domingo, setembro 24, 2006

AGOSTINHO DA SILVA: O PROGRAMA DO COLÓQUIO/DEBATE

Agostinho da Silva e o Espírito Universal
Colóquio/Debate
30 de Setembro de 2006
Biblioteca Municipal de Sesimbra – Sala Polivalente




Programa

10h00: Abertura

Apresentação do colóquio pela Vereadora do Pelouro das Bibliotecas Municipais, Guilhermina Ruivo

Introdução à vida e à obra de Agostinho da Silva: "Agostinho da Silva: ser a diferença que se deseja", por Paulo Alexandre Esteves Borges (professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Presidente da Associação Agostinho da Silva e da Comissão do Centenário)


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10h30/12h30: Mesa “A Educação em Agostinho da Silva”

Oradores:

Manuel Ferreira Patrício (professor e antigo reitor da Universidade de Évora)
“Como entra a Europa na visão de Agostinho da Silva sobre o futuro de Portugal?”

Luís Paixão (arquitecto e docente universitário)
“Curriculum informal – três episódios pedagógicos”

Joaquim Domingues (professor do ensino secundário, filósofo e ensaísta)
“A Educação de Portugal”

Debate

Moderador: João Aldeia


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12h30 – 14h30 Almoço


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14h30-16h30: Mesa “A obra literária de Agostinho da Silva”

Oradores:

Ruy Ventura (professor do ensino básico, escritor e ensaísta)
“A cal para caiar o Universo”

Nicolau Saião (pintor e escritor)
“Visitas a Agostinho”

António Cândido Franco (professor da Universidade de Évora, escritor e ensaísta)
“A cultura portuguesa na obra literária de Agostinho da Silva”

Debate

Moderador: Pedro Martins


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16h30 – 17h00 Intervalo


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17h00-19h00: Mesa “Portugal e o V Império”

Oradores:

Pedro Sinde (filósofo e ensaísta)
“Agostinho da Silva ou o Império do Empíreo”

Jorge Preto (diplomata, historiador e ensaísta)
“Agostinho da Silva e o Império do Amor”

António Telmo (escritor e filósofo)
“Agostinho da Silva contra Agostinho da Silva: O Império da Liberdade”

Debate

Moderador: Roque Braz de Oliveira


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19h30: Encerramento

Com a presença do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Sesimbra, Augusto Pólvora

Bravo! (7)



Beethoven Quarteto para cordas, op. 135
Quarto andamento: Der Schwer gefasste Entschluss. Grave (Muss es sein?) - Allegro (Es muss sein!) - Grave, ma non troppo tratto - Allegro
Quarteto Hagen

As aproximações a Agostinho da Silva (7)




[trato sucessivo]




A pouco menos de uma semana do Colóquio/Debate “Agostinho da Silva e o Espírito Universal”, nova aproximação à obra do pensador, desta vez com um excerto (são as palavras iniciais) da novela “Herta”, do livro “HERTA / TERESINHA / JOAN ou Memórias de Mateus Maria Guadalupe” (1959). Na verdade, “A obra literária de Agostinho da Silva” é o tema de uma das mesas do colóquio de sábado, que me cabe moderar, e cujos oradores são Ruy Ventura (professor do ensino básico, escritor e ensaísta); Nicolau Saião (pintor e escritor); e António Cândido Franco (professor da Universidade de Évora, escritor e ensaísta).
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Herta

Há pessoas que nasceram com o dom de imaginar e quase até diria com o dever de imaginar: porque, em virtude de qualquer disposição superior que nos escapa, a vida lhes transcorre tão fixamente no mesmo lugar e tão vazia de acontecimentos que na realidade a única possível existência para eles é a do sonho. Quanto a mim, se dispuseram os fados de outro modo: acho que por excesso de vida exterior, o imaginar me ocorre tão delgado que apenas consigo narrar o que vi, ouvi e senti; e à primeira situação difícil que se me depara na vida, tenho logo de recorrer ao conselho dos meus amigos para que me desenvencilhem da situação; a menos que a própria vida se não encarregue de o fazer, coisa que tem sucedido, mas quase sempre com um desembaraço meio brutal que, para dizer a verdade, me não agrada nada.

