Meu Cristo Partido - Ramón Cué - 052108
Meu Cristo Partido - Ramón Cué - 052108
Meu Cristo Partido - Ramón Cué - 052108
MEU
ORISTO
PARTIDO
COLECCAO POLIEDRO
colecção
POLIEDRO
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RAMÓN CUÉ, S. J.
10. Edição
5
não pode pagar. Saio, no entanto, sem poder
cair nessa tentação de comprar algo. E cada
dia menos.
O protagonista «O Meu Cristo Partido». A outra confidência é que, dentro da
Encontrei-o em Sevilha, na «Casa do Arte, me seduz o temna de Cristo na Cruz,
Artista», prolongamento do «Jueves», essa e as minhas preferências vão para OS
pitoresca réplica sevilhana do «Rastros ! Cristos barrocos espanhóis e, entre esses,
madrileno. Aos domimgos do «Rastro ofe os andaluzes finos, elegantes, aristocrá
rece Sevilha os seus «Jueves». ticos. Menos musculosos que os Cristos cas
E diz-se: Ir ao «Jueves». telhanos. Atletas menos robustos, mas mais
Pois eu fui ao «Jueves» e, no «Jueves»>, esbeltos e intelectuais. Não sei o que daria
encontrei o meu Cristo. para possuir um Cristo de Mesa, Montañés,
E comprei-o num «Jueves>. Cano, Mena ou Ruiz Gijón...
(Judas também o vendeu num «Jueves»). Se fosse meu meu! 0
<Cristo dos
Antes, porém, de dizer-vos como, permi Cálices» de Montañés, em Sevilha, sentir
ti-me, nesta hora de intimidade, duas con -me-ia o milionário mais feliz do universo.
fidências: Tudo isto para vos explicar por que sou
Uma, que me encanta ir ao «Rastro» assíduo visitante do «Jueves» em Sevilha.
quase tanto ccmo ao teatro e mais ainda que Penso sempre: Se encontrasse no <Jueves>
ao cinema. É um saborosíssimo espectáculo um Cristo Sevilhano, pequeno, de boa talha,
vivo. E, quando não há «Rastro», meto-me barato... E vou-me ao «Jueves>. Nunca,
num antiquário, muito embora seja uma porém, encontrei nenhum em tão dificeis
dolorosa tentaço para a vista, que o bolso condições. Sei que é impossível e, apesar
disso, recaio na tentação.
A última vez, foi no mês passado, em
companhia de unm bom amigo, Pepe Zarazaga,
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O «Rastroz é um mercado muito popular em
Madrid; é formado, sobretudo, por tendas ou bancas, nascido em Triana, mas vivendo em São
onde se vendem coisas velhas ou que não interessam Jacinto, e que anda também em busca de
a certas casas. Algo parecido ao que em Lisboa temos um Cristo, ou melhor, em busca de Cristo.
na «Feira da Ladra. Teve o seu auge nos anos se Incorporámo-nos primeiro no rio tumul
guintes å guerra civil espanbola, Actualmente tem muitas tuoso, que é o «Jueves> torrente humana
lojas de antiguidades, -Realiza-se aos domingos; em
Sevilha é à quinta-feira, que em espanhol se diz
de vagas desencontradas, pelo centro da rua,
«jueves (Nota dos Editores). entre os dois tapumes de tendasem que se
exibem, no passeio ou em mesas e caixotes, Por favor, Padre, passe e veja.
os mais diversos e inverosímeis objectos. Caminhava em bicos de pés naquele uni
Tudo de mistura! verso encantado: contadores, porcelanas,
Porque Cristo --que lição! pode en tapetes, talhas, jarrões, mármores, azulejos,
contrar-se entre parafusoŠ e pregos, sucata damascos, cerâmica... e santos, santos, mui
enferrujada, roupa velha, sapatos e livros, tos santos. De todos os arnanhos, estilos e
bonecos partidos ou fotografias românticas. procedência. Parecia uma <liquidação» de
0 difícil é saber procurá-lo, porque Cristo santos. A santidade posta à venda. Nunca
anda e está entre todas as coisas deste se negociou tanto com eles. Não pelo que
revolto e inverosímil «rastro>, que é a vida.
têm de santos, mas pelo que têm de belos
Naquela manhã, porém, não o encontrá ou exóticos. um sinal da época.
mos no «Jueves» de Sevilha e aventurámo
-nos até ao seu prolongamento «A Casa E nunca se falsificaram tantos santos!
do Artista». Nem tantos -anjos! Estão na moda os
É mais fácil encontrar ali Cristo. Mas anjos barrocos como motivo de ornamento.
muito mais caro. É
ZOna já de antiquários. Da altura gloriosa de um retábulo caíram
É o
Cristo com impostos de luxo. O Cristo no servilismo humilhante de sustentar uma
encarecido pelos dólares do turista ameri lâmpad eléctrica...
cano, porque, desde que se intensificou o Hoje, que tanto escasseiam os anjos de
turismo, também Cristo está mais caro. carne, povoamos de velhos anjos policromos
Entrámnos, pois, naquele sector interna a decoração de casas, hotéis e pousadas
de
cional e perigoso com prevençao e cautela. turismo..
Visitámos inùtilmente duas ou três lojas: Quantos anjos caídos!
nem um só Cristo acessível! Andávamos Pensava em tudo isto quando, de súbito,
pela terceira ou quarta. à minha frente, pousado numa mesa com
Confess0 que me sinto bem no meio desta incrustações, vi um Cristo sem Cruz,
deliciosa desordem de coisas belas, ricas e
nobres. Tendo cuidado para não tropeçar
la lançar-me sobre Ele, mas refreei o
impeto, não fosse revelar o meu
numa porcelana ou pisar umn interesse
baixo-relevo... sobre aquele objecto, perante o
Deseja alguma coisa, Padre?-per antiquário, que me seguia olhar do
guntou-me, obsequioso, o todos os movi
antiquário. mentos.
-Dar apenas uma volta pela loja. Dissimulei. Dei uma volta e
Observar, ver... aproximei-me
de novo discretamente. Olhei o
Cristo de
soslaio... Conquistou-me desde o primeiro Cristo e quererá aproveitar-se? Terei tam
instante! bém que ficar sem este Cristo por falta de
Claro que não era precisamente o que dinheiro? Já me sucedeu tantas vezes!...
eu procurava. Era um Cristo todo partido. Tinha que decidir-me e abordar o pro
Prendeu-me, porém, esta mesma circuns blema. Perguntei primeiro o preço de um
tância. Não sei porquê. Fingi primeiro inte camafeu, a seguir o de um marfim. Mostrei
resse pelos objectos que o rodeavam, desgosto:
peguei-hes para os largar em seguida: um E pena ser tudo tão caro...
marfim, um cobre, uma miniatura. Até que Caro? Pois quanto me dá então?
as minhas mãos se apoderaram do Cristo.
Dominei os dedos para não o acariciar. Não respondi. Pensava no Cristo. Deci
Não me haviam enganado os olhos, não. di-me. Tomei-o nas mãos e, adoptando uma
Devia ter sido um Cristo muito belo, porque absoluta indiferença, perguntei:
agora quase, quase não era Cristo. E isto?
Era um impressionante despojo mutilado. Não me atrevi chamar-lhe Cristo..
Nem sequer tinha Cruz. Faltava-lhe Estava tão mutilado ...Era quase mais uma
meia perna, um braço inteiro e, embora coisa que um homem.
cOnservasse cabeça, tinha perdido E isto ?
rosto... Mas no que restava daquele belo Perguntando assim, talvez eu COnse
corpo havia tais proporções, tão serena e preço
guisse um mais económico.
perfeita anatomia, tal elegância de tronco Mas enganei-me.
e pernas, tão sòbriamente trabalhado era
o pano da cintura que, desde o primeiro
O
antiquário aproximou-se. Pegou no
momento, me decidi a ficar com Ele. Cristo Partido e exclamou:
Tornei a pousá-lo com mais cuidado Oh! uma peça magnífica! Vê-se que
É
agora, como se pudera queixar-se sobre tem gosto, Padre, e sabe valorizar as coisas.
a mesa, onde estava antes, e continuei Pois bem, veja que esplêndida talha, que
examinar, semn os ver, marfins, madeiras, boa execução!... Este Cristo é, sem dúvida,
porcelanas... de um bom escultor. Pelo menos de uma
Continuava, porém, a pensar: será muito boa escola.
caro? E a verdade é que tinha razão em tudo
Impossível. Se está todo partido.. Terá 0 que dizia. Estávamos de acordo. Tratei
o antiquário notado o meu interesse pelo de diminuir os méritos por outro meio.
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Sim, mas está tão partido, tão muti Muito caro, disse? Mas reparou bem
lado... Falta-lhe um braço e uma perna. no que leva?
Nem sequer tem cara. Naturalmente disse sem me vol
Não tem importância, Padre. Aqui ao tar caríssimo.
É
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seiramente, pedia demasiado para não per
der tanto como o desconto já previsto. Por
mim, consegui nivelar o preço. E o que
perdeu, como sempre, como com Judas, foi
O artista restaurador, que me recomen
Cristo.
Acabou desvalorizado, porque das três dou o antiquário, ficava perto.
mil pesetas iniciais, em que fora avaliado, Entrámos.
baixou para oitocentas. Mostrei-lhe o Cristo e tornámos a falar
de dinheiro.
Sem dúvida que o antiquário fez negócio,
como habitualmente, com aquele Cristo. Quanto me leva por restaurar este
E eu paguei por Ele oitocentas pesetas. Cristo?
Entregou-mo meio embrulhado num pa
O restaurador pegou na talha partida
examinou-a em silêncio, dando-lhe mil
pel velho e amarrotado, que não chegava
para envolv-1o todo. voltas.
Está bastante danificado. Faltam-lhe
Para quantos e diversos embrulhos teria alguns membros. Tenho que repor-he uma
servido já aquele papel?
perna e um braço; restaurar-lhe quase todos
Antes de me despedir, perguntei-lhe se os dedos, qué se partiram ao ser arrancado
sabia a proveniência do Cristo e a razão dos cravos; retocá-lo para igualar a talha...
daquelas terríveis mutilações.
Pô-lo numa cruz e, sobretudo, o que é mais
Numa informação tão vaga e imprecisa difícil, talhar-lhe o rosto por inteiro.
como costumam sê-lo as de certos anti
Ante esta prolixa enumeração comecei a
quários, disse-me que provinha de uma tremer. Tratava de justificar o preço.
povoação não se lembrava do nome Insisti seco e decisivo:
da Serra de Aracena, em Huelva. E que as Sim, e quanto me leva ao todo?
mutilações se deviam a uma profanação de Bem vê, deixando-o como novo... É um
que havia sido vítima por volta do ano prego especial, gostei da talha e interes
trinta e seis, quando da guerra espanhola “. sei-me pelo Cristo; por ser para o senhor
serão apenas mil e quinhentas pesetas.
-
Veja.
É muito caro.
Dá muito trabalho. Está despedaçado.
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Foi inútil desta vez. Não consegui qualquer em sentido contrário ao daquele
desconto. Íamos
Era mais caro restaurar um Cristo que mundo febril.
fazer um novo. O
costume! Que misteriosa Custava a avançar pelas ruas estreitas.
e profunda verdade! Havia que abrir passagem por entre
Lembrei-me da possibilidade de outros apertos e encontrões.
restauradores amigos levarem menos. Eu defendia o meu Cristo.
Vou pensar disse-lhe e voltarei Alguém, ao passar, embateu no embru
depois. lho e rasgou ainda mais o pequeno papel
Como quiser. Já sabe onde pode en do invólucro.
contrar-me. Não me apercebi disso então.
Mas, dentro em pouco, ao entrar nas ruas
mais espaçosas e menos congestionadas, dei
pela conta que os transeuntes me olhavam
insistentemente, COm olhos admirados e
Embrulhei outra vez o Cristo no papel interrogadores.
velho e escasso e sai para a rua, aCompa Porque olharão para nós?- pergun
nhado sempre por Pepe Zarazaga. tei a Pepe.
Pepe voltou-se e examinou-me de alto a
Pepe ofereceu-se primeiro para o levar.
baixo.
Suplicou-mo depois com insistência. Não
acedi. Fui un tanto egoísta. Confesso. Por causa do Cristo; olhe como o leva,
Padre.
Saboreava a posse daquele <Cristo Par
tido» que, por fim, era meu, apertando-0 Efectivamente, roto o-papel que
envolvia, ficava à vista a parte mal o
amorosamente de encontro a mim. mais muti
Com aguele embrulho mal feito debaixo
lada do meu Cristo: um tronco
çado sem braço direito e sem cara...
despeda
do braço, comentando a minha compra, Pepe Vista.
À
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Supus que, ouvindo-me falar dele, vos no ano
Quem o mutilaria tão cruelmente
interessaria conhec&-lo e trouxe-0 a0 estú de trinta e seis, na Serra de Aracena?ano
um
dio da Televisão Espanhola. Aqui está. Vede. Näo sei se haverá na História
«Ecce Homo». Eis o homem! e tão belos
em que tenham perecido tantos
Agrada-vos? Cristos. Por meio do machado, do petróleo,
do fogo. Para alimentar
a calefacção ou
Não é verdade que é muito belo?
Que perfeita a anatomia do peito, do um forno de cozer pão.
tronco, do ventre! Que sóbria e discreta Impossível fazer um cálculo.
mente tratado o pano da cintura! Que Só Deus tem uma estatística completa
esbelta e proporcionada a sua perna! Que dos Cristos sacrificados.
elegante e fino o braço! Que varonil a sua
musculatura!
Mas, claro, falta-lhe o braço direito, o
esquerdo estámal seguro no ombro e a mão
E Os Cristos, que então se salvaram,
partida por ter sido arrancada violentamente continuam condenados à morte pelo Comu
do cravo. nismo. São os primeiros da lista negra.
Também lhe falta a perna direita, cor Ou talvez não.
tada por meio da coxa. Conserva a esquerda, 0 Comunismo mudou de táctica.
mas colada à pressa e sem cuidado. Não se torna prático queimar Cristos.
E, alémn do mais, está sem cara. Parti Era já muito visto.k
ram-lha totalmente. Cristo sem rosto. Cristo E, sobretudo, muito mal visto. Não é
anónimo. Fantasma. boa política exterior.
O Comunismo prefere hoje respeitar os
E, porém, muito belo, não é? que ao cabo são imagens de ma
Cristos
Ainda que muito triste. deira ou de pasta e atacar a clareza das
e
ideias dos critérios.
Hoje, o Comunismo não usa nem o pe
tróleo, nem o machado, nem o fogo. Hoje
maneja a confusão. Uma confusão que apa
Assim, com enternecida mágoa, como gue contornos, que elimine fronteiras, que
VÓs agora, estava eu a contemplá-lo naquela desvirtue limites. Uma confusão que insen
primeira noite no meu quarto, sòzinhos os sibilize e adormeça. O seu objectivo é criar
dois, apÓs o primeiro beijo.
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uma mentalidade nebulosa em que tonham
igual valor a verdade e a mentira. Porque Agora, o
Comunismo com as Encíclicas na
jú se não sabe qual é a verdade; porque mão acusa og Bispos Católicos de as não
jú se não tem medo à mentira; porque se entenderem nem cumprirem.
conseguiu o mais perigoso e corrosivo fruto Por isso, o Comunismo não suporta que
de uma arriscada convivência para incautos eu vos mostre pela Televisão este Cristo
não saber onde começa o mal e onde Partido: um mutilado sobrevivente da sua
acaba o bem. Desprestigia a verdade, à força táctica desacreditada.
de obrigá-la a conviver com a Um testemunho vivo do que foi o ano
mentira.
E, desprestigiada a verdade, que de trinta e seis. Este Cristo Partido é a
ao Comunismo que o importa maior acusação contra o Comunismo.
mundo esteja cheio
de imagens de Cristo, se já matou a
mais
viva imagem de Cristo, que é a Verdade?
