Viagem no tempo com um hámster
De Ross Welford
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Sobre este e-book
Isto é a máquina do tempo do meu pai. E está prestes a mudar o mundo, literalmente.
Bom, em todo o caso, pelo menos o meu…
Al Chaudhury tem a possibilidade de salvar a vida do seu pai, – mas para o fazer tem de viajar até 1984.
Este romance assombroso e original vai fazê-lo(a) rir, chorar, maravilhar-se e desejar poder voltar atrás no tempo para começar a ler tudo do princípio outra vez.
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Viagem no tempo com um hámster - Ross Welford
Título original:
Time travelling with a hamster
Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.
C/ Núñez de Balboa, 56
28001 Madrid
© Ross Welford, 2016
© 2020, para esta edição: HarperCollins Ibérica, S.A.
© 2020, tradução de Filipa Veloso
Esta edição foi publicada com autorização da HarperCollins Children’s Books,
uma divisão da HarperCollins Publishers Ltd. HarperCollins Publishers
Adaptação da capa: equipa HarperCollins Ibérica
ISBN: 978-84-18279-37-9
Todos os direitos reservados, incluindo os direitos de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.
Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.
Sumário
Créditos
Capítulo Um
Uma semana antes
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Catorze
Capítulo Quinze
Capítulo Dezasseis
Capítulo Dezassete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezanove
Capítulo Vinte
Capítulo Vinte e Um
Capítulo Vinte e Dois
Capítulo Vinte e Três
Capítulo Vinte e Quatro
Capítulo Vinte e Cinco
Capítulo Vinte e Seis
Capítulo Vinte e Sete
Capítulo Vinte e Oito
Capítulo Vinte e Nove
Capítulo Trinta
Capítulo Trinta e Um
Capítulo Trinta e Dois
Capítulo Trinta e Três
Capítulo Trinta e Quatro
Capítulo Trinta e Cinco
Capítulo Trinta e Seis
Capítulo Trinta e Sete
Capítulo Trinta e Oito
Capítulo Trinta e Nove
Capítulo Quarenta
Capítulo Quarenta e Um
Capítulo Quarenta e Dois
Capítulo Quarenta e Três
Capítulo Quarenta e Quatro
Capítulo Quarenta e Cinco
Capítulo Quarenta e Seis
Capítulo Quarenta e Sete
Capítulo Quarenta e Oito
Capítulo Quarenta e Nove
Capítulo Cinquenta
Capítulo Cinquenta e Um
Capítulo Cinquenta e Dois
Capítulo Cinquenta e Três
Capítulo Cinquenta e Quatro
Capítulo Cinquenta e Cinco
Capítulo Cinquenta e Seis
Capítulo Cinquenta e Sete
Capítulo Cinquenta e Oito
Capítulo Cinquenta e Nove
Capítulo Sessenta
Capítulo Sessenta e Um
Capítulo Sessenta e Dois
Capítulo Sessenta e Três
Capítulo Sessenta e Quatro
Capítulo Sessenta e Cinco
Capítulo Sessenta e Seis
Capítulo Sessenta e Sete
Capítulo Sessenta e oito
Capítulo Sessenta e Nove
Capítulo Setenta
Capítulo Setenta e Um
Capítulo Setenta e Dois
Capítulo Setenta e Três
Capítulo Setenta e Quatro
Capítulo Setenta e Cinco
Capítulo Setenta e Seis
Capítulo Setenta e Sete
Capítulo Setenta e Oito
Capítulo Setenta e Nove
Capítulo Oitenta
Capítulo Oitenta e Um
Capítulo Oitenta e Dois
Capítulo Oitenta e Três
Capítulo Oitenta e Quatro
Capítulo Oitenta e Cinco
Para Gunnel, Astrid e Ewan
(e Jess)
O meu pai morreu duas vezes. Uma vez, aos trinta e nove anos e, outra vez, quatro anos depois, quando tinha doze. (Ainda vai morrer uma terceira vez, o que pode parecer um pouco duro para ele, mas não consigo evitá-lo.)
A primeira vez não teve nada a ver comigo. A segunda vez, decididamente teve, mas eu nunca teria lá estado se não fosse a «máquina do tempo» dele. Eu sei, parece que estou a culpá-lo e não estou, de todo, mas… vocês vão ver o que quero dizer.