De vez em quando penso nisto, ou, como diz gente da minha terra, «magino» disto; porque, pelo que se refere a pensar, abstracta e discursivamente, não vai por aí o meu gosto. De qualquer modo, sucede que hoje pensei nisto, ente as muitas coisas que tenho pensado neste quarto de hospital; e sobretudo durante a noite: noites irreais, pesadas de todo o sofrimento e, no fundo, de toda a resignação que vem dessas enfermarias e desses quartos; donde a onde, o relógio, donde a onde o passo do vigia, e a luz mortiça, e a gente lembrando-se dos bons dias de saúde que se julgavam eternos.

Agostinho da Silva

sábado, setembro 23, 2006

Bravo! (6)



Beethoven Quarteto para cordas, op. 135
Terceiro andamento: Lento assai e cantante tranquilo
Quarteto Hagen

Aviso à navegação

Para que um qualquer comentário aqui seja publicável, não basta que se mostre minimamente correcto. Tem de revelar alguma ligação, por mais remota que seja, com a entrada a que se destina. Ora, por muito boa vontade que eu tenha, não consigo descortinar qualquer relação entre a figura de Beethoven e as finanças locais.

Para além do caso concreto, o aviso, que não era necessário, fica feito, pois que se torna conveniente. E, já agora, fica também dito – mais uma vez – que a linha editorial deste blogue é definida apenas pelos seus autores, e por mais ninguém. Por serem autores, têm a correspondente autoridade, e tencionam exercê-la, sem que deixem de estar receptivos a sugestões. Para esse efeito, dispõe este blogue de uma caixa de correio electrónico.

Por tudo isto, vale a pena lembrar, uma última vez, às boas almas, que não devem perder o seu tempo. Nós não tencionamos perder o nosso. Ponto final.

sexta-feira, setembro 22, 2006

Retratos (1)


















BEETHOVEN

Não sei que queres dizer, montanha agreste,
Força descomunal, ilha deserta
Com lagos, bosques e um luar celeste
A cair sobre a onda que a desperta.

Não sei, nem saberei por que vieste
Fechar sem remissão a porta aberta
Desta ilusão divina que nos veste
Na hora mais despida e mais incerta.

Tempestade perdida nas alturas,
Desabas sobre humanas criaturas
Como raiva de Deus sobre mortais.

Não sei que queres dizer, nem quem tu és;
Mas rojo-me feliz, nu, a teus pés,
Como filho de terra e de animais.

Miguel Torga

Bravo! (5)



Beethoven Quarteto para cordas em fá maior, op. 135
Segundo andamento: Vivace
Quarteto Hagen

quinta-feira, setembro 21, 2006

Biblioteca comemora primeiro aniversário


[Livros, de Vincent Van Gogh]

É já no próximo sábado, dia 23, que a Biblioteca Municipal de Sesimbra festeja o primeiro aniversário na sua casa nova. E, ao longo do dia, há várias iniciativas destinadas a celebrar esta efeméride.
Assim, logo pelas 11h00, “A Gata Borralheira” e “Os Sete Cabritinhos” serão histórias a contar a miúdos e graúdos na Sala da Hora do Conto.
Depois de almoço, pelas 14h30, serão servidos “Um Café e uma Brisa do Castelo” na cafetaria da Biblioteca.
De seguida, às 15h00, no Espaço Infanto-Juvenil, tempo para uma animação, com actividade lúdico-expressiva, do conto “Tobias e as Lendas”.
À mesma hora, mas no átrio, premeiam-se os leitores do ano (aqueles que mais livros requisitaram ao longo do primeiro ano de existência da Biblioteca Municipal de Sesimbra).
Às 15h30, de novo na cafetaria, haverá um momento musical de violino e violoncelo com Emídio Coutinho e Pedro Figueiredo.
E, por fim, às 16h00, na sala polivalente, o lançamento do livro “Estudos Históricos e Outros Escritos”, de Joaquim Preto Guerra (Rumina). A apresentação da obra será feita pelo Embaixador Dr. Jorge Preto.

