A quem sai este rapaz?!...
As opiniões do Prior de Santiago
O Quim era um garoto absolutamente indisciplinado, mau como as cobras, na opinião dos sesimbrenses.
Actuaria sob o império do instinto ou do leite da ama?
Se eram os impulsos do leite que o dirigiam, desdizia o aforismo popular: “ou leite ou criação”. Entenda-se por criação a educação que não lhe faltava, mas que nele era ineficaz.
Traquinas incorrigível e teimoso.
Porque a prima Gertrudes Gata certo dia lhe serviu açorda em mesa
à cachucha nunca mais quis tomar as refeições senão em mesa
à cachucha e ainda exigia a presença da Aninhas, a ama, e do irmão colaço, o Manjerico.
Tinha razão, porque a Aninhas lhe era muito dedicada.
Apenas a soltavam, dirigia-se a galope para o Freixo da Condessa, onde tinha a certeza de o encontrar junto do carrinho que o Mouco da Sofia lhe construíra para ela passear o Quim pelas ruas da quinta e metia-se entre os varais, esperando que a atrelassem. Quando o sentia instalado, seguia a passo com todas as cautelas para evitar qualquer incidente desagradável. O Manjerico colocava-se à estribeira, satisfeitíssimo, como se o considerasse irmão mais novo e lambia-lhe as mãos ou caracolava em frente da mãe ou atrás do carro.
A ama-seca, a Maria Pimbita, dirigia a caravana.
A mãe, coitada, tinha escrúpulos de consciência por o ter feito amamentar por uma burrica e torná-lo irmão colaço de um jerico esperto como um rato e desinquieto como o Quim.
A grande preocupação de D. Cândida era inquirir de parentes e amigos:
– A quem sai este rapaz?!...
Dos treze filhos, que tivera, era este o mais travesso. Não se parecia com os irmãos, nem com as irmãs, nanja com antepassado que a mãe conhecesse directamente ou por tradição.
D. Cândida, desanimada, recolhia-se ao oratório a pedir a Deus que lhe metamorfoseasse o filho ou que para si o levasse. Quando se lhe dirigia:
– Se te crio p’ra má sorte
Antes Deus te dê a morte.
Extremamente religiosa, a pobre mãe lembrou-se de ir certo domingo, após a missa, à sacristia expor o caso do garoto ao Senhor Prior, o Padre Calixto da Silva, que o baptizara, para que a informasse se culpa lhe cabia no facto do rapaz ter saído tão mauzinho.
O Prior ouviu-a com atenção. Carinhosamente afirmou:
– Não creia, minha senhora, que a ama de seu filho lhe tenha transmitido as qualidades a que aludiu. Se assim fosse, estava explicado o facto de os sesimbrenses espinotearem tanto, uns com os outros, por causa do que eles chamam
política e eu classifico de desamor ao próximo.
O burro é um incompreendido dos homens. Possui qualidades morais e intelectuais diametralmente opostas aos vícios e defeitos que lhe atribuem. O burro é animal inteligente, dócil, activo, dotado de inigualável paciência, sobriedade e robustez. Victor Hugo tinha-o em tal conta que até lhe dedicou um poema:
L’Ane. Tem sido o grande amigo do sesimbrense, merecia bem que o estatuassem no pedestal do pescador.
– Porque chamam burros aos ignorantes e aos miguelistas, homens inteligentes e patriotas?
– Só os ignorantes e estúpidos assim os classificam.
Os nossos burros descendem do onagro, animal dos mais inteligentes que Deus criou logo a seguir ao
homo sapiens.
Existem homens – Deus me perdoe se desfaço na sua obra-prima – piores que os burros.
– A maldade dos homens!... Até os burrinhos caluniam!
– O burro deve ser admirado em liberdade, porque arreado perde o carácter, está mascarado, tornando-se menos comunicativo.
Um dos defeitos que lhe atribuem é a teimosia. Esse mau sestro foi-lhe atribuído pelo homem.
Como sabe, não pode haver um teimoso só. O homem puxa para a asneira e o burro contraria-o. É mais sensato que o dono, que sem razão o desagrada.
– Senhor Prior, tenho muito dó dos animais e não consinto que os maltratem. O pessoal lá de casa, na minha presença, claro, não se atreve.
– Sei, minha senhora, que é uma alma bem formada. Permita-me que lhe diga: como a sua já debilitada saúde não lhe consentiu amamentar o seu filhinho, fez bem em criá-lo com leite de burra. Os médicos franceses preconizam a alimentação das crianças com esse leite por ser bem digerível, pouco albuminoso e muito rico em lactose.
– Sempre ouvi dizer que o leite de burra é óptimo para as crianças e pessoas débeis, por isso pedi a meu marido que adquirisse uma burrinha para ama do Quinzinho.
– Fez muito bem. Não sou médico. Ignoro portanto se o leite transmite qualidades morais às crianças, mas se assim fosse os meninos teriam maior vantagem em serem aleitados por burras que por certas mercenárias. O leite deve provir da mãe ou de burra porque sempre ouvi afirmar que o desta tem composição mais semelhante ao da mulher do que o leite de qualquer outra fêmea.
– Muito obrigada, Senhor Prior, pelo peso que me tirou da consciência.
– Diga, minha senhora, ainda conserva a ama do Quim?
– Morreu, a pobre, desgostosa por a terem separado dele, com quem convivia muito. Deixei-a em Sampaio, a passar um inverno, e a Aninhas apaixonou-se de tal forma com a separação que deixou de comer e morreu.
– Veja como os sábios têm razão no conceito que fazem dos burros. Até morrem de saudades!...
– Certamente que têm, porque a Aninhas mesmo depois de morta, aleitou.
– Como assim?!... Exclamou o Padre Calixto surpreendido.
– Porque mandei plantar sobre o coval uma figueira que dá saborosos figos: lampos pelo S. João e, mais tarde, nova carga de figo rei.
– Tem graça! É a lei de Lavoisier: nada se perde, tudo se transforma.
Por despedida, digo-lhe, D. Cândida, que o Nosso Redentor, quando escolheu para lhe ouvir os primeiros vagidos a burrinha de Belém, lá tinha as suas razões.
Quis pelo menos distingui-la, entre os outros animais, bem como à vaca.
[continua amanhã no blogue Se Zimbra…]