A Literatura Portuguesa Através Dos Textos
()
Sobre este e-book
Leia mais títulos de Massaud Moisés
A Literatura Brasileira Através dos Textos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA Literatura Portuguesa Nota: 3 de 5 estrelas3/5História da Literatura Brasileira - Vol. III: Desvairismo e Tendências Contemporâneas Nota: 0 de 5 estrelas0 notasFernando Pessoa - O Espelho e a Esfinge Nota: 5 de 5 estrelas5/5Literatura mundo e forma Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
Relacionado a A Literatura Portuguesa Através Dos Textos
Ebooks relacionados
História concisa da Literatura Brasileira Nota: 5 de 5 estrelas5/5Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira: Autores Portugueses Nota: 0 de 5 estrelas0 notasHistoria da Literatura Brasileira: Realismo e simbolismo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasReunião de poemas Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA literatura no Brasil - Era Realista e Era de Transição: Volume IV Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA literatura no Brasil - Era Barroca e Era Neoclássica: Volume II Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA literatura no Brasil - Era Modernista: Volume V Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA literatura no Brasil - Era Romântica: Volume III Nota: 0 de 5 estrelas0 notasCem anos da Semana de Arte Moderna: O gabinete paulista e a conjuração das vanguardas Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO Guesa Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAna Cristina Cesar: O sangue de uma poeta Nota: 0 de 5 estrelas0 notasVanguarda europeia e modernismo brasileiro Nota: 0 de 5 estrelas0 notasOs Lusíadas (Anotado): Edição Especial de 450 Anos de Publicação Nota: 0 de 5 estrelas0 notasHistória da Literatura Brasileira: Das Origens ao Romantismo Nota: 3 de 5 estrelas3/5Percursos da poesia brasileira: Do século XVIII ao século XXI Nota: 0 de 5 estrelas0 notasMachado de Assis: Crítica literária e textos diversos Nota: 5 de 5 estrelas5/5O problema do realismo de Machado de Assis Nota: 0 de 5 estrelas0 notasOs gêneros do discurso Nota: 0 de 5 estrelas0 notasLiteratura: ontem, hoje, amanhã Nota: 0 de 5 estrelas0 notasFormação Épica da Literatura Brasileira Nota: 3 de 5 estrelas3/5Em busca do prazer do texto literário em aula de Línguas Nota: 0 de 5 estrelas0 notasIntrodução à História da Língua e Cultura Portuguesas Nota: 5 de 5 estrelas5/5Machado de Assis, o escritor que nos lê: As figuras machadianas através da crítica e das polêmicas Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPerto do fragmento, a totalidade: Olhares sobre a literatura e o mundo Nota: 5 de 5 estrelas5/5Sociedade e literatura no Brasil Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPoesia para quê? Nota: 2 de 5 estrelas2/5Mimesis: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPoética da prosa Nota: 0 de 5 estrelas0 notasComo se faz literatura Nota: 5 de 5 estrelas5/5Poéticas do contemporâneo Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
Crítica Literária para você
Olhos d'água Nota: 5 de 5 estrelas5/5Coisa de menina?: Uma conversa sobre gênero, sexualidade, maternidade e feminismo Nota: 4 de 5 estrelas4/5O sapo e a lagarta Nota: 5 de 5 estrelas5/5Um quarto só seu Nota: 0 de 5 estrelas0 notasHécate - A deusa das bruxas: Origens, mitos, lendas e rituais da antiga deusa das encruzilhadas Nota: 5 de 5 estrelas5/5Quem tem medo do lobo mau?: O impacto do politicamente correto na formação das crianças Nota: 5 de 5 estrelas5/5Para Ler Grande Sertão: Veredas Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA Gramática Metódica De Napoleão Mendes De Almeida Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAtrás do pensamento: A filosofia de Clarice Lispector Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEscrita não criativa e autoria: Curadoria nas práticas literárias do século XXI Nota: 4 de 5 estrelas4/5Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago (Análise do livro): Análise completa e resumo pormenorizado do trabalho Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSobre a arte poética Nota: 5 de 5 estrelas5/5Tarot Sem Complicação Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO Insólito e a Desumanização em Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago Nota: 0 de 5 estrelas0 notasVamos Escrever! Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO mínimo que você precisa fazer para ser um completo idiota Nota: 2 de 5 estrelas2/5Cem anos da Semana de Arte Moderna: O gabinete paulista e a conjuração das vanguardas Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEscândalos da tradução Nota: 0 de 5 estrelas0 notasNegrismo: Percursos e configurações em romances brasileiros do século XX (1928-1984) Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEncontrar o homem no homem: Dostoiévski e o existencialismo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPor uma história da literatura brasileira contemporânea: De 1975 a 2021 Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO tempo é um rio que corre Nota: 4 de 5 estrelas4/5Poéticas do contemporâneo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasResumo E Análise De Niketche – Uma História De Poligamia Nota: 0 de 5 estrelas0 notasUm feminismo decolonial Nota: 3 de 5 estrelas3/5Nova história da arte Nota: 2 de 5 estrelas2/5Aulas de literatura russa: de Púchkin a Gorenstein Nota: 0 de 5 estrelas0 notasQuestões homéricas Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
Avaliações de A Literatura Portuguesa Através Dos Textos
0 avaliação0 avaliação
Pré-visualização do livro
A Literatura Portuguesa Através Dos Textos - Massaud Moisés
2001.
A Literatura Portuguesa Através dos Textos.
Copyright © 1968 Massaud Moisés.
Texto revisto segundo o novo acordo ortográfico da língua portuguesa.
33ª edição 2012.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravações ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas ou artigos de revistas.
Coordenação editorial: Nilza Agua e Poliana Magalhães Oliveira
Diagramação: Join Bureau
Revisão: Maria Aparecida Salmeron
Produção de ebook: S2 Books
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Moisés, Massaud
A literatura portuguesa através dos textos / Massaud Moisés. – 33. ed. rev. e ampl. – São Paulo: Cultrix, 2012.
ISBN 978-85-316-1154-4
1. Literatura portuguesa – História e crítica I. Título.
11-09971
CDD-869-09
Índice para catálogo sistemático:
1. Literatura portuguesa : história e crítica 869.09
1ª Edição Digital: 2019
eISBN: 978-85-316-1521-4
Direitos reservados.
EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA.
Rua Dr. Mário Vicente, 368 — 04270-000 — São Paulo, SP
Fone: (11) 2066-9000 — Fax: (11) 2066-9008
E-mail: atendimento@editoracultrix.com.br
http://www.editoracultrix.com.br
Foi feito o depósito legal.
(...) língua, na qual quando imagina,
Com pouca corrupção crê que é a Latina.
(Camões, Os Lusíadas, c. I, est. 33)
SUMÁRIO
Capa
Folha de rosto
Créditos
Prefácio
Nota
Trovadorismo
Preliminares
A Poesia
Cantiga de Amor
Cantiga
Cantiga
Cantiga
Cantiga
Cantiga
Cantiga
Cantiga de Amigo
Cantiga
Cantiga
Cantiga
Cantiga
Cantiga
Cantiga
Cantiga
Cantiga de Escárnio e Maldizer
Cantiga
Cantiga
Cantiga
Cantiga
A Prosa
Novelas de Cavalaria
A Demanda do Santo Graal
Humanismo
Preliminares
A Historiografia
Crônica de D. Pedro
Crônica de D. João I
Crônica dos Feitos de Guiné
Crônica de D. João II
Prosa Doutrinária
Leal Conselheiro
A Poesia
Trovas à Morte de D. Inês de Castro
Cantiga Sua Partindo-se
De Dom Diogo a uma Guedelha de Cabelos que Viu à Senhora Dona Briatis de Vilhena
Outra Esparsa Sua
Vilancete Seu
Teatro Popular
Auto da Lusitânia
Farsa de Inês Pereira
Classicismo
Preliminares
Redondilhas
Sonetos
Canção
Sonetos
Elegia
Canção
Os Lusíadas
A Poesia
Trova
Sonetos
Vilancete por outro, que diz: Serrana onde jouveste
, feito meio dormindo
Vilancete
Soneto
Soneto
Sonetos
A Diogo Bernardes
Sonetos
Soneto XI
Soneto XIX
Soneto XXVI
Soneto CXXXIII
Crisfal
O Teatro
Castro
A Historiografia
Décadas
Crônica do Felicíssimo Rei D. Manuel
A Literatura de Viagens
Peregrinação
A Novela e o Conto
Menina e Moça
Palmeirim de Inglaterra
Conto IX (da Parte I)
Conto IV
Conto V
Conto II
A Prosa Doutrinária
Consolação às Tribulações de Israel
Barroco
Preliminares
Sermão da Sexagésima
Sermão de Santo Antônio
A Prosa Doutrinária
Carta de Guia de Casados
Nova Floresta
Recreação Periódica
Reflexões sobre a Vaidade dos Homens
Arte de Furtar
A Poesia
Sonetos
A Uma Crueldade Formosa
A Uma Ausência
Apólogo da Morte
Antes da Confissão
Escusa-se ao Céu com a Causa do seu Delírio
Mundo Incerto
A Historiografia
Anais de D. João III
A Historiografia Alcobacense
Monarquia Lusitana
A Epistolografia
Cartas de Amor
Aos Judeus de Ruão
O Teatro
Guerras do Alecrim e da Manjerona
Arcadismo
Preliminares
A Poesia
Dissertação
Cantata de Dido
A um leigo arrábido vesgo despedido da mesa de S. C. P. Silva, por tomar a melhor pera da mesa.