Fragmentos (7)


O Deus de Paulo

O mundo foi da Poesia, nos primeiros séculos da nossa era. Repetir-se-á o milagre? Voltará o deus dos poetas contra os sábios, que só acreditam na matéria, e com ela fabricam explosivos, gases asfixiantes, máquinas pavorosas? Nesta orgia industrial moderna, paródia em ferro e vapor, da orgia pagã, o homem está morto ou isolado do seu espírito. Existe, mas não vive. Existe a duzentos quilómetros à hora, mas com a vida parada, dentro dele. Vida inerte numa existência delirante. Seduzido pelo ruído e movimento, as duas faces desta civilização americana ou neo-neroniana, integrou-se num sistema mecânico industrial, e é simplesmente uma engrenagem. O ideal da ciência é a morte absoluta; a morte da alma e a do corpo: ateísmo e milinite. O homem, desviado do seu destino, que é tornar-se consciência universal, perante o Criador, mente à sua própria natureza e perde a razão de ser. Daí, a paralisia moral em que ele jaz e a velocidade que o desvaira, e leva para o túmulo. Pretende eliminar o espaço e o tempo, converter-se numa entidade fictícia, simples imagem abstracta, perpendicular a um solo vertiginoso. Pretende evaporar-se. Eis a grande sensação moderna, depois do sentimento antigo. Mas confiemos no espírito humano.

Esta civilização americana depende de materiais esgotáveis ou em quantidade limitada. A fábrica, esse templo moderno, há-de ser destruída, como o templo de Artemisa, em Éfeso, e o de Vénus, em Pafos. Templo quer dizer túmulo, casa dos mortos, que os mortos foram os primeiros deuses. Foram eles que dirigiram, para além do mundo, a atenção dos vivos. Destruída a fábrica pagã, teremos a igreja de Cristo, a confraria dos irmãos, o convívio universal e amoroso.

Confiemos no Deus de Paulo.

Teixeira de Pascoaes

(São Paulo, 1934)

Bravo! (4)



Beethoven Quarteto para cordas em fá maior, op. 135
Primeiro andamento: Allegretto
Quarteto Hagen

BEBEDEIRA

[Os Bêbados, ou Festejando o São Martinho, de José Malhoa]
Sinto a garganta a arder;
apetece-me beber,
beber sem parar,
até saciar,
até não poder.

Apetece-me beber!
Não é pra esquecer
nem é pra lembrar,
nem pra fugir, sequer...

Quero bebidas finas,
requintadas,
vindas seja donde for:
gin. whisky ou licor,
vodka, champagne, rum...
quanto mais fortes, melhor.

Quero rir às gargalhadas,
conversar, gritar, cantar!
Se me apetecer chorar,
não me perguntem porquê.
Se é tristeza ou alegria,
não sei, nem quero saber:
o que eu quero é beber!

Não tenham medo!
Eu não caio...
e, se cair, não importa:
arrastem-me até à porta
e deixem-me no passeio!
Não, eu não tenho receio:
ainda sei o caminho
pra ir pra casa sozinho.

Inda posso beber mais.
Ainda posso beber.
Beber até cair;
até adormecer...

LISBOA, 66

Pedro Ferreira Neves

quarta-feira, setembro 20, 2006

PRÉ-PUBLICAÇÃO

A história continua.




Hoje no Se Zimbra…




Amanhã no Sesimbra.

Pessoa, Salazar e o Estado Novo (1)

Em 1935, na Assembleia Nacional, o Estado Novo aprovou uma lei tendo por objectivo a extinção das sociedades secretas. O alvo era claro: a Maçonaria. Fernando Pessoa saiu a terreiro, publicando um artigo no Diário de Lisboa, no qual, visando em particular o autor do projecto legislativo, José Cabral, fez brilhantemente a defesa da Ordem e dos ideais maçónicos e, de alguma sorte, demonstrou a impossibilidade de aquela ser destruída por decreto. Ainda que, nesse texto, afirme não ser mação, “nem pertencer a qualquer outra Ordem semelhante ou diferente”, o autor de “Mensagem”, muito provavelmente, terá sido iniciado, e, ao longo da polémica a que deu azo, revelou ser uma das pessoas que, em Portugal, melhor conhecia a Maçonaria.

