Mas o solitário é como uma coisa submetida às profundas leis. Ao sair para a manhã que aponta, ao olhar para a noite cheia de eventos, se chega a sentir tudo o que aí acontece, todos os encargos desprender-se-ão dele como de um morto, embora se encontre no meio vibrante da vida. (…)
Não tendo nenhuma comunhão com os homens, procure ficar perto das coisas, que não o abandonarão. Ainda há as noites e os ventos que passam pelas árvores e percorrem muitos países. No mundo das coisas e dos bichos tudo está ainda cheio de acontecimentos de que o senhor pode participar. As crianças são ainda como o senhor era quando criança, tão tristes e tão felizes -e, quando pensar na sua infância, torne a viver entre elas, as crianças solitárias: os adultos voltarão a não ser nada, e suas dignidades não terão nenhum valor.
(Cartas a um jovem poeta, Rainer Maria Rilke, p.53)
Essa semana estive de volta à universidade, como mestrando em Filosofia, na Federal do Paraná. Há tempos esperei por esse momento, o qual, desde o fim do curso de Direito, aguardei ansiosamente, pois, apesar de frequentar espaços de grupos de pesquisa e especializações online, nada me instigava intelectualmente, exceto algumas conversas entre professores e conversas de bar. O ambiente universitário, ontem, escancarou minha ignorância, que há tempos não era posta à prova, ao menos não de forma tão abundante. E como eu amo esse sentimento! Essa angústia de me deparar com tanta coisa que não sei. Um misto de interesse e desespero ao mesmo tempo. Desespero não é bem a palavra, mas algo como estar diante da impossibilidade de conhecer todas as coisas, ler todos os livros, dominar todos os conceitos, ser como Deus (Fausto). Desejante e, apesar da impossibilidade, a ela fechar os olhos, e fazê-lo, ir, ler, conhecer, aventurar-se.
Sentia falta desse ambiente vertiginoso, dessa floresta simbólica, que, como em Baudelaire, se apresenta em caminhos infinitos.
Apesar de a primeira aula, na segunda-feira, ter sido uma enrolação, na qual o professor nos encaminhou para uma palestra de boas-vindas aos alunos do curso de Direito—daquelas aulas magnas prolixas, que estendem um simples "sejam bem-vindos" a um falatório sem fim—, apesar disso a fala foi boa. Embora endereçada a outro curso, nada tinha a ver com os objetivos do mestrado. Mas, a mim, se dirigiu minimamente bem, por ter cursado Direito e já conhecer a obra da professora Debora Diniz. No entanto, conheci pessoas que também se perderam pela Reitoria da Universidade, sem saber da palestra. Descobrimos juntos: um rapaz, jornalista e aluno especial de mestrado, e um casal do estado de Goiás, professores do Instituto Federal, que estavam para cursar o doutorado. Isso fez valer a pena a caminhada, pela boa conversa envolvida.
Ontem, a aula foi voltada à matéria de seminários, isto é, planejamento e apresentação dos projetos. Ali, ouvi diversas ideias a serem apresentadas, projetos dos mais variados e específicos em subjetividade. Foi divertido. Na saída, conversei com algumas pessoas, entre elas um rapaz que desenvolverá uma pesquisa sobre Ulysses de James Joyce e que tinha uma tatuagem igual à minha, e uma moça que se interessou pelo livro que eu lia, de Barbara Cassin, sobre a tradução, e contou haver um professor da universidade que foi orientando dela, o que me interessou conhecer. Outra moça pesquisa o Antropoceno, cujo tema havia acabado de desenvolver em um artigo. Senti-me envolvido por uma série de temas que já pesquiso e por oportunidades de conversa sobre outros que desconheço. Foi divertido.
Antes do início da minha aula, aproveitei o atraso da Professora para assistir, como um intruso cordial, a uma disciplina voltada aos doutorandos—um convite casual do Professor que a ministrava. Ele falava de forma descontraída, quase num tom de conversa de bar, sobre as bancas de qualificação, o processo de arguição, suas dinâmicas e, sobretudo, a vaidade que permeia tanto a apresentação das pesquisas quanto sua avaliação. Era impossível não perceber, nas entrelinhas, no sub-texto como em Stanislavski, uma referência implícita a Eclesiastes: "tudo é vaidade". Sua ironia não era amarga, mas lúcida, revelando uma espécie de desencanto afetuoso com o ritual acadêmico, ao mesmo tempo necessário e teatral. Chegou até em falar da vaidade como virtude, quando em termos virtuosos. Gostei dele. Falava sem pressa, sem a solenidade excessiva de quem se leva a sério demais.
