p. 315 e 319): os textos do Terceiro Mundo são necessariamente alegóricos e são um contraponto à desistoricização da produção pósmoderna dos países centrais. Para além da conhecida resposta de Aijaz Ahmad
(1992), no debate originalmente publicado em Social Text, em 1986 e 1987, que
ainda dentro de uma perspectiva marxista, procura problematizar a afirmativa
de Jameson, aqui pretendemos afirmar menos a necessidade de totalidade a
partir de uma leitura alegórica e mais a busca de estratégias transnacionais que
possibilitem atravessar os textos da cultura de uma outra forma, sem cair em
leituras formalistas de obras. Nesse sentido, a crítica de Andréa França (2003,
•
102
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Nem sertão, nem favela
um projeto totalizante e certamente não possuem mais marcas
utópicas na tradição dos anos 1960. Contudo, esse não é meu maior
interesse no momento, mas como a partir dessa aliança, uma outra
cinematografia sustentada numa poética do cotidiano foi lançada
a um segundo plano. É claro que há filmes como Eu tu eles (1998),
de Andrucha Waddington, Cinema, aspirinas e urubus (2005), de
Marcelo Gomes, e O céu de Suely (2006), de Karin Aïnouz, que
colocam o sertão sob a marca da vida cotidiana e da intimidade
(MORAES, 2005), mas procuremos refazer essa outra genealogia,
essa linhagem de uma delicadeza perdida, sem parecer soar uma
Bossa Nova saudosista, mas um resgate dessa sutileza tão presente
nas canções de Chico Buarque e Paulinho da Viola, que longe de
mero escapismo de uma realidade cruel se traduzem como alternativas éticas e estéticas.
Para pensarmos apenas a partir do cinema moderno brasileiro, nesta reflexão inicial sobre o cotidiano da intimidade, seria
importante lembrar que a casa aparece marcada pela nostalgia dos
espaços senhoriais4 ou de um ambiente rural perdido, possuindo
uma longa tradição, tendo em Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, na
sua adaptação para o cinema por Luiz Fernando Carvalho (2001), e
em O viajante (1998), de Paulo César Saraceni, seus últimos frutos.
O espaço da casa dilacerada está presente nos grandes momentos
de Saraceni, desde sua estréia em Porto das caixas (1965), até A casa
assassinada (1970). Toda essa trilogia sob o signo de Lúcio Cardoso.
O mundo rural, arcaico diante da modernidade, com sua proximidade da natureza, por ter um outro tempo ainda pode oferecer
paisagens ricas como podemos ver em São Bernardo (1971), de
Leon Hirszman. Há todo um lirismo no registro da casa, para além
4
p. 93-109) a Jameson e Ismail Xavier por suas leituras marcadas pelo conceito de
totalidade converge com minhas preocupações, apesar de explorarem orientações
teóricas, questões e filmes distintos no cenário contemporâneo. Para este debate,
ver ainda SHOHAT e STAM (1994, p. 292-294).
Para uma análise que faz o mesmo em relação a cineastas como Visconti, Orson
Welles, Alan Resnais, Satyajit Ray e romances de Cornélio Penna, Lúcio Cardoso
e Autran Dourado, ver LOPES, 1999.
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
da decadência do patriarcalismo rural. Nessa outra linhagem que
estamos pretendendo articular, duas obras deveriam ser melhor
analisadas: a de David Neves, que, desde sua estréia em Memória
de Helena (1969) (singular revisitação de Humberto Mauro e cujo
universo bem poderia dialogar com Uma vida em segredo (2000),
de Suzana Amaral, até suas crônicas da classe média carioca em
Fulaninha (1984-1985), e Jardim de Alah (1988), compõe um trajeto
diferenciado dentro do Cinema Moderno. Se Glauber Rocha foi
nosso Godard, David Neves bem poderia ser nosso Truffaut. O que
é mais um elogio do que uma crítica.
Outro diretor, originário também dos anos 1960, mas distante
do Cinema Novo, talvez por isto ainda não levado em consideração,
Domingos de Oliveira vai se apresentar cada vez mais próximo do
universo carioca, realizando talvez a tentativa de drama de costumes mais bem-sucedida, que encontra em Sérgio Goldenberg
uma promessa — Bendito fruto (2004) —, diante do apelo fácil da
comédia romântica5 que velhos e jovens diretores tentam realizar
— Bossa Nova, de Bruno Barreto (1999), Pequeno dicionário amoroso (1996), e Amores possíveis (2000), de Sandra Werneck, Como
ser solteiro no Rio de Janeiro (1997), de Rosana Svartman, Dona da
história (2004), de Daniel Filho, entre outros. E, se não falamos de
Walter Hugo Khouri, tão bem estudado por Renato Pucci (2001),
é que, por seu registro, escapa deste tom menor que perseguimos
pela intensidade dramática.
Seria o caso de olhar com cuidado a obra do argentino-brasileiro Carlos Hugo Christensen. Poderíamos ainda pensar esta outra
constelação que estamos procurando delinear como contraponto
aos dilaceramentos alegóricos impetrados à sombra de Nelson
Rodrigues por Arnaldo Jabour, que teve seus melhores frutos entre
Toda nudez será castigada (1975) e Tudo bem (1978), como bem
analisou Ismail Xavier no seu recente O olhar e a cena, cuja dimensão alegórica se dilui mais nos seus trabalhos dos anos 1980 (Eu
5
Para uma boa discussão deste filão (ALMEIDA, 2005).
•
104
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Nem sertão, nem favela
te Amo, 1980, e Eu sei que vou te amar, 1984) bem como o diálogo
de Joaquim Pedro de Andrade com Dalton Trevisan em A guerra
conjugal (1974), que possui ecos em Sábado, de Ugo Georgetti
(1995). Podemos ainda pensar em outro cinemanovista, Carlos
Diegues, que, se por um lado, ainda realiza uma tentativa, a partir
do road movie, de pensar de forma mais fluída o Brasil em Bye bye
Brasil (1979), tem em Chuvas de verão (1977) um filme-chorinho
sobre o subúrbio carioca, que pela delicadeza do tratamento da
velhice bem pode dialogar com o Outro lado da rua (2004), de
Marcos Bernstein, mais bem-sucedido do que Copacabana (2000),
de Carla Camuratti.
Entrando pelos anos 1980, ao mesmo tempo em que Noites do
sertão (1984), de Carlos Alberto Prates Correia, diluía o patriarcalismo rural pela delicadeza, herança do original de Guimarães Rosa,
estratégia já utilizada anteriormente por Carlos Diegues em Joana
francesa (1973), Nunca fomos tão felizes (1984), de Murillo Salles,
anunciava uma estréia nessa linhagem, bem como uma alternativa
ao Neon-Realismo, de Wilson de Barros, Chico Botelho e Guilherme
de Almeida Prado. Caminho logo abandonado por Murilo Salles,
em função de seus projetos posteriores, que se centram em imagens da casa, aí já francamente urbana, mas totalmente atravessada
pela violência, pelo embate entre seus habitantes. Essa poética da
violência tem melhores resultados nos filmes de Tata Amaral e de
Ana Carolina (Mar de rosa,1979, Das tripas coração, 1982, e Sonho
da valsa, 1986-1987), uma antecessora nessa aspereza no feminino,
para não falar em filmes mais recentes como Durval Discos (2003),
de Anna Muylaert.
Ainda nos anos 1980, a Z Produtora coloca em cena uma nova
geração vinda do Rio Grande do Sul, a partir da trilogia Verdes
anos (1983), de Giba Assis Brasil, Me beija (1984), de Werner
Schüneman, e Aqueles dois (1985), de Sérgio Amon, em meio
a vários curtas-metragens, que apontam para seu mais talentoso
representante — Jorge Furtado — só recentemente estreando em
longa-metragem.
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
Onde a delicadeza? Teria ela desaparecido da cinematografia
brasileira mais recente, a não ser por documentários como Edifício Master (2002), de Eduardo Coutinho, e Nelson Freire (2003),
de João Moreira Salles? Filmes como Dois córregos (1998-1999)
e Alma corsária (1992-1994), de Carlos Reichembach, Coração
iluminado (1997-1998), de Hector Babenco, ou O príncipe (2003),
de Ugo Georgetti, mereceriam um olhar mais atento para além da
nostalgia que os envolve, em diálogo, por exemplo com O fim de
um longo dia (1992), de Terence Davies.6
Já na abertura, o quadro das flores apresentado em claro e escuro
em que as pétalas aos poucos vão caindo já apresenta este singular
filme sobre a memória e a intimidade em que a pintura e a música se
somam ao cinema de forma estimulante. São as vozes e as canções
dos personagens e de filmes que conduzem a memória, a volta a
uma Inglaterra da segunda metade dos anos 1950. Como muitos
de sua geração, Terence Davies compreende “a identidade pessoal
como um construto (fílmico)” (EVERETT, 2004, p. 89), sem cair
em excessos de cinefilia, afirmando a todo instante a supremacia
do afeto. O olhar é terno, mas sem idealização, como podemos ver
para o apontamento do racismo e da violência no sistema educacional, ligando a obra de Davies a uma tradição social sem ser
realista (HUNT, 1999, p. 4), neste sentido, é semelhante à forma
como Longe do paraíso (2002), de Todd Haynes, revisita o mesmo
período nos EUA. Se, para Haynes, trata-se de uma homenagem
afetiva e crítica ao melodrama; talvez para Davies, o gênero mais
próximo seja o musical, ou pelo menos um uso sofisticado de música e imagem como em In the mood for love (2000), e 2046 (2005),
de Wong Kar Wai, outros exercícios de nostalgia, que igualmente
tiram uma elegância das realidades as mais precárias.
Em O fim de um longo dia, quase nunca se dança, o tom é mais
contemplativo, o protagonista à janela de sua casa traduz um pouco
essa posição que o espectador assume diante das imagens que nos
6
Para uma boa e abrangente visão de sua obra, ver EVERETT, 2004.
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106
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Nem sertão, nem favela
são apresentadas. Mais timidez do que propriamente voyeurismo
de um adolescente numa família de adultos. Há uma fluidez dos
travellings que interligam casa, rua, cinema, escola, igreja, que
indiferencia tempos, interligados pela suavidade da música e pela
transformação do cotidiano em cena, quadro, cinema, sem que isto
implique espetacularização escapista do comum. Como em Segredos
e mentiras (1996), de Mike Leigh, trata-se de um retrato familiar,
sem a tensão dramática deste. A dor e a violência tão presentes no
filme anterior de Davies, Vozes distantes (1988), encarnadas sobretudo na figura paterna, aqui se desfazem nesta família construída
a partir do afeto materno, aproximando-se de outras obras como
O espelho (1974), de Tarkovski, e Mãe e filho (1997), de Sokurov, em
que o ato de voltar para casa, mais do que gesto filosófico na esteira
do romantismo, é de encontro afetivo, como se traduz na última
cena do filme O fim de um longo dia, em que o solitário protagonista
assiste a um pôr de sol como se fosse um filme, ou vice-versa, junto
com um provável amigo, mas reafirmando seu drama: “Está Bud
fora ‘dentro do mundo’ ou dentro do cinema?” (RADSTONE, 1995,
p. 45). O filme acaba junto com um dia que bem poderia ser uma
vida inteira. A narrativa se rarefaz em situações, flashes, canções, não
como os mergulhos na dissolução do sujeito de As ondas, de Virginia
Woolf, A morte de Virgilio, de Broch, ou Ulisses, de Joyce.
Ao invés disso, temos filmes de pequenos gestos e situações,
como Duas ou três coisas que eu sei dela (2000), de Rodrigo Garcia,
e O tempo de cada um (2000), de Rebecca Miller. Cada personagem
é uma nota em pequenas canções. Uma estória se inicia. Outra
acaba. A sobrevivência dia a dia. Alguma dor. Alguma leveza.
Continuamos. Ou ainda podemos pensar no cinema de rotinas de
O cheiro da papaia verde (1993) e Luzes de verão (2000), de Tran
Anh Hung, que retomam em clave menor projetos mais ambiciosos
como Short cuts (1993), de Robert Altman, e Magnólia (1999), de
Paul Thomas Anderson, grandes filmes em que a fragmentação
da cidade é uma metáfora para sua construção em estilhaços de
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
vidas privadas, na ausência ou impossibilidade de refletir sobre
a totalidade do espaço urbano.
Mas para além dos filmes centrados sobretudo na imagem da
cidade, a casa se encena, de forma muito fecunda, como espaço para
repensar os afetos e a família, das visões nostálgicas de Ettore Scola
em A família (1987), até retratos mais contemporâneos como Sexo,
mentiras e videotapes (1989), de Sodebergh, a Segredos e mentiras,
de Mike Leigh, em que a casa assume seu lugar como gerador de
pausa e devaneio, como defendia Gaston Bachelard, em Poética
do espaço.
Em A família, de Ettore Scola, lentamente a câmara passeia pelo
corredor. O corredor se alonga no tempo. A cada passagem de anos,
vemos o corredor, após breve imagem que se cristaliza e se funde
com a próxima imagem, antes de desaparecer no tempo. O tempo da
casa é feito de festas, de retratos, mas também de morte, de gerações
que se sucedem. Desencontros, repetições, novos encontros.
As coisas simples muito mais do que as findas ficarão. Cada
momento, cada personagem em “As coisas simples da vida (2000),
de Edward Yang (MORAES, 2006), trazem estórias, experiências,
vivências. Mesmo quando algo acaba, há uma deixa, uma oferta para
que se possa continuar. A continuidade está menos na afirmação da
família do que nos (des)encontros, nas (in)compreensões da própria
vida. A tentação em estabelecer julgamentos morais se dilui pela
fragilidade diante do acontecido, do que não pode ser repetido, das
possibilidades ainda não-sabidas, mas que existem.
A fotografia é a grande metáfora para Segredos e mentiras, filmeálbum de família, enquanto Sexo, mentiras e videotapes recupera
a dimensão experimental das relações por meio do vídeo, sem
o viés utópico e contestador dos anos 1960. Tanto o filme de Leigh
como o de Soderbergh apostam na possibilidade da conversa, na
valorização do simples e do cotidiano.
Como vimos, se formos procurar a resposta nos filmes brasileiros dos últimos vinte anos, há todo um lirismo no registro da
casa, para além da decadência do patriarcalismo rural, que parece
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Nem sertão, nem favela
ter desaparecido, mas que ainda parece ecoar em alguns romances
contemporâneos. Caso seja possível uma nova poética da casa e da
intimidade, talvez o cinema possa reaprender da literatura brasileira
algo que já foi seu também, como veremos no próximo ensaio.
Mesmo que esta simplicidade completa
Pudesse afastar todo tormento, ocultar
Esse composto perverso e vital, o eu,
Fizesse dele coisa nova num mundo
De água clara, branco e nítido,
Ainda assim seria preciso mais, muito mais,
Mais que um mundo de neve e cheiros brancos.
Wallace Stevens
Espero que tenha ficado claro que meu interesse no cotidiano
não está tanto no informe, no grotesco, na violência e na perversão
da imagem, que só ampliam a pobreza do mundo, nem mais na simulação, que espetaculariza o banal, mas numa certa aposta, ingênua
que seja, no olhar para as pequenas coisas, os pequenos dramas, sem
cair no Neonaturalismo nem em alegorias. Vislumbro essa outra
possibilidade na família revisitada e reconstruída pelos seus gestos
mais preciosamente banais nas fotos de Luis Humberto Pereira, nos
contos de João Carrascoza, em Dias raros, e de Paloma Vidal, em
A duas mãos, nas ficções de Michel Laub e Adriana Lisboa. Trata-se
do espaço do próximo, da família não como perversão, encenada
por Nelson Rodrigues e Todd Solondz, nem como representações
que privilegiem o excesso, mas o resgate afetivo na sua fragilidade.
Não o corpo violado, mas amparado, protegido.
Procura de uma poética do cotidiano, que vislumbra no limiar
o excepcional, a transfiguração, o sublime, mas sabe que esses são
apenas momentos e é bom que assim seja. Tendo vivido momentos
de tanta intensidade, esse homem, personagem, continua, caminha,
não se consome rapidamente, e por mais que ande, veja, viva, sofra
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
há de ser um homem comum, como na canção de Caetano Veloso.
Haveria toda uma plataforma, um programa, se essas palavras
não fossem demasiadas, demasiado pesadas, explícitas. As coisas,
o mundo, o real. Menos contundência. Menos. O comum como
real, o que subsiste não como impossibilidade de representação
a ser buscada, nem conformismo com o que as coisas são. Como
a morte de Otacília em Sinfonia em branco, de Adriana Lisboa
(2001, p. 144), que apresenta melhor e mais livremente tudo o que
procurei dizer até agora:
Otacília lanchou com as duas filhas.
Deu boa-tarde ao marido, quando ele chegou, e perguntou como havia sido a reunião na cooperativa, mas quando ele terminou de responder ela já não se lembrava mais do que havia perguntado.
Colocou duas gotas do seu precioso Chanel no. 5, uma atrás de cada
orelha, antes de se deitar para descansar novamente.
Quando aquela tranqüilidade inédita penetrou no quarto, semi-iluminado por um abajur fraco, ela soube que estava morrendo.
Ouviu as vozes das filhas conversando, no quarto ao lado, o quarto de
Maria Inês. Depois ouviu um pouco menos, e sentiu uma vertigem
que a fez pensar num navio em alto-mar em meio a uma tempestade.
Depois também a vertigem passou, e ela abriu os olhos, e sorriu porque, na verdade, tudo era tão simples.
Referências
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110
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Nem sertão, nem favela
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a performance, o segredo e a memória. Tese (Doutorado) — UERJ,
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
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______. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
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112
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Carros ecoam nas pedras. A casa em ruínas.
O mendigo entra rápido pelo portão aberto.
Ondas de morros no horizonte. Garoto de bicicleta. Os
olhos descansam sobre a ponte no fim da tarde.