Vem tudo isto a propósito de ter hoje comprado o terceiro volume da poesia ortónima de Fernando Pessoa, acabado de sair com a chancela da Assírio & Alvim, e que recolhe os poemas – 123 dos quais inéditos – dos anos finais (1931-1935) e os que não estão datados. Além de muitos textos já clássicos, despertou-me a atenção uma série de poesias em que Salazar e o Estado Novo são absolutamente causticados. Algumas são já bem conhecidas – e três foram publicadas aqui –, outras só nos anos mais recentes vieram a lume, através da edição crítica. Aquela com que agora vos deixo (voltarei à carga) seria como que uma versão poética do artigo do «Diário de Lisboa», se não fosse um libelo inaudito e violentíssimo. Ora leiam…
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Solenemente
Carneirissimamente
Foi aprovado
Por toda a gente
Que é, um a um, animal,
Na assembleia nacional
Em projecto do José Cabral.

Está claro
Que isso tudo
É desse pulha austero e raro
Que, em virtude de muito estudo,
E de outras feias coisas mais
É hoje presidente do conselho,
Chefe de internormas animais,
E astro de um estado novo muito velho.

Que quadra
Isso com qualquer espécie de graça?
Nada.
A Igreja Católica ladra
E a Maçonaria passa.

E eles todos a pensar
Na vitória que os uniu
Neste nada que se viu,
Dizem, lá se conseguiu,
Para onde agora avançar?
Olhem, vão p’ra o Salazar
Que é a puta que os pariu.

1935

Fernando Pessoa

terça-feira, setembro 19, 2006

Fragmentos (6)


Quem te não fez jesuíta, alma do diabo?!

Saia, saia, esse Infante bem andante;
Seu nome é D. João,
Tire e leve o pendão e o guião,
Poderoso e triunfante.

Os Sebastianistas do J fizeram F, dizendo por João, Foão, por não excluírem seu amoroso zelo» Etc.
Não há tal. Os Bragancistas é que do F fizeram J, dizendo por Foão, João.
Na verdade? Na verdade.
O segredo estava num cartimpácio, publicado em 1603 por D. João de Castro, e que é a primeira impressão das profecias de Bandarra. Mas esse impresso desaparecera quase totalmente. «Os exemplares são tão raros (escreve Inocêncio) que ainda não achei memória de algum existente em local designado.»
Foi uma destruição completa. A partir do Portugal restaurado, nunca mais ninguém viu rasto sequer da estampada Paraphrase et concordancia de alguas prophecias de Bandarra, çapateiro de Trancoso.
Até que subitamente me aparece no Porto um exemplar, talvez o único restante desta obra condenada. Em Março de 1901, saía, sob minha revisão, uma reprodução fac-símile dessa raridade ultra-rara. A actual edição termina-se por uma notícia bibliográfica da minha lavra. Vá de reclame. Inovemos. Ao elogio mútuo suceda o elogio próprio.
Ora, a pág. 113 (capítulo dozeno), lá surge o texto exacto:

Saya? Saya esse Infante
Bem andante?
O seu nome he Dom foam. Etc.

Curioso resulta agora ler o idóneo comento de D. João de Castro, ferrenho, patriótico visionário infeliz, longe da pátria e em miséria extinto.
Ilibem-se, pois, os sebastianistas; não lhes cabe o labéu que se lhes assacou. E o frade da Ressoreiçam de Portugal, por intermédio do impressor, Guillelmo do Monnier, duplamente moscambilha quando, à sombra da ambiguidade da exótica incorrecção tipográfica, pondera: «Custume he dos Vatiçinios Poeticos trocarem os nomes das pessoas, e fazerem nelles alguã mudança, e alteração. Vê-se em Bandarra, qual falando do Encoberto diz. O seu nome he Dom João. E conhecidamente, he do João, porque o F. antigo, parecia J.»
Porque o F antigo parecia J.
Ah Manuel Homem! Dominicano! Quem te não fez jesuíta, alma do diabo?!

Sampaio (Bruno)

(O Encoberto, 1904)

PRÉ-PUBLICAÇÃO

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A quem sai este rapaz?!...



