Wacquant, L. Que É Gueto
Wacquant, L. Que É Gueto
Wacquant, L. Que É Gueto
QUE GUETO?
CONSTRUINDO UM CONCEITO SOCIOLGICO
Loc Wacquant
RESUMO
Ao invs de produzirem um conceito analiticamente robusto de gueto, as Cincias Sociais utilizam o termo de maneira descritiva, no raro lhes conferindo significados do senso comum emprestados das sociedades em que o fenmeno identificado. A partir da produo historiogrfica sobre a dispora judaica na Europa renascentista, da Sociologia da experincia negra na metrpole fordista dos EUA e da Antropologia da marginalidade tnica na sia Oriental, este artigo constri um conceito relacional de gueto como um instrumento bifacetado [Janus faced] de cercamento e controle etno-racial. Por meio desse procedimento, o gueto revela-se como um dispositivo scio-organizador composto de quatro elementos (estigma, limite, confinamento espacial e encapsulamento institucional) que emprega o espao para reconciliar seus dois propsitos contraditrios: explorao econmica e ostracismo social. O gueto no uma rea natural, produto da histria da migrao (como Louis Wirth defendia), mas sim uma forma especial de violncia coletiva concretizada no espao urbano. A articulao do conceito de gueto possibilita o desvelamento da relao entre guetizao, pobreza urbana e segregao, assim como o esclarecimento das diferenas estruturais e funcionais entre guetos e aglomeraes tnicas. Esse proceder tambm possibilita que realcemos o papel do gueto como matriz e incubador simblico da produo de uma identidade maculada, indicando que seu estudo seja feito por analogia a outras instituies voltadas para o confinamento forado de grupos despossudos e desonrados como o campo de refugiados, a reserva e a priso. PALAVRAS-CHAVE: gueto; conceituao; cercamento etno-racial; controle social.
1
I. INTRODUO Enquanto as Cincias Sociais fazem uso corrente do termo gueto de maneira descritiva, elas paradoxalmente no produziram uma definio analtica para o mesmo. Tanto na historiografia da dispora judaica do comeo da era moderna e durante o nazismo, como na Sociologia da experincia negra na metrpole do sculo XX e na Antropologia sobre a marginalidade tnica na frica e na sia Oriental, ou seja, nas trs reas em que o termo empregado, o gueto denota uma rea urbana restrita, uma rede de instituies ligadas a grupos especficos e uma constelao cultural e cognitiva (valores, formas de pensar ou mentalidades) que implica tanto o isolamento scio-moral de uma categoria estigmatizada quanto o truncamento sistemtico do espao e das oportunidades de vida de seus integrantes. Mas ne-
nhuma dessas linhas de pesquisa tomou para si o nus de especificar o que faz do gueto uma forma social, ou quais de suas caractersticas so constitutivas e quais so derivativas; pelo contrrio, as diferentes pesquisas tm, em suas pocas respectivas, adotado a definio do senso comum que prevalece na sociedade examinada o que explica o fato de o conceito, que parece bvio, no aparecer em grande parte dos dicionrios de Cincias Sociais, nem mesmo nas edies anteriores desta enciclopdia. II. UM CONCEITO OPACO E MUTANTE Dessa maneira, o campo semntico do conceito gueto na sociedade e nas Cincias Sociais norte-americanas, cujo domnio da investigao sobre esse tpico tem sido tanto quantitativo quanto temtico, tem sucessivamente se expandido e se contrado, acompanhando assim a maneira como elites polticas e intelectuais conceituam o nexo perverso entre etnia e pobreza no meio urbano (WARD, 1989). Inicialmente, na ltima metade do sculo XIX, o termo era usado para referir-se a concentraes residenciais de judeus eu-
155
QUE GUETO?