De volta pra casa
1
Para Luciana Martins
Tendo, por fim, retornado à sua moradia-mundo,
eis que o nômade, errante, se torna caseiro. Por que,
desde há tanto tempo diminuído, havia ele abandonado esse palácio por habitações tão pobres?
Michel Serres
J
á não é de hoje que se multiplicam até a exaustão os estudos e
narrativas sobre as cidades. Proliferam seminários, instalações e
intervenções sobre o espaço urbano. Nada de surpreendente, até
necessário, desde que a cidade se tornou na modernidade seu espaço
privilegiado. Mas que fim levou a casa?
Se nos centramos na literatura brasileira dos últimos trinta anos,
a casa ainda aparece com força, numa grande tradição brasileira dos
romances dilacerados de decadência de famílias patriarcais, de Fogo
morto, de José Lins do Rego, Menina morta, de Cornélio Penna, Crônica
da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, atualizados mais recentemente,
sobretudo em obras de Raduan Nassar, Milton Hatoun e Francisco
Dantas, a que já nos dedicamos em outro momento (LOPES, 1999).
Passando para um universo mais urbano e contemporâneo,
ecoando talvez as narrativas vitoriosas, em termos de crítica e
1
Uma versão parcial deste ensaio foi publicada em Imagem & diversidade sexual,
organizado por Wilton Garcia e outros, Editora Nojosa, São Paulo, 2004.
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
público, que se centram sobretudo no espaço público, nas cidades
em tensão, violentas, parece que o espaço privado, a casa, se vê como
lugar de passagem para o trabalho. A casa fica cada vez mais impessoal, povoada pela televisão, solidão e violência. Nem mais como
refúgio parece a casa exercer um fascínio, parece até prisão.
A casa que já rendeu grandes romances e filmes recua como
fonte de devaneio e beleza. O que restaria da casa? Muito se falou
de uma narrativa feminina que resgata a casa como espaço de
resistência, mundo afetivo em oposição ao mundo masculino do
trabalho, impessoal, capitalista. Mas no pós-feminismo a quem pode
interessar hoje os silêncios da casa, quem pode se enriquecer com
seus cantos, cada vez mais iluminados e pouco misteriosos?
Sem pretender ser exaustivo no delineamento dessa linhagem
que retrata a casa marcada pela delicadeza e pela leveza, penso em
dois romances particularmente, que na sua discrição parecem falar
de uma falta nos nossos imaginários, mas talvez sejam tão impactantes, na sua modéstia e despretensão, na beleza que emerge das
pequenas situações, de seus personagens frágeis e banais, de seus
cotidianos: Sinfonia em branco, de Adriana Lisboa, e Cinco estações
do amor, de João Almino.
Antes de falarmos em Sinfonia em branco, relemos um outro
ancestral seu, a novela Buriti, de Guimarães Rosa, por ser um romance dissonante em meio aos romances de decadência de famílias
patriarcais já mencionados. Nessa linhagem, a passagem do mundo
rural para o urbano, talvez pudéssemos dizer da modernidade
para a pós-modernidade, se faz não sob a égide da catástrofe, mas
da leveza. A casa, com pouquíssimas referências e descrições,
é fantasmal, ou melhor, uma casa do ar, frágil. Diferente de outras
casas dos romances de decadência brasileiros que se desmantelam
em imagens líquidas, como num naufrágio, aqui o risco é o tempo
mítico, da natureza (dia e noite, estações) e da vida rural, em que
o movimento incessante do monjolo é a imagem maior de um tempo
constante, mas que também remete à abundância de água próxima
da casa, como se a terra ficasse mais frágil, sobre um lençol de água
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116
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De volta pra casa
subterrâneo2 (p. 141). A água fala menos da história e mais do mito:
“O Buriti Bom era um belo poço parado. Ali nada podia acontecer,
a não ser a lenda” (p. 140).
No entanto, diante da aparente imutabilidade, o tempo
se mostra incisivo e suavemente, não sendo à toa que o romance
se constrói a partir da visão dos estrangeiros: Miguel e Lala. E na
incorporação deles à família, o tempo desempenha um papel
fundamental, porque o fascínio exercido pela casa não implica
adesão a um tempo mítico, como por exemplo, para Miguel:
“Querer-bem ao Buriti Bom, aceitar aquela paz espessa. A saudade
se formando. Tempo do Buriti Bom se passava” (p.139). A casa
emerge em meio aos movimentos de idas e chegadas, fazendo-se
passagem. A primeira moldura da narrativa se faz na longa volta de
Miguel à fazenda do Buriti Bom, que inicia e encerra o romance,
marcada por uma tensão típica do melancólico entre o desejo e a
impossibilidade de esquecer.
A volta não se encerra com o romance. Longe de simples nostalgia romântica3 da casa, da origem, aqui temos um estrangeiro
que encontra sua família, seu lugar não na sua verdadeira casa,
mas no espaço do outro. Tudo que temos de Miguel, à medida que
ele se aproxima de Buriti Bom, são os flashes de sua primeira visita à fazenda. Viagem pelos fragmentos do tempo, sem nenhuma
linearidade, alternando movimentos em diferentes momentos do
passado e o presente em viagem. A casa é envolvida na memória,
como a segunda viagem de Miguel se mescla à sua primeira viagem.
A primeira viagem já era volta. O passado emerge no presente. Uma
vida toda se faz breve momento. “Como a infância ou a velhice
— tão pegadas a um país do medo” (p. 91). No entanto, mais que
o medo, é a leveza do desconhecido que nos guia, leitor e personagens. Em meio à noite, no caminho incerto de volta ao Buriti Bom,
2
3
A partir de agora, para reduzirmos o tamanho das citações, indicaremos apenas
as páginas dos romances.
Para a análise da questão da saudade em Buriti, ver Via e viagens: Buriti, in João
Guimarães Rosa e a saudade, de Susanna Kampff Lages (São Paulo: Ateliê, 2002).
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
ao reencontro com Glorinha, até o dia em que acontece o acerto
de contas de Miguel.
“Então, em fim de vencer e ganhar o passado no presente, o que
ele se socorrera de aprender era a precisão de transformar o poder
do sertão — em seu coração mesmo e entendimento” (p. 105).
O aprendizado não termina no fim do romance, se faz longo pela
vida, com tantas noites e dias a se sucederem. Miguel é um viajante
permanente, marcado pela mesma possibilidade de leveza que se
vislumbra na redenção da fazenda, configurada no encanto pelas
estrelas. A melancolia do estrangeiro aflora na medida da recuperação do tempo, desdobra-se e se redime no ato de viajar, numa
espera da alegria, diferente da “lentidão, peso (que) fazem parte
dos atributos mais constantes do personagem melancólico, quando ele não é destinado à imobilidade completa” (STAROBINSKI,
1989, p.19).
Miguel se pergunta: “Posso querer viver longe da alegria?”
(p. 148). E Maria da Glória cristaliza essa alegria, que vem do
passado. “Quando encontrei Maria da Glória, aqui, foi como se
terminasse, de repente, uma grande saudade, que eu não sabia
que sentia” (p. 148). Mas no retorno ao Buriti Bom, Miguel nunca
chega de todo. E o Buriti Bom seria ainda apenas o meio do caminho para Miguel, início do sertão, onde ele nasceu. A amplitude
do sertão só dá a dimensão da distância do tempo e da extensão
da viagem. Viagem que só acaba quando acabamos? Não importa.
O que importa é “aprender a vida” (p. 258), é a estrada para o Buriti
Bom, “uma frescura no ar, o sim, a água, que é a paz dessas terras.
E o Buriti Bom enviava uma saudade, desistia do mistério. O Buriti
Bom era Maria da Glória, dona Lalinha” (p. 257). A saudade se
mistura com a alegria.
Se Miguel é aquele que sempre está voltando, Lalinha, a nora
de Iô Liodoro serve como contraponto a Miguel, é aquela que passa
a maior parte do tempo na fazenda, “fosse prisioneira que fosse.
Flor de jardim, flor em vaso” (p. 150). Seu próprio quarto, com os
móveis e confortos transpostos da cidade, tem um jardim perto da
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118
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De volta pra casa
janela, em oposição ao “para além, escuro, o laranjal, que desconhecidos pássaros freqüentavam” (p. 160), à amplitude da noite e
do sertão. Lala é uma figura de sonho, de beleza irreal, que todos
adoram como fantasia de esposa de Irvino, mas para quem a fantasia como sua teatralidade se faz central na sua identidade: “Para
eles, eu sou apenas o que não sou mais: a mulher de um marido
que não tenho...” (p. 163).
A estada de Lala na fazenda marca uma passagem do tempo. Ela
deseja voltar “de alma idosa, como um objeto sob a chuva” (p. 195).
O aprendizado no/do tempo a leva a uma outra identidade, forçandoa primeiro a descansar, depois a pertencer ao lugar num processo
de assimilação temporal e de integração nos jogos de desejos da
casa que culmina nos encontros noturnos com Liodoro, por meio
de quem Lala parece amar todo o Buriti, o lugar e suas pessoas.
Em meio a um jogo de leveza e erotismo, Lala se renova no Buriti
Bom: “Ganhara um perceber novo de si mesma, uma indiferença
forte e sã?” (p. 242). A volta de Lala ao Buriti Bom é um despertar.
“E a vida inteira parecia ser assim, apenas assim, não mais que assim:
um seguido despertar, de concêntricos sonhos — de um sonho, de
dentro de outro sonho, de dentro de outro sonho... Até a um fim?”
(p. 244). Suave labirinto. Por fim, Lala se vê de novo estrangeira,
deixando a fazenda, mas sem culpa de não ser mais a outra, a esposa
de Irvino. “Um nada, um momento, uma paz. (...) Sua alegria era
pura, era enorme. Gostaria de dançar, de rir a toa” (p. 250-251).
Conquista da leveza.
Não se trata mais em Buriti de decadência. Iô Liodoro é o homem mais rico das redondezas, embora se apresente mais como
figura de respeito do que de poder. Nenhuma referência a poder
político, contudo, é feita, como se a região em que se passa a novela
fosse uma terra sem grandes conflitos. Patriarca sem patriarcalismo
poderia ser a síntese de Iô Liodoro, “mais que um dono e menos que
um hóspede” (p. 162), uma onipresença distante, sombra da casa,
alheio a sua vida cotidiana. A unidade do masculino representada
pelo pai se multiplica no feminino, nas três mulheres da fazenda,
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
cada uma representando um caminho diferente, mas todas enunciadoras da dispersão e da leveza: a vitalidade telúrica e diurna de
Glorinha, a teatralidade de Lalinha e o ascetismo melancólico de
Maria Behu.
Mesmo a morte de Maria Behu nada tem da dramaticidade da
morte de Nina de A crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso,
da loucura de Rosalina em Ópera dos mortos, de Autran Dourado,
nem da solidão de Carlota, em Menina morta, de Cornélio Penna.
Embora não lhe falte uma dimensão teatral, a morte de Maria Behu
é uma transcendência, uma liberação representada pela cura do
chefe Ezequiel, na mesma noite de sua morte, como também o
erotismo de Glória e Lalinha quebra sutilmente as cadeias do patriarcalismo. Longe de ser apenas “uma criatura singela” (p. 135),
como as silenciosas tias do interior, como a prima Biela de Uma vida
em segredo, de Autran Dourado, Maria Behu encarna, aos olhos de
Miguel, uma teatralidade melancólica, marcada pela dimensão do
impossível: “Quem sabe quisesse mais do que sentia e podia, fugia
do que tinha de ser” (p. 136).
Por fim, dos três filhos de Liodoro, Glória é a única que fica
na casa, apresentando-se, num primeiro momento, sob a marca
tradicional do feminino. Pela sua liberdade sensual e sexual, prerrogativa do homem sob o patriarcalismo, Glória desfaz uma marca
tradicional do feminino, tornando-se, de fato, a herdeira de Liodoro
e não seus irmãos que vivem fora do Buriti Bom.
A divisão que Liodoro estabelece entre a contenção de viúvo e pai
dentro da casa e o amante de várias mulheres fora de casa é quebrada
com a vinda da nora Lala, que lenta e ludicamente introduz o desejo
no centro da casa, na figura de Liodoro, diluindo seu poder. O desejo
quebra vínculos familiares, a prisão de contenções e constrói uma
outra família, sem familialismo, polimorfa, não-patriarcal, como
a relação entre Liodoro e sua nora Lala (marido-esposa, pai-filha),
entre Lala e sua cunhada Glorinha (irmãs, amantes, mãe-filha), entre Glorinha e Gualberto, o amigo e vizinho, até a fraternidade que
une Gualberto e Miguel ou a associação que este faz de Maria Behu
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120
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De volta pra casa
com sua mãe. Essa dispersão se amplia no final pela expectativa da
chegada de Miguel e de seu casamento com Glorinha. Dispersão
do masculino e do feminino.
A quebra do ritual patriarcal por uma ludicidade erótica, plena de
leveza e indistinção tem como um marco decisivo a morte de Maria
Behu. Sua morte é o último ato na transformação da casa de prisão
patriarcal em espaço de leveza, ao invés de destruição e decadência;
de passagem da melancolia à recusa e redenção do mito. “A tristeza
por Maria Behu produzia uma espécie de liberdade. As pessoas estavam mais unidas. As pessoas estavam mais unidas, e contudo mais
separadas” (p. 247-248). A imagem da vida como viagem suplanta
todo aprisionamento mítico na vida ou na morte.
A casa e Liodoro parecem trocar características, isomorficamente, como os apresentam Gualberto a Miguel. Num primeiro
momento, ambos são marcados pelo isolamento e hieratismo,
ordem, inteireza e imobilidade: a “casa”, “palácio de grande lugar”
(p. 217). A própria imagem do Buriti-Grande se associa à figura de
Liodoro e por extensão à casa, dominando as terras como Liodoro
domina a fazenda. “O buriti? Um grande verde pássaro, fortes vezes. Os buritis estacados, mas onde os ventos se semeiam” (p. 105).
O Buriti-Grande é mais do que sobrevivente de outros tempos, de
um mundo arcaico, aquático e inumano. Como a figura antiga de
Liodoro, ele é síntese dos mistérios do passado que emergem no
presente, resume uma ambigüidade material, outrora, divisor entre
a terra e a água; no presente, entre a terra e o ar, mas intermediário,
que faz do passado arcaico (água) não legitimação da autoridade
patriarcal pelo mito (hieratismo do tronco), mas oferece um presente em leveza (ar), “uma liberdade” (p. 258).
Pela sua estrutura axial, como árvore, o buriti centra suas raízes
na terra, absorve as águas arcaicas do brejão e projeta suas folhas
para o mundo aéreo, mundo da dispersão, para além da autoridade
e do mito. O evanescimento da matéria também marca a casa, na
descrição parca de seu espaço. O desgaste da casa constrói uma
ruína quase invisível: “uma grande casa, uma fortaleza, sumida no
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
não-ser” (p. 154), não mais espaço onde “as pessoas envelheceriam,
malogradas, incompletas, como cravadas borboletas” (p. 199). Uma
casa, ao mesmo tempo material e espiritual: “A casa — vagarosa,
protegida assim, Deus entrava pelas frinchas” (p. 221). “A vida não
tem passado. Toda hora o barro se refaz. Deus ensina” (p. 258).
Sinfonia em branco parece também oscilar entre a casa na fazenda
e a cidade, num mundo em que o patriarcalismo se eclipsa, como
em Buriti, de Guimarães Rosa, mas o afastamento do mundo rural
parece maior. Não se trata tanto da morte da casa, como da morte
do pai-patriarca. As idas e vindas no tempo compõem um quadro,
para além da associação do quadro de Whistler que dá nome ao
livro com uma das protagonistas, para falar desses personagens
frágeis, que, no entanto, resistem e sobrevivem diante da violência
do mundo. Se em Crônica da casa assassinada, Lúcio Cardoso usa
a imagem de “um câncer sobre um canteiro de violetas” para definir
seu romance maior, Adriana Lisboa parece construir o núcleo poético
de seu romance a partir da imagem da borboleta voando sobre um
abismo: “Na grande pedreira que encimava o morro mais próximo
uma borboleta tardia abriu suas asas multicoloridas e lançou-se no
abismo” (p. 26). Nada de trágico, épico, mas um certo tom elevado,
sério, que tira beleza do pequeno.
Todo o romance encena a volta de Maria Inês para a casa onde
nascera e a espera dos que retornaram ou se encontram nela: sua
irmã Clarice, e o primeiro amante de Maria Inês, Tomás. A volta
à casa não é a volta do derrotado frente ao mundo, do que não
tem escolha senão sobreviver na sua própria mediocridade, é uma
percepção serena dos seus limites. Nem angústia, nem êxtase, mas
a contemplação tanto do passado como do futuro sem maiores temores. Como acontece com Tomás, filho desencantado de esquerdistas,
jovem promissor que acaba como pintor de província.
Não era um homem feliz. Nem infeliz. Sentia-se equilibrado [ ...] Abdicara de alguns territórios. Desistira da fantasia de um império. Reinava apenas sobre si mesmo e sobre aquele casebre esquecido no meio
de lavouras de importância nenhuma e estradas de terra que viravam
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De volta pra casa
poeira na seca e viravam lama na estação das chuvas e não tinham o
hábito de conduzir ambições [...] Seu pensamento era tão pequeno.
Tão pequeno. Do tamanho de um gesto de perfume que uma mulher
largasse no ar (p. 11).
Todo seu corpo parece discreto, o sujeito se desfaz sem se destacar, na busca de um “pequeno silêncio”, que não se confunde com o
proibido, como nas paisagens com “quase sempre uma estrada que
não levava a lugar nenhum” (p. 13), que faz para seus clientes de classe
média interiorana: “quadros sem ambição — paisagens despidas de
qualquer verve. Naturezas–mortas mortas. Abstrações sem sentido
e sem desejo de constituir sentido. Retratos opacos” (p. 23).