As opiniões do Prior de Santiago

O Quim era um garoto absolutamente indisciplinado, mau como as cobras, na opinião dos sesimbrenses.
Actuaria sob o império do instinto ou do leite da ama?
Se eram os impulsos do leite que o dirigiam, desdizia o aforismo popular: “ou leite ou criação”. Entenda-se por criação a educação que não lhe faltava, mas que nele era ineficaz.
Traquinas incorrigível e teimoso.
Porque a prima Gertrudes Gata certo dia lhe serviu açorda em mesa à cachucha nunca mais quis tomar as refeições senão em mesa à cachucha e ainda exigia a presença da Aninhas, a ama, e do irmão colaço, o Manjerico.
Tinha razão, porque a Aninhas lhe era muito dedicada.
Apenas a soltavam, dirigia-se a galope para o Freixo da Condessa, onde tinha a certeza de o encontrar junto do carrinho que o Mouco da Sofia lhe construíra para ela passear o Quim pelas ruas da quinta e metia-se entre os varais, esperando que a atrelassem. Quando o sentia instalado, seguia a passo com todas as cautelas para evitar qualquer incidente desagradável. O Manjerico colocava-se à estribeira, satisfeitíssimo, como se o considerasse irmão mais novo e lambia-lhe as mãos ou caracolava em frente da mãe ou atrás do carro.
A ama-seca, a Maria Pimbita, dirigia a caravana.
A mãe, coitada, tinha escrúpulos de consciência por o ter feito amamentar por uma burrica e torná-lo irmão colaço de um jerico esperto como um rato e desinquieto como o Quim.
A grande preocupação de D. Cândida era inquirir de parentes e amigos:
– A quem sai este rapaz?!...
Dos treze filhos, que tivera, era este o mais travesso. Não se parecia com os irmãos, nem com as irmãs, nanja com antepassado que a mãe conhecesse directamente ou por tradição.
D. Cândida, desanimada, recolhia-se ao oratório a pedir a Deus que lhe metamorfoseasse o filho ou que para si o levasse. Quando se lhe dirigia:

– Se te crio p’ra má sorte
Antes Deus te dê a morte.

Extremamente religiosa, a pobre mãe lembrou-se de ir certo domingo, após a missa, à sacristia expor o caso do garoto ao Senhor Prior, o Padre Calixto da Silva, que o baptizara, para que a informasse se culpa lhe cabia no facto do rapaz ter saído tão mauzinho.
O Prior ouviu-a com atenção. Carinhosamente afirmou:
– Não creia, minha senhora, que a ama de seu filho lhe tenha transmitido as qualidades a que aludiu. Se assim fosse, estava explicado o facto de os sesimbrenses espinotearem tanto, uns com os outros, por causa do que eles chamam política e eu classifico de desamor ao próximo.
O burro é um incompreendido dos homens. Possui qualidades morais e intelectuais diametralmente opostas aos vícios e defeitos que lhe atribuem. O burro é animal inteligente, dócil, activo, dotado de inigualável paciência, sobriedade e robustez. Victor Hugo tinha-o em tal conta que até lhe dedicou um poema: L’Ane. Tem sido o grande amigo do sesimbrense, merecia bem que o estatuassem no pedestal do pescador.
– Porque chamam burros aos ignorantes e aos miguelistas, homens inteligentes e patriotas?
– Só os ignorantes e estúpidos assim os classificam.
Os nossos burros descendem do onagro, animal dos mais inteligentes que Deus criou logo a seguir ao homo sapiens.
Existem homens – Deus me perdoe se desfaço na sua obra-prima – piores que os burros.
– A maldade dos homens!... Até os burrinhos caluniam!
– O burro deve ser admirado em liberdade, porque arreado perde o carácter, está mascarado, tornando-se menos comunicativo.
Um dos defeitos que lhe atribuem é a teimosia. Esse mau sestro foi-lhe atribuído pelo homem.
Como sabe, não pode haver um teimoso só. O homem puxa para a asneira e o burro contraria-o. É mais sensato que o dono, que sem razão o desagrada.
– Senhor Prior, tenho muito dó dos animais e não consinto que os maltratem. O pessoal lá de casa, na minha presença, claro, não se atreve.
– Sei, minha senhora, que é uma alma bem formada. Permita-me que lhe diga: como a sua já debilitada saúde não lhe consentiu amamentar o seu filhinho, fez bem em criá-lo com leite de burra. Os médicos franceses preconizam a alimentação das crianças com esse leite por ser bem digerível, pouco albuminoso e muito rico em lactose.
– Sempre ouvi dizer que o leite de burra é óptimo para as crianças e pessoas débeis, por isso pedi a meu marido que adquirisse uma burrinha para ama do Quinzinho.
– Fez muito bem. Não sou médico. Ignoro portanto se o leite transmite qualidades morais às crianças, mas se assim fosse os meninos teriam maior vantagem em serem aleitados por burras que por certas mercenárias. O leite deve provir da mãe ou de burra porque sempre ouvi afirmar que o desta tem composição mais semelhante ao da mulher do que o leite de qualquer outra fêmea.
– Muito obrigada, Senhor Prior, pelo peso que me tirou da consciência.
– Diga, minha senhora, ainda conserva a ama do Quim?
– Morreu, a pobre, desgostosa por a terem separado dele, com quem convivia muito. Deixei-a em Sampaio, a passar um inverno, e a Aninhas apaixonou-se de tal forma com a separação que deixou de comer e morreu.
– Veja como os sábios têm razão no conceito que fazem dos burros. Até morrem de saudades!...
– Certamente que têm, porque a Aninhas mesmo depois de morta, aleitou.
– Como assim?!... Exclamou o Padre Calixto surpreendido.
– Porque mandei plantar sobre o coval uma figueira que dá saborosos figos: lampos pelo S. João e, mais tarde, nova carga de figo rei.
– Tem graça! É a lei de Lavoisier: nada se perde, tudo se transforma.
Por despedida, digo-lhe, D. Cândida, que o Nosso Redentor, quando escolheu para lhe ouvir os primeiros vagidos a burrinha de Belém, lá tinha as suas razões.
Quis pelo menos distingui-la, entre os outros animais, bem como à vaca.