ropeus nos portos do Atlntico e era claramente distinto de slum2 enquanto rea de moradia precria e de patologia social. O conceito expandiuse durante a Progressive Era e passou a incluir todos os distritos urbanos degradados3 onde imigrantes exticos juntavam-se mais especificamente, imigrantes pobres do Sudeste europeu e afro-americanos fugindo do regime Jim Crow de submisso de castas no Sul dos EUA. Na medida em que o termo refletia preocupaes da classe dominante com relao assimilao desses grupos ao padro anglo-saxo predominante no pas, o gueto referia-se, nesse contexto, interseco entre bairros tnicos e slums, em que a segregao juntava-se ao abandono fsico e superpopulao, exacerbando assim males urbanos como a criminalidade, a desintegrao familiar, a pobreza e a falta de participao na vida nacional. O conceito recebeu autoridade cientfica com o paradigma ecolgico da Escola de Sociologia de Chicago. Em seu livro clssico, The Ghetto, Louis Wirth (1928, p. 6) junta ao gueto judeu da Europa medieval outros guetos: Pequenas Siclias, Pequenas Polnias4, Chinatowns e cintures negros das cidades grandes, assim como reas do vcio, pululando com tipos marginais tais como vagabundos, bomios e prostitutas todas eles consideradas reas criadas naturalmente a partir de um desejo universal de diferentes grupos de preservar seus hbitos culturais peculiares, e cada uma cumprindo sua funo especfica no grande organismo urbano. O conceito foi modificado depois da II Guerra, sob a presso do movimento dos direitos civis e passou a referir-se aos enclaves compactos e saturados a que os afro-americanos eram relegados quando migravam para os centros industriais do Norte dos EUA. Havia ento um forte contraste entre o crescimento de uma metrpole negra no seio de outra branca, onde os negros desenvolviam instituies distintas e paralelas para compensar e proteger-se do isolamento imposto pelos brancos (DRAKE & CAYTON, 1945), e a disperso residencial dos euro-americanos de descendncia estrangeira. Durante o pice das revoltas negras dos anos 1960, Kenneth Clark (1965, p. 11) escreveu sobre a relao de subordinao etnoracial e fez dela o epicentro de sua anlise do Gueto escuro e seus infortnios: Os EUA adicionaram ao conceito de gueto a restrio das pessoas a uma rea especfica e a limitao de sua liberdade de escolha com base na sua cor. As paredes invisveis do gueto escuro foram erigidas pela sociedade branca, por aqueles que tm o poder. Esse diagnstico foi confirmado pela Comisso Kerner (1989 [1968], p. 2), uma fora-tarefa supra-partidria indicada pelo Presidente Johnson, cujo relatrio oficial sobre a desordem civil que abalou a metrpole norte-americana ganhou fama por culpar a intransigncia racial dos brancos pelo fato de os EUA estarem transformando-se em duas sociedades, uma negra e outra branca segregadas e desiguais. Contudo, nas duas dcadas seguintes, o gueto escuro entrou em decadncia devido desindustrializao e s polticas estaduais de reduo da previdncia e compactao urbana, tornando-se um territrio abandonado, foco de terror e desintegrao. Alm disso, na medida em que a dominao racial tornava-se cada vez mais difusa e difratada atravs do prisma de classe, o conceito foi substitudo por uma dade maneirada pelo eufemismo geogrfico centro urbano e pelo neologismo underclass5, este ltimo referindose a um substrato de residentes do gueto associados a comportamentos anti-sociais, altas taxas de desemprego e isolamento social (WILSON, 1987). Nos anos 1990, a neutralizao do termo gueto na pesquisa orientada ao planejamento de polticas pblicas culminou com o expurgo de qualquer trao de raa ou poder, redefinindo assim o termo como qualquer grupo de pobreza extrema, independente de sua composio populacional ou institucional. Dessa forma, o conceito de gueto
extenso, tende a designar uma vizinhana de m reputao e indesejvel para as classes baixas. Essa palavra descreve um tipo de ocupao urbana similar das favelas brasileiras, mas que tambm pode ser aplicada para descrever algo similar aos cortios (nota dos tradutores).
3 O termo no original inner city, uma expresso que
nomeia os indesejados bairros centrais das cidades norteamericanas, ocupados primeiramente pelas indstrias e depois pelas populaes de classes baixas e que, a partir da dcada de 1950, comearam a ser abandonados pela brancos (white flight), o que acarretou uma desvalorizao imobiliria drstica, e conseqente deteriorao do tecido urbano (N. T.).
4 No original, Little Sicilies, Little Polands: uma refern-
cia aos nomes que alguns bairros tnicos receberam nos Estados Unidos, em relao s regies ou aos pases de onde vieram essas etnias (N. T.).
156
157
QUE GUETO?
maior parte do sculo XX. Negros eram recrutados nas cidades norte-americanas depois da I Guerra Mundial pelo seu trabalho no qualificado, que era indispensvel nas indstrias que formavam o centro da crescente economia industrial. Ao mesmo tempo, no havia perigo de eles misturarem-se ou confraternizarem com os brancos, que os consideravam vis, naturalmente inferiores e com orgulho tnico maculado pela escravido. medida que os negros migravam do Sul aos milhes, a hostilidade branca aumentava e os padres de discriminao e segregao, que at ento eram inconsistentes e limitavam-se esfera informal, no s se tornaram mais rgidos na moradia, escola e nas acomodaes pblicas, como tambm se estenderam economia e poltica (SPEAR, 1968; OSOFSKY, 1971). Os afro-americanos ento no tiveram escolha, a no ser fugir para dentro do permetro do Cinturo Negro [Black Belt] e tentar desenvolver uma rede de instituies prprias que cuidassem das necessidades bsicas da comunidade refugiada. Surgiu assim uma cidade paralela fundamentada