A Marca Do Assassino - Daniel Silva
A Marca Do Assassino - Daniel Silva
A Marca Do Assassino - Daniel Silva
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por
dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
DANIEL SILVA
A MARCA DO ASSASSINO
Tradução de Luís SANTOS
BERTRAND EDITORA, Lisboa 2007
Título Original: The Mark of the Assassin
Copyright (c) 1998 by Daniel Silva
Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa, exceto
Brasil, reservados por Bertrand Editora, Lda.
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, 1 0-499 Lisboa
Telefone: 21 762 61 00
Fax: 21 762 61 50
Correio eletrônico: editora@bertrand.pt
Imagens de capa. Getty Mages
Revisão: Eda Lyra
Pré-impressão: Fotocompográfica, Lda.
Impressão e acabamento: Tipografia Peres Depósito legal nº 265 636/07
Acabou de imprimir-se em Outubro de 2007
ISBN: 978-972-25-1621-1
SINOPSE
Um ataque terrorista explode o Voo 002 sem deixar pista que conduza aos
autores do crime. Mas um cadáver encontrado junto aos destroços do avião tem o
cartão de visita de um assassino implacável e esquivo: três marcas de balas no
rosto. Michael Osbourne, agente da CIA especialista em terrorismo, conhece essa
marca. Bem demais. Impelido por uma obsessão que ameaça consumir a carreira, a
família e a própria vida, Osbourne segue agora febrilmente o rastro do assassino.
Mas num mundo de sombras e mentiras, intriga e disfarce, o homem com uma
missão expõe-se ao assassino mais brutal e diabólico da face da Terra.
Para Esther Newberg, minha agente literária e amiga.
E, como sempre, para Jamie, que torna tudo possível, e para meus filhos, Lily e
Nicholas.
Conhecereis a verdade
E a verdade vos libertará.
Conhecereis a verdade
E a verdade vos lixará.
AGOSTO DE 1968
WASHINGTON, D. C.
Vinte minutos depois, na zona da cidade conhecida como Kalorama, um
sedan preto da Casa Branca parou junto ao passeio. Os carros e as limusinas pretas
do governo eram habituais naquele bairro. Aninhada nas colinas arborizadas no
extremo de Rock Creek Park, a norte da Massachusetts Avenue, Kalorama albergava
alguns dos mais poderosos e influentes habitantes da cidade.
Por norma, Mitchell Elliott detestava as cidades da Costa Leste. Passava a
maior parte do tempo em Colorado Springs, ou na sua casa na encosta, em Los
Angeles, perto da sede da Alatron Defense Systems. No entanto, a mansão de três
milhões de dólares em Kalorama ajudava-o a tolerar as viagens frequentes a
Washington. Chegara a pensar em adquirir uma propriedade na terra dos cavalos,
no estado de Virgínia, mas o percurso até a cidade através da Interstate 66 era um
pesadelo, e Mitchell Elliott não tinha tempo a perder. Kalorama ficava a dez
minutos do National Airport e de Capitol Hill, e a cinco minutos da Casa Branca.
Faltavam cinco minutos para as sete. Elliott descontraía-se na biblioteca do
primeiro andar, sobranceira ao jardim. O vento lançava a chuva contra o vidro.
Estava frio para Outubro, e um dos empregados acendera a grande lareira. Elliott
caminhava devagar pela sala, enquanto beberricava malte de trinta anos de um
copo de vidro lapidado. Era um homem de baixa estatura, com pouco mais de um
metro e sessenta e cinco, que há muito aprendera a manter uma pose imponente.
Nunca permitia que um oponente se agigantasse. Quando alguém entrava no seu
gabinete, Elliott permanecia sempre sentado, as pernas cruzadas, as mãos nos
braços da cadeira, como se o espaço não chegasse para lhe albergar o corpo.
Elliott era versado na arte da guerra e, acima de tudo, na arte do engano.
Acreditava na ilusão, nos engodos. Dirigia a empresa como se se tratasse de uma
agência de espionagem, funcionando no princípio da "necessidade de saber". A
informação era rigidamente segmentada. O chefe de uma divisão pouco sabia
acerca do que se passava nas outras divisões, tendo conhecimento apenas do que
precisava de saber. Raras eram as vezes em que Elliott fazia reuniões com a
presença de todos os diretores. As ordens eram dadas cara a cara em reuniões
privadas e nunca através de memorandos escritos. Todas as reuniões com Elliott
eram encaradas como confidenciais e os executivos estavam proibidos de as
discutir com outros executivos. Os boatos eram castigados com o despedimento e
se um dos funcionários começasse com mexericos, em breve Elliott teria
conhecimento do fato. Os telefones estavam sob escuta, o correio eletrônico era
lido e as câmaras e os microfones de vigilância cobriam cada centímetro quadrado
da zona de escritórios.
Mitchell Elliott não via nada de mal nisso. Acreditava que Deus lhe
concedera o direito, mais do que isso, a responsabilidade, de fazer o que fosse
preciso para proteger a sua empresa e o seu país. A crença de Elliott em Deus
impregnava tudo o que fazia. Acreditava que os Estados Unidos eram a terra
escolhida por Deus e os Americanos o povo eleito. Acreditava que Cristo lhe
dissera para estudar aeronáutica e engenharia elétrica, e que fora Cristo quem lhe
dissera para entrar para a Força Aérea e combater os ímpios comunistas chineses
na Coreia.
Depois da guerra instalou-se no Sul da Califórnia, casou-se com Sally, a
namorada do liceu, e começou a trabalhar para a McDonnell-Douglas. Mas Elliott
sempre se sentiu insatisfeito. Rezava ao Todo-poderoso por orientação. Três anos
depois criou a sua própria empresa, a Alatron Defense Systems. Elliott não
pretendia de todo construir aviões. Sabia que seriam sempre essenciais à defesa da
nação, mas acreditava que Deus lhe concedera um vislumbre do futuro, e este
pertencia ao míssil balístico, as flechas de Deus, como chamava. Elliott não
construía os próprios mísseis. Desenvolvia e fabricava, isso sim, os sofisticados
sistemas de orientação que lhes diziam onde cair. Dez anos depois de ter criado a
Alatron, Mitchell Elliott era um dos homens mais ricos da América, bem como um
dos mais influentes. Fora confidente de Richard Nixon e de Ronald Reagan. Desde
Robert McNamara que era tratado pelo nome por todos os secretários da defesa.
Podia entrar em contato telefônico com metade dos membros do Senado numa
questão de minutos. Mitchell Elliott era um dos homens mais poderosos de
Washington e, ainda assim, operava constantemente na sombra. Poucos
compatriotas sabiam o que ele fazia, ou sequer conheciam o seu nome.
Sally morrera de cancro da mama há dez anos e os tempos de grandes
investimentos na defesa já pertenciam ao passado. A indústria fora devastada,
milhares de trabalhadores estavam no desemprego e a economia da Califórnia era
um caos. Acima de tudo, Elliott acreditava que a América estava mais fraca na
atualidade do que nos últimos anos. O mundo era um lugar perigoso, algo que
Saddam Hussein provara. O mesmo fizera um terrorista armado com um único
míssil Stinger. Elliott queria proteger a sua pátria. Se um terrorista era capaz de
abater um avião comercial e matar duas centenas de pessoas, o que impedia um
Estado pária como a Coreia do Norte, a Líbia, ou o Irã de matar dois milhões de
pessoas com um míssil nuclear disparado contra Nova York, ou Los Angeles? O
mundo civilizado depositara a confiança em tratados e no controle dos mísseis
balísticos. A confiança de Mitchell Elliott estava reservada ao Todo-poderoso e não
acreditava em promessas redigidas em papel. Acreditava nas máquinas. Acreditava
que a única forma de defender a nação de armas exóticas era com armas ainda mais
exóticas. Nessa noite, teria de defender o seu ponto de vista com o Presidente.
A relação de Elliott com James Beckwith fortalecera-se graças a anos de
apoio financeiro constante e de conselhos sábios. Elliott nunca pedira um único
favor, nem mesmo quando Beckwith se tornara uma força poderosa no Armed
Services Committee, durante o segundo mandato no Senado. Isso estava prestes a
mudar.
Um dos assistentes bateu ao de leve à porta. O seu corpo de assistentes era
recrutado nas fileiras das Forças Especiais. Mark Calahan era como todos os outros.
Tinha um metro e oitenta, sendo alto quanto bastasse para ser imponente, mas não
a ponto de se agigantar sobre Elliott. Tinha cabelo escuro curto, olhos escuros, o
rosto bem escanhoado, e usava terno e gravata sóbrios. Todos andavam sempre
com uma pistola automática .45, pois Elliott acumulara inimigos a par dos seus
milhões, e nunca surgia em público sem proteção.
─ O carro chegou, senhor Elliott.
─ Desço daqui a pouco.
O assistente aquiesceu e retirou-se em silêncio. Elliott aproximou-se mais
do lume e terminou o uísque. Não gostava da ideia de ser convocado. Sairia quando
estivesse pronto e não quando Paul Vandenberg lhe dissesse. Se não fosse por
Elliott, Vandenberg estaria ainda a vender seguros de vida. Quanto a Beckwith,
seria um advogado desconhecido de São Francisco, a viver em Redwood City e não
na Casa Branca. Ambos podiam esperar.
Elliott acercou-se do bar com lentidão e serviu-se de mais um dedo de
uísque. Regressou à lareira e ajoelhou-se à frente do lume, a cabeça baixa, os olhos
fechados. Rezou por perdão, tanto pelo que fizera, como pelo que estava prestes a
fazer.
─ Somos o teu povo escolhido ─ murmurou. ─ Sou o teu instrumento. Dá-
me forças para cumprir a tua vontade e a grandeza será tua.
Susanna Dayton sentia-se uma idiota. Só nos filmes é que os jornalistas
ficavam sentados em carros estacionados, a beber café de um copo de plástico,
enquanto faziam vigilância como um qualquer investigador privado. Ao sair da
redação, uma hora antes, não dissera ao editor onde ia. Tratava-se apenas de um
palpite, e podia não dar em nada. Não queria que os colegas soubessem que estava
a perseguir Mitchell Elliott, como um detective de um filme policial de segunda
categoria.
A chuva toldava-lhe a visão. Acionou uma alavanca na coluna de direção e
os limpadores de para-brisas afastaram a água. Limpou o vidro embaciado com um
guardanapo da loja da baixa onde tinha comprado o café. O carro preto continuava
no mesmo sítio, com o motor a trabalhar e os faróis desligados. No primeiro andar
da casa enorme via-se uma única luz acesa. Deu mais um gole no café e aguardou.
Era quase intragável, mas pelo menos estava quente.
Susanna Dayton fora correspondente do Washington Post na Casa Branca, o
auge do poder e do prestígio no mundo do jornalismo americano, mas detestara o
cargo. Odiava ter de enviar todos os dias para a redação basicamente o mesmo
artigo que outras duas centenas de repórteres. Abominava ser conduzida como
gado pelo pessoal do gabinete de imprensa da Casa Branca, gritar perguntas ao
Presidente Beckwith atrás de linhas divisórias, em acontecimentos encenados e
coreografados. Os trabalhos assumiram um tom mordaz, o que levou Vandenberg a
queixar-se com regularidade às altas instâncias do Post. Por fim, o editor sugeriu-
lhe uma nova abordagem, dinheiro e política. Susanna aceitou sem hesitar.
O novo cargo foi a sua salvação. Teria de descobrir que indivíduos,
organizações e empresas davam dinheiro a que candidatos e a que partidos. Teriam
essas contribuições um efeito indesejado sobre a política ou sobre a legislação?
Estariam os políticos e os doadores a seguir as regras? O dinheiro era gasto
devidamente? Estaria alguém a transgredir a lei? Susanna sentia-se realizada com o
trabalho, pois adorava estabelecer as ligações. Sendo uma advogada formada em
Harvard, tornara-se uma jornalista meticulosa e cuidadosa. Aplicava a regra das
provas a quase todas as informações que descobria. Seria admissível em tribunal? É
um testemunho direto ou um boato? Existem nomes, datas e locais que possam ser
confirmados? Existem testemunhos que o corroborem? Preferia documentos a
fugas de fontes anônimas, pois os documentos não podem mudar a sua versão da
história.
Susanna Dayton concluíra que o sistema de financiamento político da
nação se baseava em subornos e pressões organizadas, sancionadas pelo governo
federal. A linha que separava a atividade legal da ilegal era muito tênue. Tomou nas
mãos a tarefa de identificar e denunciar os transgressores. A sua personalidade era
adequada ao trabalho. Odiava os vigaristas que conseguiam levar a sua avante.
Desprezava as pessoas que passavam à frente nas filas do supermercado.
Ficava furiosa quando um condutor agressivo se atravessava à sua frente na
autoestrada. Abominava os indivíduos que procuravam subir à custa dos outros. O
seu trabalho era garantir que eles não seriam bem sucedidos.
Dois meses antes, o editor de Susanna entregara-lhe uma tarefa
complicada: Estabelecer a cronologia da longa relação, financeira e pessoal, entre o
Presidente James Beckwith e Mitchell Elliott, presidente da administração
da Alatron Defense Systems. Os jornalistas utilizam um chavão quando um
indivíduo ou um grupo é esquivo e difícil de investigar: sombrio. Mitchell Elliott
merecera o epíteto "sombrio".
Ao longo dos anos dera milhões de dólares ao Partido Republicano, e um
grupo de proteção dos direitos do cidadão contara-lhe que ele canalizara para o
partido vários outros milhões através de meios questionáveis, ou mesmo
totalmente ilegais. O principal beneficiário da generosidade de Elliott era James
Beckwith. Elliott contribuíra com milhares de dólares para as campanhas e para os
comités de ação política de Beckwith, e servira como conselheiro confidencial
bastante próximo. Um dos antigos executivos de Elliott, Paul Vandenberg, era chefe
de gabinete da Casa Branca. Beckwith era hóspede frequente das casas de férias de
Elliott em Maui e em Vale. Susanna tinha duas questões principais: Teria Mitchell
Elliott feito contribuições ilegais a James Beckwith e ao Partido Republicano ao
longo dos anos? E exerceria uma influência excessiva sobre o Presidente?
Naquele momento, Susanna não tinha respostas para qualquer das
questões. O editor queria publicar o artigo dali a duas semanas, integrado numa
seção especial sobre o Presidente Beckwith e o seu primeiro mandato. Tinha muito
trabalho pela frente, até que estivesse pronto. Mesmo então, Susanna sabia que
pouco mais faria, para além de levantar questões sobre Elliott e sobre a sua relação
com a Casa Branca. Mitchell Elliott fizera um bom trabalho a ocultar o seu rastro.
Era completamente inacessível. O arquivo fotográfico do Post tinha apenas uma
fotografia já com dez anos, e a Alatron Defense Systems nem sequer dispunha de
porta-voz. Quando Susanna pedira para marcar uma entrevista, o homem do outro
lado da linha soltou uma gargalhada abafada e replicou: "O senhor Elliott não tem
por hábito falar com jornalistas."
Uma fonte do National Airport dissera-lhe que Elliott chegara a
Washington nesse dia, a bordo do seu avião privado. O Congresso encerrara as
atividades e a maior parte dos membros regressara a casa para a campanha. O
Presidente cancelara uma digressão de campanha para tratar do caso da queda do
Voo 002. Susanna interrogava-se sobre o motivo que levara Elliott à cidade naquele
momento.
Isso explicava o fato de ela estar à porta da mansão de Kalorama, à chuva. A
porta da mansão abriu e surgiram duas figuras, um homem alto com um guarda-
chuva e outro mais baixo, de cabelo grisalho: Mitchell Elliott. O homem mais alto
ajudou Elliott a entrar para a parte de trás do carro, depois contornou o veículo e
sentou-se do outro lado. Os faróis acenderam-se e iluminaram a estrada. O carro
afastou-se do passeio e dirigiu-se à Massachusetts Avenue.
Susanna Dayton ligou o motor do seu pequeno Toyota e seguiu o outro
automóvel, mantendo uma distância segura. O grande carro preto avançou com
rapidez para leste pela Massachusetts, ao longo de Embassy Row. Em Dupont
Circle juntou-se ao trânsito da faixa exterior e virou para sul, na Connecticut
Avenue.
Ainda era cedo, mas a Connecticut estava quase deserta. Susanna reparara
que uma calma estranha se abatera sobre a cidade nas quarenta e oito horas desde
a queda do avião comercial. Os passeios estavam vazios, com apenas alguns
bêbados a saírem de uma taberna mais a sul e um grupo de empregados de
escritório a correr à chuva para a estação de metropolitano de Farragut North.
Susanna seguiu o carro ao longo da K Street quando a Connecticut passou a 17th
Street. Atravessou a Pennsylvania Avenue e passou pela fachada iluminada do Old
Executive Office Building. Imaginava onde Elliott jantaria naquela noite.
O carro cortou várias vezes à esquerda e, dois minutos depois, parou junto
ao Portão Sul do terreno da Casa Branca. Um agente fardado dos Serviços Secretos
avançou, olhou para a parte de trás do sedan e ordenou ao condutor que avançasse.
Susanna Dayton não parou. Precisava de um lugar onde esperar. Nos
tempos que corriam, ficar sentada dentro de um carro estacionado nas redondezas
da Casa Branca não era boa ideia. Após uma série de ataques à mansão, os Serviços
Secretos tinham apertado a segurança. Podia ser abordada e interrogada, após o
que talvez se seguisse um relatório.
Estacionou na 17th Street. Havia um pequeno café do outro lado do Old que
ficava aberto até tarde. Pegou na mala, atafulhada com jornais, revistas e o
computador portátil, e saiu. Correu pela rua à chuva e entrou no café, que estava
vazio. Pediu uma sanduíche de atum e uma caneca de café e acomodou-se a uma
mesa à janela enquanto esperava.
Tirou o computador portátil da mala, ajustou a tela e ligou-o. Depois
inseriu um disquete no drive e abriu um arquivo. Ao surgir na tela, o arquivo
apareceu como uma série de letras e de caracteres sem sentido. Susanna era
cuidadosa por natureza, preferindo muitos dos colegas o termo "paranoica", e
utilizava software de codificação para proteger os arquivos mais importantes.
Inseriu um código de sete letras e o arquivo ganhou vida. A sanduíche e o café
foram servidos. Susanna percorreu o arquivo: nomes, datas, locais, quantias. Tudo o
que sabia acerca do esquivo Mitchell Elliott e das suas ligações ao Presidente
Beckwith. Acrescentou aos arquivos os acontecimentos daquela noite.
Depois desligou o computador e preparou-se para uma longa espera.
LONDRES
O fax chegou à redação do Times pouco depois da meia-noite, tendo
permanecido na máquina durante quase vinte minutos, até que um jovem
assistente se deu ao trabalho de o ir buscar. O assistente deu-lhe uma vista de
olhos rápida e levou-o ao editor noturno, Niles Ferguson. Sendo um veterano com
uma experiência de trinta anos, Ferguson já vira inúmeros faxes como aquele, do
IRA, da OLP, da Jihad Islâmica e dos malucos que se limitavam a reivindicar a
responsabilidade sempre que alguém morria de forma violenta. Aquele não parecia
obra de um lunático.
Ferguson tinha um número de telefone especial para situações como
aquela. Marcou-o e aguardou. Respondeu-lhe uma voz de mulher, agradável,
vagamente erótica.
─ Fala Niles Ferguson, do The Times. Acabou de chegar um fax bastante
interessante à nossa redação. Não sou perito, mas parece-me autêntico. Talvez lhe
devessem dar uma vista de olhos.
Ferguson fez uma cópia do fax e guardou o original. Levou-o em mão até o
hall e esperou. Cinco minutos depois chegou o carro. Um jovem com marcas de
bexigas e um cigarro entre os lábios entrou no hall e recebeu o fax. Niles Ferguson
voltou à redação.
O homem com marcas de bexigas trabalhava para o Serviço de Segurança
britânico, mais conhecido por MI5, responsável pela contraespionagem, pela
subversão interna e pelo contraterrorismo nas ilhas britânicas. Levou a cópia do fax
até a sede de vidro e aço do MI5 sobranceira ao Tamisa e apresentou-o ao oficial de
serviço responsável.
Este fez rapidamente dois telefonemas. O primeiro foi realizado sem
grande vontade para o seu homólogo do Serviço Secreto de Espionagem, mais
conhecido por MI6, responsável pela recolha de informação no estrangeiro,
considerando-se, por isso mesmo, a mais importante das duas agências. O segundo
telefonema foi efetuado para o oficial de ligação do M15 na generosamente equipe
da Estação de Londres da CIA, situada no interior do complexo da embaixada
americana, em Grosvenor Square.
No espaço de dois minutos, uma cópia da carta era enviada para Grosvenor
Square através de um fax seguro. Dez minutos depois, um datilógrafo introduzira-a
no sistema informático e enviara-a para a sede da CIA, em Langley, na Virgínia. O
sistema informático da agência distribui automaticamente cabogramas baseados
em palavras-chave e em classificações. O cabograma de Londres seguiu para os
gabinetes do diretor, dos diretores adjuntos de informação e operações, do diretor
executivo e do oficial de dia do departamento do Oriente Médio. Também foi
enviado diretamente para o Centro de Contraterrorismo da Agência.
Segundos depois, surgiu na telado computador do agente responsável pelo
grupo extremista islâmico chamado Espada de Gaza. O nome do agente era
Michael Osbourne.
AMSTERDAM
MCLEAN, VIRGÍNIA
─ Não sei por que Carter precisa te enviar a Londres. Por que diabos não
manda outra pessoa?
Elizabeth foi buscar Michael na sede e estava dando carona até o Dulles
Airport, a trinta quilômetros de Washington, no extremo leste da periferia urbana
do norte da Virgínia. Eram 19 horas. Tecnicamente, a hora do rush já acabara, mas o
trânsito continuava engarrafado no Capital Beltway. Quando estava tensa, Elizabeth
tinha a tendência de colar na traseira dos outros veículos. Assim, viajavam a meio
metro do para-choque de um Ford Explorer verde, que se deslocava a setenta
quilômetros por hora.
─ Pensei que tinha explicado nossa situação, Michael. Achava que ele tinha
concordado em deixar você trabalhar em Nova York. Pensei que ele fosse aliviar por
uma ou duas semanas.
Talvez devesse ter levado um carro da Agência até o aeroporto, pensou Michael.
Não tinha vontade de discutir com a mulher antes de embarcar num voo
internacional. Não que fosse supersticioso, nem tampouco receava voar, era
simplesmente realista.
─ É só um dia ─ garantiu. ─ Ida e volta, com algumas reuniões pelo meio. ─
Se é uma coisa tão rotineira, por que não enviou o Carter outra pessoa? Elizabeth
não era litigante, exercia direito na calma das sombras empresariais, mas era
mestre na arte do contra-interrogatório. Esmurrou a buzina. Michael sabia que
acabara de ser declarado testemunha hostil.
─ Um oficial da espionagem britânica foi assassinado em Londres, ontem à
noite ─ replicou Michael calmamente. ─ Pode ter alguma coisa a ver com um caso
no qual já trabalho há muito tempo.
─ Li sobre isso no Post desta manhã. O IRA reivindicou a responsabilidade.
Desde quando tens alguma coisa a ver com o IRA? Pensei que o teu currículo
incluía exclusivamente terrorismo árabe.
─ É verdade, mas julgamos que possa haver uma ligação.
Michael esperava que ela ignorasse o assunto. A viagem a Londres fora sua
ideia, não de Carter, que queria o trabalho de ligação feito por um agente da
Estação de Londres. Michael convencera Carter a enviá-lo.
─ Daqui a dois dias vão recolher-me os óvulos. Nessa altura vão fertilizá-los
com esperma. Preferia que fosse o teu, Michael.
─ Eu volto. Não te preocupes. E, se por acaso houver algum problema,
temos um trunfo na manga. Congelado.
Devido à natureza do seu trabalho, e à possibilidade de uma viagem
inesperada, os médicos do Cornell Medical Center tinham recomendado que se
congelasse algum do esperma de Michael.
─ Gostaria que lá estivesses para me dar apoio emocional, Michael ─ disse
Elizabeth. ─ Pensei que os agentes de casos fossem bons nessas coisas. O mínimo
que podes fazer é estar comigo. ─ E vou lá estar. Prometo.
─ Cuidado com aquilo que prometes, Michael.
Saiu da Beltway, entrando na estrada de acesso a Dulles. O trânsito reduziu
de intensidade e Elizabeth acelerou até os cem. A lua cheia pairava sobre os
campos de Virgínia, amortalhada por uma camada transparente de nuvens.
Michael acendeu um cigarro e entreabriu o vidro da janela. Elizabeth conduzia com
agressividade, mudando de faixa sem abrir o pisca, colando-se ao carro da frente,
fazendo sinais de luzes a quem se atrevesse a conduzir a menos de cento e dez na
faixa de ultrapassagem. Michael sabia o verdadeiro motivo do mau humor de
Elizabeth. Ia para Londres investigar um ato de terrorismo, e a esposa sabia que
isso levaria a que pensasse no assassinato de Sarah. O seu orgulho impedia-a de o
admitir, mas os sentimentos estavam bem patentes na expressão ansiosa do rosto.
Ficaria ainda mais perturbada se Michael lhe contasse a verdade: Que suspeitava
que Sarah e o agente britânico tinham sido assassinados pelo mesmo homem. ─
Entreguei ao tom Logan o material do disquete da Susanna informou Elizabeth. ─
Ele vai publicar o artigo?
─ Diz que não pode, sem antes confirmar os pormenores. Diz que as
acusações são demasiado explosivas para serem editadas antes de serem analisadas
pelos advogados. E, uma vez que a jornalista que redigiu a história está morta, não
pode haver uma investigação profunda.
─ Que vai ele fazer?
─ Designou uma equipe dos melhores jornalistas para confirmarem os
dados. Infelizmente, a Susanna não vai ser de grande ajuda no túmulo. Os
apontamentos não contêm muitas pistas sobre a identidade das fontes. Por isso, a
equipe do Logan tem de começar praticamente do zero.
─ Isso pode demorar muito.
─ Susanna precisou de três meses para fazê-lo sozinha.
Chegaram a Dulles. Elizabeth dirigiu-se às partidas e parou junto ao
passeio. Michael saiu e tirou uma mala de roupa da bagageira. Fechou-a e
aproximou-se da porta do condutor do Mercedes. Elizabeth baixara o vidro e tinha
a cabeça de fora, à espera de um beijo de despedida.
─ Tem cuidado, Michael.
─ Eu tenho.
Esperou que as luzes de presença desaparecessem na escuridão e depois
entrou no terminal.
Michael acordou quando o avião atravessou a camada de nuvens e deu
início à descida para a manhã cinzenta de Londres. A Estação de Londres oferecera-
se para lhe enviar um carro, mas Michael queria envolver-se o menos possível com
os ingleses, por isso apanhou um táxi. Baixou o vidro. Gostava da sensação do ar
frio no rosto, apesar do fedor a fumo dos tubos de escape. Londres fora a sua casa
durante oito anos. Fizera mil vezes o percurso entre Heathrow e o centro da cidade.
Os lúgubres subúrbios que passavam por ele eram-lhe mais familiares do que
Arlington, ou do que Chevy Chase.
Registrou-se no hotel, um estabelecimento modesto e independente em
Knightsbridge, com vista para Hyde Park. Gostava do sitio, pois cada quarto
possuía uma pequena sala de estar anexa ao quarto de dormir. Pediu um pequeno-
almoço inglês completo e foi debicando a comida até serem horas de ligar a
Elizabeth. Acordou-a e travaram uma conversa desconexa antes que ela voltasse a
adormecer.
Michael sentia-se cansado, por isso dormiu até o início da tarde. Quando
acordou, vestiu um moletom impermeável. Pendurou o sinal não INCOMODAR na
porta e enfiou um pedaço minúsculo de papel entre a porta e a lateral. Se ainda lá
estivesse ao regressar, provavelmente ninguém teria entrado no quarto. Caso
tivesse desaparecido, alguém lá teria estado.
Correu pelos caminhos de Hyde Park debaixo de nuvens plúmbeas,
carregadas de chuva. O céu abriu dez minutos depois de ter iniciado o treino. Os
londrinos que passavam, abrigados pelos guarda-chuvas fustigados pelo vento,
fitavam-no como se fosse um louco em fuga. Após quinze minutos ficou ofegante e
começou a andar. Conseguira manter a forma física ao longo dos anos, apesar de
ser fumante, mas agora os cigarros cobravam seu preço. E Elizabeth tinha razão:
estava ficando com barriga.
Regressou correndo ao hotel. O papel caiu ao chão quando abriu a porta do
quarto. Tomou uma ducha e vestiu um terno completo azul-marinho. Apanhou um
táxi até Grosvenor Square e exibiu a identificação ao Marine de guarda à entrada.
Michael sentia-se desconfortável nas embaixadas. Nunca deixara de ser um NOC.
Quando se encontrava sedeado em Londres, apenas ia à embaixada em situações
de emergência, e sempre "às escuras", o que significava que entrava pelo
estacionamento subterrâneo, nos fundos de uma van. Gostava de não ter ido ali,
mas as regras do Centro exigiam uma visita de cortesia ao chefe de estação local.
O chefe de pessoal de Londres era um homem chamado Wheaton, um
anglófilo assumido de bigode fino, terno riscado de Savile Row e o hábito irritante
de apertar uma bola de tênis sempre que não sabia o que dizer. Wheaton pertencia
à velha guarda: Princeton, Moscou, cinco anos como chefe do gabinete russo antes
de assumir o seu posto definitivo em Londres. Disse ter conhecido o pai de
Michael, mas não disse que gostara dele. Também deixou bem claro que não
acreditava que a Estação de Londres precisasse de ajuda do CTCNT, o
Counterterrorist Center (Centro Contraterrorista) para aquele caso. Michael
prometeu deixá-lo a par de tudo o que descobrisse. Wheaton disse educadamente a
Michael que gostaria de o ver longe da cidade o mais depressa possível. O táxi
deixou Michael no terraço georgiano branco de Eaton Place. Helen e Graham
Seymour possuíam uma casa agradável e, da rua, Michel podia vê-los como atores
num palco de vários níveis: Graham no andar de cima, na sala, Helen abaixo do
nível da rua, na cozinha. Desceu as escadas e bateu à vidraça da porta da cozinha.
Helen desviou a atenção dos cozinhados e exibiu um sorriso rasgado.
Abriu a porta e beijou-lhe a face.
─ Jesus, Michael, há tanto tempo. ─ Serviu vinho Sancerre num copo e
colocou-o na mão dele. ─ Graham está lá em cima. Vão pôr a conversa em dia
enquanto acabo o jantar.
Quando Michael entrou na sala, Graham Seymour remexia na lareira a gás.
A sala tinha painéis e soalho de madeira, com uma série de tapetes orientais e
decorações do Oriente Médio muito finos. Graham levantou-se, sorriu e estendeu a
mão. Viam-se um ao outro da forma que apenas os homens de constituição idêntica
conseguem. Graham Seymour era o negativo de Michael. Este tinha pele cor de
azeitona e Graham era pálido. Michael tinha cabelo escuro e olhos verdes, e
Graham era louro e de olhos cinzentos. Michael vestia terno marinho e Graham
estava pronto para um safari, com calças e camisa caqui.
Sentaram-se e falaram sobre os velhos tempos. Tinham percursos de vida
quase idênticos. À semelhança de Michael, também o pai de Graham trabalhara
para os serviços secretos: na operação Double Cross do MI5 durante a guerra, e
depois no MI6, durante vinte e cinco anos. Tal como Michael, também Graham
seguiu o pai de comissão em comissão, e entrou para os Serviços Secretos logo
após se ter formado em Cambridge. Ao longo dos anos, os dois homens tinham
trabalhado em conjunto, embora Graham sempre tivesse operado com cobertura
oficial. Desenvolveram respeito profissional e uma amizade pessoal. Com efeito,
eram mais chegados do que ambos os serviços gostariam.
O cheiro do cozinhado de Helen chegou até a sala.
─ O que está ela a fazer? ─ perguntou Michael, à cautela.
─ Paella ─ respondeu Graham, com um franzir de cenho. ─ Talvez devesses
ir à farmácia antes que feche.
─ Eu fico bem.
─ Dizes isso agora, mas nunca provaste a paella da Helen.
─ É assim tão má?
─ Não quero estragar a surpresa. Talvez seja melhor beberes mais um
pouco de vinho.
Graham desceu à cozinha e regressou momentos depois com copos cheios
de Bordéus branco.
─ Fala-me sobre o Colin Yardley. Graham fez um esgar.
─ Aconteceu uma coisa estranha há dois meses. Um traficante de armas
chamado Farouk Khalifa decidiu instalar-se em Paris. Descobrimos o caso e
informamos os nossos amigos franceses, que colocaram o senhor Khalifa sob
vigilância. ─ Foi um gesto simpático por parte dos franceses. Ele vende armas a
pessoas de que não gostamos.
─ É um homem mau.
─ É um homem muito mau. Abriu o bazar e começou a receber clientes. Os
franceses fotografam toda a gente que entra e sai.
─ Estou vendo o filme.
─ Em Setembro, um homem faz uma visita ao senhor Khalifa. Os franceses
não conseguem identificá-lo, mas desconfiam que seja britânico, por isso enviam-
nos uma cópia da fotografia por fax seguro.
─ Colin Yardley?
─ Em carne e osso.
─ A chefia confrontou-o. Exigiram saber por que raio se tinha encontrado
com um tipo como o Khalifa. O Yardley inventou uma treta qualquer sobre estar
aborrecido com o trabalho de secretária, e andar ansioso por voltar ao trabalho de
campo. Trabalhou em Paris durante algum tempo. Disse que andava por conta
própria. A chefia não ficou nada satisfeita, e isto é um eufemismo. Yardley foi
repreendido com veemência.
─ Cristo.
─ Pois adivinha lá qual é a arma que o Farouk Khalifa tem em grande
abundância. ─ Segundo as nossas informações, são mísseis Stinger. ─ Michael
bebeu um pouco de vinho. -─ Imagino que os teus serviços não tenham
transmitido essas informações aos meus. Graham abanou a cabeça.
─ Ficamos um pouco embaraçados com o assunto. Compreende, não,
Michael? A chefia queria esquecer o caso, por isso desapareceram com ele.
Helen surgiu no alto das escadas.
─ O jantar está pronto.
─ Que maravilha ─ proclamou Graham, com um pouco de entusiasmo a
mais. ─ Bem, imagino que o vídeo tenha de esperar.
Helen Seymour fazia pratos elaborados, mas terríveis. Acreditava
que "cozinha inglesa" era um oximoro, e especializara-se na comida do
Mediterrâneo: italiana, grega, espanhola, norte-africana. Naquela noite serviu uma
paella horrorosa de peixe cru e camarão queimado, tão picante que Michael sentiu
a garganta seca, à medida que empurrava garfada após garfada para a boca.
Terminou corajosamente e Helen insistiu em que repetisse. Graham reprimiu uma
gargalhada enquanto a esposa servia duas colheradas enormes no prato estendido
de Michael.
─ Está divino, não está? ─ ronronou Helen. ─ Acho que também vou me
servir de mais um pouco.
─ Você se excedeu mais uma vez, querida ─ elogiou Graham.
Havia muito que aprendera a lidar com a comida exótica da mulher.
Comprava sanduíches e hambúrgueres quando saía do trabalho e devorava-os ao
descer para o metrô. Há três anos exibia uma súbita devoção por pão. Helen fazia
variedades novas e diferentes todas as noites, que Graham comia em grandes
quantidades. Ganhara barriga por excesso de hidratos de carbono à noite. Marcava
telefonemas importantes para a hora do jantar e fingia serem inesperados. À
semelhança de uma criança impertinente, tornara-se perito em distribuir a comida
pelo prato, criando assim a ilusão do consumo. Durante algum tempo, Graham
recusara-se a permitir que Helen cozinhasse para os convidados. Em vez disso, iam
a restaurantes. Agora sentia prazer em ter amigos para jantar, tal como um
condenado se reconforta com companhia nas últimas horas antes da morte.
Graham mergulhou um naco de pão espanhol num prato de azeite virgem e enfiou-
o na boca.
─ Helen, Michael e eu temos de trabalhar mais um pouco. Importa-se que
levemos o café para a sala?
─ É claro que não. Levo a sobremesa daqui a pouco. ─ Virou-se para
Michael, com um sorriso arrebatador nos lábios. ─ Oh, Michael, fico tão contente
por ter gostado da paella.
─ Helen, não me lembro da última vez que tive uma refeição destas.
Graham engasgou-se com um pedaço de pão.
Michael saiu do banheiro.
─ Você está bem, camarada? ─ perguntou Graham. ─ Parece enjoado.
─ Minha nossa Sra., como consegue comer assim todas as noites?
─ Está pronto para ver um filme?
─ Claro.
Sentaram-se no sofá da sala. Graham pegou o controle remoto que estava
em cima da mesa de apoio.
─ O senhor Yardley tinha outro problema ─ indicou. ─ Gostava de
mulheres.
─ Os serviços também sabiam disso?
─ Sim, o Departamento de Pessoal pediu para ter calma. Ele respondeu que
se danassem. Era solteiro, faltavam-lhe poucos anos para a aposentadoria, e ia
divertir-se.
─ Boa atitude.
─ Os serviços encontraram o corpo. Entramos antes da polícia e revistamos
a casa. Descobrimos que o adorável Colin Yardley tinha instalado no quarto um
sistema secreto de gravação de vídeo para gravar as conquistas e vê-las quando
quisesse. Tinha uma bela coleção. Os vigilantes usavam-na para aliviar o
aborrecimento entre missões.
Graham apontou o comando ao reprodutor de vídeo e teclou PLAY. A
câmara estava instalada em algum lugafr acima da cabeceira da cama. Yardley
estava deitado, nu, masturbando-se lentamente enquanto uma mulher alta
executava um striptease provocante. Desabotoou a blusa, passou as mãos pelos
seios e enfiou-as por dentro do sutien.
Graham imobilizou a imagem.
─ Quem é ela? ─ perguntou Michael.
─ Acho que é Astrid Vogel.
─ Segundo as nossas informações, ela está morando em Damasco.
─ Nós achamos o mesmo. Na verdade, acreditamos que tenha deixado a
Facção do Exército Vermelho de vez, o que torna o seu envolvimento neste caso
ainda mais intrigante. ─ Graham acionou o comando e a imagem ganhou vida. ─
Esta é a melhor parte. Não vou estragar o fim.
O striptease de Astrid Vogel tornou-se mais intenso. Tinha as mãos entre as
pernas e a cabeça inclinada para trás, fingindo êxtase.
─ Ela é boa ─ comentou Graham. ─ Muito boa.
Helen entrou com uma travessa de café e tarte de maçã.
─ Mas que maravilha. Deixo-os sozinhos dez minutos e vocês alugam um
filme pornográfico.
Pousou a travessa na mesa de apoio, os olhos fixos na tela.
─ Quem é aquela criatura?
─ Uma antiga assassina do Baader-Meinhof chamada Astrid Vogel.
Uma expressão de terror cruzou o rosto de Yardley. Graham parou o vídeo.
─ Esta parte é bem sangrenta, querida. Talvez fosse melhor ir lá para baixo.
Helen sentou-se no divã.
─ Como queira ─ disse Graham e recomeçou o vídeo.
Uma figura escura penetrou no quarto, as feições ocultas por boné e óculos
de sol. Levou a mão atrás das costas, puxou de uma arma com silenciador e alvejou
Colin Yardley três vezes no rosto. A mulher avançou, deu um pontapé no cadáver e
cuspiu-lhe em cima.
Graham parou a fita.
─ Meu Deus do céu ─ disse Helen.
─ É ele ─ garantiu Michael.
─ Como sabe? Está sempre de cara tapada.
─ Não preciso ver a cara. Já o vi empunhando uma pistola. É ele, Graham.
Apostaria minha vida. É ele.
─ Sei que nem preciso de dizer, Michael, mas as regras são as habituais. A
informação que te dei serve apenas para uso pessoal. Não pode partilhá-la com
outro elemento do teu serviço, nem com qualquer outro serviço.
─ Se te ajudar a dormir melhor, até assino uma cópia da Lei dos Agentes
Secretos.
Michael ergueu a gola do casaco e enfiou as mãos nos bolsos. A chuva
parara e queria andar. Graham acedera em acompanhá-lo até meio caminho.
Vaguearam pelos sossegados vales georgianos de Belgravia, tendo como único
ruído de fundo o ronco distante do trânsito noturno de King's Road.
─ Quero falar com Drozdov ─ disse Michael.
─ Não podes falar com o Drozdov. Não está ao teu alcance. Além do mais,
ele diz que deixou de falar e que pretende passar o resto dos dias em paz. ─ Tenho
uma teoria sobre o assassino que matou Yardley e quero que ele me dê a sua
opinião.
─ O Drozdov é o nosso desertor. Já partilhamos as informações com você.