[continua amanhã no blogue Se Zimbra…]

segunda-feira, setembro 18, 2006

CARTA ABERTA AO LEITOR JOÃO MAGALHÃES

em resposta a um seu comentário na entrada “O que o Papa não disse”


1. Agradeço-lhe o esclarecimento prévio. Permita-me que, pela minha parte, lhe faça notar que AM não são as iniciais do meu nome (creio que terá sido induzido em erro pela fórmula “AM” da marcação horária). Não tem qualquer importância. Chamo-me Pedro Martins.

2. Provavelmente não viremos a estar de acordo no final desta conversa, mas podemos ambos fazer um esforço para, com correcção, compreendermos aquilo que cada um tem a dizer ao outro.

3. Procuremos, pois, assentar ideias. O senhor aponta-me o seguinte:

a) preconceito (presumo que contra o Papa e/ou a Igreja Católica);
b) não ter lido o discurso do papa;
c) fazer comentários agrestes na ausência de todos os factores.

Fora isto, considera uma nota muito positiva eu apreciar Agostinho da Silva, ajuizando que seria melhor eu inspirar-me no exemplo, deste pensador, de procura da verdade e de cautela dos julgamentos. Talvez possa começar por esta nota, para o elucidar de alguns pontos.

4. Sou, com efeito, apreciador das obras de Agostinho da Silva, como das de outros pensadores portugueses, entre os quais se contam filósofos como Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes ou Álvaro Ribeiro – alguns deles pensadores cristãos, qualquer deles, a seu modo, heterodoxo.

5. Reclamo modestamente a condição de livre-pensador, na acepção que lhe dá Álvaro Ribeiro – a possibilidade de pensar livremente o divino. Posto que baptizado, não sou católico praticante; não pertenço, de facto, a qualquer comunidade católica; e considero-me um cristão heterodoxo, liberdade que, por força da Constituição da República, me assiste.

6. Tendo aderido essencialmente às teses do grupo da Filosofia Portuguesa, e contando entre os meus amigos com alguns dos seus membros, com quem privo habitualmente em tertúlia, não posso – com toda a correcção que me é possível – deixar de lamentar o tom paternalista que denota nas suas palavras, quando me recomenda que siga o exemplo de Agostinho da Silva. Tais recomendações só devem ser feitas àqueles que conhecemos bem e com quem temos, por isso, certa confiança. E aqui de duas uma: ou o senhor me conhece (mas, então, não se chama João Magalhães), ou não me conhece, e deveria ter-se abstido de tais considerações.

7. Não tenho preconceitos quanto à Igreja Católica. Mas isso não me impede de reconhecer páginas negras e páginas luminosas na sua história. Entre as páginas negras encontra-se, seguramente, como algo de sinistro e tenebroso, a Santa Inquisição, sinónimo de irracionalidade, violência e crueldade ao serviço da Fé (o termo “auto-de-fé” é da própria igreja, não é meu). Julgo que isto terá algo a ver com aquilo que o Papa disse - aquilo que nós aqui discutimos. Poderia Bento XVI ter dado o exemplo do Santo Ofício, mas estribou-se nas palavras de Manuel II Paleólogo. Calou o Papa, lembrei eu.