Calculo que, se me tivessem perguntado antes, teria dito que uma máquina do tempo é um bocadinho parecida com um submarino. Ou será mais com um foguetão? Seja como for, é uma coisa com muitos interruptores e painéis e luzes, feita de ferro ou qualquer coisa assim, e grande, quero dizer, mesmo grande, com propulsores, injetores e reatores…
Em vez disso, estou a olhar para um computador portátil e para um alguidar de zinco de um viveiro de plantas.
Isto é a máquina do tempo do meu pai.
E está prestes a mudar o mundo, literalmente. Bom, em todo o caso, pelo menos o meu…
Capítulo Um
Em frente da casa onde vivíamos antes de o meu pai morrer (a primeira vez), do outro lado da estrada, existe uma ruela que conduz à rua seguinte e que tem uma porção de relva e alguns arbustos e árvores dispersas a crescer por ali. Quando era pequeno, chamava-lhe «a selva» porque, na minha cabeça, era assim que a selva era, mas, olhando para ela agora, consigo perceber que é só um lote de terreno para uma casa que ainda não foi construída.
E é aí que estou, ainda com o meu capacete de motociclista posto, sentado e escondido num arbusto, na calada da noite, à espera para entrar furtivamente na minha antiga casa.
Há uma caixa velha de frango frito que alguém atirou para ali e consigo sentir o cheiro de alguma coisa horrível e ácida que acho que pode ser cocó de raposa. A casa está escura; não há luzes acesas. Estou a olhar para cima, para a janela do meu antigo quarto, o pequeno, por cima da porta de entrada.
De dia, a Chesterton Road é bastante sossegada: uma curva comprida de pequenas casas geminadas de tijolos avermelhados. Quando foram construídas, deviam parecer todas exatamente iguais, mas, agora, as pessoas acrescentaram portões luxuosos, ampliações de garagens e até mesmo uma enorme araucária chilena à frente da antiga casa do senhor Frasier, portanto, hoje em dia, são todas um pouco diferentes entre si.
Agora, quase à uma da manhã, não há ninguém por aqui e já vi suficientes filmes e séries sobre criminosos para saber exatamente como não me comportar, isto é, de forma suspeita. Se agirmos normalmente, ninguém repara em nós. Se vagueasse pela rua de maneira nervosa à espera do momento certo, alguém podia ver-me a andar para trás e para a frente a olhar para as casas e chamar a polícia.
Em contrapartida, se estiver simplesmente a descer a rua, então, estou só a fazer isso e é a mesma coisa que ser invisível.
(Manter o capacete posto é uma aposta, ou o que o avô Byron chama de «um risco calculado». Se o tirar, alguém pode reparar que não tenho, nem de perto nem de longe, idade suficiente para conduzir uma lambreta; se continuar com ele posto, parece suspeito, portanto ainda estou indeciso. Seja como for, não vai continuar posto muito tempo.)
Pensei nisto tudo na viagem para cá. Há cerca de um ano, quando ainda vivíamos aqui, a autarquia desligou os candeeiros de rua de forma intercalada, numa experiência para poupar dinheiro, portanto, no sítio onde parei a lambreta, está realmente bastante escuro.
O mais descontraidamente possível, saio dos arbustos, tiro o capacete e guardo-o no compartimento superior da lambreta. Puxo o colarinho para cima e, sem parar, caminho pela estrada até ao número 40. Aí, viro para o curto caminho de acesso à casa e paro nas sombras, bem protegido tanto pela sebe que divide o jardim do número 40 do jardim do vizinho como pelo pequeno Skoda estacionado no caminho.
Até agora, tudo bem: os novos proprietários da nossa casa ainda não arranjaram as portas da garagem. Na verdade, estão ainda menos seguras do que antes. Há um tijolo à frente delas para as manter fechadas e, quando me agacho e o afasto do caminho, a porta do lado direito abre-se e, depois, bate contra o Skoda. Por um momento aterrorizador, penso que a abertura vai ser demasiado pequena para poder entrar, mas lá consigo encolher-me para passar e ali estou eu, na garagem, que cheira a pó e óleo velho. A minha lanterna está a iluminar as paredes em redor para revelar caixas que eles ainda não desempacotaram e, no meio do chão, as tábuas escuras de madeira que tapam a entrada da cave.