Em meio a um mundo de excessos e atordoamentos, de uma
arte ruidosa, grandiloqüente, impactante, em que a desmesura
é apenas mais um elemento de marketing, aqui temos uma arte
da sugestão, do recolhimento, de modesta ausência de novidades.
Mesmo a sobrecarga dramática de revelações e ações, sobretudo no
fim, como em Cinco estações do amor, de João Almino, não é uma
forma de arrumar conclusões, soluções, esclarecimentos; parece
mais um leve tremor no tempo que se estende e apequena estórias
e personagens. Não se trata de indiferença, mas uma espécie de
olhar enviesado, suspenso. Resta ainda um mistério, não daquilo
que era proibido, sufocado, mas do tempo, dos “anos [que] compunham sedimentos e aplainavam ousadia” (p. 22). A chegada da
velhice é encarada no mote – o tempo é imóvel, mas as criaturas
passam, ou ainda na variante: o tempo é imóvel, mas as criaturas
(os objetos, e as palavras) passam.
O branco do título não diz tanto só da assepsia do apartamento
de Maria Inês e João Miguel, mas de sutis variações sobre o mesmo
tema, como num quadro abstrato feito por uma mesma cor em vários
tons. Para Tomás, havia o quadro de Whistler antes de conhecer
Maria Inês. Quando a conhece é uma mistura de arte e amor. Maria
Inês o deixa, mas sua lembrança fica como um quadro, lembrança
de um amor intenso, forte, irreal, por mais real que tivesse sido,
que demora a ser apaziguada. Amor mais intenso na lembrança
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
que na realidade, a ponto de Tomás enamorar-se um pouco do sofrimento diante de um amor tão absoluto, “porque às vezes o amor
se alimenta de sua improbabilidade” (p. 108). Não se trata tanto
para Tomás de “virar tudo ao avesso para conseguir sobreviver à
perda de uma mulher” (p. 23), mas “apenas uma vida fluida como
um rio sem cachoeiras” (p. 27). Tudo fica mais modesto. “Um dia,
o esquecimento. Um dia, o futuro. Um dia, a morte” (p. 23).
Também Clarice passara a ter “um sorriso sem mistérios, ao
pensar que afinal acabara sobrevivendo a si mesma” (p. 23). “Clarice
sem dissimulações” (p. 24) volta à casa, vende as terras (p. 25) não
para dar uma última satisfação à mãe, nem para voltar ao início,
por uma necessidade de raiz, porto seguro, autenticidade. Depois
de tanta dor vivida, a volta é um gesto afetivo; ser uma vez mais
criança não para esquecer, mas para trazer mais leve a dor. Os 48 anos
de Clarice “não eram uma idade como outra qualquer. Requeriam
silêncio” (p. 134). “Não havia mais nada a ser descoberto, nenhuma revelação? Clarice não se importava. Estava apenas esperando
a própria espera” (p. 210).
O tempo se esfacela. Os medos e os amores de trinta anos antes
são uma ferida não de todo cicatrizada; a qualquer gesto, parece se
abrir e sangrar. “Por quantos caminhos bifurcavam-se os destinos?
Quantas fantasias tecidas com delicadeza de filigranas viam-se
abortadas? Quantas surpresas inchavam como sombras por trás de
cada passo dado?” (p. 28). O que está em jogo na espera de Tomás,
de Clarice por Maria Inês? Acerto de contas? Dizer ainda o quê?
Repetimos. Todo o romance, uma viagem pelo espaço e pelo
tempo, “aquela noite seria a mais longa da história” (p. 80). A viagem
para Maria Inês começa com despojamento. “Melhor era ser menos,
apequenar-se, ser o mínimo possível e reivindicar o silêncio, a nudez e
a liberdade. Melhor era ter as mãos vazias” (p. 111). No caminho, sentia
“uma delicada solidão, metade febre e metade amor, onde vingavam
suas melhores dúvidas. Depois de dezessete anos” (p. 126).
Também Tomás, no desejo de “tornar-se pequeno (o menor
possível)” (p. 129), “ao longo dos anos [...] aprendera as vantagens
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124
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De volta pra casa
de carregar consigo poucas coisas — poucos livros, poucas roupas,
poucas amizades e poucas memórias. Precisava exercitar-se tentando
a qualquer custo deixar do lado de fora de sua vida aquilo que não
lhe parecia indispensável. A história de Maria Inês, por exemplo”
(p. 156), delírio que demorara oito anos para se apagar e se apagara
(p. 186). A viagem de Tomás é o encontro com a serenidade: “Talvez Tomás já tivesse envelhecido, talvez já tivesse atingido aquela
espécie de planalto onde vão se extinguindo quaisquer formações
geográficas mais intensas, talvez já pudesse apenas testemunhar
a paisagem com seus olhos transparentes e pensar em tudo como
passado. Tudo. Ou quase tudo” (p. 130). A serenidade não se apresenta
como mera vontade, nem o deixar-se à deriva (HEIDEGGER, [s. d.],
p. 34-35), mas associada ao aguardar, não como “consolo” (idem,
36), mas como uma forma de “sobriedade” (idem, p. 60). Sem ter
um objeto, aguardar por algo sem saber o que é um “aventurar-se
no próprio aberto” (idem, p. 43), uma libertação.
Ainda que distante, a fazenda permanece como “epicentro da
vida e dos sonhos de Maria Inês” (p. 40), mesmo após dez anos
sem pisar ali. A casa de fazenda aparece sem riquezas, nem muito
grande, nem muito pequena. Nem muito velha, nem muito nova.
A casa de quando nos encontramos no meio do caminho, nem na
infância, nem na velhice, nem no fim, nem no início. Naquele meio
que urge passar, depois de sonhos realizados ou não, na calmaria, na
ausência das paixões, apenas a realidade suave e nua, cruel e bela.
“As coisas pareciam menos devastadoras, depois de vistas de perto.
Perdiam o sagrado, ficavam comuns, cotidianas. Reduziam aquela
distância entre elas mesmas e a idéia delas” (p. 208) No encontro
dos personagens na velha casa, “todas as coisas estavam desembocando naquele lugar naquele momento. Todos os anos vividos,
todas as insuficiências desses anos e tudo o que neles havia sido
em demasia. Todos os perigos, todas as promessas, todo o amor
que amadurecera em indiferença e toda a estrutura que sobrevivera
livre de ornamentos” (p. 209). “As pessoas mudam, embora o significado que um dia tiveram não mude” (p. 213). O que fica não é
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
só “a memória do corpo” (p. 218), mas “alguma presença delicada
ali: a alma do mundo” (p. 118).
A volta para casa é um gesto simples, banal, para além de toda
mágoa e rancor, como se na velhice fosse possível a redescoberta de
uma outra infância, apesar de toda lembrança, a aposta em aberto,
o horizonte das coisas concretas, a alegria que aceita a vida sem
restrições, a serenidade, não o apaziguamento, a indiferença, mas
a espera sem saber do quê, sem motivo.
A volta pra casa não é o fracasso da viagem, das metáforas da
deriva, como o filho pródigo que retorna a sua família arrependido, nem prisão no cotidiano, como em Longe do paraíso (2002),
de Todd Haynes; nem estar num limiar que não se pode, não se
consegue ultrapassar como em Retrato de uma mulher (1996), de
Jane Campion. Retornar à casa também não é fuga do presente,
nem nostalgia de uma infância e passado idealizados, perdidos
depois de muito se ter vivido, mas um gesto de construção de um
lugar, uma possibilidade de encontro. Construir uma casa afetiva,
uma família conquistada, como em Uma casa no fim do mundo, de
Michael Cunningham. Voltar para uma nova casa, onde se possa
novamente pertencer. Não tanto a literatura da casa-grande, da
casa patriarcal, arcaica, mas a frágil casa do presente, imprensada
nas metrópoles, mas ainda possível. Este o desafio ético e estético
dessa poética da leveza, em construção por Adriana Lisboa. A este
desafio é que Cinco estações do amor, de João Almino, vai se lançar
também.
Desde o início temos a dimensão da vida da protagonista, Ana,
professora universitária aposentada em Brasília. É sua voz que nos
conduz:
Nada de emocionante, de pitoresco, engraçado, heróico. Nada de excitante. Nenhuma história de amor bem-sucedida. Nenhum desastre fantástico. Nenhuma tragédia capaz de comover (...) Minha maior desgraça é a de
ser média. Vivo minha vida como uma tragédia cotidiana, permanente,
sem um fato que defina esta tragédia (...) Falta a aventura: o sentido maior
para minha existência, o que se poderia chamar de grandeza (p. 47).
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126
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De volta pra casa
Em um ano e cinco estações, uma vida é modificada, quando
não se poderia esperar mais. A narrativa se estilhaça em situações,
meio ao sabor da deriva, do acaso. No entanto, foi e não foi um ano
como outro qualquer, decisivo. A paisagem de Brasília é toda afetiva,
um mistério em meio ao excesso de luz nas suas quatro estações, e
mais uma, como um presente, uma conquista. “Importa mais onde
a gente está do que para onde a gente vai e de onde a gente vem”
(p. 190). Depois da casa perdida, incendiada, não retornar para onde
viera, a casa de sua mãe em Taimbé, nem se isolar, se fechar, mas
encontrar a transformação na maturidade: “Quero o absolutamente
simples, que me acalenta, meu olhar sereno sobre a cidade que
escolhi, a caminhada pela orla do lago Paranoá que sugiro agora
a Carlos” (p. 202), este desde o início marcado pela suavidade; um
homem que gosta de flores, procurando um ritmo marcado pela
lentidão e tranqüilidade.
A cidade monumental, desumana, “de sonhos perdidos entre
paisagens de desolação” (p. 203), terra de estrangeiros se transforma,
sob um novo olhar: “Estou em estado de graça perante o destino,
talvez por causa do novo outono, que vejo no azul violáceo dos jacarandás, ou porque Carlos já me espera na varanda da casa, pronto
para o passeio. Quero receber no rosto o sol quente. Embriagar-me
no excesso de luz que projeta uma sombra de sonhos” (p. 203). Esta
é a redenção (não temo a palavra) de uma vida em um só instante,
num gesto tão simples e incomensurável, como uma caminhada, na
descoberta e na repetição do prazer compartilhado das pequenas
coisas, não sem antes atingir um certo contentamento, “por amar
o que tenho, não o que me falta” (p. 191). O amor entre Carlos e Ana
vem por fim meio tímido nesta quinta, quase inesperada estação.
“Apesar da morte. Apesar do tempo. Deve ser porque o amor não
me veio, eu é que fui a ele” (p. 201). Amor é cultivado. Uma flor.
Tão simples e tão raro. Amor indissociado da amizade.
O destino de Ana se confunde com o de uma geração, a que viveu
a Contracultura, tão bem encenada no impasse do fim da juventude
e das esperanças, no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980, no
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
conto Sobreviventes, de Caio Fernando Abreu. No romance de Almino, a passagem na virada do milênio é para a velhice: “Sobrevivi
ao hedonismo de minha juventude e à castidade de minha idade
madura, a meu egoísmo heróico, à falta de dinheiro e de alegria,
à minha depressão. E estou disposta a viver muito mais” (p. 201).
A passagem do milênio é feita não sob o signo do recrudescimento
das intolerâncias. Aqui, também como em Calvino, trata-se da leveza
como destino e herança, de libertar-se do peso da memória (p. 53),
renascer se estivermos à altura, se ouvirmos não apenas o que fala
mais alto, mas prestarmos atenção no fluir das correntezas, o que
nos engrandece exatamente onde somos menores.
A escrita do presente é esta casa espiritual nova, um abrigo. “Me
sinto mais leve e mais jovem. Sou, finalmente, meu verdadeiro ser,
despojado das impurezas, dos excessos e do peso dos anos” (p. 200).
Trata-se também da serenidade para o mundo das coisas, mesmo
em meio à fugacidade das imagens midiáticas, inseparável da abertura ao segredo, ao mistério (HEIDEGGER, [s. d.], p. 25) que nos
dá a perspectiva de um novo enraizamento (idem, 25). Em meio
aos discursos da globalização, da quebra de fronteiras, a serenidade
consiste no fato de o Homem pertencer a um lugar, mesmo que ele
seja mais afetivo que geográfico. A serenidade é de fato o libertar-se
do transcendental e, assim, prescindir de querer o horizonte.
A volta à casa é uma volta ao jardim, onde Carlos cultiva suas flores
em Cinco estações do amor, fim do longo trajeto de Mar da fertilidade,
de Mishima. Em meio à ilusão do mundo, à fugacidade das lembranças, resta a beleza concreta e frágil do jardim. Refúgio de Monet no
fim da vida, para lá falar do mundo, lançar inúmeras imagens de um
mundo que cada vez mais se rarefazia, se dissolvia, quando sua vista ia
se turvando. Jardim, não do éden, mas o pequeno espaço a que somos
reduzidos no fim, ao essencial, ao que podemos abarcar com o olhar e
o toque. O jardim sempre estivera lá, mas só agora o notamos, espaço
da delicadeza, do exterior próximo, perto da casa. Algo que nos pertence, mas atravessado pelo olhar dos outros, sempre à espreita, para
contemplar, para possuir, para ser perdido. Chegamos enfim.
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128
•
De volta pra casa
Referências
ALMINO, João. As cinco estações do amor. Rio de Janeiro: Record,
2001.
HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, [s. d.].
LAGES, Susana Kampff. João Guimarães Rosa e a saudade.
São Paulo: Ateliê, 2002.
LISBOA, Adriana. Sinfonia em branco. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
LOPES, Denílson. Nós os mortos: melancolia e neobarroco. Rio de
Janeiro: 7Letras, 1999.
ROSA, João Guimarães. Buriti. In: ______. Noites do sertão. 7. ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
STAROBINKSI, Jean. La mélancolie au miroir. Paris: Julliard, 1989.
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Não mais procurar. Calar.
Olhar as palavras.
“Quero ser livre para brincar nos campos do
Senhor”. *
* A última frase é de Caio Fernando Abreu em entrevista a Marcelo Secron Bessa.
Paisagens e narrativas
1
Para Elyeser Szturm e André Costa
Só escuto as paisagens há mil anos.
Manoel de Barros
A
paisagem se abre para um vasto campo de possibilidades,
entendida como objeto de conhecimento e de contemplação estética; depois como objeto de consumo, domínio da
intervenção e atividade humanas, “encruzilhada onde se encontram
elementos vindos da natureza e da cultura, da geografia e da história,
do interior e do exterior, do indivíduo e da coletividade, do real e
do simbólico” (COSTA, 2001, p. 7)
A paisagem “é cultura antes de ser natureza; um constructo da
imaginação projetado sobre mata, água, rocha” (SCHAMA, 1996,
p. 70), constituindo-se como “artifício”, até “construção retórica”,
portanto longe de uma substância ontológica e eterna, anterior ao
homem (CAUQUELIN, 1989, p. 20, 22, 27 e 30). O que não impede que possamos pensar a paisagem, de forma filosófica, como
alternativa num quadro pós-humano ou pós-humanista, como
na defesa de uma geofilosofia: “A filosofia se reterritorializa no
1
Uma versão deste texto será publicada pela Editora UFMG em Espécies de espaço,
organizada por Renato Cordeiro Gomes.
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
conceito. O conceito não é um objeto, mas um território” (DELEUZE; GUATTARI, 1991, p. 97).
Há todo um pensamento espacializado ou feito por paisagens,
das passagens benjaminianas aos platôs deleuzianos. A paisagem se
transformou em rica categoria, como defende Arjun Appadurai, para
compreendermos a cultura contemporânea a partir de etnopanoramas (ethnoscapes), midiapanoramas (mediascapes), tecnopanoramas
(technoscapes), finançopanoramas (financescapes), ideopanoramas
(ideoscapes), para indicar “que não se trata de relações objetivamente dadas que têm a mesma aparência a partir de cada ângulo de
visão, mas, antes, são interpretações profundamente perspectivas,
modeladas pelo posicionamento histórico, lingüístico e político
das diferentes espécies de agentes” (1999, p. 312). Essas paisagens
são “formas fluidas e irregulares” (idem, p. 313), ao contrário das
comunidades idealizadas, são lugares onde se vive (ibidem) ainda
que não sejam lugares necessariamente geográficos.
Pensar a paisagem implica um posicionamento diante do mundo, que podemos desenvolver a partir do resgate da consideração
que Muniz Sodré faz da comunicação como bios, que implica uma
nova qualificação da vida, um bios virtual, cuja especificidade está
na criação de uma nova eticidade (2002, p. 11 e 233-234), uma nova
ambiência, em que a paisagem se apresente como “simulação”, “contranatureza” (CAUQUELIN, 1989, p. 164), espaço de “produção de
uma imagem” (idem, p. 166) e não mais simples reprodução.
Num primeiro momento, consideramos a paisagem como
“a apresentação culturalmente instituída dessa natureza que me
envolve” (ibidem, p. 127), confirmando a tese de um trabalho clássico sobre o tema de que a “emergência do sentimento estético da
natureza como paisagem nasce da separação entre homem e natureza
(RITTER, 1997, p. 10), a partir do Romantismo, quando essa “se
mostra a um ser que a contempla vivenciando sentimentos” (idem,
p. 28). Nós nos transportávamos pela paisagem para participar
da natureza livre e verdadeira, distanciada dos seus imperativos
utilitários (ibidem, p. 61), levados por um desejo de integração e
•
134
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Paisagens e narrativas
totalidade, mesmo quando isso não era mais possível, como acontece
hoje em dia, constituindo-nos em grande medida como “personagens contempladores, sem vínculo com a terra, sem gozá-la como
nos ritos báquicos”. O “sujeito burguês da dominação” se mescla ao
“sujeito estético da contemplação” (SUBIRATS, 1986, p. 60).
A perspectiva culturalista depois amplia a paisagem para qualquer espaço, urbano, midiático ou virtual, concebendo-o sempre
como “lugar de conflito” (CAUQUELIN, 1989, p. 130), nunca
inerte (BENDER, 1993, p. 3). Para não incidir em dualismo entre
cultura e sociedade, seria importante considerar a paisagem como
materialidade antes do que representação, sem que implique uma
relação transparente entre nós e o espaço, mas também sem estabelecer mediações dualistas ou dialéticas. “Não se trata tanto o que
a paisagem ‘é’ ou ‘significa’, mas o que ela faz, como ela atua como
uma prática cultural” (MITCHELL, 1994, p. 1).
