Amanhã não tem ninguém
4/5
()
Sobre este e-book
Flávio Izhaki, em seu segundo romance, alterna seis vozes para dar conta de quatro gerações marcadas por laços frágeis, silêncios palpáveis, abraços automáticos e rituais esvaziados pelo tempo. A morte de Natan é o último ato de mortes anteriores, resultado de existências desbotadas.
Amanhã não tem ninguém fala sobre relações familiares, tradições que se perdem e o tempo que o relógio não marca, com uma dose equilibrada de lirismo e frieza, cumplicidade e estranhamento.
Leia mais títulos de Flavio Izhaki
Tentativas de capturar o ar Nota: 0 de 5 estrelas0 notasTrilogia Patrick Modiano Nota: 0 de 5 estrelas0 notasRonda da noite Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
Autores relacionados
Relacionado a Amanhã não tem ninguém
Ebooks relacionados
Memória de ninguém Nota: 5 de 5 estrelas5/5Foi um péssimo dia Nota: 5 de 5 estrelas5/5O veneno do caracol Nota: 0 de 5 estrelas0 notasTodos nós estaremos bem Nota: 4 de 5 estrelas4/5Cinco ou seis dias Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO presidente e o sapo Nota: 4 de 5 estrelas4/5Dois mortos e a morte e outras histórias Nota: 0 de 5 estrelas0 notasDoce introdução ao caos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO frágil toque dos mutilados Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA mulher de dois esqueletos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSe eu fechar os olhos agora Nota: 0 de 5 estrelas0 notasCinzas na boca Nota: 5 de 5 estrelas5/5Amanhã Tardará Nota: 0 de 5 estrelas0 notasHífen Nota: 0 de 5 estrelas0 notasTodo mundo merece morrer Nota: 5 de 5 estrelas5/5A solidão do amanhã Nota: 4 de 5 estrelas4/5A Impossível Faca da Memória Nota: 5 de 5 estrelas5/523 minutos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasClube de leitura dos corações solitários Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEm uma só pessoa Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO quarto fechado Nota: 0 de 5 estrelas0 notas10 minutos e 38 segundos neste mundo estranho Nota: 0 de 5 estrelas0 notasCasas vazias Nota: 5 de 5 estrelas5/5Este post precisou ser removido Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA face mais doce do azar Nota: 4 de 5 estrelas4/5Nao vas tao docilmente Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA sordidez das pequenas coisas Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA mais pura verdade Nota: 5 de 5 estrelas5/5Açúcar de melancia Nota: 5 de 5 estrelas5/5O triunfo dos leões (A saga da família Florio vol. 2) Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
Ficção judaica para você
O último judeu: Uma história de terror na Inquisição Nota: 4 de 5 estrelas4/5Layla Kosminsky e a Ordem dos Mistérios da Noite Nota: 0 de 5 estrelas0 notasVioletas e Gengibre Nota: 0 de 5 estrelas0 notasLucena Nota: 0 de 5 estrelas0 notasRaquel Disse (algo totalmente inesperado): Amor y Exilios Nota: 0 de 5 estrelas0 notasÀs Portas de Tânger Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
Categorias relacionadas
Avaliações de Amanhã não tem ninguém
1 avaliação0 avaliação
Pré-visualização do livro
Amanhã não tem ninguém - Flavio Izhaki
minutos."
NÃO TEM NINGUÉM
NATAN e MARLENE
ENVELHECER É UM PROCESSO LENTO. Dizem. Não concordo. No meu caso foi tudo muito rápido; de repente inválido, ou quase. De uma hora para outra incapaz de levantar o braço mais de 60 graus, atravessar o sinal correndo sem sentir palpitação, ficar na chuva e não pegar resfriado, pneumonia. Ainda ontem era boliche no fim de semana, vai e vem de clientes na relojoaria, eu como dono e único funcionário, viagem de carro nas férias, seis horas dirigindo. Ana como testemunha da minha vitalidade, virilidade, Marlene gritando por atenção no banco de trás.
Natan, pega a lata de atum no armário
, ela me pediu num sábado à tarde.
Tentei esticar o braço, as pernas, mas de repente o joelho cedeu, caí no chão. Ana se assustou, virou-se nervosa, tentou me levantar já perguntando se eu estava bem, se tinha me machucado. Respondi que estava bem, mas as palavras não saíram. Disse que achava que tinha perdido a voz, mas as palavras não saíram. Ana me olhava ansiosa, o rosto contraído. O seu rosto
, ela falou. Não, o seu, pensei, o seu rosto. Mas ela repetiu: O seu rosto. Tenta mexer a boca.
E eu mexi. Mas ele não mexeu. Tenta mexer
, ela repetiu. E então entendi que não estava mexendo o rosto, a boca, o braço direito, o joelho dobrado, a perna adormecida. Todo um lado do meu corpo paralisado, incapaz. Subitamente meu corpo já não me pertencia.