Envoltos hoje na confusão equívoca da
convivência, corremos o risco de não
saber Assim discorria eu naquela primeira
onde está acoutado o inimigo.
Prefiro, pois, aquele Comunismo que noite de contacto com o meu Cristo recém
queimava e mutilava Cristos. Que não -comprado.
dis
farçava nem dissimulava o seu ódio a Cristo. E, numa obsessão, como se me
traisse o
inconsciente culpado e criminoso, pergun
Tremo perante um Comunismo refinado,
que continua a odiar tei-lhe com pesar, quase em voz
Cristo e que e alta:
aguenta calculadamente os Cristos. tolera
Que se
Cristo, quem foi que se atreveu con
tigo? Não lhe tremeram as
professa oficialmente ateu e oficialmente mãos quando
envia telegramas ao Vaticano. Que oprime despedaçou as tuas, arrancando-te
mente da Cruz? Que cara brutal
a Igreja escravizada nos seus fez quando partiu
domínios e a tua? Que foi feito dele?
Vive ainda ? Onde?
adula no estrangeiro a Cabeça visível dessa Na Serra de Aracena? Que
mesma Igreja.
te visse nas minhas mãos? faria hoje se
Um Comunismo que chegou a erguer-se Arrependeu-se ?
perante os próprios Bispos, como intérprete Cala-te ! interrompeu-me uma voz
invisível e cortante
das Encíclicas de Roma, por detrás da cor Cala-te ! Perguntas
tina de ferro.
demasiado..
Antes, queimava as Encíclicas. Agora, Compreendi que a voz era do meu
Segurava-o entre as mãos. Cristo.
elogia-as, interpretando-as seu modo. Fixei
na sua cabeça, procurando os Os olhos
lábios, fonte
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da sua voz. E fiquei perplexO
ao verificar aprender a esquecer! Como sois Credes que
!
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Efectivamente, na sua voz ecoava o de con
A sua entoação voltou a dar-me
sengano.
Eu sentia-me egoisticamente mesquinho fiança e atrevi-me a perguntar-lhe:
e culpado. Não soube nem pude retorquir. Porque não queres que te restaure?
Não te compreendo.
Houve uma pausa de silêncio como um Bem vejo...-replicou um tanto triste.
pogo negro e insondável. que será
Não compreendes, Senhor,
Segurava-o nas mãos e, no entanto, sen para mim uma constante dor ver-te partido
tia-me infinitamente longe do meu Cristo. e mutilado, cada vez que te olhar? Não com
Não se ajustavam os nossos pensamentos. preendes que sinto dó?
Uma ordem, cortante como um raio, veio que quero: que, vendo-me par
-É isso
quebrar o silêncio angustioso: tido, te lembres sempre de tantose irmãos
que convivem contigo, ignorados distan
Não me restaures. Proibo-te! Ouves? esma
Assegurei-Ihe, tremendo e perturbado: tes e que estão, como Eu, partidos,
-Sim, Senhor, prometo: não te restau gados, indigentes, oprimidos, doentes, muti
rarei. Estava perturbado; nunca pude sus lados... Sem braços, porque não têm possi
peitar que um Cristo Partido pudesse fa bilidades nem meios de trabalho; sem pés,
lar-me com tanta segurança e energia. porque Ihes bloquearam os caminhos e não
podem dar um paso em frente na vida;
Logo, porém, suavizou a voz e acrescen
sem cara, porque lhes roubaram a honra, o
tou, como quem pede uma esmola:
mérito, o prestígio. Todos os esqueceme lhes
Obrigado. Suplico-te que não me res voltamn as costas... Não me restaures! Tal
taures! vez que, vend0-me assim, te sirva de lição
Se a ordem anterior me havia aniquilado, para a dor dos demais.
a súplica de agora acabava de conquistar-me
Sim, Senhor. Começo agora a com
definitivamente. preender. Não te restaurarei nunca.
Só Deus, só um Cristo dispõe desses A voz do meu Cristo continuava res
inclassificáveis tons de voz. soando naquela noite de Sevilha, na solidão
-Não quete preocupes, Senhor. Podes estar do meu quarto, como eco de uma velhís
certo de jamais pensarei em restau sima e eterna queixa...
rar-te. Olha: há muitos, muitíssimos cristãos,
Obrigado respondeu Cristo, acari que se entregam à devoção de beijos, luzes,
ciando-me com a sua voz de suave agrade flores, a um Cristo belo e se esquecem dos
cimento. Obrigado. seus irmãos, os homens Cristos feios, par
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em perigo
tidos e sofredores. Não aceito isso. Agora Perfeitos, Apolíneos... E estais
arte. Um Cristo
mesmo, nestes últimös dias da Quaresma e de quedar-vos na obra de para vos
nos próximos da Semana Santa, em todas as belo pode ser um perigoso refúgio
Sevilha, Valhadolid, esconderdes na fuga da dor alheia, trangui
cidades espanholas com
lizando ao mesmo tempo a consciência
Bilbau, Málaga, Madrid, Zamora, Barcelona, um falso amor a Deus Crucificado. Por
Múrcia,, Cuenca, em todas se intensificam
as manifestações de carinho por todos os isso deveríeis ter mais Cristos Partidos, mais
belos Cristos Crucificados.. Mas isto não Cristos Mutilados. Um, à entrada de cada
basta. Isto de nada vale, se falta o åmor Igreja; um, em cada procissão da Semana
com os seus
ao próximo que sofre, ao irmão pobre, ao Santa, que vOS gritasse sempre,
membros partidos e a cara sem formas, a
Cristo de carne, crucificado epartido.
dor e a tragédia da minha segunda Paixão
Pela janela entreaberta do quarto entrava nos meus irmãos, s homens... Por isso, te
a noite de Sevilha, morna e rescendente a
suplico: não me restaures. Deixa-me Par
jasmim, envolvendo-nos no seu perfume.
tido. Aguenta-me Partido junto de ti, ainda
Povoou-se a noite de belíssimos Cristos que amargure um pouco a tua vida. Beija-me
espanhóis, desfilando entre círios e cravos Partido!
por todas as ruas de Espanha. Havia um
–Sim, Senhor, prometo. Não haverá
longínguo fundo musical de órgãos, de trom força que te arranque de mim.
betas, de bandas de música, de fortes cân E um beijo sobre o único pé despedaçado
ticos. foi o selo da minha promessa.
A voz do meu Cristo Partido tornou-se «De futuro viverei com. um Cristo
ainda mais triste: Partido».
Há muitos cristãos que tranquilizam A noite de Sevilha beijou-o também com
a sua consciência beijando um Cristo belo, invisíveis lábios de jasmins.
obra de arte e de museu, enquanto ofendem, Desde essa noite, porém, não sou 0
mutilam ou roubam o pequeno Cristo de mesmo. Algo se me gravou na retina numa
carne, que é o seu irmão... Esses beijos eterna adesão: a silhueta de um Cristo Par
repugnam-me e causam-me asco. Tolero-os tido.
e aguento-os, forçado, nos meus pés de ima Projecto-a e sobreponho-a a todas as
gem talhada em madeira. Ferem-me, porém, coisas.
o coração. Tendes demasiados Cristos belos, Desde essa noite não posso ver um Cristo
demasiadas obras de arte da minha Imagem belo de Espanha sem projectar sobre a sua
Crucificada, demasiados Cristos Completos,
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32
harmoniosa beleza crucificada - Montañés,
Mena, Alonso Cano, Velázquez, Mesa, Zur
Deus tem mão esquerda
barán, Greco, Ruíz Gijón o esquema muti
lado, despedaçado e mudo do meu <Cristo
Partido».
Desde aquela noite sei que em cada irmão
palpita vivo um «Cristo Partido» de carne.
Até amanhã.
Boa noite, amigos.
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A tua mão direita! Despregaste-a um dia
Mas Tu, Crucificado, precisas de braços.
Como crucificar-te sem braço direito?
E não podes abençoar-me! Falta-te a
para abraçar -
que bem o pintou Murillo!
o Pobrezinho de Assis, enquanto o santo
-
mão direita! Um Cristo incapaz de abençoar! dava um pontapé no fausto do mundo. Outra
Louco ouvi dizer num sussuro tarde, segundo a lenda toledana do Cristo
de La Vega, voltaste a despregá-la para a
Deus também abençoa com a esquerda.. Um
erguer no ar e prestar juramento perante
Cristo, todo Ele, mesmo sem braços, é uma o juiz, como testemunho, num litígio de
Infinita Bênção!
Amor... .
A tua mão direita! Quem pode locali
zá-la? Estás a despregá-la continuamente.
E escapa-se sempre. Não me admira que a
Na mesma tarde em que comprei o meu
Cristo Partido, perguntei ao antiquário do
«Jueves», em Sevilha, pelo braço direito: 4
À saída da cidade de Toledo está a ermida de
<El Cristo de la Vega». Afirmam ocupar o lugar onde
-Não haverá modo de localizá-lo? esteve outrora o templo em que se reuniram os célebres
-Impossívelrespondeu-me. Julga que Concílios de Toledo. Nessa ermida existe um crucifixo
não revolvemos já todo o palheiro de Ara grande, com a mão direita despregada. Comno explicação,
cena, para onde fora atirada a Imagem conta uma lenda que o jovem Diogo Martínez, antes
de
partir para a guerra, prometeu diante desta imagem,
mutilada? Encontrámos, sim, a perna es pondo Cristo como testemunha, casar com a jovem
querda e colocámo-la, como pode ver, pro Inês
Vargas. Na guerra ganhou fama, galões e e, ao
honras
visòriamente. Mas da direita, nem rasto... voltar a Toledo, afirmou à jovem nada ter
prometido.
E repito-lhe: revolvemos todo o palheiro. Inês fê-lo comparecer diante
do juiz e, perante a sua
Não demos comn ela. Sabe Deus aonde terá negação, o tribunal formou-se diante
ido parar a mão direita de Cristo...
que declarasse como
testemunha.. - do Crucifixo para
Quando o notário
fez a pergunta, a mão direita despregou-se e
0
antiquário de Sevilha não sabia, uma voZ: Sim, prometeu! ouviu-se
Senhor, por onde andava a tua mão direita. A multidão presente ao acto disse: «Para
bom juiz,
Procurou-a em Aracena, inùtilmente, como melhor testemunhan, Perante este
facto, a jovem Inês
determinou entrar num convento
agulha em palheiro. ùnicamente ao amor que assim a
para consagrar-se
Mas tu, meu Cristo Partido, tu sabe-lo. O crucifixo que existe actualmente
defendeu.
é uma cópia
Oh se sabes por onde anda tua mão direita! daquela imagem antiga, destrufda
pelas tropas
na Guerra Peninsular francesas
Não é verdade? (Nota dos Editores).
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não tenhas. Desprende-se e anda por aí invi nito, acariciando-nos, levantando-nos, per
sível, mas eficaz, fazendo das suas. doando-nos...
Quem não sente de vez em quando o
afago suave da mão chagada de Cristo? Eé luz, carícia, relâmpago, freio, pranto,
fogo, sorriso, perdão, paciência..
Essa mão irresistível que, sem bater à porta, A vida é uma selva virgem, onde todas
se mete em toda a parte? as folhas das árvores são mãos e mãos cha
No hospital pousa na testa febril do
gadas de Cristo.
doente e refresca-a. Quem poderá atravessar a vida sem roçar
No leito de morte cerra suavemente oS as folhas da selva?
olhos ao moribundo e a paz eterna cobre o
seu rosto adormecido. Viver é andar entre as chagas de Cristo.
Traz-nos nas palmag das suas mãos.
Na oficina, no escritório, na fábrica, Em cada linha do Evangelho está a mão
obriga o rosto suado, inclinado até à terra, direita de Deus, fazendo bem aos homens:
até à matéria, a levantar os olhos e a olhar crianças, surdos, entrevados, leprosos, cegos,
para o céu.
pecadores, paralíticos..
No cinema, no teatro, no espectáculo, in A vida da humanidade continua a ser
troduz-se subtilmente, como uma lufada lu um Evangelho que se escreve todos os
dias.
minosa e musical, por detrás de uma ima Por detrás de cada palavra palpita, escon
gem, uma palavra, um gesto... dida, a actividade misericordiosa da mão
No cabaré, no monturo, no pântano, é de Cristo. Que seria de nós sem a sua
um ruído imprevisto, um falso alarme inquie mão
traspassada ?
tante. (-Quem anda aí? Não, não é Ao meu Cristo Partido
nada). Sim, é a mão direita de Cristo! a direita. O antiquário de arrancaram-lhe
Sevilha não deu
Para o desesperado é um suave puxão com ela.
que o refreia. Deixa-me! Não! Não! E essa que está em toda a parte,
Não te deixo! tamente multiplicada em infini
prodigiosa activi
Para o pobre, o caluniado, o triste, o fra dade, voando como uma asa
de dor em dor?!
cassado, o solitário, o incompreendido.. O
meu Cristo
Partido não tem mão di
Não podemos dar um passo na vida sem reita. Bem vedes.
Mas não há que pro
tropeçar na mão direita de Cristo. Segue curá-la. Talvez que, neste
de vós, amigos,
momento, algum
-nos por todos os caminhos. Avançamos por sinta o roçar dos seus dedos
uma paisagem fantástica e invisível, em que belisco, empurrão,
carícia no fundo da
a mão de Deus se multiplicou até ao infi alma.
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sabe por onde anda, atarefadíssima, a estas
horas;
Enquanto a direita voa atarefadíssima de
alma em alma, a esquerda, a única que ficou
ao meu Cristo, está quieta, imóvel. Não faz
nada. Parece que não se apercebe, nem se
informa do que anda a fazer a direita. Estou a ouvir, amigos, o que diz o meu
Que bem cumpre o meu Cristo Partido Cristo:
Sim, está certo tudo o que comentaste.
própria lição moderadora de activi Mas não é isso precisamente o que eu que
dades «que não saiba a tua mão esquerda
o que faz a direita»! ria ensinar-te com esta mutilação da minha
mão direita. Queria que, vendo-me assim,
Assim, sem alardes exibicionistas! tiragses outra conclusão:
Nós necessitamos de ambas as mãos para
que todos tomem conhecimento Qual, Senhor?
da nossa Que estou maneta, que preciso de um
o
actividade. É gesto teatral das nossas boas braço, que sinto a falta de uma mão.
obras. Disse-te no primeiro dia, quando te
Haverá lista? É para publicar? Figurará comprei em Sevilha, que te mandaria res
em algum lado? Então, sim, colaboramos. taurar, que ficarias completo... E foste Tu
E atéchegaríamos a abrir a carteira com as que te opuseste, que não
deixaste.
duas mãos. Não sejas tolo! Não quero uma
de madeira. De que serve? mão
Necessitamos de ambas as mãos para Tenho necessi
empregá-las teatralmente na grandiloquên dade de um braço e uma mão, mas
de carne. vivos,
cia do nosso gesto, porque buscamos o
aplauso os demais. E para aplaudir fazem De carne?
falta também as duas mãos. Sim. Preciso que tu sejas o meu braÇo
direito. Necessito que me
Fazer bem a quem não possa aplaudir. A que me falta.
ponhas uma mão.
Para que aplauda Deus. Eu?