Aqui vai outra dica para o caso de estarem a pensar em entrar furtivamente nalgum sítio: não usem demasiado a lanterna para iluminar o que está à vossa volta. Uma lanterna em movimento vai chamar a atenção, enquanto uma luz parada não. Portanto, pouso a lanterna no chão e começo a levantar as tábuas oleosas.
Por baixo das tábuas, há umas escadas de cimento e, depois de descê-las, fico de pé num espaço com cerca de um metro quadrado e, à minha direita, há uma pequena porta de metal, que tem sensivelmente metade da minha altura, com uma roda poeirenta de metal para a abrir, como as que há nos barcos. A roda está fechada por um trinco robusto com um cadeado de código.
Tento fazer um pequeno assobio de assombro, um «fiu!», mas os meus lábios estão tão secos dos nervos e do pó que não consigo. Em vez disso, coloco no cadeado de código os números que o meu pai me indicou na carta (o dia e mês do meu aniversário de trás para a frente), agarro a roda com ambas as mãos e giro-a no sentido contrário aos ponteiros do relógio. Há um pouco de resistência, mas ela cede com um suave ranger e, ao dar a volta, a porta abre-se subitamente para dentro, com um som suave de um suspiro provocado pela fuga de ar.
Agarro na minha lanterna e aponto-a para a frente, enquanto atravesso a pequena entrada, agachando-me. Há mais degraus para baixo e uma parede à minha direita e a minha mão encontra um interruptor, mas não me atrevo a tocar-lhe, não se vá dar o caso de ser um interruptor para outra coisa qualquer, como um alarme ou qualquer coisa assim, ou para acender as luzes da garagem no andar de cima ou… não sei, mas estou demasiado nervoso para ligar o interruptor, portanto, olho para tudo através do feixe de luz de um branco amarelado da lanterna.
Os degraus conduzem a uma divisão com aproximadamente metade do tamanho da sala da nossa casa, mas com um teto mais baixo. Um adulto mal conseguiria levantar-se.
Ao longo de uma parede comprida há quatro beliches, todos com as camas feitas: cobertores, almofadas, tudo. Há uma parede saliente e, atrás dela, uma casa de banho e algum tipo de maquinaria com canos e mangueiras a sair dela. Há tapetes no chão de cimento branco e um póster na parede. É uma fotografia cor de laranja e preta desbotada de uma mãe, um pai e duas crianças dentro de um círculo, e as palavras «Proteger e Sobreviver» em grandes letras brancas. Já vi este póster antes, quando um tipo qualquer veio à escola, uma vez, falar de paz e guerra nuclear e coisas dessas, e fez a Dania Biziewski chorar com medo e ficou mesmo envergonhado.
Isto era o que as pessoas construíam há muitos anos, quando achavam que a Rússia ia matar-nos com bombas nucleares.
Dou meia-volta e vejo o que está atrás de mim. O feixe de luz da lanterna encontra uma secretária comprida com uma cadeira à frente. Na secretária está um alguidar de zinco, como o recipiente onde se dá banho a um cão ou assim. Dentro dele, há um computador portátil Apple de estilo antigo, o branco, e um rato de computador. Há um cabo a sair da parte de trás do computador que conduz a uma caixa de metal preta aproximadamente do tamanho de um livro de bolso e, a sair dela, há dois fios com cerca de um metro de comprimento, com uma espécie de pegas estranhas nas pontas.
Junto do alguidar, há uma caneca impressa com uma fotografia minha quando era bebé e as palavras «Adoro o meu papá». O interior da caneca está todo coberto de bolor antigo.
E, ao lado da caneca, há um exemplar do jornal local, o Whitley Bay Advertiser, dobrado ao meio e aberto numa história com o título «Morte súbita e trágica de homem local» por cima de uma fotografia do meu pai.
Sento-me na cadeira giratória e passo as mãos pela parte de baixo da secretária. Quando não consigo sentir nada, ajoelho-me e aponto a lanterna para cima e lá está ele: um envelope, colado no fundo, exatamente como o meu pai disse que estaria.
Mas não vejo nenhuma máquina do tempo. Pelo menos, nenhuma que se pareça com o que eu imaginava que uma máquina do tempo poderia ser.
É assim que acabo a fitar o alguidar de zinco e o seu conteúdo.