Se tentares falar com ele, vais ficar em maus lençóis, tanto pela tua parte como pela
nossa.
─ Por isso mesmo, vai ser uma conversa oficiosa.
─ O que tem em mente? Estás pensando em cruzar com ele e dizer: "Ei,
você não é Ivan Drozdov, o antigo assassino do KGB? Importa-se que lhe faça umas
perguntas?" Tome juízo, Michael.
─ Tinha pensado em utilizar uma abordagem um pouco mais sutil.
─ Se descobrirem, nego qualquer envolvimento. Até te acuso de ser espião
russo.
─ Não esperaria menos do que isso.
─ Ele está morando em Cotswolds. Numa aldeiazinha chamada Aston
Magna. Toma chá e lê os jornais todas as manhãs num café de Moreton, a poucos
quilômetros de distância.
─ Conheço bem a região ─ disse Michael.
─ É o homem com os cães corgis e a bengala nodosa. Parece mais inglês do
que o príncipe Philip. Não há como errar.
Graham Seymour acompanhou Michael até Sloane Street antes de se
despedir e regressar a Eaton Place. Michael deveria ter seguido em direção ao
norte, até Hyde Park e seu hotel, mas, em vez disso, quando Graham desapareceu
encaminhou-se para o sul, para Sloane Square.
Atravessou a praça e perambulou pelas sossegadas ruas secundárias de
Chelsea, até chegar à Represa, virada para o Tamisa. As luzes brilhavam nas casas
de luxo sobranceiras. O passeio cintilava com a névoa do rio. Michael tinha a zona
só para si, não fosse um homem calvo e baixo que se apressava pela rua, as mãos
enfiadas nos bolsos do oleado puído, a coxear como um soldadinho de chumbo que
já não presta para brincar.
Apoiou-se à barreira, olhou para o rio e depois virou-se e fitou Battersea
Bridge e as luzes brilhantes de Albert Bridge, mais além. Podia ver Sarah a dirigir-
se a ele, através das trevas e da neblina, o cabelo negro puxado para trás, a saia a
dançar à volta das botas de camurça. Sorria-lhe como se fosse a pessoa mais
importante à face da terra, como se tivesse passado o dia a pensar nele. Era o
mesmo sorriso que lhe oferecia sempre que ele entrava no apartamento, sempre
que se encontravam para uma bebida no bar, ou para um espresso, no restaurante
preferido.
Pensou na última vez que estiveram juntos. Fora na tarde anterior, quando
passara pelo apartamento e a encontrara no chão, com um maiô branco, o corpo
magro dobrado sobre as longas pernas nuas. Recordou como ela se levantara e lhe
beijara a boca, como baixara o maiô dos ombros para que ele lhe tocasse nos seios.
Mais tarde, na cama, confessara ter fantasiado que fazia amor com ele para aliviar o
enfado dos exercícios de alongamento. Que ficava sempre terrivelmente tensa e
que tinha de resolver o problema sozinha, pois ele estava a trabalhar.
Nesse momento sentiu-se completamente apaixonado. Fez amor com ela
uma última vez. Ela ficou deitada de costas, imóvel, os olhos fechados, o rosto
passivo, tanto tempo quanto conseguiu, até que o prazer físico foi demasiado e
abriu os olhos e a boca, puxou-o para si e beijou-o até chegarem juntos. Foi essa
imagem, e a visão dela a flutuar na sua direção à luz da Represa de Chelsea, que foi
estilhaçada pelo homem com a arma.
Recordou o rosto dela a explodir, o corpo a dissolver-se à frente dos seus
olhos. Recordou o assassino: tez pálida, cabelo muito curto, nariz fino. Viu mais
uma vez a forma como sacou a pistola da cintura, o modo como o braço se
levantou, como disparou três vezes sem hesitar. Michael correu para ela, mesmo
sabendo que estava morta. Por vezes, desejava ter perseguido o assassino, embora
soubesse que tal provavelmente lhe teria custado a vida. Em vez disso, ajoelhou-se
a seu lado e abraçou-a, a cabeça dela apertada contra o peito para não lhe ver o
rosto desfeito.
Começou a chover. Apanhou um táxi de volta ao hotel. Despiu-se, deitou-se
e telefonou a Elizabeth. Ela deve ter percebido algo na voz do marido, pois soluçou
quando se despediu e desligou. Michael sentiu uma pontada de culpa, como se
tivesse acabado de traí-la.
LONDRES
Bem cedo na manhã seguinte, Michael deixou o hotel e alugou um Rover
sedan metalizado numa agência da Hertz, a norte de Marble Arch. Entrou na A40
perto de Paddington Station e seguiu para oeste, contra o fluxo da hora de ponta.
Ainda estava escuro e chovia ao de leve. Michael ligou o rádio e escutou as notícias
das seis na BBC. Enquanto atravessava os subúrbios a noroeste de Londres, a A40
entrou na M40. A luz macilenta da alvorada foi surgindo à medida que ele subia as
elevações suaves de Chilterns. O mapa fornecido pela Hertz estava fechado, em
cima do banco do passageiro. Michael não precisava dele, pois conhecia bem as
estradas.
A família de Sarah possuíra uma grande casa de campo em Cotswolds, na
aldeia de Chipping Campden. Muros de pedra calcária, cobertos de clematite e de
heras diversas, cercavam a casa. Michael passara aí vários fins-de-semana com ela,
durante os meses em que estiveram juntos. O campo alterava-a, levando-a a despir
a farda de couro preto do clã do Soho. Usava calças de ganga desbotadas e blusas
no Inverno, e vestidos leves no Verão. De manhã, percorriam os caminhos nos
arredores da aldeia, através de pastos repletos de ovelhas e de faisões. À tarde,
faziam amor. No Verão, com o tempo quente, faziam amor no jardim, ocultos pelo
calcário e pelas flores. Sarah preferia fazê-lo ao ar livre. Gostava da sensação de
Michael dentro dela e do sol na pele clara. Desejava, em segredo, que as pessoas os
vissem. Queria que o mundo soubesse como era o seu ato de amor. Queria que
todos os invejassem.
Dançava, servia de modelo, lia muitos livros. Por vezes representava. Às
vezes fotografava. As suas cores políticas eram atrozes e tão flexíveis como o seu
corpo esguio. Era trabalhista e comunista. Era verde e anarquista. Vivia no Soho,
num quarto atulhado de roupas de segunda mão e maiôs, em cima de um
restaurante libanês que servia comida para fora. Ouvia os Clash e os Stones. Ouvia
gravações do oceano e de sons da floresta e cantos gregorianos. Era vegetariana e o
cheiro do borrego assado do restaurante deixava-a enojada. Para disfarçar o cheiro,
queimava incenso e acendia velas. Da primeira vez que levou Michael para a cama,
este teve a sensação incômoda de estar a fazer amor numa igreja católica.
Apresentou-o a um mundo que ele não conhecia. Levou-o a festas bizarras
e a teatro experimental. Levou-o a sessões de leitura e a ver exposições. Escolheu-
lhe roupas diferentes. Não dormia, a menos que primeiro fizesse amor com ele.
Adorava olhar para os seus corpos à luz das velas.
─ Olha só para nós ─ dizia. ─ Sou tão pálida e você tão moreno. Sou o bem
e você o mal.
O trabalho dele enfadava-a e ela nunca lhe fazia perguntas. A noção de
alguém correr o mundo a vender coisas parecia baralhá-la. Apenas lhe perguntava
onde ia e quando regressava.
Adrian Carter era o agente de controle de Michael. Este tinha a obrigação
de mencionar a relação que mantinha com Sarah a Carter e ao Departamento de
Pessoal, mas eles iriam revolver-lhe o passado, investigar as tendências políticas, o
trabalho, os amigos, os amantes, e talvez descobrissem coisas que Michael preferia
não saber. Manteve a Agência ignorante da existência de Sarah e esta da Agência.
Receava que ela o abandonasse, caso descobrisse a verdade. Tinha medo que
tecesse comentários com os amigos, o que poria em perigo o seu disfarce em
Londres. Estava a mentir aos patrões e à amante. Sentia-se feliz e desolado ao
mesmo tempo.
Aproximava-se de Oxford. Uma van comercial Ford branca seguia-o desde
há trinta quilômetros, mantendo-se sempre três ou quatro carros atrás. Era possível
que a Ford se limitasse a viajar na mesma direção, mas Michael fora treinado a não
acreditar em coincidências. Abrandou e deixou que o trânsito o ultrapassasse.
A Ford permaneceu à mesma distância.
Aproximou-se de uma área de serviço. Saiu da auto-estrada e estacionou
perto do restaurante. A Ford seguiu-o e entrou na bomba de gasolina. O condutor
saiu e fingiu ver a pressão do pneu do lado do passageiro, enquanto observava o
Rover. Michael interrogou-se quem o poderia estar a seguir. Wheaton, da Estação
de Londres? Graham Seymour e o MI6?
Entrou no restaurante, pediu café e uma sanduíche de bacon e ovo frito, e
foi ao banheiro. Foi buscar a comida, pagou e saiu. A Ford continuava na bomba de
gasolina, com o condutor a preparar-se para ver a pressão do pneu traseiro.
Michael dirigiu-se a um telefone público e ligou para o hotel onde estava
hospedado. Disse à recepcionista que deixara um par de botões de punho valiosos
na casa de banho. Ditou-lhe uma morada falsa em Miami, que ela prontamente
anotou, enquanto Michael observava a Ford. Desligou e regressou ao Rover. Ligou o
motor e afastou-se, entrando no trânsito da auto-estrada. Olhou para o espelho
retrovisor enquanto comia o sanduíche.
Lá estava a Ford, três carros atrás.
O monovolume seguiu Michael até Moreton-in-Marsh, uma aldeia grande
segundo os padrões de Gloucestershire, que abarcava o cruzamento da A44 e da
A429. Parou num estacionamento em frente a uma série de lojas e saiu. A Ford
estacionou a cinquenta metros dele. O restaurante ficava ao lado de um talho, com
faisões pendurados à porta. Michael pensou em Sarah, à sua frente com um prato
de feijão com arroz e puré de abóbora, a fitá-lo enquanto ele arrancava a carne dos
ossos de um faisão assado. Entrou no restaurante e pediu café e um bolo à jovem
rechonchuda ao balcão.
Michael reconheceu Ivan Drozdov das fotografias da Agência. Era calvo,
salvo por uma franja grisalha, e o corpo alto estava debruçado sobre uma pilha de
matutinos. Tinha os óculos de leitura dourados na ponta do nariz e semicerrava os
olhos contra o fumo do cigarro preso aos lábios finos. Vestia uma blusa cinzenta de
gola alta e um blusão verde com gola de bombazina. Um par de corgis idênticos
lambiam-se ao lado das botas Wellington sujas com lama úmida.
Michael levou a comida para a mesa ao lado e sentou-se. Drozdov ergueu
brevemente o olhar, sorriu e regressou aos jornais. Passaram alguns minutos, com
Michael a beber café e Drozdov a ler o The Times e a fumar.
Por fim, sem levantar os olhos, Drozdov disse:
─ Será que vai falar, ou vai ficar aí sentado, a incomodar-me os cães? ─
Chamo-me Cari Blackburn, e estava a pensar se poderíamos falar um pouco ─
replicou Michael, surpreendido.
─ Na verdade, o seu nome é Michael Osbourne. Trabalha para o Centro de
Contraterrorismo da CIA, em Langley, na Virgínia. Já foi agente de campo, até que
a sua amante foi assassinada em Londres e a Agência levou-o para a sede.
Drozdov dobrou cuidadosamente o jornal e deu pedaços de bolo aos cães.
─ Se quiser falar, podemos ir dar um passeio ─ indicou. ─ Mas não volte a mentir-
me. É insultuoso e eu reajo mal aos insultos.
─ Tem noção de que está sendo vigiado, senhor Osbourne?
Caminhavam ao longo de um trilha na direção da aldeia de Aston Magna,
onde Drozdov se instalara quando a União Soviética se desmoronara e a ameaça de
morte por parte dos seus antigos mestres do KGB desaparecera. Era um palmo
mais alto do que Michael e, tal como muitos homens altos, inclinava-se
ligeiramente para se encolher. Andava com lentidão, as mãos atrás das costas, a
cabeça baixa, como se procurasse algo perdido. Os cães seguiam alguns metros à
frente, como se fossem contravigilância. Michael, que por natureza andava
depressa, esforçava-se por acompanhar o passo desajeitado de Drozdov.
Interrogou-se como teria o idoso avistado quem o seguia, pois Michael não o vira a
olhar.
─ Dois homens ─ indicou Drozdov. ─ Uma van Ford branca.
─ Avistei-os na M-40, alguns quilômetros fora de Londres.
─ Alguém sabe que veio falar comigo?
─ Não ─ mentiu Michael. ─ Não vim como representante da CIA, e não
pedi autorização aos ingleses. É um assunto pessoal.
─ Colocou-se numa posição bastante difícil, senhor Osbourne. Se fizer
alguma coisa de que eu não goste, basta-me pegar o telefone e falar com o meu
agente de ligação do MI-6, para que fique em maus lençóis.
─ Eu sei. Obviamente, peço que não o faça, por cortesia profissional.
─ Deve ser muito importante.
─ É, sim.
─ Imagino que aqueles homens na van branca tenham um microfone de
longo alcance. Talvez devêssemos ir para algum sítio onde não nos possam seguir.
Entraram num caminho que contornava um campo de erva seca. À distância, as
colinas erguiam-se até as nuvens baixas. Um rebanho de ovelhas baliu-lhes do
outro lado de uma vedação. Drozdov afagou-lhes a lã espessa das cabeças ao
passarem por elas. O caminho estava enlameado devido à chuva que caíra durante
a noite e, depois de alguns passos, os sapatos italianos de camurça de Michael
ficaram arruinados. Virou-se e olhou para trás. A van regressava a Moreton.
─ Julgo que já podemos falar, senhor Osbourne. Os seus amigos parecem
ter desistido.
Michael passou dez minutos a falar. Percorreu a lista de assassinatos e os
atentados terroristas. O ministro espanhol em Madrid. O oficial da polícia francesa
em Paris. O executivo da BMW em Francoforte. O oficial da OLP em Tunes. O
empresário israelense em Londres. Drozdov ouviu com atenção, por vezes
aquiescendo, outras vezes resmungando baixinho. Os cães correram pelo prado e
afugentaram faisões.
─ E o que quer saber, ao certo? ─ perguntou Drozdov, quando Michael
acabou de falar.
─ Quero saber se foi o KGB que eliminou esses alvos. Drozdov assobiou
para chamar os cães.
─ Merece um elogio, senhor Osbourne. Falhou uns quantos, mas é um belo
começo.
─ Portanto, os atentados foram levados a cabo pelo KGB?
─ Sim, foram.
─ Foi sempre o mesmo homem?
─ Sempre.
─ Como se chama?
─ Não tinha nome, senhor Osbourne. Apenas um nome de código.
─ Qual era o nome de código?
Drozdov hesitou. Desertara, traíra seu serviço, mas revelar nomes de
código era o equivalente em espionagem à quebra da omertà da Máfia. ─ Outubro,
senhor Osbourne. O nome de código era Outubro ─ acabou por dizer.
O sol apareceu brevemente entre as nuvens, aquecendo o campo. Michael
desabotoou o casaco e acendeu um cigarro. Drozdov imitou-o, a testa franzida
enquanto fumava, como se procurasse a melhor forma de começar a narrativa.
Michael já lidara com muitos agentes. Sabia quando devia forçar e quando era
preferível esperar e ouvir. Não tinha como pressionar Drozdov, que apenas falaria
se quisesse.
─ Ao contrário do que se pensa no Ocidente, não éramos muito bons a
matar pessoas ─ acabou Drozdov por dizer. ─ Sim, no interior da União Soviética
éramos muito eficientes. Mas fora do bloco soviético, no Ocidente, éramos terríveis
no que dizia respeito a assuntos sujos. Um dos nossos melhores assassinos,
Nikolai Khokhlov, mudou de ideias quando estava a tentar matar um líder da
resistência ucraniana e desertou. Tentamos matá-lo e também fracassamos.
Durante muito tempo, o Politburo desistiu do assassinato como ferramenta do
ofício. Drozdov largou a beata do cigarro para a lama e pisou-a com a ponta da
bota. ─ Isso mudou no final dos anos 60. Olhamos para o Ocidente e vimos
conflitos internos um pouco por toda a parte: os irlandeses, os bascos, os Baader-
Meinhof alemães, os palestinos. Além disso, tínhamos também os nossos próprios
problemas para resolver, os dissidentes, os desertores, sabe como é. Tal como sabe,
os assassinatos eram geridos pelo Departamento Cinco do Primeiro
Diretorado Principal. O Departamento Cinco queria um assassino muito
bem treinado, com base permanente no Ocidente, que levasse a cabo mortes em
cima da hora. Esse assassino era o Outubro.
─ Quem é ele? ─ indagou Michael.
─ Entrei para o Departamento Cinco depois de ele estar integrado no
Ocidente. O seu arquivo não revelava nada sobre a verdadeira identidade. Havia
boatos, é claro. Dizia-se que era filho ilegítimo de uma patente bastante elevada do
KGB: de um general, ou talvez do próprio presidente. Não passavam de boatos.
Foi acolhido muito novo pelo KGB e recebeu uma educação e um treino
intensivos. Em 8, ainda adolescente, foi enviado para o Ocidente através da
Checoslováquia, fazendo-se passar por refugiado. Acabou por se mudar para Paris.
Fingiu-se um jovem desalojado e foi recebido por um orfanato católico. Ao longo
dos anos desenvolveu uma identidade francesa à prova de tudo. Frequentou
escolas francesas, tinha um passaporte francês, tudo. Até cumpriu o serviço militar
no exército francês.
─ E depois começou a matar.
─ Acima de tudo, era utilizado para promover a instabilidade no Ocidente,
para levantar problemas aos governos ocidentais. Matava de ambos os lados do
muro. Agitava as águas, por assim dizer. Lançava achas para a fogueira. E era muito
bom no que fazia. Orgulhava-se de nunca ter falhado uma única missão. Não
utilizava as ferramentas que lhe púnhamos à disposição para lhe facilitar o
trabalho, as balas com ponta de cianeto, ou as armas que libertavam gás venenoso.
Desenvolveu o seu método de matar muito próprio.
─ Três tiros no rosto.
─ Brutal, eficaz, bastante dramático.
Michael vira os resultados em primeira-mão. Não precisava que Drozdov
descrevesse o efeito do método do assassino.
─ Ele tinha um agente responsável? ─ perguntou Michael, com um tom de
voz sereno.
─ Sim, apenas trabalhava com um agente, um homem chamado Mikhail
Arbatov. Cheguei a tentar substituir Arbatov, mas o Outubro ameaçou matar o
novo elemento. Arbatov era o mais próximo que o Outubro tinha de uma família.
Só confiava em Arbatov e, mesmo assim, apenas o suficiente.
─ Há pouco tempo foi assassinado em Paris um Mikhail Arbatov.
─ Sim, li sobre isso. A polícia disse que deve ter sido morto por
delinquentes.
O relato do jornal descreve-o como sendo um diplomata russo aposentado
a viver em Paris. Se há uma coisa que aprendi nesta vida, senhor Osbourne, é que
não se pode acreditar em tudo o que se Le nos jornais.
─ Quem matou Arbatov?
─ O Outubro, é claro.
─ Por quê?
─ É uma boa pergunta. Talvez Arbatov soubesse demasiado sobre alguma
coisa.
Quando o Outubro se sente ameaçado, mata. É a única coisa que sabe fazer.
Exceto pintar. Dizem que tem bastante talento.
─ Começou a trabalhar por conta própria? Agora é assassino profissional?
─ Dos melhores do mundo, bastante procurado. Arbatov era o seu agente.
Enriqueceram bastante em conjunto. Ouvi dizer que havia muita inveja pela forma
como Arbatov se aproveitara dos talentos do Outubro. Arbatov tinha muitos
inimigos, muita gente que lhe desejava mal. Mas, se está à procura de quem o
matou, talvez começasse pelo Outubro.
O sol voltou a desaparecer e as nuvens engrossaram, negras com a
promessa de chuva. Passaram por uma mansão de pedra calcária, cercada por
relvados amplos. Michael contou-lhe sobre Colin Yardley. Sobre a gravação vídeo da
morte. Sobre Astrid Vogel.
Drozdov abanou lentamente a cabeça.
─ Imaginaria que alguém com o ofício de Yardley soubesse os perigos de
ter uma câmara no quarto. Tenho de admitir que é uma das consequências da
velhice que não me incomodam. O eterno desejo pelo corpo da mulher deixou-me
finalmente em paz. Tenho os meus cães, os meus livros, e a minha paisagem
bucólica de Cotswolds.
Michael riu em silêncio.
Em tempos trabalhou com a Fação do Exército Vermelho. Foi durante essa
missão que conheceu Astrid Vogel. Ela passou muitos anos escondida, em Tripoli,
em Damasco, nas montanhas Shouf. Pagou muito caro pelo idealismo. Houve
qualquer coisa que a voltou a atrair para este mundo. Imagino que tenha sido o
dinheiro. ─ Porque iria o Outubro matar Colin Yardley?
Talvez devesse reformular essa pergunta: O que fez Colin Yardley para que
alguém contratasse o melhor assassino do mundo para o matar? Talvez tenha
adquirido um míssil Stinger a um traficante de armas do mercado negro chamado
Farouk Khalifa, após o que o entregou aos homens que abateram o Voo 002, pensou
Michael.
Começou a chuviscar e o tempo arrefeceu. Os cães rodearam as botas de
Drozdov, ansiosos por voltar a casa, para junto da lareira. À frente deles surgiu a
aldeia de Aston Magna, um aglomerado de casas espalhadas à volta do cruzamento
de duas estradas secundárias.
─ Oferecia-lhe boleia de volta a Moreton, mas não conduzo desculpou-se
Drozdov. ─ Obrigado, mas vou a pé.
─ Sinto muito pelos sapatos ─ indicou, apontando a bengala ao calçado
arruinado de Michael. ─ Não foi uma muito boa escolha para uma caminhada
através de Cotswolds, no inverno.
─ Um pequeno preço a pagar pela ajuda que me deu.
Michael parou de andar. Drozdov continuou mais alguns metros, após o
que se deteve e virou-se.
─ Houve uma morte que ainda não referiu ─ comentou. O assassinato de
Sarah Randolph. Imagino que não tenha a ver com o caso em que está envolvido
neste momento. Admiro o seu profissionalismo, senhor Osbourne.
Michael não disse nada, limitando-se a aguardar.
Ela era uma comunista empenhada, uma revolucionária ─ explicou, abrindo
os braços e olhando o céu. ─ Que Deus nos proteja dos idealistas. A sua Sarah era
amiga dos oprimidos do mundo: dos irlandeses, dos árabes, dos bascos. Trabalhou
de bom grado para a minha agência. Conhecíamos a verdadeira identidade do
Michael. Sabíamos que enviava agentes de infiltração contra as organizações
guerrilheiras próximas da nossa causa. Queríamos saber mais acerca dos seus
movimentos, por isso colocamos Sarah Randolph no seu caminho. Michael sentiu a
cabeça às voltas. O coração acelerou. Tinha dificuldade em ouvir. Drozdov parecia
estar a afastar-se dele, a transformar-se numa linha vertical ao fundo de um túnel
comprido e escuro. Tentou recuperar o controle das emoções. Receava que Drozdov
se apercebesse e se calasse. Queria ouvir tudo. Depois de tantos anos, queria a
verdade, por mais dolorosa que fosse.
─ Sarah Randolph cometeu um erro terrível ─ continuou Drozdov. ─
Apaixonou-se pelo alvo. Disse aos agentes de ligação que pretendia desistir.
Ameaçou contar-lhe tudo. Ameaçou entregar-se à polícia e confessar. O oficial de
controle decidiu que ela era demasiado instável para prosseguir com a missão. O
Centro de Moscou quis eliminá-la, e eu fiquei encarregue do caso. Talvez lhe deva
um pedido de desculpas, mas imagino que compreenda que não foi nada pessoal.
Michael debateu-se para tirar um cigarro do maço e levá-lo aos lábios. As
mãos tremiam-lhe. Drozdov acercou-se e acendeu o cigarro com um isqueiro de
prata com bastante uso.
─ Julguei que merecia a verdade, senhor Osbourne, razão pela qual lhe
contei tudo o resto. Mas acabou. Faz parte do passado, tal como a Guerra Fria.
Regresse à sua esposa e esqueça Sarah Randolph. Ela nunca foi real. E, faça o que
fizer, mantenha-se alerta ─ acrescentou, com os lábios junto ao ouvido de Michael.
─ Se for atrás do Outubro e cometer um erro que seja, ele mata-o tão depressa que
nem vai dar por isso.
Michael regressou a Moreton sob chuva intensa. Quando chegou à aldeia,
estava ensopado até os ossos e dormente com o frio. Dirigiu-se ao Rover no
estacionamento e fingiu deixar cair as chaves ao tentar abrir a porta. Pôs-se de
gatas e perscrutou rapidamente a parte inferior da carroçaria. Não avistou nada de
invulgar, por isso entrou e ligou o motor. Colocou o aquecimento no máximo,
fechou os olhos e apoiou a testa no volante. Não sabia se a devia odiar por lhe ter
mentido, se amá-la ainda mais, por ter querido desistir e ter acabado por pagar
com a vida. Imagens dela percorreram-lhe a mente. Sarah a flutuar na sua direção,
a sorrir, uma saia comprida sobre botas de camurça. A pele luminosa, de um tom
dourado à luz das velas. O corpo arqueado na direção do seu. O rosto esfacelado!
Esmurrou o painel e arrancou com o carro, os pneus a derraparem no
pavimento molhado. A van Ford branca seguiu-o até Michael devolver o Rover no
Aeroporto de Heathrow.
Michael apanhou o ônibus do serviço de aluguer de carros até o Terminal
Quatro e correu para o interior. A fila para o check-in no balcão da
TransAtlantic Airlines era interminável, por isso procurou um telefone e ligou para
o gabinete de Elizabeth. Foi o secretário, Max Lewis, quem atendeu e pediu a
Michael que aguardasse, enquanto ia chamar Elizabeth a uma reunião. Michael
pensou no que lhe dizer. Decidiu não lhe contar nada, por enquanto. Era um
assunto demasiado complicado, demasiado emocional, para discutir ao telefone.
Elizabeth atendeu.
─ Estou no aeroporto. Vou apanhar o avião daqui a pouco, e queria apenas
dizer que te amo ─ disse Michael.
─ Está tudo bem, Michael? Pareces incomodado com alguma coisa.
─ Foi uma manhã muito comprida, só isso. Conto-te tudo quando chegar a
casa, logo à noite. Como te sentes? Estás pronta para amanhã?
─ O mais possível. Neste momento estou a tentar não pensar muito nisso.
Tenho uma pilha de coisas para despachar ainda hoje, e isso ajuda.
Michael virou-se para confirmar se a fila para o check-in tinha reduzido.
Uma centena de pessoas aguardava em fila, como refugiados num centro de
processamento, a bagagem aos pés, os rostos exasperados. Três jovens entraram no
terminal. Todos usavam um boné de basebol. Todos seguravam um saco de couro
preto. Estavam vestidos de modo informal, com calças de ganga e sapatos de tênis,
cabelo escuro por baixo dos bonés, pele cor de azeitona.
Michael observou-os. Deixou de ouvir o que Elizabeth estava a dizer. Os três
homens pararam e pousaram os sacos. Agacharam-se ao lado dos sacos e abriram-
nos.
─ Espera um pouco, Elizabeth ─ disse Michael. ─ Michael, o que foi?
Michael não respondeu, limitou-se a observar.
─ Responde-me, Michael, que raio! O que se passa?
Em uníssono, os homens levaram as mãos às palas dos bonés e os rostos
desapareceram atrás de véus de seda negra.
─ Baixem-se! Baixem-se! ─ bradou Michael. Largou o receptor.
Os homens levantaram-se, de armas automáticas e granadas em riste.
─ Armas! Armas! Baixem-se! ─ gritou Michael.
Os terroristas lançaram granadas para a multidão e começaram a disparar.
Michael correu na direção deles, aos berros.
Na baixa de Washington, Elizabeth gritava para o telefone. Ouviu Michael a
gritar, depois tiros, finalmente explosões. Depois a linha ficou em silêncio. ─ Ai,
meu Deus, Michael! Michael!
Procurou o controle remoto, ligou o televisor do gabinete e sintonizou a
CNN. Estava a meio de uma qualquer reportagem idiota sobre os benefícios dos
abacates para a saúde.
Percorreu o gabinete. Mordeu as unhas. Max sentou-se ao seu lado e
esperou, dando-lhe a mão. Dez minutos depois, Elizabeth mandou-o embora e fez
algo que não fazia há vinte anos.
Fechou os olhos, juntou as mãos e rezou.
LONDRES
No gabinete de primeiro andar da sua casa em St. John's Wood, o Diretor
telefonou a Mitchell Elliott a partir de uma linha segura.
─ Creio que o senhor Osbourne pode revelar-se um problema, senhor
Elliott. Ontem à noite teve uma conversa interessante com um homem do Serviço
de Espionagem, a qual escutamos com um microfone direcional localizado na rua.
Esta manhã encontrou-se com um certo Ivan Drozdov, um desertor da KGB que em
tempos supervisionou as atividades do nosso assassino. Do outro lado da linha,
Elliott suspirou profundamente.
─ Escusado será dizer que ele sabe muita coisa, e provavelmente desconfia
de muito mais ─ continuou o Diretor. ─ O nosso senhor Osbourne é um adversário
bastante valoroso. Na minha opinião, não o devemos menosprezá-lo.
─ Não o menosprezo, Diretor. Pode ter a certeza disso.
─ O que se passa no seu lado?
O Osbourne e a mulher encontraram umo disquete com os apontamentos
de Susanna Dayton e uma cópia do artigo. Ao que parece, conseguiram quebrar o
código de segurança. Entregaram o material aos editores do Washington Post.
─ Um desenvolvimento infeliz ─ comentou o diretor, tossicando. ─ Parece-
me que a Sra. Osbourne também se encontra em posição de criar problemas. ─ Já a
mandei vigiar.
─ Espero que desta vez seus homens se comportem de uma forma mais
profissional. No presente estado dos acontecimentos, não precisamos que a melhor
amiga de Susanna Dayton também apareça morta. Já o marido, é outro caso.
Durante a carreira fez a sua dose de inimigos. Seria ocasional, caso um desses
inimigos aparecesse e se vingasse. ─ Quanto a isso não há problema.
─ Tem a bênção da Sociedade, senhor Elliott.
─ Obrigado, Diretor.
─ Enquanto este assunto se mantiver no campo do financiamento político,
imagino que se consiga proteger. Vai ser embaraçoso e sujo, é claro. Talvez lhe surja
uma multa pesada, alguma especulação desconfortável por parte dos meios de
comunicação, mas o seu projeto vai sobreviver. Contudo, se o senhor Osbourne
descobrir algo que se aproxime da verdade... Bem, creio que não preciso de
explicar-lhe as consequências.
─ É claro que não, Diretor. E quanto a Ivan Drozdov, o desertor? Representa
algum problema?
─ Não tenho certeza, mas não estou disposto a correr riscos. O assunto
Drozdov está neste momento sendo tratado.
─ Uma jogada sábia.
─ Também achei. Boa tarde, senhor Elliott.
Em Aston Magna, Ivan Drozdov estava sentado à lareira, a ler à luz fraca
que entrava pelas portas de correr, quando ouviu bater. Os corgis saltaram do cesto
e correram até a porta da casa, a ladrar em fúria. Drozdov seguiu-os lentamente, as
pernas rígidas por ter estado sentado. Abriu a porta e viu um jovem de macacão
azul, o rosto como o de um menino do coro.
─ Em que posso ajudá-lo? ─ perguntou Drozdov. O rapaz puxou de uma
arma com silênciador.
─ Faça as pazes com Deus ─ indicou. Drozdov retesou-se.
─ Sou ateu ─ replicou calmamente.
─ É uma pena ─ retorquiu o jovem.
Ergueu a pistola e alvejou Drozdov duas vezes no coração.
AEROPORTO DE HEATHROW, LONDRES
LONDRES
O embaixador permitiu que Michael utilizasse o seu gabinete para telefonar
a Elizabeth, em Washington. Michael ligou para o número privado, mas foi Max, o
secretário, quem atendeu. Mostrou-se aliviado ao ouvir a voz de Michael e depois
explicou que Elizabeth já partira para Nova York e que poderia ser contatada mais
tarde, no apartamento do pai na Quinta Avenida. Michael sentiu uma pontada de
fúria momentânea ─ como podia ela ter saído do gabinete sem esperar para lhe
ouvir a voz? ─ mas depois sentiu-se um tolo. Saíra mais cedo do trabalho pois de
manhã iria extrair e fertilizar os óvulos no Cornell Medical Center, em Nova York.
Durante a confusão do atentado, Michael esquecera-se completamente. E
concordara em encontrar-se com Muhammad Awad no meio do Canal da Mancha,
o que atrasaria a sua chegada a Nova York mais dois dias. Elizabeth ficaria furiosa,
e com toda a razão. Michael disse a Max que lhe telefonaria mais tarde para Nova
York e desligou.
Na verdade, Michael ficou aliviado por não ter falado com Elizabeth. Não
queria ter uma conversa como aquela numa linha monitorizada da embaixada.
Dirigiu-se ao gabinete de Wheaton e encontrou-o sentado à secretária, a apertar
uma bola de tênis, um Dunhill entre os lábios exangues.
─ Perdi a mala em Heathrow ─ explicou Michael. ─ Tenho de fazer umas
compras antes que as lojas fechem.
Por acaso, não pode ir ─ contrapôs Wheaton com desdém. Para começar,
não gostava que Michael estivesse a trabalhar no seu território. O fato de Michael
ser a coqueluche do momento também não ajudava. ─ O Carter quer vê-lo quieto e
seguro. Temos uma casa de segurança perto de Paddington Station. Vai ver que é
muito confortável.
Michael resmungou consigo mesmo. As casas de segurança da Agência
eram o equivalente na espionagem a um hotel barato. Conhecia muito bem o
apartamento de Paddington Station. Utilizara-o ao longo dos anos para esconder
vários agentes de penetração assustados. A última coisa que ele queria era passar lá
a noite como hóspede e não como ama-seca. Michael sabia que não valia a pena
resistir. Ia encontrar-se com Muhammad Awad contra a vontade de Carter e não
queria enfurecê-lo ainda mais, reclamando por ter de passar uma noite na casa de
segurança de Paddington.
Continuo a precisar de roupa ─ insistiu Michael.
─ Faça uma lista e eu mando alguém comprar.
─ Preciso de apanhar ar. Preciso de fazer alguma coisa. Se tiver de passar as
próximas doze horas trancado numa casa de segurança a ver televisão, vou dar em
louco.
Claramente irritado, Wheaton levantou o receptor do telefone interno e
murmurou algumas palavras ininteligíveis para o bocal. Momentos depois
surgiram dois agentes à porta, vestidos com ternos cinza-claro idênticos.
─ Cavalheiros, o senhor Osbourne gostaria de passar a tarde no Harrods.
Garantam que não lhe acontece nada.
─ Porque não envia um par de Marines fardados? ─ queixou-se Michael. ─
E, já agora, a Marks and Spencer serve perfeitamente.
Apanharam um táxi para Oxford Street, um dos agentes sentado ao lado de
Michael no banco, o outro apertado num banco desdobrável. Michael entrou na
Marks & Spencer e comprou dois pares de calças de bombazina, dois pulôveres de
algodão, uma blusa cinzenta de lã, roupa interior e peúgas, e um casaco verde
impermeável. Os vigilantes seguiram-no, enquanto reviravam pilhas de blusas e
fileiras de ternos como um par de comunistas na sua primeira viagem ao Ocidente
capitalista. De seguida entrou numa drogaria e comprou artigos de higiene:
lâminas e creme de barbear, pasta e escova de dentes,
desodorizante. Queria andar, por isso levou as compras ao longo de Oxford
Street, a olhar para as montras como um empresário enfadado a matar tempo,
sempre com o instinto a fazê-lo olhar para trás, em busca de perseguidores. Não
viu ninguém, salvo os homens da Agência, vinte metros mais atrás.
Chuviscava. O lusco-fusco caiu como um véu. Michael abriu caminho por
entre a multidão que entrava e saía da estação de metro de Tottenham Court Road.
Adorava o cheiro do final de tarde de Outono em Londres. Chuva no passeio. Gases
dos escapes. Cerveja e cigarros nos pubs. Lembrava-se de noites como aquela, em
que saía do gabinete com o seu terno azul e o sobretudo creme de um vendedor,
dirigindo-se ao Soho para se encontrar com Sarah no café, ou no bar que ela
frequentava, cercada por bailarinos, por escritores, ou por atores. Michael era um
estranho nesse mundo, um símbolo da convenção e de tudo o que desprezavam,
mas, na presença deles, Sarah apenas tinha olhos para si. Ignorava as regras
românticas do clã. Dava-lhe a mão. Beijava-lhe os lábios. Partilhava intimidades
sussurradas e recusava-se a divulgá-las, quando interrogada.
Ao atravessar Shaftesbury Avenue, Michael interrogou-se quanto disso
seria verdade, e o que não passaria de invenção. Tê-lo-ia amado? Teria representado
desde o início? Porque teria pedido aos russos para desistir? Imaginou Sarah no
apartamento caótico, o corpo a subir ao seu encontro à luz das velas, o cabelo longo
a cair-lhe sobre os seios. Sentiu o aroma do cabelo, do hálito, saboreou o sal na pele
translúcida. O ato de amar fora religioso. Caso fosse mentira, Sarah Randolph era a
melhor agente que alguma vez encontrara. Interrogou-se se ela teria descoberto
algo valioso. Talvez devesse tê-la declarado ao Departamento de Pessoal. Eles
teriam investigado os seus antecedentes, tê-la-iam colocado sob vigilância,
descobririam os encontros que mantinha com o controlador russo, e tudo poderia
ter sido evitado. Pensou no que diria a Elizabeth. Promete que nunca vais mentir-
me, Michael. Podes ocultar-me coisas, mas nunca me mintas. Quem me dera poder
contar-te a verdade, pensou, mas nem eu sei qual é.
Michael sentou-se num banco em Leicester Square e esperou que os
vigilantes se juntassem a ele. Apanharam um táxi até a casa de segurança,
localizada num prédio branco ofensivo, com vista para Paddington Station. O
interior era pior do que o recordado por Michael: mobília reles manchada,
cortinados cheios de pó, copos e pratos de plástico numa cozinha em estado de
sítio. O fedor dos quartos lembrava-lhe a residência universitária em Dartmouth.
Wheaton abastecera o frigorífico com carnes frias e cerveja encomendadas à loja
Sainsbury's. Michael tomou uma ducha e vestiu uma muda da roupa nova. Quando
voltou à sala, os agentes comiam sanduíches e viam futebol inglês numa televisão
de imagem instável. A cena tinha algo que o deprimia. Precisava de telefonar a
Elizabeth, em Nova York, mas sabia que iriam brigar, algo que não queria fazer com
a Agência à escuta.
─ Vou sair ─ anunciou Michael.
─ O Wheaton diz que tem de ficar aqui ─ avisou um dos homens, com a
boca cheia de presunto, queijo cheddar e pão francês.
─ Não quero saber daquilo que o Wheaton diz. Não vou passar a noite aqui
sentado com dois palhaços. ─ Michael fez uma pausa.
─ Muito bem, podemos ir juntos, ou posso livrar-me de vocês em cinco
minutos, e depois explicam ao Wheaton o que se passou.
Seguiram de carro até Belgravia e estacionaram à frente da casa dos
Seymour, em Eaton Place. Os guardas esperaram no seda" da Agência. A rua
brilhava com a chuva e com a luz das fachadas de marfim do terraço georgiano.
Pelas janelas, Michael pôde ver Helen na cozinha, concentrada no desastre
culinário dessa noite, e Graham no andar de cima, na sala, a ler o jornal. Percorreu
os degraus, molhados da chuva, e bateu à vidraça da porta da cozinha. Helen veio
abrir e beijou-lhe a face.
─ Que surpresa maravilhosa ─ exclamou.
─ Importas-te que venha incomodar?
─ É claro que não. Estou a fazer bouillabaisse.
Tens que chegue para mais um? ─ perguntou Michael, com o estômago
instintivamente a dar uma volta.
─ Mas é claro, meu querido ─ ronronou Helen. ─ Vai lá acima beber alguma
coisa com o Graham. Este atentado em Heathrow deixou-o muito perturbado. Ai,
meu Deus, foi uma coisa tão horrível.
─ Eu sei ─ garantiu Michael. ─ Infelizmente, estava lá.
─ Estás a brincar! ─ exclamou Helen. Depois olhou para a expressão de
Michael. ─ O, não estás a brincar, pois não, Michael? Estás com um ar terrível,
coitadinho. A bouillabaisse vai fazer-te sentir melhor.
