O centenário do nascimento do professor e escritor Dias de Melo tem sido e vai continuar a ser lembrado e celebrado. A calendarização das celebrações, ou parte dela, é do conhecimento público e está ao alcance de todos os que desejem participar.
Em véspera do dia do centenário do seu nascimento, 8 de abril, li numa página de uma popular rede social de um dos seus amigos e camaradas, o Eng. Mário Abrantes, um pequeno texto em jeito de homenagem que é assim como uma espécie de retrato falado de Dias de Melo. Transcrevo esse pequeno texto pois, quem conheceu o homem e o escritor, estou certo, concordará com o que Mário Abrantes sobre ele disse.
“Não era um modelo de simpatia, mas era um modelo de sinceridade; De poucas palavras e muitas pausas, mas deslizava pela escrita sem hesitar; De muitas dúvidas e poucas certezas, mas sempre com a certeza do lado da vida em que se situava; Não se considerava dono do saber, mas ensinava tudo o que aprendia; Não se achava o centro do mundo, mas sentia-o e vivia-o de corpo inteiro;
Foi um privilégio e uma honra conhecê-lo e trabalhar com ele...”
E assim era o homem que eu conheci e com quem tive a honra de privar já nos anos 2000.
Dias de Melo é uma figura incontornável da literatura portuguesa. No ano em que se assinala o centenário do seu nascimento, é um dever de memória que o seu nome e a sua obra sejam objeto de celebração, sobretudo, por quem com ele partilha(va) uma certa visão do mundo e da sua transformação libertando, como ele próprio dizia, os povos da canga da servidão.
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do arquivo da Ana Loura |
Esta sua visão do mundo e o seu posicionamento político tinha raízes diversas, mas terá sido através do exemplo do seu pai e das histórias que lhe ouviu contar, do tempo em que esteve emigrado na Califórnia, que Dias de Melo foi consolidando as suas opções cívicas e políticas.
Numa longa entrevista concedida a Vamberto Freitas publicada no Imaginário dos Escritores Açorianos, intitulada A Educação de um Escritor: Dias de Melo, afirma-o de forma clara e inequívoca e passo a citar, a pergunta de Vamberto Freitas e um excerto da resposta de Dias de Melo:
“Vamberto Freitas – A sua visita à América em 1988 foi, tal como você viria a escrever, emocionante. Acho isso uma reacção muito interessante para um europeu de “esquerda”. Quase todos os europeus de semelhante opção política tendem a olhar os EUA com certa reserva, quando não desdém. Quer falar dessa sua experiência? Com que ideia ficou deste país?
Dias de Melo – Confirmo: sou um homem de esquerda e como tal, sem aspas nem reticências, me assumo. O que você não sabe, com certeza, é que me firmei definitivamente na minha opção de esquerda quando, já homem, meu pai me falou das grandes lutas operárias desencadeadas pelos sindicatos – as uniões, como na América lhes chamam – precisamente na Califórnia. Lutas por reivindicações várias, entre elas, duas principais: o dia, não me recordo se já das oito se ainda das dez horas de trabalho, e os salários. Em tais lutas, tomou ele parte bastante responsável. Chegou a ser chefe de piquete de greve. (…) “
Dias de Melo é um dos escritores açorianos com maior projeção regional e nacional, a sua escrita assume caraterísticas singulares na literatura portuguesa da segunda metade do século XX, e, na sua vasta obra, 27 títulos publicados, encontramos romance, conto, poesia, crónica, relato de viagem e recolha etnográfica.