O colchão dentro do toucado
Deitando um cavalo à margem
Arte Poética Portuguesa
Sonetos
A Despedida
Recordações de um Objeto Ausente
Amor Não Correspondido
Dizendo-me Uma Pessoa que eu Nunca Havia de Ser Feliz
Elegia
Petição à Melancolia para que se Acabem Certos Dias de Festa
Soneto
Soneto
Sonetos
Epístola
Sonetos
Prosa Doutrinária
Verdadeiro Método de Estudar
Romantismo
Preliminares
Este Inferno de Amar
Não te Amo
Barca Bela
O Anjo Caído
Destino
Estes Sítios!
Na Primeira Edição [de Camões]
Frei Luís de Sousa
Viagens na Minha Terra
A Cruz Mutilada
Eurico, o Presbítero
O Monge de Cister
Eu e o Clero
A Noite do Castelo
Ultrarromantismo
O Noivado do Sepulcro
O Firmamento
A Lua de Londres
Onde Está a Felicidade?
A Queda dum Anjo
Eusébio Macário
Amor de Salvação
A Morgadinha dos Canaviais
Uma Família Inglesa
Encanto
Ventura
Letra
Agora!
Último Adeus
Adeus
Resposta
Deus?
Realismo
Preliminares
A Poesia
A Velhice do Padre Eterno
Eiras ao Luar
O Visionário ou Som e Cor
As Catedrais
Rosa Mística
Dístico
Tristíssima
O Gemido da Árvore
Elogio do Selvagem
O Velho Palácio
O Sentimento dum Ocidental
Num Bairro Moderno
Deslumbramentos
Ideal
Tese e Antítese
O Palácio da Ventura
Tormento do Ideal
A Germano Meireles
À Virgem Santíssima
Na Mão de Deus
Ignoto Deo
Oceano Nox
Com os Mortos
Mais Luz!
Hino à Razão
Lacrimae Rerum
A Um Crucifixo
O Convertido
Mors-Amor
Palavras dum Certo Morto
Zara
A Prosa de Ficção
O Primo Basílio
A Ilustre Casa de Ramires
O Crime do Padre Amaro
O Corvo
O Homem da Rabeca
A Prosa Doutrinária
As Farpas
Os Gatos
A Historiografia
Simbolismo
Preliminares
Um Sonho
Soneto
Soneto
Memória
Viagens na Minha Terra
Soneto
Purinha
Menino e Moço
Inscrição
Caminho
Soneto
Soneto
Soneto
Soneto
Estátua
Fonógrafo
Soneto
Soneto
Soneto
Soneto
Soneto
Ao Longe os Barcos de Flores
Luar de Janeiro
Onde a Terra se Acaba e o Mar Começa
A Neve
Certo Herói...
Parsifal
Jardins de Klingsor
Regresso
Noite
Aos Amigos
Os Pobres
O Enxurro
A Ceia dos Cardeais
Saudosismo
Preliminares
Marânus
Os Rochedos
A Sombra Humana
Orfismo
Preliminares
Hora Absurda
Lisbon Revisited
Natal
O Menino da sua Mãe
Autopsicografia
Aniversário
Dispersão
Quase
A Queda
O Lord
Aqueloutro
Fim
Partida
Álcool
Estátua Falsa
Distante Melodia
Taciturno
O Fantasma
Nome de Guerra
Finalmente o Protagonista Toma o Partido das Estrelas
O Cágado
Interregno
Preliminares
Eu
Sóror Saudade
Noitinha
Amar!
Ambiciosa
Noite de Saudade
Languidez
Esfinge
Espera
A Morte
O Malhadinhas
Presencismo
Preliminares
Cântico Negro
Ícaro
Lázaro
Experiência
Melancolia
Cristo
Novo Soneto de Amor
Soluço na Noite
Ode
Livro de Horas
Orfeu Rebelde
Guerra Civil
Pergunta
Regresso
Desgarrada
Fé
Provérbio
Jesus
O Barão
Alexandrino
Desenlace
Páscoa Feliz
Mau Tempo no Canal
Neorrealismo
Preliminares
A Selva
Gaibéus
O Homem Disfarçado
O Largo
Uma Abelha na Chuva
O Grifo
O Delfim
A Cidade das Flores
Surrealismo
Preliminares
Parada
Discurso. VII
You are Welcome to Elsinore
Exercício Espiritual
Cena de Libertação nos Jardins do Palácio de Epaminondas Imperador
Canção
Soneto
Quatorze Versos
Elegia
Presságio
Soneto Inglês
Soneto
Dores
De Porta em Porta
Uma Vida Esquecida
Comutador
Conjugação
Poema do Começo
Rêve Oublié
Sétimo Poema
A poesia é só uma
Preliminares
XL
XXXIX
VII
XX
XXVI
Passeio
Soneto a Muitas Vozes
Exorcismo
Independência
Humanidade
Valor
Âmago
Seara
Metamorfose
2
5
A uma Cerejeira em Flor
24
Os Frutos
Epitáfio
Green God
Rumor
Noturno de Lisboa
Pequena Elegia de Setembro
Despedida
Lamento de Luís de Camões na Morte de Antônio, seu Escravo
XLV
Noite
Em Todos os Jardins
VI
Soneto à Maneira de Camões
Meditação do Duque de Gandia sobre a Morte de Isabel de Portugal
Eurydice
Nevoeiro
Inscrição
Eurydice
A Paixão Nua
Tendências contemporâneas
Preliminares
Aparição
Alegria Breve
Para Sempre
A Sibila
Inscrição sobre as Árvores
Minuto
Lápide
Epitáfio
Soneto Amargo de Convívio Humano
Duna
Soneto de Áspera Resignação
Soneto do Amor Difícil
Porta do Inferno
Ao Verão
Maria Lisboa
Delfos
Escolha
Os Remos
Inscrição sobre as Ondas
Libertação
Ilha
30
Vela
XII
Reinscrição sobre as Ondas
Antônio Marinheiro (O Édipo de Alfama)
No Vagar da Terra
Voz Inicial
Atlan
Árvore
A Felicidade Viva
A Construção do Corpo
A Face do Ar
A Vida e o Sonho
Desencontro
O Amor em Visita
Em Silêncio Descobri essa Cidade no Mapa
IV
V
Sugestão
Basta uma Flor
Rosa de Guadalupe
de Manuel Ribeiro de Pavia
Cruzeiro Seixas: os Dedos Filtram a Sombra
Rumor Branco
O Ano da Morte de Ricardo Reis
Auto dos Danados
O Dia dos Prodígios
O Livro das Comunidades
Amadeo
A Velha
Jerusalém
Leia também
Leia também
PREFÁCIO
Quando, na segunda edição de A Literatura Portuguesa, incluí breves trechos antológicos, a medida se impunha pelo próprio caráter didático da obra. Sabia, contudo, que se tratava de solução provisória, enquanto não chegasse o momento de organizar uma antologia para servir de complemento ao panorama das letras portuguesas que ali se oferece. Ora, tal ocasião surge com a presente obra, intitulada A Literatura Portuguesa através dos textos. Sua finalidade precípua cumpre-se, por isso, em funcionar como crestomatia do livro inicialmente referido. Entretanto, é obra autônoma, que pode ser encarada em si, com princípio, meio e fim, e características próprias. Para tanto, os textos foram organizados em ordem histórica (conforme a divisão adotada em A Literatura Portuguesa), e cada época, período, tendência ou autor abre com uma rápida informação que visa exclusivamente a situar, do ponto de vista cronológico, os textos antológicos e orientar o consulente na sua leitura. E como os textos é que interessam, foi-lhes dada a máxima atenção possível: à sua entrada, colocou-se uma notícia
histórico-crítica, e cada fragmento, além de anotado sempre que necessário, é comentado do ângulo crítico. No tocante ao comentário, é preciso entender que não tive propósito de esgotar a análise dos problemas entrevistos nos excertos; limito-me a registrar alguns pontos de referência e interpretação, deixando ao professor e ao aluno, bem como ao eventual leitor, a tarefa de completá-los e ampliá-los, com o exame do texto e a consulta da eventual indicação bibliográfica inserta no corpo do comentário. Este, bem por isso, incide tanto sobre aspectos gerais, evidentes no texto (como, por exemplo, o ele pertencer a determinada estética, etc.), como sobre aspectos particulares.