Prefiro, pois, o aplauso do meu Cristo, Sim, t, vós. Todos os
que pode e sabe aplaudir-me -que divina Vós, os baptizados, católicos, todos
podeis e deveis ser a mi
música! com uma só mão. Esta. A que nha mão. Necessito de vós,
Fazem-me falta
tem livre; porque a outra, a direita, só Ele braços. E mãOs. Tu deves ser
a minha mão
42 43
para oteu irmão. És a minha mão, quando tando a tua própria mão a este ombro muti
não empurras o que vai cai, antes lhe dás lado, que não tem braço ?
a
apoio para se manter em pé. Es minha mão, Todos vÓs devíeis ter um Cristo Partido
quando não feres nem castigas, mas con para que não olvidásseis que o Cristo Mís
a
fortas e animas. És & minha mão, quando tico Igreja está incompleto. E há
ajudas o cego a atravessar para o passeio que acrescentar tudo o que lhe falta.
em frente. És a nminha mão, quando a esten Se beijas um Cristo perfeito, com os seus
des ao teu inimigo e lhe apertas a sua. És braços inteiros, ficas muito tranquilo e pen
a minha mão, quando consegues uma colo sas: «Não tenho nada a fazer. Sobre tão
cação; quando ofereces possibilidades de belas mãos só faltava um beijo –aqui está».
trabalho; quando ensinas um caminho novo Se beijasses um Cristo maneta acabarias
ou abres uma porta fechada a tantos fa por ouvir o grito do seu ombro despojado
lhados na vida. És a minha mão, quando do braço e da mão: preciso de um braço!
alivias, quando descarregas um pouco a cruz Quem quer dar-me uma mão? Alguém quer
dos demais, carregando-a sobre os teus ser o meu braço direito?
ombros. E colar-te-ias tu próprio, como asa viva,
ao meu ombro mutilado.
Todos vós, pelo baptismo, sois membros
do meu Corpo Mistico. Há membros e mem Anda, bem o preciso, dá-me uma mão!
bros. Não gostarias de ser a minha mão
direita ?
Não tens possivelmente título aristocrá
tico nem universitário. Não ostentas um alto Mas na minha talha, Senhor,
cargo honorífico ou profissional na Socie uma mão, a esquerda. só tens
dade. É verdade. E depois ?.
E, ainda que o possuísses, não te agra Ocorre-me uma tolice:
nas homem, poderíamos Se -fosses ape
daria ter o mais elevado título e desempe dizer de Ti que tam
nhar o mais nobre cargo, sendo na tua vida, bém tens uma boa
não esquerda. nesse
entre Os que te rodeiam, a Mão Direita de sentido em que o aplicamos aosMas
«Fulano tem uma mão homens:
Cristo ? esquerda !» «Não, não
Se atreva: para
Querias que um entalhador me restau isso faz
rasse, acrescentando-me um pedaço de ma esquerda e você não a tem». falta a. mão
deira. Não queres ser tu o restaurador, jun
Tu também tens uma mão E Tu, Cristo,
esquerda neste
44 45
e
sentido humano de manejos subterrâneos mente. Infinitamente. Podia apoderar-8e de
tortuosOS. Não, na vida faz falta manejar
nós violentando a nossa liberdade. Não lhe
muito a esquerda. De contrário, fracassa-se. interessa. Quer amor. Por conquista, da sua
Como tu. Com uma só mão não se nada
parte; por livre entrega, da nossa. Para
bem ao largo; há que nadar com as duas. conquistar-nos, dispõe de duas mãos: a di
E a Ti faltou-te a mão esquerda. Assim te reita e a esquerda, que representam duas
sucedeu. Crucificaram-te. E agora muti duas tácticas opostas.
técnicas
lam-te. Ao que tem boa mão esquerda nunca
o A mão direita é clara, aberta, transpa
crucificam. Aí está precisamente tudo...
rente, luminosa. Dá a cara. Entra directa.
Eu senti que o meu Cristo sorria silen Não se disfarça. Actua de dia. Em pleno
cioso. sol. Fala em voz normal. de todas as horas.
Ê
Que pOuco e mal me conheceis! Claro A mão esquerda busca atalhos, serve-se
que também tenho mão esquerda.. de rodéios; é cálculo e diplomacia; não tem
-Tu, Senhor? pressa ; cola-se à luva e ao disfarce, se ne
-Que seria de vós, homens, se não ti cessário. Actua à distância. Muda de voz.
vesse mão esquerda? Tenho-a. Não para Esconde-se na sombra.. Ou espera pela noite.
evitar que me crucifiquem, mas para con Passa a gritar como um ciclone. Ou em
seguir que o meu Pai vos não condene. Não silêncio como um punhal.
uso a mão esquerda para salvar-me da Cruz, Contudo, ainda que esquerda, não é ma
mas para salvar-vos do inferno. Compreen quiavélica nem traidora. Porque a move o
des agora? Amor.
Em parte, Senhor. Para cada alma Deus tem duas mãos;
porém, emprega-as de diverso modo em
cada caso, porque todag as almas são dife
rentes. E a conquista de cada uma
é um
jogo pessoal de Deus e dela, que não
a repetir-se, porque jamais se volta
Todo o jogo, toda a aventura divina e pode repetir
exacta uma alma e a sua história.
trágica da nossa vida está em deixarmo-nos
Há almas que se deixam
prender pelas mãos de Deus. Ele pretende mão direita.
prender pela
fazer-nos seus. Há, porém, em nós um
Noutras alternam, esquerda e
elemento difícil, esquivo, perigoso-anoSsa
duas mãos divinas. direita, as
liberdade. E Deus respeita-a misteriosa
46 47
a
E há almas em que, fracassada direita,
a mão
O canto dum galo, que acutila a noite,
Deus tem que empregar a fundo tem mais eloquência para Pedro que as pala
esquerda. vras directas e transparentes do Mestre.
Com a direita, como a pombas brancas
Entende tudo então. E desata a chorar.
e a ovelhas dóceis, Deus conquistou João
E a rebeldia intelectual de Agostinho,
Evangelista, Francisco de Assis, João da que flutuou sempre de cabeça erguida sobre
Cruz, Francisco Xavier, as duas Teresas -a as procelosas e oceânicas tormentas dos seus
espanhola e a francesa... Não é que a mão pensamentos, acaba por perecer afogado n0s
direita eiimine a luta. Não, nem a dor, nem dois mansos arroios de lágrimas, que rolam
a renúncia. Mas é cara a cara. Em pleno
pelas faces da sua mãe, Mónica.
sol.
Para conquistar Pedro e Paulo, Mada
lena, Agostinho ou Inácio de Loyola, Deus
teve que empregar a esquerda. Ante a A mão esquerda de Deus!
mão ireita debatem-se, revoltamn-se, obsti Aqui está, Cristo; é a que te deixaram;
nam-se. Entra então em jogo a esquerda. parece que nada faz, negligente e imóvel,
Mas na sombra, senm dar a cara, buscando enquantO a outra, a direita, num turbilhão
um disfarce. A mão de Deus seu de actividades, anda voando pelas cons
e
amor! inventa uma engenhosa divina ciências.
metamorose e transforma-se em raio, em E, no entanto, que seria de nóS sem a
bala de canhão, em dois olhos com lágrimas tua mão esquerda?
Ou num galo que canta de noite... Engano-me, Senhor, se disser que aquele
O relâmpago cega Paulo, a quem não que te profanou e
mutilou nesta Imagem
conseguiram iluminar os olhos claríssimos Partida da Serra de Aracena foi salvo, defi
e agonizantes de Estêvão no martírio, que nitivamente, pela tua mão esquerda ?
quis ser mão direita de Deus. O relâmpago Arrancou-te pela raiz a direita.
Dei
cega-o, sepultando-o na noite, para que nes XOu-te, porém, a esquerda, que
foi a sua
tas trevas brilhe a luz nova de Damasc0. salvação.
A bala dum canhão francês leva a perna, Quem havia de dizê-lo!
conseguindo a sua rendição, a Inácio de Com o abuso da tua bondade e
liberdade, tornamos quase da nossa
Loyola, que tinha suportado e repelido, sem inútil, em nós, a
jamais capitular, todos os syaves ataques actividade da tua suavíssima
mão
da mão direita de Deus. Estamos a repeli-la contìnuamente. direita.
48 49
E Tu voltas, incansável, à amorosa con Esterilizamos um bom conselho: -Não
quista. lho pedi!
A tua mão direita cerca-nos, perse Rimo-nos de um aviso providencial nos
gue-nos, assedia-nos carinhosamente. outros:: Que tolice, coisas que têm de su
Trata de ser freio que n0s detenha; afas ceder!
E, a murros bruscos e desalmados, afas
tamo-la bruscamente, deixando livre do teu
estorv0, nosso descarrilado caminho: tmos continuamente da nossa beira essa
Afasta-te! mão direita de Deus que, suave, calada, insi
nuante, dorida e paternal, tratava adejando
Quer erguer-nos do barro em que cai-, de ser carícia, Sorris0, VO0, esperança, per
mos; prende-se-nos, como uma asa, aos
fume, bálsamo e beijo na nossa vida.
ombros. Arrancamo-la: Hoje não quero
voar; amanh. Deixa-me!
Entra-nos no peito para ver se consegue
abrandar o nosso coração de pedra; ao sen A mão de Deus estorva-nOs.
ti-la, endurecemo-lo ainda mais: Isso é para E, além disso, não necessitamos dela para
crianças e velhas, eu sou umn homem. Vai-te! nada.. Porque não sertimos a falta de Deus.
Senta-Se no nosso colo, tentando enla Se temos na mão os elementOs da nossa
çar-nos fraternalmente o ombro abatido e felicidade, que falta nos faz essa mão pesada,
fracassado; afastamo-la zangados: Não ne incómoda e opressora de Deus?
cessito de companhia nem consolo. Fora! Temos um bom lugar na sociedade, que
Persegue-nos na noite pecadora; assiste melhor trampolim para os nossos sonhos ?
ao sórdido contrato, penetra na casa equí Sobra-nos o dinheiro, que falta faz Deus?
voca, é um soluço na nossa prevaricação e Não há melhor Deus que a
carteira repleta.
vai-nos seguindo de perto no caminho asque Ou podemos esbanjar juventude e
forças
roso do regresso... até que, enfurecidos, lhe físicas que valem mais que o dinheiro.
gritamos: Quando me deixarás em paz? Jà Por isso, ao menos por agora, que Deus
me deixe em paz!
não sou criança. Sou um homem livre. Faço
o que quero.
Deixa-me de uma, vez! E Deus retira então, muitas vezes, a
Desvirtuamos o bom exemplo:- Está. mão direita. Tornamo-la pràticamente
para nós. inútil
tudo calculado!
Rimo-nos do livro moralizante : Para As vezes, com a sua mão direita,
os ingénuos! ra-se tambémn Deus. reti
E ficamos sÓs.
50 51
Solidão misteriosa e trágica. Pavoroso
Tive sempre um inimigo invejoso de que
prelúdio da solidão eterna. sempre triunfei; ontem, porém, conseguiu,
Outras vezes, muitas que sOrte en por meio de uma rasteira, afastar-me do
tão! Deus não se dá por vencido. Retira lugar que tinha. Onde esconder-me? Tenho
a direita, mas desprega a esquerda.. Deixa vergonha de sair à rua.
a direita de reserva e em descanso, Voltará. Acredita que a única filha que tenho,
a usá-la depois. E joga com a esquerda. um amor de rapariga, terminado o curso,
E que irresistível não é Cristo, quando resolve ir agora para as Carmelitas Des
decide empregá-la! Ninguém maneja a mão calças?
esquerda melhor que Deus! Tenho vinte e dois anos. Disputavam-me
Os seus recursos são infinitos. as raparigas do bairro. Estou de cama há
Ontem disfarçou-a de galo, de relâm dois nmeses e acaba de dizer-me um bom
pago, de canhão primitivo. amigo que isto da minha perna é um cancro
Hoje dissimula-a com mais modernos e no oss0. E vou morrer aosvinte e dois anos?
actuais disfarces. É o Ser mais actual. Vai Não espero que a morte chegue! Só faltava
na vanguarda de todos os tempos. essa!
Rompe-se uma represa, que arrasa as
minhas propriedades, as minhas granjas e
a minha fábrica. E fico sem nada.
Tenho um descuido inexplicável no tra Ante a mão esquerda de Deus que, quando
balho e a máquina corta-me um braço. actua, irrompe quase sempre inesperada e
Agora, que vai ser de mim? implacável na nossa existência, a primeira
reacção é um grito de protesto, de
lamos de automóvel a cem à hora; e rebeldia
saiu-nos inesperadarmente um camião pela desespero.
direita, chocámos e morreram-me n0 aci Bsqueçamos a represa, o automóvel, o
traidor, o cancro, a morte, o acidente, por
dente mulher e filho. Salvei-me por milagre. que adivinhamos que
Fiquei destroçado de corpo e alma. Que eles afinal não têm
culpa, que são intermediários
hei-defazer, quando sair da clínica?.. de outra causa
imperiosa mais alta e inacessível, que os
Nunca tive uma doença, mas diz-me o move e aproveita.
médico que tenho não sei quê no coração. Julgamos Deus como
único responsável desta
Nem álcool, nem tabaco, nem noitadas, nem tão terrìvelmente dor que, por ser
qualquer excesSo. E isto na minha idade? profunda, não pode
vir
52 53
das criaturas e, lògicamente, enfrentamos
Deus como culpado.
dar o primeiro. Depois...
O mais difícil é
a mão
E gritamos-lhe. Perguntamos-lhe: Por já não se pode viver sem beijar
quê? Porquê? Exigimos-lhe: Intimamo-lo. esquerda de Deus.
Desafiamo-lo. Condenamo-lo. injusto, E formulam-se «absurdag» expressões:
cruel, desapiedado, não tem coração de pai. Bendita represa que rebentou. Arra
sou a minha fábrica, mas aproximou-me de
Pai? Se fosse pai, não me trataria assim!
E revoltamo-nos, cerceados e impotentes, Deus!
destroçados e aniquilados, contra a terrível Tenho vinte e dois anos e um cancro
mão esquerda de Deus. ósseo. Nunca fui tão feliz como agora!
Gritamos. Protestamos. Revoltamo-nos. Ainda que me devolvessem a saúde,
Depois ficamos sós... não a queria. Aprendi muitas coisas igno
Vêm as primeiras lágrimas nervosas e radas.
escaldantes. -A minha filha freira? Que seria Ofede
E, sem darmos pela. conta, a primeira mim sem ela? Quer saber a verdade?
oração. receu a sua vida de clausura pela minha
Tornamos a protestar. Contra Deus. E salvação. Eu andava tão longe de Deus...
contra a nossa primeira oração.
Chega o cansaço.
Outra vez sós.
As lágrimas são já mais serenas.
Já rezamos sem protestar.
Temos vontade de beijar algo... O quê ? Estou pensar, Cristo Partido, que
Sim. Iso. Já sabemos: um crucifixo. na tarde da primeira Sexta-feira Santa,
E com um beijo dizemos a Deus que está quando os homens te pregaram na Cruz e
se ergueu na história o primeiro Crucifixo
bem tudo quanto Ele determinar.
Vivo, junto a Ti, de ambos Os lados, es
querda e direita, se levantaram outros dois
crucifixOs vivos, de carne também, os dois
Ladrões.
Terrível. Violenta. Dura. Implacável.
Porém, bendita mão esquerda de Deus! Eram ladrões, mas Tu amava-los e ha
0 beijo que mais custa a dar.
É via-los perseguido toda a vida com a tua
mão ireita.. Inútil. Escapavam-se-te sempre.
Mas é o mais saboroso de todos os beijos.
54 55
Decidiste então empregar a tua esquerda,
que disfarçaste em forma de cruz. Quiseste abraçá-lo com a tua esquerda
e a tua direita.
E é este o disfarce primitivo e verda Mas ficaste para sempre com o braço
deiro da tua mão esquerda: a Cruz. frustrado entre as tuas mãos falhadas.
O acidente de trabalho, a represa reben E isto tendo-o colocado ao lado do teu
tada, o choque de automóvel, o fracasso, o Coração: à tua esquerda.
CancrO... tua mão esquerda! não A esquerda está mais perto do teu Cora
continuam & ser cruzes onde nos crucifica ção que a mão direita,
a dor? Naturalmente, porque só usas a esquerda
Aos dois ladrões fizeste a oferta suprema com aqueles que misteriosamente e privile
–
da tua Cruz da tua mão esquerda. E colo giadamente o teu Coração ama.
caste a teu lado as suas cruzes para que, Mas, claro, como tudo é questão de amor,
com umn só volver de cabeça, eles aprendes também, reciprocamente, para aceitar a cruz
sem contigo a beijar a mão esquerda do Pai. implacável da tua esquerda há que ter
coração.