Havia um certo prazer na desmistificação, como se, ao expor as engrenagens do jogo acadêmico, ele nos libertasse um pouco da ilusão de que a pesquisa é um caminho puro e incontaminado. Mas, antes que pudesse me aprofundar mais naquela conversa, minha aula finalmente começou, e tive de me despedir daquele breve intervalo de irreverência. Ainda assim, levei comigo aquela reflexão sobre vaidade. No fundo, o que buscamos ao escrever, apresentar, argumentar? A pesquisa é um exercício de conhecimento ou também uma forma de afirmação, de inscrever-se no olhar do outro? Talvez seja impossível separar uma coisa da outra.
Nada novo sob o sol.
Ao fim do dia, caminhei pelos corredores da universidade com a sensação de reencontro—não apenas com o ambiente acadêmico, mas com a inquietação intelectual que sempre me moveu. Aquele breve contato com colegas, projetos e leituras abriu frestas para novas possibilidades de pensamento, confirmando que o retorno ao espaço universitário não é apenas uma continuidade, mas uma renovação do desejo de conhecer. Entre a vertigem do desconhecimento e o prazer da descoberta, percebo, ainda prematuramente, que estou exatamente onde deveria estar.
A universidade tem, para mim, esse vínculo de lar—não no sentido físico, mas como um espaço de pertencimento existencial. Em meio às incertezas sobre o futuro, sobre onde viverei, se estarei só ou acompanhado, quais horizontes se abrirão, ela permanece como um norte, uma referência constante. Quando tudo o mais parece instável, a universidade se mantém como uma possibilidade sempre almejada, preenchendo uma lacuna que não é apenas profissional ou acadêmica, mas profundamente existencial. Talvez seja por isso que, mesmo diante das mudanças inevitáveis da vida, continuo a encontrá-la como um refúgio, um lugar onde o pensamento pode se expandir sem a necessidade de respostas imediatas. Há uma segurança peculiar nesse ambiente, não por oferecer certezas, mas por acolher as dúvidas sem pressa de resolvê-las. Diferente de outros espaços, onde se exige prontidão e definições rígidas, a universidade permite o intervalo, o ensaio, o erro como parte do processo. Ela não dita caminhos, mas abre possibilidades, e é nessa abertura que reside seu valor. Assim, mais do que um destino, a universidade se torna uma espécie de constância—não apenas um lugar para se estar, mas um modo de continuar sendo.
Talvez seja essa sensação de permanência que faz da universidade um lar para mim—não um lar no sentido convencional, com paredes fixas e rotinas previsíveis, mas um território onde a solidão se transforma em companhia silenciosa. Porque, no fundo, há uma solidão inevitável no pensamento, no esforço de compreender o mundo e a si mesmo. E, ainda assim, essa solidão, dentro da universidade, nunca se fecha completamente. Ela se cruza com outras solidões, se reconhece no olhar disperso de um colega, na hesitação de uma pergunta feita em voz baixa, na troca de referências que por um instante nos tira do isolamento e nos coloca em uma rede invisível de afinidades.
Ao voltar ao apartamento, senti o vento frio da noite passar pelas árvores, e me peguei pensando na solidão do conhecimento—não como um isolamento ruim, mas como algo essencial para realmente aprender. A universidade, com toda a troca de ideias e debates, não apaga essa solidão, só a transforma em um jeito diferente de estar no mundo, mais atento, mais curioso. Como disse Rilke, “o solitário é como uma coisa submetida às profundas leis”: quando a gente se abre para sentir o que acontece ao redor, as pressões e cobranças vão ficando para trás, como algo que já não nos pertence. Caminhando por aqueles prédios antigos, por onde passaram tantos como eu, recordei que o mais valioso talvez não esteja só nas conversas ou nas aulas, mas naquilo que permanece—nos livros esperando para serem lidos, no vento que passa sem pedir licença, no simples ato de olhar para o mundo com outros olhos.