Lembro de cada esgar em sua boca ligando para a ambulância, das palavras explicando como eu estava, da paralisia. Ficou em silêncio alguns segundos, escutando, depois colocou a mão tampando o bocal, não sei bem por que, e perguntou se eu estava entendendo a situação: A ambulância já vem, meu amor.
E ela nunca me chamava de amor. Não respondi, assenti com a cabeça, com os olhos. Ela sorriu, e se permitiu derramar a primeira lágrima, pesada, caudalosa: Ele fez com os olhos que entende o que aconteceu. Ok. Rápido, por favor.
Ela sentou comigo no chão da cozinha: Tá gelado
, disse. Eu não sentia nada. Abraçou-me e puxou minha cabeça para o seu colo, acariciando meu rosto, o lado direito do meu rosto, e o que sentia era uma memória de contato físico, a saudade de um formigamento que não existia, um silêncio entre peles.
A ambulância não demorou. A humilhação de sair do edifício numa maca, as pessoas na rua se aproximando, curiosidade. Meus olhos procurando contato, falar pela boca, explicar quem eu era, o que estava sentindo, não sentindo. As portas da ambulância se fecharam e olhei para Ana. Ela segurava minha mão. O tempo todo segurando um membro morto, eu não sentia nada, uma carne inválida, esvaída de toda sua força. Vai dar tudo certo, meu amor
, novamente amor, pensei. Tentei sorrir, confortá-la. Mas lembrei que não conseguia. E as lágrimas dela continuavam, não mais tímidas, solitárias, mas acompanhadas pelo fungar do nariz – bastava que Ana chorasse para que o seu nariz entupisse. Não chora, meu amor
, ela disse e limpou as minhas lágrimas, e assim soube que eu também chorava, involuntariamente.
O ESPELHO SEMPRE NEGOU minha idade verdadeira. Refletido ali, em tantos ali quanto possível, fui muitos, mas todos sem idade. Não foi também sabedoria acumulada, desencanto, fios de cabelo ou caspa nos ombros do paletó que me tirou desse limbo etário. Foi o corpo. O corpo é como engrenagem de um relógio: de repente esgarça. Comigo foi um AVC. Antes dele eu não tinha idade. A mesma rotina desde os 19; muito novo para aquele cotidiano, muito velho para o mesmo agora, com mais de 80. Quem disse? O corpo. Por anos, décadas, me considerei um sem-idade. Nada aconteceu no tempo normal para mim. Desde cedo demais, de casa para o trabalho, do trabalho para casa. Desde cedo demais sem tempo para qualquer coisa que não a realidade de clientes e seus relógios, minha mulher e suas reprovações veladas, a infelicidade de nós dois que eu não percebia e ela não sabia externar, ou Marlene e sua velhice precoce aos 10, 20, 30, 40, Marlene sempre sóbria e pesada além de sua idade. Relojoeiro por toda a vida, vida ligada ao tempo, qualquer outra realidade, impossível.
Até o AVC. Tive meu relojoeiro. Minha esposa. Não foi um conserto fácil, do dia para a noite. O tempo, novamente, um punhado dele. Peça quebrada, encomendada, recebida, a operação lenta de colocar novamente o relógio em funcionamento. Qual o sentido de um relógio que não marca as horas? Ou de um homem incapaz de viver por sua própria energia, bateria?
E então um dia, tempo, tarda mas chega, o relógio está pronto, um belo trabalho, funciona quase perfeitamente, não atrasa, até uma ou outra melhoria pode ser sentida, o tampo de vidro trocado, a dieta balanceada, o botão de acertar a data reluzindo, novo guarda-roupa, não mais o pesado terno negro do meu pai, mas.
Minha esposa adoeceu, morreu. Rápido. Tempo, novamente. Ninguém para buscar o relógio, e no primeiro dia, quando o dono não vem, quando voltei do enterro, o relógio permaneceu ainda em cima do balcão, o lado da cama intocado, a mesa posta sem querer para duas pessoas, depois, e é difícil precisar quantos dias, meses, anos, depois, tempo, sempre, o relógio vai para a gaveta, a primeira ainda, ao alcance da mão, da memória, mas uma gaveta, a distância de uma gaveta fechada, e as fotos dos porta-retratos são trocadas, tira esse sorriso dos lábios, mulher, que não aguento mais, e um dia alguém deixa um novo relógio para consertar, um velho relógio para manutenção, e você, eu, abro a gaveta e encontro o relógio, eu, minha filha me convida para morar com ela pela enésima vez, dois viúvos, e então você, eu, digo não, mas, tempo, um dia, relógios não marcam só horas, eu aceito ficar para dormir, fecho a loja para sempre, e só me resta esperar. Tempo: quanto?