Um dizem que o da direita depois
vezes a Porquetambém está na nossa mão de
de haver tantas repelido tua mão homens tornar inútil a mão esquerda de
direita, aceitou a cruz da tua esquerda e, Deus.
pela esgquerda, se guindou ao Reino dos
Céus: «Hoje estarás comigo no Paraíso».
Mas o outro dizem que o da es
querda - acostumado sempre a afastar a
tua mão, não soube distinguir a última opor
Meu Cristo Partido:
Agora, sim, jamais te mandarei res
tunidade e, treinado na rebeldia, repeliu taurar.
também a esquerda: <Se és Cristo, salva-te Quero-te assim para sempre junto de
a ti e a nós>. mim: sem mão direita. Só com a tua es
Fez falhar as tuas duas mãos, a es querda.
querda e a direita. Torcia-se, desesperado Para olhá-la muito e afeiçoar-me a ela.
e blasfermo, na mais espantosa agonia tão Para acolher-me à sua sombra e perder
o medo.
perto das tuas mãos, abertas até se descon
jùntarem, para salvá-lo e que começavam Para beijá-la muito, muito... de modo
que os meus lábios se
já a esfriar na Cruz pela morte e pelo fra treinem nesse beijo
difícil.
Cass0.
56 57
E sobretudo, Senhor, para estar certo de Se segurares a minha, não
que, se falhasse comigo a doçura da tua mão há receio de
[perder-nme
direita, empregarias para salvar-me a tua Dá-me a tua mão, ainda que seja a
terrível mão esquerda.
[esquerda».
Meu Cristo Partido:
Digo-te em meu nome e no de todos OS
amigos telespectadores, que te estão a ver
no <écran>, falho da mão direita, ofere
cendo-nos a esquerda. Até amanhã, amigos.
Digo-te em nome de todos, porque todos Apenas uma sugestão antes de ir-me
somos corajosos para to pedir a partir de
embora.
agora.
Senhor, se não basta para salvar-nos a à cabeceira da cama, ou na mesa de
ternura da tua direita, desprega a esquerda cabeceira, tens um Cristo pregado na Cruz.
e disfarça-a do que quiseres fracasso, Por que antes de deitar-te, esta noite,
calúnia, ruína, acidente, cancro, morte... não lhe beijas a mão esquerda?
Cristo Partido: E venha o que vier!
Que sejamos filhos da tua mão! Atreve-te.
Da tua direita, Boa noite, amigos.
ou da tua esquerda!
58 59
Perdeú-se uma cruz
61
O
antiquário de Sevilha, que mo ven Além disso, é para um Cristo. E então
deu, também não oferece qualquer pista. não há modo de medi-la.
Encontrou-o jú assim num palheiro da Serra Estas medidas bastam. Porque todas
de Aracena. as cruzes, no fundo, são iguais.
Nem rasto. Perdoai, pois, a minha insistência:
E eu queris devolvera Cruz a0 meu Amigos, algum de vós encontrou uma
Cristo Partido. É o mínimo que pode ter cruz?
um Crucificado. Ou sabeis de alguém, vizinho, parente,
amigo, que a tenha encontrado?
Proibiu-me que o restaurasse.
Pode ter sido em qualquer lado, no lugar
Estou certo, porém, de que pô-io numa
cruz não é restaurá-lo. mais inverosímil, porque meu Cristo
mete-se e anda com a cruz por toda a parte.
Não vOs parece o mesmo ? Na rua, sobre o passeio; numa cadeira
Dá-me pena vê-lo assim. do bar; ao balcão do café; na secretária do
Não só pelas suas chagas e mutilações. escritório; no torno da oficina; no banco
Mas também por tê-lo sem cruz. do parque; no elevador da mina; na mon
Porque permanecer em cruz, sem cruz, tra; no assento do autocarro; num degrau
deve ser um duplo tormento. da escada; à entrada do átrio; junto ao
Devolver-Ihe a cruz para que, pelo menos, balde do lixo; no bengaleiro do cabaré; no
descanse um pouco nela. metro; na praia; na escuridão do cinema...
Se o reclino numa almofada como agora Que sei eu? Há tantos sítios!
aqui sobre esta mesa, sinto-me cruel, porque Anda-se por tantos lados!
sei que também não descansa. O seu lugar Em qualquer deles, algum de vós não
è a Cruz. deu com uma cruz?
Mas onde está?
Por iss0, amigos, vos peço ajuda.
<Perdeu-se uma cruz».
Algum de vós encontrou uma cruz? Sim, sim, já sei o que estais a pensar.
Quereis os sinais? O tamanho? Mas que pergunta, Padre!
Pois aqui tendes. Não muito grande. De Se encontrámos uma cruz?
altura, uns noventa centímetros. E sessenta Uma? Uma só?
de largura. Não é muito grande. Mas é uma Encontrámos tantas cruzes! E todos
cruz. E não há cruz pequena. nós!
62 63
É verdade. Tendes razão. Por isso, agora mudos, em absoluto silêncio, para conse
VOs faço a pergunta contrária. guirem uma emissão perfeita.
Quem de vós, amigos, quem de nós, não Não os vedes. Eu sim, ainda que difi
encontrou a cruz? cilmente, porque os focos, dirigidos para
Ou, melhor, quem não tem uma cruz? mim, 'cegam-me e ofuscam-me um pouCo.
Todos. Sem excepço. Todos trabalham e se afadigam em silên
É um direito de propriedade irrenunciá cio. É a sua profissão. Todos, porém, todos
vel, que se está exercendo sempre. trabalham com uma cruz. A sua cruz.
Contra esta pessoalíssima propriedade
privada não pode nem o Comunismo. Todo minha direita está Zarza, manejando
uma câmara e, à mimha esquerda, opera
o
comunista tem a sua própria cruz. Ina
lienável. Carballo com a outra; alternando-se os dois.
Impossível socializá-la. Têm postos os auscultadores para ouvir em
silêncio as ordens do controlo... mas, tam
E todos a trazem em cima. g costas. bém têm uma cruz sobre os ombros. Tira
Embora se não veja.. Ainda que sor ram o casaco para trabalhar mais còmoda
riamos e dissimulemos. mente, dado o excessivo calor do estúdio;
ÅS vezes, por ser oculta, é mais pesada.
Também não vedes a minha. Vedes-me não puderam, contudo, despojar-se da cruz.
a mim, multiplicado em todos os cécrans> Há que trabalhar com ela posta.
receptOres, mas não vedes a minha cruz. Não
Em frente vejo Diego que vigia atenta
é
captada pelas câmaras; escapa ao seu mente a «girafa» do som, com a sua cruz.
poder. E Romay, que se encarrega dos focos,
Mas tenho-a, ainda que não estenda os também com a sua cruz.
braços em cruz. Mesmo que não saia por E Luís Lord, o realizador, que me d as
detrás dos meus ombros. indicações com sinais, e que tem uma cruz...
Tenho-a. E os ajudantes, todo o pessoal que inter
vós, a vossa. vem neste programa: todos com uma cruz.
Estamos todos a trabalhar com a nossa
cruz às costas.
(Mas, então, que é isto? Um estúdio da
Aqui, neste estúdio da Televisão Espa
Televisão Espanhola em Madrid, ou uma
nhola, há muitos homens, nossos irmãos, cena fantástica duma eterna Paixão?).
que se movem à minha volta, trabalhando
5 65
64
Não precisam de vestiário: sentam-se
connosCo no mesmo assento do cinema, do
teatro, do cabaré, do avião, do parque, da
E, com a vossa cruz também às costas, praia.
contemplais este programa.
A cruz instala-se em todas as casas e
Só existe e é real 0 que se vê? em todos os andares, quer na cave, quer na
A nossa cruz que o diga. Se, por não a
ver, pudéssenmos negar a sua existência! trapeira.
Inútil. Eu também vos não vejo e ainda E não a assustam nem 0 quinto nem o
menos as vossas cruzes, mas não me engano oitavo andar, porque a cruz não precisa de
tende-las bem perto. elevador.
Uma barraca de latas e um chalé comn
Onde quer que estejais: na vossa casa,
piscina diferenciam-se em tudo, excepto na
na do vizinho, no café... cruz gue os remata a ambos.
Esta noite, ao deitarmo-nos, não podere E ainda em contrapartida
mos deixá-la dependurada no cabide: encos tem mais
categoria a cruz do chalé. Lógico, por umn
tar-se-á à nossa própria almofada. Trope lado, não é assim?
çaremos nela em sonhos. E acordar-nos-á,
em sobressalto, de vez em quando. Também se não inscreve no livro de re
cepção do hotel: mas é um hóspede que
E amanhã, ao levantarmo-nos, não será em todos os quartos. está
necessário vestir a cruz: saltaremos da cama s vezes, como os
com ela já posta. hotéis, será uma cruz
de Lux0, outras vezes de
Não n0s deixará em todo o dia. Terceira. Quase sempre, porém, Primeira ou de
a qualidade
entrada do emprego, deixaremos esta da nossa cruz supera a categoria
cionado o automóvel, a moto, bicicleta... do hotel.
Os que desenham e
Oxalá que pudéssemos todos os dias dei fabrican os útimos
modelos de automóveis nunca
xar também estacionada por umas horas a conta. Nem também a têm em
dela se apercebem os
nossa cruz! Impossível! agentes de tráfego. E, no
excepço: entanto, não hâ
Ainda que todos caminhemos com uma Seat, Mercedes, Fiat ou
ou com várias , para as cruzes
não hã lac Cadil
todos os carros circulam sobrecarre
problemas de estacionamento. gados : uma cruz por
cada assentO 0cupado.
Não ocupam lugar. Mesmo que ocupem D ainda bem que nos
aviðes não nos
e absorvam toda uma vida. pesam a cruz com as
malas: ninguém dei
66 67
e arrui que se aproxima dela, buscando o
xaria de pagar um insuspeitado
o
E
nante excessO de bagagem. prazer, fá-lo para fugir de outra cruz.
E a carga máxima da noSsa existência. Com a respectiva cruz às costas falam
Os dois, regateiam os dois, prometem os ois,
ajustam, por fim, os dois.
com
E lá vão os dois, pela rua adiante,
pressa, os dois... e Com a cruz àg costas,
Os dois!
E quando regressam, quando já trataram
Quem encontrou uma cruz?! de aplacar a sua fome de felicidade, sentem,
Todos. Bons e maus. Santos e criminosos. defraudados, que aumentou a cruz pesa
Sãos e enfermos. agora mais que anteriormente. É maior.
Nem respeita, sequer, os partidos polí Nela, de asco e aviltamento prosti
vez por mero
ticos, por opostos que sejam. 0 monár
quico e o republicano igualam-se na cruz
tuiu-se uma
a
não valia pena!
mais,
e
Nele, de desilusão desencanto -
dinheiro.
afinal,
pessoal, que os oprime.
Não importa que se não acredite nela.
Para amanhã voltar a surgir nele, outra
vez, a cruz do desejo. E nela, dentro em
Em relacão há cruz não existem hereges pouco, novamente o asco e o cansaço...
nem descrentes.
E semnpre com a cruz às costas.
Também os que se dizem ateus arrastam Ainda que esta émais triste, por culpada.
a sua cruz. A mais ilógica e insuportável
E porque não redime, mas apenas con
de todas. dena.
E 0s que parecem desafiar a dor com E porque não abençoa, porque é a cruz
as gargalhadas e loucuras da sua vida.
maldita do diabo.
Essa pobre prostituta gue, a estas horas,
pintada e aborrecida, espera sentada ao
balcão do café ou encostada à esquina estra
tégica, traz às costas uma pavorosa cruz.
Pesa tanto que se apoia, recostando-se Não pretendas furtar-te à cruz. É inútil.
na esquina. Não se adquire. Nasce connosco.
Uma cruz mais pesada do que suspeita Vimos ao mundo com a semente de uma
quem a vê passar insensível e leviana. Cruz ou de muitag -
enterrada na carne.
68 69
Já no berço se embala e dorme uma cruz e misteriosa metátese, voltaria a nascer do
que, às vezes, desperta as crianças. esquerdo. É que está no sangue. Não há
Talvez que estas noites tenhas tido que solução.
levantar-te, interrompendo este programa de
televiso, por chorar no berço o teu menino.
É a cruz, pequenina ainda.. De bringuedo
tambénm.
E, como a criança, irá crescendo dia a
dia ao longo da sua existência. Sempre à É a mnais fecunda e universal semente.
medida do homem. As cruzes não ficam Em qualquer torrão de qualquer país,
pequenas com0 0s fatos velhos. Pelo con sem que alguém a plante, aloja-se uma se
trário, quase sempre temos a impressão de mente dolorosa.
que ultrapassam a nossa medida.
Na tua herdade, na tua granja, na tua
Ficam-nos grandes. Como se Deus se ti horta, no teu bosque, que colheita anual de
vesse enganado no tamanho: esta cruz não cruzes! Supera talvez a do trigo, a do azeite,
é para mim. Supera as minhas forças. Mas, a do milho, a da madeira...
lá vamos arrostando com ela! Na primeira pedra de todos os edifícios
Nós, homens, que temos conseguido tan públicos ou particulares, ainda que colocada
tos progressos e refinamentos, não encon com rmúsica e flores pelo Bispo, pelos mem
trámos ainda processo de eliminar a cruz. bros do Governo ou pelo Presidente da C
mara, vai incrustada, vital e fértil, uma
Ela assoma sempre a cabeça vitoriosa por cruz invisível.
cima do conforto moderno, que pretende
sepultá-la. Cresce ao mesmo tempo que o edifício,
mete-se por entre os andaimes, projecta-se
Lançarnos homens a Voar no espaço; e enlaça-se na própria armadura metálica,
mas sobem, dão voltas e regressam à terra
multiplica-se, prolífera em todos os andares
Com a sua inevítável cruz. e acaba coroando o edificio, dona e domi
Não há intervenção cirúrgica que con nadora, por cima das antenas da televisão.
siga extirpá-la pela raiz. O remate de todas as torres é uma cruz
Se quisessermos arrancá-la do ombro bem visível. 0 remate de todas as casas é
direito, em pouco tempo, por uma inevitável também uma cruz, que ninguém vê.
70 71
Cada novo edifício que se ergue, é sem
pre, dum modo ou doutro, uma cruz para
todos: desde o arquitecto que o desenha,
ao engenheiro e operários que o constroem,
e a todos e a cada um dos que habitam
Para fugir da cruz, há que deixar de
depois os seus andares. os
existir. Libertam-se definitivamente dela
Todo o edifício tem a forma de cruz, que têm a dita de conseguir uma boa morte.
ainda que não seja perceptível. Tal nos é concedido por umas horas,
Uma noite tive um pesadelo terrível como COmo num breve ensaio e antecipação,
num filme de Ingmar Bergman. Acabava de quando dormimos.
passar uns dias em Nova Iorque, oprimido
e abafado pelas massas verticais dos seus
0 sono, durante o qual de certo mnodo
deixamos de existir, liberta-nos da cruz, da
arranha-céus. dor, da angústia. Para voltarmos a existir,
E nessa noite sonhei com uma fantás ao despertar, e encontrarmos de novo a cruz.
tica cidade, como uma Nova Iorque centu
Porém, frescos e renovados para mais uma
plicada, onde os arranha-céus se abriam ao
jornada da Via-Sacra.
alto em forma de cruz e cujas portas e infi
nitas janelas, iluminadas por dentro, à noite, 0 angustioso é quando nos falha até o
recurso renovador do sono. Quando não che
tomavam a mesma forma, para mostrar-me,
em cada um dos pequenos vãos, um homem
gamos a conciliá-lo. Quando o repouso no
crucificado. Que angustioso pesadelo o da turno, que era nos planos de Deus uma
quela noite, atravessando em sonhos as ruas
periódica libertação da cruz, se converte
numa nova cruz -a insónia.
tràgicamente silenciosas e vazias, sob o
olhar dilacerado de infinitos homens cruci Cruz mnoderna da humanidade, fruto in
ficados nas janelas dos arranha-céus crucí voluntário ou culpado da tensão absurda da
feros, e arrastando eu, único caminhante, a
nossa vida,
minha cruz que rangia no asfalto pelas inter E para dormir, para esquecer durante
mináveis ruas solitárias! umas horas a cruz, o homem estende a
mão
E não é verdade? tensa e trémula aos narcóticOs.