«De certeza», penso, «De certeza que não é isto».
Mas é.
E o mais louco de tudo? Funciona.
Uma semana antes
Capítulo Dois
Tudo isto, a invasão de propriedade, mais furto, fogo posto, roubar uma lambreta e matar alguém (mais ou menos, seja como for), já para não falar de viajar no tempo, começou no meu décimo segundo aniversário.
Nesse dia, recebi um hámster e uma carta do meu falecido pai.
Para ser mais exato (e, como diz o avô Byron, a exatidão é tudo), começou quando eu e a minha mãe fomos viver com o Steve e A Meia-Irmã do Inferno, a Carly. Isso foi logo depois de a minha mãe e o Steve terem casado no casamento mais pequeno do mundo (as pessoas que estavam lá eram: a minha mãe, o Steve, o avô Byron, eu, a AMII, a tia Ellie.)
Para ser totalmente exato, de alguma forma começou quando o meu pai morreu, mas isso foi há muito tempo e eu não quero falar disso. Pelo menos, ainda não.
Portanto, ali estávamos nós, no meu décimo segundo aniversário, que é a 12 de maio, logo, fazia doze anos no dia doze, o que só acontece uma vez na vida de alguém, e algumas pessoas têm de esperar até terem trinta e um e suponho que nessa altura não é tão divertido.
O Steve está sempre a tentar fazer-me gostar dele, portanto gastou muito dinheiro na minha prenda, uma réplica da camisola do Newcastle United com o meu nome e idade nas costas: «Albert 12». Só que o meu nome agora é Al, não Albert, e, na verdade, eu não gosto de futebol. Sentei-me com ele a ver alguns jogos porque a minha mãe fica feliz ao ver-nos «criar laços», mas, para ser sincero, não entendo o objetivo daquilo.
— Então, veste-a, Al, vê lá se te serve! — diz a minha mãe e está a sorrir um sorriso demasiado sorridente, e eu também estou a sorrir para esconder o facto de não gostar da prenda, embora saiba que é simpático da parte dele, e o Steve está a sorrir uma espécie de sorriso intrigado e a única pessoa a sorrir como deve ser é a Carly, provavelmente porque consegue perceber que eu não gosto da prenda e isso fá-la feliz.
Fica-me um pouco grande, portanto, não há hipótese de deixar de me servir em breve, o que é uma pena.
A prenda da minha mãe é muito melhor. Está ali na bancada da cozinha: uma grande caixa, embrulhada com papel colorido, com uma fita e um laço, exatamente como os presentes dos desenhos, e não faço a menor ideia do que é até a desembrulhar e ver que a caixa no interior diz «Hámsterdam — A cidade para o seu hámster». Há uma fotografia de tubos e caixas, e uma gaiola e tudo, e eu estou a sorrir tanto porque adivinhei o que está na caixa pequena que a minha mãe tem na mão e, efetivamente, há um hámster lá dentro: um hámster giro, pequeno, ainda não completamente adulto, e ele (ou ela, ainda não sei distinguir) tem um nariz irrequieto e pelo castanho-claro e eu já o (ou a) adoro.
Estou a questionar-me sobre que nome devo dar-lhe, quando o Steve diz:
— Tenho um nome excelente para ele!
— Steve — diz a minha mãe —, deixa o rapaz escolher o nome que quiser.
O Steve parece um pouco desiludido, portanto digo:
— Não faz mal. Qual é a tua ideia?
— Alan Shearer! — O Steve vê-me a piscar os olhos, com o rosto inexpressivo, portanto, repete: — O Alan Shearer. O melhor avançado que o Newcastle já teve? O melhor marcador de sempre da Premier League? — Eu continuo sem reação. — O tipo do Match of the Day?
Assinto com a cabeça e forço um sorriso, mas, enquanto estou a fazê-lo, torna-se mais ou menos real, porque, seja qual for a forma de encarar a questão, dar a um hámster um nome verdadeiro como «Alan Shearer» deve ser melhor do que Fofinho ou Hammy, que é tão longe quanto a minha imaginação consegue chegar. Portanto, fica Alan Shearer.
Reparo que a Carly parou de sorrir. Aproxima-se de mim enquanto estou a desembrulhar os tubos de plástico e dobra-se para ficar tão perto de mim que só eu consigo ouvir:
— Um hámster? — murmura. — São simplesmente ratos para bebés.