Quando Michael entrou na sala, Graham ergueu o olhar.
─ Ora vejam só, o herói de Heathrow. ─ Pousou o The Evening Standard,
cuja manchete proclamava TERROR NO TERMINAL QUATRO.
Uma travessa com brie e com patê estava em cima da mesa de centro, ao
lado de uma fatia grossa de pão. Graham já devorara metade. Michael barrou um
pedaço de pão com queijo e olhou desconfiado para o patê.
─ Não te preocupes, meu caro. Comprei-o numa loja de Sloane Square. Ela
tem vindo a ameaçar que vai aprender a fazê-lo em casa. Não tarda muito vai
começar a cozer pão, e nessa altura estou perdido.
Em fundo, Michael podia ouvir as notícias da BBC na aparelhagem alemã
de Graham. Este tinha um ótimo ouvido e poderia ter sido um pianista sinfônico,
caso os serviços secretos não lhe tivessem deitado a mão. O seu talento atrofiara ao
longo dos anos, como acontece com uma segunda língua que não se fala. Utilizava
o Steinway de cauda uma ou duas vezes por semana, enquanto Helen assassinava o
jantar, e escutava outros a tocar música. Michael ouviu uma testemunha a
descrever o viajante de terno azul que matara um terrorista e incapacitara outro.
─ Tenho de telefonar à Elizabeth, e não quero metade da Estação de
Londres a ouvir a conversa. Importas-te que use o teu telefone? Graham apontou
para o telefone em cima da mesa de apoio.
─ Preciso de um pouco mais de privacidade. Ela não vai gostar do que tenho
para lhe dizer.
─ O quarto fica ao fundo do corredor.
Michael sentou-se na beira da cama, pegou no telefone e marcou o número.
Elizabeth atendeu ao primeiro toque, o tom de voz agitado.
Meu Deus, Michael, onde tens estado? Estou preocupadíssima.
Não queria que a conversa começasse dessa forma. O primeiro instinto foi
culpar a Agência, mas Elizabeth há muito que perdera a paciência para desculpas
sobre as exigências únicas do seu trabalho.
─ O Wheaton disse-me que tinha falado com você. Quando pude usar um
telefone, já tinhas partido para Nova York. Além disso, queria um aparelho sem
escutas.
─ Onde estás?
─ com a Helen e o Graham.
Elizabeth passara bastante tempo com os Seymour e gostava bastante do
casal. Dois anos antes, numa altura em que Graham estivera em Washington para
um trabalho de ligação contraterrorista, os quatro tinham passado um fim-de-
semana prolongado na casa de Shelter Island.
─ Porque não estás a caminho de casa? A extração está marcada para as dez
da manhã. Preciso que aqui estejas.
─ Já não há mais voos. Não vou conseguir chegar a tempo.
─ Michael, trabalhas para a Central Intelligence Agency. Eles conseguem
desencantar um avião. Diz-lhes quais são as circunstâncias. De certeza que vão ser
compreensivos.
─ Não é assim tão simples. Além disso, custa dezenas de milhar de dólares.
Não vão fazer isso por mim.
Elizabeth suspirou profundamente. Michael ouviu o isqueiro barato e ela
parou de falar o tempo suficiente para acender outro cigarro Benson & Hedges. ─
Tenho passado o dia a ver a CNN ─ disse, mudando de assunto de repente. ─
Falaram sobre uma testemunha que disse que um passageiro prendeu um dos
terroristas e abateu outro com a arma dele. O homem que descreveram era muito
parecido com você. ─ O que te disse o Wheaton?
─ Ah não, Michael, não vou deixar que vocês acertem as agulhas com a
história que andam a contar. O que aconteceu? Quero a verdade.
Michael contou-lhe.
Meu Deus do céu! Não podias ficar escondido e esperar que resolvessem as
coisas? Tinhas de te aventurar? De te armar em herói e arriscar a vida?
─ Não me estive a armar em herói, Elizabeth. Reagi a uma situação. Fiz
aquilo para que me treinaram e devo ter conseguido salvar algumas vidas. ─ Então
parabéns. O que queres que eu faça? ─ A voz tremia com a emoção. ─ Que me
levante e seja a primeira a aplaudir por quase ter feito de mim uma viúva?
─ Eu não fiz quase de ti uma viúva.
─ Michael, eu ouvi um estranho na televisão dizendo que um terrorista te
apontou uma arma e que você conseguiu matá-lo antes que ele te matasse. Não me
minta.
─ Não foi assim tão dramático.
─ Então por que o matou?
─ Porque não tinha alternativa. ─ Michael hesitou. ─ E porque merecia
morrer. Há vinte anos que persigo pessoas como estas, mas nunca as tinha visto em
ação. Hoje tive essa oportunidade. Foi pior do que imaginei.
Michael não estava em busca de compreensão, mas as suas palavras
atenuaram a ira da esposa.
─ Oh, sinto tanto. Mas como está você, afinal de contas? ─ perguntou
Elizabeth.
─ Estou bem. Quase quebrei a mão esmurrando o cara, e devo ter batido
como o joelho em algum lugar, porque dói como o diabo. Mas de resto estou bem.
─ É bem feito ─ replicou, ao que acrescentou rapidamente ─, mas vou dar
beijinhos em todo lugar, quando chegar em casa, amanhã.
Michael hesitou. Elizabeth tinha o radar em potência máxima.
─ Você volta amanhã, não volta?
─ Surgiu um imprevisto. Tenho de passar aqui mais um dia.
─ "Surgiu um imprevisto." Então, Michael, consegue fazer melhor do que
isso.
─ É verdade. Quem me dera poder dizer do que se trata, mas não posso.
─ Seja o que for, por que não pode ser outra pessoa a tratar do assunto?
─ Porque só eu é que posso. ─ Michael fez uma pausa. ─ Mas há uma coisa
que posso dizer: foi o Presidente em pessoa que me deu as ordens.
─ Não me interessa quem te deu as ordens! ─ retorquiu Elizabeth. ─
Prometeu que voltaria a tempo. Agora quebra essa promessa.
─ Elizabeth, o caso não está nas minhas mãos.
─ Uma porra! Está tudo nas suas mãos. Você faz exatamente o que quer.
Sempre fez.
─ É só mais um dia e depois regresso. Vou direto a Nova York. Chego a
tempo da implantação.
─ Michael, não quero que se incomode. Por que não fica em Londres mais
um dia ou dois? Vai ao teatro, ou algo assim.
─ Isso não é justo, Elizabeth, e não está ajudando.
─ Pode crer que não é justo.
─ Não posso fazer nada.
─ Faça o que fizer, Michael, não precisa voltar às pressas por minha causa,
pois não sei se quero te ver.
─ O que está a dizendo?
─ Não sei o que estou dizendo. Estou zangada, magoada e desapontada
com você. E estou com medo, e nem acredito que você vai me obrigar a passar por
isso sozinha.
─ Não tenho escolha, Elizabeth. É o meu trabalho. Não tenho escolha.
─ Tem sim, Michael. Tem escolha. E isso é o que mais me assusta.
Ficou em silêncio por um instante, o zumbido da ligação por satélite era o
único som em linha. Michael esgotara o que dizer. Queria dizer que a amava, o
quanto lamentava, mas isso parecia tolo.
─ Quando estávamos ao telefone, em Heathrow, antes do ataque ─ disse
Elizabeth, por fim ─, disse que queria contar uma coisa.
Michael filtrou a confusão e a violência do atentado em Heathrow e
percebeu que estivera prestes a contar o que descobrira sobre Sarah. Não queria
piorar a situação dizendo a Elizabeth que investigara a morte da antiga amante.
─ Não me lembro do que estávamos falando ─ disse.
Elizabeth suspirou.
─ Meu Deus, que péssimo mentiroso. Sempre pensei que os espiões fossem
bons em enganar as pessoas. ─ Fez uma pausa, à espera que o marido dissesse
alguma coisa, mas ele não tinha mais nada a dizer. ─ Boa sorte amanhã, para aquilo
que vai fazer. Eu te amo.
A ligação caiu. Michael voltou a ligar rapidamente mas, quando o telefone
começou a chamar, apenas ouviu o ruído irritante do sinal de ocupado. Voltou a
tentar mas nada conseguiu, por isso desligou o telefone e desceu para enfrentar o
jantar de Helen.
─ Talvez fosse melhor pedir a Carter para enviar outra pessoa ─ sugeriu
Graham.
Estavam sentados lá fora, no jardim, em volta de uma mesa de ferro
forjado, fumando os cigarros de Graham. A chuva parara e a Lua ia brilhando
através dos farrapos de nuvens.
─ Não podemos enviar mais ninguém. Eles pediram que fosse eu.
Conhecem o meu rosto. Se tentarmos enviar outra pessoa, vai tudo por água
abaixo.
─ Já pensou que pode cair direitinho numa armadilha? Vivemos tempos
perigosos. A Espada de Gaza pode querer abater um homem dos serviços,
sobretudo depois do que fez hoje em Heathrow.
─ Não ganham nada em me matar. Sabe tão bem quanto eu que eles não
matam indiscriminadamente. Fazem por uma razão e só quando acreditam que
isso poderá promover sua causa.
─ Imagino que Elizabeth não esteja nada satisfeita com a situação.
─ Você pode imaginar. Ela não sabe o que vou fazer amanhã, mas não anda
contente. ─ Michael contou tudo. Mesmo que a natureza do seu trabalho por vezes
exigisse discrição profissional, havia muito poucos segredos pessoais entre eles.
─ Espero que saiba o que está fazendo, companheiro. Parece bem grave.
─ Neste momento não preciso de um conselheiro matrimonial. Sei que
estou me arriscando, mas quero ouvir o que o Awad tem a dizer.
─ Minha experiência com esses sacanas sugere que não vai dizer nada de
útil.
─ Não me arriscaria se não tivesse alguma coisa para nos dizer.
─ Por que não apanhas o filho da mãe e o mete na prisão? Ou melhor ainda,
trata do seu desaparecimento conveniente.
─ É tentador, mas nós não funcionamos assim. Além disso, o único
resultado seria uma resposta com mais violência.
─ Não podem fazer nada mais violento do que o atentado de hoje, meu
caro.
Uma sirene uivou na direção de Sloane Square. Sem querer, Michael pensou
em Sarah.
─ Chegou a encontrar o nosso amigo Drozdov? ─ perguntou Graham.
Michael anuiu.
─ Disse alguma coisa de útil?
─ Na verdade, foi bem útil. Sabia quem eu era. Disse por que Sarah foi
morta.
Michael contou-lhe a história.
─ Valha-me Deus, lamento, Michael. Sei o quanto ela significava para você ─
garantiu Graham.
Michael acendeu outro cigarro.
─ Não disse a ninguém de sua equipe que eu estava pensndo em fazer uma
visita a Drozdov, não?
─ Está brincando? Os manda-chuvas me esfolariam vivo se descobrissem.
Por que pergunta?
─ Porque dois brucutus num Ford branco me seguiram até Heathrow.
─ Não eram nossos. Talvez Wheaton tenha posto você sob vigilância.
─ Já pensei nessa possibilidade.
─ É um filho da mãe, esse seu Wheaton. Os cavalheiros na suíte executiva
de Vauxhall Cross mal podem esperar pelo regresso dele a Langley para a dança da
vitória em volta da sede.
─ Ele contou ao SIS sobre o encontro de amanhã com Awad?
─ Que eu saiba não, e eu faria parte da lista de aviso, se uma coisa dessas
acontecesse.
─ E não vai contar nada a sua equipe, certo, Graham?
─ Claro que não. As regras habituais se aplicam, meu caro.
Graham jogou o cigarro num canteiro agora seco. ─ Não quer alugar um
copiloto experiente?
─ Quando foi a última vez que fez trabalho de campo?
─ Já faz algum tempo. E você também. Mas há coisas que não se esquecem.
Se fosse você, neste momento desejaria ter alguém me protegendo.
WASHINGTON, D. C.
LONDRES
Na manhã seguinte, Michael levantou-se antes de amanhecer e vestiu-se
sem fazer barulho no quarto horrível da casa de segurança. Estava tudo silencioso
exceto pelo ronco do trânsito matutino perto de Paddington Station e pela
tagarelice dos guarda-costas de Wheaton no quarto ao lado. Bebeu um café
instantâneo abjeto por uma caneca lascada, mas ignorou um prato de croissants
duros. Regra geral, Michael estava calmo antes de um encontro, mas agora sentia-
se nervoso e irritadiço, tal como se sentira quando era um recruta calouro, enviado
para o campo pela primeira vez, depois do curso de treino na Quinta. Era raro
fumar antes do meio-dia, mas já ia no segundo cigarro. Dormira pouco, agitado na
cama de solteiro encovada, perturbado pela zanga com Elizabeth. Em grande parte,
o seu casamento sempre fora calmo, livre das discussões e tensão constantes que
afligiam tantos casamentos da Agência. Pequenas altercações abalavam-nos
profundamente. Uma batalha como a da véspera, com ameaças de vingança, era-
lhes estranha.
Vestiu um colete à prova de bala por cima da blusa de gola alta fina e enfiou
uma blusa de lã cinzenta. Pegou no telefone e marcou uma última vez o número do
apartamento na Quinta Avenida. Continuava ocupado. Pousou o receptor no
descanso e saiu. Wheaton estava à espera lá em baixo, na beira, no banco traseiro
de um sedan anônimo da Agência. Foram até Charing Cross, Wheaton discursando
monotonamente sobre as regras para o encontro com a intensidade de alguém que
passara uma carreira em segurança, preso a uma secretária.
─ Se não for o Awad, em nenhuma circunstância deve prosseguir com o
encontro ─ avisou Wheaton. ─ Espere que o barco chegue a Calais e nós tiramo-lo
de lá. ─ Não estou a entrar em território inimigo ─ disse Michael. Se o Awad não
aparecer, apanho o próximo ferry para a Grã-Bretanha.
─ Permaneça alerta ─ continuou Wheaton, ignorando o comentário de
Michael. ─ A última coisa de que precisamos é que vá de encontro a um verdadeiro
crente da Espada de Gaza com uma chave de madeira em volta do pescoço. Regra
geral, os membros da espada de Gaza., e muitos outros terroristas islâmicos,
usavam uma chave de madeira por baixo da roupa durante missões suicidas, pois
acreditavam que os seus atos seriam recompensados com o martírio e um lugar no
céu.
─ Carter não quer que vá desprotegido ─ indicou Wheaton. Abriu uma
pequena mala e retirou de lá de dentro uma potente
pistola automática Browning com um carregador de quinze balas, a arma
regulamentar da Agência.
─ O que devo fazer com isto? ─ perguntou Michael. Como muitos agentes
de casos, podia contar pelos dedos de uma mão as vezes que levara uma arma no
cumprimento do dever. Raramente um agente de casos disparava para resolver um
problema. Sacar de uma arma em legítima defesa era o derradeiro sinal de
fracasso. Significava que o agente fora traído por um dos seus, ou que fora
completamente descuidado.
─ Não vamos mandá-lo para aquele ferry para que seja assassinado ou feito
refém ─ insistiu Wheaton. ─ Caso se aperceba de que está a cair numa armadilha,
riposte. Vai lá estar sozinho.
Michael colocou o carregador na coronha e puxou a culatra, introduzindo a
primeira bala. Accionou a trava de segurança e enfiou a arma no cós das calças, por
baixo da blusa.
Wheaton deixou Michael na estação. Michael comprou um bilhete de
primeira classe para Dover e um molho de jornais matutinos, e depois foi à procura
da plataforma. Entrou no comboio com cinco minutos de antecedência e avançou
pelo corredor apinhado. Encontrou um lugar num compartimento com dois
homens de negócios que já estavam a martelar nos computadores portáteis. No
momento em que o comboio saía da estação, uma mulher entrou no
compartimento. Tinha cabelo comprido e escuro, olhos escuros e pele pálida.
Michael pensou que se parecia vagamente com Sarah.
Durante quase uma hora, o comboio avançou ruidosamente pelos
subúrbios do Sudeste de Londres e depois entrou na terra de cultivo ondeada de
Kent. No bar, Michael comprou café e umo sanduíche de presunto e queijo.
Regressou ao compartimento e sentou-se. Os homens de negócios estavam em
mangas de camisa e suspensórios, olhando para um relatório de lucros como se
fosse um texto sagrado. A mulher não abriu a boca durante toda a viagem. Fumava
um cigarro atrás do outro, até que o compartimento ficou a parecer uma câmara de
gás. Os atraentes olhos castanhos acompanhavam o campo verde-acinzentado de
Kent. A mão comprida encontrava-se sugestivamente pousada sobre uma coxa
escondida por umas meias austeras.
O comboio chegou a Dover e Michael saiu do compartimento. A moça
colocou um saco de pele ao ombro e seguiu-o. Era alta, tão alta como Sarah, mas
não possuía a sua graciosidade, nem a agilidade física felina. Trazia vestido um
casaco de pele preto, que lhe dava pelas coxas, e botas da tropa pretas que
ressoavam quando andava.
Michael apressou-se a sair da estação e a dirigir-se ao terminal dos ferrys.
Comprou um bilhete e entrou para o barco, um ferry multiuso com centro e trinta
metros, capaz de transportar 1300 passageiros e 280 carros. Entrou para a área dos
bancos dos passageiros no convés principal e sentou-se junto a uma janela, a
bombordo. Olhou em frente e viu Graham Seymour sentado no centro do convés,
vestido com calças de ganga e uma blusa cinzenta Venice Beach, e um estojo de
guitarra nas mãos. Michael desviou rapidamente o olhar. A moça do comboio
entrou, sentou-se diretamente atrás de Michael e começou de imediato a fumar.
Enquanto o ferry sulcava as águas, Michael lia os jornais. Dover
desapareceu por trás de uma cortina de chuva. De minutos a minutos, Michael
olhava para o parapeito a bombordo, pois era aí, a meio do navio, que Awad iria
aparecer. Foi uma vez até o bar, o que lhe permitiu perscrutar o rosto de todos os
que se encontravam sentados na área de passageiros. Comprou chá escuro servido
num copo de papel muito fino e levou-o para o seu lugar. Não reconheceu
ninguém, a não ser Graham e a moça do comboio, que estava absorta numa revista
de moda de Paris.
Passou meia hora. A chuva parou, mas agora, bem no meio do Canal, o
vento aumentava de intensidade e as ondas encrespadas lançavam-se em direção à
ampla proa do ferry. A moça levantou-se, comprou café no bar e depois sentou-se
ao lado de Michael. Acendeu outro cigarro e, por instantes, beberricou o café em
silêncio.
─ Ali está ele, junto ao parapeito, de gabardina cinzenta ─ indiciou, um
vestígio de Beirute no seu inglês. ─ Aproxime-se dele devagar. Por favor, refira-se a
ele apenas como Ibrahim. E não tente armar-se em herói outra vez, senhor
Osbourne. Estou bem armada e Ibrahim tem cinco quilos de Semtex atados ao
corpo.
Michael achou que o rosto lhe era vagamente familiar, como um amigo de
adolescência que se materializa na meia-idade, gordo e a ficar calvo. Vira aquele
rosto muitas vezes, mas nunca de perto e, decerto, nunca pessoalmente. Vira o
perfil do lado direito, indistinto, num instantâneo tirado pelos fotógrafos do MI5
durante uma das visitas de Awad a Londres. O rosto desfocado capturado pelos
serviços franceses durante uma escala em Marselha. A velha fotografia israelense
do jovem Awad: atirador de pedras, perito no fabrico de cocktails Molotov, criança
guerreira da Intifada que quase espancou até a morte um colono de Brooklyn com
um pedaço do seu adorado Hebron. A foto israelense era de valor limitado, pois a
Shin Bet apanhara-o primeiro e deixara-o quase irreconhecível com equimoses e
inchaços.
Michael e a sua presa ficaram lado a lado no parapeito durante um longo
momento, cada um com o olhar fito no seu ponto privado das águas em turbilhão
do Canal, como amantes zangados sem nada mais a dizer. Michael virou-se e olhou
mais uma vez para Awad. Por favor, refira-se a ele apenas como Ibrahim. Por um
instante, interrogou-se se o homem seria mesmo Muhammad Awad. As
entediantes advertências de Wheaton ecoavam na mente de Michael como
anúncios de embarque num aeroporto.
A Michael, o homem a seu lado parecia o irmão mais velho e mais próspero
de Awad. Estava vestido para fazer negócios, com um dispendioso sobretudo
cinzento e um terno de bom gosto, com duas fileiras de botões, visível por baixo.
As feições tinham sido alteradas por cirurgia plástica. Como resultado, a aparência
árabe fora apagada e tinha sido criado algo de origem nacional incerta: um
espanhol, um francês ou talvez um grego. O nariz palestino proeminente
desaparecera, tendo sido substituído pelo nariz estreito e aquilino de um
aristocrata do norte de Itália. As maçãs do rosto tinham sido realçadas, a testa
suavizada, o queixo tornado quadrado e os olhos castanhos eram agora de um
verde-claro, graças a lentes de contato. Tinham-lhe sido arrancados os dentes
molares, a fim de lhe dar as faces felinas de um supermodelo.
A vida de Muhammad Awad assemelhava-se a um panfleto da literatura
revolucionária palestina radical. Michael conhecia-a bem, pois compilara a
biografia e o currículo de Awad para o Centro, com a ajuda da Mossad, do Shin Bet,
do MI6 e de metade dos serviços de segurança da Europa. O avô fora arrancado aos
seus olivais e laranjais nos arredores de Jerusalém em 1948 e enviado para o exílio
na Jordânia. Segundo a lenda de Awad, no ano seguinte morreu de desgosto,
conservando ainda o neto as chaves da sua casa em Israel no bolso. Outro ramo do
clã Awad foi massacrado em Deir Yassin. Em 1967, a família foi expulsa novamente,
desta vez para campos de refugiados no Líbano. O pai de Awad nunca trabalhou,
limitava-se a ficar sentado nos campos, a contar histórias sobre como tinha sido a
sua vida em pequeno, cuidando das azeitonas e das laranjas com o pai. O paraíso
perdido. Nos anos 80, o jovem Muhammad Awad foi doutrinado no Islão radical do
sul do Líbano e em Beirute. Juntou-se ao Hezbollah. Juntou-se ao Hamas. Recebeu
treino no Irã e na Síria: armas leves, tácticas de infiltração, contra-espionagem,
fabrico de bombas. Quando Arafat apertou a mão de Rabin na Casa Branca, Awad
sentiu-se ultrajado. Quando as forças de segurança de Arafat começaram a
perseguir o Hamas, a mando de Israel, Awad jurou vingança. Juntamente com
cinquenta dos melhores guerrilheiros do Hamas, formou a Espada de Gaza, o
grupo terrorista palestino mais mortífero desde o Setembro Negro.
Rajadas de vento assolavam o convés. Awad levou a mão ao interior do
casaco. Michael hesitou, mas resistiu à tentação de pegar na Browning.
─ Calma, senhor Browning ─ disse Awad. ─ Só me apeteceu fumar. Além
disso, se quisesse matá-lo, o senhor já estaria morto.
O inglês era perfeito, com um leve sotaque irreconhecível por um ouvido
destreinado. Os cigarros que foi buscar ao bolso do peito eram Dunhill sem filtro.
─ Sei que fuma Marlboro Lights, mas talvez estes sirvam, sim? A sua esposa
fuma Benson and Hedges, não é? Chama-se Elizabeth Cannon-Osbourne e exerce
advocacia numa daquelas firmas importantes de Washington. O senhor vive na N
Street, em Georgetown. Está a ver, senhor Osbourne, temos os nossos próprios
serviços secretos e de segurança. E recebemos muitas ajudas dos nossos amigos em
Damasco e em Teerã, claro está.
Michael aceitou o Dunhill e virou-se a favor do vento para o acender.
Quando Awad levantou a mão para acender o seu próprio cigarro, Michael viu o
detonador na palma da mão direita.
─ Já percebi, Ibrahim ─ disse Michael.
─ Sei que foi uma demonstração entediante, mas só a fiz para enfatizar que
não desejo qualquer mal nem a si, nem à sua família. O senhor não é meu inimigo
e não tenho tempo nem recursos para lutar contra si. ─ Então para que os
explosivos presos à cintura?
─ Num negócio como este, é preciso tomar precauções.
─ Nunca me pareceu do tipo suicida.
Awad sorriu e soprou o fumo pelas narinas esculpidas.
─ Sempre acreditei que era mais útil a Alá vivo do que morto. Além disso,
não temos falta de voluntários para missões de martírio. Creio que passou algum
tempo no Líbano quando era criança. Sabe as condições em que vive o nosso povo.
A opressão pode gerar loucura, senhor Osbourne. Há miúdos que preferem morrer
a passar uma vida inteira acorrentados.
Michael olhou para o lado esquerdo e viu a mulher do comboio encostada
ao parapeito, a seis metros de distância, a fumar, os olhos vagueando pelo ferry.
─ Pensei que acreditassem que o lugar de uma mulher era em casa, oculta
por um chador ─ comentou Michael, olhando para a moça.
─ É uma pena, mas por vezes este negócio exige os serviços de uma mulher
talentosa. Para os objetivos desta conversa, ela chama-se Odette. É palestina e
muito boa a manejar a arma. Os velhos serviços de segurança da Alemanha
Ocidental davam ordens para abater primeiro as mulheres. No caso de Odette, esse
seria, de fato, um excelente conselho.
─ Agora já nos apresentamos todos ─ disse Michael ─, que tal irmos diretos
ao assunto? Porque quis conversar?
─ O ataque de ontem em Heathrow foi obra da Espada de Gaza.
Organizamos o ataque para vingar os vossos ataques aéreos ridículos contra os
nossos amigos na Líbia, na Síria e no Irã. Ontem o senhor foi o herói, senhor
Osbourne. A sua presença foi coincidência, garanto-lhe. Sinceramente, quem me
dera que os tivesse morto aos dois. Os homens detidos deixam-me sempre um
pouco nervoso. ─ Na verdade, o interrogatório está a correr muito bem ─ afiançou
Michael, incapaz de resistir à oportunidade de brincar com Awad.
─ Ouvi dizer que estava a fornecer uma tremenda quantidade de
informação sobre a vossa estrutura organizacional e tácticas.
─ Boa tentativa ─ afirmou Awad. ─ A nossa organização é altamente
compartimentada, por isso os estragos que ele pode fazer são mínimos.
─ Continue a acreditar nisso, Ibrahim. Vai ajudá-lo a dormir à noite. Quer
dizer que pediu para falar comigo para reivindicar a responsabilidade pelo ataque
terrorista em Heathrow?
─ Preferimos utilizar o termo ação militar.
─ Não há nada de militar em matar civis desarmados. Isso é terrorismo,
puro e simples.
─ O terrorista de um homem é um lutador pela liberdade de outro, mas não
vamos entrar agora nessa discussão tola. Não há tempo. Os vossos ataques aéreos
às nossas bases foram ridículos, pois não existia qualquer justificação para eles. A
Espada de Gaza não disparou o míssil que fez cair o Voo Zero-Zero-Dois. Michael
desconfiava que assim fosse, mas não ia demonstrá-lo em frente de Muhammad
Awad.
O corpo de Hassan Mahmoud, um dos seus melhores agentes operacionais,
foi encontrado no barco do qual o míssil foi disparado ─ declarou Michael, a voz
baixa mas trêmula de emoção. O tubo de lançamento estava ao lado do corpo. Foi
recebida em Bruxelas uma reivindicação válida.
O rosto de Awad contraiu-se. Deu uma longa baforada no Dunhill e jogou a
guimba na água. Michael desviou o olhar de Awad e viu um iate a motor seguindo
o ferry, atrás de um véu de névoa.
─ Hassan Mahmoud deixou de ser membro da Espada de Gaza há quase
um ano. Era um maldito de um psicopata que não aceitava a disciplina de uma
organização como a nossa. Descobrimos que conspirava em segredo para
assassinar Arafat, por isso o expulsamos. Teve sorte em não ter sido morto.
Pensando em retrospectiva, devíamos tê-lo feito.
Awad acendeu outro cigarro.
─ Mahmoud mudou-se para o Cairo e juntou-se aos fundamentalistas
egípcios, al-Gama'at Ismalyya. ─ Awad levou novamente a mão ao bolso e, desta
vez, fez aparecer um envelope. Abriu-o, retirou do seu interior três fotografias e
entregou-as a Michael. ─ Foram-me dadas por um amigo dentro dos serviços de
segurança egípcios. Esse homem é Hassam Mahmoud. Se pesquisar esta fotografia
nos seus arquivos, descobrirá que este homem é Eric Stoltenberg. Creio que
reconhece o nome.
Michael reconhecia-o, de fato. Eric Stoltenberg trabalhara para o Ministério
da Segurança Interna da Alemanha de Leste, melhor conhecido como o Stasi.
Trabalhava para o Departamento XXII, que conduzia operações de apoio levadas a
cabo pelo Stasi a movimentos de libertação nacional por todo o mundo. O seu
portfólio incluía terroristas conhecidos, como Abu Nidal, Carlos, o Chacal, e
grupos como o IRA e a ETA espanhola. Michael examinou as fotografias: dois
homens sentados a uma mesa de tampo cromado, no Groppi's Café, um de cabelo e
pele escuros, o outro louro e de pele clara, ambos com óculos-de-sol.
Michael estendeu as fotografias a Awad.
─ Fique com elas ─ disse Awad. ─ São uma oferta minha.
─ Elas não provam nada.
─ Como provavelmente será do seu conhecimento, Eric Stoltenberg teve de
arranjar trabalho noutro lado ─ continuou Awad, ignorando o comentário de
Michael. ─ Depois da queda do Muro, os alemães queriam a sua cabeça porque ele
ajudou os líbios a bombardear o clube noturno LaBelle, em Berlim Ocidental, em
1986. Desde aí que Stoltenberg tem vivido no estrangeiro, utilizando os antigos
contatos da Stasi para fazer dinheiro seja de que maneira for: segurança,
contrabando, esse tipo de coisas. Há pouco tempo, ganhou uma bela quantia e não
escondeu isso lá muito bem.
O iate aproximara-se mais do ferry. Michael olhou para Awad.
─ Mahmoud realizou o ataque e Stoltenberg deu uma ajuda com a logística:
o Stinger, os barcos, a rota de fuga. ─ Michael brandiu as fotografias. ─ Isto é tudo
mentira, pois tem medo que voltemos a atacar.
Awad sorriu com um charme considerável.
─ Boa tentativa, senhor Osbourne, mas o senhor conhece a Espada de Gaza
melhor do que isso. Sabe que não tínhamos qualquer motivo para fazer explodir
um avião americano e sabe que outra pessoa o fez. No entanto, não tem provas. Se
eu estivesse no seu lugar, procuraria mais perto de casa.
─ Está a dizer que sabe quem é o culpado?
─ Não, estou apenas a dizer que deve fazer a si mesmo algumas perguntas
simples. Quem ganharia mais com isso? Quem teria motivos para fazer uma coisa
daquelas e manter a sua identidade secreta? Os homens que o fizeram têm muito
dinheiro, e recursos enormes ao seu dispor. Juro-lhe que não fomos nós. Se os
Estados Unidos não retaliarem por causa de Heathrow, isto acaba aqui. Mas se
voltarem a atingir-nos, não teremos outra alternativa a não ser ripostar. É essa a
natureza do jogo.
O iate encontrava-se agora a cinquenta metros a bombordo do ferry.
Michael viu dois homens no alto da ponte volante e um terceiro perto da proa.
Olhou para a esquerda, na direção da mulher, e viu-a de olhos muito abertos,
retirando uma pequena arma automática da mala. Deu meia volta e olhou para lá
de Awad, para o parapeito a bombordo, e viu um homem muito bem constituído de
cócoras, de arma em punho, a cabeça coberta por uma balaclava.
Michael agarrou Awad pelos ombros e gritou: ─ Abaixe-se!
Duas balas atravessaram o peito de Awad e cravaram-se no colete à prova
de balas de Michael. Awad caiu sobre o convés. Michael meteu a mão no casaco
para pegar a Browning, mas a moça palestina adiantou-se, arma apontada nos
braços estendidos, as pernas afastadas. Disparou duas vezes com rapidez,
derrubando o atirador encapuzado.
Awad jazia no convés e lançou um olhar irado a Michael, a boca cheia de
sangue. Ergueu a mão direita, mostrando a Michael o detonador. Michael lançou-se
pela porta para o interior da área de passageiros. Graham Seymour estava lá, de
arma na mão. Michael agarrou-o pela camisa e puxou-o para o chão no momento
em que a bomba explodia e estilhaços de vidro voaram por cima das suas cabeças.
Durante alguns segundos, reinou um silêncio quase absoluto. Depois os feridos
começaram a gemer e a gritar.
Michael levantou-se com dificuldade, os sapatos a escorregar sobre os
estilhaços de vidro, e correu para o convés. A força da explosão desfizera Awad.
Odette, a mulher palestina, jazia no convés, sangue a escorrer de uma ferida na
cabeça. O atirador encapuzado devia estar a usar um colete à prova de bala, pois
conseguiu saltar por cima do parapeito e o iate avançava na sua direção.
Encontrava-se um homem na ponte volante e dois no convés, à popa. Michael
ergueu a Browning e abriu fogo sobre a embarcação. Os dois homens na popa
pegaram em armas automáticas e responderam ao fogo. Michael lançou-se para o
chão, em busca de abrigo.
Odette levantara-se e estava sentada, com as costas apoiadas no parapeito.
Empunhava uma arma na mão esticada, apontada a Michael, o rosto muito calmo.
Michael rolou sobre o corpo quando ela disparou o primeiro tiro. A bala
atingiu o convés, falhando-o. Ela disparou mais duas vezes enquanto Michael
rastejava desesperadamente em busca de proteção. De repente, o corpo dela
tremeu com violência e caiu para a frente. Graham Seymour saiu para o convés, de
arma na mão, e ajoelhou-se ao lado dela. Olhou para Michael e abanou a cabeça.
Michael levantou-se e correu para o parapeito. O iate baloiçava nas águas
agitadas. Os dois homens à popa estavam a retirar o atirador do mar. Michael
ergueu a arma, mas era um tiro impossível. O avanço do ferry fazia com que
estivesse já a cerca de cem metros do iate. Depois de o atirador estar a bordo, em
segurança, o iate deu meia volta e desapareceu por detrás de uma cortina de
nevoeiro.
NOVA YORK
CALAIS, FRANÇA
O porto fervilhava de luzes de emergência azuis e vermelhas à medida que
o ferry se aproximava da costa francesa. Michael estava de pé na ponte, rodeado
pelo capitão e pelos oficiais, a fumar um cigarro atrás do outro, enquanto via a
linha da costa avizinhar-se. Ora sentia um frio de morrer, ora um calor de abrasar.
O peito doía-lhe muito, como se alguém muito forte lhe tivesse dado um par de
murros. Graham Seymour estava do outro lado da ponte, rodeado pelo seu próprio
grupo de elementos da tripulação. Estavam mais ou menos detidos. Michael
dissera ao capitão que ele e Graham eram agentes dos Estados Unidos e da
Inglaterra e que alguém de Londres estaria à espera do ferry em Calais, onde tudo
lhes seria explicado. O capitão ficou desconfiado, tal como Michael ficaria no seu
lugar.
Michael fechou os olhos e o filme desenrolou-se mais uma vez. Assistiu a
tudo como se fossem imagens de um noticiário, ele próprio como um ator em
palco. Viu o atirador aproximar-se e Odette à procura da arma, os olhos alucinados.
O homem de balaclava com a arma não pertencia à Espada de Gaza e
Muhammad Awad não era o alvo. O alvo era Michael. Awad limitara-se a estar no
caminho. Voltou a fechar os olhos e pensou nos dois homens dentro do iate.
Lentamente, os rostos foram-se tornando mais nítidos, como se estivesse a focá-los
com a lente de longo alcance de uma câmara de vigilância. Viu os homens
dispararem contra si a partir do convés de ré. Tinha a sensação incômoda de já os
ter visto de relance noutro lado qualquer: num restaurante, numa festa ou na
farmácia em
Oxford Street. Ou teria sido numa estação de gasolina na M40 em
Oxfordshire, a fingir estar a encher o pneu traseiro de um monovolume Ford
branco? O ferry atracou em Calais. Michael e Seymour foram guiados para longe
das equipes de televisão e dos jornalistas aos gritos até um gabinete no interior do
terminal. Wheaton e uma dúzia de oficiais diplomáticos e da Agência aguardavam-
nos. Tinham vindo de Londres de helicóptero, cortesia da Marinha Real.
─ Quem é este? ─ perguntou Wheaton, olhando para Graham, que se
esquecera do estojo da guitarra mas assemelhava-se, ainda assim, a um estudante
maduro, com as suas calças de ganga e a blusa Venice Beach.
Seymour sorriu e estendeu a mão.
─ Graham Seymour, SIS.
─ Graham quem, o quê? ─ perguntou Wheaton, incrédulo.
─ Ouviu-o bem ─ confirmou Michael. ─ É um amigo meu. Por coincidência,
encontrava-se a bordo do ferry.
─ Mentiras!
─ Bem, valeu a pena tentar, Michael ─ disse Graham.
─ Comece a falar, vamos!
─ Vá bardamerda ─ exclamou Michael, despindo a blusa e revelando duas
balas cravadas no colete. ─ Porque não voltamos para Londres e fazemos lá o
relatório?
─ sugeriu, já mais calmo.
─ Porque os franceses querem falar com você primeiro.
─ Oh, meu Deus ─ suspirou Graham. ─ Eu não posso falar com os malditos
dos franciús.
─ Bem, uma vez que acaba de chegar à jurisdição deles, creio que vai ter de
o fazer.
─ O que é que lhes vamos dizer? ─ perguntou Michael.
─ A verdade ─ respondeu Wheaton. ─ E rezar para que tenham o bom
senso de ficarem de bico calado.
Em Nova York, Elizabeth estava deitada, a dormir na sala de recobro,
quando o celular tocou suavemente. Uma enfermeira deu um passo em frente e
estava prestes a desligá-lo quando Elizabeth acordou e disse:
─ Não, espere. .-} Colocou o celular de encontro ao ouvido, de olhos
fechados, e atendeu.
─ Estou?
─ Elizabeth ─ disse a voz. ─ É a Elizabeth Osbourne? ─ Sim ─ crocitou" ela,
a voz rouca devido à anestesia.
─ Daqui fala Adrian Carter. ─ Adrian, onde é que ele está?
─ Ele está bem.'Está a regressar a Londres neste momento.
─ A regressar a Londres? Onde é que esteve?
Na linha fez-se silêncio. Elizabeth estava agora completamente desperta. ─
Raios partam, Adrian ─ exclamou ─, ele estava naquele ferry? Carter hesitou e
depois respondeu.
─ Sim, Elizabeth. Ele estava numa missão e alguma coisa correu mal.
Ficaremos a saber mais pormenores quando ele chegar à embaixada de Londres. ─
Está ferido?
Ele está ótimo.
─ Graças a Deus.
─ Telefono-te quando souber mais.
Ao anoitecer, o helicóptero pousou num heliporto da Thameside em West
Londres. Dois carros da embaixada aguardavam-nos. Wheaton e Michael entraram
no primeiro, os autômatos de Wheaton seguiram no segundo. Viraram para
Vauxhall Bridge e passaram pelo feio edifício moderno que funcionava como sede
do MI6. Lá se foi a toca disfarçada de George Smiley em Cambridge Circus, pensou
Michael. Agora, a sede dos Serviços chegara mesmo a aparecer num filme do James
Bond.
Daqui a alguns minutos, o seu amigo Graham Seymour vai ter uma
recepção agreste naquele edifício ─ informou Wheaton. ─ Falei com o Diretor-
Geral de Calais. Nem é preciso dizer que ele não ficou satisfeito. Também me deu
uma notícia que terá de esperar até estarmos atrás de portas fechadas. Michael
ignorou o comentário. Wheaton parecia sempre retirar demasiado prazer da
infelicidade profissional dos colegas. Subira através do direktorado soviético,
quando o pai de Michael era um alto comando em Langley, e trabalhara em
Istambul e Roma. A sua tarefa era recrutar oficiais do KGB e diplomatas soviéticos,
mas revelou-se de tal forma incapaz que depressa recebeu uma série de relatórios
sobre a sua inaptidão deplorável, um deles redigido pelo pai de Michael. Wheaton
foi transferido para a sede, onde prosperou na atmosfera falsa e oligárquica de
Langley. Michael sabia que Wheaton lhe guardava rancor por causa do pai, ainda
que o péssimo relatório de aptidão provavelmente lhe tivesse acabado por salvar a
carreira. Chegaram a Grosvenor Square. Wheaton e Michael entraram na
embaixada lado a lado, com os homens de Wheaton no seu encalço. Michael tinha a
estranha sensação de estar preso. Wheaton dirigiu-se de imediato à sala segura de
teleconferências. Assim que Wheaton e Michael se sentaram nas sumptuosas
cadeiras de pele preta, Carter e Monica Tyler apareceram no ecrã.