A paisagem aparece desde o século XIX como tema recorrente no debate do sublime. E foi neste sentido que me interessou
primeiro, quando Nelson Brissac Peixoto (1996, 1997) falava de
paisagens urbanas, à medida que as cidades vão se transformando
pelas experiências das pessoas que as habitam, diferenciando-as de
espaços impessoais, sem memória e afeto. Mas agora, talvez seja o
momento de avançar mais e pensar a paisagem também de forma
diferente de um lugar definido. A paisagem seria mais objetiva e
externa do que nosso sentido pessoal de lugar, também menos
individual, “uma superfície contínua mais do que um ponto, um
foco, uma localidade ou área definida” (MOINIG, 1979, p. 3), “não
um objeto a ser visto ou um texto a ser lido, mas um processo pelo
qual identidades sociais e individuais são formadas” (MITCHELL,
1994, p. 1). A paisagem transita de um lugar específico, determinado
para um espaço de múltiplas conexões no tempo, nas linguagens
e nas mídias que redimensionam nossos espaços afetivos; platôs2
difíceis de determinar onde começam e onde acabam, mas talvez de
2
Brian Eno usa esta expressão no filme Imaginary landscapes (1989), documentário
sobre sua obra, dirigido por Duncan Ward e Gabriella Cardazzo.
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
forma menos antropocêntrica, para usar a imagem de Tuan (1977,
p. 3), do lugar seguro para a liberdade do espaço. Mais do que “um
gênero de arte” (idem, p. 5), a paisagem é “um meio não só para
expressar valor, mas para expressar sentido, comunicação entre
pessoas – mais radicalmente, para comunicação entre o humano
e o não-humano” (idem, p. 15), sem perder sua materialidade.
“Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado da alma”
(SOARES, 1982, p. 36).
Nem confissões, mergulhos subjetivos, nem ensaios clássicos, as
paisagens articuladoras de imagens e conceitos são marcas de um
sujeito feito de exterioridades, de um texto de superfícies, como já
era O livro das passagens, de Walter Benjamin. “Talvez nós necessitemos tentar nos redefinir em uma paisagem onde seja possível
encontrar mais verdades laterais. O que para outros são desvios,
são para mim dados que definem meu caminho” (BENJAMIN apud
CHAMBERS, 1990, p. 81) A paisagem é mais do que um estilo de
pensar e escrever, é uma forma de viver à deriva, entre o banal e
o sublime, a materialidade do cotidiano e a leveza do devaneio
(HIRSCH, 1995, p. 3-4). Ao invés de pensar, caminhar; salvar-se no
mundo das coisas e não apenas ser voyeur ou consumidor, deixando
rastros, idéias para trás a cada novo momento, a cada encontro;
renovar-se constantemente, mesmo que seja num modesto passeio,
um deixar-se, uma dissolução, mesmo quando voltamos para casa.
“A paisagem vem a nós de todas as direções, de todas as formas”
(WOOD, 1995, p. 3). O mar. O mar. O mar.
Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.
Manuel Bandeira
Como em Barco a seco, de Rubens Figueiredo, o mar se apresenta
como uma experiência em que tudo flutua, nada é sólido (2001,
p. 104). O protagonista, o pintor Emílio Vega, só pintou o mar por
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136
•
Paisagens e narrativas
ser “um mundo sem limites, sem lugar para simetrias, sem nenhum
eixo onde ele pudesse continuar a girar” (idem, p 137). Mas não é
só como tema, cenário e espaço vivo que o mar aparece na narrativa,
ele traduz o próprio drama do artista pobre, que pinta suas marinhas
em qualquer suporte, arredio ao mundo e às instituições, desconhecido em vida e que passa a ser um sucesso quando desaparece
para poder sobreviver, configurado na própria imagem do nadador:
“Nadar era jogar fora tudo o que lhe pertencia” (idem, 140).
Descontada a precariedade econômica, situação semelhante
acontece com Teresa, jovem escritora em ascensão, supostamente
dada como morta no mar, em Um beijo de colombina, de Adriana Lisboa. Nos dois romances, o drama não é só do artista, mas
também de Gaspar Dias, crítico que aparece como quase duplo de
Emílio Veja, em Barco a seco, e de João, amante de Teresa, leitor
amoroso que deseja continuar a escrever o livro inspirado em Manuel Bandeira deixado por ela incompleto e que, por fim, aparece
como personagem da própria escritora. João, seu nome, quase não
aparece no livro, é a melhor tradução do “existindo pequeno” (2003,
p. 62) e de “pessoa menor” (idem, p. 83), lembrando, uma vez mais
Bandeira, que se dizia um poeta menor, no sentido de um modo
menor como na música, voltado ao pequeno, ao melancólico, ao
invés de um modo maior, retumbante, épico. Ao invés do cansaço
pós-modernista — “Não era mais preciso ser absolutamente moderno” — resta o desafio de uma ética do desaparecimento: “Não era
mais preciso ser, absolutamente” (ibidem, p. 111). Escritor, crítico
e leitor estamos todos num mesmo barco. Esperamos que não seja
a lenta agonia, o naufrágio de O limite (1930), de Mário Peixoto.
O que nos resta são apenas flashes, lembranças de algo que não tem
mais valor, nem sentido. Ou se for o naufrágio, podemos retomar
a epígrafe do filme Sansara (2001), de Pan Nalin: “Como não secar
uma gota de água? Lançá-la ao mar”.
Como é possível, hoje então, uma ética do desaparecimento
encarnada no desaparecimento no mar em tempos de máxima exposição? Apenas estratégia de marketing para valorizar obras e criar
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
uma aura em torno do artista desaparecido? Desejo de desaparecer
na paisagem, ser mais um ponto, só pode ser cifrado como desejo
de morte? Há uma frágil posição, uma brecha, se permitirmos que
a paisagem nos tome e nos reeduque para a delicadeza e para o
desamparo.
Em Caminho para casa (1999), de Zhang Yimou, a câmera traduz a aproximação afetiva. Mesmo quando distantes, os amantes
aparecem em close, próximos um ao olhar do outro e do espectador. Estória simples traduzida na delicadeza das paisagens, o que
dilui um possível exagero melodramático, a não ser talvez na cena
final com a mãe. A paisagem é em si a estória, não simplesmente
cenário. As folhas amarelas. O preto e o branco do presente, com
a morte do pai. A lembrança do encontro entre os pais, quarenta
anos antes em delicada cor, o que não volta mais. No fim, rostos,
cores e tempos se confundem. Fica a imagem da estrada. Estrada
para o amor e para a despedida do amor. Fica o amor, o meio do
caminho, a cor.
Uma outra possibilidade de alargar a narrativa pela paisagem
acontece no início de Lúcia e o sexo (2001), de Julio Medem, por
meio de uma paisagem marinha quase digital, estranha, em uma ilha
sob uma luz branca, descolada por baixo do continente, solta, cheia
de cavernas submarinas. Essa estranheza alarga a estória que vai e
volta no tempo, se constrói e reconstrói, como uma possibilidade
não-borgiana de quebrar limites entre realidade e ficção, escrita
e vida, mas um jogo que aposta na possibilidade de ser de outra
forma, em um outro espaço.
Como também na obra de Bill Viola,3 sempre mais comprendido
na clave de uma tradição experimental do videoarte. Uma leitura
de The Passing (2001), pode ser feita como a de um singular drama
familiar traduzido em paisagens, que ocorre num constante fluxo
de passagem do tempo, em que os sentimentos são encenados como
“parte de uma visão de aparição e evanescimento”, “vida e morte”
3
Para uma leitura em detalhe deste vídeo, ver CUBITT, 1995.
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138
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Paisagens e narrativas
(VIOLA, 1995, p. 15 e 42). Passou um dia? Passou uma vida? Foi
tudo um sonho? Um devaneio noturno? Drama sem falas em que
a criança pode ser o filho do personagem adulto, encenado pelo próprio diretor. Mas por que, além da infomação extracinematográfica
de que se trata mesmo de seu filho, não considerarmos a criança
como o próprio adulto? Também o perfil de uma jovem mulher que
aparece no mar poderia ser não só a mulher do autor, mas também
sua mãe? No fim, o diretor, que vemos acordando várias vezes no
decorrer do filme, continua dormindo no fundo do mar, imagem
se distanciando, lentamente se dissolvendo em água e luz.
Em um outro clássico do cinema experimental, Wavelength
(1967), de Michael Snow, este uso da paisagem como forma de
dissolver a narrativa se exacerba, compondo uma espécie de “filme-paisagem”, que em Região central resiste a toda “humanização
metafórica” (SITNEY, 1999, p. 139). O filme parte da tomada fixa de
uma sala com poucos móveis num apartamento com janelas para
a rua. Lentamente, a câmera se move, quase não percebemos num
primeiro momento, mas lentamente ela se encaminha em direção
às janelas. Mas para onde exatamente irá? Para a rua, onde vemos
carros, pessoas e outros prédios? A alternância de tons monocromáticos e uma música dos Beatles parecem sugerir uma viagem
psicodélica que desautomatiza a percepção de um espaço banal.
Mas além dessa viagem de um lado do quarto ao outro, há vestígios
de narrativas, pessoas que entram, ruídos de tiros, um corpo que
cai e alguém chamando a polícia. Mas esses vestígios de narrativas,
como os sons da rua, vão cedendo à medida que vemos a câmera se
aproximar das imagens afixadas na parede entre duas janelas. Fica
só um som agudo, cortando, simulando e alongando um clímax que
não sabemos aonde vai chegar. A câmera se fixa numa foto tirada
em alto mar. Só ondas. Deixamos de lado os dramas humanos que
mal conseguiram se delinear. Este travelling que parecia se encaminhar para um espaço mais fechado, no close da foto na parede
se abre para o mundo. O som pára. Não vemos, estamos diante da
imagem, na imagem, no mar. Depois, a luz branca, a dissolução.
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
Estamos nem fora, nem dentro, nem na realidade, nem em sua
representação, apenas na dissolução.
Mas, talvez, é em Amor à flor da pele (2000), de Wong Kar Wai,
que a possibilidade de uma estética da delicadeza e da sutileza atinge
um cume, dentro das narrativas destinadas a um público mais amplo.
Já em seu filme anterior, Felizes juntos (1997), o diretor se detém
mais em planos lentos, que praticamente dão o tom de Amor à flor
da pele, um mergulho nostálgico na Hong Kong dos anos 1960.
Não mais malabarismos de câmera. A fotografia continua bela,
mas na maior parte do filme, mais contida, ressaltando o casal de
vizinhos, que sutilmente se envolvem, ao se verem traídos, abandonados por seus respectivos companheiros. Nada de sexo, só gestos
sutilmente elegantes. Emoções tolhidas, delimitadas pela rotina, da
casa ao trabalho. O olhar do diretor privilegia a câmera lenta para
se deter em objetos, nos movimentos do rosto, traduzindo a solidão
com tanta beleza que até nos esquecemos de como o filme é triste.
A música climática, com destaque para Nat King Cole, cai bem
como uma luva elegante, dizendo até mais do que os personagens
conseguem dizer um ao outro. O encontro dos dois solitários não
consegue transitar de uma fraternidade de estranhos, ainda que
vizinhos, para algo mais intenso como uma paixão. A estória de um
amor que mal se ousa dizer só para falar de sua impossibilidade, em
mãos mais pesadas, poderia virar um melodrama excessivo como
em Dançando no escuro (2001), de Lars von Triers.
Nos anos 1980, pensar afetividade, identificação e envolvimento
foi pensar, em grande medida, as possibilidades de um cinema narrativo contemporâneo, dentro de uma estética que privilegia uma
maior comunicação com o público e com o mercado, ao invés de
estabelecer uma relação de ruptura, de choque com o público. Sem
parodiar clichês dos gêneros clássicos, como o melodrama, Wong
Kar Wai faz uma outra aposta, se afastando de um público acostumado com uma temporalidade televisiva e da melancolia cinéfila,
ávida por citações. Ele apenas conta uma estória. Mas uma estória
em que o essencial está na integração dos espaços com os afetos.
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Paisagens e narrativas
É necessário sentir com os olhos e ver com o coração, como nas
imagens das cataratas de Iguaçu, em Felizes juntos, que encenam o
desejo e o desencontro dos amantes, dois jovens de Hong Kong na
Argentina, onde nunca foram juntos. A imagem está sempre presente
no quarto, em simulacro, como algo que poderia ser e não é.
Ao contrário do paroxismo de levar o melodrama aos seus limites, Wong Kar Wai prefere lidar mais com ambigüidades do que
com explosões. Não se trata de um caminho irremediável, fatalista
rumo à destruição. Como nos romances de Louis Begley e Kazuo
Ishiguro, os personagens de Kar Wai4 não são excepcionais, heróis
trágicos, têm compromissos com os valores de sua época, se vêem
perdidos, seguem com um sorriso meio amargo, meio doce, não se
matam nem meramente sobrevivem, jogam o jogo e talvez possam
ter algo para não serem tragados, ainda que seja uma lembrança,
destinada ao esquecimento. Restam as ruínas, no final, por onde
aqueles dentre nós demasiado delicados insistimos em caminhar.
Outras perdas certamente virão. Como na arrebatadora cena final
de O tigre e o dragão (2000), de Ang Lee, o mergulho nas nuvens.
Lento o corpo cai. Lembranças de desertos e florestas percorridos.
Montanhas ao longe. Árvores ao vento. Vestígios de desejos tardiamente percebidos, irrealizados ou terminados. Nada está perdido
quando tudo desaparece.5
Referências
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disappearance. Hong Kong: Hong Kong University Press, 1997.
______. Cinema, the city and the cinematic. In: KRAUSE, Linda;
PETRO, Patrice (Org.). Global cities. New Brunswick: Rutgers
University Press, 2003.
4
5
Para uma visão mais ampla dos filmes de Wong Kar Wai tendo como fio condutor
as imagens de desaparição, ver ABBAS (1997).
Para uma outra leitura dessa cena como fantasia ou suicídio e relações com os
filmes de Wong Kar Wai, ver ABBAS (2003).
• 141 •
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
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142
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• 143 •
O que é isso que me pega neste silêncio?
Sutil e feroz. Caminho.
Andando com Paul Auster
Para Sérgio de Sá
I am not here
This is not happening
Radiohead
U
ma vez mais ele voltava a Nova Iorque. Não para ficar duas,
três semanas de férias. Quase dez anos tinham se passado
desde a última vez. Agora ficaria novamente um ano. Poderia ter ido a outro lugar. Eram tantos os lugares que não conhecia,
em que nunca estivera, nem nunca estará. Não era nostalgia, era
uma outra viagem. Os amigos de outrora não mais presentes. Não
mais as emoções desencontradas da primeira vez em que ficara
tanto tempo longe de casa, longe do Brasil. Outras novas emoções,
diversamente desencontradas certamente.
Tinha a ilusão de se sentir mais livre, menos ansioso. Um novo
desafio se apresentava, um salto, falar do outro, do centro, do cânone. Teria o que dizer? Em 2002, publicara seu último livro e desde
então nenhum outro livro a não ser ensaios que tinha a ilusão de
estarem construindo um outro livro, de uma outra forma: nem hipertexto de fragmentos, nem romance de ensaios autobiográficos,
algo mais modesto, quadros de caminhadas e encontros de pessoas
e personagens, imagens e lugares. Como antes, precisava de um fio
condutor que não fosse apenas conceitual. A aposta agora era em
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
Paul Auster como ponto de partida para uma paisagem ao mesmo
tempo reconhecida e nova. Não, não era uma volta, queria olhar
os olhos de Paul Auster, olhar com Paul Auster. Na chegada aos
quarenta anos, sentia-se renovado, embora tudo parecesse familiar,
estava aberto a este outro desafio, a esta outra procura.
Não foi difícil. Tinha marcado a entrevista num café perto de
sua casa, depois de sua caminhada diária. Com certa ansiedade,
esperava. Tinha chegado cedo. Sempre costumava chegar cedo a
não importasse que encontro. Esta seria não apenas uma entrevista.
Todos parecem estar tão ocupados hoje em dia, mas numa fantasia,
alimentada por seus livros, entrevistas, acreditava que ele teria tempo.
Logo veio uma pequena decepção. Paul Auster entrou rapidamente
sem se sentar e o convidou para caminhar com ele.
Estava começando algo mais inesperado ainda. A partir daí,
de tempo em tempo, ele ligava, sempre ele. Se queria caminhar.
Sempre disse sim. Não importava o que estava fazendo. Falavam
muito no início. Com o tempo, as conversas foram ficando mais
curtas e as caminhadas mais longas. Sempre tomavam uma rua e
a seguiam, sem direção certa, por uma hora ou um pouco mais.
Tudo o que vem a seguir seria outra coisa, sem essas caminhadas,
sobretudo as mais silenciosas, onde só havia o espaço do ar entre
eles. Era como estar em casa.
Passados tantos anos, ele não sabia se tudo tinha sido um sonho.
Seria Paul Auster aquele que, pela primeira vez, atendeu o telefone?
Com quem saíra? Ou não seria tudo fruto da leitura, este “penetrar
o mundo e encontrar seu lugar nele” (A arte da fome, p. 259). Que
importa, ao final e ao cabo, como se diz?
Ainda é possível caminhar nas ruas? Certamente não como
em um devaneio solto e bucólico, mas procurando resgatar a materialidade evanescente dos espaços diante da rapidez dos meios
de transporte e comunicação massiva, sobretudo do carro e da
televisão: andar não com a cabeça nas nuvens, mas com os olhos
abertos, a mente aberta, as energias concentradas em penetrar a vida
ao redor. Trata-se da busca de um lugar onde “somente o limitado
•
148
•
Andando com Paul Auster
cotidiano está vivo” (p. 46). Exatamente, neste lugar, a felicidade é
encontrada, não numa fuga ou transcendência deste mundo, embora
este mundo seja extremanente frágil, ainda que misterioso na sua
diversidade e potencialidade.