Mas sabem que mais? Não me importo.
Depois, o avô Byron chega para me dar boleia para a escola, como faz sempre, desde que eu e a minha mãe nos mudámos para mais longe para viver com o Steve e a Carly.
Abro a porta de entrada e ali está ele, de pé, com a sua longa túnica cor de açafrão, cabelo grisalho numa trança, pequenos óculos de sol redondos e botas de motociclista. Debaixo de um braço, o mau, está a segurar o capacete e, no outro, o bom, há um postal de aniversário num envelope.
— Parabéns, rapazinho — diz ele, e eu dou-lhe um enorme abraço. Adoro o cheiro do avô Byron. É uma mistura do óleo de menta que ele põe no cabelo e daqueles cigarros com cheiro doce que às vezes fuma chamados bidis, que compra em caixas a um homem que tem um restaurante libanês de takeaway, embora seja do Bangladesh, e a pasta de dentes com sabor a alcaçuz que ele usa, que experimentei uma vez e que é bastante nojenta, mas cheira bem.
Enquanto o abraço, inspiro profundamente. Ele acena para a cozinha, que não é longe da porta de entrada.
— Bom dia, Byron! — chama a minha mãe. — Entra!
A Carly passa por mim a pavonear-se para subir as escadas.
— Olá, Byron — diz ela com doçura. — Adoro a túnica, meu! — Só depois de ter passado por ele e de estar fora do alcance da sua visão é que ela se vira para mim, franze o rosto e abana a mão à frente do nariz, como se o cheiro do avô Byron fosse algo mau, o que não é, de todo.
O meu avô tem uma forma engraçada de falar: o sotaque indiano dele soa a Geordie[1] e usa expressões Geordie e palavras antigas do dialeto todas misturadas. É o pai do meu pai, mas o meu pai não falava Geordie, pelo menos, não muito.
O avô entra e senta-se ao balcão da cozinha com um saco na mão.
— Desculpa, companheiro… Não tive oportunidade de comprar a tua prenda. — Abana a cabeça daquela forma indiana, provavelmente só porque sabe que isso me faz rir, e também está a sorrir daquela sua maneira para eu poder ver o seu grande dente de ouro.
— Nã’ faz mal — tranquilizo-o, e abro o postal. Do interior, caem duas notas de vinte libras.
— Obrigado. Muito obrigado! — E estou mesmo a ser sincero.
Então, a minha mãe diz:
— Ainda bem que estás aqui, Byron. Está na hora de dar a carta ao Al. — E levanta-se e dirige-se a uma gaveta. Está a comportar-se de uma forma um pouco estranha, como se estivesse distraída e entusiasmada e nervosa, quando regressa aos saltinhos com aquele envelope enorme. O Steve está a observá-la, sorrindo pacatamente, mas é evidente pela cara do avô Byron que não faz ideia de que é que se trata. A minha mãe põe a sua cara séria.
— Bom, Al. Isto é para ti, do teu pai.
Não sei o que dizer.
— Encontrámos isto nas coisas do teu pai, depois de ele ter morrido. Deve tê-la escrito há séculos.
Estou a fitar o envelope nas mãos dela. A expressão do avô Byron não mudou.
— O que é? — digo, finalmente.
— Não sei. É pessoal, dirigido a ti. Mas acho que devias considerá-lo como algo altamente privado — e aqui ela faz uma pausa — que não deve ser partilhado com mais ninguém.
Agarro cuidadosamente no envelope e leio a caligrafia emaranhada na parte da frente. A letra do meu pai e o meu nome completo: Albert Einstein Hawking Chaudhury. Por baixo do meu nome, está escrito: IMPORTANTE: NÃO abrir este envelope até terem passado DEZASSEIS horas depois de o receber. A ser entregue no seu décimo segundo aniversário.
Olho para o avô Byron:
— Sabias disto? — pergunto.
Ele abana a cabeça e há qualquer coisa no rápido movimento de um lado para o outro e na rigidez da sua boca que é estranho. Até penso que ele empalideceu um pouco, e está a fitar o envelope.
