O quarto fechado
De Lya Luft
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O quarto fechado - Lya Luft
Para Lígia Averbuk, que antes de morrer tão
prematuramente escreveu sobre este livro:
"Muito obrigada por me teres deixado ler estes originais.
É preciso coragem para enfrentar este assunto: a Morte.
Nada mais humano do que ela, centro da angústia de viver.
O quarto fechado é um livro sobre a luta entre viver e
morrer, um flagrante da perplexidade nossa ante um ciclo
do qual não se foge.
Acho que escrevê-lo deve ter te angustiado muito. Cada
página ainda me pesa, com dor, porque hoje em dia a
morte é, para mim, uma experiência menos remota."
São Paulo, novembro de 1983.
"Quando pensamos estar dentro da vida, a Morte
põe-se a chorar dentro de nós."
(Rilke)
Sumário
Primeira Parte: A ilha
1 |
2 |
3 |
Segunda Parte: As águas
4 |
5 |
6 |
Terceira parte: Tânatos
7 |
8 |
9 |
Primeira parte | A ilha
1 |
Ele dava os primeiros passos em sua Morte, abraçado a ela, que o instruía devagar. Não havia pressa: à deriva, lentamente, afastava-se de um mundo que não interessava mais. Tinha o rosto de um adolescente, quase uma delicada mulher. Mas, recoberto de uma poeira dourada, perdera a juventude e ostentava aquela máscara solene: o gelo de uma nova sabedoria.
Nada o incomodava: vozes, tosses discretas, portas abrindo-se e fechando; pessoas aproximando-se, curiosas, consternadas. Estava imune até mesmo ao fluxo de emoções que circulava entre o homem e a mulher em cadeiras dos lados de seu caixão. Praticamente não se falavam; sentiam-se expostos, feios e nus. A dor partilhada em público unia-os numa intimidade que não desejavam mais.
Se pudessem, gritariam sem pudor algum, com uma dor e uma perplexidade irrompidas do fundo das entranhas:
— O que é isso, a Morte? O que está fazendo conosco?
Mas calavam-se, procurando ignorar um ao outro.
A mulher parecia muito cansada; os dedos largados no colo moviam-se de vez em quando, num teclado de vento. O marido, ao contrário, estava tenso: a qualquer momento poderia levantar-se da cadeira e golpear com punhos cerrados o peito ossudo d’Aquela que, sem sua permissão, reinava na casa.
Havia poucas pessoas velando o morto àquela hora, nas cadeiras junto às paredes laterais da sala onde tinham arredado móveis para dar lugar. Os que saíam da casa erguiam a gola do casaco, franziam a testa, antes de mergulharem num mundo aniquilado pelo nevoeiro. A névoa grudava-se na casa, querendo entrar, enroscava-se nas plantas, nas pessoas, insistente e desesperada.
Mesmo assim, ao sair todos respiravam fundo o ar molhado: era melhor do que a atmosfera lá dentro, o enjoativo odor da morte, velas e flores, e corpos de pessoas que sofriam.
Os que continuavam na sala estavam atordoados pelo cansaço, o frio e o desconforto. Fumaça de cigarro embolava-se debaixo do lustre, num cenário falso de teatro. Alguém bocejava a intervalos, nem se dava mais ao cuidado de disfarçar.
No meio da sala, sobre pernas de metal enfiadas na sombra, o caixão e seu passageiro pareciam boiar numa água escura.
O pai, ao lado dele, esticou as pernas procurando uma posição melhor, mas encolheu-as de novo, envergonhado de mover-se ainda. Era um homem enérgico mas sentia-se inseguro nos territórios da morte. Queria chorar, revoltar-se, agir.
Quem era sua Adversária? Sombras enganosas que só fingem sutileza, estão em toda parte e em parte nenhuma.
Da outra margem, Renata observava disfarçadamente o marido. O ex-marido, o homem a quem tinha amado: Martim. Sabia de cor cada vinco do rosto, cada detalhe e segredo do corpo. A amargura, a decepção de agora não desfiguravam os traços que ela amara na juventude.
Vivera com ele, dormira com ele, muitos anos. Fizera-o sofrer. Com ele passara da exaltação à estranheza, da paixão ao rancor, com ele vira desmoronar o que pensavam construir para sempre. Mas uma distância interior jamais fora vencida. O fervor e a doçura se tinham feito impaciência, de amantes passaram a estrangeiros. De quem a culpa?
Pianista de sucesso, Renata descera dos palcos para o mundo de Martim, um mundo terra-a-terra, forte e racional. Numa idade em que seus hábitos estavam arraigados, não conseguira mais mudar. Tentara trocar a arte pela vida doméstica, mais cedo o novo ambiente lhe pareceu vulgar. Até então concentrada em si mesma, não conseguia se repartir.
Não, o amor não bastara. Tinham passado todos os estágios de uma lenta, dolorosa separação. Raramente se viam: evitavam-se, receando novas cenas.
— Eu não sirvo para casar — dizia ela antigamente, vendo mulheres de sua idade rodeadas de filhos. Depois de casada, tarde demais, reconhecera que tinha razão. Embora solitário, para ela o exercício da arte fora menos complexo do que o exercício do amor humano.
Eu te amei como podia amar
, pensou, esforçando-se para não ficar encarando Martim. Os planos, os sonhos desfeitos como uma figura de cera à qual se aproxima uma chama: tudo derrete, a beleza torna-se caricatura.
Filhos: em vez de serem elos, transformavam-se em problemas e mais separação. Aquela noite, sentados diante do morto, os dois partilhavam a dor, estrangulados pelo mesmo grito mudo:
— O que foi que eu fiz de você, meu filho?
•
Nunca amei assim outra mulher
, pensou Martim. Tive tantas, mais bonitas, alegres, sensuais; mas essa, que me atormentou, me significa mais que todas .
Envergonhava-se: Renata fora a sua fraqueza, sua humilhação. No começo ele pensava ser forte, ia ensinar-lhe a vida e conquistar aquele mundo interior dela, que o atraía tanto. Mas o que nela havia de especial era inatingível para um homem como Martim. Por mais que a amasse, era preciso algo além disso: capacidade de a compreender, participar. O convívio acabara num constante desconforto, Martim sentia: "ela me observa,