Há uma tradição norte-americana, que, às vezes, pode parecer
apagada pelas referências européias de Paul Auster, em particular as
francesas, pelo fato de ter sido tradutor do francês para o inglês, de ter
morado na França, como tantos outros escritores norte-americanos
antes dele, bem como pela grande repercussão de seu trabalho,1
tanto entre um público leitor mais amplo quanto na universidade.
Essa tradição norte-americana traz uma herança democrática que
precisa ser lembrada hoje em dia, desde Emerson, mas sobretudo
Thoreau, sempre muito citado por Auster, que procura o sublime no
rústico, como, por exemplo, na poesia de William Carlos Williams,
que Auster também muito admira.
Como seu personagem Peter Stilman em Cidade de vidro, da Trilogia de Nova Iorque, Paul Auster poderia dizer: “Meus motivos são
sublimes, mas minha obra, agora, tem lugar no reino do cotidiano”
(Trilogia de Nova Iorque, p. 89).“Se não conseguimos sequer dominar
um objeto trivial, cotidiano, que seguramos em nossa mão, como
podemos pretender falar das coisas que nos dizem respeito mais a
fundo?” (p. 90). O pequeno se torna uma estratégia provisória na busca
de novas palavras adequadas a um novo mundo, em que o próprio
escritor se torna “parte da cidade. Era um ponto preto, um sinal de
pontuação, um tijolo em um infinito muro de tijolos” (p. 104).
Para pensar uma outra relação entre paisagem e narrativa é
que ele se aproximou dos livros de Paul Auster. Um dos motivos
de seu fascínio são as narrativas de Auster sobre Nova Iorque,
capital cultural da segunda metade do século XX. Esse espaço2 de
tantos romances e filmes encontrou na Trilogia de Nova Iorque uma
recriação emoldurada na estrutura de romance policial, mas que
1
2
Para um levantamento da bibliografia sobre Paul Auster, ver SPRINGER, 2001.
Para um estudo do espaço, especialmente o da cidade, na obra de Auster, ver
BRANDÃO, 2005, p. 35-65.
• 149 •
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
trata de questões existenciais, com personagens anônimos, sempre
a um passo de desaparecerem, se perderem. Personagens estes que
são uma constante na sua obra.
Nos escritos de Auster temos uma sutil história de Nova Iorque
por meio de personagens comuns, uma singular contribuição à
história do cotidiano, de um cotidiano povoado por concretudes
e invisibilidades, potencialidades e desaparecimentos.3 Talvez
Auster seja o melhor herdeiro dos jornalistas-cronistas do New
Jornalism, obcecados não pela notícia, pela novidade, pelo extraordinário, mas pelo registro diário das coisas banais mesmo
diante de personagens excepcionais.
“Nada era real a não ser o acaso” (Trilogia de Nova Iorque, p. 9).
Tudo parece tão banal, mas igualmente misterioso, talvez aí esteja
o seu maior aprendizado tirado dos romances policiais. E por mais
que verdades sejam reveladas, isto nunca é o mais importante. Há
um mistério que persiste e insiste mesmo depois da resolução de
enigmas, quando os há. Como Auster mesmo se define: um realista
marcado pela questão do acaso que instaura o mistério no mundo,
sem cair na manipulação possibilitada pelas coincidências, como
na ficção de má qualidade dos séculos XVIII e XIX, nem reproduzir
os paradigmas do romance realista (A arte da fome, p. 260).
No seu melhor, Auster não é o leitor da grande tradição moderna
do romance, mas um poeta do cotidiano. Apesar de ter deixado de
escrever poemas quando começou a publicar romances, essa experiência o ajudou a formatar sua narrativa povoada por paisagens,
por personagens traduzidos por seus espaços, bem como por seus
diálogos com paisagistas do século XIX que foram ao oeste norteamericano, com Edward Hopper e suas paisagens urbanas, com a
land art e no encontro com Sophie Calle.
3
Seria interessante pensar o desaparecimento, “motivo central da ficção de Auster”
(GAVILLON, 2000, p. 124) nas suas distinções e aproximações com o desaparecimento marcado pelo primado da velocidade associada a novas tecnologias em
VIRILIO (1980).
•
150
•
Andando com Paul Auster
Comecemos com o início. Se o grão não morre, quando o desejo
de ser artista está no limiar, entre a promessa e a dúvida de se ter ou
não talento, quando, mesmo estando em Nova Iorque, se encontra
fora dos circuitos intelectuais e artísticos, o que acontece? Curiosamente, Auster enuncia, nos seus ensaios e críticas, uma estética
da fome, “uma arte da fome” para ser mais preciso. Não a fome do
artista periférico que deglute tudo o que vem de fora antropofagicamente, nem só a impossibilidade de sobreviver. “A arte da fome
pode ser descrita como uma arte existencial. É uma forma de olhar
a morte de frente, e com isso me refiro à morte como a vivemos
hoje: sem Deus, sem esperança de salvação. A morte como o final
abrupto e absurdo da vida” (A arte da fome, p. 21).
Uma arte que salva por acaso, como nos filmes de Kieslowski.
O escritor se salva para a escrita e para o mundo não por uma vaga
necessidade existencial, mas para sobreviver. Por um golpe de sorte,
que o possibilita arriscar uma vez mais na escrita: o dinheiro recebido por herança paterna. Essa possibilidade salva também Auster
de ser um sub-Kafka ou sub-Beckett, autores de sua predileção.
O ritual de passagem para a visibilidade do escritor é o acerto de
contas com o pai, “o homem invisível”, seu primeiro personagem,
primeiro de uma série de personagens anônimos, como veremos
mais a frente.
O fascínio pelo anonimato e pela invisibilidade também está
encarnado no escritor Reznikoff por sua humildade para com a
linguagem e também para consigo mesmo (p. 51), por uma vida
na obscuridade, mas sem ressentimento (p. 52): “Estou preocupado/ com as bobagens/que falei./Preciso de uma dieta/de silêncio;/
fortalecer-me na quietude” (REZNIKOFF, p. 51). Reznikoff é um
estrangeiro que só encontra um lar em Nova Iorque.
Auster talvez pudesse se encontrar no seu interesse por
Reznikoff como Joseph Mitchell na fala de Joe Gould, num jogo
de espelhos entre o jornalista bem-sucedido da New Yorker, pai de
família e o vagabundo intelectual e fracassado nas suas realizações
e pretensões:
• 151 •
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
Em minha cidade natal, nunca me senti à vontade, escreveu certa vez.
Eu destoava. Nem em minha própria casa eu me sentia em casa. Em
Nova Iorque, principalmente no Greenwich Village, entre os maníacos, os desajustados, os que têm só um pulmão, os que já foram alguma coisa na vida, os que poderiam ter sido, os que gostariam de ser,
os que nunca serão e os que só Deus sabe, sempre me senti à vontade
(MITCHELL, 2001, p. 33).
A cidade moderna é para Auster o espaço por excelência da
invisibilidade, mais até do que do anonimato:
Somente na cidade moderna pode o observador permanecer invisível,
assumir sua posição no espaço e, não obstante, permanecer transparente. Mesmo ao se tornar parte da paisagem onde entrou, ele continua
sendo um forasteiro. Por conseguinte, objetivista. Quer dizer – criar
um mundo ao redor de si vendo-o como um estranho faria. O que
conta é a própria coisa, e a coisa vista só poderá adquirir vida quando
seu observador tiver desaparecido. Nunca pode haver qualquer movimento em direção à posse. Ver é o esforço por criar presença: possuir
uma coisa seria fazê-la desaparecer (A arte da fome, p. 40).
Então será uma outra Nova Iorque que aparecerá das páginas
de Auster, não mais das vanguardas dos anos 1960, nem a Nova
Iorque cada vez mais pop e rica, paraíso yuppie dos anos 1980,
mas certamente sem o glamour da vida boêmia. Viver custa caro,
particularmente em Nova Iorque. Não há muito tempo para paisagens espetaculares como na abertura de Manhattan (1979), de
Woody Allen, nem tempo para nostalgias. Tudo se eclipsa rápida
e suavemente.
A invisibilidade não está só associada ao fascínio romântico
pelo marginal, mas à constituição de uma subjetividade-paisagem,
transpassada pelos influxos do mundo, resposta ao excesso de
informação e a estímulos de toda sorte.
Mais do que talvez a Nova Iorque da Trilogia, há uma outra que
lhe chamou mais a atenção, vista um pouco enviesada, a partir do
Brooklyn, do outro lado da ponte, de onde veio também outro criador
•
152
•
Andando com Paul Auster
de paisagens, Paul Miller (DJ Spooky). Essa outra cidade aparece
nos filmes que Paul Auster co-dirigiu com Wayne Wang: Cortina
de fumaça (1995) e sua continuação mais descompromissada, Blue
in the face (1995). Na tabacaria da esquina, seu dono passa os anos
tirando fotos da mesma posição. As pessoas se tornam aparições,
mesmo revelações, como a mulher falecida do amigo escritor. As
fotos são, ao mesmo tempo, banais, uma entre tantas outras, mas
podem se tornar significativas para quem olha. Em Cortina de fumaça,
são conjugadas a banalidade da narrativa e a poesia da paisagem.
De certa forma, aqui são incorporadas preocupações presentes em
vários filmes experimentais que procuraram registrar a banalidade
e a passagem do tempo, de forma mais sensória e talvez mais difícil
para o espectador médio, como no caso de Still (1969-1967), de
Ernie Gehr, em que uma câmera fixa registra a passagem de um
dia em uma rua, supostamente em Nova Iorque, estabelecendo essa
passagem do tempo também não só pela mudança do jogo de luz e
sombras, mas também pela superposição das imagens das pessoas
e carros que passam com imagens refletidas, criando um jogo de
fantasmagorias e simultaneidades.
Na tabacaria, lugar de passagem, mas também de encontros,
vários dramas de paternidade são encenados. A perda se transforma
em desejo de procura, de reconstruir, de reencontro, de solidariedade, de amizade entre homens, como se fechasse o ciclo iniciado
por Retrato do homem invisível.
Diferente de Paris, Texas (1984), de Wim Wenders, em que
o foco está no pai que reaparece, em Retrato do homem invisível,
breve e tocante texto de Auster, o foco está na perda irreparável
com a morte do pai, morte que, no entanto, possibilitou sua vida
como escritor, uma invisibilidade que possibilitou uma presença
por frágil que seja.
Auster não silenciou como Joe Mitchell depois de escrever
seu último texto sobre Joe Gould, nem ficou no anonimato como
Reznikoff, mas construiu, na literatura contemporânea, a partir
dos anos 1980, uma das carreiras mais profícuas e bem-sucedidas
• 153 •
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
junto ao público e à crítica. Contudo, tem uma obra não sobre os
que “chegaram lá”, os que ganharam um lugar ao sol, ao som de New
York, New York, na voz de Liza Minelli. Talvez por saber que, na
indústria cultural, é bem mais fácil e provável descer, uma vez tendo
subido, do que se manter visível. Como Suzanne Vega (lembram?),
no auge da fama, falava: “Há um ano, tocava em bares, onde estava
esta multidão? Ela pode também não estar aqui no ano que vem”.
Mais do que consciência da fugacidade do mundo do entretenimento
e de sua necessidade de fabricação de ídolos e stars, há uma forma
de ver o mundo e uma poética que se constróem sobre a fragilidade
pela invisibilidade.
Voltamos então ao seu primeiro personagem invisível, seu
pai, em Retrato do homem invisível. Misturam-se fotos e textos,
fragmentos de memória. Se Rilke já nos prevenia: “As coisas desaparecem. Temos de nos apressar se quisermos ver alguma coisa”.
Para Auster, a desaparição não está só na cidade, mas no interior
da casa: “Meu pai se foi. Se eu não agir depressa, toda a sua vida
desaparecerá” (O inventor da solidão, p. 8). É dessa pressa, premência quixotesca, que nasce esse texto de difícil definição, entre
a biografia e o romance, entre a imagem e a narrativa. O retrato de
seu pai marca de forma indelével toda uma série de personagens
semelhantes na sua ficção:
Isento de paixão, fosse por alguma coisa, pessoa, ou idéia, incapaz
ou indesejoso de revelar-se em qualquer circunstância, ele conseguira
manter-se à distância da vida, evitar a imersão na rapidez das coisas.
Comia, ia para o trabalho, tinha amigos, jogava tênis, e apesar disso
não estava ali. No sentido mais profundo e inabalável, era um homem invisível. Invisível aos outros, e muito provavelmente invisível a
si mesmo (O inventor da solidão, p. 9).
Longe do homem medíocre, um homem comum, imperceptível
e discreto. Estranho na sua própria casa, “a verdade é que sua vida
não girava em torno do lugar onde ele morava. A casa era apenas
um dentre muitos pontos de escala numa existência inquieta e
•
154
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Andando com Paul Auster
sem amarras, e essa ausência de centro teve como conseqüência
transformá-lo num eterno estrangeiro, um turista em sua própria
vida”. A casa parecia irreal, “mantida em ordem, mas em processo
de degradação” (p. 12), povoada por objetos de um morto (p. 13).
Poderia parecer idiossincrático, não como um freak, mas talvez como o protagonista de Historia real (1999), de David Lynch,
estranho e solitário na sua condição extremamente comum.
Solitário. Mas não no sentido de estar só. Não solitário do modo
como foi Thoreau, por exemplo, exilando-se para descobrir quem
era; não solitário à maneira de Jonas, rezando pela salvação no
interior da baleia. Solitário no sentido de isolado. No sentido
de não ter de enxergar a si mesmo, ou de não ter de enxergarse sendo enxergado por outra pessoa (p. 19).
A herança paterna não é mais a do patriarcado, mas a de ser
uma sombra, talvez o destino do filho, o autor em formação.
Nosso destino é enfrentar o mundo tal como órfãos, perseguindo
por longos anos as sombras de pais desaparecidos. Nada resta
senão tentar levar a cabo nossas missões o melhor que pudermos,
pois até o fazermos, calma alguma nos será permitida.
Dessa forma, é resumida não só a procura do protagonista de Quando
éramos órfãos, de Kazuo Ishiguro (2000, p. 392), mas a orfandade
é colocada como uma condição da subjetividade contemporânea.
Também em Auster, repetimos, a procura do pai marca sua escrita.
No princípio havia o pai, ausência e invisibilidade. A morte do pai
marca esta escrita órfã, frágil. O pai desaparece. Termina o relato.
Da impossibilidade de dizer algo de satisfatório sobre o pai, mas
ainda assim de tê-lo feito, é que nasce um escritor.
Em Trilogia de Nova Iorque, logo em seu primeiro romance,
Cidade de vidro, temos já não mais um escritor em formação, mas
um que está desaparecendo: “Já não existia mais para ninguém
senão para si mesmo” (Trilogia de Nova Iorque, p. 10), não dava
entrevistas, não estava em catálogo de escritores, sem amigos, com
• 155 •
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
mulher e filho mortos. Nova Iorque aparece como lugar para se
perder, não para conhecê-la melhor como para Walter Benjamin,
mas para se transformar, ser outro, paisagem ideal para uma subjetividade não-centrada. A observação e as caminhadas lhe traziam
“uma certa paz, um saudável vazio interior. O mundo estava fora
dele, em volta, à frente, e a velocidade com que se modificava sem
parar tornava impossível para Quinn deter-se em qualquer coisa
por muito tempo” (p. 11). Nova Yorque era um lugar nenhum que
Quinn não tinha desejo de deixar.
Curiosamente, ele só sai dessa mistura de luto e distanciamento,
quando assume um outro nome, justamente Auster. “Sentiu uma
serenidade extraordinária, como se tudo já tivesse acontecido com
ele” (p. 20) “Um homem sem interior nenhum, um homem sem
pensamento”, “uma casca sem conteúdo” (p. 72). Ser Paul Auster
seria uma forma de Quinn se retirar de si mesmo, ser “mais leve
e mais livre” (p. 61). Não se trata de ver o peso de ser outro que
pouco a pouco toma o protagonista do filme Profissão: repórter, de
Antonioni, ao mudar de personalidade, nem simplesmente mais
um personagem na esteira de Bartleby, de Melville, personagem
da recusa, do não. Quinn, ao se nomear como Auster, deixa de ser
escritor para ser investigador, passa a observar e a estar-no-mundo:
“Não fui contratado para entender, mas para agir” (p. 49).
Mas tudo muda quando finalmente encontra o “verdadeiro”
Paul Auster, pelo menos, o outro. Este identifica Quinn como
escritor de poesia. Quinn se torna uma potencialidade de Auster,
caso este tivesse perdido mulher e filho, caso sua carreira de escritor
não tivesse sido tão bem-sucedida. Passamos a ver a contraface de
Auster em Quinn, um vagabundo solitário; como Joe Gould seria
o outro lado de Joseph Mitchell.
Como Peter Stilman, Quinn também vai desaparecer. “Estar
dentro daquela música, ser arrebatado para dentro do círculo das
suas repetições: talvez esse seja um lugar onde possamos por fim
desaparecer” (p. 22). Ao vigiar em vão o prédio de Stilman, Quinn
cada vez precisava de menos coisas. “Ninguém jamais notou a
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156
•
Andando com Paul Auster
presença de Quinn. Era como se ele se estivesse dissolvido nos muros
da cidade” (p. 131). Por fim, acaba por se mudar para o apartamento
vazio de Peter Stilman. Diante da constatação do constante desaparecimento, de nada adiantar a tarefa do detetive — “Tantas coisas
estavam desaparecendo, era difícil seguir o rastro delas” (p. 143)
—, o livro termina com a constatação de mais um fracasso, mas
também de uma libertação. “Nada mais importava agora senão a
beleza de tudo isso. Queria continuar a escrever sobre essas coisas
e sofria por saber que não seria possível” (p. 146).