Toda a cidade, afinal, é um bOsque, uma A cifra é aterradora, ainda que atra
selva, uma colmeia de cruzes. sada na data.. No ano de 1940 consumiram-se
73
mil e quatrocentas toneladas de narcóticos
em todo o mundo. são e elementar que este seja, trazem visí
Em 1953, só nos Estados Unidos, gas vel ou escondido o selo da fábrica 1ma
74 75
a cruz
zeres-te, da testa ao peito, desde criança insensíveis, continuam a apertar uma
velho, cruzes e cruzes, que
ungem de bênção para além da vida.
as obras e o tempo da tua vida. Mas, afinal, não caminhamos já pela
existência com uma cruz entre as
mnãos,
que
embora tentando enganar-nOs, dizendo
são rOsas?
o gesto das mãos
Que grande verdade
hora da nossa morte.
Até à mortas apertando uma cruz!
Cada dor da nossa vida é um pequeno E os nossos herdeiros, que só nos dei
su
prelúdio e uma miniatura daquela hora xaram uma cruz, lançar-se-ão ávidos sobre
prema em que se aplica a cada um, íntegra a herança e pensarão que enchem as mãos
e justa, a medida máxima da noSsa cruz.
de rosas quando, no fundo, estão a recolher
Vai-nos vencendo a cruz em cada uma
Cruzes.
das nOSsas dores.
Derrota-nos, porém, absolutamente, na Sobre o nosso túmulo florescerá a última
hora da nossa morte. verdade da nossa vida: uma Cruz.
O triunfo da cruz. Sepultar-nos afundar na terra o nosso
é
Somos seus: por isso, à cabeceira entre Corpo, Como quem enterra uma semente.
dois círios, ela preside à exposição do nosso
Como um grão de trigo, partir-se-á e
cadáver.
A caminho do cemitério, a única coisa apodrecerá, mas lançará no ar, atravessando
que levamos entre as mãos rígidas é uma pujante a terra que o esmaga, a haste duma
pequena cruz. Cz.
Tiraram-nos arrancaram-nos tudo. O que trazíamos enterrado no nosso ser
Nada é já nosso. De quanto possuiamos dá o seu fruto visível e póstumo na nossa
fica-nos uma só coisa -a cruz entre as sepultura.
mãos.
No derradeiro naufrágio agarramo-n0s Se se enterrar um cristão, nascerá uma
obstinadamente à única tábua segura: a Cruz.
Cruz. Marcou a nossa vida.
O nosso útimo gesto de posse eterniza-o Assinala o nosso sepulero.
a morte nas nossas mãos que, já frias e «Santo e senhas inevitável.
76 77
Por isso, amigos, eu ando em busca de
uma cruz para o meu Cristo Partido, que
E, no entanto, lutamos contra a cruz com ficou sem ela.
O meu Cristo Partido pede-a, reclama-a,
todas as nossas forças.
exige-a.
E desejaríamos mesmo arrancá-la
Cristo. Jå não pode estar sem cruz.
Nikos Kazantzaki, o famoso novelista Enquanto que nós não sabemos, não que
grego, faz dizer a um dos seus personagenms remos, nem podemoS por vezes viver com a
do «Cristo Recrucificado»: «Se Cristo vol nossa.
tasse hoje, não traria a crz, mas um bidão E a pior táctica é a revolta. Lutar con
de gasolina para regar os exploradores e os tra a cruz é inútil: ela defende-se feroz
injustos e lançar-lhes fogo». mente contra os nossos intentos de elimi
Que engano! Isto é não conhecer Cristo. ná-la.
Cristo e a cruz são inseparáveis. Ë combater contra um gigante: vence
Sim, é certo Ele o afirmou que vem -nos.
lançar fogo à terra e quer que toda ela Mais: é lutar contra Deus, que está nela;
arda no fogo. acabaremos duplamente crucificados.
Cristo, porém, não provoca o incêndio Não partas a tua cruz: os pedaços soltos
com um revolucionário bidão de gasolina, voltaro, vivos, a soldar-se.
que d chamas de ódio. Não a enterres: ressuscitaráimortal, mi
Mas com a cruz, ungida do seu sangue, lhares de vezes.
que desperta incêndios de amor. Não a escondas: encontrar-te-á sempre.
Não a afastes: pesará o dobro.
E é imnensamente mais pesado um bidão
incendiário de gasolina que a cruz de Cristo. Não penses em matá-la: Deus defende-a.
O
nosSO engano é querermos despojar
Cristo da sua cruz, para vermos se assim
nos livramos da nossa.
Não caiamos em semelhante aberração. Afinal, sabes, amigo, por que às vezes
Respeitemos a cruz que Cristo escolheu a nossa cruz acaba por ser insuportável?
voluntàriamente, pois Ele ama-a com des Por que é um enigma incompreensível e
medido amor desde toda a eternidade. desconcertante ?
78 79
Sabes por que chega a converter-se em
negra, pavorosa, sem sentido : uma Cruz
desespero e suicídio? sem Cristo.
E porque então a noSsa cruz é uma cruz Compreendo-te: sofrer assim é irracional.
solitária, uma cruz sem Cristo.
Não percebo como pudeste aguentá-la
E uma cruz assim, só e vazia, é insu tanto tempo.
portável.
A Cruz apenas se pode tolerar quando Uma cruz despojada de Cristo é um cas
traz um Cristo entre os seus braços. tigo, umn puro instrumento de tortura, o prin
Uma cruz laica, sem sangue nem amor : cípio lógico do desespero.
de Deus, é absurdo aguentá-la. Não tem Tens o remédio nas mãos: não sofras
sentido.
mais só.
Concordo contigo. Anda, dá-me essa tua cruz, vazia e soli
tária.
Dá-ma. Aproxima-a mais.
Dar-te-ei em troca este Cristo Partido,
sem repouso nem cruz.
Toma-o. Aproxima-o de ti.
Por isso me ocorre uma ideia: Estás a vêlo, é teu, multiplicado prodi
Eu tenho um Cristo sem cruz, Olha-0. giosamente emn todos os «écrans» de televisão.
E tu tens possivelmente uma cruz sem Dá-lhe a tua cruz.
Cristo. Essa, que tu sabes. Toma o teu Cristo.
Vós ambos estais incompletos. Junta-os. Crava-os. Abraça-os. Beija-os.
0 meu Cristo não descansa, porque Ihe E tudo terá mudado.
falta a sua cruz. O meu Cristo Partido descansa na tua
Tu não suportas a tua cruz, porque lhe Cruz.
falta Cristo. A tua cruz abranda-se e suaviza-se com
Um Cristo sem cruz. 0 meu Cristo nela.
Uma cruz sem Cristo. A tua cruz já não é sòmente tua; é tam
Aqui está a solução: bém e ao mesmo tempo a cruz de Cristo.
Por que os não juntamos e completamos? Vamos, toma a tua cruz, amigo, a tua
Por que não dás esta noite a tua cruz Cruz em Cristo.
vazia a Cristo? Já não sofrerás só.
Acabaremos todos por ganhar. Verás. Trazê-la-eis os dois, o que é repartir o
Tu tens uma cruz solitária, vazia, gelada, peso.
80 6 81
E acabarás, supremo achado, por abraçar
e amar a tua cruz, uma vez que Cristo está
nela.
82
De que pé coxeia Deus?
83
madeira boa e antiga como a Imagem. boa e antiga madeira., uma cruz para o meu
Aceita ? Cristo Partido.
Mal pude dizer que sim, porque me ata Para Cristo gue é
lhou a mesma voz:
Obrigado, Padre. Vou enviar-lha.
amigo? - não é verdade,
da melhor madeira que existe.
88 89
Paixão inédita: estamos na presença de Mas, ao fimcabo, é assunto que não
e ao
um Cristo «CoxO». nos preocupa. A ortopedia resolve-no-lo.
Contemplando-0, assim, coxo, ocorre-me Bem. Solucionado isto, que pensas fazer
uma ideia que vou comentar convOSco, ainda depois?
e
que vos pareça a principio extravagante Trabalhar, naturalmente.
absurda. Sem uma perna?
Tende paciência. -Com certeza. preciso. Trabalhei em
É
Sei que, a pouco e pOuco, vos irá pare Nazaré. Sou Deus, mas fiz-me homem,
cendo verosímil, Por fim, real. voluntàriamente sujeito e submetido a todas
as exigências do homem. Poderiam alimen
Imaginai que, assim como está, o meu
Cristo Partido desce da cruz. Com uma só tar-me os anjos. Mas tal não entra nos meus
perna. planos redentores. Tenho que cuidar da mi
nha Mãe e de mim com o suor das minhas
Absurdo, Padre.
mãos. Tenho que trabalhar.
Preveni-te. Calma. Espera, amigo.
Agui está o meu Cristo em terra. Está bem. Mas, onde? Em quê ?
Não sei. Para isso estás tu. Preciso da
Só pode apoiar-se na perna esquerda,
visto faltar-lhe a direita. Acudimos, cari tua ajuda. Vamnos procurar trabalho. Conse
nhosos, a dar-lhe a mão. A amparálo. guir uma colocação.
Cristo, em primeiro lugar necessitas
Uma colocação? Que problema, Cristo!
de uma perna postiça. Não há problema; a Em boa nos metemos! Perdoa a expressão:
é o costume!
ortopedia faz prodígios. Vai ser dura e longa
a aprendizagem. Bem sei que Tu estás trei Não poderás arranjar-me um emprego?
nado na dor como ninguém. Porém, como te Espera: é evidente que sim. Não há
falta a perna pela metade da coxa, por muito dificuldade. Ao ouvir-te falar de colocação,
perfeita que a façam e muito bem que a não me lembrei que era para ti, para Cristo.
adaptem, vai-se notar bastánte no andar. Tudo solucionado. Nem sei a que Empresa
Ao principio, fá-lo-ás com duas muletas, nos havemos de dirigir porque, se eles des
depois com uma só. Por fim, talvez mesmo cobrem, irão disputar-te. Desde que peça um
sem nenhuma. É difícil, mas tens de resig lugar para Cristo em pessoa, mesmo que o
nar-te: é preferível dizer-to duma vez: impos não tenham, inventam-no. Além do mais,
sível dissimular o coxeio. Serás sempre um será um lugar e um trabalho meramente
cOxO com muleta ou com bengala. aparente: será um pretexto para te entre
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garem a ti, Cristo, um espiêndido ordenado;
oS meus filhos redimidos, os homens. Anda
dar-te-ão casa com aquecimento e automó resolve-te. Aonde vamos?
vel. Dar-te-ão o melhor chalé da Empresa.
Não sei, Cristo...
Não vês que são cristãos e te amam? Ima Há pouco ias já a caminho. Tive que
ginas o que significa para eles a oportuni
deter-te.
dade de prestar um serviço a Cristo em pes -Sim, é verdade. Mas antes ia colocar
soa? Vamos. Não há problema, Senhor. Cristo, Deus. Agora vou colocar Garcia,
E comecei a andar. Lopes, Fernandes...
-Não. Espera disse o meu Cristo É o nesmo! exclamou Cristo, enér
Partido. Como tantas vezes, também me gico.
não entendeste agora. Esclareçamos as coi
sas. Em primeiro lugar, não quero a oferta 0 mesmo, para ti. Para o teu amor.
Verás depois como diferente para os ho
é
de um vencimento sem trabalhar. Não. Pro mens, para o seu egoísmo.
curo um emprego. Quero viver do meu tra
Mas se quando disseres «Garcia, Lopes,
balho. E em segundo lugar: não penses apre
Fernandes>, eles traduzirem por «Cristo»...
sentar-me a alguém como Cristo, como Deus. Não, Senhor. Assim traduzem, pelos
Para isso não precisava de ti. Apresentar vistos, lá em cima, no Céu. Aqui não conhe
-me-ia eu só. cemos essa equivalência. Aqui, na terra, um
Então, Senhor, quem digo que és? Garcia ou um Lopes traduz-se por <pro
Um homem qualquer, um amigO neces blema quase insolúvel». Aqui, na terra, tra
sitado, que procura uma colocação. Não terás duzimos muito mal, Senhor. Não entendemos
vergonha de ter um amigo pobre, sem tra o idioma do Céu e
do amor. Traduzimos
balho? apenaS como e o que nos convém.
Não. Senhor, Sabes bem que não Está bem. Ainda que muitos não
Mas será preciso um nome para preencher saibam–ou não queiram traduzir como
OS impressos, os questionários. Como vais se deve um «Peres» ou um
«Garcia», alguémn
chamar-te? haverá que o traduza bem insistiu Cristo.
Como queiras. Procura-me um nome Não duvido que os haja,
e um apelido. Qualquer entre os
mais cor na prática, é muito dificil Senhor. Mas,
rentes e vulgares: Garcia, Lopes, Gonçalves, encontrá-los.
3 tu mesmo o verás.
Fernandes... E não receies mentir, cha -Vejo que tens um conceito
mand0-me por esses nomes. Sou Deus Re dos homens. És injusto com bem pobre
dentor e trago em mim os nomes de todos que, vendo-me sem a perna eles. Vais negar
direita aos trinta
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ou todos
e três anos, não vão muitos -Impossível, Senhor, a Empresa existe,
compadecer-se de mim? mas não se vê. Funciona e ordena, mas é
Sim, Senhor, não o nego. Compade
inacessível. Decide e sanciona, mas não tem
cer-se-ão e lamentar-se-ão todos. Concordo.
coraçã0. A Empresa, Senhor, são os
mes
uma colo
Mas, de compadecer-se a dar-te mos com outro nome. A Empresa é uma
cação, vai um abismo. cómoda desculpa de eliminar compromissos
Não entendo. Não e sincera então a e responsabilidades pessoais. A Empresa são
sua pena? todos e não é ninguém. como aquilo do
É
Sim, é. Não vOu negar a sensibilidade nosso Teatro Clássico: «Quem matou o Cor
humana do seu coração cristã0. Mas repara, regedor?-Fuenteovejuna, Senhor. E quem0
Senhor: não depende pessoalmente deles
é Fuenteovejuna? Todos à uma!>
poder colocar um homem num emprego. mesmo no caso da mpresa: Todos à uma.
Assim mno
têm explicado milhares de vezes. Todos e ninguém! Porque, no fim, ninguém
E, de tanto ouvir, já o sei de cor. tem a culpa. É a Empresa! Perdoa-me que
-Pois, de quem depende então ? per me meta no que me não diz respeito, mas
guntou Cristo. não sei como te irás arranjar para pedir
Da Empresa. responsabilidades às Empresas no dia do
-E que é a Empresa? um Juízo: é porque depois ninguém sabe nada
-A Empresa,homnens
Senhor, é
para se
modernís
simo invento dos defenderem
e precaverem. como um biombo, um para Refere-se a um facto acontecido em 1476, na
É vila de Fuenteovejuna, situada na Província de Córdoba.
peito ou uma trincheira. É a grande des
-Os habitantes da vila, cansados da horrível opressão
culpa que te dão sempre: «Se dependesse moral que exercia o Corregedor quando residia na
de mim, agora mesmo lhe arranjava emprego; vila, totdos unidos mataram-no livrando-se dele, por
mas, compreende, aqui não sou ninguém, sou não encontrarem melhor meio de fazer justiça. Os reis
apenaS um funcionário; isso depende da mandaram um juiz para instruir o processo. Todos,
homens, mulheres, velhos e crianças, assumiram a res
Empresa... A ela é que compete decidir». ponsabilidade. Quando o juiz perguntava:
E, após esta explicação, ficam muito tran Quem matou o Corregedor?
quilos, porque livraram a responsabilidade -Fuenteovejuna, respondiam todos.
da sua consciência e lançaram toda a culpa -E quem é Fuenteovejuna?
sobre a Empresa. Todos à uma!
