quarta-feira, 19 de março de 2025

Sentimentos

Sentir é como o voo de um pássaro,

dom do ser terrestre, humano.

Sentir é o inferno estabelecido

num dia lindo, azul tamanho

a se perder no tempo.


Sentir é encher-se de graças

e alegrias infinitas, flores, sorrisos,

num sentimento que não cabe

em si, no tempo: infindo

a se regar no vento.


Sentir é ser sublime,

para o bem ou para o mal;

é estar radiante como o céu,

é ser autor e réu, afinal,

infinito num instante.


Sentir é dom, é tudo, é...

algo que nos torna mudos

ou faz querer dizer tudo, tudo

e não poder.

pois infinito num instante.

e nem com mil alto-falantes

poder dizer o que se quer

a se perder

no sentimento.


Sentir é o que nos faz querer

existir, ser, saber, viver,

amar, ir, chegar, sorrir,

de amores morrer

e não se abster.

terça-feira, 18 de março de 2025

Espelhos

Às vezes, precisamos das pessoas,

como de espelhos que nos revelam,

mostrando os contornos que nos definem,

dizendo quem somos além de nós mesmos.


E cada reflexo, em luz ou em sombra,

molda a certeza que em nós renasce,

pois quando me vejo nos olhos de alguém,

gosto ainda mais do que sou de verdade.

Aos pássaros do Passeio Público

Pardais e sabiás que a manhã enfeitam,

curiosos papagaios tagarelas,

entre as ramagens verdes se deleitam,

meus companheiros de asas tão belas.


Vim repartir convosco a minha lida,

trazer-vos versos como quem semeia,

na esperança de ver, na voz contida,

um céu que em vossos olhos ainda anseia.


E se a gaiola esconde a imensidão,

a natureza em vós ainda brilha—

pois nunca a mão do homem ou prisão

apagam da ave o céu de sua sina.


Cantai, irmãos! Que a vossa melodia

se espalhe além das grades e do tempo.

Ainda que presos, a vossa harmonia

liberta o mundo de seu tormento.


E se um acaso a sorte me convida

a repousar da minha inquietação,

basta um bater de asas na partida

para lembrar que há céu no coração.

sexta-feira, 14 de março de 2025

Excessos

Toda embriaguez esconde uma sede,

todo grito cala o silêncio que antecede,

e a pressa feroz que corre do tédio

é medo oculto de estar perdido.


O riso que estoura espanta o luto,

a gula devora o que não se tem,

o verbo excessivo encobre o bruto

silêncio de quem não diz a quem.


Todos os excessos escondem uma falta,

o universal é sempre universal de alguém.

Quem quer tudo teme o nada

e a nada se detém.


Acende-se mil luzes para fugir da sombra,

inaugurando na luz uma nova cegueira

enfeita-se de glória, temendo o espelho,

na natureza crua, sem rodeio.


E assim segue-se, em ânsia e excesso,

querendo o todo sem ver a parte.

Assim, perde-se o sentido, antes intuído...

- lá em Eclesiastes -

No fim, percebe-se que tudo é vaidade.

quarta-feira, 12 de março de 2025

12/03/2025 - De volta à universidade

Mas o solitário é como uma coisa submetida às profundas leis. Ao sair para a manhã que aponta, ao olhar para a noite cheia de eventos, se chega a sentir tudo o que aí acontece, todos os encargos desprender-se-ão dele como de um morto, embora se encontre no meio vibrante da vida. (…) 

Não tendo nenhuma comunhão com os homens, procure ficar perto das coisas, que não o abandonarão. Ainda há as noites e os ventos que passam pelas árvores e percorrem muitos países. No mundo das coisas e dos bichos tudo está ainda cheio de acontecimentos de que o senhor pode participar. As crianças são ainda como o senhor era quando criança, tão tristes e tão felizes -e, quando pensar na sua infância, torne a viver entre elas, as crianças solitárias: os adultos voltarão a não ser nada, e suas dignidades não terão nenhum valor. 