Agora, uma palavra acerca do critério geral que presidiu à elaboração de A Literatura Portuguesa através dos textos. Como se tratasse de exemplificar uma literatura, dentro das fronteiras de um volume só e de porte normal, não me restava outro meio senão lançar mão de um critério dúplice: convocar os textos melhores, isto é, qualitativamente julgados em primeira plana, segundo opinião do compilador e/ou do consenso geral, e os textos representativos, ou seja, que dessem uma ideia das várias facetas assumidas pela Literatura Portuguesa no curso de sua história, mesmo que o valor dos textos, enquanto documento literário, seja inferior. Por outro lado, o critério não podia ser aplicado rigidamente, pois seria desconhecer as variações históricas havidas e as perspectivas correspondentes. Assim, certos poetas do Arcadismo, por exemplo, ganharam lugar na antologia, ao passo que outros, dos fins do século XIX, foram excluídos: é que, se o critério de escolha fosse idêntico para as duas épocas, determinados nomes arcádicos cederiam a vez para confrades seus oitocentistas, o que comportaria uma visão da Literatura Portuguesa diversa da que se pretende alcançar no momento. Se a antologia se baseasse apenas nos melhores textos, em lugar de Nicolau Tolentino punha-se, por exemplo, João Penha ou Antônio Feijó. Visto desejar-se uma ideia orgânica da evolução histórica da Literatura Portuguesa, através dos textos, pareceu-me que esse procedimento não cabia. Pela mesma razão, atribuiu-se um pouco mais de ênfase aos autores modernos: a Literatura Portuguesa contemporânea, além de interessar de perto ao leitor, apresenta uma diversidade e uma riqueza que justificam plenamente o elenco de escritores atuais enfeixados. Somente lastimo que o seu número não pudesse ter sido ainda maior, para que a imagem dessa riqueza e diversidade estivesse mais próxima dos fatos; o que fica, porém, constitui a meu ver um punhado de exemplos sugestivos e insinuantes.
M.M.
NOTA
Além de revisto e corrigido, o texto da presente edição sofreu vários acréscimos, tendo em vista sua atualização.
M.M.
TROVADORISMO
Preliminares
A primeira época da história da Literatura Portuguesa inicia-se em 1198 (ou 1189), quando o trovador Paio Soares de Taveirós dedica uma cantiga de amor e escárnio a Maria Pais Ribeiro, cognominada A Ribeirinha, favorita de D. Sancho I, — e finda em 1418, quando D. Duarte nomeia Fernão Lopes para o cargo de Guarda-Mor da Torre do Tombo, ou seja, conservador do arquivo do Reino. Durante esses duzentos anos de atividade literária, cultivaram-se a poesia, a novela de cavalaria e os cronicões e livros de linhagens, nessa mesma ordem decrescente de importância.
A Poesia
De origem ainda obscura (quatro teses têm sido aventadas: a arábica, a folclórica, a médio-latinista e a litúrgica), o lirismo trovadoresco instalou-se na Península Ibérica por influência provençal. Na transladação, sofreu, como seria de esperar, o impacto do novo ambiente e alterou algumas de suas características. Provavelmente, a principal modificação tenha consistido no recrudescimento do aspecto platonizante da confidência amorosa: dentro do trovadorismo português, o ponto mais alto do processo sentimental situava-se antes de a dama atender aos reclamos do apaixonado. Duas eram as espécies de poesia trovadoresca: a lírico-amorosa, expressa em duas formas, a cantiga de amor e a cantiga de amigo; e a satírica, expressa na cantiga de escárnio e de maldizer. O poema recebia o nome de cantiga
(ou ainda de canção
e cantar
) pelo fato de o lirismo medieval associar-se intimamente com a música: a poesia era cantada, ou entoada, e instrumentada. Letra e pauta musical andavam juntas, de molde a formar um corpo único e indissolúvel. Daí se compreender que o texto sozinho, como o temos hoje, apenas oferece uma incompleta e pálida imagem do que seriam as cantigas quando cantadas ao som do instrumento, ou seja, apoiadas na pauta musical.
Todavia, dadas as circunstâncias sociais e culturais em que essa poesia circulava, perderam-se numerosas cantigas bem como a maioria das pautas musicais. Destas, somente restaram sete, pertencentes a Martim Codax, trovador da época de Afonso III (fins do século XIII). Recentemente (1991), Harvey L. Sharrer comunicou a descoberta da notação musical de sete cantigas de amor de D. Dinis. O acompanhamento musical fazia-se com instrumentos de corda, sopro e percussão (viola, alaúde, flauta, adufe, pandeiro, etc.). O espólio trovadoresco conserva-se em cancioneiros
(coletâneas de cantigas), dos quais os mais valiosos são o Cancioneiro da Ajuda (composto nos fins do século XIII, durante o reinado de Afonso III, apenas encerra cantigas de amor), o Cancioneiro da Vaticana (cópia italiana do século XVI sobre original da centúria anterior, contém as duas espécies de poesia trovadoresca) e o Cancioneiro da Biblioteca Nacional (também chamado Colocci-Brancuti, em homenagem a seus dois possuidores italianos, é cópia italiana do século XVI sobre original do século anterior, e abriga trovadores da época de Afonso III e D. Dinis e cantigas das duas espécies). Recebiam o título de trovadores os poetas que compunham, cantavam e instrumentavam suas próprias cantigas. Jogral chamava-se o bobo da Corte, o mímico, o bailarino; às vezes também compunha. Segrel era o trovador profissional e, via de regra, andarilho. Menestrel, o músico. O idioma empregado era o galaico-português.
Cantiga de Amor
Contém a confissão amorosa do trovador, que padece por requestar uma dama inacessível, em consequência da sua condição social superior ou de ele afastar para longe a preocupação com a sua posse, impedido pelo sentimento espiritualizante que o domina.
PAIO SOARES DE TAVEIRÓS
Como primeiro exemplo dessa forma lírico-amorosa, tomemos a cantiga com que Paio Soares de Taveirós (séculos XII-XIII) deu começo ao histórico da Literatura Portuguesa, a qual, no dizer de Carolina Michaëlis de Vasconcelos (Cancioneiro da Ajuda, ed. crit. e com. por..., 2 vols., Halle: a.S., Niemeyer, 1904: vol. I, p. 82n), parece cheia de desigualdades
; e "há no fim espaço branco para mais uma estrofe. — O princípio da 2ª está evidentemente viciado nos versos 1-4. A restituição é todavia difícil. Transpondo o ai ! final do verso 9 para o 10, de sorte que ganhemos para esta a sílaba e a rima que lhe faltam, fica ainda aquela sem a consoante precisa, em elha, e sem o número devido de sílabas":
Cantiga
No mundo non me sei parelha,
mentre me for como me vai,
ca já moiro por vós — e ai!
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi en saia!
Mau dia me levantei,
que vos enton não vi fea!
E, mia senhor, dês aquel di’, ai!
me foi a mi mui mal,
e vós, filha de don Paai
Moniz, e ben vos semelha
d’haver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d’alfaia
nunca de vós houve nen hei
valia dũa correa.
(Cancioneiro da Ajuda, ed. cit.,
vol. I, p. 82, cantiga 38.)
O exame dos aspectos formais da cantiga de Paio Soares de Taveirós nos pode ensinar quanto a certos termos de técnica poética empregados durante a florescência trovadoresca. A estrofe recebia o nome de cobra, cobla ou talho. O verso denominava-se palavra, e quando sem rima (como se afigura o segundo verso da segunda cobra: me foi a mi mui mal
), palavra-perduda. O encadeamento (ou enjambement
) entre dois versos, ocorrido entre o quinto e o sexto da primeira cobra (queredes que vos retraia quando vos eu vi em saia!
), era designado pelo vocábulo atafinda. Repare-se que a cantiga, formada de duas oitavas, não possui estribilho ou refrão: por isso, chama-se cantiga de maestria.
A presente cantiga, que apenas o Cancioneiro da Ajuda registra, sob o nº 38, é de equívoca classificação porquanto apresenta simultaneamente elementos lírico-amorosos e satíricos. O trovador nos dá a impressão de encobrir, sob o manto da reverência imposta, por sua condição de cavalheiro em serviço amoroso
de uma dama, suas setas embebidas em sarcasmo ou despeito. Por essa causa, e pelo fato de o texto ainda apresentar várias dúvidas aos filólogos, a canção vem resistindo valentemente à sondagem dos estudiosos, que continuam a discordar quanto à sua interpretação. Decerto, algo de sua peregrina e persistente beleza resultará justamente do caráter dúbio assumido pelo sentimento do trovador em relação à cortesã de D. Sancho I. Em vista disso, as observações subsequentes objetivam tão-somente aflorar a questão e encaminhar o leitor para o âmago dos problemas colocados pela cantiga, e, ao mesmo tempo, de aspectos gerais da lírica trovadoresca.