Entretanto, o Steven está apenas ali sentado com um grande sorriso idiota que parece ligeiramente forçado e eu percebo imediatamente que ele tem ciúmes. Quer tanto que eu goste dele que está zangado pelo facto de o meu pai ter voltado a estar entre nós, e isto faz-me gostar do Steve só um bocadinho menos.
— Bem, seja como for, só posso abri-lo mais tarde — digo, apontando para as instruções no envelope. Agora, obviamente, estou a ferver por dentro para ver o que diz, mas há qualquer coisa no facto de ver a letra do meu pai que é como receber uma instrução diretamente dele e quero ser respeitador. Isso e a cara empedernida do meu avô assustaram-me um bocado.
— Vamos lá, filho, vais-te atrasar — diz ele, pegando no capacete pousado no balcão. E essa é a última coisa que me diz até me deixar no portão da escola, perguntando: — Apareces depois da escola?
Eu assinto com a cabeça e ele sai disparado na mota, sem sequer acenar.
Tudo isto torna esta manhã numa manhã muito invulgar.
[1] Nome dado às pessoas naturais do nordeste da Inglaterra, da região de Newcastle e Tyneside, e ao dialeto falado por muitas delas. (N.T.)
Capítulo Três
Doze Coisas Que Eu Sei Sobre o Avô Byron
1. O nome completo dele é Byron Rahmat Chaudhury-Roy e o aniversário é no dia de Ano Novo, embora nunca o festeje. «Porquê celebrar o facto de estar um ano mais próximo da morte?», perguntou-me uma vez. «É só o tempo a passar, não é importante». Mas continua a comprar-me prendas de aniversário, portanto, não pode estar a falar assim tão a sério. Tem cerca de sessenta anos ou por aí, mas parece muito mais novo, tirando o cabelo quase branco.
2. Tem a memória mais incrível do mundo; quero dizer, tipo inacreditável. Desde que tinha dez anos e até ter vindo para Inglaterra, estudou com um guru indiano qualquer que lhe ensinou uma série de truques de meditação e isso significa que consegue lembrar-se de qualquer coisa. Nunca se esqueceu do nome de ninguém que tenha conhecido.
3. Nasceu numa parte da Índia chamada Punjab e os seus pais mandaram-no para a Grã-Bretanha nos anos sessenta porque lá havia muitas guerras. Algumas pessoas chamam-lhes «os vibrantes anos sessenta», mas o avô Byron disse que não viu grande vibração em Wallsend.
4. Vivia com uma tia e um tio, mas eles morreram há séculos e eu nunca os conheci.
5. Casou com a avó Julie em 1972. Sei disso porque ele me disse que uma música chamada Without You, do Harry Nilsson, era a número um e procurei na Internet. A avó Julie morreu antes de eu nascer.
6. Os pais da avó Julie não vieram ao casamento. O avô Byron diz que estavam demasiado ocupados, mas acho isso estranho. Talvez fossem racistas e não gostassem que ela se casasse com o avô Byron. Aparentemente, toda a gente era racista em 1972.
7. Nem sempre se vestiu com túnicas amarelas. Na verdade, ainda agora não se veste sempre assim. Mas, quando o meu pai morreu, ele foi-se embora durante algum tempo, durante meses, disse a minha mãe, e, quando voltou, tinha deixado crescer a barba e começou a vestir túnicas compridas. (A barba não durou muito. Ele disse que fazia comichão.)
8. Escreveu um livro enquanto trabalhava numa fábrica em North Shields. Escrevia durante a noite, numa máquina de escrever, que é como um computador antigo, mas sem memória, só um teclado e uma impressora juntos, o que é bastante fixe. Ninguém queria publicá-lo em Inglaterra, portanto, foi publicado na Índia.
9. O braço direito dele ficou destroçado num acidente com fogo de artifício, imaginem. Estava a preparar alguns foguetes para um grande espetáculo e parte do equipamento de metal onde estavam pousados tinha um parafuso solto ou qualquer coisa assim e aquilo caiu tudo e esmagou-lhe o braço. Ele não consegue usá-lo muito e tem um aspeto um bocado esquisito, tipo torcido para um lado. Recebeu algum dinheiro da seguradora e deixou de trabalhar na fábrica.
10. Investiu parte do dinheiro no primeiro restaurante tandoori da zona: o Spice Of The Sands, à beira-mar, em Culvercot. (Ainda lá está, mas, agora, é gerido por uma