Em No país das últimas coisas, sai o diálogo com o romance
policial, o filme noir, e entra o imaginário de uma ficção científica
apocalíptica: prédios sendo destruídos, cidade sem crianças, sem
árvores — usadas para combustíveis —, sem animais domésticos,
sem pássaros, num quadro de escassez, falta de comida, brigas inesperadas, em que pessoas magras são levadas pelo vento e metade
da população é de desabrigados. Há cadáveres por todos os lados.
A cidade deixa de ser Nova Iorque para ser um espaço ampliado
da desaparição, mas algo existia além de suas fronteiras. Em meio
às ruínas de uma cidade, pessoas que desaparecem, suposições que
evanescem, sobreviver é o que importa: continuar caminhando,
com pouca comida, em meio à fraqueza, à procura do irmão que
desaparecera — essa a perspectiva da protagonista. Diante da perda
até da memória, é necessário saber desaparecer: “Nunca pense em
nada, dizia. Simplesmente, dissolva-se na rua e finja que seu corpo não existe. Nada de meditações; nada de tristezas ou alegrias;
nada a não ser a rua; esvazie-se por dentro, concentre unicamente
no próximo passo a ser dado. Dentre todos os conselhos, esse foi
o único que nunca cheguei a compreender” (No país das últimas
coisas, p. 54).
Em meio a tanta precariedade o que subsiste é a fraternidade,
representada pelo amor entre duas mulheres, é a amizade entre os
dois protagonistas de Cortina de fumaça, diante da imponderabilidade de tudo, semelhante à fumaça de um cigarro que desaparece.
Também no escrever não é possível mais o livro, uma obra total;
• 157 •
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
restam cadernos e cartas, sem perspectiva de leitores: “Não tenho
explicação. Só consigo narrar, não posso fingir compreender” (p. 25).
“Estas são as últimas coisas, escreveu ela. Uma a uma, vão desaparecendo para nunca mais voltar. Podia lhe falar nas que vi, nas que
já não existem, mas duvido que haja tempo. Tudo vem acontecendo
muito depressa, já não consigo reter os fatos”(p. 71).
Este mundo em desamparo aparece com uma brecha em Palácio
da Lua, já presente no nome do protagonista – Fogel – que quer
dizer pássaro: “Imaginei que algum bravo antepassado meu tivesse mesmo sido capaz de voar. Eu o via como um pássaro gigante
que, em meio à névoa, atravessara o oceano sem parar, até chegar
à América” (p. 11). É o verão de 1969, da chegada do homem à
Lua, mas a Lua aqui também é do letreiro em neon do restaurante
chinês, chamado justamente “Palácio da Lua”. Próxima e distante,
natural e artificial, devaneio e materialidade, essa é a paisagem4
contemporânea desse romance-síntese da obra de Auster, não mais
à sombra dos gêneros, para além mesmo da memória da perda, da
orfandade. Um romance de aventura, mas de uma aventura poética, como a viagem de Cyrano de Bergerac à Lua, uma aventura
ambiciosa de refundação de um país, já presente na epígrafe de
Jules Verne: “Nada pode assombrar um americano”. Ou como no
biscoitinho chinês: “O Sol é o passado; a Terra, o presente; a Lua,
o futuro” (p. 106). Se não é possível ir à Lua, vai-se para o Oeste,
atravessando o deserto até chegar a reencontrar a Lua, às margens
do Pacífico. O protagonista se funde com a Lua, num eclipse total,
na transformação em uma paisagem que desaparece.
Mas para chegar a este encontro poético, o protagonista experimentou a deriva por Nova Iorque como vagabundo até o encontro
com Effing, mais uma figura paterna na ficção de Auster, pintor cego
desaparecido, fascinado pelo mundo das sensações, pelo ar na pele,
pela luz invisível, “música do nosso avanço pelas ruas” (p. 135), em
4
Para a importância do espaço na tradição do romance norte-americano, ver
MIQUEL, 1997, p. 47.
•
158
•
Andando com Paul Auster
um mundo sem transcendência metafísica. É Effing que recomenda
a Fogg diante de um quadro: “Veja se consegue entrar na paisagem
que está na sua frente. Veja se é capaz de penetrar na mente do artista
que pintou aquela paisagem. Imagine que você é Blakelock a pintar
aquele quadro” (p. 146).
Como o vigia em Enigma de um dia, de Joel Pizzini, que nada
fala diante do quadro, mas realiza uma viagem pelo mundo, como
se este fora tela. Também é nesse sentido que podemos entender
o encontro de Fogg com o deserto narrado por Effing e traduzido
numa “obra profundamente contemplativa, uma paisagem de intimismo e calma” com uma lua no meio (p. 148), ou talvez melhor,
“não era uma paisagem, mas um momento, uma canção de luto por
um mundo desaparecido” (p. 150).
No deserto, “lugar de silêncio, sem linguagem, última parte
[dos Estados Unidos] a ser explorada” (SOLNIT, 2001, p. 75); “tudo
é volumoso demais para ser pintado ou sonhado; nem mesmo a
fotografia consegue captar aquela atmosfera. Tudo é tão distorcido,
é como tentar reproduzir as distâncias do espaço sideral; quanto
mais se vê, menos o lápis é capaz de reproduzir. Ver aquilo é fazer
com que desapareça” (Palácio da Lua, p. 167) Não se trata apenas
de um tema, de uma representação que nem os filmes conseguiram mostrar. “Como desenhar uma paisagem asssim, toda igual?
Entende o que estou dizendo, não é mesmo? Deixei de me sentir
humano” (p. 165). Trata-se de um novo aprendizado, de uma outra
subjetividade. Ele
desaprendeu as regras que assimilara, confiando na paisagem,
tratando-a como companheira, de igual para igual, abandonando
voluntariamente suas intenções à força das singularidades, às
investidas do acaso e da espontaneidade. Não mais temia o vazio
ao redor. A tentativa de transpô-lo para a tela de algum modo o
internalizara. Agora era capaz de sentir a indiferença desse vazio como
algo que lhe pertencia, assim como ele pertencia ao poderoso silêncio
daqueles espaços vastíssimos [...] Até lhe parecia, enquanto pintava,
que a paisagem ia sumindo diante dos seus olhos (p. 180-181).
• 159 •
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
Trata-se de um real irreal. Esse aprendizado se traduz numa libertação
do mundo, mas dentro do mundo, para além de qualquer busca de
origem. O futuro está no ar, como previu Edgar Allan Poe.
Era já noite. Depois de terem andado muito naquele dia, Paul
Auster e ele descansaram num banco do parque. Surpresos, uma
lua imensa e amarela nasceu. Não, não era um sonho.
Referências
AUSTER, Paul. O inventor da solidão. São Paulo: Best Seller, 1982.
______. Palácio da Lua. São Paulo: Best Seller, 1990.
______. No país das últimas coisas. São Paulo: Best Seller, 1992.
______. A arte da fome. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996.
______. Música do acaso. 2. ed. São Paulo: Best Seller,
______. Trilogia de Nova Iorque. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.
______. Leviatã. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
BRANDÃO, Luis Alberto. Mapa volátil. In: ______. Grafias da
identidade: Literatura contemporânea e imaginário nacional. Rio de
Janeiro: Lamparina Editora FALE; Belo Horizonte: Editora UFMG,
2005.
COCHOY, Nathalie. Prête-moi ta plume: La face cachée de New
York dans la Trilogie et Dans Moon Palace. In: DUPERRAY, Annick
(Org.). L’ oeuvre de Paul Auster: approches et lectures plurielles.
Paris: Actes Sud/Université de Provence-Irma, 1995.
GAVILLON, François. Paul Auster: gravité et légèreté de l’ ecriture.
Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2000.
ISHIGURO, Kazuo. Quando éramos órfãos. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.
•
160
•
Andando com Paul Auster
MIQUEL, Catherine Pesso-. Sauts de puce sur la carte: discontinuité
spatiale. In: ______. Toiles trouées et déserts lunaires dans Moon
Palace de Paul Auster. Paris: Sorbonne Nouvelle, 1996.
MITCHELL, Joseph. O segredo de Joe Gould. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
SOLNITT, Rebecca. As eve said to the serpent: on landscape, gender
and art. Athens: University of Georgia Press, 2001.
SPRINGER, Carsten. Paul Auster sourcebook. Peter Lang, 2001.
VIRILIO, Paul. Esthétique de la disparition. Paris: Balland, 1980.
• 161 •
A viagem não tem fim. Só fica cada vez mais intensa.
Do ruído emerge a suavidade.* O importante não é a
dissonância provocada pelo som alto, como nas fusões
entre punk , hardcore e música eletrônica. As massas
sonoras se somam num crescendo, ondas de um oceano.
Sem delírios surrealistas, psicodélicos. Apenas a viagem
pela música. Êxtase diante da contemplação de uma
paisagem sonora, de um mundo que não cessa de ser
criado. Repouso depois das derivas urbanas, estradas
percorridas, desencantos, desencontros. Nada de
misticismo new age . O sublime está na materialidade
e no fluxo do próprio som. Não há fala, voz soterrada
das outras faixas, não é preciso. Só a música fala
da fragilidade do sujeito, sem o dilaceramento do eu
romântico, expressionista, existencialista, punk gótico.
É possível a beleza sem ironia, sem pieguice? A viagem
poderia continuar para sempre, mas tem que parar.
A bateria ecoa solitária. Silêncio. Ela sorriu e enfiou a
chave na porta.
* Escutando a última faixa, A saga sem fim de Gollo Galático, do CD A coerência é
uma armadilha, de Frank Poole.
Música para desaparecer
1
For things that I desire and have not got
For things I have that I wish I had not,
You compensate me,
Stones.
Marianne Moore
A
música ambiente dá uma das respostas éticas e estéticas
mais fecundas diante do excesso de informação, de rapidez
no nosso mundo, Ao resgatar um espaço acústico, “sem
um centro orientador, só muitos centros flutuando num sistema
cósmico que honra só a diversidade” (MCLUHAN e POWERS,
1989, X), parte de um último encontro entre Oriente e Ocidente,
no quadro da globalização tecnológica, sem o imperativo único
do capital.
A música ambiente é um fecho dessa trajetória que começou
com o sublime no banal, passou pela leveza, por uma poética do
cotidiano e se encerra nesta discussão sobre a paisagem. Em meio
à proliferação de imagens e sons em simulacros, colagens, samplers,
pastiches e paródias; a música ambiente, discreet music (Brian
Eno), deseja recuperar um frescor como narrativa do cotidiano,
como poética da contenção diante do excesso e dispêndio cada vez
1
Versão anterior deste texto foi publicada em Comunicação & música popular
massiva, organizado por João Freire Filho e Jeder Janotti Jr., EDUFBA, 2006.
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
mais incorporados a uma sociedade de consumo; uma poética de
delicadeza e sutileza diante do grotesco e do abjeto cada vez mais
banalizados pelos meios de comunicação de massa.
Take a walk at night. Walk so silently that
the bottoms of your feet become ears.
Pauline Oliveros
Se a música pop colocou como central os afetos, a noção de
paisagem pode dar uma outra inflexão neste debate. A música pop
se constituiu em grande parte na mística do vocalista enquanto
star e no uso da voz como forma de articulação das experiências
dos ouvintes, marcando seus cotidianos e suas memórias. Mas,
nos anos 1970, emerge na música pop a noção de paisagem ou
ambiência que possibilita uma alternativa ao excesso do envolvimento
romântico com a música, nos complexos jogos de identificação e
estranhamento entre fã e ídolo.
A introdução da categoria de paisagem sonora na cultura pop
desconstrói o formato da canção curta e marcada por refrões, associada comumente à tradicional constituição das bandas de rock com
vocal, guitarra, baixo e bateria. Isto está presente não só na música
ambiente, entendida inicialmente como um subgênero da música pop
eletrônica, mas em várias formas do rock, chamado por alguns de
rock de arte (BAUGH, 1994), no fim dos anos 1960 e início dos anos
1970, que bem pode incluir uma variedade de tendências, como o
psicodélico e o progressivo, que, no diálogo com formas sinfônicas,
na elaboração da música como uma viagem, constrói uma música
mais para a cabeça do que para os pés. Na indissociação entre som e
imagem, na incorporação de teclados, sintetizadores, em usos diferenciados da guitarra, para além do solo, essas tendências afirmam
a noção da música como ambiência, paisagem. Dando um salto no
tempo, podemos identificar esse movimento no pós-punk do início
dos anos 1980, em trabalhos de bandas populares como Cure a outras menos conhecidas como Durutti Column ou Cocteau Twins e
no “pós-rock” (REYNOLDS, 1995) dos anos 1990 de bandas como
•
166
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Música para desaparecer
Tortoise, em detrimento de momentos mais puristas, de ênfase no
formato básico e despretensioso, do rock dos anos 1950 ao hardcore
e ao grunge.
Seria o caso de resgatarmos a paisagem não como mera invenção
de habitantes da cidade, cansados do seu ritmo (ainda que isto tenha
uma certa verdade histórica, a partir do Romantismo), mas de construirmos “uma paisagem que já não se vê, desde que nós moramos
aqui mesmo” (SERRES, 1998, p. 196), quebrando a dualidade entre
sujeito e objeto, entre o que olha e o que é contemplado, não como
mero gesto vanguardista de quebrar as fronteiras da representação,
mas colocando em pauta uma outra subjetividade.
A paisagem, num primeiro momento, se situa na tradição da
história moderna das artes plásticas, constituindo-se para alguns
historiadores como a “principal criação artística do século XIX”
(CLARK, 1961, p. 15), incluindo grandes pintores como Turner
e Constable até chegar no Impressionismo, em Cézanne, adentrando no século XX pela mão das vanguardas expressionistas e
surrealistas, até chegar às experiências contemporâneas da land art
(TIBERGHIEN, 1993). Mesmo que a música seja nosso objetivo,
podemos recuperar o sentido da paisagem como “ligada a um ritual,
maneira de existir graça aos objetos” , no “instante de sua aparição”
(CAUQUELIN, 1989, p. 14).
Ao usarmos a palavra paisagem no contexto da música, ela se
situa, por um lado, num momento em que o conceito de música
se amplia enormemente, incluindo a rigor todo som que é produzido, dialogando com o acaso e com o cotidiano. É neste sentido
que R. Murray Schaffer fala de uma paisagem sonora em que “os
ruídos são os sons que aprendemos a ignorar” e de uma espécie
de ecologia sonora que mapeia os sons do mundo (2001, p. 18),
em sintonia com as aberturas realizadas na história da música
erudita, aproximando mais vida cotidiana e arte, empreendendo
uma reeducação da audição, como declara John Cage: “As pessoas
podem deixar meus concertos pensando que ouviram barulho,
mas elas ouvirão belezas inesperadas na sua vida cotidiana” (apud
• 167 •
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
SCHAFFER, 2001, p. 184), destacando, para nosso caso aqui,
sobretudo a série Imaginary landscapes, em que “o uso de sons
quietos se contrapõem ao que é grande na sociedade” (KHAN,
2001, p. 185). Ao seguir o pioneirismo de Erik Satie que considerava
“a música como uma contribuição para a vida da mesma forma que
uma conversa particular, um quadro ou uma cadeira em que podemos sentar ou não” (idem, p. 180), desmistifica-se o processo de
especialização da música, com o risco, no caso de Murray Schaffer
(1993), de uma nostalgia de um mundo pré-cultura de massa, mas
chegando a ponto de termos declarações radicais como as de Cage,
repetida por Brian Eno, ao se considerar um “não-músico” (CAGE,
1961, p. 79),2 no sentido de ser não tanto criador, mas “arquiteto
de sons” (SCHAFFER, 2004, p. 30) ou um realizador de sínteses,
como Eno diz no filme Imaginary landscapes (1989), dirigido por
Duncan Ward e Gabriella Cardazzo.
Ocean of sound, de David Toop, parece mais rico do que o trabalho clássico de Murray Schaffer, ao fazer uma espécie de genealogia
da paisagem, da noção de ambiência, pelo século XX, de Satie à
música eletrônica pop nos anos 1990, por meio de uma mistura de
ensaísmo, depoimentos, entrevistas, narrativas, fragmentos, em
que a música se apresenta como “paisagem onde o ouvinte pode
caminhar” (TOOP, 1995, XI). Livro que interessa tanto pela sua
construção em aberto quanto pela sua aproximação com a música
ambiente, especialmente a um dos seus mais notáveis artistas e
pioneiros na esfera pop: Brian Eno.
Seria importante inserir a música ambiente em uma tradição,
tanto das artes plásticas como da literatura, que remonta ao Impressionismo, não o considerando “como episódio curto e limitado da
história da arte e [que] há muito deixou de ter relação com o espírito
2
Não é inútil lembrar que as declarações de Eno a partir de 1976 são simultâneas à
explosão do punk, movimento que critica a mistura pomposa da música erudita
do século XIX, no então chamado rock progressivo, fazendo dos músicos de rock
mais que virtuoses de seus instrumentos, técnicos acadêmicos. Vários punks
declaram “não saberem tocar” antes de começarem a ter uma banda.
•
168
•
Música para desaparecer
criador de nossa época” (CLARK, 1961, p. 123). O Impressionismo
foi criticado por “limitar a pintura a puramente sensações visuais”,
entendido com um “aflorar a superfície de nosso espírito” (idem,
p. 125) e uma “pintura da felicidade”. O que gerava uma limitação,
nos termos deste defensor da dimensão trágica da arte moderna,
porque “os impressionistas estavam distantes das mais profundas
intuições do espírito humano” (idem, p. 141).
Portanto, resgatar o Impressionismo implica não só “compreender a sensibilidade impressionista [que] envolve, portanto,
uma expansão enorme das faculdades de percepção sensual e um
aguçamento dos sentidos, pois o intelecto sozinho é totalmente
incapaz de apreender o significado do tempo, do movimento e da
vida” (KRONEGGER, 1973, p. 39), diferenciando-se da subjetividade transcendente do Romantismo e da objetividade onisciente
do Realismo (STOWELL, 1980, p. 4), na busca de uma atmosfera
difusa, mas material.