Vamberto Freitas escreveu sobre alguns títulos da obra de Dias de Melo e reconhece ao autor, que nunca viveu fora do seu país, uma grande sensibilidade e conhecimento sobre o fenómeno migratório açoriano, desde logo em Pedras Negras, que não é apenas um romance sobre a baleação, mas também em Das Velas de Lona às Asas de Alumínio, a esse propósito diz Vamberto Freitas, em A Ilha em Frente – textos do cerco e da fuga, edições Salamandra, 1999 : “(…) Só Dias de Melo, muito antes de visitar a América, mas como resultado de saber escutar um pai que por cá tinha vivido de corpo inteiro, atento a tudo o que o rodeava, conseguiu transmitir um pouco da verdade dessa aventura na América no seu romance Pedras Negras, e mais tarde no livro de viagens Das Velas de Lona às Asas de Alumínio. (…)”
Dos títulos publicados destacam-se os livros que integram o que J. H. Santos Barros, em 1977, numa recensão a
Mar Pela Proa, designou:
O Ciclo da Baleia, - Mar Rubro, 1958;
Pedras Negras, 1964, e
Mar Pela Proa, 1976; mas que Dias de Melo considerava, para que o ciclo se completasse, se lhe deveriam juntar
Toadas do Mar e da Terra, poesia e o seu primeiro livro, bem assim como o trabalho futuro que já tinha planeado e que veio a ser concretizado na obra
Na Memória das Gentes, como nos dá conta Urbano Bettencourt num dos vários ensaios que publicou sobre Dias de Melo. Independentemente do debate em torno dessa questão, importa referenciar que a obra de Dias de Melo é muito mais vasta do que os títulos já referidos, embora, tenham sido os livros do chamado
O Ciclo da Baleia que lhe deram projeção nacional e internacional.
Pedras Negras foi traduzido para inglês e japonês e teve, à semelhança de
Mar Pela Proa 4 edições, tendo as crónicas romanceadas
Mar Rubro, Baleeiros do Pico, 3 edições. A Imprensa Nacional, reuniu, numa edição de 2024, coordenada por Luís Fagundes Duarte, os três títulos de
O Ciclo da Baleia e sobre a qual, na nota editorial o coordenador desta edição diz: “(…) Pretende-se com esta edição conjunta, em boa hora assumida pela Imprensa Nacional, resgatar Dias de Melo da etiqueta simpática mas redutora de «escritor açoriano» - que o é por natureza e essência -, o inscrever no vasto cânone da literatura portuguesa a que, com as suas caraterísticas próprias, resultantes das circunstâncias em que viveu e escreveu deve pertencer.” (…).
Urbano Bettencourt, também ele um picoense, tem vários ensaios publicados sobre Dias de Melo que se constituem como um significante contributo para conhecer melhor a obra e o homem. No texto Das Pedras Negras ao Negro da Montanha, em Sala de Espelhos, Urbano conduz-nos por alguns dos livros e analisa aquele que foi um percurso literário diverso, terminando com uma narrativa/romance sobre a Montanha… que deu nome às Pedras Negras.
A escrita de Dias de Melo, desde sempre, foi um ato de comprometimento, de denúncia e de luta. Dias de Melo foi um escritor militante que tomou sempre o lado dos injustiçados, dos explorados, aspeto em que também os ensaístas e investigadores convergem nas suas apreciações.
A fundação da Associação Cultural Académica (Horta, 1944) e da cooperativa Sextante (1970), em S. Miguel e a sua participação regular em títulos da imprensa (regional e nacional), confirmam o seu compromisso social e político assumindo, em pleno, o seu dever de cidadão empenhado na luta pela liberdade, pela democracia e por um mundo melhor.
Hoje, ao lermos Dias de Melo, reencontramos não só um cronista e romancista da baleação ou um contador de histórias do Atlântico ao Pacífico, mas um homem que nunca separou a literatura da vida. A sua escrita — feita de palavras nascidas do povo e para o povo — continua a lembrar-nos que a literatura pode ser um gesto de resistência, uma memória viva e um ato de pertença como, ainda hoje ecoa nos debates sobre migração, desigualdade ou a identidade açoriana. A melhor homenagem que lhe podemos fazer será, como diz, Urbano Bettencourt: “Pôr a circular a obra de Dias de Melo, trazê-la ao espaço público, colocá-la sob o olhar dos (potenciais) leitores será sempre o modo mais eficaz de homenagear o autor e evitar que se lhe perca o rasto na avalanche dos dias.”
Ponta Delgada, 15 de abril de 2025
Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 16 de abril de 2025