─ Fico contente por ver que está bem, Michael ─ disse Monica.
─ Passou uns dias bastante desgastantes. Temos muito que falar, por isso
vamos começar pela pergunta óbvia. O que correu mal?
Durante dez minutos, Michael relatou cuidadosamente o que acontecera a
bordo do ferry: Awad, a moça palestina chamada Odette, o iate e o atirador.
Descreveu o tiroteio, as balas a atravessarem o corpo de Awad, cravando-se no seu
colete. Descreveu a explosão e a forma como os homens no barco cobriram a fuga
do atirador, com disparos. Por fim, descreveu a última batalha com Odette e como
Graham Seymour a matara a tiro.
─ Para começar, o que estava Graham Seymour, um agente do MI-Seis, a
fazer naquele barco?
Michael sabia que, naquela altura do campeonato, pouco ou nada poderia
ganhar ao mentir.
─ É meu amigo. Conheço-o há muito tempo. Quis alguém de confiança a
proteger-me a retaguarda.
Isso não interessa ─ contrapôs Monica, com uma paciência experiente.
Monica, regra geral, não gostava de operações de campo, nem dos agentes que as
realizavam. ─ O Michael incluiu um agente dos serviços de outro país sem a
autorização dos seus superiores na sede.
─ Ele trabalha para os ingleses, não para os iranianos. E se ele não estivesse
lá, neste momento eu estaria morto.
Monica franziu o cenho de irritação, o que tornou claro que não iria deixar-
se levar por argumentos baseados na emoção.
─ Se estava tão preocupado com a sua segurança ─ disse ela, num tom de
voz inexpressivo ─, devia ter-nos pedido reforços a nós.
─ Não quis ir para lá seguido de um pelotão, que Awad e a sua equipe
pudessem detectar a quilômetros de distância. ─ Essa era apenas parte da verdade.
─ Queria o menor número possível de pessoas de Londres e da sede envolvidas na
operação. Trabalhara no terreno, trabalhara na sede e sabia que Langley vertia
como uma peneira.
─ Parece que Awad e a respectiva equipe identificaram o seu bom amigo
Graham Seymour ─ declarou Monica com um tom de desdém.
─ Porque diz isso? ─ quis saber Michael. Wheaton remexeu-se
desconfortavelmente na cadeira e Carter, a seis mil e quatrocentos quilômetros de
distância, em Langley, fez a mesma coisa. Monica Tyler não aceitava bem perguntas
do pessoal, mesmo quando se tratava de agentes superiores, como Michael. Tinha a
certeza da convicção que resulta da ingenuidade. ─ Por que outra razão um dos
seus atiradores tentaria matá-lo? E por que outra razão Awad faria explodir uma
bomba presa ao corpo?
─ Está a partir do princípio de que o atirador pertencia à Espada de Gaza.
Penso que essa suposição está errada. O atirador não fez qualquer tentativa de
poupar a vida de Awad. Ele tentou matar-me eliminando Awad primeiro. A mulher
esteve atrás de mim o tempo todo. Se quisessem matar-me, ela poderia tê-lo feito e
eu nem sequer teria tempo de agir. E quando o tiroteio começou, ela foi atrás do
atirador primeiro, não de mim.
─ Mas acabou por ir atrás de si.
─ Sim, mas só depois de Awad detonar os explosivos. Acho que ela pensou
que o atirador era dos nossos.
─ Viu o rosto dele?
─ Não, tinha a cabeça coberta por uma balaclava.
Monica inclinou-se e segredou ao ouvido de Carter. Este levantou as mãos e
passou-as pela cabeça e pelo rosto. Michael percebeu que estava a explicar a Monica
o que era uma balaclava. Monica ficou em silêncio por alguns instantes, observando
as mãos, e depois continuou.
─ O que lhe disse Awad antes de os problemas começarem? Michael narrou
a conversa, não omitindo qualquer pormenor.
Fora treinado para memorizar grandes quantidades de informação e,
quando trabalhava no campo, possuía uma capacidade lendária para reproduzir
transcrições quase textuais de encontros com agentes. Carter costumava chamar-
lhe "o Dictafone humano". Michael contou-lhes tudo o que Awad dissera, sobre
Heathrow, sobre os ataques aéreos, sobre a expulsão de Hassan Mahmoud do
grupo, com uma omissão notória. Não lhes falou nas fotografias do encontro de
Mahmoud com Eric Stoltenberg, no Cairo.
─ Acha que ele estava a dizer a verdade? ─ perguntou Monica.
─ Sim, acho que sim ─ respondeu Michael, sem qualquer hesitação. ─
Sempre fui céptico no que diz respeito à reivindicação da Espada de Gaza. Não fiz
segredo disso. Mas se não foi a Espada de Gaza, quem foi? E por que fariam uma
reivindicação falsa?
E quem diabo tentou matar Muhammad Awad e a mim, a bordo daquele
ferry?
Carter e Monica conferenciaram baixinho por um instante. Wheaton lançou
a
Michael um olhar professoral por cima dos óculos de leitura em forma de
meia-lua, como se Michael acabasse de dar a resposta errada a uma pergunta
crucial num exame oral.
─ Há outra coisa sobre a qual temos de conversar com você, Michael ─ disse
Monica. Em seguida, acrescentou muito séria: ─ É de natureza muito grave. ─ Algo
no tom de voz enervou Michael de imediato.
─ Esta manhã, um agente do SIS britânico fez uma visita a um desertor
chamado Ivan Drozdov. Parece que Drozdov faltou à apresentação semanal, algo
que nunca faz, e o SIS ficou preocupado. O agente arrombou a casa dele e
encontrou-o morto. A tiro. O SIS e a polícia local deram logo início às investigações.
Ontem, Drozdov foi visto num café local com um homem que condiz com a sua
descrição. O SIS gostaria de saber se esteve com ele ontem. E, para dizer a verdade,
nós também.
─ Sabe que a resposta é sim, porque me colocou sob vigilância desde que
deixei Londres até regressar a Heathrow.
─ Se estava sob vigilância, não foi ordenada por mim, nem por ninguém na
sede ─ ripostou Monica.
─ Não foi a Estação de Londres ─ garantiu Wheaton.
─ Por que raios se foi encontrar com Drozdov sem a nossa autorização, ou a
autorização do SIS? ─ inquiriu Monica. ─ E já agora, sobre o que falaram?
─ Era um assunto pessoal ─ respondeu Michael. No monitor, via Adrian
Carter olhar para o céu, soprando através dos lábios franzidos. ─ Drozdov
trabalhou para o Departamento Cinco do Primeiro Direktorado do KGB, os
assassinos. Tenho trabalhado em algo há vários meses e quis discutir o assunto
com ele. Garanto-lhe que estava vivo e bem de saúde quando saí de lá.
─ Fico satisfeita por achar que isso é divertido, Michael, porque nós não
pensamos que assim seja ─ retorquiu Monica. ─ Quero-o no primeiro voo de
regresso a Washington amanhã de manhã. Considere-se de licença administrativa
enquanto aguarda uma investigação de sua conduta nesta questão.
A tela ficou vazia. Sem dizer uma palavra, Wheaton estendeu a mão.
Michael enfiou a mão por baixo da camisa e entregou-lhe a Browning carregada.
Wheaton quisera que Michael permanecesse na casa de segurança durante a sua
última noite em Londres, mas Michael dissera-lhe em termos bastante claros para
se ir lixar e regressara ao pequeno hotel em Knightsbridge, com vista para o
parque. No início do serão, ao sair para o passeio molhado pela chuva, avistou de
imediato dois sentinelas de Wheaton dormitando num Rover estacionado. Ao fazer
compras para Elizabeth na Harrods, localizou mais dois.
Ao caminhar para o sul, em Sloane Street, divisou um quinto espião a pé.
Também havia dois homens num Ford, desta vez azul-escuro.
Quem são vocês? Quem os contratou? Se não foi Wheaton, quem foi? Não
foi difícil despistá-los, ainda que fossem profissionais. Michael estava em
vantagem, pois treinara com eles na Quinta e conhecia as suas tácticas.
Durante uma hora, deambulou pelo West End sob a chuva leve, a pé, de
ônibus, de táxi, de metro, através de Berkeley Square, Oxford Street, Bond Street,
Leicester Square e dos subúrbios do Soho. Acabou no apartamento de Sarah. O
take-away libanês transformara-se em vegetariano, um monumento a Sarah, talvez.
Bob Marley vibrava através de uma janela semiaberta, com cortinados sujos. A
janela de Sarah. Provavelmente, os cortinados de Sarah.
Sarah Randolph cometeu um erro terrível, dissera-lhe Drozdov. Apaixonou-
se pela vítima.
Ela fora uma mentira, um mito criado pelos seus inimigos, tragicamente
heróica na sua ingenuidade sem limites. Ela traíra-o, mas não era real. Não podia
amá-la, nem odiá-la. Só sentia pena dela.
Os sentinelas de Wheaton há muito que tinham desaparecido, por isso
apanhou um táxi para Belgravia. Os homens de campo, tal como os ladrões,
desenvolvem formas clandestinas de penetrar na sua própria casa para o dia
inevitável em que sejam visitados por uma vida inteira de traição. Michael conhecia
o método de Graham Seymour: através de uma cavalariça e por cima do muro
caiado do jardim, com a ajuda de uma escada de corda deixada para essas ocasiões.
Michael usava agora a escada para trepar o muro e caiu pela escuridão, indo aterrar
na varanda de pedra de Graham. Este respondeu à pequena pancada nas portas de
correr armado com uma das facas de cozinha de Helen, fabricadas na Suíça.
Falaram no primeiro andar, na sala de visitas, o casaco ensopado de Michael a
fumegar junto à lareira a gás, a aparelhagem alemã de Graham a troar
Rachmaninoff para abafar a conversa.
Conversaram durante quase uma hora. Falaram sobre o que acontecera no
ferry. Falaram sobre Sarah. Sobre Colin Yardley e Astrid Vogel, e o homem na
escuridão que disparou três balas contra o rosto de Yardley. Sobre os homens no
iate e no Ford: o monovolume branco e agora o azul. Michael precisava de dinheiro.
Helen era rica e Graham tinha sempre guardado no cofre um ou dois milhares para
emergências. Passaportes não eram problema.
Ao longo dos anos, Michael utilizara os seus contatos nos serviços aliados
para reunir uma coleção de documentos de viagem falsos. Podia viajar como
francês ou espanhol, grego ou alemão. Até como israelense. Telefona a Elizabeth,
pediu Michael. Diz-lhe que lhe explico tudo quando voltar. Cuidado com o que
dizes ao telefone. Não lhe digas para onde vou, nem o que ando a fazer. Diz-lhe que
a amo. Diz-lhe que tenha cuidado. Comeram penne puttanesca e salada, e beberam
vinho tinto. Helen e Graham conversaram como se Michael não estivesse ali.
Michael sentia-se como se assistisse a um drama horrível na televisão. Devorou
dois pratos de massa, que estava surpreendentemente boa.
Depois do jantar, Graham anunciou de repente que queria ver um filme
novo que estava no cinema de Leicester Square. Helen concordou de forma
entusiástica. Arrumaram a loiça e saíram. Na sala de visitas às escuras, Michael
viu-os entrar para o BMW de Graham e arrancarem. Ouviu um motor de carro a ser
ligado algures na escuridão. Michael observou-o enquanto deslizava para a rua
silenciosa, com os faróis apagados.
Saiu pelas portas de correr, atravessou o jardim, trepou o muro e desceu
pelo outro lado, pela escada de corda. Apanhou um táxi em King's Road e foi para a
Waterloo Station. Comprou um bilhete para Roma com o dinheiro do cofre de
Graham. O comboio partia dali a uma hora. Wheaton, se fosse inteligente, estaria a
vigiar os aeroportos e as estações de comboio.
Michael comprou um chapéu impermeável num quiosque e puxou-o para a
testa. Saiu e esperou à chuva. Cinco minutos antes da hora de o comboio partir,
voltou a entrar na estação e dirigiu-se rapidamente à plataforma. Subiu para o
comboio e depressa encontrou um compartimento vazio. Ficou sentado sozinho na
semiobscuridade durante muito tempo, a escutar o barulho rítmico do comboio, a
olhar para o seu reflexo no vidro, a pensar em tudo. Depois, quando o comboio saiu
do túnel do Canal e avançou a toda a velocidade para sul, atravessando a França em
direção a Paris, mergulhou num sono leve e sem sonhos.
LONDRES
O Diretor via as notícias das dez na ITN à medida que o Jaguar metalizado
com motorista avançava a ronronar através das ruas do West End. Jantara mal no
seu clube Mayfair (borrego demasiado passado), onde os restantes membros
acreditavam que era um capitalista internacional aventureiro e bem sucedido, o
que, até certo ponto, era uma descrição exata do seu trabalho. Meia dúzia
desconfiava que, outrora, fizera um ou dois biscates para os Serviços Secretos. Um
ou dois sabiam a verdade: que, na verdade, fora o diretor-geral, o lendário C, dos
Serviços Secretos. Graças a Deus que lá trabalhara nos velhos tempos, quando a
Agência oficialmente não existia e os diretores tinham o bom senso de manter os
nomes e as fotografias afastados dos jornais. Imaginem só, o chefe dos Serviços a
conceder uma entrevista ao The Guardian: uma heresia, uma loucura. O Diretor
acreditava que os espiões e os serviços secretos se assemelhavam muito a ratazanas
e a baratas. É melhor fingir que não existem. Ajuda uma sociedade livre a dormir
melhor à noite.
O ataque ao ferry que fazia a travessia Dover-Calais dominava as notícias. O
Diretor estava furioso, embora o rosto tranquilo não revelasse nada a não ser
insolência enfadada. Após uma vida inteira nas sombras, a sua dissimulação era
uma arte. Era estreito de cabeça e de ancas, com cabelo cor de arenito a ficar
grisalho e mãos brancas de cirurgião que pareciam estar sempre a segurar um
cigarro aceso de um comprimento adequado para um anúncio numa revista cara.
Os olhos tinham a cor da água do mar no Inverno, a boca era pequena e cruel.
Vivia sozinho 250 em St. John's Wood com um rapaz da Sociedade que o
protegia e uma moça bonita que tratava da papelada e cuidava dele. Nunca casara,
não tinha filhos, nem familiares conhecidos. Os engraçadinhos nos Serviços
costumavam dizer que tinha sido encontrado no início da meia-idade, dentro de
um cesto, nas margens do Tamisa, vestido com um terno de riscas brancas, gravata
Guarás e sapatos feitos à mão.
Desligou a televisão e olhou pela janela, observando a noite londrina
passar. Não havia nada que detestasse mais do que o fracasso, nem mesmo a
traição. Esta exigia inteligência e inexorabilidade, o fracasso apenas estupidez ou
falta de concentração. Tinham sido dados todos os recursos necessários aos
homens que enviara naquela missão no ferry para garantir o sucesso e, contudo,
eles tinham falhado. Michael Osbourne era obviamente um adversário digno de
respeito, um homem de talento, inteligência e engenho. Osbourne era bom, o seu
assassino teria de ser melhor.
O carro parou à porta da casa. O motorista, um antigo membro de elite dos
Comandos Especiais Aerotransportados, acompanhou o Diretor até a porta,
esperando que este entrasse. A moça estava à espera, uma jamaicana escultural cor
de café chamada Daphne. Trazia vestida uma blusa branca, desabotoada até a
elevação dos seios fartos, e uma saia preta que lhe dava pelo meio das coxas nuas.
O cabelo castanho-alourado caía-lhe sobre os ombros quadrados.
─ O senhor Elliott está ao telefone do Colorado, senhor ─ informou ela.
Havia uma nota do ritmo melodioso da índia Oriental na sua voz, tendo o Diretor
gasto milhares de libras em terapia da fala para o eliminar. Eram permitidos nomes
dentro da residência Mayfair, pois era revistada regularmente em busca de escutas,
e as paredes eram impermeáveis a microfones direcionais exteriores.
O Diretor foi para o escritório e carregou na luz intermitente do seu
telefone preto multilinhas. Daphne entrou, despejou um centímetro de scotch de
trinta anos para dentro de um copo e entregou-lho. Permaneceu no escritório
enquanto a conversa decorria, pois não existiam segredos entre eles.
─ O que é que correu mal? ─ perguntou Elliott.
O senhor Awad trouxe proteção, tal como o senhor Osbourne. E, ainda por
cima, ele é mesmo bom.
─ Tem de ser eliminado, sobretudo depois do que ficou a saber esta manhã,
naquele ferry.
─ Sei muito bem disso, senhor Elliott.
─ Quando tenciona realizar outro ataque?
─ O mais depressa possível ─ respondeu o Diretor, interrompendo-se para
um gole de scotch. ─ Mas quero fazer uma substituição. O Osbourne é bastante
bom. Assim sendo, o adversário tem de ser excelente. Gostaria de atribuir a tarefa
ao Outubro.
─ O preço dele é muito elevado.
─ Tal como o que está em jogo neste ponto dos acontecimentos, senhor
Elliott. Não me parece que seja altura para arengar sobre um ou dois milhões a
mais, não acha?
─ Não, tem razão.
─ Vou preparar um dossiê detalhado sobre Osbourne e enviá-lo ao Outubro,
por correio eletrônico codificado. Se ele optar por aceitar o alvo, o jogo vai
recomeçar, e prevejo que o senhor Osbourne seja eliminado em breve.
─ Espero que sim ─ afirmou Elliott.
─ Conte com isso, senhor Elliott. Boa noite.
O Diretor pousou o receptor. Daphne colocou-se atrás dele e esfregou-lhe
os ombros.
─ Vai precisar de mais alguma coisa esta noite, senhor?
─ Não, Daphne, vou apenas tratar de alguma papelada e depois vou deitar-
me. ─ Muito bem, senhor ─ disse ela e saiu.
O Diretor trabalhou no escritório durante vinte minutos, terminando o
scotch e vendo as notícias americanas sobre a explosão no ferry através do sistema
de satélite. Desligou a televisão e subiu as escadas, dirigindo-se à suíte. Daphne
encontrava-se deitada de costas na cama, blusa desabotoada, uma perna comprida
cruzada sobre a outra, enrolando uma madeixa de cabelo no indicador fino.
O Diretor despiu-se silenciosamente e vestiu um roupão de seda. Alguns
homens abastados divertiam-se com cavalos, ou carros. O Diretor tinha a sua
Daphne. Ela despira-se. As roupas estavam a seu lado, na cama. Acariciava
gentilmente os mamilos, a barriga, o alto das coxas. Daphne era uma provocadora,
até consigo mesma. O Diretor entrou para a cama e fez deslizar um dedo pelo
pescoço da jovem.
─ Alguma coisa, meu amor? ─ perguntou ela.
─ Não, minha flor.
A capacidade do Diretor para fazer amor com uma mulher encontrava-se
gravemente comprometida, consequência, pensava ele, de uma vida inteira de
mentiras e traição. Ela fez deslizar a mão por baixo do roupão, tomando-o entre as
suas mãos compridas.
─ Nada?
─ Receio que não, meu amor.
─ Que pena ─ disse ela. ─ Posso?
─ Se quiser.
─ O senhor é um tonto. Quer ajudar ou só ver?
─ Só ver ─ respondeu ele, acendendo um cigarro.
Meteu a mão entre as coxas. Arquejou com força, lançou a cabeça para trás
e fechou os olhos. Durante os dez minutos seguintes, tomou-a da única forma
possível, com os olhos, mas, passado algum tempo, a sua mente começou a
vaguear. Pensou em Michael Osbourne. No assassínio fracassado no ferry. No
homem chamado Outubro. Seria uma luta interessante. Um deles não iria
sobreviver. Se fosse Osbourne a morrer, a Sociedade subsistiria e Mitchell Elliott
ganharia os seus bilhões. Se fosse Outubro... O Diretor estremeceu com esse
pensamento. Trabalhara muito e durante demasiado tempo para que tudo ruísse.
Estava demasiado em jogo, investira-se demasiado, para que agora terminasse em
fracasso.
Voltou a fitar Daphne e encontrou os seus olhos castanhos fixos nele. Tinha
o olhar direto e aberto de uma criança.
─ Esteve longe durante alguns minutos ─ comentou.
A surpresa atravessou-lhe o rosto. Daphne despojava-o de todas as suas
velhas defesas.
─ Eu também olho, sabe. Quero saber se estou a fazê-lo feliz.
─ Fazes-me muito feliz.
─ Está tudo bem, amor? ?
─ Está tudo ótimo.
─ Tem certeza?
─ Sim, certeza absoluta.
CAIRO
─ Meu Deus, esta maldita cidade.
Astrid Vogel estava de pé, junto às portas de correr, abertas para o anoitecer
frio de Inverno. Havia uma pequena varanda com uma balaustrada de ferro forjado
ferrugento, mas o senhor Fahmy, o recepcionista, avisara que as varandas andavam
a cair nos últimos tempos, por isso, por favor, é melhor não ir para lá. Estavam no
hotel havia dois dias e a sanita deixara de funcionar três vezes. Por três vezes o
senhor Fahmy aparecera, de casaco e gravata, munido com um rolo de fita-adesiva
castanha e uma bobina de fio de cobre. Todos os bons faz-tudo estavam no Golfo
(no Kuwait, na Arábia Saudita ou nos Emirados) a trabalhar para xeques do
petróleo. O mesmo acontecia com os professores, os advogados e os contabilistas.
Os profissionais e os ricos tinham fugido. O Cairo era uma cidade de camponeses
em ruínas e não havia ninguém qualificado para a reparar. Depois o autoclismo
começava a funcionar, como o esperado, e ele sorria tristemente e dizia: "Está
arranjado, inshallah", embora soubesse que estaria de volta no dia seguinte com o
seu elixir de fita-adesiva e fio de cobre.
Teve início a chamada para oração da noite, primeiro um único muezim,
muito distante, depois outro e mais outro, até que mil vozes grosseiramente
amplificadas gritavam em uníssono. O hotel encontrava-se situado ao lado de uma
mesquita e o minarete erguia-se mesmo em frente à janela. Naquela manhã,
quando aquela coisa começou a troar pela madrugada, Astrid acordou de tal forma
assustada que pegou na arma que estava em cima da mesa-de-cabeceira e correu
nua para a varanda. Astrid era uma ateia devota. A religião deixava-a nervosa. No
Cairo, havia religião por todo o lado. Envolvia as pessoas, rodeava-as. Não havia
forma de lhe escapar. A solução era troçar dela. Naquela tarde, quando a chamada
do muezim começou, levou Delaroche para a cama e fez com ele amor desenfreado.
Agora' ouvia a chamada como um biólogo marinho poderia estudar os sons de
acasalamento das baleias-cinzentas. Apercebeu-se de que era ligeiramente musical,
harmoniosa, como uma daquelas fugas em que um violino toca a mesma série de
notas depois de outra ter acabado. O Cânone do Cairo, pensou. O chamamento
extinguiu-se lentamente até uma única voz pairar no ar, algures na direção de Giza
e das pirâmides, e depois também ela desapareceu. Astrid permaneceu junto às
portas de correr, os braços cruzados sobre os seios, a fumar um horrível cigarro
egípcio, a beber champanhe gelado porque o hotel estava sem água engarrafada e a
agua da torneira podia matar um búfalo-da-índia. Tinha vestido uma galabia de
homem, as mangas arregaçadas e desabotoada até o umbigo. Delaroche, deitado na
cama, observava o contorno indistinto do seu corpo de modelo através do tecido
translúcido da túnica branca. Comprara-a naquele dia, num mercado de rua perto
do hotel, chamando a atenção de uma forma apenas conseguida por uma loura
alemã de um metro e setenta e oito nas ruas sexualmente oprimidas do Cairo.
Durante algum tempo, Delaroche pensou que tinha cometido um erro ao deixá-la
sair, mas era Inverno e havia milhares de turistas escandinavos na cidade, por isso
ninguém se lembraria da alemã alta que insistira em comprar uma túnica de
camponês no mercado. Alem disso, Delaroche gostava de andar a pé pelas ruas
palpitantes do Cairo. Tinha sempre a sensação de estar a deslocar-se através de
outras cidades: agora uma esquina de Paris, agora uma viela de Roma, agora um
quarteirão da Londres vitoriana, tudo coberto de pó e entulhos como a Esfinge.
Desejou poder pintar, mas naquela viagem não havia tempo para isso.
O vento noturno que entrava pelas portas abertas cheirava ao Deserto
Ocidental. Misturava-se com o fedor que é exclusivo do Cairo: pó, lixo em
putrefação, madeira a arder, fezes de macaco, urina, escapes de milhões de carros e
camiões, fumos tóxicos das fábricas de cimento de Helwan. Mas era fresco e seco,
maravilhoso na pele úmida e nua dos seios de Astrid. O pó acumulava-se no seu
rosto. Estava por todo o lado, cinzento, fino como farinha. Penetrava-lhe na mala,
nos livros e nas revistas. Delaroche estava constantemente a limpar a Beretta que
lhe fora deixada no cofre de um banco do Cairo.
─ Este pó ─ resmungava ele, passando com um farrapo oleado sobre o cano.
─ Este malvado deste pó.
Astrid gostava da janela aberta, pois o ar condicionado estava avariado e
nada no saco de truques do senhor Fahmy podia arranjá-lo, mas as criadas
fechavam sempre o quarto como um sarcófago.
─ O pó ─ diziam, à laia de explicação, revirando os olhos para a janela
aberta de Astrid. ─ Por favor, o pó.
Aventurou-se a ir à varanda, ignorando o terrível aviso do senhor Fahmy. Lá
em baixo, homens empurravam carros silenciosos por uma rua estreita e obstruída.
Havia um milhão de carros no Cairo e Astrid não vira um único verdadeiro
estacionamento coberto. Os habitantes do Cairo tinham desenvolvido uma medida
provisória completamente insana: limitavam-se a deixar os carros no meio da rua.
Por uma mancheia de piastras amachucadas, empreendedores astutos tomavam
conta de um carro o dia todo, empurrando-o de um lado para o outro, abrindo
espaço para outros. Muitas ruas laterais da baixa eram intransitáveis, pois tinham
sido transformadas em estacionamentos temporários. Do outro lado da estrada, ao
lado da mesquita, um edifício de escritórios ruía lentamente. Em vez de retirarem
os móveis de uma forma ordeira, os trabalhadores limitavam-se a atirar as coisas
pelas janelas. Vinte soldados, camponeses das aldeias, estavam sentados junto ao
prédio condenado, a cozinhar sobre pequenas fogueiras.
─ Por que razão destacaram soldados para a porta do edifício, Jean-Paul? ─
perguntou, observando o espetáculo.
─ O quê? ─ interrogou Delaroche, do interior do quarto.
Astrid repetiu a pergunta, desta vez mais alto. Conversação ao estilo do
Cairo. Devido à cacofonia ensurdecedora nas ruas, a maior parte das conversas era
conduzida aos gritos. Isto fazia com que fosse difícil planear o assassinato de
Stoltenberg. Por razões de segurança,
Delaroche insistia em que falassem na cama, cara a cara, para que
pudessem conversar baixinho, diretamente ao ouvido um do outro.
─ Destacaram soldados para manter os peões afastados do prédio, para o
caso de ruir de repente.
─ Mas se o prédio ruir de repente, os soldados vão morrer. É uma loucura.
─ Não, é o Cairo.
Uma carroça apareceu na estrada, puxada por um burro coxo. O condutor
era um rapazinho, louro e de olhos verdes, vestido com uma túnica andrajosa. Da
base da carroça ia caindo lixo. Os soldados insultaram o rapaz e atiraram pedaços
de pão ao burro. Por um instante, Astrid pensou em pegar na arma e dar um tiro a
um dos soldados.
─ Jean-Paul, vem aqui, depressa ─ pediu.
─ Zabbaleen ─ disse Delaroche, dirigindo-se à varanda.
─ O quê?
─ Zabbaleen ─ repetiu ele. ─ Quer dizer coletores de lixo. O Cairo não tem
saneamento básico, nem sistema oficial de coleta de lixo. Durante anos, o lixo era
simplesmente jogado nas ruas, ou queimado para aquecer a água do banho. Nos
anos 30, os Cristãos Copta migraram para o Cairo vindos do sul. Alguns deles
tornaram-se abbaleen. Não ganhavam dinheiro com isso, apenas o lixo que
recolhiam. Vivem numa aldeia de lixo nas montanhas de Mokattam, a leste do
Cairo.
─ Meu Deus ─ exclamou ela, em voz baixa.
─ É hora de nos vestirmos ─ ordenou Delaroche, mas Astrid permaneceu
na varanda, olhando para o rapaz e seu lixo.
─ Não gosto dele ─ disse e, por um momento, Delaroche não teve certeza
se ela falava do abbaken ou de Eric Stoltenberg.
─ É um sacana cruel, e também é esperto.
─ Limite-se a fazer tudo conforme o planejado e as coisas vão correr bem.
─ Não deixe que ele me faça mal, Jean-Paul.
Olhou-a. Matou uma dúzia de pessoas, viveu em fuga e, contudo, às vezes
ficava tão assustada como uma menina. Acariciou-lhe o rosto e beijou sua testa
com suavidade.
─ Não vou deixar que ninguém te faça mal ─ prometeu.
Olharam para cima. Uma grande mesa de madeira balançava na varanda de
um andar alto do edifício condenado. Pairou ali por um momento, como um
passageiro agarrado ao parapeito de um transatlântico afundando, e depois
espatifou-se na rua, despedaçando-se em mil bocados. O burro do abbaleen
desatou a correr. Os soldados dispersaram-se. Olharam para cima e começaram a
falar num árabe rápido, abanando os punhos na direção dos homens na varanda.
─ O Cairo ─ concluiu Delaroche.
─ Meu Deus ─ disse Astrid. ─ Que cidade de loucos.
O elevador do hotel era antiquado, abrindo caminho pelo centro de uma
escada em espiral. Estava outra vez avariado, por isso Astrid e Delaroche tiveram
de fazer a descida desde o sétimo andar. Fahmy, o eterno recepcionista, encolheu os
ombros em sinal de desculpas.
─ Amanhã, vem o técnico, inshallah ─ disse.
─ Inshallah ─ repetiu Delaroche com um sotaque do Cairo perfeito, o qual
Fahmy acatou com um aceno formal da sua cabeça calva.
O hall estava calmo, a sala de jantar deserta exceto por duas empregadas
com aventais que limpavam o pó em silêncio. Delaroche considerava-a deprimente
e vagamente russa, com as suas mesas compridas, a carne enrolada e o vinho
branco quente. Astrid quisera ficar num dos grandes hotéis ocidentais (o Inter-
Com ou o famoso Nile Hilton), mas Delaroche insistiu num sítio mais isolado. O
Hotel Imperial era o tipo de lugar que os roteiros de viagens recomendavam a
viajantes aventureiros que desejassem provar um pouco do verdadeiro Cairo.
Delaroche roubara uma motorizada: pequena, azul-escura, o tipo de scooter
que os jovens italianos usam para fazerem corridas pelas ruas de Roma. Sentiu-se
ligeiramente culpado, pois sabia que um rapaz egípcio qualquer tivera três
empregos e poupara durante anos para poder comprá-la. Pôs Astrid dentro de um
táxi e, num árabe rápido e correto, indicou ao motorista para onde levá-la.
Delaroche partiu na sua moto, Astrid atrás dele no táxi.
Zamalek é uma ilha, comprida e estreita, que o Nilo rodeia como se de um
fosso se tratasse. É um enclave dos abastados do Cairo: os resíduos da aristocracia,
os novos-ricos, um grupo de jornalistas ocidentais. Apartamentos poeirentos
elevam-se acima do penhasco e fitam com desaprovação o outro lado do rio, onde
se encontra o barulho e o caos da baixa da cidade. Abaixo do penhasco, ao longo da
água, existe uma represa onde uma juventude livre de Zamalek faz sexo até de
manhã. Na ponta norte da ilha estão localizados os campos de críquete e os
campos de tênis do Ghazira Sporting Club, os campos de jogos da velha elite
britânica. Nas lojas e boutiques de Zamalek ouve-se o francês trazido para o Cairo
por Napoleão. Os habitantes vestem roupas ocidentais, comem comida ocidental
nos restaurantes e nos cafés, e dançam ao som de música ocidental nas discotecas.
É o outro Cairo.
Eric Stoltenberg morava no último andar, o nono, de um edifício com vista
para o rio. Os vizinhos queixavam-se das suas festas barulhentas e dos sons de
acasalamento das conquistas frequentes. Todas as noites almoçava num dos
restaurantes da moda de Zamalek e depois parava num clube noturno chamado
Break Point para os seus copos e caça noturnos.
Tudo isso constava do arquivo de Delaroche.
O Break Point tinha um porteiro e uma ordem de entrada estatutária, como
um clube de Nova York. O porteiro selecionava a clientela importante e as moças
bonitas para entrarem em primeiro lugar. Eric Stoltenberg encaixava na primeira
categoria, Astrid Vogel na segunda. Delaroche, um homem solteiro, atraente, na
casa dos quarenta, teve de esperar dez minutos. Logo que entrou, dirigiu-se ao bar.
Num árabe com o sotaque do Cairo pediu cerveja Stella, de fabrico egípcio. No
clube noturno, com as suas luzes lúgubres e cortina de fumo, poderia passar por
um qualquer egípcio da classe alta.
Pagou a cerveja e virou-se para perscrutar a sala. O sítio estava cheio, como
era habitual: moças egípcias parcamente vestidas que dormiam com estrangeiros,
rapazes que faziam o mesmo, umas quantas cabras da classe alta, alguns turistas
aventureiros que não conseguiam suportar mais uma noite no terrível bar do Nile
Hilton. Uma moça bonita convidou Delaroche para dançar, convite esse que ele
recusou educadamente. Momentos mais tarde, surgiu o seu anjo da guarda, um
rapaz grosseiro com um casaco de couro e uma camisa justa para provar que
levantava pesos. Delaroche murmurou algo ao ouvido dele, o que fez com que o
rapaz deixasse de imediato o bar, com a moça bonita a reboque.
Astrid dançava com Stoltenberg. Vestia uma das saias pretas compradas em
Londres e um pulôver justo. Era uma turista chamada Eva Tebbe, nascida no Leste,
que falava alemão com um sotaque saxônico. Astrid e Stoltenberg tinham-se
conhecido na noite anterior, quando viera ali com Delaroche, o qual fez de turista
francês do grupo. Stoltenberg atirou-se a ela de uma forma implacável. Restava-lhe
dois dias no Cairo e depois ia para Luxor. Stoltenberg tentara engatá-la, mas ela
recusou com tristeza, dizendo que o pequeno francês ficaria furioso. Nessa noite
estaria sozinha, motivo pelo qual Delaroche não quis dançar e permanecia no bar,
nas sombras.
Stoltenberg já fora um homem atraente, mas engordara devido ao álcool e à
comida suculenta. Tinha o cabelo grisalho cortado rente e olhos azuis gelados.
Vestia-se de preto: calças de ganga pretas, blusa de gola alta preta, blusão de couro
preto. Tocava em Astrid enquanto dançava e, pela expressão dela, estava a gostar
muito. Após três canções, dirigiram-se à mesa habitual de Stoltenberg.
Conversaram, próximos um do outro.
Passados dez minutos, levantaram-se e abriram caminho pela pista até a
porta, Stoltenberg puxando Astrid pela mão. O olhar dela passou por Delaroche
mas não se deteve nele. Astrid, a profissional.
Observou atentamente o rosto dela e percebeu que estava assustada.
Era evidente que os negócios corriam bem a Eric Stoltenberg. Possuía um
grande Mercedes preto e um motorista. Abriu a porta a Astrid, deu a volta por trás
do carro e entrou para o veículo, sentando-se ao lado dela. O carro rugiu pelas ruas
estreitas, depois virou para o penhasco e rumou a sul, ao longo do rio. Delaroche
seguiu-os de mota, luzes apagadas, a cabeça oculta num capacete. Abrandou
quando se aproximaram do apartamento de Stoltenberg, virado para o rio. Tal
como em Londres, pensou. Leva-o para dentro, mete-o na cama, deixa uma porta
aberta se puderes. Sem problemas. De repente, o Mercedes acelerou, passando
pelo edifício a voar. Delaroche praguejou em voz alta e apressou-se atrás deles.
─ Não te chamas Eva Tebbe ─ anunciou Stoltenberg, enquanto o carro
acelerava. ─ O teu nome é Astrid Vogel. És um antigo membro da Fação do Exército
Vermelho. ─ De que raio estás a falar? O meu nome é Eva Tebbe e sou uma turista
de Berlim. Leva-me para o clube agora, seu doido varrido, ou vou gritar pela polícia.
─ Soube que eras tu cinco minutos depois de nos conhecermos. Aquele teu sotaque
saxônico maluco não foi bom o suficiente para enganar um profissional.
─ Profissional do quê? Leva-me de volta para o clube, já!
─ Trabalhei para a Stasi, sua idiota! Lidei com a Red Army Faction. Nunca
esteve no Leste, mas muitos camaradas seus estiveram. Tínhamos fotografias e
dossiês completos sobre todos os membros da Red Army Faction, incluindo uma
tal de Astrid Vogel.
─ Meu nome é Eva Tebbe ─ repetia ela como se fosse um mantra. ─ Sou
uma turista de Berlim.
─ Pedi a um velho companheiro meu que me enviasse por fax esta
fotografia. Agora está mais velha, seu cabelo está diferente, mas é você.
Meteu a mão no blusão de couro e exibiu a fotografia. Astrid olhava pela
janela. Tinham atravessado o rio para o Cairo Ocidental e avançavam em direção a
Giza.
─ Olhe ─ gritou ─, é você, olhe!
─ Não sou eu. Por favor, não sei do que está falando.
Podia ouvir a própria voz a perder a convicção. Aparentemente, Stoltenberg
também, pois deu-lhe uma violenta bofetada na boca com as costas da mão. Os
olhos dela marejaram-se e sentiu nos lábios o gosto a sangue. Olhou para a
fotografia, uma antiga foto de identificação da Alemanha
Ocidental. Era uma magrizela revolucionária, uma expressão no rosto que
dizia como se atreveram a tirar-me esta porra desta fotografia. O corte de cabelo
espetado de Kurt Vogel, os óculos com lentes de cristal de rocha de Kurt Vogel.
Sempre achara que era uma fotografia bastante horrorosa, mas quando a policial a
colocou num cartaz a dizer "procura-se", tornou-se o símbolo sexual da Esquerda
radical.
As pirâmides estavam à sua frente, recortadas de encontro ao azul
profundo da noite do deserto. Uma Lua muito branca a três quartos pairava baixa
no céu, brilhante como um archote. Onde diabo estás tu, Jean-Paul? pensou ela.
Resistiu ao impulso de se virar para trás e procurá-lo. O que tinha ele dito? Não
vou deixar que ninguém te faça mal É bom que faças alguma coisa depressa,
querido, pensou, ou este homem vai fazer de ti um mentiroso. Por qualquer razão,
ele não lhe revistara o corpo, nem a mala. A arma ainda lá estava, uma pequena
Browning automática, mas sabia que jamais conseguiria tirá-la a tempo, no espaço
limitado do banco traseiro. Não teve outro remédio a não ser esperar, ganhar
tempo e pedir a Deus que Jean-Paul estivesse algures na escuridão. As pirâmides
desapareceram. Viraram para um trilho estreito e sem pavimento, que se estendia
até o deserto.
─ Para onde me estás a levar? ─ perguntou Astrid. ─ Se queres dar uma
queca, podemos dá-la aqui mesmo. Não tens de me levar para o deserto e pores-te
com estes jogos estúpidos. Voltou a esbofeteá-la. ─ Cala-te ─ ordenou.
O Mercedes dava solavancos e baloiçava desenfreadamente.
─ Quem te contratou?
─ Ninguém me contratou. Não sou quem tu dizes. Quero voltar para o meu
hotel.
Por favor, não faças isto.
Deu-lhe outra bofetada, desta vez com mais força.
─ Responde-me! Quem te contratou?
─ Ninguém, por favor.
─ Quem é o homem? O teu parceiro, o francês?
─ Ele não passa de um idiota do meu grupo de viagem. Não é ninguém.
─ Mataste o Colin Yardley em Londres?
─ Eu não matei ninguém.
─ Mataste o Colin Yardley em Londres? Foi o francês?
Eu não mato pessoas. Trabalho para uma revista em Berlim. Sou designer
gráfica. Não me chamo Astrid Vogel. O meu nome é Eva Tebbe. Por favor, isto é
coisa de loucos. Para onde me leva?
─ Para um lugar onde ninguém vai te ouvir gritar e onde ninguém vai te
encontrar depois que eu te matar. ─ Levou novamente a mão ao blusão e desta vez
retirou uma arma. Encostou o cano no pescoço dela e puxou seu cabelo. ─ Mais
uma vez ─ disse. ─ Quem é o francês? Quem te contratou?