-Pois, vamos à Empresa insistiu
O juiz não conseguiu saber mais, - Este facto deu
ocasião a grandes produções da Literatura espanhola
Cristo. (Nota dos Editores).
94 95
e esfuma misterio
de nada... Tudo se dilui Cristo Partido não podia acompanhar-me e
samente. atrasara-se no caminho.
Ajustei o meu passo ao seu, lento e desi
gual.
Cristo caminhava ao meu lado, como que
Amigos telespectadores: permiti-me um aos solavancos, inclinando o corpo para a
parêntesis necessário. esquerda e apoiando-se na muleta.
Volto a suplicar calma e paciência até Avançávamos com dificuldade por entre
ao fim. o vaivém dos transeuntes, rodeados de gente
Eu não pretendo abordar e muito menos apressada .de umas vezes nos empurrava
criticar em toda a sua complexa contextura e outras obrigava Cristo a deter-se.
o
problema das colocações e lugares de tra Vezes houve gue o perdi de vista por
balho. Não. entre a multidão. Mas não era difícil loca
O meu campo é muito mais limitado. lizá-lo. Bastava esperar um poueo. Tinha fi
Apenas pretendo colocar um homem de cado para trás.
trinta e três anos, um mutilado a quem Julguei, de começo, que iríamos chamar
falta a perna direita. Goxeia imenso e não a atenção dos outros. Que todos se voltariam
pode, portanto, desempenhar uma activi para olhar Cristo.
dade fisica eficiente. Também não tem cul Até que me persuadi de que ninguém o
tura ou prática de escritório ou oficina. reconhecia: era mais um coxO na rua. Um
Este é o caso concreto. homem que tinha tido a pouca sorte de per
Não o esqueçamos, por favor. der uma perna, sabe Deus cOmo. E passavam
E continuemos. apressados a seu lado, cruzando-se com Ele,
sem o olhar, acostumados a cruzar-se na rua
com tantas, tantas misérias e dores.
Era
mais m!
Adiante, de qualquer modo! atalhou Parecia-me tudo aquilo uma versao mo
derna e eterna da Via-Sacra; da rua da
Cristo. Vamos procurar trabalho. Não queres amargura. E o ruído seco e escompassado
ajudar-me?
Com toda a minha alma, Senhor. Va da muleta de Cristo no passeio soava-me
como o arrastar de uma cruz.
mos.
Mas as pesSoas, com as quais nos cru
E começámos a andar decididos. závamos, não pensavam assim. Imaginavam,
Tíve, porém, que encurtar o passo. O meu
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ao vê-lo, que era uma vitima, salva por sorte Entrámos.
que Não tardámos em sair.
dum acidente. Ou talvez um mutilado
tivesse deixado uma perna na guerra... Do «Grande Armazém», desiludidos, diri
E é verdade também, Senhor. Que trá gimo-nos a um Banco.
gico acidente o do Calvário! Vítima sobre Do Bamco chegámos a uns Laboratórios.
vivente pela tua Ressurreição. Regressas Dos Laboratórios a uma Fábrica.
mutilado da mais encarniçada guerra: a que Depois, a uns Armazéns.
empreendeste a morte contra o mal para A seguir, a uns Escritórios Comerciais.
libertar-nos do pecado. A guerra em que por A uma Firma Exportadora Internacional.
nós quiseste perder tudo, para conquistar A um Hotel.
também tudo para nós. A guerra com A um Cinema.
que Tu, iludido, imaginaras abolir para sem
pre todos os 6dios e todas as guerras. Inútil. E agora, meu Cristo Partido, aonde va
Nós, homens, temo-nos empenhado em con mos?
tinuar a guerra, matando-nos uns aos outros.
Tu quiseste ser o primeiro e o áltimo dos
mortos. Mas não conseguiste. Não deixá
mos. E, ao ver-te avançar coxeando pela rua,
ao abrir-te passagem por entre a multidão, Em toda a parte, pouco mais ou menos,
& cena fora a mesma.
imaginava o desfile gigantesco de centenas
Entregava o meu cartão.
de milhares de mutilados nas loucas guerras
Recebiam-nos logo, sem grandes demoras.
desta louca humanidade.
Coxeando a meu lado, interrompeste,
Primeiramente, um cumprimento afec
tuoso.
Cristo Partido, as minhas pobres meditações:
Se eram amigos ou conhecidos, alegra
Fica muito longe o sítio aonde vamos? vam-se muito com a minha visita: «Vende-se
Confess0, Senhor, que me. não decidi
muito caro, Padre; como é difícil vê lo!».
ainda por nenhum. Tenho medo, Aí em frente,
nesse «Grande Armazém», tenho um amigo. Mas a cordialidade ia-se apagando quando
Mas não confio muito nele, para ser franco... Chamava a atenção para o meu companheiro:
-Vamos animou-me Cristo
- e
não «Osenhor Garcia, m velho 'e querido amigo,
te esqueças: Sou um homem; cham0-me para qual solicito
o com o máximo interesse,
«Garcia», «Fernandes», «Peres>. Como quei Como se fosSe para mim, um emprego, um
ras. trabalho».
98 99
Já então tinham mudado de cara; esta
Vam sérios. Pausa cembaraçosa.
Nova explicação:
Que pena ter de estragar a cordialidade
Disse-me antes, Padre, que o seu
duma visita amigável com assunto duma
o
100 101
Deus lhe pague!- dizia eu dis Má propagandapara a Casa e o Negócio.
-Que
traidamente, por força do hábito. Não pode evitar-se uma primeira má
Cristo olhava-me com um sorriso triste. impressão aos que chegam.
Que não seja a última visita. Como se o- Negócio não desse para mais
e se visse forçado a admitir pessoal meio
Mas com melhor sorte, Padre.
Sentimos muito, de verdade. inútil ao qual, evidentemente, se paga menos.
Mande sempre que queira.
É
dar à Empresa um ar de Hospital ou
E uma vez mais, Cristo e eu nos encon de Asilo de inválidos.
É
carecer em absoluto da Visão Moderna
trávamos na rua.
das Exigências Actuais, impostas pelo Desen
volvimento Social do Negócio.
Tudo deve colaborar no prestígio, no bom
nome, na impecável apresentação.
Um empregado cOxO, sem uma perna e
Estou a pensar, Cristo, que umn caso com bengala ou muleta é anti-publicitário,
como o teu compromete qualquer Empresa anti-funcional.
de categoria. E quanto mais forte e luxuosa Poder-se-ia pensar em ajudá-lo COm um
for a mpresa, mais perigoso e difícil é o
donativo.
compromisso.
Perante um empregado assim coxo, Srge
Que fazer de um coxo, tão visível no seu
fàcilmente, nos;que o vêem, a ideia de que
COzear, como tu? também o Negócio, a Empresa. o -Banco
Uma vez que não podem confiar-te um COxeiam como ele.
trabalho fisico, que também não poderias Todo o cliente que passa o <hall» de qual
executar, terão que colocar-te fardado com quer Bmpresa, deve sentir-se automàtica
elegante libré da Casa, na Portaria, na Recep mente bem e com possibilidades de ser opti
cão, no hall, junto do ascensor...
mista e eufórico.
Mas, cOzo?
Que diriam os clientes, os visitantes? 0 bom humor, não pode esquecer-se, e
o clima propício para as
O
teu coxear rouba o prestígio, que é precisa boas operações
mente o que deve ter um digno porteiro far Comerciais.
dado. O
teu cOxear destoa desagradàvel Se o primeiro encontro é com um desa
mente do luo os mármores, das alcatifas, gradável Porteiro ou Empregado coxo, a
dos lustres e dos espelhos. sensação de incómoda srpresa, de lógico
102 103
desgosto e até de depressão psicológica é
Ou não queres responder ?
inevitável.
Ruminas, no teu obstinado silêncio, a dor
Haverá mesmo pess0as que, por sUscep que te produziu a nossa frustrada visita a
tibilidades supersticiosas ou fatalistas ante tantos Armazéns, Bancos, Fábricas e Em
a presença de um coxO na casa, decidam não presas ?
mais voltar. Dói-te o desprezo, não é verdade?
Ora, é necessário evitar isto, acima de Bem te preveni, mas é porque te não
tudo. conheciam. Se me tivesses deixado apresen
Em primeiro 1lugar o prestígio base tar-te, Como eu tencionava, com o teu nome
da Empresa. e a tua personalidade:
As pessoas são muito ingénuas e elemen -Senhores, tenho o prazer de lhes apre
tares nas suas concepções. sentar Jesus risto. Então...
Tuo querem solucionar com uma só e Cala-te!interrompeu-me uma queixa
simples palavra Caridade Cristã. dolorosa e amarga Cala-te ! Éprecisamente
E vive-se à margem de toda esta com 1sso que me magoa. A experiência
comprovado como é possível
e
que
haver
plicadíssima orgânica de exigências sociais. afirmem
amor a Cristo e desprezem ao mesmo tempo
Há que saber harmonizar a caridade com
o Prestígio Publicitário do Negócio. e com o mesmo coração o senhor Garcia,
Peres ou Fernandes.
0 lamentável é que para Cristo, embora
cOXO, tivesse havido
trabalho e o não haja
para «Garcia> ou «Gutierres».
Quando somos, afinal, um só.
Porque eles representam-me. São o meu
Vês, Cristo, como o teu casO põe em duplo exacto.
apuros e compromete qualquer Empresa que Que fazeis, então, de toda essa legião
se preze?
inumerável de seres inúteis e inválidos, que
Estás muito calado, Senhor. não estão num Hospital ou num Asilo?
Que te parece toda esta teoria sobre a Por inválidos e inúteis os arrumais e rele
Propaganda e o prestígio o Mundo Econó gais para um último e invisível plano social?
mico? Onde vos escondeis para que vOs não
Estás distraído, Cristo. Ouviste a minha moleste nem ofenda o espectáculo incómodo
pergunta? do seu sofrimento?
104 105
Que desterro inventou para eles a Socie vez sorrissem depreciativamente e
muitas
dade elegante e refinada, que se proclama
crist? muitas Empresas.
dolorosa invalidez física acrescentais
À Escuta:
vós, cristãos, outra mais dolorosa invalidez
Não seria maioT prestígio e mais segura
bênção para um Negócio, contar com um
moral: ser excluído dos vossos salões e do
VOSSO COntacto.
mutilado, com um inválido no seu quadro?
Que foi admitido precisamente por sêlo.
Mas já se desvirtuou assim o meu Evan
gelho? Conscientemente, sabendo que adquirem
e se apropriamn de um autêntico valor.
Jå tem olhos para des
o mundo não
Mas sem o esconder nem relegar para
cobrir num inválido ou num mutilado em um lugar obscuro e discreto, antes colocan
todo o sofrimento um valor noVO que su
pera e vence todas as vossas mesquinhas do-o no posto que lhe corresponder pelo seu
emprego, em pleno contacto com toda a
cotações da Bolsa?
A dor proscrita em nome da Propaganda organização interna e externa da Empresa.
No seu justo lugar.
Comercial!
Que cegueira! Que inversão de valores! Ouve: Ainda que eles o não saibam ou
Quando o que á maior prestigio, realce esqueçam, estou ao corrente de todos os
e beleza perante os olhos de Deus é a dor quadros de pessoal de todas as Empresas.
e o sofrimento... Sei-os de cor.
Mas falta-vos Fé.
Organizais a Propaganda que conquista
Conheç0-0s melhor que o Chefe
soal.
oPes
108 109
Com a sua dupla e oposta origem -
tal por parte da sua mãe Tétis, deusa do
imor
Uma mulher de vida pública Com a ter
mar, e sujeito à morte pelo pai Peleu, ainda rível cruz da sua prostituição às costas
que príncipe, mas mortal
erguia-se invencível entre
-o
os
herói de Tróia
seus inimigos.
conquistou Cristo pelo caminho fácil dos
seus pés.
Nenhuma arma podia feri-lo, porque a Soube dar com o fraco de Deus.
sua mãe imortal conseguiu fazê-lo invulne Com o seu ponto vulnerável.
rável. Cristo assistia a um Banquete, convidado
Existia apenas um ponto do seu corpo por um Fariseu. A mulher pecadora abei
- mas
isto era segredo dos dèuses SUg rou-se aproveitou a posição propícia em que
ceptível de ferida mortal. E estava precisa o Mestre estava sentado, caiu de joelhos e
mente no pé, no calcanhar: o calcanhar de as suas duas mãos firmes apoderaram-se dos
Aquiles. pés de Cristo.
A flecha mortal do deus Apolo, que Presos já entre as suas mãos, lançaram-se
conhecia o ponto fraco de Aquiles, procurou logo sobre os pés as flechas dos seus beijos.
-Ihe o pé, cravOu-se no calcanhar e venceu-0, Maria Madalena beijava-os com amor e
dando-he a morte. penitência.
ponto fraco de Deus está nos seus pés.
O
Por entre os beijos sobre os pés de
Infinito e invencível, tem uma fenda vul Cristo, caiu um segundo ataque: as lágrimas
nerável ao ataque. de arrependimento.
As flechas dos cravos mostram-nos o Como se fosse pouco, por entre beijos e
lágrimas, sobreveio um terceiro ataque: o
caminho.
Que os nossos lábios sigam a direcção dos jorro perfumado de uma libra inteira de
Cravos, que se tornem flechas de beijos sobre
essência puríssima de nardo, oferta feminina
os pés de um Cristo Crucificado! E beijo a de uma mulher, que tudo entrega a Deus.
beijo, vencerenmos Deus. E para assegurar a conquista preparada
Conquistá-lo-emos. - pelo triplo ataque amoroso, chega o cerco e
o assédio definitivo: a cabeleira de Maria
O
beijoos nossO8 lábios, sobre os seus
Madalena, que envolve na sua redeim
pés, repercute-se instantânea e eficazmente
no seu Coração.
Se alguém o duvida, que releia o Evan
possivel a fuga
atacados pelos
- aqueles dois pés de Cristo
seus beijos, lágrimas, carícias
e essência de nardo...
gellho.
110 111
Deus não teve mais que render-se perante Há quanto tenpo que, de braços e pés
o ataque. pregadoS, espera um beijo teu?
Havian dado com o seu ponto fraco. Naquele Banquete em que Maria Mada
Maria Madalena adivinhou que Deus lena venceu por amor, Cristo queixou-se em
coxeava dos dois pés, E acertou. VOZ alta do Fariseu que o tinha convidado
-A esta mulher muito Ihe foi perdoado, a cear, mas que o não beijara à chegada..
porque muito amou». Enquanto contava a catarata de beijos que
Esta mulher ensinou aOs homens o atalho Maria Madalena fazia tombar sobre os seus
sem custo para chegar a Deus. pés, sentia a falta do beijo que o Fariseu
Um beijo sobre os pés de um Cristo. não quisera dar-Ihe..
Aprende, amigo, como se ataca. Convidaste-o, amigo, a habitar na tua
Conquista Deus pelo ponto fraco dos seus casa. Colocaste-o na presidência do teu lar.
pés. Não lhe negues os teus beijos.
Há muito tempo que os teus lábios não Sente-lhes a falta..
beijam um Cristo Crucificado ? Não ponhas tão alto o teu Cristo na Cruz.
O Crucifixo fez-se para estar ao alcance
Na tua casa hâ um Cristo na Cruz.
dos nossos lábios.
Éo chefe e cabeça do teu lar.
Ofereceram-to no dia do casamento e pen Na sua colocação, acima da estética
duraste-o no teu quarto sobre a cama, para manda o amnor.
que presidisse da cruz a todas as vicissitudes
da família.
Talvez que, desde então, não voltasses a
dar-lhe um beijo. Não tens, amigo, um Crucifixo pequeno,
teu, pessoal, na tua mesa de cabeceira?
E colocaste-o demasiado alto. Beija-o sempre.
Do chão não podes beijá-lo.
Quando se ama, não se contam as vezes.
