Pseudociência
De David Marçal
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Sobre este e-book
David Marçal
Doutorado em Bioquímica pela Universidade Nova de Lisboa. Redactor científico na Ciência Viva e coordenador da rede GPS (Global Portuguese Scientists). Autor de centenas de artigos na comunicação social, de espectáculos, de programas de rádio e de televisão sobre ciência e de livros de divulgação científica, nomeadamente o ensaio “Pseudociência”, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.
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Pseudociência - David Marçal
Agradecimentos
Agradeço em primeiro lugar a António Araújo pelo amável convite para escrever este livro. Agradeço à investigadora Sónia Negrão, pela troca de ideias acerca de plantas geneticamente modificadas. À Sofia G. Vaz pelas úteis sugestões ao texto sobre alterações climáticas. Também aos membros da Comunidade Céptica Portuguesa (Comcept), em particular à Diana Barbosa, ao João Monteiro, ao Marco Filipe e à Leonor Abrantes, pelas discussões e sugestões acerca de medicinas alternativas, produtos naturais e teorias da conspiração. Ao naturopata Bruno Gonçalves pela discussão franca acerca de produtos naturais. A Alexandre Campos pela disponibilidade para esclarecer assuntos médicos e à Joana Lobo Antunes pelas úteis correcções. Agradeço de um modo muito especial a Carlos Fiolhais, pela revisão do texto e pelos bons conselhos.
Siglas e abreviaturas
ADN – Ácido desoxirribonucleico
EFSA – Autoridade Europeia de Segurança Alimentar
Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde
IPCC – Painel Intergovernamental das Nações Unidas Para as Alterações Climáticas
OGM – Organismos Geneticamente Modificados
ppm – partes por milhão
1. De que estamos a falar?
A linha que separa a ciência da pseudociência
Em 2002 na vila de S. Bartolomeu de Messines, concelho de Silves, no Algarve, algumas mulheres saíram para a rua e desnudaram-se da cintura para cima. Tinham sido contactadas por alguém que afirmava ser médica e que oferecia exames de mamografia por satélite. À hora combinada, «a que passava o satélite», as mulheres saíam para locais descampados e seguiam as instruções ditadas por telefone. Primeiro uma mama, depois a outra. Às vezes era preciso repetir, porque o satélite não apanhava bem. Nalguns casos em três ou quatro locais, na esperança de melhorar a captação do satélite. A voz no telefone fazia pedidos bizarros e orientava dinâmicas de grupo que envolviam vários pares de mamas em simultâneo. À noite, a falsa médica telefonava novamente às pacientes para transmitir os resultados: tinha-as observado a tarde inteira com binóculos e afirmava ter tido vários orgasmos. Este embuste, tão simples e absurdo que se pode considerar caricato, apresenta pelo menos duas características habituais da pseudociência: o uso de linguagem científica (a suposta tecnologia inovadora) e uma figura de autoridade (a alegada médica).
Há várias definições de pseudociência. Neste ensaio vou começar por socorrer-me de uma definição prática: pseudociência é qualquer tipo de informação ou actividade que se diz baseada em factos científicos, mas que não resulta da aplicação válida de métodos científicos. Claro que, para entendermos esta definição, teremos de saber o que é a aplicação válida de métodos científicos. Mas esse problema incontornável é a grande questão subjacente a este tema.
O físico norte-americano Richard Feynman comparou a pseudociência ao «culto da carga», um conjunto de rituais praticados por alguns povos das ilhas do Pacífico no final da Segunda Guerra Mundial. Nesses rituais, alguns indígenas imitavam os procedimentos dos militares norte-americanos nas bases aéreas, de modo a receberem, também eles, a «carga» transportada pelos aviões. Construíam pistas de aviação rudimentares e cabanas para o «controlador aéreo», um homem com dois bocados de madeira na cabeça a imitar auscultadores e dois paus de bambu a imitar antenas. Feynman, no seu livro Está a brincar Sr. Feynman (Gradiva, 1988) sugere que há uma analogia entre o «culto da carga» e a pseudociência:
«Seguem todos os preceitos e formas aparentes da investigação científica, mas falta-lhe qualquer coisa essencial porque os aviões não aterram.»
Na tentativa de imitar a ciência, a pseudociência copia a linguagem e os padrões estéticos normalmente associados à ciência. A razão pela qual os aviões não aterram, ou seja, o que falta à pseudociência apesar de toda a imitação que faz da ciência, são as provas. A ciência, ao contrário da pseudociência, assenta em provas e não em figuras de autoridade.
Na origem desta confusão entre ciência e pseudociência está o desconhecimento das características da ciência e do método científico. Se soubermos bem o que é a ciência, mais dificilmente nos deixaremos enredar pelos delírios dos falsos controladores aéreos com dois paus de bambu a imitar antenas na cabeça.
O desconhecimento das características da ciência resulta por vezes numa visão mitificada. Nessa visão, a ciência é erradamente vista como sendo capaz de fornecer solução para todos os problemas, infalível e imperscrutável. De algum modo é a ciência como uma espécie de religião, em que o conhecimento científico é apresentado como uma crença, validada por figuras de autoridade. Essa visão da ciência é o terreno fértil para semear ideias falsamente científicas.
O que é a ciência?
O conhecimento científico assenta na observação e na experiência. E a ciência moderna tem como base o método científico. É colocada uma hipótese, para a elucidar é concebida uma experiência, são obtidos resultados, sujeitos a uma interpretação. Claro que tudo isto pode ter falhas. Por exemplo, os métodos usados para testar uma determinada hipótese podem não ser os mais adequados e produzirem inevitavelmente resultados enviesados ou inconclusivos. Para detectar e corrigir falhas, os trabalho de investigação estão sujeitos a um forte escrutínio da comunidade científica. São descritos em artigos científicos e propostos para publicação em revistas científicas. Antes de serem aceites para publicação passam pelo processo de revisão pelos pares, ou seja, cada artigo científico é lido por, pelo menos, dois cientistas da área, que verificam se a metodologia é adequada, se a interpretação dos resultados é razoável, se são tiradas conclusões abusivas, etc. Muitos artigos são pura e simplesmente recusados. Têm de ser rescritos ou mesmo realizadas novas experiências para que possam eventualmente ser publicados. Claro que este processo também pode ter falhas e, por vezes, passam pelo crivo da revisão pelos pares artigos absolutamente disparatados. Mas essas falhas acabam por ser descobertas, quando outros grupos de investigação repetem as experiências e obtêm resultados diferentes ou mais conclusivos. Às vezes demora algum tempo. As novas ideias em ciência não são geralmente o resultado do trabalho de um único grupo de investigação, mas tendências que se vão consolidando ao longo dos anos com a contribuição de vários grupos independentes. Por isso, deste processo, falível em todas as etapas, surge conhecimento que vai sendo corrigido e melhorado, tornando-se cada vez mais