─ Meu nome é Eva Tebbe. Sou designer gráfica em Berlim.
Pensou nas velhas palestras sobre doutrinação na Red Army Faction. Se
forem presos, não lhes deem nada. Desafiem, censurem, mas não lhes deem nada.
Eles vão provocar, mexer com sua cabeça. É isso que os policiais fazem. Não lhes
deem nada. Naquele caso, o conselho tinha uma aplicação muito prática, pois no
momento em que dissesse a verdade a Stoltenberg, com certeza ele a mataria.
Puxou-lhe o cabelo com violência e depois soltou-a. A mala dela estava
sobre o banco, entre os dois. Abriu-a e revirou o conteúdo até encontrar a
Browning. Mostrou-a, como prova da traição, e colocou-a dentro do blusão. ─ É
muito desleixado, esse teu francês, Astrid. Enviou-te para uma situação muito
perigosa. Ele sabia que trabalhei para a Stasi. Devia ter percebido que podia
reconhecer uma antiga assassina da Fação do Exército Vermelho. E preciso ser-se
um sacana muito frio para enviar uma mulher para uma situação destas. O carro
parou numa escarpa do deserto com vista para a cidade. Abaixo deles, o Cairo
estendia-se como um leque gigante, estreito a sul, amplo a norte, na base do delta
do Nilo. Milhares de minaretes erguiam-se em direção ao céu. Interrogou-se qual
seria o dela. Queria estar de volta àquele quarto de hotel horroroso, com a sanita
que não funcionava, junto ao edifício prestes a ruir. ─ É evidente que amas esse
homem. É por isso que estás disposta a suportar a dor física por ele. Ele não sente o
mesmo por ti, garanto-te. Caso contrário, nunca teria permitido que te
aproximasses de mim. Está te usando, como aqueles sacanas na Red Army Faction
te usaram.
Stoltenberg disse algo ao motorista num árabe rápido que Astrid não
compreendeu. O motorista abriu a porta e saiu. Stoltenberg encostou-lhe
novamente a arma ao pescoço.
─ Muito bem ─ disse. ─ Vamos tentar só mais uma vez.
Delaroche desligou o motor da mota quando viu as luzes de travão do
Mercedes a acender. Parou em silêncio, retirou a mota do trilho e aproximou-se do
carro a pé. A Lua projetava sombras. O Cairo murmurava à distância. Imobilizou-se
quando ouviu uma porta do carro abrir e fechar. O veículo permaneceu às escuras;
Stoltenberg, como qualquer bom agente, inutilizara a luz interior. Ao luar,
Delaroche viu o motorista, de arma na mão, a verificar o perímetro. Delaroche
acocorou-se atrás de um aglomerado rochoso e esperou que o homem se
aproximasse. Quando o motorista se encontrava a cerca de dez metros de distância,
Delaroche pôs-se de pé e apontou a Beretta na escuridão. Stoltenberg estava
novamente a esbofeteá-la, no rosto, na nuca, nos seios. Ela sentiu que o homem
começava a gostar daquilo. Pensou noutra coisa, qualquer coisa. Pensou na casa
flutuante no Prinsengracht e na pequena livraria e desejou que Jean-Paul
Delaroche nunca tivesse entrado na sua vida. A porta do motorista abriu e fechou-
se. Na escuridão, Astrid mal conseguia distinguir a silhueta de um homem atrás do
volante. Apercebeu-se de que não era o mesmo homem que lá estivera antes.
Stoltenberg pressionava novamente a arma contra o pescoço de Astrid. ─
Viste alguma coisa? ─ perguntou Stoltenberg em árabe. O homem atrás do volante
abanou a cabeça.
─ Yallah ─ ordenou Stoltenberg. Vamos embora. Delaroche virou-se e
apontou a Beretta ao rosto de Stoltenberg. O alemão ficou demasiado estupefato
para reagir. Delaroche disparou três vezes. ─ Ele podia ter-me matado, Jean-Paul.
Estava deitada na cama no Hotel Imperial, com a sua galabia vestida, a
fumar um cigarro atrás do outro na semiobscuridade. Delaroche estava deitado ao
lado dela, a desmontar as armas. Ela tinha o cabelo úmido da ducha. Esfregara-se
até ficar em carne viva, a tentar lavar o sangue de Stoltenberg. O vento entrava
pelas portas abertas. Arrepiou-se. A sanita deixara outra vez de funcionar.
Delaroche telefonou para a recepção e pediu que alguém viesse arranjá-la, mas o
senhor Fahmy, o guardião do conhecimento secreto, estava de folga nessa noite. ─
Bokra, inshallah ─ disse o empregado. Amanhã, se Deus quiser.
Delaroche acatou a afirmação dela. O profissional que havia nele não podia
contestá-la. Eric Stoltenberg tivera muito tempo e oportunidade para matá-la.
Optara por não o fazer porque precisava de mais informações.
─ Ele podia ter matado você ─ disse Delaroche ─, mas não o fez porque se
portou com perfeição. Ganhou tempo, não contou nada. Você nunca esteve sozinha.
Eu estava atrás de você o tempo todo.
─ Se ele quisesse me matar você não teria podido impedir.
─ Este trabalho não é isento de riscos. Sabe disso.
As palavras de Stoltenberg ecoavam-lhe na mente.
─ É muito desleixado esse seu francês, Astrid. Enviou você a uma situação
muito perigosa.
─ Não sei se consigo continuar, Jean-Paul.
─ Aceitou a missão. Aceitou o dinheiro. Não pode desistir agora.
─ Quero voltar para Amsterdam, ao Prinsengracht.
─ Essa porta se fechou para você.
Fez mais uma vez o inventário dos ferimentos: lábio rachado, face
esmurrada, uma marca de mão no seio direito. Nunca antes se encontrara numa
situação em que estivesse impotente e não tinha gostado. ─ Não quero morrer
como um animal no deserto.
─ Nem eu ─ concordou ele. ─ Não vou deixar que isso aconteça a nenhum
de nós.
─ Para onde vai, quando esta questão chegar ao fim?
─ Para Brélés, se puder. Se não, para as Caraíbas.
─ E para onde irei, agora que a porta para Amsterdam foi fechada?
Pousou as armas e colocou-se em cima dela.
─ Pode vir comigo para as Caraíbas.
─ E o que vou fazer lá?
─ O que quiser, ou então nada.
─ E o que serei para você? Serei sua mulher?
Delaroche abanou a cabeça. ─ Não, não será minha mulher.
─ Haverá outras mulheres?
Voltou a abanar a cabeça. ─ Não, não haverá outras mulheres.
─ Serei o que quiser que eu seja, mas não pode me humilhar com outras
mulheres.
─ Nunca te humilharia, Astrid.
Beijou-lhe a boca com suavidade, para não lhe magoar o lábio. Desabotoou-
lhe a galabia e beijou-lhe os seios e a feia marca deixada pela mão de Stoltenberg.
Deslizou pelo corpo dela e levantou a galabia. O terror que Astrid sentira horas
antes desvaneceu-se com a sensação intensa do que ele estava a fazer entre as suas
coxas.
─ Onde iremos viver? ─ perguntou baixinho.
─ Junto ao mar ─ respondeu ele, voltando ao que estava a fazer.
─ Vais fazer-me isto junto ao mar, Jean-Paul? Sentiu a cabeça dele dizer que
sim entre as pernas.
─ Vais fazer-me isto muitas vezes junto ao mar, Jean-Paul?
Era uma pergunta tola e ele não respondeu. Astrid agarrou-lhe a cabeça e
puxou-a com força de encontro ao corpo. Teve vontade de lhe dizer que o amava,
mas sabia que tais coisas jamais seriam ditas em voz alta. Mais tarde, ele deitou-se
ao lado dela, respirando suavemente.
─ Dormes de noite, Jean-Paul?
─ Algumas noites são melhores do que outras. ─ Vê-los?
Vejo-os durante algum tempo e depois desaparecem.
─ Porque mata daquela maneira? Por que três tiros no rosto?
─ Porque quero que saibam que eu existo.
Astrid fechou os olhos e sentiu-se a deslizar para o sono.
─ Você é a Besta, Jean-Paul?
─ Do que está falando?
─ A Besta ─ repetiu ela. ─ O Diabo. Talvez deixe sua marca nos rostos deles
por ser a Besta.
─ Os homens que eu mato são maléficos. Se eu não os matar, outra pessoa o
fará. É apenas um negócio, nada mais.
─ Com você é mais do que apenas um negócio, Jean-Paul. É... ─ hesitou e,
por um instante, Delaroche pensou que ela tivesse finalmente adormecido. ─ É
arte, Jean-Paul. Sua forma de matar é como arte.
─ Dorme, Astrid.
─ Espere que eu durma antes de você dormir, Jean-Paul.
─ Eu espero ─ prometeu. Ficou em silêncio mais um instante.
─ Quando se aposentar, o que será do Arbatov? ─ perguntou ainda.
─ Suponho que terá de se aposentar também ─ respondeu Delaroche. ─
Mas ele já tem uma certa idade.
─ É o Diabo, Jean-Paul? ─ perguntou Astrid, mas adormeceu antes que ele
pudesse responder.
Momentos antes de o Sol nascer, retirou da mala o pequeno artigo do Le
Monde sobre um diplomata reformado russo morto por rufiões de rua em Paris.
Delaroche estava a dormir, ou fingia dormir, nunca tinha a certeza.
Levou o recorte até a varanda pouco firme de Fahmy e leu-o mais uma vez à
luz bege do despontar do dia. Talvez não tivesse sido Jean-Paul, pensou. Talvez
tivesse sido mesmo apenas um assalto.
O Cairo agitava-se lá em baixo. Uma abbaleen surgiu no beco, uma menina,
vestida com farrapos, cheia de sono, açoitando um jumento com uma chibata. O
muezim fez-se ouvir e outros mil juntaram-se a ele.
Levou um fósforo ao recorte e segurou-o até a chama o engolir. Depois
largou-o e viu-o flutuar, até cair em cima de um monte de lixo e transformar-se em
pó cinzento. 267
CAIRO
A viagem de táxi desde o aeroporto demorara quase tanto tempo como o
voo a partir de Roma. Estava calor, até mesmo para Novembro, e não havia ar
condicionado no pequeno Fiat usado. Michael recostou-se e tentou descontrair-se.
Sabia que ficar agitado só iria piorar as coisas. O Cairo era como um nó com
truque, que quanto mais se tentava desatar mais apertado ficava. O taxista partiu
do princípio de que Michael era um egípcio rico de regresso de umas férias em
Roma e tagarelou sobre como as coisas tinham ficado más. Envergava a túnica
modesta e a barba desalinhada de um islâmico devoto. A rua estava obstruída com
todos os tipos concebíveis de meios de transporte: carros, ônibus e camiões a
vomitarem fumo pelos escapes, carroças puxadas por burros, bicicletas e peões.
Um rapaz magricela espetou com uma galinha viva no rosto de Michael e
perguntou se a queria comprar. O taxista gritou-lhe que se fosse embora. Uma
imagem colossal do presidente egípcio sorria com benevolência de um painel
publicitário à beira da estrada.
─ Não estaria rindo se estivesse preso neste trânsito com a gente ─
murmurou o taxista.
Michael nunca vivera no Cairo, mas passara ali muito tempo. Exercera o
cargo de oficial de controle de um agente importante no seio da Mukhabarat, os
serviços de segurança egípcios que tudo permeiam. O agente não queria ser
interrogado por um oficial da Estação do Cairo, sabia que a embaixada e os
residentes da CIA eram bem controlados, por isso Michael viajava até o Egipto
ocasionalmente, fingindo ser um homem de negócios, e ele próprio ouvia os
relatórios. O agente forneceu informações valiosas sobre o estado do islamismo
radical no Egipto, o aliado mais importante dos Estados Unidos no mundo árabe.
Por vezes, a informação fluía ao contrário. Quando Michael soube de um plano
para assassinar o ministro do interior egípcio, passou a informação a esse agente.
O conluio foi gorado e vários elementos da al-Gama'at Ismalyya foram presos. O
homem de Michael recebeu uma grande promoção que lhe deu acesso a melhores
informações.
O Nile Hilton encontra-se localizado na Praça Tahrir, com vista para o rio.
Em árabe, Tahrir significa libertação e Michael sempre achou que era o lugar com o
nome mais inadequado da terra. A praça imensa estava com um engarrafamento
terrível. O táxi não avançara dois centímetros em cinco minutos. O ruído das
buzinas era insuportável. Michael pagou a corrida e percorreu o resto do caminho a
pé.
Entrou no quarto, tomou uma ducha, mudou de roupa e voltou a sair. A
Mukhabarat tinha uma das operações de vigilância mais dispendiosas da terra.
Michael sabia que o telefone do quarto de certeza que estava sob escuta, ainda que
viajasse como um homem de negócios italiano, presente na cidade para uma série
de reuniões. Dirigiu-se à estação de metro da Praça Tahrir e encontrou uma cabine
telefônica. Falou baixinho para o receptor durante dois minutos, levantando a voz
uma vez para gritar por cima do troar de um comboio que entrava na estação.
Tinha duas horas para gastar. Aproveitaria o tempo. Entrou no metro seguinte, saiu
na primeira estação e voltou atrás. Caminhou. Dirigiu-se ao museu egípcio. Foi
seduzido por uma loja de turistas especializada em óleos perfumados. Os rapazes
da loja empanturraram-no com chá e. cigarros enquanto ele experimentava vários
óleos. Michael recompensou a sua hospitalidade comprando um pequeno frasco de
um óleo de sândalo abjeto, que atirou para dentro do caixote do lixo mais próximo
assim que saiu. Estava à vontade, sem ser vigiado. Fez sinal a um táxi e entrou.
O Cairo é uma cidade de elegância perdida. Outrora existiram cinemas, um
teatro de ópera e villas rodeadas de muros que derramavam música de câmara para
as noites quentes. Pouco resta, e o que sobreviveu tem a consistência de um jornal
deixado muito tempo ao sol. Muitas das villas foram abandonadas, a ópera
desapareceu e os teatros tresandam a urina. O restaurante Arabesque tem o toque
do velho Cairo, fazendo lembrar um ancião que deambula pela casa o dia inteiro de
terno e gravata.
Estava-se a meio da tarde, a altura calma entre o almoço e o jantar, e a sala
de jantar estava quase deserta. Michael teve de se esforçar para ouvir o barulho do
trânsito, tão bom era o isolamento do restaurante. Yousef Hafez estava sentado a
uma mesa de canto, longe de todas as outras pessoas. Quando Michael se
aproximou, ergueu o olhar e sorriu, fazendo brilhar duas filas de dentes perfeitos e
brancos. Tinha a aparência de uma estrela de cinema egípcia, do tipo corpulento na
casa dos cinquenta, com um cabelo farto e a ficar grisalho, que atrai mulheres mais
jovens e ultrapassa homens mais jovens. Michael sabia que isso não andava longe
da verdade.
Pediram vinho branco fresco. Hafez era muçulmano, mas achava que a
fidelidade rígida à lei islâmica era para "os malucos e os camponeses". Brindaram e
conversaram sobre os velhos tempos durante uma hora, enquanto os empregados
traziam travessa após travessa de aperitivos ao estilo libanês.
Por fim, Michael falou no assunto que ali o levara. Disse a Hafez que estava
no Cairo para tratar de um assunto pessoal. Esperava que Hafez o ajudasse por
amizade e cortesia profissional. Sob quaisquer circunstâncias poderia discutir o
assunto com o seu oficial de controle atual. Seria pago pela ajuda prestada,
diretamente do bolso de Michael.
Podes pagar-me um almoço ou outra garrafa deste vinho, mas guarda o
dinheiro. Michael fez sinal ao empregado de casaco branco para que trouxesse mais
vinho. Enquanto o empregado os servia, Hafez falou sobre uma pisga que comera
em Cannes naquele Verão. A Mukhabarat empregava dezenas de milhares de
informantes, logo era sempre possível que o empregado fosse um deles. Quando se
afastou, Hafez declarou:
─ Então, o que posso fazer por ti, meu amigo?
─ Quero falar com um homem chamado Eric Stoltenberg. É um antigo
elemento da Stasi, que vive no Cairo a trabalhar como freelancer.
─ Sei quem ele é.
─ Sabes onde encontrá-lo? ─ Para dizer a verdade, sei.
Hafez pousou o copo de vinho e fez sinal para que trouxessem a conta. O
corpo estava numa sala quente com centenas de outros, coberto por um lençol
cinzento. O macacão do funcionário estava salpicado de sangue. Hafez ajoelhou-se
ao lado do corpo e olhou para Michael, a fim de se certificar de que este estava
preparado. Michael acenou com a cabeça e Hafez afastou o lençol para trás.
Michael desviou rapidamente o olhar e teve uma ânsia de vômito, o almoço no
Arabesque a subir-lhe à garganta.
─ Onde o encontrou? ─ perguntou Michael.
─ Perto das pirâmides, na orla do deserto.
─ Deixa-me adivinhar: três tiros no rosto.
─ Exatamente ─ confirmou Hafez, acendendo um cigarro para disfarçar o
cheiro. ─ Foi visto pela última vez num clube noturno em Zamalek. Um sítio
chamado Break Point.
─ Conheço ─ disse Michael.
─ Estava dançando com uma mulher europeia: alta, loura, alemã talvez.
─ Chama-se Astrid Vogel. Foi da Facção do Exército Vermelho.
─ Foi ela quem fez isto?
─ Não, desconfio que recebeu alguma ajuda. Tem imagem de todos os
passageiros que chegam ao aeroporto de Cairo?
Hafez fez um esgar, considerando a pergunta algo divertida.
─ Importa-se que dê uma olhada?
Hafez levantou-se e disse: ─ Vamos.
Colocaram Michael numa sala com um leitor de vídeo e um monitor. Dois
funcionários entravam e saíam silenciosamente, trazendo novas cassetes numa
direção e levando as velhas noutra. Trouxeram-lhe chá, ao estilo russo, num copo
com uma pega de metal ornamentado. Trouxeram-lhe tabaco egípcio quando
acabaram os Marlboros. Trabalhou para trás no tempo, começando vinte e quatro
horas antes do assassinato. Outubro seria meticuloso. Outubro planejaria tudo
cuidadosamente.
Encontrou-a depois da meia-noite. Era alta e ereta, com o cabelo puxado
para trás, o que acentuava seu nariz comprido. As mãos grandes pareciam debater-
se com o passaporte ao entregá-lo ao funcionário da alfândega. Outubro apareceu
cinco minutos depois, baixo, com ligeireza nos pés, como um esgrimista. A pala de
um boné de basebol, puxada para a testa, obscurecia-lhe grande parte do rosto,
mas Michael conseguia ver o suficiente. Imobilizou as duas imagens e chamou
Hafez.
─ Aqui estão os teus assassinos ─ anunciou Michael, quando Hafez entrou
na sala. ─ Esta é Astrid Vogel, a alemã com quem Stoltenberg estava dançando no
clube noturno.
Hafez apontou para a segunda imagem.
─ E aquele?
Michael fitou a tela.
─ Quem me dera saber.
AMSTERDAM
Estava uma madrugada muito fria quando Delaroche e Astrid regressaram
à casa flutuante no Prisengracht. Delaroche inspecionou o barco cuidadosamente
durante vinte minutos, para se certificar de que ninguém estivera a bordo.
Verificou os detetores, revistou os armários na cozinha e as gavetas no quarto de
Astrid, percorreu o convés gelado. Astrid não lhe foi de grande ajuda. Contente
por finalmente estar a bordo do seu adorado Krista, deixou-se cair em cima da
cama vestida como estava e observava-o só com um olho, como se estivesse louco.
Delaroche sentia-se alerta e revigorado, apesar da longa viagem. Na manhã
anterior tinham apanhado um avião do Cairo para Madrid, tendo primeiro
explicado ao senhor Fahmy que iam abreviar a estadia no Hotel Imperial porque a
Sra. estava muito doente. Fahmy receava que fosse a sanita que os tivesse
afugentado (ofereceu-lhes a melhor suíte do hotel para persuadi-los a ficar), mas
Delaroche garantiu-lhe que fora a água, e não a sanita, que os obrigara a partir. Em
Madrid, tinham apanhado o comboio para Amsterdam. Delaroche passou a viagem
debruçado sobre o computador portátil como um homem de negócios, planeando o
assassinato seguinte. Astrid dormia um sono sobressaltado ao lado dele, revivendo
os últimos acontecimentos.
O canal congelara novamente e, mais uma vez, o Krista estava repleto dos
gritos alegres dos patinadores. Astrid tomou comprimidos para dormir e tapou a
cabeça com uma almofada. Delaroche sentia-se demasiado agitado para dormir,
por isso, a meio da manhã, quando o sol consumiu as nuvens, foi para a coberta de
proa e pintou, agasalhado com uma blusa grossa e luvas sem dedos. A luz era boa,
bem como o assunto (patinadores no canal, casas com empenas em pano de fundo)
e, quando terminou, pensou que era o melhor trabalho que produzira em
Amsterdam.
Tinha um curioso desejo pela aprovação de Astrid mas, quando desceu para
tentar acordá-la, ela limitou-se a resmungar que o seu nome era Eva Tebbe, uma
designer gráfica de Berlim e para que, por favor, parasse de esbofeteá-la. Deixou-a
ao início da tarde, pedalando por Amsterdam, com o computador portátil a
tiracolo. Prendeu a bicicleta junto a um centro telefônico perto do Rijksmuseum e
entrou. Dirigiu-se a uma cabine, ligou o computador e teclou durante alguns
instantes. Tinha uma mensagem de correio eletrônico. Abriu-a e na tela surgiu
uma série ininteligível de símbolos. Inseriu o nome de código e a mensagem
apareceu num texto claro.
PARABÉNS PELO SUCESSO DA SUA MISSÃO NO CAIRO. O
PAGAMENTO FOI ENVIADO PARA O NÚMERO DA SUA CONTA. TEMOS
OUTRA MISSÃO. SE ACEITAR, RECEBERÁ UM MILHÃO E MEIO DE DÓLARES,
RECEBENDO METADE COMO ADIANTAMENTO. PARA ACEITAR, DÊ ENTER.
O PAGAMENTO SERÁ AUTOMATICAMENTE ENVIADO PARA A SUA CONTA E
UM DOSSIÊ COM PORMENORES OPERACIONAIS SERÃO BAIXADOS PARA
SEU COMPUTADOR. O ARQUIVO ESTARÁ CODIFICADO, CLARO, E O SEU
NOME DE CÓDIGO IRÁ DECIFRÁ-LO. SE QUISER RECUSAR, TECLE ESCAPE.
WASHINGTON, D. C.
O primeiro dia de exílio de Michael foi terrível. Ao amanhecer, quando o
despertador tocou, correu para o chuveiro e abriu a torneira antes de se aperceber
de que não tinha sítio nenhum para onde ir. Desceu as escadas e entrou na cozinha,
fez torradas e café para Elizabeth e levou-lhos. Ela tomou o pequeno-almoço na
cama e leu o Post. Meia hora depois, Elizabeth saía pela porta principal, vestida
para ir trabalhar com as suas duas pastas e os seus dois telemóveis. Michael ficou à
janela, a acenar como um idiota, à medida que ela se afastava no Mercedes. Tudo o
que precisava para completar o quadro era de um casaco de malha e de um
cachimbo.
Acabou de ler o jornal. Tentou ler um livro mas não conseguia concentrar-
se nas páginas. Tentou aproveitar o tempo verificando todas as fechaduras e
substituindo as pilhas do sistema de alarme. Isso demorou vinte minutos. Maria, a
empregada peruana, apareceu às dez horas e perseguiu-o de divisão em divisão
com o aspirador industrial e o produto tóxico para os móveis.
─ Está um dia lindo lá fora, Señor Miguel ─ disse ela, gritando-Ihe em
espanhol sobre o troar do aspirador. Maria só falava com ele na sua língua nativa. ─
Devia sair e fazer alguma coisa, em vez de ficar enfiado em casa o dia todo. Michael
percebeu que a sua própria empregada acabava de o pôr na rua. Subiu as escadas,
vestiu roupa de treino de nylon, calçou tênis e voltou para o rés-do-chão. Maria
enfiou-lhe um pedaço de papel na mão, uma lista de produtos de limpeza que
precisava da loja. Ele meteu a lista no bolso e saiu para a Street.
Estava um dia quente para o início de Dezembro, o tipo de tarde que fazia
sempre com que Michael pensasse que não havia bairro mais bonito do que
Georgetown em qualquer lugar do mundo. O céu estava limpo, o ar fresco e suave,
perfumado com fumo de madeira. A N Street estava coberta por uma camada de
folhas outonais vermelhas e amarelas. Estalavam debaixo dos pés de Michael,
enquanto ele corria calmamente ao longo do passeio de tijolo. Num gesto reflexo,
olhou pelas janelas dos carros estacionados para ver se estava alguém lá dentro.
Uma van com o nome de uma loja de produtos de cozinha da Virgínia estava
estacionada à esquina. Mike memorizou o nome e o número de telefone.
Telefonaria mais tarde para se certificar de que o sítio era verdadeiro.
Correu encosta abaixo até a M Street e atravessou Key Bridge. O vento
soprava forte na ponte, criando pequenas ondulações na superfície do rio, lá em
baixo. Era como se fossem dois rios diferentes. À direita de Michael, um rio
selvagem estendia-se para norte. À sua esquerda, jazia a zona ribeirinha de
Washington: o complexo Harbor Place, o Watergate, o Centro Kennedy, mais
adiante. Ao chegar ao lado do rio de Virgínia, olhou por cima do ombro em busca
de algum sinal de estar a ser observado. Um homem de constituição débil com um
chapéu de basebol de Georgetown encontrava-se cem metros atrás de si.
Michael baixou a cabeça e correu mais depressa, passando por Roosevelt
Island, através da relva ao longo da George Washington Parkway. Avançou até a
Memorial Bridge e olhou por cima do ombro enquanto descia a alameda. O homem
com o chapéu de basebol ainda ali estava. Michael parou e fez alguns exercícios de
alongamento, olhando da ponte para o caminho lá em baixo. O homem de chapéu
continuou a correr para sul, ao longo do rio, em direção ao National Airport.
Michael endireitou-se e continuou a correr.
Durante os vinte minutos seguintes, viu seis homens de boné e três
homens que pensou poderem ser Outubro. Sabia que estava nervoso. Correu
velozmente durante o resto do caminho de volta a Georgetown. Parou no
Booeymongers, uma loja de sanduíches popular entre os alunos universitários e
pediu um café para levar. Bebeu-o enquanto percorria a N Street e entrou em casa.
Tomou uma ducha, mudou de roupa e saiu. Do carro, telefonou a Elizabeth para o
escritório. ─ Vou a Langley ─ disse-lhe. ─ Tenho uns assuntos domésticos para
tratar. ─ Houve alguns segundos de silêncio na linha e Michael continuou: ─ Não te
preocupes, Elizabeth, não perderia esta tarde por nada deste mundo.
─ Obrigada, Michael.
─ Até daqui a algumas horas.
Michael atravessou mais uma vez Key Bridge e virou para a George
Washington Parkway. Fizera aquele percurso milhares de vezes, mas agora, ao
dirigir-se a Langley para limpar a sua secretária, viu tudo como se fosse a primeira
vez. Havia choupos gigantes, riachos que jorravam das colinas rochosas da Virgínia,
precipícios íngremes com vista para o Potomac.
Na entrada principal, o guarda digitou a identificação de Michael, franziu o
sobrolho e disse-lhe para passar. Enquanto atravessava os corredores severamente
iluminados em direção ao CTC, Michael sentia-se como um leproso. Ninguém lhe
dirigiu a palavra, ninguém olhou para ele. Os serviços secretos não são mais do que
diques altamente organizadas. Quando um elemento contrai uma doença, os
outros permanecem afastados, não vão apanhá-la também. O curral estava
sossegado quando Michael entrou pela porta e se dirigiu à secretária. Durante uma
hora, selecionou o conteúdo das gavetas, separando o pessoal do oficial. Uma
semana antes, fora aplaudido pela sua ação em Heathrow. Agora sentia-se como
um avançado que acabara de falhar o golo decisivo. De vez em quando, aparecia
alguém que lhe punha a mão no ombro e se afastava rapidamente. Mas ninguém
falou com ele.
Quando se preparava para sair, Adrian Carter espreitou e fez sinal a
Michael para que entrasse no seu gabinete. Entregou-lhe um embrulho com uma
fita. ─ Pensava que era apenas uma suspensão a aguardar o inquérito ─ disse
Michael, aceitando o presente.
E é, mas de qualquer forma queria dar-te isto ─ respondeu Carter. Os olhos
baixos faziam-no parecer mais taciturno do que nunca. ─ Abre-o em casa. Algumas
pessoas por aqui poderiam não entender a piada.
Michael apertou-lhe a mão.
─ Obrigado por tudo, Adrian. Nos vemos por aí.
─ Pois ─ respondeu Carter. ─ E, Michael, tem cuidado com você. Michael
saiu e dirigiu-se ao carro no estacionamento.
Atirou o presente de Carter para o porta-bagagens, entrou e arrancou. Ao
passar pelos portões, interrogou-se se alguma vez voltaria.
Michael foi ter com Elizabeth ao Georgetown University Medical Center.
Deixou o Jaguar com o arrumador e foi de elevador até o consultório do médico.
Quando chegou à sala de espera não havia sinais de Elizabeth. Por um instante
receou ter faltado à consulta mas, logo em seguida, ela entrou pela porta, de pastas
na mão, e beijou-o na face.
Uma enfermeira acompanhou-os à sala de observação e deixou uma bata
em cima da mesa. Elizabeth desabotoou a blusa e a saia. Olhou para cima e viu que
Michael a fitava.
─ Fecha os olhos.
─ Na verdade, estava a pensar trancar a porta.
─ Animal.
─ Obrigado.
Elizabeth acabou de se despir, enfiou a bata e sentou-se na mesa de
observação.
Michael brincava com as saliências da máquina de sonograma.
─ Importas-te de parar com isso?
─ Desculpa, só estou um pouco nervoso.
O médico entrou na sala. A Michael fazia lembrar Carter: ensonado,
desgrenhado, uma expressão de tédio eterno no rosto. Franziu o sobrolho ao ler a
ficha de Elizabeth, como que dividido entre mahi mahi e salmão grelhado.
─ Os resultados beta estão muito bons ─ indicou. ─ Na verdade, estão um
pouco altos. Vamos dar uma vista de olhos com a eco grafia.
Levantou a bata de Elizabeth e cobriu-lhe o abdômen com um gel
lubrificante. Depois pressionou-lhe a sonda do sonograma contra a pele e começou
a movimentá-lo para a frente e para trás.
─ Aqui está ─ declarou, sorrindo pela primeira vez. ─ Senhoras e senhores,
aquilo está com muito bom aspecto.
Elizabeth estava radiante. Estendeu o braço para Michael e agarrou-lhe a
mão com força.
O médico manipulou a sonda mais um instante.
─ E aqui está um segundo saco com muito bom aspeto.
─ Valha-me Deus ─ exclamou Michael.
O médico desligou a máquina.
─ Vista-se e vá para o consultório. Temos de conversar sobre algumas
coisas. E, desde já, parabéns.
─ Pelo menos não vamos ter que comprar uma casa maior ─ disse Michael,
seguindo Elizabeth até o quarto no primeiro andar. ─ Sempre achei que uma casa
com seis quartos era grande demais só para nós dois.
─ Michael, para de falar assim. Tenho quarenta anos. Já estou para lá da
fase de risco elevado. Podem acontecer muitas coisas.
Deitou-se na cama. ─ Estou morrendo de fome.
Michael deitou-se a seu lado.
─ Não consigo tirar da cabeça sua imagem cheia de lubrificante.
Beijou-o.
─ Vai embora. Ouviu o que o médico disse. Tenho de ficar deitada e
descansar por alguns dias. Neste momento, estou na hora mais vulnerável.
Ele retribuiu o beijo. ─ Não vou discutir isso.
─ Vai lá embaixo e me faz uma sanduíche.
Michael levantou-se da cama e foi até a cozinha. Fez-lhe sanduíche de peru
e queijo suíço e serviu um copo de suco de laranja. Colocou tudo numa bandeja e
levou para ela.
─ Acho que me habituaria a isso. ─ Elizabeth mordeu o sanduíche. ─ Como
correram as coisas no trabalho hoje?
─ É óbvio que fui declarado intocável.
─ Foi assim tão ruim?
─ Pior ainda.
─ Quem te deu isso? ─ perguntou ela, apontando para o embrulho.
─ Carter.
─ Não vais abrir?
─ Achei que podia viver sem outro conjunto de canetas Cross.
─ Me dá aqui ─ pediu ela, rasgando o papel enquanto mastigava um pedaço
enorme do sanduíche. Por baixo do papel de embrulho estava uma caixa
rectangular e, dentro dela, um maço de documentos com o timbre
ULTRASSECRETO.
─ Michael, acho que é melhor dares uma vista de olhos nisto avisou
Elizabeth. Atirou-o a Michael, que folheou as páginas rapidamente.
─ O que é?
Olhou para Elizabeth. ─ É o dossiê da CIA sobre um assassino da KGB com
nome de código de Outubro.
FRONTEIRA ESTADOS UNIDOS-CANADÁ
Delaroche esperou pela luz da alvorada. Encontrara um local isolado na
floresta, bastante distante da auto-estrada a sul de Montreal, a cerca de cinco
quilômetros da fronteira. Astrid dormia a seu lado, no banco traseiro do Range
Rover., tapada com um pesado cobertor de lã, o corpo enroscado para se proteger
do frio. Implorara a Delaroche que, de vez em quando, ligasse o aquecimento, mas
ele recusou, pois queria silêncio. Tocou-lhe nas mãos enquanto ela dormia. Estavam
geladas.
Às seis e meia levantou-se, serviu-se de café de um termo e preparou uma
grande tigela de papas de aveia. Astrid surgiu dez minutos depois, envolta numa
parka e com um chapéu de lã.
─ Serve-me um pouco de café, Jean-Paul ─ pediu, segurando o mingau de
aveia e comendo o que restava.
Delaroche colocou aquilo de que necessitavam em duas pequenas mochilas.
Entregou a mais leve a Astrid e pôs a outra ao ombro. Colocou a Beretta na cintura
das calças, à frente. Revistou rapidamente o veículo de uma ponta à outra, para se
certificar de que não tinham deixado nada que pudesse identificá-los. O Range
Rover seria deixado para trás. Estaria outro à espera deles no lado americano da
fronteira.
Caminharam durante uma hora pelas arestas montanhosas acima de Lake
Champlain. Poderiam ter feito a travessia permanecendo junto à margem gelada
do lago, mas Delaroche pensava que ficariam demasiado expostos. Dois pares de
sapatos de neve tinham ficado no
Range Rover, mas Delaroche julgou ser melhor usarem apenas botas de
caminhada, uma vez que o solo jazia poucos centímetros abaixo da neve congelada.
Astrid subia e descia as encostas e atravessava o arvoredo denso com grande
esforço. Era ligeiramente desajeitada e inábil na melhor das circunstâncias. O
corpo longo era completamente inadequado aos rigores das caminhadas na
montanha em pleno Inverno. Chegou a escorregar por uma encosta abaixo e
acabou por parar de barriga para cima, com as pernas estateladas de encontro a
uma árvore. Delaroche não tinha a certeza de quando exatamente tinham deixado o
Canadá e entrado nos Estados Unidos. Não existiam quaisquer delimitações
fronteiriças, quaisquer vedações, qualquer vigilância eletrônica visível, fosse de que
espécie fosse. Quem o contratara escolhera bem o local. Delaroche recordou-se de
uma noite, há muito tempo, era ainda jovem, em que entrara no Ocidente, da
Checoslováquia para a Áustria, acompanhado por dois agentes do KGB. Lembrava-
se da noite morna, dos arcos voltaicos e do arame farpado, do fedor intenso a
estrume no ar. Lembrava-se de erguer a arma e de matar os companheiros. Naquele
momento, a caminhar pela manhã gelada do Vermont, fechou os olhos e pensou
nisso, nas primeiras mortes.
Agira segundo as ordens de Vladimir. Descrever Vladimir como sendo o
seu agente de casos seria um eufemismo. Vladimir era o seu mundo. Vladimir era
tudo para Delaroche: professor, padre, algoz, pai. Ensinou-o a ler e a escrever.
Ensinou-lhe línguas e história. Ensinou-o a ser espião e a matar. Quando chegou a
altura de ir para o Ocidente, Vladimir entregou Delaroche a Arbatov, da mesma
forma que um pai confia um filho a um familiar. A última ordem de Vladimir foi
que matasse os seus acompanhantes. Esse ato instilou algo muito importante em
Delaroche: nunca confiaria em ninguém, sobretudo em alguém do seu próprio
serviço. Quando cresceu, acabou por perceber que fora exatamente isso que
Vladimir tivera em mente.
O terreno suavizou-se à medida que desceram pela aresta. Delaroche,
utilizando um mapa e um compasso, guiou-os até os arredores de uma aldeia
chamada Highgate Springs, três quilômetros a sul da fronteira. O segundo Range
Rover esperava-os, parado junto a uns pinheiros que orlavam um campo de milho
coberto de neve. Delaroche colocou o equipamento na parte de trás e entraram no
carro. Desta vez, o motor pegou de primeira.
Delaroche conduziu cuidadosamente ao longo da estrada gelada de duas
vias. Astrid, exausta devido à caminhada, entrou de imediato num sono profundo e
sem sonhos. Quarenta minutos mais tarde, Delaroche chegou à Interstate 89 e
rumou a sul.
WASHINGTON, D. C.
─ Por que Adrian te mentiria sobre a existência do Outubro?
A pergunta de Elizabeth soava estranha a Michael. Era como uma criança a
fazer perguntas sobre sexo pela primeira vez. A nova abertura entre eles era-lhe
estranha e sentia-se constrangido a discutir assuntos da Agência com a esposa.
Mesmo assim, gostava. Elizabeth, com o seu inteleto de advogada e natureza
reservada, teria dado uma boa agente dos serviços secretos, se não tivesse optado
pela advocacia.
─ Todos os serviços secretos assentam no conceito de necessidade de saber.
Poderia dizer-se que eu não precisava de saber da existência do Outubro e, logo, tal
nunca me foi dito.
─ Mas, Michael, ele assassinou a Sarah à tua frente. Se devia ser dada
autorização a alguém para ver o que a Agência tinha sobre ele, essa pessoa serias
tu.
─ Bem visto, mas está sempre a ser escondida informação dos agentes dos
serviços secretos pelas mais variadíssimas razões.
─ A União Soviética está morta e enterrada há séculos. Por que motivo o
dossiê dele continua a ser tão restrito?
─ Nos serviços secretos, renunciamos devagar aos nossos mortos,
Elizabeth. Não há nada de que um serviço secreto mais goste do que de um bom
monte de segredos inúteis.
─ Talvez alguém quisesse que fosse confidencial.
─ Já pensei nessa possibilidade.
Michael parou em frente ao edifício do Washington Post, na 1st Street. Tom
Logan, o editor de Susanna Dayton, pedira para se encontrar com Elizabeth.
Michael tencionara esperar no carro, mas agora dizia: ─ Importa-se que vá com
você?
─ De maneira nenhuma, mas temos que correr. Estamos, atrasados.
─ Onde ficaram de se encontrar?
─ No escritório dele. Por quê?
─ Não sou grande apreciador de espaços fechados, só isso.
─ Michael, não estamos em Berlim Leste. Para com isso.
Mas Michael já tinha o celular na mão.
─ Qual é o ramal dele?
─ Cinquenta e seis oitenta e quatro.
O telefone tocou e a secretária de Logan atendeu.
─ Fala Michael Osbourne. Posso falar com o senhor Logan, por favor?
Logan atendeu.
─ Olá, Mike ─ cumprimentou. ─ Elizabeth e eu estamos aqui embaixo.
Importa-se que falemos em outro lugar?
─ Claro que não.
─ Estamos na Fifteenth Street, Jaguar metalizado.
─ Estou aí em cinco minutos.
Michael voltou a guardar o celular.
─ Qual é o problema? ─ quis saber Elizabeth.
─ Sabe aquela sensação de que alguém está te observando?
─ Claro.
─ Estou tendo neste momento. Não consigo vê-lo, mas sei que anda por aí.
─ Michael fitou o espelho retrovisor por um instante. ─ Tenho bons instintos ─
declarou, num tom de voz distante ─ e confio sempre nos meus instintos.
Cinco minutos depois, Logan saiu do edifício do Post. Era alto e calvo e o
vento assolava o contorno de cabelo grisalho demasiado comprido que lhe orlava a
cabeça. Não vestia sobretudo, apenas tinha colocado um cachecol vermelho
enrolado em volta do pescoço fino, e tinha as mãos enfiadas nos bolsos da calça
cinza de flanela amarrotada. Osbourne esticou o braço e abriu a porta traseira.