(Cartas a um jovem poeta, Rainer Maria Rilke, p.53)


Essa semana estive de volta à universidade, como mestrando em Filosofia, na Federal do Paraná. Há tempos esperei por esse momento, o qual, desde o fim do curso de Direito, aguardei ansiosamente, pois, apesar de frequentar espaços de grupos de pesquisa e especializações online, nada me instigava intelectualmente, exceto algumas conversas entre professores e conversas de bar. O ambiente universitário, ontem, escancarou minha ignorância, que há tempos não era posta à prova, ao menos não de forma tão abundante. E como eu amo esse sentimento! Essa angústia de me deparar com tanta coisa que não sei. Um misto de interesse e desespero ao mesmo tempo. Desespero não é bem a palavra, mas algo como estar diante da impossibilidade de conhecer todas as coisas, ler todos os livros, dominar todos os conceitos, ser como Deus (Fausto). Desejante e, apesar da impossibilidade, a ela fechar os olhos, e fazê-lo, ir, ler, conhecer, aventurar-se.

Sentia falta desse ambiente vertiginoso, dessa floresta simbólica, que, como em Baudelaire, se apresenta em caminhos infinitos.

Apesar de a primeira aula, na segunda-feira, ter sido uma enrolação, na qual o professor nos encaminhou para uma palestra de boas-vindas aos alunos do curso de Direito—daquelas aulas magnas prolixas, que estendem um simples "sejam bem-vindos" a um falatório sem fim—, apesar disso a fala foi boa. Embora endereçada a outro curso, nada tinha a ver com os objetivos do mestrado. Mas, a mim, se dirigiu minimamente bem, por ter cursado Direito e já conhecer a obra da professora Debora Diniz. No entanto, conheci pessoas que também se perderam pela Reitoria da Universidade, sem saber da palestra. Descobrimos juntos: um rapaz, jornalista e aluno especial de mestrado, e um casal do estado de Goiás, professores do Instituto Federal, que estavam para cursar o doutorado. Isso fez valer a pena a caminhada, pela boa conversa envolvida.

Ontem, a aula foi voltada à matéria de seminários, isto é, planejamento e apresentação dos projetos. Ali, ouvi diversas ideias a serem apresentadas, projetos dos mais variados e específicos em subjetividade. Foi divertido. Na saída, conversei com algumas pessoas, entre elas um rapaz que desenvolverá uma pesquisa sobre Ulysses de James Joyce e que tinha uma tatuagem igual à minha, e uma moça que se interessou pelo livro que eu lia, de Barbara Cassin, sobre a tradução, e contou haver um professor da universidade que foi orientando dela, o que me interessou conhecer. Outra moça pesquisa o Antropoceno, cujo tema havia acabado de desenvolver em um artigo. Senti-me envolvido por uma série de temas que já pesquiso e por oportunidades de conversa sobre outros que desconheço. Foi divertido.

Antes do início da minha aula, aproveitei o atraso da Professora para assistir, como um intruso cordial, a uma disciplina voltada aos doutorandos—um convite casual do Professor que a ministrava. Ele falava de forma descontraída, quase num tom de conversa de bar, sobre as bancas de qualificação, o processo de arguição, suas dinâmicas e, sobretudo, a vaidade que permeia tanto a apresentação das pesquisas quanto sua avaliação. Era impossível não perceber, nas entrelinhas, no sub-texto como em Stanislavski, uma referência implícita a Eclesiastes: "tudo é vaidade". Sua ironia não era amarga, mas lúcida, revelando uma espécie de desencanto afetuoso com o ritual acadêmico, ao mesmo tempo necessário e teatral. Chegou até em falar da vaidade como virtude, quando em termos virtuosos. Gostei dele. Falava sem pressa, sem a solenidade excessiva de quem se leva a sério demais. 

Havia um certo prazer na desmistificação, como se, ao expor as engrenagens do jogo acadêmico, ele nos libertasse um pouco da ilusão de que a pesquisa é um caminho puro e incontaminado. Mas, antes que pudesse me aprofundar mais naquela conversa, minha aula finalmente começou, e tive de me despedir daquele breve intervalo de irreverência. Ainda assim, levei comigo aquela reflexão sobre vaidade. No fundo, o que buscamos ao escrever, apresentar, argumentar? A pesquisa é um exercício de conhecimento ou também uma forma de afirmação, de inscrever-se no olhar do outro? Talvez seja impossível separar uma coisa da outra. 

Nada novo sob o sol.

Ao fim do dia, caminhei pelos corredores da universidade com a sensação de reencontro—não apenas com o ambiente acadêmico, mas com a inquietação intelectual que sempre me moveu. Aquele breve contato com colegas, projetos e leituras abriu frestas para novas possibilidades de pensamento, confirmando que o retorno ao espaço universitário não é apenas uma continuidade, mas uma renovação do desejo de conhecer. Entre a vertigem do desconhecimento e o prazer da descoberta, percebo, ainda prematuramente, que estou exatamente onde deveria estar.