Embora a cantiga toda sugira interpretações controversas, as maiores dificuldades, tendo por base a lição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, residem nos seguintes pontos: 1. branca e vermelha
; 2. retraia
; 3. en saia!
; 4. filha de don Paai/Moniz
; 5. por vós
.
1. branca e vermelha
— Dependendo de a vírgula estar onde a situa a romanista supracitada, ou de transferir-se para depois de mia senhor
, indicará: a) a alvura e o rosado da tez feminina (ou a cor ruiva de seus cabelos), ou b) a cor da guarvaia
, vestuário de Corte e de luxo, provavelmente de cor escarlate
(Carolina Michaëlis de Vasconcelos, "Glossário do Cancioneiro da Ajuda", Revista Lusitana, Lisboa, vol. XXIII, nº 1-4, 1920, p. 44).
2. retraia
— Do verbo retraer
com o significado de: a) retratar
, descrever
, relatar
, ou b) afastar-se de
, retirar-se de
, desviar-se de
, recuar
, ou c) desistir de
, renunciar a
.
3. en saia!
— Significa: a) estar sem manto
, ser vista na intimidade
, ou b) estar de luto
.
4. filha de don Paai/Moniz
— A palavra filha
tem sido considerada a) substantivo ou b) forma verbal, do verbo filhar
, que significa tomar de presente
, apropriar-se
.
5. por vós
— Significaria a) por intermédio de vós
, ou b) por amor de vós
, para vós
, ou c) em troca de vós
, em substituição da vossa pessoa
.
Em face de tais dificuldades, como interpretar a cantiga? Creio que a falta da terceira cobra (que na maioria dos casos existia) manterá a questão sempre aberta, sem contar as obscuridades em parte assinaladas. Todavia, talvez coubesse sugerir a seguinte hipótese, meramente com o intuito de convidar o leitor a entrar no debate e buscar a sua interpretação: os três primeiros versos, de sentido transparente, contêm o lamento passional do trovador: não conheço ninguém no mundo igual a mim enquanto me acontecer o que me acontece, pois eu morro por vós — ai!
. Os três versos seguintes possivelmente expressem algo como: minha senhora alva e rosada, quereis que vos descreva quando vos vi na intimidade!
; ou minha senhora alva e rosada, quereis que vos lembre que já vos vi na intimidade?
. E o final da cobra diria: mau dia aquele (em que vos vi sem manto), pois vi que não sois feia
. A segunda cobra encerraria o seguinte: e, minha senhora, desde aquele dia, ai!, venho sofrendo dum grande mal, e enquanto vós, filha de dom Paio Moniz, julgais forçoso que eu vos cubra com a ‘guarvaia’ (ou:
que eu vos ofereça uma ‘guarvaia’ para que vós cubrais as formas belas que entrevi quando estáveis sem manto), eu, minha senhora, de vós nunca recebi a coisa mais insignificante
.
Portanto, quer-me parecer que o trovador, havendo sido beneficiado com os favores da dama, padece por se recordar do bem recebido e do mal que lhe ficou na lembrança. Mas também padece por despeito, quem sabe resultante de a dama se lhe tornar antipática ao admitir que agora, visto ter sido promovida à categoria de favorita do Rei, era merecedora do manto da Corte. Movido pelo ressentimento, insurge-se contra a circunstância de ela pretender a guarvaia
por vaidade e petulância, ou para com a vestimenta apagar a memória das antigas concessões (ou seja, ter-se deixado ver en saia
pelo trovador). E insurge-se ainda porque de A Ribeirinha jamais recebera presente algum, não os favores, que já os merecera, mas os benefícios que, como dama alçada ao nível régio, ela poderia conceder-lhe.
O caráter plangente, sobretudo dos primeiros versos, evidencia desde logo que se trata de um cantar de amor. Mas a indiscrição do trovador ao revelar que a dama se lhe mostrara en saia
, e a alusão à guarvaia
(através da qual o apaixonado parece recriminar à dona, ainda que veladamente, o seu desejo de ser paga pelos favores concedidos) permitem supor um à-vontade próximo da ironia ou do desrespeito que, além de patentear o grau de intimidade entre o trovador e a dama, não se compadece com as estritas normas do amor cortês. Este, postulava o máximo de subserviência e veneração, e o emprego duma linguagem sutil que antes disfarçasse que escancarasse os conflitos sentimentais do trovador. Em suma, seria um escárnio de amor (ver, mais adiante, a cantiga de escárnio e maldizer).
D. DINIS
A cantiga seguinte, sendo inequivocamente de amor, ressaltará, por contraste, o que no cantar de Paio Soares de Taveirós constitui licença poética tomada de empréstimo à cantiga de escárnio. Para tanto, recorremos ao rei D. Dinis (1261-1325), protetor de poetas, amante da cultura (fundou a Universidade de Lisboa, primeira do País, em 1290) e trovador dos mais insignes e o que mais cantigas escreveu (são-lhe atribuídas 138 composições, das quais 76 de amor, 52 de amigo e 10 de maldizer). A cantiga selecionada, uma das mais densas dentre as que elaborou o Rei-Trovador, aparece registrada no Cancioneiro da Vaticana, sob o nº 97, e no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, sob o nº 459:
Cantiga
Hun tal home sei eu, ai ben talhada,
que por vós ten a sa morte chegada;
vede quem é e seed’en nenbrada;
eu, mia dona.
Hun tal home sei eu que preto sente
de si morte chegada certamente;
vede quem é e venha-vos en mente;
eu, mia dona.
Hun tal home sei eu, aquest’oide:
que por vós morr’ e vo-lo en partide,
vede quem é e non xe vos obride;
eu, mia dona. [ 1 ]
(J. J. Nunes, Cantigas d’Amor, Coimbra:
Imprensa da Universidade, 1932, pp. 93-94.)
Ao contrário da de Paio Soares de Taveirós, a presente cantiga não encerra maiores problemas de interpretação textual. Trata-se de uma cantiga de refrão, visto repetir-se o mesmo verso (eu, mia dona
) no final de cada cobra. Os versos da primeira cobra recorrem, com alterações formais que não de sentido, nas cobras seguintes: esse processo repetitivo denomina-se paralelismo, e cantigas paralelísticas (ou cossantes) os poemas que o empregam. Ambos, o refrão e o paralelismo, constituem recursos típicos da poesia popular. Observe-se, especialmente se utilizarmos o recurso da leitura à meia-voz, que o sentimento do poeta evolui como um lamento ininterrupto e crescente, cujo ponto máximo se localiza no refrão da última cobra. E como o seu torturante sofrimento amoroso (a coita de amor) se tornou obsessivo, pois que fruto duma causa única e persistente (a indiferença ou a inacessibilidade da bem-amada), o trovador somente encontra, para expressá-lo, as mesmas ou equivalentes palavras. Assim, a reiteração paralelística decorre do próprio caráter exclusivista da paixão que inunda o poeta. Repare-se que o tormento sentimental pressupõe a não correspondência amorosa da dona ou/e o despeito do trovador. O clima geral da cantiga, de submissão e reverência, deixa-se perpassar por uma aura de espiritualidade platônica que, porém, não dissimula o contorno erotizante do apelo masculino: a coita é mental e física a um só tempo, mas o confidente se esmera em sublimá-la, em atenuar-lhe os matizes sensuais e acentuar-lhe os traços que denotam ansiosa expectativa de bens ultraterrenos. Daí resulta uma cantiga de alta tensão lírica e verdade
emocional, perante a qual apenas o leitor distraído ou insensível permanecerá frio ou insatisfeito.
Cantiga
En gran coita, senhor,
que peior que mort’é,
vivo, per boa fé,
e polo voss’amor
esta coita sofr’eu
por vós, senhor, que eu
Vi polo meu gran mal,
e melhor mi será
de morrer por vós já
e, pois meu Deus non val,
esta coita sofr’eu
por vós, senhor, que eu
Polo meu gran mal vi,
e mais mi val morrer
ca tal coita sofrer,
pois por meu mal assi
esta coita sofr’eu
por vós, senhor, que eu
Vi por gran mal de mi,
pois tan coitad’and’eu. [ 2 ]
(D. Dinis, ibidem, pp. 77-78.)
Cantiga
Ai senhor fremosa, por Deus
e por quam boa vos El fez,
doede-vos algũa vez
de mim e destes olhos meus,
que vos viron por mal de si,
quando vos viron, e por mi.
e, porque vos fez Deus melhor
de quantas fez e mais valer,
querede-vos de min doer
e destes olhos meus, senhor,
que vos viron por mal de si,
quando vos viron, e por mi.
E, porque o al non é ren,
senon o bem que vos Deus deu,
querede-vos doer do meu
mal e dos meus olhos, meu ben,
que vos viron por mal de si,
quando vos viron, e por mi. [ 3 ]
(Idem, ibidem, pp. 136-137.)