Terias que subir para uma cadeira. Beija-o todas as noites.
Lá em cima, onde não chegam os teus Que um beijo sobre os pés de um Cristo
lábios, não chega fàcilmente também o espa
sele a jornada de cada dia.
nador; e o teu Cristo na Cruz é provável que
tenha pó e atétalvez alguma teia de aranha.
Beija-o equalquer modo. Embora tenhas
os lábios frios, indiferentes, gelados.
É natural que se tenha convertido num Ainda que os sintas sujos, pecadores,
de tantos elenentos decorativos de um lar
asquerOSOs.
cristão.
112 8 113
Beija-o assim.
Cristo tem os pés pregados, não para
serem beijados pelos anjos que, por estarem
tão altos, não chegam até eles. Cristo espera
o
beijo dos pecadores, já que por nós e só
por nÓS está na cruz.
Os lábios dum homem que obstinada
mente beijam os pés de um Cristo, tarde ou
cedo, beijo a beijo, acabam por purifir-se
e redinmir-se.
Um escultor pode com a sua goiva talhar
na madeira um Cristo Crucificado.
Todos podemos durante a nossa vida
talhar, beijo a beijo, no nosso
sso próprio
Cru
cifixo, os pés redentores do nosso Cristo.
E todos sonhamos, todos não é ver
dade?-que o último beijo da nossa vida
seja para os pés chagados do Cristo da
nossa morte.
Que a cadeia de todos os beijos bons
e maus da nossa existência fique eterna
mente dependurada pelo seu último elo, como
oferenda de homenagem, no cravo que atra
vessa os pés do noSso Crucifixo !
A cadeia de uma escravatura mudada em
grinalda de libertação.
E chegar assim presos, na nossa morte,
aos pés de Cristo
-caminho infalível para
Os braços do Pai.
Porque, nunca o esqueças, amigo:
Deus na cruZ cOxeia dos dois pés!
Boa noite, amigos.
Até anmanhã.
114
Quem te partiu a
cara?
o
mistério.
E sob o lenço insinuam-se, perturba
oras e agressivas, umas feições mais elo
quentes na sua mudez do que se nos cha
massem aos gritos.
Mas não é o caso desta noite.
E o rosto de um morto querido, e então
Olha-se e olha-se com espamto e ternura, in
Baciàvelmente, frente a frente.
115
Hã algo que prende os nossos olhos aber Empresta-nos os teus olhos, Senhora,
tos aos seus fechados. para ver-nos esta noite o rosto morto do
A certeza trágica de que no-lo roubam. teu Filho e irmão nosso, Jesus Cristo.
De que não voltaremos a vê-lo na terra. De Empresta-nos os teus olhos para vê-lo de
que estão contadas, implacáveis, as horas perto como tu, Mãe Crucificada, quando des
para fitá-lo. pregado já dos braços da cruz, o colocaram
nos teus, imensamente abertos, e lhe segu
Vai soprar uma lufada gelada, que fará
em cinzas essas feições, destruindo a sua har raste o rosto, fitando-o cara a cara.
monia. Quanto tempo estiveste muda, contem
plando-o ?
Mas Cristo é um morto diferente de
todos. Era tão absorvente a tua dor, que te
esqueceste de chorar.
Assim, para aprender a contemplar o seu E olhavas, olhavas, devorando faminta
rosto nesta Sexta-feira de Paixão, devíamos com os olhos aquele rosto que as tuas mãos
pedir emprestados os olhos de Maria apertavam e que, embora junto de ti, sen
grande Contemplativa Dolorosa. tias infinitamente longe e ausente.
Desde que o pregaram na cruz, Ela colo Parecia que iam rasgar-se os teus olhos
cOu-se a seus pés, presa ao solo, com os abertos sem pestanejar, num assombro inter
olhos mais firmes que os cravos, pregados rogador sem resposta.
tambén no rosto do seu Filho. Os teus olhos iam e vinham pelo rosto
Não os desviou um instante sequer. amado do Filh0, de espanto em espanto.
Não he escapou um latejo das suas têm Fitavas-lhe os ouvidos, mas não lhe diri
poras, um tremor das suas pálpebras, a pas gias uma só palavra: sabias que estavam
sagem leve do último suspiro através da surdos.
pele tensa da sua garganta... Olhavas-lhe os lábios, mas não lhe fazias
qualquer pergunta, pois não aguardavas já
Perscrutar os olhos insondáveis de Maria resposta.
nesta Sexta-feira Santa é assistir à projec Fitavas-Ihe os olhos. Com o dardo pene
cão íntima e fidelíssima da Paixão de Cristo, trante do teu olhar pretendias levantar-lhe
registada nas suas pupilas e nelas zelosa as pálpebras caídas... Mas cedo desistias
mente guardada. do teu intento. Para quê, se, ao levantá-las,
Que Sala de projecção, os olhos da Mãe, ias mirar-te muns olhos, que não podiam já
para contemplar o filme mais exacto e ver ver os teus?
dadeiro da Paixão do Filho!
116 117
Desiludida, ficou-te unm só recurso. Perante o beijo de Judas, Cristo quei
Juntaste mais aquele rosto morto ao teu. Ka-Se : «Amigo, com um beijo entregas o
Apertaste-o suavemente contra ti para que Filho do Homem ?».
as feridas se não abrissem de novo, e os Ante o beijo de Maria, Cristo já não fala:
teus lábios procuraram a seguir o seu pouso «Tudo está comsumado».
habitual. Senhora, empresta-nos os teus olhos, esta
Beijaste-o silenciosamente para O não noite de Paixão, para sabermos olhar a cara
despertar, como quando era menino. do teu Filho.
E, na face gelada do teu Filho, os teus .Não pedimos nem os teus lábios, nem a
lábios encontraram a marca doutro beijo sua face, porque só tu podes beijá-lo no
-0 de Judas. Tosto.
Então compreendeste tudo. Os nossOs lábios aprenderam ja o seu
Aceitaste tudo. lugar próprio.
Perdoaste tudo. Nós beijamos-lhe os pés.
E os teus olhos, já sem pasmo, voltaram A Vida Ressuscitada de Cristo também
a enternecer-se e lembraram-se outra vez começa com um beijo: o que depõem sobre
das lágrimas. os seus pés floridos de disfarçado jardineiro
Choravas de mansinho enquanto conti os lábios irrefreáveis de Maria Madalena.
nuavas a beijar-lhe meigamente a face.
E o teu pranto quente ia apagando a
marca do beijo de Judas.
Porque eras a Mãe do Filho morto.
E eras a Mãe também de todos os Judas, Vamos, pois, amigos, contemplaro rosto
de todos 0s verdugos, de todos os pecadores. morto o meu Cristo Partido.
O teu beijo de Mãe na sua face recon Aqui está o Cristo. Mas onde está o
ciliava os teus filhos mnaus com o teu Filho Seu rosto?
Bom. Na nossa busca, os olhos embatem, como
Toda a Paixo se desenrola entre dois numa parede de rocha, nessa superfície
lisa
beijos no rosto de Cristo. que, ao partirem-lhe a cabeça de
cima a
0 de Judas: relârmpago de fogo que de baixo, ficou no lugar que ocupava a sua
sencadeia a tempestade. cara.
E o de Maria: selo e lacre final da E os nossos olhos mnagoados resvalam,
Co-redentora. desiludidos, por ela, buscando inûtilmente
118
119
uns olhos, uma face, uma testa, uns
lábios...
Nada. 0 meu Cristo Partido não tem
cara.
Cortaram-na de um só golpe vertical. Porquê, Cristo?
Sei de muitos que, antes de ultrajarem
Na sua Paixão todos se enfurecem contra as tuas Imagens, te destruíram o rosto,
o seu rosto: Judas beijou-o vilmente; um
porque não resistiam aos teus olhos.
soldado esbofeteou-o no tribunal com a mão
Não suportavam que Deus os estivesse
enluvada de ferro: soldados e verdugos
contemplando sereno, manso, impassível, en
arrancaram-lhe a barba, cuspiram-lhe nas quando o quebravam a golpes de mnachado.
faces, rasgaram-lhe a fronte com espinhos...
Não se atreviam a ofender-te cara a
Mas o seu divino rosto ficou inteiro, sem
Cara.
mutilações.
E começavam por esmagar-te o rosto.
Maria pôde beijä-lo, morto, na face. Assim fizeram os soldados na noite triste
Nós, esta noite, com novO pasmo ante
este Cristo sem rosto, apenas poderemos
a tua Paixão, quando troçavam de ti. Não
sei o que havia nos teus olhos, que os não
perguntar-lhe: toleraram. Com um trapo sujo improvisaram
-Quem te partiu a cara? uma venda, taparam-te os olhos e apertaram
Cristo, eu tinha ouvido muitas vezes esta o nó, com força, na nuca.
ameaça nos lábios, trémulos pelo ódio, de Apertaram quanto puderam, até fazer-te
um homem a outro:-«O1ha que te parto doer, para que a luz dos teus olhos não
a cara!». pudesse escapar-se pelo pano. Porque tinham
medo do resplendor do teu olhar.
E sempre pensei que os cegava a ira
neste impossivel e louco desafio. E então, sim, quando te viram vendado,
atreveram-se.
Tudo COstuma terminar num murrO,
numa bofetada, numa navalhada na Assim a nossa valentia de homens!
é
face.
Só em Ti, Senhor, se cumpriu à Entre risadas e chufas da soldadesca
letra a cuspiram-te, davam-te bofetadas, batiam-te
brutal ameaça.
Com a cana na coroa, enterrando-te os espi
Partiram-te a cara!
nhos na fronte e, com momices e gestos de
De cima a baixo.
grotescas reverências, desfilavam diante dos
120
121
teus olhos vendados, desafiando .a tua,
ce
E esto, por vezes, tão sérios e tão
gueira: tristes, que me fazem baixar os meus, en
Adivinha, Cristo, quem te bateu? vergonhados.
Escarneçamos d'Ele, que nã0 nos vê. Nunca pensei que nm pedaço liso e insen
Mas a luz dos' teus olhos atravessava a sível de madeira, como este da tua cara par
venda de pano asqueroso e via-os a todos, tida, pudessem brilhar, sempre diferentes,
reconhecia-os, sabia Os seus nomes e a sua tantos, tão meigos e tão severos olhos.
história cobarde e cruel.
Primeiramente vendamos-te. E a seguir,
já tranquilos, ofendemos-te.
Insensatos!
Não há venda susceptível de cegar os
teus olhos. Pensais, amigos telespectadores, que sem
Ainda que esmaguemos o teu rosto, con pre e a toda a hora consigo imaginar os
tinuas a contemplar-nos. olhos do meu Cristo Partido, na sua cabeça
Meu Cristo Partido, partiram-te a cara, mutilada?
mas inùtilmente. Nem sempre, asseguro-vos.
O normal é a luta estéril e a desilusão
Olho para Ti e não vejo os teus olhos,
mas sinto que me fitas, embora de um modo impotente.
diferente de quando tens olhos em qualquer Procuro contemplá-lo com toda a alma
outra tua Imagem. acumulada nas pupilas e vejo sòmente ma
deira em vez de rosto.
Aqui, sem olhos, fulminas-me com olhos Madeira impenetrável em que fazem ri
invisíveis. cochete os meus olhares.
Não se vêem, mas existem. Madeira duríssima e esquiva que resiste
Como se essa superfície que te esmagou, aos meus anseios.
aplanando-te o rosto, fosse apenas uma Nem olhos, nem ouvidos, nem faces, nem
venda transparente, que se ilumina de sú boca.
bito cm o clarão oculto do teu olhar! Só madeira. Um pedaço vasto e informe
de madeira sobre os ombros do meu Cristo.
Partiram-te a cara, porém, jamais tive
um Crucifixo com olhos mais belos e irre Como se o meu Deus fosse, perante mim,
o tronco inerte dum bosque.
sistíveis.
122 123
Um Deus de madeira. fé até que um dia, por recompensa, vejas
E confesso-vos, amigos, então protesto, a cara de Dous. Seráessa a felicidade eterna!
queixo-me e revolto-me, enfrento Deus e gri
to-lhe:
-Por que não te deixas ver, Senhor?
Por que me condenas a servir-te nas
trevas ? O meu Cristo Partido, sem cara, é o
Pareces um Deus cego, insensível, surdo símbolo plástico da minha fé.
e mudo.
Passo muito tempo olhando e olhando
Faço-te perguntas e não respondes. esse corte vertical, que éo seu rosto inexpres
Falo-te e nem sequer sei se me escutas.
sivo, como quem se exercita e treina para
Protesto e permaneces hermético. os dias nublados e tempestuosos da vida, emn
Peço-te de joelhos que me fites, que me que olhamos o céu e o céu é uma superfície
mostres os teus olhos e em vão. Como se
fosses cego. lisa e metálica, como o rosto do meu Cristo,
que nos esmaga sem piedade ou nos repele
Se me fitasses uma só vez, se congeguisse
ver os teus olhos, ainda que apenas por uma inexorável.
Mas não deixa de ser doloroso, amigos,
fracção de segundo, sei que passaria a ser
bom, bom deveras e para sempre. ter sempre presente a meu lado um Cristo
sem cara.
Que jamais voltaria a ser mau, jamais...
Perante esta brutal mutilação, suporto e
Nao queres que eu seja bom? Pois então aguento as outras, por penosas que pareçam.
olha para mim, Cristo, olha para mim!
-Bemn olho para ti disse uma vOz, no Suponho mesmo que acabarei por
habi
meu íntimo, sem lábios nem palavras tuar-me a vê-lo maneta e coxXO do lado
direito.
Olho para ti, não afasto os meus olhos da .Ao que jamais se acostumam OS meus
tua vida. Que seria de ti se deixasse de olhos é a vê-lo semn cara.
fitar-te ? Olho-te, ainda que não vejas que Cada vez qule o meu olhar encontra o
te olho. Os meus olhos vêem-te, embora tu corte do seu rosto, 1astimam-se as
pupilas e protesta o coração. minhas
não os vejas. É esse o mérito da fé: avançar o que
para Mim de noite, tacteando nas sombras, me custa não poder É mais
restaurar.
solicitando respostas que não chegam, esten Para os meus olhos, feridos de se roja
dendo umas mãos frustradag que nunca r'em pelos membros mutilados
do meu Cristo,
alcançam nada. Segue, filho, pela noite da seria um doce bálsamno poderem
no oásis sereno descansar
do seu rosto.
125
Daí a pungente tentação de restaurá-lo.
m
Porque esbogo ousado domina-se pela
Impossível. Prometi-lho. técnica.
Aguentarei toda a vida, frente a frente, Mas o risco audacios0 de pintar a cara
este doce e terrível Cristo sem rosto. de Cristo requer, para além da técnica, o
Pergunto-lhe muitas vezes: amor.
-Como era, Senhor, o rosto que te cor Técnica e amor que, sem dúvida, têm
taram? possuído muitos pintores e escultores ins
Com a minha imaginação completo fàcil pirados ao modelarem o rosto de Cristo.
mente o braço e a perna direita que te fal Oada artista, no seu arriscado esforço,
tam, porque tenho no lado esquerdo o modelo deixou-nos apenas uma visão parcial, nada
de ambos para recomp&-los. mais que um determinado instante, uma in
Mas, Coino era a tua cara?
terpretação fugaz desse rosto inacessível,
infinito na sua riqueza psicológica, inaca
Estavas vivo ou morto? Olhavas seve bável na sua expressão muitiforme.
ramente ou com doqura? Tinhas os olhos Por Salas, Palácios, Catedrais, Colecções
fechados ou fixos naquele que te contem e Museus andam distribuídas essas
parciais
plava? Que havia nos teus lábios? Sete Pala interpretações do rosto de Cristo.