Também o resgate dessa trajetória não seria apenas para identificar uma espécie de perversão da leveza quanto mais dentro da
arte da alta modernidade, na medida em que o Impressionismo
cede mais lugar ao Expressionismo e a leveza se substitui pelo
excesso, mas também para lançar luzes sobre uma possível e sutil
volta da leveza no presente, no prazer de olhar à deriva, seja nas
ficções de viagem ou no desafio do invisível, seja no Minimalismo
ou na música ambiente. Se o Impressionismo pictórico representa
hoje um gosto visual basicamente acadêmico e o culto de imagens
e sons atmosféricos acabou se constituindo numa arma essencial
para a publicidade, que quer vender uma atitude antes de vender o
produto, isso diz tanto da dificuldade como do interesse do retorno
do impressionismo como um imaginário no seio da sociedade de
massas.
O Impressionismo seria, portanto, menos um efeito de iluminação, um estilo de época do que uma base para construir a
genealogia de uma estética da leveza para a contemporaneidade,
para a arte que se constrói na pós-vanguarda, a partir da segunda
• 169 •
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
metade dos anos 1970, bem como o vislumbre de um mundo onde
a suavidade está presente e possibilita se pensar em uma felicidade
possível, uma “modesta alegria” (ABREU, p. 157).
Mas antes de falarmos sobre Brian Eno, seria importante lembrar Erik Satie, a partir da provocação irônica de uma de suas peças
executada num intervalo de uma peça de Max Jacob, em 1920. Satie
defende a criação de uma música “como mobília, parte dos barulhos do ambiente, que os leve em consideração, [música] feita para
preencher os silêncios pesados que, às vezes, caem entre amigos
jantando juntos. Essa música os pouparia de prestar atenção a suas
observações banais. E, ao mesmo tempo, neutralizaria os barulhos
que vindos da rua tão indiscretamente entram na conversa. Fazer
tal música corresponderia a uma necessidade” (apud CAGE, 1961,
p. 76). Assinale-se que Cage e Eno procuram mais incorporar os
sons do ambiente do que neutralizá-los (TAMM, 1988, p. 28). Outro
ponto comum importante entre Cage e Eno seria a aproximação
da paisagem sonora a uma visão material: “Eu nunca me interessei
em simbolismo. Preferia considerar as coisas por elas mesmas, não
por outras coisas” (CAGE, 1961, p. 85).
Quanto à relação entre Cage e Eno, seria interessante lembrar
certas aproximações: reintrodução da espiritualidade na música,
fascínio pelo acaso, interesse pela filosofia oriental, atitudes irreverentes em direção aos princípios canônicos da música de arte
ocidental, tipografia não convencional, livre utilização de mídia
escrita e musical, a composição como processo, e o axioma sempre
repetido de que todos os sons têm o potencial de serem vivenciados
como música (TAMM, 1988, p. 29-31). Há algumas diferenças entre
seus programas: Cage busca composições musicais livres do gosto
individual e da memória; Eno enfaticamente não está interessado em
fazer música livre do gosto individual e da memória, mas tem “um
desejo de fazer música com uma superfície francamente sedutora
e que desperta a emoção de encantamento” (idem, p. 31). Talvez
por suas raízes musicais estarem na cultura pop, com superficial
conhecimento da tradição musical erudita, a música de Eno é mais
•
170
•
Música para desaparecer
consonante e acessível do que muito do trabalho de Cage (idem,
p. 33). A componente emocional da música ambiente de Eno é
forte, mas está usualmente presente como um tipo de subcorrente
profunda; não explode na superfície da música, nem confronta o
ouvinte com um propósito direto, expressionista (idem, p. 89). Eno
não hesita em criticar o excessivo intelectualismo e a não-sensualidade suficiente da música experimental, da “música eletrônica sem
coração” (idem, p. 56). Mas diferente de muito da música pop, Eno
não está interessado em canções de amor (idem, p. 90), mais uma
vez, próximo, ainda que por motivos diferentes, do punk.
Brian Eno3 constrói sua carreira solo ao se afastar do Roxy
Music, banda glitter que ajudou a criar, e no meio dos anos 1970
vai dar uma guinada no álbum Before and after science. O primeiro
lado remetia às perversões próximas ao Roxy Music e, no segundo,
inicia um caminho na recusa do estrelato pop. Sua voz começa a se
retirar em favor do instrumental. Ao lado da listas das músicas na
contracapa, há quadros que remetem a paisagens sem a presença
humana — recusa do narcisismo egocêntrico da indústria de pop
stars e de uma aspereza de uma tradição mais cerebral da música
erudita.
Curiosamente, a partir de então, nas capas, seu rosto foi
substituído por imagens que evocam mapas. O sujeito se eclipsa,
como também o objeto. Não mais falar de si, nem dançar em êxtase
permanente. Em meio à explosão do punk e da disco, Eno prefere
a discrição de ser um “pintor de sons ou construtor de paisagens
sônicas”. O que “mais do que uma metáfora” trata-se de “considerar
a fita magnética como tela” (TAMM, 1988, p. 100), na tradição dos
cantores que pintavam com palavras a partir da psicodelia (idem,
p. 127); ser um criador de trilhas para novos espaços, de pausas e
silêncios, em contraponto ao ruído e ao excesso, ou ser produtor
de trabalhos como a coletânea No New York, da guinada terceiromundista dos Talking Heads e da deriva eletrônica do U2. O próprio
3
Para uma visão mais global da carreira de Brian Eno, ver TAMM, 1988.
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
Eno sintetiza sua posição e seu afastamento do rock numa entrevista
feita em 1980: “Uma das coisas belas sobre o tipo de música que
estou fazendo agora é que ela me faz sentir muito desimportante.
Eu gosto deste sentimento. O rock, por outro lado, tende a me fazer
sentir muito importante” ( apud idem, p. 43).
Ao ouvirmos, como exemplo, a penúltima música de Before
and after science, By the river, percebemos que a canção coloca
em pauta uma questão central de sua obra a partir daí: “A música
de Eno é divinamente simples ou meramente simplista, primal
ou elementar?” (idem, p. 18). A música apresenta duas pessoas,
um casal talvez, que contempla o rio passar. O fluxo do tempo e a
correnteza do rio se interligam. A música é um quadro, cria uma
paisagem temporal, ainda no formato curto de uma canção pop,
mas no limiar da dissolução que ocupará seu trabalho seguinte e
manifesto da música ambiente Music for the airports. A música
ambiente é, então, definida como uma atmosfera, ou, para usar as
próprias palavras de Eno “uma influência que nos rodeia, um matiz”
(ENO, 2004, p. 97), carregada de dúvidas e incertezas que acentuam
idiossincrasias atmosféricas e acústicas mais do que as ocultam,
nesse sentido diferente da “muzak”, que busca preencher de forma
homogeneizante o espaço, acrescentando estímulos que busquem
aliviar o tédio das tarefas rotineiras, tornando o “vazio menos assustador” (KASSABIAN, 2002, p. 137). A música ambiente leva à
calma e constrói um espaço para pensar, acomoda vários níveis de
prestar atenção sem reforçar um em particular (ENO, 2004, p. 97).
O que implica ouvir a música de forma quase sem ser ouvida, um
sussurro. A ambiência é a “cor da luz” e o “som da chuva” (ENO
apud SHAPIRO, 2000, p. 159).
Para Eno, a música ambiente está associada ao uso de sintetizadores, reverberações e ecos (TAMM, 1988, p. 205). Música ambiente
denota música quieta, que dá a cor da atmosfera do local em que
é tocada; música com senso de espaço e profundidade, que está
em volta do(a) ouvinte, ao invés de ir até ele(a); é mais decorativa
do que expressionista, senão totalmente livre do gosto individual,
•
172
•
Música para desaparecer
memória, psicologia (como no ideal de Cage); na proposta de Eno,
falta o pathos da auto-importância e a apresentação confessional
de feridas psíquicas abertas (idem, p. 206).
Se houvesse uma paisagem que melhor sintetizasse a proposta
de Eno, esta seria um jardim. O jardim se distingue da cidade como
da natureza furiosa, tempestuosa e desértica. Seus limites também
devem ser defendidos da “interioridade ou do excesso de subjetividade” (STEWART, 2005, p. 111). O jardim é ameno, “a meio caminho
entre dois perigos, o da natureza e o da sociedade, o jardim oferece
um asilo desejado”. Sem temer a palavra, há uma forma da vida sábia
ilustrada pela forma jardim (CAUQUELIN, 1989, p. 53)
Nada de grandioso, retumbante, visceral; apenas detalhes,
pequenos gestos, notas frágeis que evocam um mundo etéreo, tão
tranqüilo quanto fugaz, recuperando o que de melhor o Impressionismo nos deixou como postura diante do mundo, que dissolveu
o eu romântico, suavizou o descritivismo naturalista. O que resta
não é a realidade, nem as emoções em primeira pessoa, mas traços,
vestígios, impressões.
Nutrindo-se dos clichês da muzak, da música feita para elevador,
para suavizar ambientes de tensão e trabalho, sem redundar no que
vai se chamar de música new age, trilha favorita de aulas de yoga e
meditação, a música ambiente, como encarnada neste trabalho de
Eno, lança um apelo à beleza do cotidiano, ao sublime no banal.
Pensar a possibilidade de uma música ambiente nos últimos trinta
anos implica uma diversidade de caminhos. A noção de paisagem
pode incorporar ruídos e dissonâncias, mesmo em bandas de rock,
na esteira do Velvet Underground, como Jesus and Mary Chain, My
Bloody Valentine, e sobretudo Sonic Youth, presente também no rock
industrial do Einstürzend Neubauten e do Nine Inch Nails, ou o clima
soturno no trip hop de Tricky, Portishead e Massive Attack.
Mas, a partir de Eno, seria importante mapear desde os trabalhos
lançados pela influente gravadora Warp, como Artificial intelligence
1 e 2, que em 1991-1992, passada a febre do êxtase das raves, dizia
fazer “música dançante para sedentários e para estar em casa”
• 173 •
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
(apud REYNOLDS, 1999, p. 181) e defendia na contracapa: “Você
está sentado confortavelmente? Inteligência artificial é para longas
jornadas, noites quietas e amanheceres sonolentos em clubs. Ouça
com uma mente aberta”.
E essa posição atinge nomes mais populares, como The Orb, que
resgata elementos do rock progressivo, passando por bandas como
Seefel ou Moby, que tem um CD chamado justamente de Ambient,
bem como as incursões do Aphex Twin in Selected ambient works,
volumes I e II, bem como KLF, Autechre e Black Dog. Sendo importante
destacar a emergência da cena ill-bient4 em Nova Iorque, catalisada no
CD Necropolis, espécie de No New York dos anos 1990, mixado pelo
DJ Spooky, que, em 1996, lança seu primeiro trabalho, Songs of a dead
dreamer, no qual em uma de suas últimas faixas, Terrain invasion of
Alpha Cantauri year 2794”, sintomaticamente Satie reaparece. Um ciclo
se fecha? É fato que nos últimos anos, a noção de música ambiente
se disseminou, mas perdeu sua noção de cena, como podemos ver
na sua presença em bandas como Air, no CD Vespertine, de Bjork,
ou ainda em bandas tão populares como Radiohead, no seu trabalho
mais surpreendente, Kid A, ou no retorno do sagrado na épica God
moving over the face of the waters em Everything is wrong que abre as
portas para transformar Moby em pop star com seu play.
Tudo é questão de manter
a mente quieta
a espinha ereta
e o coração tranqüilo.
Walter Franco
A atualidade da música ambiente aponta para longe das pistas de
dança. A festa acabou. Ainda que ela continue. E ela vai continuar,
mais de quinze anos depois do verão do amor na Inglaterra. Não a
vertigem do ato, mas a serenidade. Não o êxtase, o excesso, nem o
4
Nas palavras do próprio DJ Spooky, para falar de vários trabalhos de artistas originários do Brooklyn, como Byzar, We & Sub Dub, além de seu próprio: “Música
que cria paisagens distópicas minimais” (apud SHAPIRO, 2000, p. 219).
•
174
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Música para desaparecer
tédio de noite após noite, mas a sutileza, a claridade, a luz, um outro
corpo, em repouso. Não a nostalgia eletro, techno, house, drum and
bass, nem a canção pop, mas o som bruto, o gesto inútil, a voz solta.
Não mais dançar, mas contemplar. Ou dançar devagar, com vagar.
Olhar com o corpo. Menos altura, menos volume. Menos. Não o
grandioso, o retumbante, mas o pequeno, o banal. Não o eterno, mas
o precário, o que não dura. Não mais confissões, sentimentos, mas
a matéria, o corpo, a pele.
A música não é mais música, é um caminho, uma viagem, um
destino, um espaço, um ambiente, este ou outro. Nada de especial.
Um lugar onde se pode morar. Uma pausa. Um porto. Uma paisagem.
A paisagem redime o sujeito. A paisagem não fala de si, é. A paisagem
não é expressão, é impressão. Frágil marca. A paisagem não precisa
de porquês, nem de espectadores distantes. Exige pertencimento,
naufrágio, não mais ser, dissolver. Imagem. Quadro. Retorno ao
indefinido, ao inumano, ao mistério das superfícies. Frágil marca,
frágil texto. A paisagem solicita a adesão dos viajantes, andarilhos,
nômades. Onde há um lugar para se estar, para falar a frágil fala.
A sutileza como companhia da leveza e da delicadeza. Uma fala baixa,
um modo menor. Viagem poética.
A música é um mar. É preciso desatenção para ouvir. Som repetido,
quase imperceptível, quase invisível. É preciso tempo. É preciso se
deixar. É preciso não ter medo. As ondas vão chegando, envolvendo.
Você não quer fugir. Não consegue. Lentamente, o corpo se torna
leveza, ar, água, transparência. Espuma. A música não é sua, você é
da música. Você é música. Esta música fala da fragilidade do sujeito
sem o sujeito. Nem máquina, nem homem.
Referências
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
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• 177 •
Danço sem perceber no início. Gotas na terra. Vento nas
árvores. Pássaros no ar. O céu escurece de repente.
Parece que passou muito tempo. Você ainda percebe
o brilho dos meus olhos negros.
Bossatrônica e lounges
Para Ana Ochoa e Jairo Moreno
Now I will do nothing but listen.
Walt Whitman
N
este movimento que vai de uma estória que atravessa o
século XX e nosso recorte de pensar as paisagens sonoras dentro de uma música eletrônica pop, cada vez ficava
mais claro que não me interessava pensar a música ambiente como
subgênero. Por mais que gêneros e subgêneros em música, cinema
e literatura sejam tentativas de aglutinar obras para além de suas
singularidades, eles resultam cada vez mais em rótulos necessários
para revelar uma suposta novidade na indústria cultural, uma nova
tendência para jornalistas antenados usarem em suas resenhas,
consumidores acreditarem possuir a ilusão de terem gostos mais
específicos e refinados do que outros. Assim como a subcultura,
essas categorias pareciam perder o papel e a força que tiveram para
mapear subjetividades e práticas, num quadro cada vez mais marcado
por um ecletismo musical, flexibilização de fronteiras identitárias
de toda sorte. Se “há uma vasta síntese acontecendo agora”, como
vê o compositor John Adams (apud PRENDEGAST, 2000, p. 160),
talvez seja cedo para afirmar, nem sei se desejável, mas certamente
os gêneros se colidem e se colapsam cada vez mais.
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
Neste contexto, faria sentido buscar, como em nossa proposta
original, uma música ambiente brasileira?1 Certamente, poderíamos
pensar em músicos que moram no Brasil, mas a internet amplia
o quadro geográfico. Não se mora cada vez mais em um só país.
Também não gostaria de reduzir a música ambiente brasileira àquela
que tivesse um sabor local, incorporando de forma mais ou menos
superficial, mais ou menos criativa, ritmos associados a certas tradições da cultura popular. Caminho talvez mais fácil e tentador.
Por que rumo eu prossegui? Sem pretensões de totalidade, sem
querer mapear exaustivamente, nem me preocupar em definir uma
paisagem sonora brasileira, persisti no que me tocava mais, ao ouvir, de forma cruzada, os CDs que fosse encontrando ou me foram
enviados, que transitavam entre a configuração da música ambiente
por Brian Eno e seus herdeiros no mundo anglo-estado-unidense,
nos anos 1990, e uma virtual diluição dessas fronteiras, visível pela
constante insatisfação também dos músicos com a proliferação de
gêneros na música eletrônica.
A própria idéia de uma cultura lounge ou de uma cena ill-bient,
emergente na Nova Iorque de 1995-1996, se revelou cada vez mais
frágil como referência. No entanto, ao ouvir essas músicas, geralmente longe dos circuitos das grandes festas e raves, longe do que é
tocado em clubs e nas rádios, não queria reeditar qualquer atitude de
associá-las apenas com uma tradição experimental, supostamente
para um público restrito. Não me interessaram as instalações sonoras em galerias, as performances para circuitos intelectualizados.
Mesmo me restringindo à escuta e à experiência que vivenciava,
nunca deixei de considerar a música como uma “prática espacial”
(KUN, 1997, p. 288), uma paisagem sonora que tende a ser ampliada e ilimitada, por mais que haja paredes, ambientes fechados
e fronteiras (SCHAFFER, 1993, p. 29-30), “um meio dinâmico em
que vivemos e nos movemos e temos nosso ser, mas também um
1
Para uma visão mais ampla da música eletrônica pop brasileira, ver ARIZA,
2006.
•
182
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Bossatrônica e lounges
meio que está ele mesmo em movimento de um lugar ou tempo
para outro” (MITCHELL, 1994, p. 1).