Cantiga
Quer’ eu en maneira de proençal
fazer agora hun cantar d’amor
e querrei muit’ i loar mia senhor,
a que prez nem fremosura non fal,
nen bondade, e mais vos direi en:
tanto a fez Deus comprida de ben
que mais que todas las do mundo val.
Ca mia senhor quiso Deus fazer tal
quando a fez, que a fez sabedor
de todo ben e de mui gran valor
e con todo est’ é mui comunal,
ali hu deve; er deu-lhe bon sen
e des i non lhe fez pouco de ben,
quando non quis que lh’ outra foss’ igual.
Ca en mia senhor nunca Deus pôs mal,
mais pôs i prez e beldad’ e loor
e falar muit ben e rir melhor
que outra mulher; des i é leal
muit’, e por esto non sei oj’ eu quen
possa compridamente no seu ben
falar, ca non há, tra-lo seu ben, al. [ 4 ]
(Idem, ibidem, pp. 140-141.)
Cantiga
A dona que eu am’e tenho por senhor
amostrade-me-a Deus, se vos en prazer for,
se non dade-me a morte.
A que tenh’eu por lume destes olhos meus
e por que choram sempre amostrade-me-a Deus,
se non dade-me a morte.
Essa que Vós fizestes melhor parecer
de quantas sei, ai Deus, fazede-me-a veer,
se non dade-me a morte.
Ai Deus, que me-a fizestes mais ca mim amar,
mostrade-me-a u possa con ela falar,
se non dade-me a morte. [ 5 ]
(Bernal de Bonaval, ibidem, p. 423.)
Cantiga de Amigo
Contém a confissão amorosa da mulher, geralmente do povo (pastora, camponesa, etc.). Sua coita nasce de entreter amores com um trovador que a abandonou, demora para chegar, ou está no serviço militar (fossado). A moça dirige-se à mãe, às amigas, aos pássaros, às fontes, às flores, etc., mas quem compõe ainda é o trovador. Ao invés do idealismo da cantiga de amor, a de amigo respira realismo em toda a sua extensão; daí o vocábulo amigo significar namorado e amante. Conforme o lugar ou as circunstâncias em que transcorre o episódio sentimental, a cantiga recebe o título de cantiga de romaria, serranilha, pastoreia, marinha ou barcarola, bailada ou bailia, alba ou alvorada. Vistas no seu conjunto, essas configurações da cantiga de amigo traduzem os vários momentos do namoro, desde a alegria da espera ou do diálogo entre moças acerca dos seus amores, até a tristeza pelo abandono ou a separação forçada.
AIRAS NUNES
Tomemos para exemplo a bailada de Airas Nunes, trovador galego da segunda metade do século XIII, coevo de Afonso X, o Sábio, e de D. Sancho IV, dos mais inspirados de toda a lírica medieval. Dentre as composições que legou, a escolhida para figurar nesta antologia constitui decerto a sua obra-prima. A cantiga é conhecida por dois registros, no Cancioneiro da Vaticana, sob o nº 462, e no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, sob o nº 818:
Cantiga
Bailemos nós já todas três, ai amigas,
so aquestas avelaneiras frolidas,
e quen for velida, como nós, velidas,
se amig’amar,
so aquestas avelaneiras frolidas
verrá bailar.
Bailemos nós já todas três, ai irmanas,
so aqueste ramo destas avelanas,
e quem for louçana, como nós, louçanas,
se amig’amar,
so aqueste ramo destas avelanas
verrá bailar.
Por Deus, ai amigas, mentr’al non fazemos,
so aqueste ramo frolido bailemos
e quen ben parecer, como nós parecemos,
se amig’amar,
so aqueste ramo so lo que nós bailemos
verrá bailar. [ 6 ]
(J. J. Nunes, Cantigas d’Amigo, 3 vols.,
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926-1928, vol. II, p. 235.)
Dado o seu conteúdo esvoaçante e alegre, esta cantiga fixa um raro momento festivo na vida sentimental da moça do povo. A beleza diáfana do poema parece resultar da melopeia primaveril que norteia a confidência feliz das bailadeiras. A simplicidade da sintaxe e do próprio ritmo não deve confundir: o virtuosismo do trovador reside justamente em saber atingir a naturalidade da alegria juvenil e descontraída, e fundamentá-la num esquema rítmico que parece emergir do ato mesmo de respirar ou de cantar. A análise de alguns pontos do poema revela esse virtuosismo de poeta inspirado e senhor dos segredos de ofício: são três as bailadeiras (Bailemos nós já todas três, ai amigas
), uma para cada cobra; e a inserção dos dois versos curtos (quadrissílabos) logo após o 3º e o 5º obedece à simetria existente entre serem três as moças e três as cobras integrantes da cantiga. Em verdade, cada jovem atua como solista de cada uma das cobras, e todas reúnem suas vozes em coro nos versos menores, que assim funcionam como verdadeiros estribilhos. Observe-se que a cantiga possui nítida fisionomia descritiva: as bailadeiras não perscrutam o seu sentimento, apenas o relatam, como pessoas do povo que são, sensíveis, mas incultas, viçosas, mas primitivas. Para o leitor dos nossos dias, deve impressionar que o trovador haja conseguido exprimir de modo tão flagrante e sugestivo a psicologia da mulher de humilde condição, graças à experiência direta do fato (o trovador seria o amigo a que as bailadeiras se reportam) e um alto poder de personificação dramática. Em suma, a cantiga de Airas Nunes constitui um inesquecível momento de beleza musical e emocional, que ressoa em nós muito depois de enunciado o derradeiro verso.
NUNO FERNANDES TORNEOL
A segunda cantiga de amigo que escolhemos para integrar a presente antologia pertence a Nuno Fernandes Torneol, trovador da primeira metade do século XIII. Dos mais autênticos e talentosos poetas do tempo, escreveu 13 cantigas de amor, uma de escárnio e 8 de amigo, das quais se considera obra-prima a que se segue, registrada no Cancioneiro da Vaticana, sob o nº 242, e no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, sob o nº 641:
Cantiga
Levad’, amigo, que dormides as manhãas frias;
todalas aves do mundo d’amor dizian:
leda m’and’eu!
Levad’, amigo, que dormide’-las frias manhãas;
todalas aves do mundo d’amor cantavan:
leda m’and’eu!
Todalas aves do mundo d’amor dizian;
do meu amor e do voss’en ment’avian:
leda m’and’eu!
Todalas aves do mundo d’amor cantavan;
do meu amor e do voss’ i enmentavan:
leda m’and’eu!
Do meu amor e do voss’en ment’avian;
vós lhi tolhestes os ramos en que siian:
leda m’and’eu!
Do meu amor e do voss’i enmentavan;
vós lhi tolhestes os ramos en que pousavam:
leda m’and’eu!
Vós lhi tolhestes os ramos en que siian
e lhi secastes as fontes en que bevian:
leda m’and’eu!
Vós lhi tolhestes os ramos en que pousavam
e lhi secastes as fontes u se banhavan:
leda m’and’eu! [ 7 ]
(Ibidem, vol. II, pp. 71-72.)
Apesar da atmosfera amorosa, não se trata de uma alba, visto que lhe faltam, como assinala Giuseppe Tavani (Motivi della Canzone d’Alba in una Cantiga di Nuno Fernandes Torneol
, Annali, Napoli: III, 1, 1961, pp. 199-205), os ingredientes próprios, como a recorrência do vocábulo alba
no estribilho e a sentinela (ou gaita, na alba provençal), que acordava os amantes, avisando-os de qualquer perigo, sobretudo a presença do marido ciumento. A cantiga encerra o monólogo da moça ao amanhecer, desperta pelo canto da passarada: a sua alegria de amar parece comunicar-se às aves ou nelas encontrar a sua expressão musical, enquanto exorta o amante a levantar-se e a comungar com ela da festiva revoada que a cobre e a encanta. Ausentes as notações eróticas a cantiga versa sobre um tema tradicional, popular ainda no presente século na Galiza e em algumas vilas portuguesas
(Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Cancioneiro da Ajuda, vol. II, p. 344) e constitui das coisas mais prodigiosas do nosso antigo lirismo
(Rodrigues Lapa, Lições de Literatura Portuguesa, Época Medieval, 3ª ed., Coimbra, Coimbra Ed., 1952, p. 144). O contentamento da moça afigura-se resultar mais da lembrança do afeto vivido, e porventura acabado, que da continuidade da relação amorosa no dia novo que desponta. Assim, o secar das fontes e o tolher dos ramos insinuam o término do sentimento entre o par de namorados, embora o estribilho, assinalando a persistência da alegria da jovem, acentue a impressão de que o amor permanecerá apesar de o bem-amado haver cortado os ramos e secado as fontes. A aliciante atmosfera lírica e de flagrância sentimental origina-se precisamente do simbolismo polivalente que emoldura o monólogo da apaixonada após uma noite de amor.