Vras, Agonia, Último Suspiro ou Insondável Mas também este esforço, que pretende
Silêncio? superar as suas limitações para aproximar-se
Impossivel adivinhá-lo. de Deus, é, como a nossa fé, uma oferta e
Mais impossível, porém, acertar comn as uma homenagem de amor.
tuas feições. Ver a Cara de Deus é o sonho irrepri
Pus-te já mil caras, criadas pela minha mível dos homens.
fantagia, e nenhuma me convence. E, como os rOstos gue eu inventara eram
sempre um fracasso, pedi
Que difícil dar com a Cara de Deus! aos
meus pintores e escultores emprestadas
que eles criaram nos seus
favoritos as caras
retratos de Cristo.
E, já que não p0 Sso restaurar fisicamente
0 seu rosto, dedico-me, num jogo
da minha
Compreendo que tantos artistas se te fantasia e do meu carinho, a restaurá-lo em
nham furtado à tarefa de enfrentar o rosto pensamento, colocando na sua cabeça sem
de Cristo e se refugiem no ardil de um feições as caras que para
Cristo sonhou a
difícil e atrevido esboço. arte universal,
126 127
e cada
Gasto neste jogo horas e horas. Tornam-se mais duras, afiladas
o
Consola-me a ideia de que desagravo véricas, se evoco Mantegna.
seu rosto ofendido, vertendo nele toda a his E atingem a sua máxima tragédia fúne
tória da Arte. Todos os estilos. bre ao lembrar-me de Grünewald. er
Pelo corte da sua cara vão passando, num Desperto-as, porém, imediatamente,
desfile lento e deleitável, Museus, Colecções, guendo-as do peito encovado até vê-las
Galerias, Catedrais, Pinacotecas.. tensas e erectas no «Ültimo Suspiro do Ca
Sinto-me Velásquez e ofereço-lhe um chorro» de Ruíz Gijón
.
rosto de rei, soberanamente repousado e Essa insuperável cabeça de Cristo, em
seren0. Triana, que, ao mesmo tempo que luta cora
Ou recorro a João de Mesa para Ihe dar josa com a morte, deixa já entrever, no seu
o patetismo barroco do <Grande Poder» u gesto, o triunfo infalível da sua Ressurreição.
do «Cristo de Vergara». Quantas horas terei gasto, pondo caras
Ou a Montañés e, em contraste, envolvo-o ao meu Cristo Partido?
na olímpica beleza clássica de «Jesus da Não sei.
Paixão» ou do «Cristo dos Cálices». Nunca mais acabo. Tudo me parece pouco
Se evoco Fra Angélico, obtenho um dul para desagravar e embelezar o seu rosto
císsimo rosto, que transmite perdão e ter esmagado.
nura. E volto ao princípio...
Se me volto, porém, para Leonardo, uma Revejo os cantos de velhos museus esque
infinita tristeza ensombra o meu Cristo Par cidos. ILembro-me com alegria de mais pin
tido, como na «Ceia». tores, de novos retratos, de perdidas escul
Recorro então ao Greco, e as lágrimas turas, que a minha memória descobre com
trémulag do «Espólio» rolam, sem cair, pela esforço.
madeira transfigurada.
E um novo desfile de caras e caras belas
Se um dia o quero terrível na sua justiça, vai-se projectando sobre a tela lisa do meu
basta-me pensar em Miguel Angelo e na Ca Cristo sem rosto.
pela Sistina..
Mas tudo isto dura pouco. Prefiro a paz
e o repouso da morte. Então faço dormir
o meu Cristo com as cabeças jacentas, que
para Ele modelou, em Castela, Gregório 6 «El Cristo del Cachorro»,
existente em Triana.
Imagem muito venerada na
Fernández. Crucificado.
devoção de Sevilha a Cristo
128
129
cara partida. Sê sincero: procuras o meu
conforto ou o teu? Examina-te.
Eu guardava silêncio. O Cristo Partido
Mas há dias tive que renunciar tam acusava-me implacável. E continuava:
bém ao conforto deste carinhoso passatempo. Aflige-te ver-me como estou. E cons
O meu Cristo Partido é terrível nas suas tróis com a tua imaginação belos rostos
exigências. Não concede tréguas. mentirosos que interpões entre os teus olhos
E também mo proibiu. e a minha cara cortada de um golpe. Não
consegues aceitar a verdade sem atenuantes
Julguei de começo que lhe agradava e
comprazia. da minha Paixão. Preferes a mentira das
tuas fantasias. E cada. uma dessas caras
Suportava-o, pelo menos, em silêncio.
Atéque um dia não pôde aguentar mais é um disfarce sobre as minhas dores. Basta!
e interrompeu-me Aceita-me assim, partido, sem cara.
severamente:
me ponhas -Quero aceitar-te, Senhor. Mas não sei.
-Basta! Não mais caras. Ajuda-me.
Tolerei o teu jogo demasiado tempo. Espe
rava, calado, a ver se tu próprio chegavas Calámo-nos ambos.
Que podia eu acrescentar? Não me atre
a compreender que não era do meu agrado
o que supunhas uma desafronta e um con via sequer a fitá-lo.
Até que o Cristo, num tom mais doce
solo. Vejo, porém, que é inútil. Não conse e insinuante, prosseguiu :
gues entender-me. Não me ponhas mais
essas caras que pedes por esmola à arte dos -A não ser que quisesses ensaiar outro
jogo, pôr-me outras caras... Essas, sim,
homens. Quero estar assim partido, sem
cara. Prometeste que jamais me restau aceitá-las-ia..
Quais, Senhor? Pô-las-ei em seguida.
rarias...
Não creio. Conheço-te.
-E continuo a prometê-lo, Senhor Porque não? insisti decidido, dese
respondi perturbado e sincero -. Julguei jando agradar-lhe. Diz-me de que caras se
que este passatempo das caras não era res
trata.
taurar-te.
me restauras fisicamente o rost0,
Não
-Receio que não entendas. Inclusive
que te escandalizes como os fariseus. E uma
é verdade. Mas procuras, no fundo, sem te lição muito ura.
aperceberes, outro,restauro que te permita
escapar à angústia que te produz a minha Farei
que
tuo o possívelpor compreen
dê-la. A caras te referes? Diz-me.
130
131
--A outras, mas reais, não fingidas Mas não havia remédio.
como AS que inventavas. E que são tambémn A sua voz pausada e segura ressOou.
minhas, muito minhas... Como a que me Perguntava-me:
cortaram de um só golpe. Não tens por aí um retrato do teu
-Ah! Creio adivinhar, Senhor! inter inimigo ? Desse que te inveja e te não deixa
rompi satisfeito. viver. Do que, por sistema, deturpa todas
Vamos ver. Explica-te -intimou-me as coisas. Do que sempre, por toda a parte,
Cristo. diz mal de ti. Do que te despeza. Do que
-Não te referes às caras dos Santos, te arruinou. Do que deu más e decisivas
dos Apóstolos, dos Mártires, •das Virgens, informações de ti, Do amigo traidor que te
que são tuas porque os seus donos, parti armou uma cilada. Do que conseguiu afas
cipando da sua santidade, se tornaram se tar-te do emprego que tinhas. Do que vil
melhantes a Ti? mente te caluniou. Do que malogrou os teus
planos. Do que te persegue sempre. Do que
-Vês como não acertas? Sorriu Cristo
tristemente. É verdade que essas caras jamais te perdoa. Do que te enganou mise
são minhas, como disseste. Mas essas já as ràvelmente. Do que meteu na prisão o teu
irmão. Do que se aproveitoù da guerra e
tenho e ninguém mas nega ou regateia. matou o teu pai...
Quero outras caras, que são também mi
Cristo, por favor, não prossigas
nhas... As dos Santos são demasiado fáceis exclamei, indignado. Cada frase ia-me infla
de colocar sobre o meu rosto esmagado. Mas
essas, que reclamo, bem poucos, pouquís
mando; por fim, não pude mais.
Cala-te, Senhor, por piedade supli
simos, ousariam pôr-mas. quei com voz submissa.
Eu sim; diz-mas atalhei, veemente. Vês? Logo te preveni.
-
Bem demasiado,
É
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-Continua, Semhor, continua a falar-me. compreenderás? Que sabes tu dos meus pla
Bem. Reparaste já nas caras dos le nos? Que sabes dos meus desígnios sobre
prosos, dos anormais, dos idiotas, dos men as almas? Que poderás entender das infi
digos sujos e malcheirosos, dos imbecis, dos nitas loucuras do meu Amor?
loucos, dos que se babam?... Nunca o meu Cristo me falou com tão
E vais dizer-me, Cristo, que essas soberana e divina solenidade.
caras são tuas? E que tas ponha?
Ecoava na Sua vZ uma ressonância de
Naturalmente. E vais pôr-mas!
-Impossível. 'eternidades.
- Vais agora compreender um pouco
o
Espera. Não acabei ainda. Toma bem
que foi a Redenção. Escuta: T'ornei-me, vo
nota desta última lista e não esqueças ne
nhum rosto. Tens que pôr-me a cara do blas luntàriamente, responsável por todos 0s pe
femo, do suicida, do criminoso, do traidor, cados, vícios e degenerações de toda a huma
do vicioso, da prostituta. nidade ao longo da sua história. Carreguei
com todas as suas blasfémias, crimes, aber
Calava-me. Impossível responder.
-Não ouviste? Necessito que ponhas rações e vícios. Tudo pesava sobre Mim.
todas essas caras sobre a minha. E com tudo às costas me pregaram na Cru1z.
Não sei, Senhor. Não entendo nada. O meu Pai aSsomou-se para ver-me. Ele
Essas caras sobre a tua cara? revê-se sempre nos meus olhos. Eu sou o
– Sim, sobre a minha! -prosseguiu
-.
espelho em que se contempla satisfeito o
Cristo cada vez com mais ardor E admi meu Pai. Sou o seu rosto. Deus não tem
ras-te que os e a
tolere queira sobre minha cara visível. Sou a cara de Deus.
cara? Mas não vês que os trago no coração, Debruçou-se do Céu para ver-me na Cruz
que é
mais, infinitamente mais, que tra e contemplar-se no meu rosto. Cravou os
zê-los sobre o rosto? Não vês que dei a vida olhos em Mim. Eo seu pasmo foi infinito.
por todos? Por todos, ouves ? Por todos!
Sobre o meu rosto viu sobrepostas, suces
Cristo calou-se.
siva e vertiginosamente, as caras de todos,
Perturbado, eu evitava até olhá-lo, quanto absolutamente de todos os homens.
mais retorquir-lhe.
A sua voz, agora mais íntima, prosseguia: Na minha cara estavam todas as caras.
0 que
mais me decepciona é que te Porque eu, voluntàriamente, para que
escandalizes. Que te assustes farisaicamente. Ele os não castigasse, dava a cara por todos
Que longe estás de mim, então ! Quando me OS homens, meus irmãos.
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E assim sem cara.
fiquei A do assassino e criminoso, fria, calcula
O meu.Pai durante aquelas três horas dora, repulsiva..
da minha agonia na cruz esteve conten Caras de celas, de presídios, de campos
plando, do Céu, o desfile trágico de todos de concentração.
os TOstos sobre o meu rosto. Era horrível. Caras de prostíbulos.
Entretanto, porém, eu dizia-lhe: «Pai, per Bocas pestilentas de blasfémias.
doa-lhes, não sabem o que fazem». Lábios repugnantes com babas asque
Eo meu Pai perdoava-lhes. Não os con rosas.
denava. Meu Pai amnava-os, porque estavam Olheiras fundas, marcadas pelo fogo da
na mimha cara. Porque Eu dava a cara por luxúria.
eles. Porque eles eram então a minha cara. Pupilas toldadas e viscosas dos dro
E reconciliou-se com aquela humanidade gados.
que via no espelho do meu rosto.
Hálito intolerável vinho fermentado,
Não era Eu só que estava na Cruz. dos ébrios.
Nem morria Eu só. Narizes curvos, aves de. rapina, dos la
Todos vos apertáveis a mim. E todos drões, avarentos e usurários.
morrieis comigo. Palidez de sórdida madrugada no vício.
Eu tinha inúmeros rostos. Infinitas Rictos de amargura, de desespero, de
caras. ódio, de raiva, de despeito.
Sobre a minha cara livida e destroçada, Dentaduras fétidas, com dentes apodre
sobre as feridas, os rasgões, o pó, o fel, o cidos, dos invejosos.
sangue e a saliva, iam-se projectando todas Olhares turvos de perversão, de com
as vOSsas caras. plexos psicológicos e de misteriosas e escon
Nunca por um <écran» passou um des didas anormalidades.
file tão repugnante, tão grosseiro e perver Eu sentia pesar sobre a minha pobre
tido. boca crucificada o cigarro de ópio, o copo
meu Pai, que não tirava os olhos da
O
de «whisky», a droga, o veneno, o vómito,
minha cara, reconhecia sobre ela todas as o pus, a agonia, a morte.
VOSsas caras: Que inifinita dor e que infinito amor na
A do soberbo, num desafio, com a fronte minha cara!
vincada de protesto e rebeldias. Do céu, o meu Pai contemplavao desfile
A do sectário, maquinando a destruição e perdoava: éreis já meus irmãos! Na terra,
de Deus e da sua Igreja. junto à cruz, Maria, minha Mãe, observava
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esse desfile de caras. E foi então que Eu
uma moldura vazia.
lhe disse:
–Mulher, olha os teus filhos. Mas já conhecemos a sua utilidade.
E em mim aceitou-os a todos. Fez-se Mãe Amigo, tens um rosto de irmão que não
de todos. Amou-os a todos infinitamente. podes ver? Odeia-lo ? Fez-te muito mal?
Porque os via a todos no rosto do seu Continua a fazê-lo? Não consegues perdoar
Filho. -lhe?
Compreendes agora o que foi a minha Já sabes o que Cristo pede.
Redenção ? Vamos, sê forte! Toma essa cara anti
Adivinhas a loucura do meu amor, que pática e repugnante do teu inimigo, apro
foi capaz de dar a cara por todos vós? xima-a de Cristo; atreve-te, decide-te.
B agora já te atreves a pôr sobre a Ainda que te trema a mão.
minha todas essas caras? Ainda que se revolte, inflexível, o teu
Estou certo de que jamais voltarás a amor próprio. Ainda que gritem e protes
pôr-me esses disfarces mentirosos que men tem, rebeldes, os teus mais elementares ins
digavas aos Museus. tintos.
Que ridícula a arte dos homens! Vamos. Aproxima mais essa cara.
Que insondável o amor de Deus! Junta-a à de Cristo na Cruz.
Que fiquem sobrepostas. Feições sobre
feições.
V agora: Cristo está na Cruz com a
cara do teu inimigo.
Fecha os olhos.
0 meu Cristo Partido emudeceu desde Entreabre os lábios.
então. Aproxima-os dos pés de Cristo.
Dera-me a suprema e mais fácil lição. E beija-o!
E não voltou a falar-me. Beijarás um Cristo que temn a cara do
Esta noite, despedimo-nos d'Ele. teu inimigo.
Não esqueçais nunca, amigos, esta super Já não o odeias.
ficie lisa e nua do seu rosto, cortado verti Cristo sorri agradecido e contente.
calmente. Envolve-te, musica! e acariciadora, uma
É um <écran de projecção perante o VoZ eterna: «Amai-vs uns aos outros, como
Beu Pai. Eu vos amei.
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E sentirás queno teu coração, sem ódios
índice
nem rancores, começa a despertar o amor.
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colecção colecção
NOVOS RUMOS
POLIEDRO
1. MENSAGEIROS DÀ ALEGRIA
por B. Haring
2. A IGREJA D0 FUTURO
por A. Hortelano
1. VIA-SACRA DE TODOS NÖS (2. edição)
3. FIM-DE-SEMANA por Alessandro Pronzato
por R. Dufour
0 DEUS EM QUEM NO CREIO (3. edição)
4. TERRAMOTO NA IGREJA 2.
por Juan Arias
por Riccardo Lombardi
A
VIDA 0 MEU CRISTO PARTIDO DE CASA EM CASA
6. CRIST À LUZ D0S SACRAMENTOS 4.
por B. Haring por Ramón Cué (4. Edição)
5. 30 JUDAS À SOLTA
por J. L. Martin Descalzo