A universidade tem, para mim, esse vínculo de lar—não no sentido físico, mas como um espaço de pertencimento existencial. Em meio às incertezas sobre o futuro, sobre onde viverei, se estarei só ou acompanhado, quais horizontes se abrirão, ela permanece como um norte, uma referência constante. Quando tudo o mais parece instável, a universidade se mantém como uma possibilidade sempre almejada, preenchendo uma lacuna que não é apenas profissional ou acadêmica, mas profundamente existencial. Talvez seja por isso que, mesmo diante das mudanças inevitáveis da vida, continuo a encontrá-la como um refúgio, um lugar onde o pensamento pode se expandir sem a necessidade de respostas imediatas. Há uma segurança peculiar nesse ambiente, não por oferecer certezas, mas por acolher as dúvidas sem pressa de resolvê-las. Diferente de outros espaços, onde se exige prontidão e definições rígidas, a universidade permite o intervalo, o ensaio, o erro como parte do processo. Ela não dita caminhos, mas abre possibilidades, e é nessa abertura que reside seu valor. Assim, mais do que um destino, a universidade se torna uma espécie de constância—não apenas um lugar para se estar, mas um modo de continuar sendo.

Talvez seja essa sensação de permanência que faz da universidade um lar para mim—não um lar no sentido convencional, com paredes fixas e rotinas previsíveis, mas um território onde a solidão se transforma em companhia silenciosa. Porque, no fundo, há uma solidão inevitável no pensamento, no esforço de compreender o mundo e a si mesmo. E, ainda assim, essa solidão, dentro da universidade, nunca se fecha completamente. Ela se cruza com outras solidões, se reconhece no olhar disperso de um colega, na hesitação de uma pergunta feita em voz baixa, na troca de referências que por um instante nos tira do isolamento e nos coloca em uma rede invisível de afinidades.

Ao voltar ao apartamento, senti o vento frio da noite passar pelas árvores, e me peguei pensando na solidão do conhecimento—não como um isolamento ruim, mas como algo essencial para realmente aprender. A universidade, com toda a troca de ideias e debates, não apaga essa solidão, só a transforma em um jeito diferente de estar no mundo, mais atento, mais curioso. Como disse Rilke, “o solitário é como uma coisa submetida às profundas leis”: quando a gente se abre para sentir o que acontece ao redor, as pressões e cobranças vão ficando para trás, como algo que já não nos pertence. Caminhando por aqueles prédios antigos, por onde passaram tantos como eu, recordei que o mais valioso talvez não esteja só nas conversas ou nas aulas, mas naquilo que permanece—nos livros esperando para serem lidos, no vento que passa sem pedir licença, no simples ato de olhar para o mundo com outros olhos.

terça-feira, 11 de março de 2025

Nu com meu violão

Sozinho, eu canto pra lua cheia

Alheia, tu foste e eu fiquei sem rumo

Resumo, te vejo em qualquer esquina

Me nina, me nina

E sigo de peito aberto


Coberto de um lamento insone

Meu nome, esqueces na tua ausência

Demência, comprei uma pinga amarga

Me embarga, me embarga

A voz que te pede volta


E solta no vento a melodia

Seria consolo se fosse tua

Nua, minh’alma se faz morada

Trancada, trancada

No tom que me dói no peito


Perfeito seria se tu soubesses

Me desse um canto da tua boca

E louca, tu voltas sem mais aviso

Sorriso, sorriso

E o tempo me desengana


Me engana, me deixa, mas me nina

Menina, eu sigo com meu violão

Canção, sou nu e sou só promessa

Confessa, confessa

Que um dia de novo me beija.


Pois embalo meu peito na espera

Quimera, danças no meu pensamento

Lamento, mas sigo de verso em verso

Reverso, reverso,

E o tempo me vira as costas


As notas que toco te chamam mansa

Descansa, um dia me volto ao nada

Cantada, fizeste de mim brinquedo

Segredo, segredo,

Que a lua me conta ao longe


E foge meu sono, vigília amarga

Me embarga, a taça vazia e muda

Saúda meu pranto a madrugada

Dobrada, dobrada,

A dor me faz companhia


Vazia, na noite, balança a brisa

Precisa de ti, mas não me escutas

Me multas, se peço tua presença

Sentença, sentença,

No peito essa dor me pesa


A reza que faço ninguém responde

Aonde se esconde teu riso breve?