D. DINIS
Das numerosas cantigas de amigo compostas por D. Dinis, salienta-se uma que tem tido espaço obrigatório nas antologias do vernáculo, e que aparece registrada no Cancioneiro da Vaticana, sob o nº 171, e no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, sob o nº 533:
Cantiga
— Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?
Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado?
ai, Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo?
ai, Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi á jurado?
ai, Deus, e u é?
— Vós me preguntades polo voss’amigo?
E eu ben vos digo que é san’e vivo:
ai, Deus, e u é?
Vós me preguntades polo voss’amado?
E eu ben vos digo que é viv’e sano:
ai, Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é san’e vivo
e seerá vosc’ant’o prazo saído:
ai, Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é viv’e sano
e seerá vosc’ant’o prazo passado:
ai, Deus, e u é? [ 8 ]
(Ibidem, pp. 19-20.)
Esta cantiga, das mais belas de quantas escreveu o Rei-Trovador, pode ser considerada de múltipla classificação: trata-se de uma tenção, isto é, cantiga dialogada, porquanto a moça interroga o verde pino
nas quatro primeiras cobras, e o verde pino
lhe responde nas restantes. Entretanto, seria também uma pastorela, cantiga protagonizada por uma pastora: a circunstância de o diálogo estabelecer-se em pleno campo permite supor que a jovem pertence àquela condição, e a cantiga, portanto, ao tipo das pastorelas. Ao mesmo tempo, o ritmo, a musicalidade acelerada, resultante dos decassílabos terminados por refrãos em versos redondilhos (de cinco sílabas), permite que igualmente se classifique a cantiga como bailada. Na verdade, estariam frente a frente duas solistas; a primeira, que interroga as flores, e a segunda, que faz as vezes delas para a resposta; ambas se aliariam às demais jovens presentes para entoar o refrão, em que todas instilariam o mesmo suspirar de amor pelo bem-amado ausente. Por isso, dependendo da perspectiva em que se coloca o leitor, podemos rotular a cantiga de D. Dinis de tenção ou pastorela, bailada. Observem-se, ainda, os seguintes aspectos: 1) o caráter festival e cantante dos decassílabos parece quebrar-se com o grito lancinante e desesperado, expresso no refrão; 2) o paralelismo rigoroso, que corresponde, como já sabemos, a uma tendência típica da poesia popular; 3) o primeiro verso da terceira cobra repete o último da segunda, e o primeiro da sétima repete o segundo da sexta, apenas mudando a derradeira palavra pelo sinônimo equivalente (amado
/amigo
) ou alternando a posição dos últimos vocábulos (viv’e sano
/san’e vivo
): este processo de composição poética recebia o nome de leixa-pren, deixa-prende
.
Cantiga
Amiga, muit’á gran sazon
que se foi d’aqui con el-rei
meu amigo, mais já cuidei
mil vezes no meu coraçon
que algur morreu con pesar,
pois non tornou migo falar.
Porque tarda tan muito lá,
e nunca me tornou veer,
amiga, si veja prazer,
mais de mil vezes cuidei já
que algur morreu con pesar,
pois non tornou migo falar.
Amiga, o coraçon seu
era de tornar ced’aqui,
u visse os meus olhos en mi;
e por en mil vezes cuid’eu
que algur morreu con pesar,
pois non tornou migo falar. [ 9 ]
(D. Dinis, ibidem, p. 6.)
Cantiga
Oi’ oj’ eu uma pastor cantar,
du cavalgava per uma ribeira,
e a pastor estava i senlheira,
e ascondi-me pola ascuitar
e dizia mui bem este cantar:
"So lo ramo verde frolido
vodas fazen a meu amigo
e choran olhos d’amor."
E a pastor parecia mui ben
e chorava e estava cantando
e eu mui passo fui-me achegando
pola oi’r e sol non falei rem,
e dizia este cantar mui bem:
"Ai estorninho do avelanedo
cantades vós e moiro eu e peno:
e d’amores ei mal."
E eu oi’-a sospirar enton,
e queixava-s’ estando com amores
e fazi’ uma guirlanda de flores,
des i chorava mui de coraçon
e dizia este cantar enton:
"Que coita ei tan grande de sofrer:
amar amigu’e non ’ousar veer!
e pousarei so l’avelanal."
Pois que a guirlanda fez a pastor,
foi-se cantand’, indo-s’en manselinho,
e tornei-m’eu logo a meu caminho,
ca de a nojar non ouve sabor,
e dizia este cantar ben a pastor:
"Pela ribeira do rio cantando
ia la virgo d’amor: quen amores
á como dormirá, ai bela frol!" [ 10 ]
(Airas Nunes, ibidem, pp. 233-234.)
Cantiga
Levou-s’a louçana,
levou-s’a velida;
vai lavar cabelos
na fontana fria,
leda dos amores,
dos amores leda.
Levou-s’a velida,
levou-s’a louçana;
vai lavar cabelos
na fria fontana,
leda dos amores,
dos amores leda.
Vai lavar cabelos
na fontana fria;
passa seu amigo,
que lhi ben queria,
leda dos amores,
dos amores leda.
Vai lavar cabelos
na fria fontana,
passa seu amigo
que a muit’ama,
leda dos amores,
dos amores leda.
Passa seu amigo,
que lhi ben queria;
o cervo do monte
a augua volvia,
leda dos amores,
dos amores leda.
Passa seu amigo
que a muit’ama;
o cervo do monte
volvia a augua,
leda dos amores,
dos amores leda. [ 11 ]
(Pero Meogo, ibidem, pp. 375-376.)
Cantiga
Ondas do mar de Vigo,
se vistes meu amigo!
e ai Deus, se verrá cedo!
Ondas do mar levado,
se vistes meu amado!
e ai Deus, se verrá cedo!
Se vistes meu amigo,
o por que eu sospiro!
e ai Deus, se verrá cedo!
Se vistes meu amado
por que hei gran cuidado!
e ai Deus, se verrá cedo! [ 12 ]
(Martim Codax, ibidem, p. 441.)
Cantiga de Escárnio e Maldizer
As diferenças entre estas duas modalidades irmãs da sátira trovadoresca residiriam, segundo a Arte de Trovar
que antecede o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, no seguinte: a cantiga de escárnio conteria sátira indireta, realizada por intermédio do sarcasmo, da zombaria e de uma linguagem de sentido ambíguo; a cantiga de maldizer encerraria sátira direta, agressiva, contundente, e lançaria mão duma linguagem objetiva e sem disfarce algum. Entretanto, tal distinção nem sempre se torna patente, pois volta e meia topamos com cantigas que misturam os dois processos. A maior parte, porém, das cantigas satíricas era de maldizer.
PERO GARCIA BURGALÊS
Para representar esse tipo de poesia trovadoresca, escolhemos inicialmente uma composição de Pero Garcia Burgalês, trovador galego da segunda metade do século XIII, que escreveu numerosas cantigas de amor, de amigo e de escárnio e maldizer. A cantiga selecionada para representar-lhe o talento constitui, sem dúvida, um dos momentos mais altos a que subiu a sátira trovadoresca. Registram-na o Cancioneiro da Vaticana, sob o nº 998, e o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, sob o nº 1331:
Cantiga
Rui Queimado morreu con amor
en seus cantares, par Sancta Maria,
por ũa dona que gran ben queria,
e, por se meter por mais trobador,
porque lh’ela non quis [o] ben fazer,
fez-s’el en seus cantares morrer,
mas ressurgiu depois ao tercer dia!
Esto fez el por ũa sa senhor
que quer gran ben, e mais vos en diria:
porque cuida que faz i maestria,
e nos cantares que fez a sabor
de morrer i e desi d’ar viver;
esto faz el que x’o pode fazer,
mas outr’omen per ren non [n] o faria.
E non há já de sa morte pavor,
senon sa morte mais la temeria,
mas sabe ben, per sa sabedoria,
que viverá, dês quando morto for,
e faz-[s’]en seu cantar morte prender,
desi ar viver: vede que poder
que lhi Deus deu, mais que non cuidaria.
E, se mi Deus a min desse poder,
qual oi’ el há, pois morrer, de viver,
jamais morte nunca temeria. [ 13 ]
(J. J. Nunes, Crestomatia Arcaica, 3ª ed.,
Lisboa: Clássica, 1943, p. 400.)