Logan entrou no carro.
─ Meu Deus, adoro o tempo nesta cidade. Vinte graus ontem e quatro hoje
─ queixou-se.
Michael carregou com força no acelerador e o Jaguar mergulhou no trânsito
intenso da baixa de Washington. Logan pôs o cinto de segurança e agarrou-se ao
apoio para o braço.
─ Qual é a sua profissão, Mike?
─ Vendo equipamento de informática a grandes clientes no estrangeiro.
─ Ah, parece interessante.
Michael virou à esquerda na M Street e acelerou em direção a oeste,
atravessando a baixa. Virou à direita em New Hampshire, contornou Dupont Circle
e voou para ocidente ao longo da Massachusetts Avenue. Circulou habilmente por
entre o trânsito e passou mais tempo a olhar para o espelho retrovisor do que para
a estrada à sua frente.
Por essa altura, Logan quase que arrancara o apoio para o braço na porta
traseira.
─ Não percebi o nome da empresa para a qual trabalha, Mike.
─ Isso é porque não lho disse. E prefiro que me chame Michael, tom.
Elizabeth virou-se e olhou demoradamente por cima do ombro.
─ Alguma coisa? ─ perguntou.
─ Se lá estava alguém, agora deixou de estar.
Michael abrandou e seguiu o ritmo do resto do trânsito. Logan soltou o
apoio para o braço e descontraiu-se.
─ Vendedor de computadores, uma ova ─ reclamou.
Nesse dia, a tarefa de vigiar Elizabeth Osbourne cabia a Henry Rodriguez,
mas interrompeu a perseguição na M Street. Michael Osbourne, um antigo agente
de campo, fora treinado para reconhecer vigilância física sofisticada. Alguém
grosseiramente disfarçado de moço de entregas de comida chinesa podia ser
localizado numa questão de minutos. Parou junto ao passeio e telefonou a Mark
Calahan, para o posto de comando em Kalorama.
─ Não há dúvidas de que ele estava a tentar despistar alguém justificou-se
Rodriguez. ─ Se tentasse não perdê-lo de vista, ia ver-me.
─ Boa jogada. Volta para Georgetown. Espera que eles apareçam.
Calahan entrou na biblioteca para dar as notícias a Mitchell Elliott. ─ O
Logan deve precisar de ajuda ─ supôs Elliott. ─ Por que motivo iria encontrar-se
com ela agora?
─ Ela está em posição de causar danos graves. Talvez devamos apertar um
pouco o cerco.
─ Concordo ─ anuiu Elliott. ─ Acho que é altura de o Henry voltar ao
trabalho. ─ Ele não vai gostar de voltar a ser porteiro. Acha que estamos a
discriminá-lo por causa da sua origem hispânica.
─ Se não gostar, ele que se queixe à comissão de igualdade de
oportunidades.
Pago-lhe bem para fazer o que lhe mandam.
Calahan sorriu.
─ Sim, senhor, senhor Elliott.
Michael encontrou um sítio para estacionar na East Capitol Street.
Desencantou um corta-vento para tom Logan no porta-bagagens e passearam pelo
Lincoln Park, sob um céu frio e plúmbeo.
─ Quanto do material original de Susanna é que leu? ─ perguntou Logan.
─ O suficiente para ficar a perceber ─ respondeu Elizabeth.
Deixe-me refrescar-lhe a memória ─ disse Logan. ─ No início dos anos 80,
Beckwith quis sair da política. Mais especificamente, Anne Beckwith queria sair da
política. Ela desejava que o marido voltasse ao setor privado, onde podia ganhar
dinheiro à séria, antes que ficasse demasiado velho. Ambos tinham algum dinheiro
da família, mas não muito. A Anne gosta de coisas boas. Desejava mais do que
aquilo que podiam comprar com o salário do governo. Ele já cumprira dois
mandatos no Senado e ela disse-lhe que era a política ou ela.
Dois corredores aproximaram-se deles por trás, cada um com um cão em
esforço na ponta da trela. Logan, como um bom homem de campo, esperou que
eles passassem antes de continuar a falar.
─ Beckwith é muitas coisas, mas é totalmente dedicado a Anne e a última
coisa que queria era perdê-la. Mas também gostava da política e não se sentia
particularmente entusiasmado com a ideia de voltar a exercer advocacia. Certa
noite, reuniu os seus conselheiros e os homens do dinheiro em São Francisco e
deu-lhes a notícia. Nem é preciso dizer que Mitchell Elliott quase teve uma
apoplexia. Ao longo dos anos, investira muito tempo e dinheiro em Beckwith e não
queria que esse investimento fosse um desperdício. Na manhã seguinte telefonou a
Anne e pediu-lhe que se encontrasse a sós com ele. Nessa noite, ao jantar, Anne
retirou tudo o que disse e encorajou Beckwith a candidatar-se a governador. Ele
ganhou, claro está, e o resto, como se diz, é história.
─ O que aconteceu durante o encontro entre Anne Beckwith e Mitchell
Elliott? ─ perguntou Michael.
─ Elliott garantiu a Anne que se o marido continuasse na política, ambos
seriam bem tratados a nível financeiro. A primeira fase era simples e, no esquema
global das coisas, foram apenas uns trocos. Elliott fez com que os seus amigos
poderosos do mundo dos negócios colocassem Anne em mais de uma dúzia de
conselhos de administração. Ganhava dinheiro como consultora, embora tivesse
pouca ou nenhuma experiência em negócios. Também investia de forma muito
assisada, desconfiamos que com a ajuda de Elliott, e ganhou bom dinheiro nos
mercados financeiros.
"No espaço de três anos, Anne conseguiu uma reserva substancial, alguns
milhões de dólares. Gastou quase todo esse dinheiro na compra de várias centenas
de hectares do que, na altura, era um deserto sem valor, a sul de San Diego. Dois
anos mais tarde, um empreiteiro anunciou tencionar construir nos terrenos de
Anne uma nova comunidade de condomínios, moradias familiares individuais, e
um centro comercial. De repente, a terra sem valor passou a valer muito dinheiro.
─ Mitchell Elliott estava por trás de tudo isso? ─ perguntou Elizabeth.
─ Achamos que sim, mas não pudemos prová-lo, logo, não pudemos
publicar. Elliott precisava de ajuda para conceber todos estes esquemas. Tinha
grandes planos para Beckwith e não queria o nome dele manchado por um
escândalo. Precisava de alguém que compreendesse Washington e, acima de tudo,
que compreendesse como enganar as leis para o financiamento das campanhas.
Assim, recorreu a um poderoso advogado de Washington.
─ Samuel Braxton ─ disse Elizabeth.
─ Exatamente ─ concordou Logan. ─ E, por fim, depois de anos de espera, o
investimento de Elliott compensou. O sistema nacional de defesa antimíssil estava
arruinado. Mas vinte e quatro horas depois do Voo Zero-Zero-Dois ter sido abatido,
Elliott estava dentro da Casa Branca para uma reunião com Beckwith. A Susanna
viu. Também viu Elliott e Vandenberg juntos mais tarde, nessa mesma noite. No
dia seguinte, ao final da tarde, Beckwith apresenta-se perante o país, anuncia
ataques contra a Espada de Gaza e propõe construir um sistema nacional de defesa
antimíssil. De repente, Capitol Hill é todo a favor da defesa antimíssil. Andrew
Sterling é encostado à parede porque declarou ser contra. Beckwith promove o
concurso e a Alatron Defense Systems de Elliott está prestes a ganhar vários
bilhões de dólares.
─ Nesse caso, por que não avançou com a história da Susanna? ─ perguntou
Michael.
─ Como já disse a sua mulher, numa história como esta revemos, em
conjunto com o repórter, cada fato, cada citação, cada pedaço de informação, antes
de o artigo ser publicado. Neste caso, a repórter morreu e tivemos de começar do
princípio, utilizando o artigo original como guia. Já conseguimos a maior parte,
mas falta uma peça fundamental do puzzle. Não sei como, a Susanna conseguiu
documentos financeiros e de bens imobiliários originais. Desconfiamos de que
tinha uma fonte na Braxton, Allworth & Kettlemen que lhe forneceu os
documentos. Já reviramos os arquivos da Susanna e não conseguimos encontrá-los.
Tentamos arranjar a nossa própria fonte na firma, mas não fomos bem sucedidos.
Logan arrepiou-se e aconchegou mais o cachecol em volta do pescoço. ─
Elizabeth, é claro que pode responder a esta pergunta da forma como entender,
mas tenho de fazer. Foi você a fonte destes documentos?
─ Não ─ respondeu Elizabeth prontamente. ─ Susanna pediu e eu disse
que não o faria. Disse que não era ético e que se soubessem que tinha sido eu
minha carreira ficaria arruinada.
Logan hesitou por um instante e depois indagou:
─ Faria isso agora?
─ Não, não faria.
─ Elizabeth, Samuel Braxton é um advogado desonesto e criminoso que
está prestes a ser recompensado com a nomeação para Secretário de Estado.
Quanto a si não sei, mas isso irrita-me e, como jornalista, gostaria de fazer alguma
coisa. Mas não posso, não sem a sua ajuda. Se está preocupada com a sua proteção,
garanto-lhe que não deixaremos que a coloquem em perigo, seja de que maneira
for. Pode confiar em mim.
─ Tom, vivi em Washington a maior parte da minha vida e aprendi uma
coisa. Nesta cidade não se pode confiar em ninguém.
Logan parou de andar e virou-se para enfrentar Michael.
─ Você não trabalha para uma empresa de informática que vende a clientes
no estrangeiro. Trabalha no Centro de Antiterrorismo da Central Intelligence
Agency. Foi o herói naquele ataque no Aeroporto de Heathrow e esteve envolvido
no atentado a bomba no ferry do Canal da Mancha. Sei que pode achar difícil de
acreditar, Michael, mas até mesmo pessoas na sua organização gostam de falar com
jornalistas. Não publicamos a informação porque não queríamos que corresse
perigo.
Logan virou-se e olhou para Elizabeth.
─ Não farei nada que possa prejudicá-la. Pode confiar em mim, Elizabeth.
BETHESDA, MARYLAND
Delaroche sentiu-se nervoso pela primeira vez quando saiu da Interstate 95
e começou a dirigir-se à Capital Beltway. Percorrera de carro algumas das mais
exigentes estradas da Europa (auto-estradas sinuosas em França e Itália, estradas
de montanha terríveis nos Alpes e nos Pirenéus), mas nada o tinha preparado para
a loucura da hora de ponta ao final da tarde em Washington. A viagem a partir de
Vermont decorrera sem incidentes. O tempo estivera bom, exceto por uma breve
tempestade de neve a norte do estado de Nova York e uns chuviscos gelados ao
longo de New Jersey Turnpike. Quanto mais viajavam para sul, mais a temperatura
subia, e a chuva parara em Filadélfia. Agora, o que Delaroche mais temia eram os
outros condutores. Carros passavam por eles a cento e quarenta quilômetros por
hora, cinquenta quilômetros acima do limite de velocidade, e o caminhão atrás
estava a dois metros do seu para-choque.
Delaroche pensou em como seria fácil ter um acidente em circunstâncias
como aquelas. Os resultados seriam desastrosos. Como era estrangeiro, a polícia
iria querer ver o seu passaporte. Se o agente estivesse atento e soubesse alguma
coisa de passaportes, notaria que o de Delaroche não continha qualquer visto de
entrada. Provavelmente seria detido e interrogado pelas autoridades de imigração e
pelo FBI. A sua identidade ruiria e ele seria preso, tudo por causa de um maluco
qualquer que tentava chegar a casa vindo do trabalho.
Os carros à sua frente travaram de repente. O trânsito parou. Delaroche
encontrou uma estação de rádio só com notícias e ouviu a atualização do trânsito.
Algures à sua frente, um atrelado tinha capotado. O trânsito estava uma confusão
ao longo de quilômetros.
Delaroche pensou na casa de Brélés. Pensou no mar a embater nas rochas e
em si próprio a pedalar na bicicleta de corrida italiana ao longo das calmas estradas
secundárias da Finistère. Devia ter estado a sonhar acordado, pois o homem no
caminhão buzinou e agitou freneticamente os braços. O condutor mudou de faixa,
colocou-se ao lado de Delaroche e fez um gesto obsceno com a mão.
─ Por favor, Jean-Paul ─ disse Astrid. ─ Deixa-me ir buscar a minha pistola
lá atrás e dar-lhe um tiro.
Trinta minutos depois aproximaram-se da cena do acidente. Um policial de
Maryland encontrava-se no meio da estrada, fazendo sinal aos carros para que
contornassem o caminhão capotado. Numa reação reflexa, Delaroche ficou tenso
na presença de um policial. Os camiões dos bombeiros e as ambulâncias
desapareceram atrás de si e o trânsito começou novamente a avançar. Delaroche
saiu na Wisconsin Avenue e rumou para sul.
Acelerou através da baixa de Bethesda, passou pelas lojas luxuosas da
Mazza Galleria, os pináculos altaneiros da Catedral Nacional. A Wisconsin Avenue
ia dar a Georgetown. Pessoas às compras movimentavam-se com rapidez através do
ar frio da noite e os bares e restaurantes começavam a encher-se. Virou à esquerda
na M Street, avançou alguns quarteirões e virou para a entrada do Four Seasons
Hotel.
Delaroche fez o registro e recusou a oferta do porteiro para o ajudar com as
malas. Fechou a porta e deixaram-se cair os dois sobre a cama, exaustos pelas duas
longas viagens de carro e pela caminhada para atravessar a fronteira. Delaroche
acordou passadas duas horas, pediu café ao serviço de quartos e sentou-se em
frente ao computador portátil. Enquanto Astrid dormia, abriu o dossiê de Michael
Osbourne e começou a planear a sua morte.
WASHINGTON, D. C.
No fim da tarde, Elizabeth telefonou para o escritório de Max Lewis.
Como se sente? ─ perguntou ele sobre os papéis. Eram cinco da tarde e
preparava-se para sair do escritório, razão pela qual Elizabeth telefonara a essa
hora.
─ Estou ótima, mas o médico diz que tenho que repousar o mais possível na
próxima semana. Na verdade, é por isso que estou telefonando. Será que esta noite,
quando for para casa, poderia me trazer alguns documentos?
─ Claro. Do que precisa?
─ Da pasta do caso McGregor. Está em cima da minha mesa.
─ Para dizer a verdade, está guardada em seu arquivo. Hoje tomei a
liberdade de arrumar sua mesa. Sinceramente, Elizabeth, não sei como você
consegue trabalhar ali. Também joguei fora todos os maços de cigarro.
─ Não se preocupe, deixei de fumar. Também acabou o Chardonnay na
banheira depois do trabalho.
─ Assim é que se fala ─ elogiou Max. ─ Estarei aí em quinze
minutos. Precisa de mais alguma coisa? Quer que vá buscar sua roupa na
lavanderia? Que vá comprar algo no Sutton Place? Dê as ordens, minha rainha.
─ Só quero que traga o arquivo McGregor. Recompenso com comida e
vinho.
─ Nesse caso, estarei aí dentro de cinco minutos.
─ Estou de papo para o ar na cama, por isso use sua chave.
─ Sim, minha rainha.
Max desligou. Michael estava numa poltrona aos pés da cama, ouvindo a
conversa no telefone sem fio. Olhou para Elizabeth e disse:
─ Fantástico.
Max demorou mais de meia hora no meio do trânsito desde o escritório da
firma na Connecticut Avenue até Georgetown. Enfiou a chave na fechadura dos
Osbourne, abriu a porta e entrou para o hall de entrada.
─ Elizabeth, sou eu ─ gritou.
─ Olá, Max, sobe. Há vinho fresco no frigorífico. Vai buscar um copo e um
saca-rolhas.
Fez o que lhe mandaram e subiu as escadas. Foi dar com Elizabeth esticada
em cima da cama, rodeada por pilhas de processos e blocos de notas. ─ Meu Deus
─ exclamou. ─ Talvez deva vir trabalhar para aqui, em vez de ir para a baixa.
─ Talvez não fosse má ideia.
Colocou os arquivos McGregor sobre a mesa-de-cabeceira e,
instintivamente, começou a endireitar papéis e a organizar as coisas dela. Michael
entrou no quarto.
─ Olá, Michael, como está? ─ cumprimentou Max.
Michael não respondeu. ─ O que há? ─ perguntou Max.
Elizabeth tocou-lhe o braço.
─ Max, temos que falar.
─ Susanna veio me procurar depois que você disse não ─ explicou Max.
Estava sentado na cadeira do quarto, as pernas estendidas em cima do pufe.
Michael abrira o vinho e Max bebeu metade da garrafa muito depressa. O choque
inicial do confronto atenuara-se e agora estava descontraído e falando à vontade. ─
Ela pediu que a ajudasse. Pensei sobre o assunto e depois concordei em fazê-lo.
─ Max, se tivesses sido apanhado, estaria despedido e provavelmente
processado. As firmas de advocacia não podem tolerar roubo e violação do
privilégio entre cliente e advogado. Deixa mal os clientes e faz com que seja muito
difícil atrair novos.
─ Estava disposto a correr o risco. Quando se está na minha posição,
Elizabeth, há a tendência de não se pensar nas coisas a longo prazo.
─ Não quero te julgar, Max, mas devia ter vindo falar comigo primeiro ─
admoestou-o Elizabeth. ─ Eu te contratei. Trabalha para mim. A firma teria caído
em cima de mim com uma tonelada de tijolos.
─ E o que me teria dito?
─ Teria dito para não fazer.
─ Foi por isso que não falei com você.
─ Por que, Max? Por que ir atrás de Braxton daquela maneira?
Max olhou para Elizabeth como se considerasse a pergunta ofensiva.
─ Por que Braxton? Porque ele é um idiota sujo e desonesto que está prestes
a tornar-se secretário de Estado. Estou surpreso por me perguntar. Já ouvi a forma
como ele fala com você nas reuniões dos sócios e ouvi a forma como ele fala de
você quando não está presente.
Hesitou um momento, olhou para Michael e disse:
─ Posso filar um? ─ Michael estendeu-lhe o maço e um isqueiro. Max fumou
por um instante e bebeu mais vinho.
─ Também é pessoal ─ admitiu, por fim. ─ Alguém disse a Braxton que eu
era seropositivo. Por trás das tuas costas, ele andava a arranjar maneira de eu ser
despedido, como uma das suas últimas ações antes de deixar a firma. Quis tornar
as suas últimas semanas ali tão lixadas que ele não teria tempo para tratar de mim,
e a Susanna deu-me a oportunidade de o fazer.
─ Onde conseguiu os documentos? ─ quis saber Michael.
─ Roubei uma das chaves do arquivo dele e fiz uma cópia. Nessa noite, fui
ao escritório com a desculpa de ter trabalho para fazer. Entrei no arquivo, peguei os
documentos e fui à casa da Susanna. Só lhe impus uma regra: ela não podia copiar
os arquivos. Fiquei em casa dela toda a noite enquanto ela trabalhava. Depois fui
para o escritório cedo e voltei a guardar os arquivos no mesmo lugar de onde tirei.
Na verdade, foi muito fácil.
─ Ainda tem a chave? ─ perguntou Elizabeth.
─ Sim, pensei em jogá-la da Memorial Bridge, mas acabei por guardá-la.
─ Ótimo.
─ Por quê?
─ Porque esta noite vamos lá buscar esses arquivos outra vez.
WASHINGTON, D. C.
Oficialmente, na Casa Branca o dia estava dado como encerrado, o que
significava que o gabinete de imprensa não esperava mais notícias nesse dia e que
o Presidente e a Primeira-dama não tinham quaisquer acontecimentos públicos,
nem tencionavam sair da residência. Contudo, às oito horas um único sedan preto
esgueirou-se pelo Portão Sul da Casa Branca e entrou no trânsito noturno da baixa
de Washington.
Anne Beckwith estava sentada sozinha no banco traseiro. Não havia
qualquer limusina presidencial à prova de bala, quaisquer veículos Chevy pretos de
perseguição suburbana, qualquer escolta policial. Apenas um motorista da Casa
Branca e um único agente dos Serviços Secretos sentado no banco do passageiro.
Durante anos, Anne evadia-se desta forma da Casa Branca pelo menos uma vez por
semana. Gostava de sair para o mundo real, como apreciava dizer. Para Anne, o
mundo real não se encontrava muito distante da opulência da Mansão Oficial.
Regra geral, fazia uma pequena viagem de carro até os enclaves abastados de
Georgetown, ou Kalorama, ou Spring Valley para tomar uma bebida e jantar com
velhos amigos ou aliados políticos importantes.
O carro dirigiu-se a norte, Connecticut Avenue acima, e virou para oeste,
para a Massachusetts, depois de deixar o trânsito intenso de Dupont Circle.
Momentos depois, virou para Califórnia Street e abrandou à porta da grande
mansão de tijolo. A porta da garagem abriu e o sedan preto deslizou em silêncio
para o seu interior.
O agente dos Serviços Secretos esperou que a porta da garagem se voltasse
a fechar antes de sair do carro. Contornou o veículo por trás e abriu a porta da
Primeira-dama. O anfitrião esperava-a quando saiu do carro. Beijou-lhe a face e
disse:
─ Olá, Mitchell, é um prazer vê-lo novamente.
Anne Beckwith não fora em busca de uma noite de conversa agradável e
boa comida. Tratava-se de negócios. Aceitou um copo de vinho mas ignorou a
bandeja de queijo e de patê que um dos autômatos de Elliott colocara sobre a mesa
de apoio entre eles.
─ Quero saber se a situação está sob controle ─ disse com frieza. ─ E, se
não estiver, quero saber o que diabo anda fazendo para que fique sob controle. ─ Se
a Susanna Dayton tivesse vivido para publicar aquele artigo, os estragos poderiam
ter sido graves. O seu assassinato lamentável deu-nos algum tempo, mas não me
parece que já estejamos seguros.
─ Assassinato lamentável ─ repetiu Anne, um tom trocista na voz. ─ Por
que o Post não publicou a história dela?
─ Porque estão tentando reconfirmar tudo o que escreveu e ainda não
conseguiram.
─ E vão conseguir?
─ Só se eu não puder evitar.
Anne Beckwith acendeu um cigarro e exalou um leve fio de fumaça por
entre os lábios tensos.
─ O que vai fazer para impedir que isso aconteça?
─ Acho que seria imprudente se Anne tomasse conhecimento de tudo isto.
─ Não me venha com besteira, Mitchell. Diga o que eu quero saber.
─ Achamos que a melhor amiga de Susanna Dayton, uma advogada
chamada Elizabeth Osbourne, está ajudando o Post.
─ Não é a filha do Douglas Cannon?
─ Sim, é.
─ Cannon odeia o Jim. Estiveram juntos nas Forças Armadas. Cannon era o
diretor e Jim o republicano responsável. No final, já mal se falavam.
Anne terminou o vinho.
─ Não vai me oferecer outro copo? Da Califórnia, não é? Meu Deus,
fazemos um vinho maravilhoso.
Elliott serviu-lhe mais vinho.
─ Mitchell, estamos juntos nisso há muito tempo. Jim e eu lhe devemos
muito. Tem sido muito generoso ao longo dos anos. Mas eu não vou permitir que
isto prejudique Jim, seja de que maneira for. Ele fez sua última campanha. Agora
não tem nada a perder, a não ser o lugar nos livros de história.
─ Compreendo.
─ Não me parece. Se isto vier a público da pior forma, usarei todo o poder e
influência que tenho para me certificar de que é o senhor quem cai. Não vou deixar
que Jim saia prejudicado e, neste momento, não quero saber de você para nada.
Fiz-me entender?
Elliott bebeu o resto do scotch. Não gostava de ouvir um sermão de Anne
Beckwith. Se não fosse a ganância e as inseguranças de Anne, Elliott nunca teria
conseguido estabelecer a sua relação financeira especial com o marido dela. Era
sempre Anne quem ditava as cartas, mesmo quando se tratava de corrupção. Fitou-
a com frieza por um instante, depois assentiu e disse: ─ Sim, Anne, fez-se entender
perfeitamente.
─ Se esta coisa explodir, Jim vai sobreviver. Mas seu projeto antimíssil vai
por água abaixo. Não será construído, ou então o contrato será concedido a uma
empresa menos controvertida. O senhor estará acabado.
─ Eu sei o que está em causa.
─ Ótimo. ─ Levantou-se e pegou o casaco.
Mitchell Elliott permaneceu sentado. ─ Só quero fazer-lhe uma pergunta,
Mitchell. As pessoas que mataram a jornalista foram as mesmas que abateram o
avião?
Elliott olhou para ela, a perplexidade estampada no rosto. ─ De que diabos
está falando?
─ Responde a uma pergunta com outra pergunta. Mau sinal. Boa noite,
querido. Oh, não se levante. Sou apenas a Primeira-Dama. Saio sozinha.
Elizabeth representou o papel de uma atarefada advogada de Washington
regressando ao escritório para trabalhar até tarde: jeans, botas de cowboy, uma
confortável blusa de algodão bege. Max Lewis vivia perto de Dupont Circle e sua
roupa diária de trabalho refletia as tendências do bairro: jeans, mocassins de
camurça preta, suéter de gola alta preta, casaco cinza-escuro. Os escritórios de
advocacia da Braxton, Allworth & Kettlemen ficavam na esquina da Connecticut
Avenue com a K Street. Michael esperou no carro. Elizabeth e Max entraram juntos
no hall, identificaram-se ao segurança e foram de elevador até o andar.
O escritório de Elizabeth ficava na extremidade norte do piso, com vista
para a Connecticut Avenue. Samuel Braxton era quem possuía o maior gabinete da
firma, uma série de salas ao longo da esquina da Connecticut Avenue com a K
Street, com uma vista magnífica da Casa Branca e do Washington Monument.
Elizabeth destrancou o seu gabinete acendeu as luzes e entrou. Falou com
Max numa voz alta e clara. Queria que tudo parecesse normal. Max colocou mais
papel na fotocopiadora e fez café. Elizabeth ouvia o zumbido distante de
aspiradores vindo de algures no piso.
Pegou nas chaves e atravessou o corredor até o gabinete de Braxton. Deu
uma batida suave, não obteve qualquer resposta e destrancou a porta com a chave
duplicada. Entrou e fechou rapidamente a porta. Retirou uma pequena lanterna da
mala e ligou-a.
Elizabeth estava no gabinete exterior, onde trabalhavam as duas secretárias
de Braxton. O arquivo estava na outra ponta, do outro lado de uma porta pesada.
Elizabeth trocou de chave e abriu a porta. Fechou-a e acendeu a luz. Max disse-lhe
onde encontrar os arquivos de Elliott e Beckwith: na parede em frente, em cima à
esquerda. Ela não chegava à prateleira de cima. As secretárias de Braxton
guardavam ali um banquinho do gênero que existe nas bibliotecas para estas
ocasiões. Levou o banco para o outro lado da sala, subiu para cima dele e começou
a inspecionar os arquivos.
Examinou a fila inteira uma vez e não encontrou nada. Começou do
princípio, obrigando-se a ir devagar mas, mais uma vez, não encontrou nada.
Experimentou ver na prateleira abaixo, mas aconteceu a mesma coisa. Nada.
Praguejou baixinho. Braxton retirara dali os arquivos. Elizabeth desceu do banco e
dirigiu-se à porta. Ouviu sons no gabinete, do outro lado da porta: uma chave a ser
enfiada numa fechadura, o clique de um interruptor, o arranhar de um carrinho de
metal. Em seguida, ouviu o estalido de uma chave a ser violentamente empurrada
para o interior da fechadura da porta que se encontrava a poucos metros dela. A
fechadura cedeu e a porta abriu.
Elizabeth observou atentamente o homem que estava à sua frente e
percebeu de imediato que algo de errado se passava. A maior parte do pessoal da
limpeza eram indivíduos da América Central de origem índia, pequenos e de pele
escura, que quase não falavam inglês. Aquele homem era alto, devia medir cerca de
um metro e oitenta, e tinha pele clara. Era evidente que o cabelo escuro fora
cortado e penteado por um profissional dispendioso. A bata era nova e não estava
suja, e as unhas encontravam-se limpas. Contudo, foi o anel na mão esquerda que
chamou a atenção de Elizabeth. Exibia as insígnias das Forças Especiais do
Exército, os Green Berets.
─ Posso ajudá-lo? ─ perguntou Elizabeth. Resolvendo tomar a iniciativa.
─ Ouvi um barulho ─ respondeu o homem num inglês de pronúncia
carregada. Elizabeth percebeu que ele estava a mentir, pois tivera muito cuidado
para não fazer barulho algum.
─ Porque não chamou a segurança? ─ ripostou ela. O homem encolheu os
ombros. ─ Pensei em vir eu próprio dar uma vista de olhos primeiro, ─ disse. ─
Sabe, apanhar um ladrão, ser um grande herói, receber uma recompensa ou assim.
Elizabeth olhou para a placa com o nome dele no macacão, e fez disso um grande
alarde.
─ É americano, Carlos?
Ele abanou a cabeça. ─ Sou do Equador.
─ Onde arranjou esse anel?
─ Na loja de penhores em Adams Morgan. Muy bonito, não acha?
─ É lindo, Carlos. Agora, se me dá licença...
Passou por ele e entrou no escritório.
─ Encontrou o procurava? ─ perguntou o homem, às costas dela.
─ Na verdade, estava apenas arrumando uma coisa.
─ Está bem. Boa noite, señora.
WASHINGTON, D. C.
Elizabeth correu para a sala de Michael e abriu a porta do armário. A pasta
estava na última prateleira, uma caixa rectangular castanha tão feia, que só poderia
ter sido criada pelo Gabinete de Serviços Técnicos da Agência. Não conseguia
chegar à prateleira, por isso empurrou a cadeira de Michael da secretária até o
armário. Empoleirou-se em cima dela e pegou na pasta.
Max estava no quarto. Elizabeth sentou-se aos pés da cama e calçou um par
de botas de camurça castanhas, de cowboy. Depois foi até o armário e vestiu um
casaco de pele, que lhe dava pelas coxas. Sem saber bem porquê, olhou para o
reflexo do seu rosto no espelho e passou os dedos pelo cabelo despenteado. Max
olhou para ela.
─ Raios partam, Elizabeth! Que diabo se está a passar? Elizabeth obrigou-se
a permanecer calma.
─ Não posso explicar tudo agora, Max, mas um homem acabou de tentar
matar o Michael enquanto ele estava a correr. O Michael acha que esse homem está
a vir para aqui e quer que saiamos já.
Max olhou para a pasta.
─ Que raio é isso?
─ Chama-se uma lança ─ respondeu ela. ─ Explico logo. Mas agora preciso
que me ajude.
─ Faço qualquer coisa, Elizabeth, sabe disso.
─ Agora ouve com atenção, Max ─ disse ela, pegando-lhe na mão. ─ Vamos
sair pela porta da frente muito devagar, muito calmamente, e vamos entrar no meu
carro.
Dois minutos depois de ter terminado o telefonema para Delaroche, Astrid
Vogel viu abrir a porta principal da casa dos Osbourne e duas figuras saíram para a
luz do sol de dezembro. A primeira era Elizabeth Osbourne (Astrid reconheceu-a
pela fotografia do dossiê de Delaroche) e a segunda era um homem branco de
estatura e constituição médias. A mulher trazia na mão uma pequena mala de
homem, o homem não levava nada consigo. Entraram para um Mercedes-Benz
classe E metalizado, a mulher no banco do passageiro, o homem ao volante, e o
motor do carro começou a funcionar.
Astrid pensou no que fazer. Delaroche dissera-lhe para esperar que ele
regressasse. Nessa altura, entrariam dentro de casa e tomariam a mulher como
refém. Não podia permitir que a mulher fugisse. Decidiu segui-los e dizer a
Delaroche para onde se dirigiam.
O Mercedes afastou-se do passeio e entrou na rua sossegada. Astrid ligou o
motor do Range Rover e seguiu-os. Ligou para Delaroche e informou-o
rapidamente dos últimos acontecimentos.
─ Ele está aqui! ─ gritou Michael no telefone.
─ Quem? ─ perguntou Adrian Carter.
─ Outubro está aqui. Acabou de tentar me matar no Mount Vernon Trail.
─ Tem certeza?
─ Adrian, que raio de pergunta é essa? Claro que tenho certeza!
─ Onde você está?
─ Rosslyn.
─ Diga o endereço. Vou enviar uma equipe para te buscar.
Michael procurou com os olhos uma placa e deu a Carter sua localização.
─ Onde está Elizabeth? Vou mandar buscá-la também.
─ Estava em casa, mas eu disse para sair de lá.
─ Por que raios fez uma coisa dessas?
─ Porque Outubro e Astrid Vogel estão juntos nisso. E provável que ela
também esteja aqui. Se eu não mandasse a Elizabeth sair, Vogel teria ido lá e a
apanharia. Tenho certeza.
─ Qual é seu plano?
Michael contou.
─ Jesus Cristo! Quem é o motorista?
─ O secretário dela. Um garoto chamado Max Lewis.
─ Raios me partam, Michael. Sabe o que Outubro vai fazer com ele quando
descobrir?
─ Cale-se, Adrian. Vem logo me buscar.
Elizabeth baixou a pala e olhou para o pequeno espelho enquanto se
dirigiam para sul, pela Wisconsin Avenue. O Range Rover preto estava ali, uma
mulher atrás do volante, a falar ao celular.
─ Estamos fugindo de quem? ─ quis saber Max.
─ Se eu te dissesse, não ia acreditar.
─ A esta altura do campeonato, acredito em qualquer coisa.
─ Ela se chama Astrid Vogel e é uma terrorista da Facção do Exército
Vermelho.
─ Deus do Céu!
─ Vire à esquerda e dirija normalmente.
Max virou à esquerda para a M Street. Na 31st Street, o sinal mudou de
verde para amarelo quando ele estava a quinze metros do cruzamento.
─ Vai ─ disse Elizabeth.
Max carregou no acelerador. O Mercedes respondeu, reduzindo uma
mudança e ganhando velocidade rapidamente. Atravessaram o cruzamento ao som
furioso das buzinas. Elizabeth olhou para o espelho e viu que o Range Rover
continuava atrás deles.
─ Merda!
─ O que queres que faça? ─ Continua a andar.
Na 28th Street, Max não teve alternativa a não ser parar num semáforo
vermelho. O Range Rover parou mesmo colado a eles. Elizabeth observou a mulher
pelo espelho da pala e Max fez o mesmo pelo espelho retrovisor. ─ com quem achas
que ela está a falar?
─ Está a conversar com o sócio.
O sócio dela também pertence à Fação do Exército Vermelho?
─ Não, é um antigo assassino do KGB, com o nome de código de Outubro.
O semáforo ficou verde. Max carregou tanto no acelerador que os pneus chiaram
sobre o asfalto.
─ Elizabeth, da próxima vez que me pedires para ir trabalhar na tua casa,
acho que vou recusar, se não te importares.
─ Cala-te e conduz, Max.
─ Para onde?
─ Para a baixa.
Max dirigiu-se para leste na L Street, com o Range Rover sempre a segui-los
como uma sombra. Elizabeth brincava com a pega da pasta. Recordou-se das
palavras de Michael. “Sai do carro e depois aciona o dispositivo. Certifique-se de
que a pasta esteja virada para cima. Ande calmamente. Faça o que fizer, não corra.”
O trânsito ia ficando mais intenso à medida em que se aproximavam da
baixa de Washington.
─ Tem certeza de que essa coisa vai funcionar? ─ perguntou Max.
─ Como quer que eu saiba?
─ Talvez esteja dentro do armário há tempo demais. Vê se tem uma data de
validade, ou algo do gênero.
Elizabeth olhou para ele e viu que estava rindo.
─ Vai correr tudo bem, Elizabeth. Não se preocupes.
Virou à direita na Connecticut Avenue. O trânsito do meio-dia era intenso,
os carros avançando a toda a velocidade pela rua larga e grandes camiões
estacionados em segunda fila em frente a lojas de luxo. Meia dúzia de carros
colocara-se entre eles e Astrid Vogel.
─ Acho que é aqui ─ indicou Elizabeth. ─ Vira à direita para a K Street. Usa
a faixa de serviço.
─ É para já.
Carregou no acelerador e virou o volante para a direita.
─ Acabaram de virar à direita para a K Street ─ disse Astrid a Delaroche. ─
Raios me partam, não consigo vê-los!
Girou o volante e descobriu o Mercedes a sair da beira para o trânsito
compacto da K Street.
Já os apanhei. Vão para oeste na K Street. Onde estás?
─ Na 23rd Street, a ir para sul. Estamos muito perto.
Astrid seguiu o Mercedes em direção a oeste, pela 20th Street e depois pela
21st Street.
─ Estou a aproximar-me, Jean-Paul. Onde estás?
─ Na M Street. Espera por mim na 23rd.
Ela atravessou a 23rd Street e parou na esquina noroeste. O Mercedes
afastou-se. Olhou para norte e viu Delaroche a pedalar a grande velocidade, as
pernas movendo-se como pistões. Parou, encostou a bicicleta num poste e entrou
no Range Rover. ─ Vai!
Elizabeth recostou-se no banco de trás de um táxi, preparando-se para a
viagem até a agência de aluguer de automóveis Hertz. A engenhoca de Michael
tinha funcionado tal como ele dissera. Max parou o carro, Elizabeth saiu e acionou
o dispositivo. Uma figura insuflou depressa, extraordinariamente real. Max afastou-
se rapidamente e Elizabeth entrou no hall do seu prédio. Sentiu-se tentada a subir
e esconder-se no gabinete, mas lembrou-se do porteiro com o penteado
dispendioso e o anel das Forças Especiais e soube que o gabinete já não era seguro.
Esperou atrás do vidro até que o Range Rover passasse, depois saiu e fez sinal ao
táxi.
O táxi deixou-a na agência Hertz. Entrou apressadamente e dirigiu-se ao
balcão.
Cinco minutos depois, um empregado trouxe um Mercury Sable cinzento
para a frente da garagem. Elizabeth entrou nele e mergulhou no trânsito da baixa.
Avançou para oeste, atravessando Washington, através de Georgetown até a
Reservoir Road. Seguiu essa estrada até a Canal Road e continuou para norte, ao
longo das margens do C&O Canal. Percorridos dezesseis quilômetros, chegou à
Beltway. Seguiu as placas rumo a norte, para Baltimore.
A mala encontrava-se ao seu lado, no banco do passageiro. Pegou no celular
e ligou para o Mercedes. Após cinco toques, uma gravação informou-a de que o
celular que estava a tentar contatar "não se encontrava disponível de momento".
Max Lewis atravessou a Key Bridge e virou para norte, para a George
Washington Parkway. Perdera o Range Rover algures em Georgetown. Olhou para a
figura sentada ao seu lado, um homem alto e bastante atraente, com cabelo escuro
e bem barbeado. Apercebeu-se de que a figura se assemelhava um pouco a Michael
Osbourne. Olhou pelo espelho retrovisor. Continuava a não haver sinais do Range
Rover. Por um instante de demência, estava realmente a divertir-se. Depois pensou
em Elizabeth e como ela se sentira assustada, e recuperou uma dose saudável de
sangue-frio. Elizabeth dissera-lhe para ir diretamente para a entrada principal da
CIA. Alguém se encontraria lá com ele e o levaria para dentro. Carregou no
acelerador e a agulha do conta-quilômetros saltou para os cento e vinte. O
Mercedes deslizava com facilidade sobre as colinas ondeadas e as curvas suaves da
alameda. O Potomac brilhava lá em baixo, ao sol brilhante de Dezembro.
Max olhou novamente para o manequim.
─ Ouça, senhor Lança, uma vez que vamos passar algum tempo juntos,
acho que esta seria uma boa oportunidade para nos ficarmos a conhecer melhor.
Chamo-me Max e, sim, sou homossexual. Espero que isso não o incomode.
Olhou para o espelho retrovisor e viu a luz azul intermitente de um carro
de polícia da Virgínia. Olhou para o conta-quilômetros e viu que estava a conduzir a
quase cento e trinta quilômetros por hora.
─ Oh, merda ─ praguejou Max, carregando com suavidade no travão e
parando num refúgio com uma bonita vista para o rio.
O policial saiu do carro e pôs o chapéu. Max baixou o vidro.
─ O senhor estava a conduzir a bem mais de cento e vinte, ali atrás ─ disse
o policial ─, provavelmente quase a cento e trinta. Posso ver a sua carta de
condução, por favor? ─ Depois reparou no boneco inflável no banco do passageiro.
─ O que é aquilo?
─ É uma história muito comprida, senhor agente.
─ A sua carta de condução, por favor.
Max apalpou os bolsos do peito do casaco. Saíra da casa dos Osbourne tão à
pressa, que se esquecera da pasta e da carteira. ─ Lamento, senhor agente, mas não
tenho a carta comigo.
─ Desligue o motor e saia do carro, por favor ─ ordenou o policial, num tom
de voz monocórdico. Nesse momento, a sua atenção foi desviada para um Range
Rover que parava no refúgio.