Sem cair em celebração superficial de uma comunidade virtual,
mas me direcionando certamente para quem trabalha no contexto
da música eletrônica e, sobretudo, da música ambiente, é necessário
um redimensionamento da própria experiência da música ao vivo
(PRENDEGAST, 2000), pois, em nenhum outro espaço da música
pop, ela foi mais criticada ou problematizada como anacrônica.
O show cada vez mais se torna lugar dos eternos hits, quando não
vira turnê caça-níqueis com remontagem de bandas não mais em
atividade ou, pior ainda, de bandas de covers que reencenam toda
uma nostalgia bastante lucrativa (TOOP, 2004, p. 23). Se, para
sobreviver na indústria do entretenimento, as bandas de rock produziram e produzem verdadeiros eventos multimidiáticos, desde
o glitter, o progressivo e o heavy metal dos anos 1970; a alternativa
das festas, raves, clubs também não incorporou em grande medida
a proposta da música ambiente. Aposto que há uma sensibilidade e uma sociabilidade indeléveis congregadas numa espécie de
“comunidade de sentimento transnacional” (APPADURAI, 1996,
p. 8), que vai além dos shows e das festas, e que se tornou possível
desde o momento em que a reprodução do som possibilitou um
distanciamento da escuta do som original (FELD, 1994). Talvez
seja isto que Jon Hassell chamou de música do quarto mundo, para
evitar o risco anglocêntrico de denominações como “música étnica”
ou world music:2 “música vinda de todo o mundo que se encontra
e funde em um lugar geográfico não-específico” (apud SHAPIRO,
2000, p. 228)
Para pensar este trânsito transcultural é que a idéia de audiotopia vem nos ajudar. Se a utopia não está em nenhum lugar, o
termo foucaultiano de uma heterotopia representa “um tipo de
utopia efetivamente encarnada, caracterizada pela justaposição em
um único lugar de vários espaços que são incompatíveis entre si”
2
Para um debate crítico sobre a world music, ver TAYLOR, 1997; OCHOA, 2003
e FELD, 2003.
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
(KUN, 1997, p. 289). As audiotopias seriam instantes específicos
das heterotopias, “espaços sônicos de desejos utópicos efetivos onde
vários lugares normalmente incompatíveis são reunidos não somente
no espaço de uma peça particular de música, mas na produção de
espaço social e mapeamento de espaço geográfico que a música faz
possível” (idem, p. 289). A função de ouvir audiotopias é focar no
próprio espaço da música, “espaços sociais, geografias e paisagens
que a música possibilita, reflete e profetiza” (idem, p. 289-290). Em
última instância, as audiotopias são “zonas de contato entre espaços
sônicos e sociais” (ibidem).
Ainda que muito da música ambiente seja pouco tensa, sem
sobrecarregar em referências culturais explícitas distintas, pela
prática desenfreada de samplers e hibridismos os mais inesperados;
é possível deslocarmos seu foco para o diálogo com produções
brasileiras. Inevitavelmente este problema de audiotopia se coloca
na construção dessa paisagem sonora, que não só se incorpora
aos sons do cotidiano, mas que, em meio ao espaço urbano o mais
caótico — como conseguem ser os grandes centros urbanos do
antes chamado Terceiro Mundo — torna-se não uma ilha de tranqüilidade como escape, mas outra possibilidade de espaço e tempo,
outra possibilidade de vida, distinta da mera rapidez da busca de
trabalho e prazer imediato. Ela anuncia uma alternativa para agora, sem temor do consumo, sem ser consumista. Não precisamos
abandonar as grandes cidades e voltar para comunidades hippies.
A música ambiente, como os punks, atua por dentro e de dentro
do mundo em que estamos, vivemos e sonhamos.
O resto é mar
É tudo que eu não sei contar
São coisas lindas que eu tenho pra te dar.
Tom Jobim
No contexto do diálogo com a produção feita no Brasil, escolhi, num primeiro momento, seu lado mais visível, que é o de uma
reciclagem eletrônica da Bossa Nova (e não só), já muito comum
•
184
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Bossatrônica e lounges
fora do Brasil, feita por Bebel Gilberto, como forma de pensar seus
significados hoje em dia, sem esquecer outros trabalhos populares
como o do Bossacucanova, embora este seja mais tradicionalista
tanto na sua apropriação da música eletrônica quanto do envelhecido discurso de brasilidade, e o Bossa Eletromagnética, de Luiz
Macedo.
Se os tropicalistas, a canção de protesto, Chico Buarque e mesmo a Jovem Guarda se nutrem, de alguma forma, da Bossa Nova,
logo têm que se distanciar para afirmar seus projetos pessoais. As
vanguardas dos anos 1960 se exauriram, João Gilberto continuou
cantando na sua voz macia, eternamente com um banquinho e
o violão. Passaram o punk, a disco, o grunge e várias vertentes da
música eletrônica. Há mesmo uma quantidade enorme de artistas, dentro e fora do Brasil, que se esmeram em reeditar um clima
nostálgico da Bossa Nova. Mas poderia a Bossa Nova ainda criar
uma paisagem sonora contemporânea, uma audiotopia ativa para
nossos dias? Resgatar a paisagem pela música e pela Bossa Nova
não seria mais uma forma de nostalgia numa era pós-moderna e
pós-colonial (ver MITCHELL, 1994, p. 5 e 20). Aposto que, desde
os anos 1960, a Bossa Nova constui mais do que uma comunidade
de gostos, uma comunidade afetiva transnacional.
Muito do que ouvimos é centrado nos ritmos trazidos de uma
herança africana como base para celebração; mas para compreender esse trânsito cultural seria proveitoso também levar em consideração a recepção de pensamento e música asiáticos, explícitas
desde Debussy, Cage, passando pelos minimalistas, pela Contracultura e, sobretudo, para o que nos interessa aqui, por uma ética
Zen-Budista. O corpo em êxtase é substituído pela sutil entrega
e compartilhamento neste diálogo entre Cool Jazz, Bossa Nova e
música ambiente.
Ao tensionar Bossa Nova e música eletrônica, estamos tentando construir mais do que o objeto de uma cultura nacional,
mas processos socioculturais híbridos que interligam o local e
o global e em que as estruturas, práticas que existiam antes de
• 185 •
A delicadeza: estética, experiência e paisagens
forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos
e práticas (CANCLINI, 2001, p. 14), opondo-se a qualquer discurso essencialista de identidade, autenticidade e pureza culturais
(idem, p. 16). Ao invés de pensar uma genealogia dentro da música
popular brasileira, pensamos uma perspectiva pop e transcultural,
rejeitando qualquer discurso de volta às raízes numa tradição do
nacional popular, que retorna como um fantasma populista, tanto
nos movimentos de minorias étnicas quanto nos movimentos de
resistência à globalização tecnocapitalista.
Para termos uma apreensão intercultural desse processo é
fundamental reconhecer a circulação da Bossa Nova, notadamente
nos EUA, na Europa e na Ásia, não como um dado menor, diluição
exotizante, mas dinamizador e reconstituidor, que desterritorializa
nacionalmente e reterritorializa transculturalmente. Se a Bossa Nova
reflui como um referencial quase clássico na cultura brasileira, ela
ganhou outras dimensões fora do Brasil, que, por sua vez, realimentaram seu retorno no seio da música eletrônica. Da mesma maneira
que da tensão entre o Cool Jazz e o samba podemos apreender a
criação intercultural da Bossa Nova.
Essa circulação é mais interessante por não decorrer da atuação
de elites culturais ou do governo brasileiro, nem do recente e crescente fluxo de trabalhadores para fora do Brasil. Ainda que a Bossa
Nova tenha ajudado a carreira de vários músicos profissionais fora
do Brasil, começando por Tom Jobim e João Gilberto, sua circulação
traduziu, exemplarmente, o fato de a interculturalidade se produzir
mais por comunicações midiáticas do que por movimentos migratórios, para retomarmos uma provocação feita por Canclini (2000,
p. 79) mas ainda pouco desenvolvida.
Reconhecendo a importância do comparativismo para apreender
nosso hibridismo (SANTIAGO, 1982, p. 19) é que nos aproximamos de Bebel Gilberto. No início tinha uma desconfiança: entrega
dos pontos depois de ter feito rock com Cazuza, adquirido sucesso
internacional, mais fora do que dentro do Brasil, com um som e voz
suaves, na esteira ou à sombra do pai? Ouvindo quase duas canções
•
186
•
Bossatrônica e lounges
inteiras sendo executadas numa elegante galeria no recente filme
de Mike Nichols, Closer (2005), seria ela e a cultura dos lounges
sucessores do som chic de Bryan Ferry, tão ao gosto dos yuppies dos
anos 1980? Sai a nigeriana Sade Adu, entra uma brasileira?
Qual o espaço da leveza dessa música hoje, que não seja mero
escapismo? Essas são algumas das inquietações quando voltei a ouvir
o CD Tanto tempo (2002),3 de Bebel Gilberto, produzido por Suba,
uma das grandes promessas da música eletrônica, precocemente
falecido, autor de São Paulo confessions (1999), trabalho que é gênese
dos felizes achados no trabalho com Bebel Gilberto. Utopia feliz ou
paisagem inútil? Nem uma, nem outra. Leveza possível, estratégia
sutil prefiro apostar. Como voltar ao passado rumo ao futuro?
A resposta já aparece na primeira faixa, regravação de Samba da
Benção, de Baden Powell. “É melhor ser alegre que ser triste” ecoa
um posicionamento diferenciado do mal-estar e do ressentimento.
Curiosamente, aqui, a alegria não é revolucionária, contracultural,
nietzschiana, mas uma alegria que vem de uma melancolia tornada
suavidade, desta “tristeza [que] tem sempre uma esperança/de um
dia não ser triste não”. Evocação mais do que êxtase, oração mais
do que ironia, nesta busca de uma delicadeza perdida.
O mar que vai de Debussy a Caymmi (RISÉRIO, 1993, p. 12),
além de sua onipresença na Bossa Nova, ressurge eletrônico, suave,
espaço de descanso, mais textura e timbre do que ritmo e melodia,
em consonância com os propósitos de Brian Eno (TAMM, 1988, p. 67
e 104). A música dissolve a letra. A confissão pop tardo-romântica
se faz paisagem, transforma a experiência em uma exterioridade,
numa perspectiva deleuziana, indo para um outro horizonte para
além do que apontava no início deste livro. “Experiência não é algo
que uma pessoa tem ou mesmo que ela faz acontecer, é mais o de
que se é feito” (BUCHANAN, 1999, p. 6).
A paisagem engole as pessoas, como em Na neblina, em São
Paulo confessions, ou na releitura de Samba e amor, de Chico Buarque
3
Aqui não estou considerando Um certo Geraldo Pereira (1983), feito em parceria
com Pedrinho Rodrigues, nem o EP que Bebel Gilberto lançou em 1986.
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
por Bebel Gilberto. A amorosidade em meio à cidade, a intimidade
possível, o colo da amante e da música aparecem não como mera
preguiça ou covardia, para citar a música, mas parte de uma outra
ética, um outro tempo aqui mesmo “na correria da cidade” em que
“o trânsito contorna nossa casa”. “Será que é tão difícil amanhecer?”
Tudo se dissolve, numa ética da suavidade, num tempo nem industrial nem arcaico. Consciente das voltas que a Bossa Nova deu pelo
mundo, desde os anos 1960, seu período de maior popularidade fora
do Brasil (MAMMI, 2004, p. 12), o estilo parece ser um prenúncio
de um “portuenglish”, ou pelo menos de uma oscilação entre o português e o inglês, já praticado por João Gilberto,4 que atravessa todo
o CD, a partir da segunda faixa, August day song, embaralhando as
fronteiras, como na primeira faixa de seu CD seguinte, só com o
nome da cantora (2004), versão em inglês dos Mutantes para Baby:
“Join us and go far/And hear the new sound of my bossa nova” ou
“You know, it´s time to learn Portuguese”.
Sem a ironia tropicalista, estaria indo Bebel Gilberto, num
projeto conservador de revisitação da MPB, como a que Marisa
Monte fez, ao transitar da Bossa Nova para uma versão pop de Panis
e circensis, a música mais radical dos Mutantes, e da Tropicália? Se
as capas podem ajudar a revelar algo, é o nome de Bebel Gilberto,
após o sucesso internacional, que aparece com ênfase na capa de
seu segundo CD, bem como uma foto preto-e-branco, com o rosto
nítido, no lugar de seu perfil em branco e preto do primeiro trabalho,
como na capa de Before and after science, de Brian Eno. Ao invés
da dissolução crítica, desenvolvida musicalmente por Brian Eno a
partir desse seu trabalho, acompanhada pela retirada de seu rosto
das capas dos projetos seguintes, o que observaríamos em Bebel
Gilberto seria a afirmação do pop star system?
De qualquer forma, voltamos ao fio da navalha de seu primeiro
trabalho. Em August day song, “sozinha, distraída”, “sem chorar ao
lembrar”, parece um lugar frágil, que se constrói entre culturas, entre
4
Ver, por exemplo, a forma como João Gilberto canta S Wonderful, de George e
Ira Gershwin, em Amoroso (1976).
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188
•
Bossatrônica e lounges
o estrelato e a impessoalidade tecnológica. A canção de amor é uma
matriz que se dissolve em Tanto tempo, faixa-título, como no quadro
de By this river, de Eno: “Por que esperar tanto assim de alguém?”.
Não se trata de uma utopia longínqua, mas apenas de “um segundo mais feliz” ou de “a vida inteira eu quis um verso simples”, nas
palavras de Cazuza em Mais feliz. O samba parece funcionar para
Bebel, como o rock glitter para Eno: solo para suas desconstruções,
como na primorosa Alguém, outro hino da invisibilidade, como
How to disappear completely, do Radiohead, no CD Kid A: “De vez
em quando tem você”. Mas se não tiver, fica a paisagem sonora: “Só
ouvindo aquele espaço ali/Lonely” (Lonely) ou apenas o fundo do
quintal (Bananeira, de João Donato e Gilberto Gil). Podemos até
fechar os olhos, como ela nos pede na última música, e esquecer,
por um momento seu trabalho seguinte, pop sofisticado sem dúvida,
mas bem distante das promessas apresentadas em Tanto tempo.
Nada me poderá faltar
Se eu mesmo faltar.
Bertolt Brecht
Por que valorizar essa música, para muitos sonífera, repetitiva ou
banal? Encontro-me numa entrevista de Brian Eno, na sua guinada
para a música ambiente: “Eu queria encontrar lugares que fossem
mais lentos, maiores e que me fizessem pensar de alguma forma
interessante. Clubs, de fato, me impedem de pensar” (apud TAMM,
1988, p. 40). Na sua proposta de construir uma “música que se pode
viver com” (idem, p. 82), Eno presume que seus ouvintes estejam
sentados muito confortavelmente e não esperando dançar (idem,
p. 83), o que cada vez parece se restringir a espaços pequenos,
mais restritos, quando não privados. Se os lounges, espaços mais
propícios para esse tipo de música lá pelos anos 1990, saíram de
moda ou perderam essa função alternativa de resgatar a lentidão, a
desaceleração, ao menos, pensamos nessa atitude não como exaustão após uma noite de dançar sem parar, nos quase obrigatórios
chill out em raves e grandes festas (FERNANDES, 2005, p. 19).
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A delicadeza: estética, experiência e paisagens
Ou talvez, “o que parecemos precisar são rituais de tranqüilidade
em que grande quantidade de pessoas possam sentir a serenidade
de uma experiência compartilhada sem o desejo de expressar suas
emoções em ações destrutivas ou desfiguradoras” (SCHAFFER,
1993, p. 81), em que nem a experiência seja única ou imposta.
Fico pensando se Ernesto Neto já fez um lounge. Várias de suas
instalações, como Casa, me sugerem lugares confortáveis, onde se
pode relaxar, dormir sem ser incomodado por música alta nem
seguranças, mas também conversar sem pressa, sem obrigação de
falar, diferente de galerias e museus, em que temos que ficar atentos
o tempo todo, consumindo, vendo. Ao invés da pausa que nós fazemos ao olhar uma janela que nos salva da maratona de imagens, é
o próprio artista que nos oferece essa possibilidade. Não se trata de
penetrar os espaços em busca de sentimentos inusitados, estranhos
ou desautomizadores, como talvez fossem os trabalhos de Hélio
Oiticica e de outros tantos nos anos 1960. Nada muito ativo, acolher
e ser acolhido, um platô, “alcançado quando as circunstâncias levam
uma atividade a um grau de intensidade que não é automaticamente
dissipado em um clímax” (DELEUZE; GUATTARI, 1987, XIV).
Ou como Brian Eno ao falar sobre seu vídeo Mistaken memories
of medieval Manhattan (1981): “As imagens se tornaram presentes
a partir de uma mistura de nostalgia e esperança e do desejo de
fazer um lugar quieto para mim mesmo. Elas evocam em mim um
sentido do ‘que poderia ter sido’ e também geram uma nostalgia de
um futuro diferente” (apud PRENDEGAST, 2000, p. 119).
Essa não é uma posição extrema, de que Eno é bem consciente,
mas por que as posições extremas, intempestivas seriam necessariamente as mais críticas, ricas ou eficientes na nossa época? Certamente,
a contundência sempre ocupou um lugar importante de dissonância e insatisfação, como observamos em várias manifestações, dos
movimentos antiglobalização à onda de ativismos. Mas por que
não a sutileza, a discrição e a delicadeza? Talvez seja um esforço
geracional de quem se formou nos anos 1980, se viu silenciado tanto
pelo envelhecido discurso revolucionário e transgressor discurso
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190
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Bossatrônica e lounges
dos anos 1960 quanto por muito que tem ganhado atenção neste
início de milênio. Talvez não se trate de oposição, seja apenas uma
forma de ser solidário na diferença, de buscar um outro espaço de
resistência, ainda que este possa ser o lugar da maior solidão, no
momento. Busquei companhia nesta viagem.
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Bossatrônica e lounges
O mar
Quando quebra na praia
É bonito
É bonito.
Dorival Caymmi
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Cartão Supremo 250 g/m2.