Esta cantiga enquadra-se entre as de escárnio, visto que Pero Garcia procura mofar de Rui Queimado (trovador dos fins do século XIII e princípios do XIV) com palavras cobertas que hajam dous sentidos
. Do prisma formal, repare-se que a cantiga apresenta quatro cobras, uma a mais do que era frequente. A última cobra, com estrutura própria (um terceto, enquanto as outras cobras constituem estrofes de sete versos), mas vinculada ao corpo da cantiga pela rima, — recebia a denominação de fiinda. As quatro cobras equivalem a três fases do percurso satírico: a primeira cobra funciona como prólogo, ou súmula dos antecedentes do tema escolhido; as duas seguintes encerram a perquirição intelectual do quadro insólito que Rui Queimado oferecia na sua relação com a dama eleita e a morte: morria (nas canções...) mas permanecia vivo; a fiinda, servindo de fecho às cobras restantes, guarda a moral da história
, o conceito, a sentença moral, que o trovador extrai do caso de Rui Queimado. No tocante à matéria da canção, Pero Garcia satiriza o vezo que tinha esse poeta, e não poucos outros confrades do tempo, de confessar, nas suas cantigas, que se consumia de amor pela dona
dos seus cuidados. Mas como a sua reiterada morte fosse apenas lírica, o trovador acabou por cair em ridículo. E nesse estado Pero Garcia o surpreendeu. O tom da composição é, pois, irônico e conceituoso; todavia, na primeira cobra o trovador enfatiza a sátira ao dizer que o seu desafeto fez-s’el en seus cantares morrer
porque a sua dama non quis [o] ben fazer
(ou seja: atender-lhe os rogos). Note-se, inclusive, o terceiro verso da mesma cobra — mas ressurgiu depois ao tercer dia!
— marcado pelo conteúdo sarcástico e irreverente, e a exclamação final, que emprestam um tom de ápice ao relato da situação grotesca em que se enfiara Rui Queimado. Por fim, cabe salientar o seguinte ponto: embora a cantiga de escárnio tenda, no geral, a ser à clef, quer dizer: referir-se a circunstâncias e pessoas encobertas ou dissimuladas, o cantar de Pero Garcia ainda nos diz alguma coisa graças à sua equação humana, ainda viva nos dias que correm, na medida em que perdura a dissociação entre o poeta-criador e o poeta-homem: Rui Queimado morria como poeta, em imaginação, ao passo que, como homem, se mantinha vivo.
JOÃO GARCIA DE GUILHADE
A segunda cantiga satírica, que a seguir se transcreve, pertence a João Garcia de Guilhade, trovador do século XIII, importante não só pelos recursos poéticos de que era possuidor, como pelo número de cantigas que compôs: 21 cantigas de amigo, 15 de maldizer e duas tenções. A canção escolhida, uma das mais sugestivas e vivazes de quantas criou, vem registrada no Cancioneiro da Vaticana, sob o nº 1097, e no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, sob o nº 1399:
Cantiga
Ai dona fea! foste-vos queixar
porque vos nunca louv’en meu trobar
mais ora quero fazer un cantar
en que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!
Ai dona fea! se Deus mi perdon!
e pois havedes tanto gran coraçon
que vos eu loe en esta razon,
vos quero já loar toda via;
e vedes qual será a loaçon:
dona fea, velha e sandia!
Dona fea, nunca vos eu loei
en meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já un bon cantar farei
en que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia! [ 14 ]
(Oskar Nobiling, As Cantigas de D. Joan
Garcia de Guilhade, Erlangen, 1907, p. 67.)
Trata-se, como se vê, de uma cantiga de maldizer, porquanto o trovador se dirige diretamente à dona fea, velha e sandia
. A estrutura revela nitidamente o caráter popular desse tipo de cantiga: além de se arquitetarem segundo o esquema paralelístico, as cobras finalizam em estribilho. Quanto ao conteúdo, é fácil imaginar as causas da invectiva do trovador: com certeza, a mulher a que ele destina a sátira se julgara merecedora de uma cantiga de amor, e, quem sabe, as atenções do poeta. Este, na resposta, observa as leis do comedimento, visto a interlocutora possuir os defeitos que tornavam sua pretensão improcedente e ridícula: dona fea, velha e sandia
. Na zombaria altiva e superior, posto que cortante e frontal, e na feliz concentração de notas satíricas que o trovador alcança realizar no estribilho, reside a vitalidade da cantiga, também viva naquilo em que retrata uma situação social que persiste, ou seja, a de uma dona fea, velha e sandia
que anseia ser cortejada por um jovem. Atente-se para o fato de que a sátira trovadoresca, sobretudo na vertente de maldizer, por circular em ambientes tabernários, somente por exceção apresentava a moderação de João Garcia de Guilhade: não raro acolhia as expressões mais chulas e licenciosas de que é capaz a língua portuguesa, numa verossimilhança que amortece a possível carga poética em presença, e enaltece a relevância das cantigas desse naipe como documento histórico e sociológico (Ver: Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer, edição crítica de Rodrigues Lapa, Coimbra, Galáxia, 1965).
Cantiga
Hun infançon me-á convidado
que seja seu jantar loado
por mi, mais non no ei guisado
e direi-vos por que me-aven,
ca iá des antan’ ei jurado
que nunca diga de mal ben.
Diss’el: "poi’ lo jantar foi dado,
load’ este jantar honrado":
dix’ eu: "faria-o de grado,
Mais jurei antan’ en Jaen,
na oste, quando fui cruzado,
que nunca diga de mal ben". [ 15 ]
([João] Nunes [Camanês]?,
J. J. Nunes, 1943, p. 395.)
Cantiga
Don foão que eu sei
que á preço de livão,
vedes que fez ena guerra
(d’aquesto son certão):
sol que viu os ginetes,
come boi que fer tavão,
sacudiu-s’ e revolveu-se,
alçou rab’ e foi sa via
a Portugal.
Don foão que eu sei
que á preço de ligeiro,
vedes que fez ena guerra
(d’aquesto son verdadeiro):
sol que viu os ginetes,
come bezerro tenreiro,
sacudiu-s’ e revolveu-se,
alçou rab’ e foi sa via
a Portugal.
Don foão que eu sei
que há prez de liveldade
vedes que fez ena guerra
(sabede-o por verdade):
sol que viu os ginetes,
come can que sal de grade,
sacudiu-s’ e revolveu-se,
alçou rab’ e foi sa via
a Portugal. [ 16 ]
(D. Afonso Mendes de Besteiros,
ibidem, pp. 398-399.)
A Prosa
A prosa, na época do trovadorismo, é representada pelas novelas de cavalaria, os livros de linhagens, as hagiografias e os cronicões. Os livros de linhagens eram listas de nomes que estabeleciam nexos genealógicos entre famílias fidalgas. Os cronicões, não raro escritos em latim, apresentam escasso valor literário, embora constituam os primeiros documentos historiográficos em Portugal. Menor ainda é a valia literária das hagiografias, também redigidas naquele idioma. No conjunto, apesar da existência de uma obra-prima como A Demanda do Santo Graal, a produção em prosa literária dessa época deixou-se ofuscar pelo brilho da poesia trovadoresca.
Novelas de Cavalaria
Originárias da França e, remotamente, da Inglaterra, as novelas de cavalaria resultaram da prosificação das canções de gesta (poemas de assunto épico). Organizavam-se em três ciclos: o ciclo bretão ou arturiano, em torno do Rei Artur e os seus cavaleiros; o ciclo carolíngio, protagonizado por Carlos Magno e os doze pares de França; o ciclo clássico, de temas greco-latinos. Somente o ciclo bretão vingou em Portugal, por meio das narrativas vertidas do francês. Delas restaram três espécimes: a História de Merlim, o José de Arimateia e A Demanda do Santo Graal. Da primeira ficou unicamente a tradução espanhola, baseada na portuguesa, que se perdeu. O José de Arimateia (ms. nº 634 da Torre do Tombo) foi publicado em 1967.
A Demanda do Santo Graal francesa, que teria sido composta por Gautier Map cerca de 1220, pertencia a uma trilogia integrada por Lancelote e A Morte do Rei Artur, e foi vertida para o vernáculo no século XIII. Sua edição completa, mas estropiada, deu-se em 1944, com base no manuscrito de nº 2594, existente em Viena, que seria cópia, refundida em fins do século XIV e princípios do XV, daquela tradução e adaptação. Reeditou-se, em 1955 e 1970, com aparato filológico mais exigente. O texto contém a referida novela e um resumo de A Morte do Rei Artur, induzindo a supor que o copista tivesse diante de si a trilogia toda.