8. As palavras dos meus comentários são agrestes? É possível. O vento, quando sopra, por vezes também é agreste. O relâmpago da estrada de Damasco foi agreste. Pergunto-lhe: ofenderam eles - os meus comentários - a honra ou o bom-nome de alguém? Traduziram argumentos “ad hominem”? Julgo que não. Mas serviram para responder a quem me disse isto: “Leiam lá mas é melhor o que o papa disse... isto de olhar para uma noticiazita de TV e achar que as coisas são como a estreiteza ditada – por vezes incontornavelmente – pelo tempo que um jornalista tem para fazer uma notícia é um bocadinho fraco para gente que procura de facto a verdade das coisas... leiam, e não sejam parciais... não há pior intolerância do que a intolerância ditada pela ignorância – sobretudo a que se julga esclarecida. Depois falem”

9. Não sei se são suas ou de outrem. Mas como qualificaria estas palavras: “leiam, e não sejam parciais... não há pior intolerância do que a intolerância ditada pela ignorância – sobretudo a que se julga esclarecida. Depois falem”? Correctas? Serenas? Elevadas? Simpáticas? Humildes? Isto quanto à forma…

10. Quanto ao fundo, que, apesar de tudo, é o que mais importa: “quod erat demonstrandum”, Sr. João Magalhães. Ficou por demonstrar que a leitura do texto integral das palavras do Papa infirmasse a crítica que eu lhe havia feito. E continua por demonstrar. Elísio, meu amigo e meu parceiro de lides neste blogue, que é católico praticante, e um muito razoável conhecedor das Sagradas Escrituras e da filosofia ocidental – coisa que eu não sou –, deu-se ao trabalho de ler na íntegra, e no original em alemão, as palavras do Papa. Chegou, brilhantemente, na entrada que ontem aqui publicou, intitulada “O que o papa não disse” (e que motivou o seu comentário, ao qual agora respondo), chegou, dizia, à conclusão de que o Papa havia sido, pelo menos, descortês para com o Islão. No fundo, chegou à mesma conclusão a que eu cheguei.

11. Não está em causa, em tese geral, a bondade dos propósitos que o Papa pôs nas suas palavras, quando apela a uma Religião ligada à Razão. Não sou contra. Isso não significa que, ao ter citado Manuel II Paleólogo, não tenha o Papa errado. Errou. Fez mal. É humano. Acredito que o não tenha feito com intenção, mas agiu inconsideradamente, contribuindo para acirrar os ânimos do Islão. Vindo do Papa, isto faz toda a diferença. Não está principalmente em causa saber se Manuel II Paleólogo disse, ou não, palavras justas. Está sobretudo em jogo ser capaz de prever os efeitos que a citação daquelas palavras inexoravelmente produziria. Na Somália foi entretanto morta uma freira católica. Sabe porquê?

12. Acresce que o Papa, meses antes, havia proferido as seguintes palavras (se não se importa, volto a transcrevê-las): "No contexto internacional que conhecemos actualmente, a Igreja Católica continua convencida de que, para favorecer a paz e a compreensão entre os povos e entre os homens, é necessário e urgente que as religiões e os seus símbolos sejam respeitados e que os crentes não sejam alvo de provocações que firam a sua iniciativa e os seus sentimentos religiosos.”

13. Eu quero fazer a Bento XVI a justiça de pensar que as suas palavras são sérias. Por isso, julgo que a sua polémica citação de Manuel II Paleólogo foi um momento menos feliz, porque contraditório com a doutrina citada no ponto anterior.