─ Senhor agente, o senhor vai pensar que eu estou maluco, mas é melhor
ouvir o que eu tenho a dizer.
Delaroche saiu do Range Rover e encaminhou-se para o policial. Astrid saiu
e dirigiu-se para a frente do Mercedes. O policial desapertou o coldre e tentou
agarrar na arma.
─ Volte a entrar no carro, já!
Delaroche meteu a mão debaixo da blusa de ciclista e agarrou numa Beretta
com silênciador. Levantou o braço e disparou duas vezes. O primeiro tiro atingiu o
policial no ombro, fazendo-o dar meia volta. O segundo acertou-lhe na nuca e o
homem caiu sobre o rebordo do alcatrão.
Astrid estava à frente do Mercedes, os braços esticados e uma arma nas
mãos. Olhou primeiro para o homem atrás do volante e depois para o manequim
sentado onde estivera Elizabeth Osbourne. Estava lívida de raiva. Caíra num dos
truques mais velhos que existia.
O motor foi ligado e o Mercedes meteu a primeira. Astrid disparou
calmamente três vezes através do para-brisa. O vidro estilhaçou-se e ficou
instantaneamente vermelho com sangue. O corpo caiu para a frente sobre a caixa
de direção e a tarde encheu-se com o som da buzina do carro.
Michael mantinha uma vigília tensa no gabinete de Adrian Carter, a andar
de um lado para o outro e a fumar cigarros. Carter dava tacadas em bolas de golfe
para acalmar os nervos. Um dos factótuns de Monica Tyler esperava à porta do
escritório de Carter, como se fosse um aluno de castigo. Michael fechou a porta
para poderem conversar.
─ Porque é que nunca tive autorização para ver o arquivo sobre o Outubro?
─ Porque era restrito ─ explicou Carter num tom de voz inexpressivo, a cabeça
curvada em concentração. Deu uma tacada na bola, mas falhou o alvo por quinze
centímetros. ─ Merda ─ murmurou Carter. ─ Abusei.
Porque é que era restrito?
─ Esta é uma agência de serviços secretos, Michael, não uma sala de leitura
de Ciência Cristã. Durante o tempo em que o Outubro foi um agente ativo da KGB,
provavelmente não houve necessidade de saberes da sua existência.
Carter deu outra tacada. Esta aterrou no sitio certo.
─ Porque era mantida tão em segredo a informação sobre o Outubro? ─
quis saber Michael.
─ Para proteger a identidade da fonte, creio eu. Regra geral, é esse o caso.
─ Raios partam, ele matou a Sarah Randolph mesmo à minha frente. Por
que é que alguém neste maldito lugar não me mostrou o arquivo e me ajudou a
arrumar o assunto?
─ Porque essa teria sido a coisa mais sensata a fazer. Mas a sensatez e o
trabalho de espionagem raramente andam de mãos dadas. Certamente que, a esta
altura, já aprendeste isso. ─ Como é que o conseguiste?
─ Há uns dois anos tivemos provas de que o Outubro estava a trabalhar
outra vez como freelance ─ explicou Carter. ─ O arquivo foi recuperado e posto
novamente em circulação, mas de forma muito limitada. ─ Tiveste autorização para
vê-lo? Carter aquiesceu.
─ Raios partam, Adrian! Enquanto eu andava a tentar perceber o
assassinato da Sarah com meias pistas e conjecturas, tu tinhas a resposta. Por que
não me contaste?
Carter assumiu uma expressão que dizia que, por vezes, o trabalho de
espionagem exigia mentir aos amigos.
─ Estas são as regras pelas quais vivemos, Michael. Elas protegem as
pessoas que arriscam a vida ao traírem o seu próprio país. Protegem pessoas como
tu, que trabalham infiltradas no terreno.
Então por que é que quebraste as regras agora e me deste o arquivo do
Outubro? ─ Porque, neste caso, as regras eram uma treta. Não faziam sentido. ─
Quem queria que o arquivo do Outubro permanecesse restrito? Carter agitou o
polegar para o outro lado da porta e segredou:
─ Monica Tyler.
Elizabeth finalmente telefonou e o painel de emergência fez a ligação para
o gabinete de Carter.
─ O que aconteceu? Está bem?
─ Estou ótima ─ respondeu ela. ─ Fiz tudo o que me disse. Aquela mala
funcionou na perfeição. Até se parecia um pouco com você. Agora estou no carro.
Indo para onde me disse.
Osbourne sorriu com um alívio extremo.
─ Graças a Deus ─ exclamou. ─ Já teve notícia do Max?
─ Não, ainda não. Deve estar quase chegando.
A secretária de Carter espreitou pela porta e disse que havia outra
chamada.
Carter atendeu-a numa extensão lá fora.
─ Elizabeth, estou tão orgulhoso de você. Amo tanto você! ─ disse
Osbourne.
─ Eu também te amo, Michael. Este pesadelo já terminou?
─ Ainda não, mas em breve vai terminar. Continua a dirigir. Vamos pensar
em como e quando traremos você para cá.
─ Te amo, Michael ─ repetiu ela e a ligação foi interrompida. Carter entrou
no gabinete, o rosto pálido.
─ O que se passa? ─ perguntou Michael.
─ Max Lewis e um policial da Virgínia acabaram de ser mortos na George
Washington Parkway.
Michael pousou o receptor com força.
WASHINGTON, D. C.
Delaroche atravessou Key Bridge e dirigiu-se de novo para Georgetown.
Percorreu rapidamente a M Street e virou para o acesso do Four Seasons
Hotel. Esperou dentro do Rover enquanto Astrid foi ao quarto buscar as coisas
deles. Isso deu-lhe um momento para reorganizar os pensamentos e planear o que
fazer a seguir.
O mais fácil seria abortar: pedir uma extração e sair do país antes que
fossem capturados. Delaroche estava confiante de que os tiros na alameda não
tinham sido testemunhados por ninguém. As mortes tinham demorado segundos
e, antes que outro carro passasse por ali, já se tinham vindo embora. No entanto,
tentara matar Michael Osbourne uma vez e era evidente que este sabia que ele ali
estava. O número que a esposa realizara com o boneco insuflável era prova disso.
Agora seria muito difícil cumprir os termos do seu contrato: matar Osbourne.
Contudo, Delaroche desejava continuar por duas razões. Uma era o dinheiro. Se
não conseguisse matar Osbourne, perderia três quartos de um milhão de dólares.
Delaroche queria viver os seus dias com Astrid livre de preocupações financeiras e
de segurança. Para isso seria necessário muito dinheiro: dinheiro para comprar
uma casa grande numa propriedade e sofisticados sistemas de segurança, dinheiro
para subornar os oficiais da lei locais para conseguir permanecer escondido dos
serviços de segurança do Ocidente. Também queria levar uma existência
confortável. Vivera como um monge em Brélés durante anos, impossibilitado de
gastar o dinheiro que tinha, com medo de atrair atenções.
Quando trabalhou para o KGB fora ainda pior. Arbatov obrigara-o a viver
como um indigente em Paris, sobrevivendo com o pouco dinheiro que ganhava com
os seus quadros.
A segunda razão, na verdade o motivo importante, era o orgulho. Osbourne
vencera-o no caminho ao longo do rio, derrotara Delaroche no seu próprio jogo.
Nunca tinha falhado uma missão e não desejava terminar a sua carreira com um
fracasso. Matar era a sua profissão, nascera e fora educado para tal, e o fracasso era
inaceitável. Osbourne era o primeiro alvo a ripostar com sucesso e Delaroche
atrapalhara-se. Reagira como um amador no primeiro trabalho. Sentia-se
envergonhado e zangado consigo próprio, e queria outra oportunidade. Pensou no
arquivo de Osbourne. Recordou-se de que o pai de Elizabeth Osbourne, um
senador dos Estados Unidos, tinha uma casa numa ilha isolada em Nova York.
Pensou: Se eu estivesse assustado, iria para um sítio onde me sentisse seguro. Para
um sítio longínquo. Para onde as autoridades me pudessem proporcionar a ilusão
de segurança. Sairia de Washington o mais depressa possível e iria para uma ilha
isolada.
Astrid saiu do hotel. Assim que entrou no carro, Delaroche ligou o motor.
Arrancou e estacionou por baixo de um viaduto ao longo da margem do rio.
Desligou o motor e ligou o computador portátil.
Percorreu os arquivos até encontrar o arquivo de Osbourne. Leu-o
rapidamente e encontrou a localização da casa do senador. Sim, pensou. Até o
nome era perfeito. Eles irão para lá, pois acreditam que é um local seguro. Saiu do
arquivo e clicou na base de dados, onde armazenara mapas de estradas digitais de
quase todos os países do planeta. Digitou o ponto de partida e o destino e o
software depressa lhe forneceu um itinerário: a Beltway, 1-95, a Verrazano Bridge, a
Long Island Expressway.
Voltou a ligar o motor do Range Rover e engrenou a primeira.
─ Onde vamos, Jean-Paul? ─ perguntou Astrid. Ele tocou na telado portátil.
Astrid olhou e leu.
Shelter Island. Ilha, Abrigo.
Delaroche pegou no celular, marcou o número que lhe fora dado pelas
pessoas que o tinham contratado e falou calmamente enquanto abandonava
Washington. O helicóptero aterrou no aeroporto de Atlantic City. Elizabeth
apanhara a 1-95 para norte e depois dirigira-se para a costa de Jersey. Os oficiais de
segurança do aeroporto estavam à espera quando parou na zona de devolução da
agência de aluguer de automóveis Hertz. Levaram-na sob proteção e fecharam-na
durante dez minutos numa pequena sala de detenção dentro do terminal.
Quando os rotores do helicóptero pararam, Elizabeth foi levada numa van
do aeroporto desde a sala de detenção até a pista. Chovia com intensidade. A
última coisa que lhe apetecia fazer numa noite como aquela era voar de
helicóptero. Mas queria ir para casa. Queria sentir-se segura. Queria cheirar os
lençóis familiares, ver coisas estimadas da sua infância. Durante algum tempo,
queria fingir que nada daquilo tinha acontecido.
A porta da van abriu e um golpe de chuva fria atingiu-a no rosto. Saiu e
dirigiu-se ao helicóptero. A porta abriu a ali estava Michael. Correu para os seus
braços e abraçou-o com força. Beijou-o e disse:
─ Nunca mais te vou perder de vista.
Michael não disse nada, limitando-se a abraçá-la. Por fim, ela perguntou: ─
Onde está o Max? Algures num local seguro, espero. Michael abraçou-a com mais
força. Elizabeth leu algo no seu silêncio e afastou-se, olhando para ele com os olhos
muito abertos.
─ Raios partam, Michael, responde-me! Onde está o Max? Mas ela sabia a
resposta. Não foi preciso ouvi-la.
─ Meu Deus, não! ─ gritou, batendo-lhe com os punhos no peito. ─ Outra
vez não! Meu Deus, não! Outra vez não!
─ Parece que o nosso homem arranjou uma bela confusão em Washington
─ disse o Diretor.
Não foi capaz de matar o Osbourne e no processo conseguiu matar um
secretário e um policial da Virgínia ─ declarou Mitchell Elliott. ─ Talvez a sua
reputação como o melhor assassino do mundo seja imerecida.
─ O Osbourne é um adversário de grande valor. Sempre soubemos que
seria difícil eliminá-lo.
─ Onde está o nosso homem agora?
─ Rumo a norte. Acredita que Osbourne e a esposa irão procurar segurança
na casa do Senador Cannon, em Shelter Island.
─ Bem, tem razão.
─ A sua fonte em Langley confirma isto?
─ Sim.
─ Muito bem. ─ Então toda esta história lamentável depressa chegará ao
fim. O Outubro irá terminar o que começou. Tenho uma equipe de extração a
postos. Quando ele acabar, irá contatar-me e eu tiro-o de lá. ─ O Outubro tinha
outro alvo em Washington.
─ Sim, eu sei, mas agora ele não será capaz de realizar essa tarefa. Se deseja
que esse alvo seja eliminado, creio que teremos de contratar outra pessoa para o
trabalho.
─ Acho que seria sensato. Não gosto de pontas soltas.
─ Concordo plenamente.
─ E o Outubro?
─ Alguns minutos após a sua extração, o Outubro será morto. Sabe, senhor
Elliott, eu gosto menos de pontas soltas do que o senhor.
─ Muito bem, Diretor. ─ Boa noite, senhor Elliott.
Mitchell Elliott desligou o telefone e sorriu para Monica Tyler. Ela levou a
bebida para a cama e deitou-se ao lado dele.
─ Amanhã de manhã estará tudo terminado ─ disse ele. O Osbourne terá
desaparecido e tu serás mais rica do que alguma vez imaginaste.
Monica beijou-o.
Serei rica, Mitchell, mas será que estarei viva para desfrutar dessa riqueza?
Elliott apagou a luz.
─ Ainda bem que o meu pai não está cá para ver isto ─ disse Elizabeth,
enquanto o helicóptero pousava no relvado de Cannon point. ─ Quando cá está,
gosta sempre de agir como se fosse um dos ilhéus. A última coisa que faria seria
deixar que um helicóptero aterrasse no relvado.
─ Estamos em pleno Inverno ─ respondeu Michael. ─ Ninguém vai saber.
Elizabeth olhou-o, incrédula.
─ Michael, de cada vez que alguém atropela um veado nesta ilha, o
acontecimento é publicado no jornal local. Acredita, as pessoas vão ficar a saber.
─ Eu trato do jornal ─ indicou Adrian Carter.
Os rotores do helicóptero pararam de girar. A porta abriu e os três saíram.
Charlie saiu da casa do caseiro, de lanterna na mão, os retrievers aos saltos à volta
dos tornozelos. O vento marítimo açoitava com violência as árvores nuas. Uma
águia-pesqueira guinchou e voou por cima das suas cabeças. A cinquenta metros da
costa, o Athena agarrava-se às amarras nas águas da baía sacudidas pelo vento.
─ Onde está o senador? ─ perguntou Carter enquanto percorriam a pé o
acesso de cascalho em direção à casa principal.
─ Em Londres ─ respondeu Michael. ─ Está a participar num painel de
discussão sobre a Irlanda do Norte na London School of Economics.
─ Ótimo. Menos uma pessoa com quem nos preocuparmos.
─ Não quero transformar este sítio num campo militar ─ disse Elizabeth. ─
Não tenciono fazê-lo. Vou colocar dois agentes de segurança no relvado durante
toda a noite. De manhã serão rendidos por outros dois da Estação de Nova York. A
polícia de Shelter Island concordou em vigiar os ferries de norte e de sul. Têm uma
boa descrição de Outubro e de Astrid Vogel. Foi-lhes dito que eram procurados por
se encontrarem ligados ao assassinato de duas pessoas na Virgínia, mas nada mais
que isso.
Vamos manter as coisas assim ─ afirmou Elizabeth. ─ A última coisa que
quero é que as pessoas de Shelter Island pensem que trouxemos para cá terroristas.
─ A verdade não virá ao de cima ─ garantiu Carter. ─ Entrem e vão dormir.
Liga-me para Langley de manhã, Michael. E não te preocupes, a esta hora já o
Outubro está bem longe.
Carter apertou a mão de Michael e beijou a face de Elizabeth.
─ Lamento muito o que aconteceu ao Max ─ disse. ─ Quem me dera que
pudéssemos ter feito alguma coisa.
─ Eu sei, Adrian.
Elizabeth deu meia volta e começou a andar em direção à casa. Carter olhou
para Michael.
─ Existem armas aqui? ─ perguntou
Michael abanou a cabeça. ─ O Cannon detesta armas.
Carter estendeu a Michael uma Browning automática de alta potência e
meia dúzia de carregadores de quinze munições. Depois virou-se e entrou no
helicóptero. Trinta segundos depois, este levantou de Cannon Point, virou e
desapareceu sobre a baía.
─ O Carter deu-te uma arma, não deu? ─ perguntou Elizabeth quando
Michael entrou no quarto. Estava de pé em frente a um grande guarda-roupa
escolhendo um pijama de flanela. O quarto estava escuro, salvo por um pequeno
abajur de leitura na cabeceira. Michael mostrou-lhe a Browning. Enfiou um
carregador na coronha e acionou a trava de segurança.
─ Meu Deus, detesto esse som ─ disse ela, despindo-se. Vestiu a camisa de
noite e deitou-se na cama. Michael estava de pé, junto à janela, a fumar um cigarro
e a observar a baía. A chuva batia contra o vidro. Um dos seguranças inspecionava
com uma lanterna a divisória ao longo do pontão.
Elizabeth colocou as mãos no baixo-ventre. Interrogou-se se os bebês
estariam bem. Pensou: Ouve bem, Elizabeth. Já lhes estás a chamar bebês quando
eles não passam de um aglomerado de células. O médico dissera-lhe para levar as
coisas com calma, para descansar. Não fizera nada disso. Passara o dia a fugir de
um par de terroristas, a conduzir durante horas e a voar de helicóptero no meio de
uma tempestade terrível. Pressionou as mãos com mais força contra o abdômen e
pensou: Por favor, meu Deus, faz com que eles estejam bem.
Olhou para Michael, direito como uma sentinela junto à janela.
─ Sabes, Michael, acho que tu queres mesmo que ele tente de novo.
─ Depois do que ele fez ao Max...
─ Ele também tentou te matar hoje, Michael.
─ Acredite, não me esqueci.
─ E Sarah? ─ perguntou ela.
Michael permaneceu em silêncio.
─ É saudável desejar vingança, Michael. Mas tentar conseguir vingança é
uma coisa completamente diferente. E algo perigoso. As pessoas podem se ferir.
Neste caso, elas podem morrer. Para bem de todos nós, espero que ele esteja longe
daqui.
─ Não faz parte do seu temperamento. Não faz parte do seu treino.
─ O quê?
─ Desistir. Fugir. Li o arquivo sobre ele. Provavelmente sei mais sobre ele
do que ele sabe sobre si próprio.
─ Acha que ele está por aí, Michael?
─ Eu sei que está. Só não sei onde.
NORTH HAVEN, LONG ISLAND
Delaroche saiu do Range Rover e fitou a outra margem do canal estreito em
direção a Shelter Island. Era quase meia-noite. A viagem a partir de Washington
demorara oito horas, pois Delaroche cumprira meticulosamente o limite de
velocidade durante todo o caminho. Ergueu a gola do casaco para se proteger da
chuva fria e batida pelo vento. Um ferry sulcou as águas na sua direção, dois carros
no convés, vencendo a forte corrente que atravessava Shelter Island Sound em
direção às águas abertas de Gardiners Bay. Junto ao pequeno gabinete ao ferry via-
se um veículo castanho-claro de tração às quatro rodas com marcas da polícia. Era
possível que o agente estivesse apenas a fazer rondas, ou tivesse parado para uma
chávena de café. No entanto, Delaroche duvidava que fosse esse o caso.
Desconfiava que a polícia vigiasse o ferry por Michael e Elizabeth Osbourne se
encontrarem na ilha.
Regressou ao Range Rover, entrou e afastou-se do cais ao ferry. Por duas
vezes teve de guinar para evitar pequenas manadas de veados de cauda branca.
Virou para uma pequena estrada de terra batida e cascalho que conduzia a um
conjunto de árvores. Aí, escondido, pôs os óculos de leitura e desdobrou um mapa
de estradas de larga escala de Long Island que comprara pelo caminho num posto
de gasolina. Astrid espreitou por cima do seu ombro. North Haven era um
pequeno pedaço de terra que se projetava por Shelter Island Sound adentro. A
sudeste encontrava-se o histórico porto baleeiro de Sag Harbor.
─ A polícia está a vigiar os cais dos Ferrys ─ explicou Delaroche. .─ Isso
significa que provavelmente os Osbourne estão na ilha. O Ferry Sul fecha à uma da
manhã. Os polícias irão para casa, pois vão chegar à conclusão de que não tentamos
fazer a travessia.
─ Se os ferries fecham, como é que vamos para a ilha? Delaroche apontou
para Sag Harbor no mapa.
─ Há barcos no porto e nas docas. Podemos roubar um e fazer a travessia
depois dos ferries fecharem.
─ O tempo está terrível! ─ exclamou Astrid. ─ Não é seguro andar de barco
numa noite como esta.
─ Não está assim tão mau ─ contrapôs Delaroche, retirando os óculos e
voltando a guardá-los no bolso. ─ Em Brélés esta seria considerada uma bela noite
para pescar.
Delaroche entrou em Sag Harbor e estacionou junto à marina. Saiu do
Range Rover, deixando Astrid para trás. A cidade estava silenciosa, as lojas e os
restaurantes ao longo da margem fechados. Passados cinco minutos, Delaroche
encontrou aquilo que procurava: um navio-baleeiro de oito metros com um grande
motor Johnson fora de borda. Voltou rapidamente ao Range Rover e reuniu as
coisas de que precisava: os celulares, as Berettas, a roupa à prova de água. Trancou
as portas e enfiou as chaves no bolso.
Caminharam ao longo da marina e de uma doca de madeira, escorregadia
devido à chuva. Delaroche entrou para o navio e ajudou Astrid a subir para o
convés. Havia uma ponte e bancos da popa à proa. Delaroche enfiou uma gazua na
ignição e pôs o motor a funcionar.
Saltou para a doca e soltou as amarras, depois voltou a saltar para dentro
do barco e saiu de marcha à ré. Avançou lentamente através do porto, o barco a
vibrar sob os seus pés. Vinte minutos mais tarde, entravam nas águas de Gardiners
Bay.
Cinco minutos após iniciarem a travessia, Delaroche receou que Astrid
estivesse certa. Na baía, o vento era feroz, soprando de noroeste a sessenta e cinco
quilômetros por hora, com rajadas mais fortes. A temperatura era de quatro graus,
mas a chuva e o vento faziam com que parecesse estar muito mais frio. A cabine do
navio era aberta e, no espaço de minutos, Delaroche e Astrid estavam encharcados.
As mãos de Delaroche estavam geladas ao leme, apesar das luvas. Astrid agarrou-
se ao braço dele e enterrou o rosto no seu ombro para se proteger da chuva. A noite
estava escura como breu, sem lua, sem luz das estrelas, nada por onde navegar.
Delaroche manteve as luzes apagadas para evitar ser localizado a partir de terra.
Ondas de um metro a um metro e meio fustigavam o navio a bombordo, sacudindo
o pequeno barco.
Delaroche aproximou-se até se encontrar a duzentos metros da costa e
seguiu para norte. As águas acalmaram-se ligeiramente. A bombordo, podia
distinguir os contornos muito tênues de árvores e de terra. Pelos mapas que tinha,
Delaroche sabia que era Mashomack Preserve, uma reserva natural gigantesca.
Continuou em direção a norte, passando por Sachem's Neck e Gibson's
Beach. Quase encalhou em Nichols Point, por isso corrigiu a rota em alguns graus e
afastou-se mais da costa. Passados alguns minutos, avistou Reel Point, um fino
dedo de terra na entrada de Coecles Harbor. Sabia que estava a aproximar-se.
Contornaram Ram Head e dirigiram o navio para noroeste, em direção a Cornelius
Point. A mudança de rumo colocou-os diretamente no caminho do vento.
Abrandaram a velocidade, avançando muito devagar à medida que as ondas iam
ficando cada vez maiores. O navio-baleeiro elevava-se em direção ao céu de cada
vez que uma onda passava por debaixo do casco. Em seguida, a proa caía
violentamente no intervalo entre as duas ondas e a água do mar açoitava os bancos.
De uma vez Astrid desequilibrou-se e caiu para a frente, para cima do painel de
instrumentos. Voltou a pôr-se de pé, com sangue na testa.
A partir de bombordo, Delaroche conseguia distinguir Cornelius Point: um
promontório rochoso, a vaga silhueta de uma grande casa de Verão. Contornou o
cabo e virou alguns graus para bombordo. De estibordo, podia ver as luzes de
Greenport, indistintas devido à névoa marítima e à chuva. Alguns momentos mais
tarde, passou por Hay Beach Point. Delaroche virou para sudoeste e avançou ao
longo de Hay Beach durante cerca de um quarto de milha. Depois virou
bruscamente para bombordo e reduziu a potência, dirigindo-se para a linha da
costa.
Cannon Point encontrava-se cerca de cem metros mais abaixo. Delaroche
sabia que podia aproximar-se da costa num silêncio virtual, pois os ventos fortes
levariam todos os sons na direção oposta. Desligou o motor e ergueu a hélice.
Alguns segundos mais tarde, o barco encalhou num baixio a alguns metros da
praia.
Delaroche saltou para a água gelada que lhe dava pelos joelhos e patinhou
para terra. Arregaçou a manga do casaco e olhou para o mostrador luminoso do
relógio. Eram apenas duas horas. O navio fizera a viagem de Sag Harbor em cerca
de noventa minutos mas, enquanto atava a bolina à pernada de uma árvore caída,
Delaroche sentia-se como se tivesse estado atrás do leme a combater o mar durante
metade da noite. Regressou ao navio, pegou na mochila e ajudou Astrid a descer
para a água. Na praia, abriu a mochila, retirou do seu interior as Berettas com
silenciador e entregou-lhe uma.
A chuva fustigava-os enquanto Delaroche procurava orientar-se. A praia
conduzia diretamente a Cannon Point. Era rochosa e estreita, apenas com alguns
metros de largura em certas zonas. Para lá da marca de maré-alta agigantava-se
uma falésia íngreme, com cerca de seis metros de altura, repleta de um
emaranhado de arbustos e erva.
Delaroche puxou a culatra da Beretta, introduzindo a primeira bala na
câmara. Astrid fez a mesma coisa. Em seguida, pegou-lhe na mão e conduziu-a pela
praia, em direção à casa.
Matt Cooper e Scott Jacobs tinham ambos trabalhado na segurança da CIA
durante quase vinte anos. O seu sedan do governo encontrava-se estacionado
mesmo junto ao portão, do lado de dentro do complexo em Shore Road. Faziam
turnos para percorrer o perímetro dos terrenos a cada meia hora. Matt Cooper
estava encarregue da ronda das duas da manhã.
Delaroche e Astrid deitaram-se na falésia olhando de cima para a água,
escondidos atrás dos arbustos espessos e espinhosos. Delaroche assimilou a
disposição do complexo: a grande casa principal perto da água, dois anexos para
convidados, uma garagem separada para três carros. Viam-se luzes no interior da
casa principal e num dos anexos. Delaroche partiu do princípio de que os
Osbourne estavam dentro da casa principal e que o agente de segurança ou um
caseiro estava no anexo. Analisou a disposição dos terrenos: um relvado plano e
bem cuidado salpicado de árvores altas, um acesso de cascalho que ia dos edifícios
até o portão de entrada. Mesmo junto a este, Delaroche avistou os contornos de um
sedan.
O agente de segurança apareceu alguns minutos depois. Trazia na mão
direita uma lanterna poderosa, movimentando-a de um lado para o outro enquanto
andava. Quando o homem se aproximou do sitio onde estavam, Delaroche pegou
com firmeza no antebraço de Astrid e levou um dedo aos lábios. A mulher
aquiesceu. Um raio de luz brilhou sobre as suas cabeças, e depois incidiu sobre o
tabique e a praia lá em baixo.
Delaroche pôs-se de pé de repente, fazendo os arbustos restolhar. O raio de
luz moveu-se freneticamente durante vários segundos antes de se deter sobre ele.
A Beretta estava sacada e apontada. Utilizando a luz como alvo, Delaroche fez
pontaria quatro ou cinco centímetros mais à direita a fim de compensar o fato de o
homem segurar a lanterna na mão direita.
Disparou rapidamente três vezes.
O segurança caiu sobre a relva encharcada.
Delaroche deslizou para a frente e ajoelhou-se ao lado do homem caído. Os
disparos tinham-no atingido no peito. Delaroche baixou-se, tentou sentir a
pulsação no pescoço e não encontrou nenhuma. Fez sinal a Astrid para que se lhe
juntasse. Caminharam ao longo da orla oriental da propriedade, mantendo-se
junto às árvores, até se encontrarem a cerca de trinta metros do portão principal e
do carro da segurança. Delaroche viu o segundo homem dentro do carro, sentado
ao volante, a água da chuva a escorrer pelos vidros das janelas. Decerto que o
homem pouco ou nada conseguia ver. Seria uma morte fácil. O desafio seria matá-
lo de uma forma silenciosa. Atravessou o relvado, passando por trás do carro, e
aproximou-se por trás, do lado do passageiro.
Cooper estava a demorar-se muito a dar sinal. Por norma, cada um dos
homens transmitia via rádio atualizações contínuas do seu progresso. Cooper
estabelecera contato a partir do anexo ocidental para convidados e das traseiras da
casa principal, mas Jacobs ainda não tivera notícias dele desde que começara a
dirigir-se para o tabique e a praia.
Jacobs pegou no rádio e tentou chamar Cooper, mas não obteve qualquer
resposta. Estava prestes a sair e ir à procura dele quando ouviu a porta do
passageiro abrir. Virou-se e disse: ─ Que diabo aconteceu?
Depois olhou para o rosto: cabelo cortado rente, pele muito pálida, duas
orelhas furadas. Jacobs nem sequer tentou pegar a arma, dizendo apenas baixinho:
─ Oh, valha-me Deus.
Delaroche ergueu a Beretta e alvejou-o no rosto três vezes. Em seguida,
esticou-se sobre o banco e retirou o rádio da mão do homem morto.
Astrid permaneceu junto às árvores. Delaroche saiu do carro e fechou a
porta com suavidade. Voltaram para trás pelo mesmo caminho, ao longo da
fronteira oriental da propriedade, mantendo-se mais uma vez sob o refúgio das
árvores. Delaroche ejetou o carregador meio gasto e inseriu um cheio.
Havia duas entradas para a casa principal, uma porta de entrada que dava
para o acesso de cascalho e um alpendre envidraçado que dava para a água.
Delaroche tencionava utilizar a entrada das traseiras.
As árvores curvaram-se sob uma rajada de vento marítimo. Delaroche
aproveitou o ruído impetuoso para cobrir o som da sua aproximação. Pegou na mão
de Astrid e correu pelos campos traiçoeiros por entre as árvores.
Passaram por trás do anexo, onde se via um abajur aceso. Delaroche pensou
em entrar e matar os ocupantes, mas não tinha avistado quaisquer movimentos por
ali, não existiam sinais de alguém ter dado pela sua presença, por isso passou por
trás do anexo e começou a atravessar o relvado das traseiras.
Um cão ladrou, depois outro. Virou-se e viu um par de golden retrievers
enormes a correr na direção deles. Introduziu a primeira bala na câmara da Beretta
e fez pontaria aos cães.
Os cães acordaram Michael. Os seus olhos abriram-se e, num ápice, estava
alerta. Ouviu o primeiro cão, depois o segundo. Em seguida, ambos ficaram
silenciosos. Sentou-se na cama e pôs os pés no chão. Sobre a mesinha-de-cabeceira
estavam a Browning automática, um rádio portátil e um telefone de linha múltipla.
Pegou no rádio. ─ Fala Osbourne. Está alguém aí? Elizabeth mexeu-se.
─ Fala Osbourne. Está alguém aí? Ouvi os cães a ladrarem. O rádio crepitou
e uma voz respondeu:
─ Os cães estão bem. Não há problema. ' Osbourne pousou o rádio, pegou
no telefone e marcou o número da casa do caseiro. Deixou o telefone tocar cinco
vezes antes de voltar a pousar o receptor com força. Elizabeth sentou-se na cama.
Osbourne marcou rapidamente um número especial de emergência para
Langley. Atendeu uma voz calma.
─ Fala Osbourne. O agente de segurança em Shelter Island não está na
linha. Telefone à polícia local e envie homens para cá! Rápido!
Desligou o telefone.
─ Michael, o que se passa? ─ perguntou Elizabeth.
─ Ele está aqui ─ respondeu Osbourne. ─ Matou a equipe de segurança e
tem o rádio deles. Acabei de falar com o filho da mãe. Veste umas roupas quentes.
Despacha-te, Elizabeth.
Charlie Gibbons era o caseiro de Cannon Point há vinte anos. Nascera e
crescera em Shelter Island e os seus antepassados eram pescadores de baleias que,
três séculos antes, partiam de Greenport. Vivia apenas a cento e quarenta
quilômetros de Nova York, mas só lá estivera uma vez.
Charlie ouviu o telefone a tocar na sua casa ao atravessar o relvado de
roupão, espingarda numa mão e lanterna na outra. Avistou os cães um instante
depois e correu desajeitadamente na sua direção. Ajoelhou-se ao lado do primeiro
e viu que o pelo amarelo estava ensopado em sangue. Virou a luz da lanterna para o
segundo e viu que se encontrava nas mesmas condições. Pôs-se de pé e apontou a
lanterna ao tabique. Movimentou o raio de luz de um lado para o outro durante
alguns segundos e avistou algo azul vivo. Os seguranças traziam vestidos
impermeáveis azuis. Correu em direção ao corpo caído no chão e ajoelhou-se a seu
lado. Era o homem que se chamava Matt Cooper e era evidente que estava morto.
Tinha de acordar Mike e Elizabeth. Tinha de telefonar para a polícia de
Shelter Island. Tinha de ir buscar ajuda rapidamente. Pôs-se de pé e virou-se para
correr de regresso a casa. Uma mulher alta e loura surgiu de trás de uma árvore,
uma arma nas mãos esticadas. Viu o clarão na boca da arma mas não ouviu
qualquer som. As balas rasgaram-lhe o peito.
Sentiu uma dor excruciante e viu o fulgor de uma luz branca e brilhante.
Depois, a escuridão.
MCLEAN, VIRGÍNIA
─ A equipe de segurança está fora de combate ─ disse o agente de serviço.
─ Osbourne acredita que o Outubro está no terreno.
Adrian Carter sentou-se na cama.
─ Raios me partam!
─ Já alertamos a polícia local e está outra equipe a caminho.
─ É melhor que se despachem.
─ Sim, senhor.
─ Estou na sede daqui a cinco minutos. ─ Sim, senhor.
─ Agora ligue-me à Monica Tyler. ─ Aguarde um momento, senhor.
Michael dormira vestido. Elizabeth enfiou calças de corrida de algodão
cinza e uma blusa de lã bege. Michael calçou-se e foi buscar a Browning, o rádio e o
celular, bem como o controle do sistema de segurança da casa. O sistema
encontrava-se ativado. O alarme far-se-ia ouvir se Outubro tentasse entrar em casa.
Surgiria um número no monitor digital do controle, mostrando qual a porta ou -
janela pela qual o intruso entrara. Se Outubro tentasse forçar a entrada, Michael
saberia instantaneamente onde ele estava. Michael apagou as luzes do quarto e
conduziu Elizabeth para o corredor às escuras. Desceram as escadas até o hall de
entrada. Ali havia outro abajur aceso. Michael desligou-o rapidamente.
As escadas para a cave eram logo a seguir à cozinha enorme. Michael pegou
no braço de Elizabeth e conduziu-a através da escuridão. Abriu a porta que dava
acesso às escadas e levou-a até a cave.
Delaroche e Astrid agacharam-se junto à porta do alpendre envidraçado.
Delaroche enfiou uma faca no trinco básico e, passados alguns segundos, este
cedeu. Atravessaram cuidadosamente a varanda, contornando mobília de palhinha
almofadada e mesas baixas, até chegarem a umas portas de correr, em vidro.
Experimentou a fechadura. Estava trancada. Agachou-se e manejou a gazua no
buraco da fechadura. O mecanismo estalou. Delaroche empurrou as portas para
trás e entraram.
Na verdade, a casa possuía três entradas: a porta da frente principal, o
alpendre das traseiras e uma pequena porta para a cave no lado norte da casa,
escondida atrás de um lance de escadas em vão. Michael e Elizabeth avançaram
pelas divisões da cave até chegarem à porta.
O alarme soou na sua mão. Michael rapidamente o silenciou e reiniciou.
Outubro entrara na casa através das portas de correr, junto à sala de estar.
Segundos mais tarde, o alarme voltou a soar, e depois uma terceira vez. Dois
detectores de movimento tinham sido ativados, um na casa de jantar e outro na
sala de estar. Os detectores encontravam-se a vários metros de distância. A menos
que Outubro se estivesse a movimentar pela casa muito depressa, era improvável
que tivesse feito disparar os dois. A casa estava às escuras e não lhe era familiar.
Michael partiu do princípio de que Astrid Vogel também ali estava. Virou-se para
Elizabeth.
─ Vai para a casa de hóspedes e espera aí até que chegue a polícia ─
indicou.
─ Michael, não quero deixar-te...
─ Vai, Elizabeth ─ ordenou Michael. ─ Se queres viver, faz o que te digo.
Elizabeth assentiu.
─ A polícia chega daqui a alguns minutos. Quando chegar, corre para perto
deles. É a mim que ele quer, não a você. Compreende?
Anuiu.
─ Ótimo ─ disse Michael.
Digitou o código de desativação e abriu a porta. Elizabeth beijou-lhe a face
e começou a subir as escadas. No alto, parou e olhou em todas as direções. A noite
estava escura como breu, mal se conseguindo distinguir o contorno tênue da casa
de hóspedes com vista para o mar.
Correu pelo relvado, a chuva batida pelo vento a fustigar-lhe o rosto, até
chegar à porta da casa. Abriu a porta, entrou, depois virou-se e olhou para Michael
uma última vez.
A porta da cave fechou-se e ele desapareceu. Elizabeth fechou a porta atrás
de si e trancou-a, deixando as luzes apagadas. Depois foi até a janela e olhou na
direção do portão principal.
Foi Astrid Vogel, de pé no meio da sala de estar, quem vislumbrou algo a
mover-se pelo relvado em direção à casa de hóspedes: uma blusa de cor clara, uma
mulher, a julgar pelas passadas ligeiramente desajeitadas. ─ Jean-Paul ─ sussurrou,
apontando para o relvado. ─ A mulher.
─ Apanha-a ─ segredou Delaroche. Depois pousou uma mão sobre o braço
dela e disse: ─ Viva, Astrid. Morta não nos vale de nada. E despacha-te. Não temos
muito tempo.
Astrid esgueirou-se pelas portas de correr, atravessou o alpendre e
começou a percorrer o relvado.
Michael reativou o sistema de alarme. Encontrou uma lanterna recarregável
ligada a uma tomada, uma das muitas posicionadas por toda a casa devido às
frequentes falhas de energia da ilha. Michael acendeu a lanterna e apontou o feixe
para as paredes, movendo-o para a frente e para trás, até encontrar o quadro
elétrico. Abriu-o e iluminou-o. O interruptor principal era o maior. Puxou-o para
baixo e cortou a luz na casa inteira. O sistema de alarme funcionava a pilhas, por
isso permaneceria funcional. Pôs o alarme em modo silencioso.
Seguiu o raio de luz escadas acima e regressou à cozinha. Na parede, ao
lado do telefone, ficava uma caixa de intercomunicação para o portão principal. O
intercomunicador funcionava com o sistema telefônico e o portão possuía uma
fonte de eletricidade autônoma. Carregou num botão e foi rapidamente para junto
de uma janela da sala com vista para o relvado. Lá fora, no topo da propriedade, viu
o portão de metal a correr, abrindo-se.
A casa de hóspedes parecia um frigorífico. Elizabeth não se recordava da
última vez que alguém ali estivera. O termostato estava regulado no nível mais
baixo, para evitar que os canos rebentassem devido ao gelo. O vento açoitava o
telhado de ripas e batia de encontro às janelas que davam para Shelter Island
Sound. Algo raspou no lado da casa. Elizabeth soltou um pequeno grito e depois
percebeu que se tratava apenas do velho carvalho que trepara inúmeras vezes em
criança. Não era a casa dos hóspedes. No léxico da família Cannon, era conhecida
como a casa de Elizabeth. A casa era confortável e estava modestamente mobilada.
O chão era feito de madeira clara e, na sala de estar, mobiliário rústico encontrava-
se disposto em redor da grande janela com vista para o porto. A cozinha era
minúscula, apenas um pequeno frigorífico e um fogão com dois bicos, e o quarto
era simples. Quando era pequena, a casa era dela. Se a casa principal se encontrava
repleta com o pessoal do pai, ou com alguma delegação de um país estranho,
Elizabeth ia para ali, a fim de se esconder entre os seus haveres. Adorava a casa,
cuidava dela, passava nela noites de Verão. Fumou o primeiro charro na casa de
banho e perdeu a virgindade no quarto.
Pensou: Se eu pudesse escolher um sítio para morrer, seria aqui.
Soprou as mãos e apertou os braços em redor do corpo para se proteger do
frio. Num gesto reflexo, tocou no baixo-ventre.
Mais uma vez, pensou: Será que os bebês estão bem? Meu Deus, faz com
que estejam bem!
Foi até a janela e espreitou lá para fora. Uma mulher alta estava a correr em
direção à casa, de arma na mão. Distinguiu suficientemente o rosto dela para
perceber que era a mesma pessoa que a perseguira em Washington. Afastou-se da
janela e quase tombou sobre uma poltrona.