A Demanda do Santo Graal
A novela inicia-se em Camaalot, reino do Rei Artur. É dia de Pentecostes, e os cavaleiros estão reunidos à volta da távola redonda
. Galaaz chega, ocupa o assento reservado para o cavaleiro escolhido
e tira a espada fincada no padrom
(pedra de mármore) que boiava n’água. Durante a refeição, o Graal (cálice com que José de Arimateia colhera o sangue derramado por Cristo na cruz) perpassa o ar, nutre os presentes com o seu manjar celestial e desaparece. No dia seguinte, após ouvir missa, os cavaleiros saem na demanda
(procura) do Santo Vaso. Daí por diante, vão-se entrelaçando várias aventuras, que culminam quando Galaaz é beneficiado com a aparição do Graal enquanto celebra o ofício religioso. O episódio que se transcreve a seguir, correspondente aos capítulos 250-253, intitula-se A Barca Misteriosa — O Torneo Forte e Maravilhoso
:
Quando Boorz se partiu da abadia, ũa voz lhe disse que fosse ao mar, ca Persival o atendia i. El se partiu ende, assi como o conto o há já devisado. E quando chegou aa riba do mar, a fremosa nave, coberta de um eixamete branco aportou, e Boorz desceu e encomendou-se a Nostro Senhor, e entrou dentro e leixou seu cavalo fora. E tanto que entrou dentro, viu que a nave se partiu tam toste da riba, como se voasse. E catou pela nave e nom viu rem, que a noite era muito escura; e acostou-se ao boordo e rogou a Nostro Senhor que o guiasse a tal lugar u sua alma podesse salvar. E, pois fez sa oraçom, deitou-se a dormir. E manhã, quando se espertou, viu na nave uũ cavaleiro armado de loriga e de brafoneiras. E, pois o catou, conhecê-o e tolheu logo seu elmo e foi-o logo abraçar e fazer com ele maravilhosa ledice. E Persival foi maravilhado, quando o viu vir contra si, ca nom podia entender quando entrara na nave. E pero, quando o conheceu, foi tam ledo, que nom poderia chus. E ergueu-se e abraçou-o e recebê-o como devia. E começou o um ao outro a contar de sas aventuras, que lhes aveerom dês que entraram na demanda. Assi se acharom os amigos na barca que Deus lhes guisara, e atendiam i quais aventuras lhes el quisesse enviar. E Persival disse que lhe nom falecia de sa promessa, fora Galaaz.
Mais ora leixa o conto falar deles e torna a Galaaz, ca muito há gram peça que se calou dele.
Conta a estória que, pois que o boõ cavaleiro se partiu de Persival e que o livrara dos XX cavaleiros que o perseguiram pola donzela, entrou no grã caminho da fresta e andou pois muitas jornadas, aa vezes acá, aa vezes alá, assi como a ventura o levava. E pois andou gram peça pelo reino de Logres em muitos logares u lhe diziam que havia aventuras de acabar, tornou-se contra o mar, assi como sa vontade lhe deu.
Uum dia lhe aveo que a ventura o levou per ante uũ castelo, u havia uũ torneo forte e maravilhoso; e havia i gram gente da ũa parte e da outra, e dos da Mesa Redonda havia i muitos, uũs que ajudavam os de dentro, e outros os de fora, e nom se conheciam, polas armas que haviam cambadas. Mais aquela hora que veo i Galaaz, eram os de dentro tam desbaratados, que nom atendiam se morte nom. E Tristam, que a ventura adussera aaquel torneo e que ajudava os de dentro, sofrera já i tanto que tinha já mui grandes IIII chagas, ca todolos de fora estavam sobre ele polo prenderem, porque viram que era melhor cavaleiro que nẽnhũ dos outros; e nom havia i tal dos outros que lhe tanto mal fezesse como Galvam e Estor, que eram da outra parte, e nom no conheciam, e pero el se defendia tam vivamente, que todos os que o viam eram maravilhados. Galaaz estava já muito preto da porta, e viu ante si uũ cavaleiro mal-chagado, que saíra do torneo e ia fazendo tam gram doo, que nom vistes maior. E Galaaz se chegou a ele e preguntou-o porque fazia tam gram doo:
— Por quê? disse el: polo milhor cavaleiro do mundo, que vejo morrer per grã maa-ventura, ca todo o mundo é contra el, assi como veedes, e ainda nom quer leixar o torneo.
— E qual é? disse Galaaz.
E el lho mostrou.
— Par Deus, disse Galaaz, verdadeiramente el é mũi boõ cavaleiro. Assi Deus vos salve, dizede-me como há nome.
— Senhor, disse el, há nome dom Tristam.
— No nome de Deus, disse Galaaz, eu o conhosco mui bem. Ora me terriam por mau, se o nom fosse ajudar.
Entom se leixou correr a eles e meteu Gilflet em terra; dês i, Estor; dês i, Sagramor; dês i, Lucam. E depois que lhe quebrou a lança, meteu mão aa espada, como aquel que se sabia bem dela ajudar, e meteu-se u era a maior pressa, e começou a derribar cavaleiros e cavalos, e fazer tam gram maravilha de armas, que quantos o viam se maravilhavam em. E Galvam disse a Estor e aos outros seus companheiros que já cavalgarom:
— Por esta cabeça, este é Galaaz, o boõ cavaleiro. Ora será fol quem no mais atender, ca a seu golpe nom pode durar arma.
E el isto dizendo, aveo que chegou Galaaz a ele, assi como a ventura o trazia, e deu-lhe ũa cuitalada, que lhe talhou o elmo e o almofre e o coiro e a carne atee o testo, mais aveo-lhe bem que nom foi chaga mortal. E Galvam, que bem cuidou a seer morto, leixou-se cair em terra. E Galaaz, que nom pôde ter seu golpe, acalçou o cavalo pelo arçom de ante, assi que o talhou per meo das espáduas, e o cavalo caiu morto a-cabo seu senhor.
Quando Estor viu este golpe, maravilhou-se e afastou-se afora, ca bem entendeu que seria mal-sem e folia demais atender. Sagramor disse entom:
— Per boa fé, ora posso bem dizer que este é o melhor cavaleiro que eu nunca vi. Nunca me creades de rem, se este nom é Galaaz, o mui boõ cavaleiro, aquel que há de dar cima aas aventuras do regno de Logres.
— Sem falha, esse é, disse Estor.
E eles em esto falando, Galaaz viu que os de fora começaram a fugir, e os do castelo iam empós eles, prendendo em eles a seu plazer. E quando Galaaz viu que os de fora eram já assi desbaratados, que nom podiam já recobrar, partiu-se ende tam escundidamente, que nenguũ nom no entendeu, fora Tristam. Aquel verdadeiramente o seguiu de longe, que aquel dia viu em el tam gram bondade de cavalaria, que disse que jamais nom seria ledo taa que nom soubesse quem era Assi se foram ambos tam escondidamente, que os da assumada nom poderam saber que fora deles. E Galvam, que foi tam coitado do golpe, que nom cuidou a escapar vivo, disse a Estor:
— Par Deus, dom Estor, ora vejo eu que é verdade o que me disse Lançalot ante vós todos, em dia de Penticoste, que, se provasse de tirar a espada do padrom, que me acharia eu mal, ante que o ano passasse, e que seria per aquela espada mesma. E, sem falha, esta é aquela espada com que me el feriu. E esto vejo que assi me aveo como me foi adevĩado.
— E sodes mal-ferido? disse Estor.
— Non som tam mal-ferido, disse el, que nom possa guarecer. Mais o pavor me fez peor que al.
— Mais que podemos fazer? disse el. Semelha-me que já ficaremos, disse Estor.
— Non ficaredes vós, disse el, mais eu ficarei taa que seja guarido.
E eles em esto falando, chegarom-se os do castelo a eles. E quando souberom que era Galvam, muitos houve i a que pesou. E filharam-no e levaram-no ao castelo e desarmarom-no, e meterom-no em uã câmara escura e longe de gente, e fezerom-lhe catar sua chaga a uũ mui boõ mestre, que mũi bem sabia de tal mestria, que os fez seguros, que o daria são a pouco tempo. Assi ficou Galvam no castelo, e Estor, que o nom quis leixar ataa que saasse. Os outros se foram, e quando se partiram do castelo, começaram a falar de Galaaz e disserom:
— Que faremos? Aquel boõ cavaleiro nom é longe; vamos empós el, ataa que o achemos; e se Deus quer que o achemos, tenhamos-lhe companhia mentre podermos, ca, sem falha, maravilhas haveremos del.
A esto i se acordaram, e per u iam, iam demandando por Galaaz. Mais porque o nam acharam esta vez, se cala ora ende o conto e torna a Galvam. [ 17 ]
(A Demanda do Santo Graal, Rio de Janeiro,
INL, 1955, vol. I, 375, 377, 379, 381.)
Este episódio divide-se em duas partes distintas, conforme o próprio título sugere. Na primeira, protagonizada por Boorz e Perseval, dois dos principais cavaleiros de Camaalot, observa-se, de um lado, a presença de ingredientes místicos que fazem da Demanda uma novela ao divino
, isto é, cristã e transcendental; de outro, a magia, o maravilhoso pagão, representado pela barca que partiu como se voasse
, que lembra a faceta fantástica e supersticiosa da Idade Média. A segunda parte, encetada no segundo parágrafo, contém o recheio mais frequente nesse tipo de narrativa épica: a justa
, quando a troca de armas se realizava homem a homem, e o torneio
, quando coletiva. Aqui, Tristão enfrenta sozinho, em torneio, vários adversários, pois nom se conheciam, polas armas que haviam cambadas
. Vale dizer: como o reconhecimento entre os cavaleiros se fazia por meio das inscrições que adornavam o escudo, estando este cambado
, é natural que lutassem entre si julgando-se cavaleiros inimigos ou desconhecidos. Tal pormenor constitui lugar-comum na novela de cavalaria medieval. Observe-se também que Galaaz se