Me embebe, saudade no vinho forte

A sorte, a sorte

Que um dia te traga ao canto


No entanto, me enrosco em melodia

Tão fria, guitarra que geme rouca

E pouca me resta senão canção

Paixão, paixão,

Queria poder cantar


Te amar é delírio e não cansa

É dança, se faz um tango bêbado

Efêmero, é sombra, é ilusão

Canção, canção,

Meu pensamento se embala.


Desencana, me deixa, mas me nina

Menina, eu sigo com meu violão

Canção, sou eu e sou só promessa

Confessa, confessa

Que um dia de novo me beija.



Flores a Baudelaire

A ti, que bebeste o absinto da treva,

e viste no lodo um jardim de esplendor,

trago estas flores colhidas na névoa,

banhadas em tédio, regadas em dor.


Teu verbo é um cântico lúgubre e denso,

um fumo que enlaça os que ousam sonhar,

um vento de luto, fatal e imenso,

que impele os errantes ao fundo do mar.


No altar das sombras, queimaste incenso,

brindaste ao abismo com taças de fel,

e ainda nos versos, eternos, intensos,


teu riso ecoa, sarcástico e cruel.

Por isso, ó Mestre, com púrpura e espinho,

deponho estas flores no teu caminho.

Os Rigores da Paixão

Quem nunca amou sem medo e sem medida,

lançando ao vento o timbre da razão,

não sabe o gosto ardente desta vida,

nem viu dos céus ruir a proteção.


Que valem muros, âncoras, receios,

se o fogo pede entrega e perdição?

Se a sorte espreita, a rir, por entre anseios,

cega e cruel, mas cheia de emoção?


Queime-se a pele, rompa-se a esperança,

desfeita em cinza a doce ilusão,

pois vale mais a febre e a lembrança


do que uma paz sem risco ou exaltação.

E mesmo em dor, em sombra ou solidão,

resta o fulgor dos rigores da paixão.

sexta-feira, 7 de março de 2025

Coração Taoísta

Flui o rio sem luta ou memória,

segue o vento sem dono ou razão,

no vão do tempo, a eterna história,

em vão se busca explicação.


O bambu se curva à tempestade,

não quebra, não teme, apenas se inclina.

Na ausência de pressa ou ansiedade,

a paz se esconde na brisa fina.


No peito, um eco — já não me apego,

não forço a rota, não prendo o vão.

Se não governo o mar em que navego,

sigo o curso, sou um só com a imensidão.

Amálgama

No ermo azul do peito abandonado,

sertão d’alma em febre e solidão,

ecoam vozes num tropel calado,

murmúrios densos de qualquer visão.


Se um rio há, é sombra em brasa fria,

corrente muda em leito sem razão,

não há nascente, apenas maresia,

de um mar sem cais, sem tempo e direção.


Mas sob a pele, a terra reverbera,

fagulha antiga, em fogo subterrâneo,

memória feita em lâmina e quimera,

raiz e vento, abismo do âmago.


E cada passo é rastro que me inventa,

luz e barro, ausência e plenitude,

sou tudo e nada, em guerra violenta,

sou um e mil na mesma inquietude.

Deus e o Diabo na Terra do Futebol

No grande estádio, o céu se fez fronteira,

divino jogo em tarde derradeira.

Com farda alva e olhar onipotente,

Deus apitou com pulso efervescente.


No outro lado, em listras carmesins,

Diabo armava os lances dos serafins.

Torcida em transe, hino e oração,

milagre ou desventura, tudo é invenção.


"Avante, irmãos!" – brada o pastor, vidrado.

"Aqui, não há empate no sagrado!"

"Fiéis, jamais!" – relincha o outro lado,

"Melhor cair de pé que ser domado!"


O povo grita, urrando em desatino,

deixando a vida ao pé do seu destino.

Quem crê na cruz e quem levanta o tridente

se abraçam, bêbados de um deus ausente.


No placar, cifras – não há mais surpresas,

vendem-se almas, vendem-se camisas.

Mas pouco importa a cor da idolatria,

se o mundo é um circo e a fé, bilheteria.