É a mim que ele quer, não a você.
Soube que Michael estava mentindo. Iriam usá-la para chegar a Michael,
mas também a matariam. Da mesma forma que tinham matado Max. Da mesma
forma que tinham matado Susanna.
Ouviu o raspar de botas nos degraus de madeira que levavam à porta da
frente. Ouviu o estalido metálico de Astrid Vogel a experimentar a maçaneta.
Escutou um ruído surdo quando Astrid Vogel tentou derrubar a porta com um
pontapé e invocou cada réstia do autocontrole que possuía para não gritar. Foi para
o quarto e fechou a porta. Ouviu uma série de sons abafados, três ou quatro, não
tinha a certeza, e o som de madeira a ser despedaçada: Astrid Vogel a disparar
contra a fechadura. Outro pontapé e, desta vez, a porta abriu, indo bater com
violência na parede adjacente.
E a mim que ele quer, não a ti.
E tu és um mentiroso, Michael Osbourne, pensou. Eram impiedosos e
sádicos. Com eles não haveria qualquer hipótese de argumentação nem, por certo,
de negociação.
Recuou até o canto, olhos postos na porta fechada. Meu Deus, quantas
vezes tinha estado ali? Em lindas manhãs de Verão. Em tardes frias de Outono. Os
livros nas prateleiras eram seus, bem como as roupas no armário. Até o tapete
puído aos pés da cama. Pensou na tarde em que ela e a mãe o tinham comprado
juntas, num leilão em Bridgehampton.
Pensou: Não posso deixá-la apanhar-me. Vão matar-nos aos dois.
Ouviu a mulher a atravessar a casa, o som das botas no soalho de madeira.
Ouviu o vento nas árvores, o grito das gaivotas. Deu um passo em frente e fechou a
porta com o gancho.
Esconde-te no armário, pensou. Talvez ela não procure aí.
Não sejas tonta, Elizabeth. Pensa! Depois ouviu a mulher chamá-la.
─ Sei que está aqui, Sra. Osbourne. Não quero fazer-lhe mal. Apareça, vá lá.
A voz era baixa e estranhamente agradável, com um sotaque alemão. Não
lhe dê ouvidos!
Abriu o armário e esgueirou-se lá para dentro. Deixou a porta entreaberta,
pois não conseguia suportar a ideia de estar trancada naquele espaço escuro e
minúsculo. Por fim, ouviu o silvo das sirenas, ao longe, trazido pelo vento.
Imaginou onde estariam: Winthrop Road, Manhanset Road se viessem do meio da
ilha. Fosse como fosse, Elizabeth sabia que estaria morta antes de eles chegarem.
Afastou-se da porta. Algo afiado espetou-lhe a omoplata: uma flecha, pousada
sobre a prateleira. Tateou ao longo da parede. Sabia que estava por ali algures, o
arco que o pai lhe oferecera quando fizera doze anos. Estava pendurado num
gancho na parede, ao lado de um velho conjunto de tacos de golfe.
A mulher tentou abrir a porta do quarto e descobriu que estava trancada.
Agora sabe que estou aqui dentro, pensou Elizabeth.
Foi invadida pelo pânico. Obrigou-se a respirar.
Bateu suavemente com as mãos ao longo da parede até tocar em algo frio e
duro. Elizabeth pegou no arco. Tinha um metro e sessenta e cinco de comprimento,
medida padrão. Estendeu o braço para cima e agarrou na flecha. A haste era de
alumínio com penas. Pegou na flecha entre os primeiros dois dedos da mão direita
e, com o polegar, a ranhura para o fio atrás das penas. Fizera aquilo vezes sem
conta, por isso fazê-lo na escuridão não era problema, mesmo com mãos trémulas.
A mulher deu um pontapé na porta, mas o velho gancho não cedeu.
Elizabeth fixou a flecha no fio e apertou a haste contra os dedos da mão esquerda, a
qual agarrava o arco. Puxou a flecha para trás a meio caminho e depois respirou
fundo. A corda do arco estava velha e quebradiça, podendo simplesmente estalar
quando a esticasse à tensão necessária para disparar uma flecha. Por favor, pensou
Elizabeth, dedilhando o fio. Preciso de mais um disparo seu.
Seria ela realmente capaz de fazer aquilo? Nunca matara um ser vivo,
nunca sonhara em caçar. Fosse como fosse, o pai nem sequer quereria ouvir falar
nisso. Certa vez apanhou um dos seus namorados a perseguir um veado com o arco
e a flecha dela e baniu-o da casa durante o resto do Verão.
A mulher deu um pontapé na porta. O trinco partiu-se e a porta abriu. 360
O corpo de Elizabeth ficou rígido. Sentia-se como se fosse feita de pedra.
Obrigou-se a respirar devagar. Fá-lo: pelo Michael, pensou. Fá-lo pelas crianças
dentro de ti.
Puxou a flecha para trás e empurrou a porta com o pé. Viu Astrid Vogel, à
porta, a arma nas duas mãos, perto do rosto. Astrid virou-se para o barulho
repentino e fez pontaria com os braços esticados.
Elizabeth soltou a flecha.
A ponta da seta atingiu Astrid na base da garganta a atirou-a para trás,
encostando-a à porta aberta. Elizabeth gritou. Os olhos de Astrid abriram-se muito
e os lábios apartaram-se.
De alguma forma, conseguiu permanecer com a arma nas mãos. Ergueu-a e
começou a disparar. O silênciador abafava os disparos, transformando-os num
ruído surdo. Elizabeth saltou de novo para dentro do armário. Os disparos
lascaram a porta, estilhaçaram a janela do quarto e arrancaram estuque das
paredes. Ela caiu no chão e enrolou-se numa bola.
Depois parou. O quarto ficou em silêncio à exceção do vento e dos cliques
de Astrid Vogel a tentar disparar uma arma vazia. Elizabeth pôs-se de pé, pegou
noutra flecha e saiu do armário.
Astrid ejetara o cartucho gasto e remexia no bolso do casaco à procura de
outro carregador. O sangue jorrava da ferida na garganta. Conseguiu retirar o
carregador novo do bolso.
─ Não, por favor, não faça isso ─ pediu Elizabeth. ─ Não me obrigue a
voltar a fazer a mesma coisa.
Astrid olhou para ela e depois para a flecha na garganta. O carregador caiu-
lhe das mãos. Respirou fundo duas vezes. O sangue gorgolejava-lhe na garganta.
Por fim, o seu olhar ficou inexpressivo.
Elizabeth caiu de joelhos e vomitou violentamente.
Michael, de volta à cave, podia ouvir os passos de Outubro no piso de cima,
deslocando-se cuidadosamente por entre os móveis da sala de estar. Michael sabia
que Outubro seria metódico e cuidadoso. Revistaria a casa, divisão a divisão, até
encontrar o seu alvo. Para sobreviver, Michael teria, mais uma vez, de ser mais
inteligente do que
Outubro, tal como o fora no caminho para peões, na Virgínia. Outubro
encontrava-se em território desconhecido. Michael seria capaz de andar pela casa
de olhos fechados. Utilizaria isso em seu proveito. Outubro saíra da sala de estar
para a cozinha.
─ Tenho a sua mulher, senhor Osbourne. Se aparecer agora, desarmado,
com as mãos no ar, nada de mal lhe acontecerá. Se me obrigar a persegui-lo como a
um animal, mato-a também.
Michael não respondeu, limitando-se a escutar o avanço de Outubro através
do primeiro piso da casa. . Passado um instante, Outubro disse: >
─ Também me lembro daquela noite em Londres, senhor Osbourne.
Lembro-me do som dos seus gritos junto ao rio. Ela era uma mulher linda. Deve tê-
la amado muito. Foi uma pena ter de morrer. Foi a primeira e única mulher que eu
alguma vez matei, mas não hesitarei em matar a sua mulher, caso insista neste
disparate. Entregue-se ou ela morrerá com você.
Michael sentiu a fúria crescer dentro de si. O simples fato de ouvir a voz
daquele homem passados tantos anos enchia-o de horror. Tentou reprimir o que
sentia, pois sabia que essa era exatamente a reação que Outubro estava a tentar
instigar. Se perdesse a cabeça, se agisse com emoção em vez de inteligência,
morreria. Também sabia que Outubro não tinha qualquer intenção de permitir que
Elizabeth vivesse.
─ Deve ter sofrido muito, ao perder a sua amante daquela maneira, abatida
como um cão, mesmo à frente dos seus olhos ─ continuou Outubro. ─ Ouvi dizer
que tiveram de o arrancar do campo e enviá-lo de volta à sede. Ouvi dizer que foi a
sua desgraça. Imagine só como se irá sentir se eu matar outra das suas mulheres.
Não desejará viver depois disso, garanto-lhe. Por isso entregue-se, senhor
Osbourne. Facilite-nos a vida aos dois.
Michael ouviu um grito vindo da casa de hóspedes: um grito de Elizabeth.
Parece que as coisas estão ficando interessantes lá fora, senhor Osbourne.
Pegue o telefone e ligue para a casa. Diga a sua mulher para se entregar e nada de
mal lhe acontecerá. Tem minha palavra.
Michael atravessou a divisão e apertou o botão FALAR do
intercomunicador.
Muito calmamente, disse: ─ Sua palavra nada significa para mim, Nicolai
Mikhailovich.
─ Do que é que me chamou? ─ gritou Outubro, após um momento de
hesitação.
─ Chamei-o Nicolai Mikhailovich. É o seu nome verdadeiro, ou as pessoas
maravilhosas do KGB esconderam essa informação? Nicolai Mikhailovich
Voronstov. Seu pai era o General Mikhail Voronstov, líder do Primeiro Direktorad
do KGB. Era seu filho bastardo. Sua mãe era amante dele. Quando teve idade
suficiente, seu pai entregou-o ao KGB para que ser educado. Sua mãe acabou num
gulag. Quer que continue, Nicolai Mikhailovich?
Michael soltou o botão e esperou a reação de Outubro. Ouviu uma porta
sendo aberta com um pontapé, um abajur de cerâmica despedaçando-se no chão, o
ruído surdo de uma arma com silenciador sendo descarregada. Michael estava
conseguindo perturbá-lo.
─ Seu professor foi um homem que conhecia apenas como Vladimir.
Tratava-o como a um pai. Na verdade, ele praticamente era seu pai. Com dezesseis
anos, foi infiltrado no Ocidente através da Checoslováquia. Recebeu ordens para
matar os seus acompanhantes. Um deles era uma mulher, o que faz de si um
mentiroso, bem como um assassino. Ocultou-se no Ocidente. Dez anos mais tarde,
já um homem, começou a matar. Posso nomear a maioria das suas vítimas se
quiser, Nicolai Mikhailovich.
Michael ouviu uma janela a estilhaçar-se e mais balas a cravarem-se na
parede. Ouviu um carregador vazio a cair no chão e um novo a ser colocado no
sítio.
Depois ouviu sirenas ao longe e mais um grito vindo da casa de hóspedes.
Voltou a carregar no botão do intercomunicador.
─ Quem o contratou? ─ perguntou. Mais disparos.
─ Quem o contratou, raios? Responda!
─ Não sei quem foi!
─ Está mentindo. Toda a sua vida é uma mentira.
─ Cale-se!
─ Está encurralado aqui dentro. Nunca sairá desta ilha com vida.
─ Você também não, nem sua mulher.
─ Astrid já saiu daqui há muito tempo.
─ O que será que está retardando?
─ Telefone para a casa. Diga a sua mulher para se entregar.
Michael pousou o celular e pegou o receptor do telefone. Ouviu Outubro
levantar uma extensão. O telefone tocou uma vez e Elizabeth atendeu, sem fôlego.
─ Michael! Meu Deus, ela está morta. Eu a matei. Atingi-a com uma flecha.
Michael, por Deus, não quero ficar aqui com ela. Oh, Michael, é horrível. Por favor,
não quero ficar aqui com ela.
─ Vai para o cais. Leva o barco a remo para o Alexandra. Espere até que a
polícia chegue.
─ Michael, o que é que...
─ Faça o que digo. Vai para o Alexandra! Já!
Elizabeth desligou o telefone e dirigiu-se à janela. Conhecia Michael há
mais de dez anos. Ele velejara naquele barco inúmeras vezes com o pai dela. Sabia
que se chamava Athena e não Alexandra. Era possível que se tivesse enganado
devido à pressão da situação, mas duvidava. Era intencional.
Havia um motivo. Ele queria que ela ficasse na casa, mas desejava que
Outubro pensasse que estava indo para o barco.
Observou a casa principal pela janela. Ouvia as sirenes a aproximarem-se.
Queria sair dali. Queria um cigarro para disfarçar o cheiro do sangue de
Astrid Vogel. Queria que aquele pesadelo acabasse. Segundos mais tarde, viu a
porta de correr do alpendre abrir-se e o homem chamado Outubro correr pelo
gramado em direção ao cais.
Delaroche precipitou-se para o meio das trevas. O vento açoitava as árvores
e quase o levava pelo ar. O cais estendia-se adiante, avançando pela escuridão. A
cinquenta metros da costa, o veleiro balançava nas amarras, o mastro oscilando
como um pêndulo na crista espumosa das ondas, as adriças gritando ao vento.
A voz de Michael Osbourne, distante e metálica, soava na sua cabeça como
as vozes nos alto-falantes de uma estação de trem.
Chamei-o Nicolai Mikhailovich. É o seu nome verdadeiro.
Raios me partam! pensou Delaroche. Como ele sabia?
O KGB prometera-lhe uma coisa: a sua existência no Ocidente seria tão
secreta que apenas meia dúzia de pessoas da hierarquia saberia a verdade. Tão
secreta que lhe fora permitido matar seus acompanhantes até o Ocidente naquela
noite, na Áustria. Teriam mentido? Alguém o teria traído? Teria sido Vladimir? Ou
Arbatov? Ou o traidor Drozdov? Teria Drozdov descoberto a verdade sepultada nos
arquivos no Centro de Moscou e vendido aos seus novos senhores no Ocidente?
Delaroche jurou matar Drozdov se chegasse a sair vivo de Shelter Island.
A revelação de que a CIA tinha um dossiê fez Delaroche sentir-se
fisicamente doente. Também teriam uma fotografia? Normalmente era Delaroche
que utilizava os dossiês, era Delaroche quem folheava as páginas negras da vida de
um homem até descobrir a fraqueza que acabaria por se tornar na sua desgraça.
Agora, Delaroche sabia que os seus inimigos tinham reunido um dossiê sobre a
sua vida e Osbourne utilizara-o contra ele. Chamei-lhe Nicolai Mikhailovich.
De forma reflexa, as mortes passavam por sua mente. Tentou não pensar
nelas, mas os rostos apareceram um por um, primeiro vibrantes e vivos, depois
estropiados por três buracos de bala. Hassan Mahmoud, o rapaz palestino. Colin
Yardley e Eric Stoltenberg. Sarah Randolph...
Podia ouvir os gritos de Michael Osbourne ecoando ao longo da Represa de
Chelsea.
E seu nome verdadeiro.
Certas noites, Delaroche tinha um sonho e agora esse sonho desenrolava-se
na sua imaginação. Os homens que ele matara iam confrontá-lo, armados com
automáticas com silenciador, e ele tentava pegar na sua pistola Glock, ou na
Beretta, e só encontrava pincéis. Depois tentava alcançar a sua arma de reserva e
encontrava apenas uma paleta. "Sabemos quem és", diziam eles, começando a rir.
Delaroche erguia as mãos e protegia o rosto e as balas despedaçavam-lhe a palma
das mãos e penetravam-lhe nos olhos. Delaroche sentava-se na cama e dizia a si
próprio que não passava de um sonho, era apenas um maldito e estúpido sonho.
Delaroche atravessou a correr o relvado em declive, os pés a voar sobre a
relva molhada, até que o som dos seus passos sobre o cais de madeira desfez a
imagem de pesadelo da sua própria morte. Ouviu o barco a bater contra os pilares
do cais, mas o motor estava silencioso. Alguns segundos depois, chegou ao fim do
pontão e olhou para baixo, a arma apontada para a escuridão.
O barco estava vazio.
─ Largue a arma! ─ gritou Michael sobre o barulho do vento.
─ Deite-se no cais, de barriga para baixo, e faça-o muito devagar.
Michael estava no início do cais, Outubro no fim, a quinze metros de
distância. O braço esquerdo estava pendurado ao lado do corpo, o direito, dobrado
pelo cotovelo, a arma perto do rosto. Permanecia imóvel. Pelo som das sirenes, a
polícia encontrava-se agora em Shore Road. Chegaria numa questão de segundos.
─ Largue a arma agora! ─ gritou Michael. ─ Acabou. Faça o que digo.
Outubro baixou o braço direito até este ficar hirto ao lado do corpo. A
polícia chegou ao portão principal. Michael ouviu a porta da casa de hóspedes
abrir-se. Virou-se na direção do som e avistou a blusa bege de Elizabeth, brilhando
na escuridão.
─ Fique onde está, Elizabeth ─ gritou!
Outubro agachou-se e deu meia volta. O braço ergueu-se. Michael disparou
vários tiros com a Browning, mas todos eles voaram por cima da cabeça de
Outubro. O assassino disparou três vezes através da escuridão. Um dos tiros
atingiu o alvo, rasgando o lado direito do peito de Michael.
A Browning caiu-lhe da mão e retiniu ao longo da doca. Michael caiu de
costas. Tinha o braço direito dormente e depois sentiu uma dor intensa e
excruciante no peito.
A chuva batia-lhe no rosto. Os ramos das árvores contorciam-se sob o vento
e, no seu delírio, Michael pensou que eram mãos gigantes rasgando seu corpo.
Deslizou para a inconsciência.
Viu Sarah caminhando em sua direção na Represa de Chelsea, a saia
comprida dançando sobre as botas de camurça. Viu o rosto desfeito. Ouviu a voz de
Elizabeth, chamando-o de muito longe, incompreensível.
Por fim, ela atravessou a névoa do choque.
─ Michael! Ele está vindo! Michael, por favor, meu Deus! Michael!
Michael levantou a cabeça e viu Outubro avançando lentamente na sua
direção. A Browning estava no cais, a alguns centímetros de distância. Michael
tentou alcançá-la com a mão direita, mas esta não obedecia à ordem para que se
mexesse. Rolou para o lado direito e estendeu a mão esquerda. Sentiu o metal frio
da Browning, a coronha escorregadia devido à chuva. Agarrou-a, colocou o dedo no
gatilho e disparou.
Delaroche viu o clarão na boca da arma de Osbourne. Ergueu a Beretta
quando a primeira série de disparos passaram por ele zumbindo, inofensivos, e fez
pontaria ao corpo de Osbourne, deitado de barriga para baixo. Deu mais um passo.
Queria atingi-lo no rosto. Queria vingar a morte de Astrid. Queria deixar sua
marca.
Osbourne voltou a disparar. Desta vez, uma bala rasgou a mão direita de
Delaroche, estilhaçando osso. A Beretta caiu-lhe da mão e mergulhou nas águas em
turbilhão sob o cais. Olhou para baixo e viu fragmentos de osso saindo do golpe
feio nas costas da mão.
Quis matar Osbourne com a mão boa, partir-lhe o pescoço ou apertar-lhe a
garganta, mas Osbourne ainda tinha sua arma e a polícia entrava no terreno. Deu
meia volta, correu velozmente pelo cais e saltou para o barco. Puxou o codão de
arranque quatro vezes até que o pequeno motor pegou. Desatou a amarra e dirigiu
o barco para longe do cais, em direção a Shelter Island Sound.
Cannon Point estava resplandecente de luzes. As sirenes enchiam o ar.
Acima de tudo, Delaroche ouviu uma coisa: os gritos de Elizabeth Osbourne,
implorando ao marido que não morresse.
LONDRES
─ Osbourne vai sobreviver? ─ perguntou o Diretor, a partir da biblioteca da
sua casa em St John's Wood.
─ O estado dele estabilizou esta noite ─ respondeu Mitchell Elliott. ─
Sofreu outra hemorragia por volta do meio-dia, por isso os cirurgiões tiveram de
entrar novamente em ação. Infelizmente, parece que vai sobreviver.
─ Onde está ele?
─ Oficialmente, a sua localização é secreta. A minha fonte em Langley
confirma que o Osbourne está na unidade de cuidados intensivos no Stonybrook
Hospital, em Long Island.
─ Espero que compreenda que, neste momento, o Osbourne é intocável.
Pelo menos por agora.
─ Sim, eu sei, Diretor.
─ Ele sobreviveu a dois atentados. Sob quaisquer circunstâncias haverá um
terceiro.
─ com certeza, Diretor.
─ É um adversário digno de respeito, o nosso senhor Osbourne. Tenho de
confessar que o admiro muito. Quem me dera que houvesse alguma forma de
convencê-lo a trabalhar para mim.
─ Ele é um Escoteiro, Diretor, e os Escoteiros não encaixam bem na sua
organização.
─ Acho que tem razão.
─ Qual é o estado do Outubro? ─ perguntou Elliott.
─ Receio que tenha tido uma recepção bem indelicada por parte da equipe
de extração.
─ E os adiantamentos que depositamos na conta dele, no banco suíço?
─ Desapareceu tudo, creio. Parece que Outubro transferiu o dinheiro da
conta tão rapidamente quanto entrou.
─ É uma pena.
─ Sim, mas claro que um homem da sua posição não está preocupado em
perder uns trocados aqueles.
─ Claro que não, Diretor.
─ Ainda há um alvo do qual temos de tratar.
─ Já coloquei tudo em andamento.
─ Excelente. Mas faça-o com habilidade. Há muito em jogo.
─ Será feito de forma muito habilidosa.
─ Senhor Elliott, sei que não tenho de lembrar de que, a esta altura, o seu
primeiro dever é o de proteger a Sociedade a todo o custo. Não deve fazer nada que
coloque a Sociedade em risco, seja ele qual for. Sei que posso contar com o seu
auxílio nessa questão.
─ Claro, diretor.
─ Muito bem. Foi um prazer negociar com você. Só espero que não tenha
sido tudo em vão. Será necessária toda a sua notável maestria para garantir a
sobrevivência do seu sistema de defesa antimíssil.
─ Estou confiante de que esse objetivo pode ser alcançado.
─ Ótimo. Boa noite, senhor Elliott.
─ Boa noite, Diretor.
O Diretor pousou o receptor sobre o descanso.
─ É um mentiroso fantástico ─ comentou Daphne.
Deixou o robe de seda cair-lhe dos ombros e deslizou para a cama,
deitando-se ao lado dele.
─ Receio que seja necessário, nesta linha de trabalho.
Beijou-o na boca e pressionou os seios contra o corpo dele. Depois fez
deslizar as mãos até entre as pernas dele e agarrou-o.
─ Alguma coisa, meu amor? ─ murmurou. Ele beijou-a e respondeu:
─ Talvez se você se esforçar um pouco mais, minha flor.
WASHINGTON, D. C.
Paul Vandenberg estacionou em Ohio Drive, com vista para o Washington
Channel, e desligou o motor. Viera sozinho, no seu carro privado, tal como Elliott
pedira. O encontro deveria ter lugar às dez da noite, mas Elliott estava atrasado, o
que era pouco típico da sua parte. Outro carro parou atrás de si, um veículo de
tração às quatro rodas, grande e preto, as janelas opacas pulsando ao som de rap.
Vandenberg ligou o carro e deixou-o parado enquanto esperava. O veículo de tração
às quatro rodas partiu às dez e um quarto. Cinco minutos depois, um sedan preto
parava ao seu lado e o vidro da porta traseira desceu.
Era Mark Calahan, o assistente pessoal de Mitchell Elliott.
─ O senhor Elliott pede imensas desculpas, mas tem de haver uma
mudança de local ─ informou Calahan. ─ Venha comigo e eu o levo ao carro
quando o encontro terminar.
Vandenberg saiu do carro e entrou no banco traseiro do sedan preto.
Andaram durante dez minutos: contornaram Hains Point, atravessaram a
Memorial Bridge para a Virgínia e depois seguiram para o norte, ao longo da
alameda. Calahan permaneceu sempre em silêncio. Era uma das regras de Elliott:
nada de conversas de ocasião entre seu pessoal e os clientes. Por fim, o carro entrou
num estacionamento com vista para a Roosevelt Island.
─ O senhor Elliott está a sua espera na ilha, senhor ─ declarou Calahan
educadamente. ─ Vou levá-lo até ele.
Os dois homens saíram do carro.
O motorista, Henry Rodriguez, ficou à espera ao volante. Dois minutos
depois, Rodriguez ouviu o estouro de um único tiro.
Um corredor encontrou o corpo às 7h15 da manhã seguinte. Jazia ao lado
de um banco de mármore no memorial a Theodore Roosevelt, o que os órgãos de
comunicação social consideraram adequado, uma vez que Paul Vandenberg sempre
admirara TR. A arma fora colocada na boca. Uma grande porção da parte de trás da
cabeça de Vandenberg desaparecera. A bala estava cravada no tronco de uma árvore
a dezoito metros de distância.
O bilhete de suicídio foi encontrado no bolso do peito do sobretudo de lã.
Exibia as caraterísticas de todos os bons memorandos de Vandenberg: conciso,
econômico, direto. Acabara com a própria vida, dizia o bilhete, pois sabia que o
Washington Post preparava um relato devastador de suas atividades de angariação
de fundos ao longo dos anos em proveito de James Beckwith. Vandenberg admitia
a culpa. Beckwith e Mitchell Elliott não possuíam qualquer responsabilidade.
Vandenberg planejara e executara tudo. Acabara com a própria vida, dizia o
bilhete, porque era preferível morrer com um tiro do que com um procurador
independente.
Um James Beckwith abalado apareceu na sala de imprensa da Casa Branca
ao fim da tarde, a tempo dos noticiários da noite. Declarou sentir um choque e
pesar profundos pela morte de seu assessor mais próximo. Em seguida anunciou
que o Departamento de Justiça daria início de imediato a uma investigação
minuciosa de todas as atividades de angariação de fundos de Vandenberg em prol
de Beckwith. Abandonou a sala de imprensa sem responder a perguntas e passou
uma noite sossegada com Anne nos aposentos da família da Casa Branca. Na
manhã seguinte, o Post dedicava grande parte da primeira página ao suicídio
aparente de Paul Vandenberg. A reportagem incluía longa explicação sobre a
relação financeira entre James Beckwith e Mitchell Elliott. O artigo contestava a
afirmação, patente no bilhete suicida de Vandenberg, de que ele, e só ele, fora o
arquiteto da rede complexa de acordos financeiros que, ao longo dos anos, tinham
enriquecido os Beckwith. Também implicava o advogado de Washington de
Mitchell Elliott, Samuel Braxton, o candidato de Beckwith a secretário de Estado.
O artigo tinha autoria dupla: Tom Logan e Susanna Dayton, do Washington
Post.
JANEIRO
SHELTER ISLAND, NOVA YORK
Algumas noites eram melhores do que outras. Em certas noites, Elizabeth
assistia a tudo outra vez nos seus sonhos e acordava a gritar, esfregando as mãos
para tentar tirar as manchas de sangue. Em certas noites, Michael acordava, tendo
sonhado que Outubro lhe tinha dado três tiros no rosto, em vez de um no peito. A
casa de hóspedes foi restaurada e repintada, mas Elizabeth nunca mais lá voltou.
Por vezes, Michael sentava-se na ponta do cais e espreitava as águas em torvelinho.
Por vezes, passava uma hora antes que despertasse do seu transe. Por vezes,
Elizabeth observava-o do relvado e imaginava exatamente o que ele estava a pensar.
Sobre o que aconteceu a seguir, Michael só sabia o que lia nos jornais ou via
na televisão mas, como qualquer membro dos serviços secretos, geralmente
considerava as notícias dadas pelos órgãos de comunicação social como música de
fundo irritante. Todas as manhãs, o novo caseiro ia até a drogaria em Shelter Island
Heights buscar os jornais (The New York Times, The Wall Street Journal, Newsday)
e deixava-os sobre a mesa-de-cabeceira de Michael. No dia de Ano Novo, Michael
sentia-se forte o suficiente para fazer a viagem também. Sentou-se no banco do
passageiro do seu Jaguar e, pela janela, fitou em silêncio a água e as árvores nuas
de Inverno. O interesse esmoreceu à medida que Janeiro ia passando e, por altura
do Dia da Inauguração, já deixara de ler completamente os jornais.
Beckwith suportou bem os tempos difíceis. O mérito foi atribuído à esposa,
Anne. Esta tornara-se a conselheira mais importante do Presidente desde a morte
de Paul Vandenberg. Foi capa da News week na edição da semana do Natal e, no
interior, podia ler-se um artigo esplendoroso sobre a sua perspicácia política. Anne
teria de desempenhar um papel fundamental a partir das sombras para que o
segundo mandato de Beckwith fosse bem sucedido. Segundo os mexericos de
Washington, foi Anne quem levou o Presidente a insistir numa reforma radical do
financiamento das campanhas. Com o fervor dos recém-convertidos, Beckwith
pediu a proibição de contribuições irregulares aos partidos (o "dinheiro fácil"), e
pressionou as estações de televisão a dar aos candidatos tempo de antena gratuito.
Por volta do Dia da Inauguração, a sua taxa de aprovação atingira os sessenta por
cento.
Dois dos amigos e apoiantes mais chegados de Beckwith não se saíram tão
bem. Samuel Braxton viu-se obrigado a recusar a nomeação para secretário de
Estado. Negou ter cometido qualquer crime mas afirmou não querer enlear a
política externa americana, envolvendo-se numa longa luta pelo reconhecimento,
que iria causar cisões. De acordo com os órgãos de comunicação social, foi Anne
quem tirou o tapete a Braxton.
A Alatron Defense Systems retirou-se voluntariamente do projeto nacional
de defesa antimíssil depois de Andrew Sterling, o adversário derrotado de
Beckwith e presidente do Comité das Forças Armadas do Senado, prometer levar a
cabo "o equivalente congregacional a um exame rectal" a Mitchell Elliott. O contrato
foi adjudicado a outro fabricante da Califórnia e Sterling deu o seu apoio relutante,
garantindo que o sistema receberia financiamento e seria utilizado.
Dois dias antes da tomada de posse, o FBI e a US Park Police divulgaram os
resultados da investigação sobre a morte do Chefe de Gabinete da Casa Branca,
Paul Vandenberg. Os investigadores não encontraram qualquer prova que sugerisse
que a sua morte não se ficara a dever ao suicídio. A investigação sobre os
assassinatos de Max Lewis e do agente da polícia Dale Preston não resultou em
detenções. A Polícia Metropolitana de Washington deu discretamente por
encerradas as suas investigações sobre o assassínio de
Susanna Dayton. O caso permaneceu tecnicamente aberto.
Elizabeth passava longos fins-de-semana na ilha. Trabalhava três dias por
semana a partir do gabinete de Nova York da Braxton, Allworth & Kettlemen,
enquanto, pouco a pouco, resolvia os casos pendentes e sondava outras firmas.
Graças ao seu currículo e às ligações políticas que mantinha, não lhe faltavam
propostas. A venerável firma de Nova York, Titan, Webster & Leech foi quem lhe
ofereceu mais dinheiro e, acima de tudo, maior flexibilidade. Aceitou a oferta e,
nessa mesma tarde, enviou a Samuel Braxton, por fax, a sua carta de demissão.
Michael recuperou mais depressa do que o previsto pelos médicos. A neve
caiu na primeira semana de Janeiro e o tempo ficou gelado. Contudo, na semana
seguinte, o tempo aqueceu um pouco e os médicos mandaram-no sair de casa e dar
pequenos passeios.
Nos primeiros dois dias, passeou cautelosamente por Cannon Point, o
braço direito ao peito, pois a bala de Outubro esmagara-lhe a clavícula e fraturara-
lhe a omoplata. No terceiro dia, caminhou ao vento em Shore Road, com um par de
seguranças de Adrian Carter a segui-lo lentamente. No espaço de uma semana, de
manhã ia até a aldeia a pé e regressava e, ao fim da tarde, percorria as longas praias
rochosas de Ram Island.
À noite, escrevia na biblioteca de Douglas Cannon, com vista para Dering
Harbor. Passados três dias, mostrou o primeiro esboço ao sogro. Cannon fez a
revisão com um lápis vermelho, avivando a prosa formal e burocrática de Michael,
aguçando a lógica dos argumentos e das conclusões. Quando terminou, enviou-a
de imediato a Adrian Carter, em Langley.
─ Não há nada que eu deteste mais do que Washington no Dia da
Inauguração ─ disse Carter na noite seguinte. ─ Bem que precisava de um pouco de
ar do mar e de um vinho dos Cannon. Importas-te que eu vá passar aí uns dias?
─ Durante quanto tempo é que vou ter de aturar estes palhaços? ─
perguntou Michael na tarde seguinte, enquanto andava aos solavancos pelo sexto
fainvay do Gardiners Bay Country Club, num carro de golfe. Dois agentes de
segurança da CIA, com blusões de penas a condizer, vinham num carro atrás deles,
resmungando para os rádios que traziam nas mãos. ─ Merda, falhei o buraco ─
disse Carter, parando o carro com um solavanco ao lado da bola e descendo.
Retirou um ferro número nove do saco e preparou-se para uma tacada de 140
metros para o green.
─ Vai responder minha pergunta? ─ quis saber Michael.
─ Valha-me Deus, Michael, calma. Não quando estou preparando a tacada.
Carter deu a tacada. A bola caiu no bunker esquerdo.
─ Raios me partam, Osbourne!
─ Tenha calma, Tigre. O frio aqui fora é de três graus.
Carter subiu no carro e dirigiu-se ao green.
─ Aqueles palhaços, como você os chama, estão aqui para proteger você e
sua família, Michael, e vão ficar até eu ter certeza de que sua vida já não corre
perigo.
─ Neste momento a minha vida corre perigo porque estou dentro de um
carro de golfe aberto em pleno inverno.
─ Vou te levar em casa depois das nove e depois venho jogar sozinho.
─ Você é doido.
─ Devia se dedicar ao jogo.
─ Já tenho frustração que chegue em minha vida. Consigo viver sem me
autoflagelar. Além disso, terei sorte se algum dia puder levantar um copo de
cerveja com este braço, quanto mais manejar um taco de golfe.
─ Como vai Elizabeth?
─ Tão bem quanto se pode esperar, Adrian. Matar alguém não é fácil,
mesmo em legítima defesa. O fato de ter conseguido evitar que chegasse ao
conhecimento público tornou as coisas mais fáceis para ela. Não consigo agradecer
o suficiente a você.
─ Ela é uma joia ─ afirmou Carter. ─ Sempre disse que você é o homem
mais sortudo que eu conheço. ─ O chip de Carter passou ao lado do buraco,
deixando-o com um putt de três metros. ─ Porra! ─ exclamou. ─ Está frio demais
para jogar golfe. Vamos passar a tarde em frente à lareira tomando um porre.
─ Leu? ─ perguntou Michael, enquanto Carter retirava a rolha de uma
garrafa de merlot italiano e enchia dois copos.
─ Sim, li. Das duas uma: ou jogava fora ou deixava seguir.
─ Qual delas tomou?
─ Escolhi o caminho dos covardes. Deixei seguir sem comentário.
─ Você é um fracote.
─ Chama-se subterfúgio burocrático. Salvar a pele.
─ Salvar o couro.
─ É a mesma coisa. Você podia aprender uma ou duas coisas comigo.
Normalmente anda com o couro ao léu.
─ Sou um homem de campo, Adrian. Os homens de campo são péssimos
em trabalho burocrático. Você mesmo disse muitas vezes.
─ É verdade.
─ Então como é que ficou tão bom nesse tipo de trabalho?
─ Porque queria uma vida e não podia ter uma se corresse de buraco em
buraco, tentando me lembrar do meu nome falso da semana.
─ A quem deu meu memorando?
─ A Monica Tyler, claro.
─ Deixe-me adivinhar: ela jogou fora.
─ Num instantinho.
─ Não esperava outra coisa.
─ Então por que escreveu?
─ Por achar que é verdade.
─ Acredita mesmo que Mitchell Elliott, com a ajuda de um bando secreto
de agentes vendidos, abateu aquele avião para poder construir o seu sistema de
defesa antimíssil?
Michael assentiu. ─ Sim, acredito.
─ Isso se enquadra na categoria de acusações perigosas demais... pelo
menos sem provas conclusivas. Monica reconheceu isso e eu também.
Sinceramente, o que me incomoda é por que um agente com sua experiência não
seja capaz de perceber isso.
Elizabeth bateu à porta e entrou. O senador convencera-a a sair com ele no
Athena até a baía por algumas horas. Tinha o rosto corado devido ao frio.
Colocou-se em frente à lareira e aqueceu o traseiro junto às chamas.
─ Pensei que você levaria as coisas com calma ─ disse Carter.
─ Papai é que navegou. Eu só bebi chá de ervas e tentei não morrer
congelada.
─ Está tudo bem? ─ perguntou Carter.
─ Está tudo ótimo. Os bebês estão fantásticos.
─ Meu Deus, isso é maravilhoso ─ disse, abrindo um largo sorriso no seu
rosto normalmente plácido.
─ De que estavam a falar, rapazes?
─ Assuntos de trabalho. ─ Tudo bem, vou-me embora. Fica ─ pediu
Michael.
Michael, alguns destes assuntos...
─ Ela pode ouvir a conversa em primeira-mão, ou pode ouvi-la mais tarde,
na cama. Escolhe, Adrian.
─ Fica ─ disse ele. ─ Além disso, é tão bom ter algo belo para onde olhar.
Torna-te útil, Michael, e serve-me mais um pouco de vinho. Elizabeth?
Ela abanou a cabeça.
─ Nada de álcool nem de tabaco durante algum tempo. Carter bebeu um
pouco de vinho e disse:
─ Recebemos um relatório dos serviços franceses há dois dias. Acreditam
ter descoberto a identidade falsa do Outubro. Estava a viver na costa bretã sob o
nome de Jean-Paul Delaroche. Numa aldeia chamada Brélés.
─ Meu Deus, nós estivemos lá, Michael.
─ Vivia tranquilamente numa casa de campo com vista para o Canal. Parece
que era também um pintor talentoso. Os franceses estão a manter as coisas
bastante discretas, como só os franceses são capazes de fazer. Temos um alerta
mundial em nome dele, mas até agora ninguém o viu. Também ouvimos dizer, de
uma série de fontes diferentes, que está morto.
─ Morto? Como?
─ Parece que quem o contratou para te matar não ficou satisfeito por ele ter
fracassado no cumprimento do contrato.
─ Espero que o tenham torturado primeiro ─ disse Elizabeth.
Michael olhava pela janela, em direção ao cais e à baía encrespada mais
além.
─ No que está pensando, Michael? ─ perguntou Elizabeth.
─ Gostaria apenas de ver o corpo, só isso.
─ Todos nós gostaríamos ─ respondeu Carter. ─ Mas, regra geral, estas
coisas não funcionam assim.
Terminou o vinho e estendeu o copo para que lhe servissem mais. Elizabeth
abriu outra garrafa. O senador entrou na sala, o rosto corado e o cabelo
desgrenhado. ─ Já vi que assaltaram a cave ─ disse. ─ Serve-me uma boa dose, por
favor.
─ Tenho outro assunto sério antes de ficarmos embriagados.
─ Se tem de ser ─ retorquiu Michael.
─ Monica concordou em desistir de todos os procedimentos disciplinares
contra você. Acha que são inadequados nesta altura do campeonato, tendo em
conta aquilo que tu e a Elizabeth sofreram. ─ Ah, que simpatia a da Monica.
─ Vai lá, Michael. Ela está falando sério. Ela acha que as coisas se
descontrolaram. Quer passar uma esponja em cima de tudo e seguir em frente.
Michael olhou para Elizabeth e depois novamente para Carter.
─ Diga que agradeço, mas não, obrigado ─ disse.
─ Quer que os procedimentos disciplinares avancem?
─ Não, quero sair ─ disse Michael. ─ Decidi deixar a Agência.
─ Não está falando sério...
─ Sério como nunca ─ respondeu Michael. ─ Desculpa, má escolha de
palavras. Pronto, agora podemos embebedar-nos.
Elizabeth atravessou a sala, abaixou-se e beijou os lábios de Michael.
─ Tem certeza, Michael? Não faça isso por mim.
─ Nunca tive tanta certeza de uma coisa em toda a minha vida. E não vou
fazer por você. Vou fazer por nós. ─ Depois tocou a barriga de Elizabeth. ─ E por
eles.
Ela beijou-o outra vez e disse:
─ Obrigado, Michael. Amo-te. Espero que saibas isso.
─ Eu sei ─ respondeu. ─ Se sei. Carter olhou para o relógio e exclamou: Oh,
porra!
─ O que foi? ─ perguntaram Michael e Elizabeth em uníssono.
─ Perdemos o discurso do Beckwith.
E todos riram às gargalhadas.
EPÍLOGO
MYKONOS, GRÉCIA