Entre rachaduras e frestas
Fernanda Rodrigues
domingo, abril 13, 2025
1
Gosto de registrar trivialidades do meu dia – destas que ninguém se importa. Documentalizar uma vida simples, sem importância, lenta. Uma vida vagarosa em meio ao vazio e ao caso. Sou lenta. Sempre fui. Mas também sou um paradoxo. Sempre fui também. Uma mente ansiosa – e, por vezes, catastrófica – para domar. Cada um tem o seu próprio desafio interno – e se acha que não o tem, é porque ainda não o descobriu.
Ano passado, em setembro, minha tia me deu um cacto de presente de aniversário. Muda nascida do cacto que ela mesma cuida há anos. Ela me deu. Eu agradeci, feliz com a singeleza, e procurei um lugar de honra no meio das minhas suculentas. O cacto? Bem, ele detestou. Um mês depois, a mesma tia estava em casa vendo a minha cara de “eu não sei mais o que fazer”, ao mostrar para ela as pontas amareladas e molengas da planta.
– Ele é bruto. Põe no sol. Ele vai ficar bem.
Gosto de cactos porque eles – de algum modo – me lembram dos poetas: ambos estão num mundo hostil, com pouquíssimos recursos, contudo dão um jeito não só de sobreviver, mas também de fazer isso com leveza. Poetas e cactos mudam a paisagem árida e trazem a boniteza para ela.
Meu cacto foi parar do lado de fora da janela da cozinha. Está ali: sujeito a todo tipo de intempéries (sol, chuva, vento, garoa, neblina…) e num lugar nada glamuroso, sem destaque algum. Vulnerável, entregue. A parte mole e amarelada, entretanto, aos poucos foi recuperando o verde, ganhando a firmeza perdida. Novos caules foram nascendo, crescendo. Chegou ao ponto de eu pensar em comprar um vaso novo. Preciso perguntar à tia como replantá-lo.
Há três semanas tive uma surpresa. Fui conversar com ele – sou da espécie que conversa com fauna e flora – e me deparei com um tímido botão.
– Mãããããe, acho que o cacto vai dar flor, vem ver! – Meus olhos brilhavam, claro.
Foi aí, então, que a minha mente lenta que gosta de ser ansiosa resolveu sair da maratona e correr um sprint: “Será que o botão vai crescer?”, “Será que vai abrir outro botão?”, “Será que a flor demora para abrir?”, “Que cor será a flor?” – emoções todas de alguém cujos outros cactos e suculentas nunca floresceram, tal qual mãe de primeira viagem.
A onda de calor veio e, por incrível que pareça, meu cacto amou! Apesar de tomar todo o sol da tarde, o botão estava a cada dia maior e maior e maior. Maior a ponto de minha mãe vir me dizer um “manda foto para sua tia e pergunta se isso é normal”. Mandei a foto só pra dizer que vinha uma flor por aí. Ela, claro, ficou feliz também.
Ontem de manhã fui lavar a louça do café da manhã e espiei o outro lado da janela. Algo havia mudado. O botão estava abrindo. Corri para destrancar a porta e atravessar a parede. Precisava observar mais de perto. Era verdade!!! Estava abrindo uma flor peluda e rajadinha – quase como a descrição de um gato. Tirei foto orgulhosa – não sem antes dizer ao cacto que sua flor é linda! – e mandei a imagem para a minha tia, que está em viagem, e para as minhas melhores amigas – que acompanham de perto as minhas trivialidades. Na conversa com elas surgiu a dúvida: que cacto é esse, afinal?
Usei o Google Lens para a pesquisa. Coloquei a foto que havia tirado. O primeiro link, em inglês, dizia que a espécie é sul-africana, que há variações nas cores da flor (podem ser roxas, brancas, amarelas e rosa) e que – apesar de parecer carnívora – por causa dos pelinhos na flor –, a planta não é. Aliás, ela é adequada para quem tem pets. Vir de um lugar quente explica ela ser o único ser vivo nesta casa a amar a onda de calor.
Duas horas mais tarde, fui pegar um balde no quintal, e ela já tinha aberto de vez. Florida em sua potência. Fiquei emocionada. Tirei uma nova foto. Mandei para a tia, para as amigas e postei nos stories do Instagram.
Gosto de registrar trivialidades que ninguém se importa. Elas me comovem e me lembram que – apesar de estar num mundo tão bélico – a poesia nasce das rachaduras e de frestas.
(Ainda bem.)
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