PARECE QUE ENVELHEÇO EM SEMANAS, não em horas. Os dias passam rápido nesse marasmo em que o calendário perdeu todo o sentido. O porteiro me cumprimentou com quatro dentes a mais nessa manhã, entregou a correspondência em mãos. Então soube que estávamos em dezembro, o livro de ouro aberto na mesa da portaria, ao lado da central de interfone. Ignorei. Retribuí apenas com o obrigado habitual, bom-dia. Fique com Deus, seu Natan
, ele fez questão de falar. Cada vez que ouço Deus saltar da boca de uma pessoa que não parou para pensar na existência Dele por mais de cinco minutos na vida, fico irritado. Hoje em dia Deus e Jesus são sinônimos, e é impossível pagar um táxi, dar uma esmola, ou se despedir da faxineira sem que uma dessas entidades abstratas invada seus ouvidos. Dizem Deus, Jesus, como poderiam dizer Meu Amo, Senhor, Alah, Adonai. Falam Deus o abençoe e acreditam que têm esse poder, evocar a piedade de um ser supremo para uma pessoa que lhe fez um pequeno favor.
Ana era religiosa, ainda mais depois da doença, das doenças, e combati esse fanatismo silenciosamente dentro da minha própria casa durante nossos 46 anos de casamento. Antes, sempre, judia, no final, inexplicavelmente, católica. Na mesma frase em que me contou que estava com câncer nos pulmões acrescentou que Deus sabia o que estava fazendo, e aquilo me irritou tanto que, em vez de confortá-la, gritei para ela esquecer aquela merda de Deus.
Esperei que ela chorasse, respondesse, mas. Nada. Os olhos se diluindo em piedade, as lágrimas represadas não desceram, e ela ergueu a cabeça, segurou minhas mãos e me pediu calma. Calma, pensei, mas você tem câncer! Continuou, como se tivesse me ouvido:
Eu estou em paz. Nunca me senti tão em paz, Natan.
E nos olhos negros dela, absurdamente brilhantes com aquela poça d’água que não desabava, eu via que ela estava mesmo em paz, calma, obscenamente calma. Mas Ana não estava apenas com câncer, estava esquecida, e aquela felicidade imunda que ela encenava só me apontava que, quando o câncer chegou, Ana já não era ela mesma. Ela me puxou para um abraço e finalmente chorei, por nós dois. Ana me reconfortou, puxando minha cabeça para o seu ombro, a mão espalmada na minha nuca:
Ficaremos bem.
MAMÃE MORREU MALUCA. A doença progressiva, inapelável. Os primeiros sinais de Alzheimer vieram quatro anos depois do AVC do papai. Quando ele finalmente parecia recuperado, os movimentos do lado direito do corpo, a fala, mesmo a fala pouco utilizada do papai, audível em seu tom baixo, baixíssimo, a relojoaria funcionando, as dívidas pagas, só então mamãe desabou. Quando o marido ficou bom, ela fraquejou, e então a doença, as doenças acumuladas pelo hiato de quatro anos. Antes, a conversão, que papai nunca perdoou. Mamãe católica. Mamãe batizada aos 62 anos, mamãe carola, agora enterrada em cemitério católico.
Um dia perguntei para mamãe por que meu nome era Marlene, tão antijudaico. Ela desconversou. Eu tinha 8 anos e era fácil desconversar, mas percebi. Fui a papai, com 11, a coragem reunida por três anos: Pai, na minha escola sou a única Marlene. Por que me deram esse nome?
Mas papai não titubeou. Tinha a resposta pronta, e falou, passando a mão na minha cabeça, professoral: Você nasceu durante a Guerra, minha filha, achamos melhor que tivesse um nome mais assimilado, brasileiro. E Marlene vem de Madalena, que é um nome judaico.
Acreditei.
Não que a resposta revelada carregasse orgulho. Nunca a repeti para ninguém. Preferiria um nome que soasse judaico, gostava das minhas raízes, das rezas do shabat, dos feriados religiosos, de saber falar línguas que ninguém mais conhecia no prédio. Para quem me perguntava, e de tempo em tempo alguém perguntava, dissimulei.
Mamãe esquecia as coisas, depois os atos. Quando começou a esquecer também algumas pessoas, ainda as mais distantes, o médico pediu um exame completo para saber a extensão do problema.
Foi aí que descobrimos o câncer.
Pulmão.
Mamãe sempre fumou. Tinha cinzeiros em cada cômodo.
Nos últimos dias, internada, eu já nem podia chegar perto dela. Mamãe me repelia, chamava de estranha, renegava. Meu pai, arrasado, desdobrava-se para ampará-la. Ele e Afonso cuidaram de tudo. Papai sabia que mamãe ia morrer, os médicos disseram, e ele perguntou: Você quer se despedir, Marlene?
Falei que sim, e fui, enquanto ele corria desesperado atrás de um padre, último desejo dela.
Mamãe fraca, pele e osso, os olhos fechados, as pálpebras trêmulas, os remédios dopando-a, tentando evitar um fim tão pesado quanto se anunciava. Ela acordou, parecia emergir de um transe, suspiro profundo, quase engasgo, última força. Olhou para mim, não o seu olhar natural, mamãe já não era a mesma pessoa. Ela olhou para o meu rosto e começou a gritar. Gritar: Gritar: medo em seu rosto, desespero. Mas nenhuma voz saía de sua garganta, nenhum ruído, só um grito munchiano, um grito de silêncio propagando desespero pelo