14. Quase a terminar, vou ao PÚBLICO de hoje, de cujo editorial o senhor me aconselha a leitura. Devo começar por lhe fazer notar que a opinião de José Manuel Fernandes vale aquilo que vale, e não consta que as suas palavras façam a doutrina de um católico. Mas, se bem ler, encontrará nesse escrito do director do jornal o seguinte trecho: “E podemos mesmo discutir se ao optar por citar a frase que originou a controvérsia –mesmo distanciando-se dela – não terá cometido um passo imprudente.”. Agora sou eu que lhe pergunto, mas sem qualquer juízo de intenções, Sr. João Magalhães: leu o editorial todo? Leu esta frase? Podemos ou não falar de um passo imprudente do Papa? Podemos ou não discutir essa possibilidade? É que eu, naquilo que escrevi no sábado, não me lembro de ter ido além disto…

15. Já agora, permita-me que também lhe faça uma sugestão de leitura. Logo na página seguinte do jornal de hoje, encontrará um artigo, que pessoalmente reputo de notável, de Faranaz Keshavjee, muçulmana e membro da Comunidade Ismaelita, “Sobre o Discurso do Papa Bento XVI”, onde, de forma serena, mas firme, e fundamentada, se diz, simplesmente, “que o papa escolheu falar dos outros e preferiu ignorar os erros da sua própria igreja, que se vão repetindo, até hoje, e em nome das qual se fizeram, e ainda se fazem as guerras mais ignóbeis e injustas.” Dispenso-o da citação do rol, que é extenso, e muito releva para efeitos de autoridade moral. Deixe que lhe diga, sem qualquer sobranceria: verdadeiramente, não ficava mal à Igreja, por uma vez que fosse, um pouco mais de humildade, que lhe permitisse admitir ter errado. “Porque quem se humilha será exaltado, e quem se exalta será humilhado.”

A VERDADE REPOSTA

Colóquio/Debate “Agostinho da Silva e o Espírito Universal”

O boletim informativo da Câmara Municipal de Sesimbra, “Sesimbra Município”, no seu número 91, do mês em curso, divulga, na página 12, a realização do “Colóquio/Debate Agostinho da Silva e o Espírito Universal”, referindo que “a organização desta iniciativa partiu de um grupo de cidadãos de Sesimbra e contou com o apoio da Câmara Municipal.”

Tendo em conta o que aqui já foi escrito, na sequência da publicação do número de Setembro da agenda de acontecimentos “Sesimbr’Acontece”, e o pedido de esclarecimento que havia sido feito ao Presidente da Câmara Municipal de Sesimbra, consideram os signatários que, com a edição do presente número do boletim municipal – publicação dirigida pelo Senhor Presidente da Câmara, Arquitecto Augusto Pólvora – foi o pretendido esclarecimento razoavelmente prestado e reposta a verdade dos factos, pelo que, congratulando-se com esta atitude, dão o assunto por encerrado.

Roque Brás de Oliveira

Pedro Martins

Ruy Ventura

JOAQUIM RUMINA


















Uma iniciativa inédita
dos blogues “Sesimbra”, “Sesimbra e Ventos” e “Se Zimbra…”

É já no próximo sábado, dia 23, pelas 16 horas, que será lançado o livro “Estudos Históricos e Outros Escritos”, de Joaquim Preto Guerra (Rumina), numa edição da edilidade sesimbrense que é o 14.º volume da Colecção “Livros de Sesimbra”.

Assinalando o acontecimento, os blogues “Sesimbra”, “Sesimbra e Ventos” e “Se Zimbra…” associaram-se para levarem a cabo a pré-publicação de um dos textos do livro de Rumina. Trata-se do saboroso conto “A quem sai este rapaz?!...”, de nítido cariz autobiográfico, originalmente publicado em folhetim nas edições dos dias 18 de Julho, 1, 8, 15, 22 e 29 de Agosto e 5 de Setembro de 1943 do então semanário “O Sesimbrense”.

Trata-se de uma iniciativa inédita na blogosfera sesimbrense, que, além de constituir um contributo para a descoberta do livro, pretende pôr em evidência as virtualidades deste meio na promoção da leitura, e patenteia um espírito de colaboração que se pretende ver alargado, num futuro próximo, a outros blogues, porventura em idênticas iniciativas.

Por outro lado, faz-se reviver, de alguma forma, o espírito do folhetim, hoje definitivamente transposto para a televisão, e que marcou sucessivas épocas na imprensa escrita e na rádio.

A pré-publicação, tripartida, deste conto, inicia-se amanhã, terça-feira, no “Sesimbra e Ventos”, prossegue, na quarta-feira, no “Se Zimbra…”, e será concluída, na quinta-feira, no “Sesimbra”.