em igrejas e jornais para negros, clubes negros, penses para negros, escolas e empresas para negros e associaes polticas e civis negras. Essa cidade paralela ficava no centro da metrpole branca, ainda que isolada por uma cerca construda por costumes, dissuaso legal, discriminao econmica (por bancos, corretores e pelo Estado) e, tambm, da violncia manifesta dos aoites, bombas incendirias e motins que intimidavam aqueles que ousassem atravessar a linha racial. Esse paralelismo institucional imposto, que se predicava no isolamento espacial inflexvel e no na pobreza extrema, condies subumanas de moradia, diferena cultural ou no simples isolamento residencial , o que tem diferenciado os afro-americanos de outros grupos na histria dos EUA, como j sugeriram importantes estudiosos da experincia urbana negra, de W. E. B. Du Bois e E. Franklin Frazier a Drake e Cayton, Kenneth Clark e Oliver Cox (WACQUANT, 1998). Esse fenmeno tambm pode ser observado na trajetria dos burakumins na cidade japonesa aps o fim da era Tokugawa (HANE, 1982). Na condio de descendentes do eta, a casta mais baixa das quatro que compem o sistema feudal japons, os burakumins eram intocveis aos olhos das religies budista e xintosta e ficavam confinados por lei, desde o pr do sol at o levantar, a pequenos vilarejos (buraku). L eram obrigados a vestir uma coleira amarela e a andar descalos, a ficar de quatro quando falassem com pessoas de outras castas e a casar somente com pessoas da mesma casta. Apesar de oficialmente emancipados em 1871, ao migrarem para cidades foram forados a restringir-se a bairros prximos aos depsitos de lixo, crematrios, prises e aougues, lugares vistos como ninhos de criminalidade e imoralidade. Excludos de empregos na indstria, sobravalhes apenas os empregos mal pagos e de baixo prestgio. Os burakumins eram mandados para escolas separadas e compelidos endogamia devido pecha perene em seu sangue, prtica feita possvel por meio dos registros de famlia (DEVOS & WAGATSUMA, 1966). No fim dos anos 1970, de acordo com a Liga de Defesa dos Burakumins [Burakumin Defense League], estimava-se que eles j eram 3 milhes, todos confinados em 6 000 guetos espalhados por aproximadamente 1 000 cidades da ilha. Espalhados por trs continentes e cinco pases, casos como os dos judeus, afro-americanos e burakumins demonstram que o gueto no , a despeito de Wirth (1928, p. 284-285), uma rea natural que surge pela adaptao ambiental governada por uma lgica bitica parecida com a cooperao competitiva em que se baseia a comunidade vegetal. O erro da primeira Escola de Chicago consiste em converter histria em histria natural e considerar a guetizao uma manifestao da natureza humana que seria parte da histria das migraes (idem, p. 285), quando na verdade uma forma muito peculiar de urbanizao modificada por relaes assimtricas de poder entre grupos etnoraciais: uma forma especial de violncia coletiva concretizada no espao urbano. Essa guetizao no um processo descontrolado e sem concepo, como Robert E. Park defendeu em seu prefcio para O gueto (idem, p. viii). Isso ficou claro a partir da II Guerra quando o gueto negro foi reconstrudo de cima para baixo por meio de polticas pblicas de habitao, renovao urbana e desenvolvimento econmico das periferias, aes que visavam remediar a separao rgida entre os negros e brancos (HIRSCH, 1983). A guetizao ainda mais aguda no contexto das cidades de casta construdas pelo poder colonial para demarcar o espao da organizao tnica hierrquica de suas posses transocenicas, como Rab sob o domnio francs no Marrocos ou a Cidade do Cabo depois da passagem do Group Areas Acts [Leis de reas de
158
159
QUE GUETO?
onde as famlias que vivem nesses acampamentos irregulares variam muito de cor e tm laos genealgicos fortes com famlias de maior poder aquisitivo. Elas no so social ou culturalmente marginalizadas, mas sim estigmatizadas e excludas de um sistema de classes fechado (PERLMAN 1976, p. 195; tambm QUIJANO, 1968). Dado que nem todos os guetos so pobres e que nem todas as reas pobres so guetos, no se pode simplificar e confundir a anlise da guetizao com o estudo de slums e outros distritos de classe baixa da cidade. 2. Assim, todos os guetos so segregados mas nem todas as reas segregadas so guetos. Os bairros seletos do Oeste de Paris, os subrbios exclusivos da classe alta de Boston ou de Berlim, as comunidades cercadas que cresceram muito em cidades globais como So Paulo, Toronto e Miami, so todos iguais em termos de riqueza, renda, ocupao e em muitos casos etnia, mas nem por isso so guetos. A segregao neles inteiramente voluntria e eletiva e por isso no so inclusivos ou perptuos. Enclaves fortificados de luxo proporcionam segurana, excluso, homogeneidade social, amenidades e servios, que permitem que famlias burguesas escapem do que consideram o caos, sujeira e o perigo da cidade (CALDEIRA 2000, p. 264-265). Essas ilhas de privilgio servem para aumentar, e no deprimir, as oportunidades de seus residentes, assim como para proteger seus modos de vida. Elas irradiam uma aura positiva de superioridade e no uma sensao de infmia ou de pavor. Isso sugere que a segregao residencial uma condio necessria mas no suficiente para a guetizao. Para que um gueto surja, o confinamento espacial deve ser primeiramente imposto e abrangente e, em segundo lugar, deve revestir-se de uma srie de instituies bem definidas e duplicativas que permitam ao grupo que se isola reproduzir-se dentro do permetro estabelecido. Se os negros so o nico grupo tnico a ser hipersegregado na sociedade norte-americana (MASSEY & DENTON, 1992), isso ocorre porque eles so a nica comunidade a combinar segregao involuntria com paralelismo organizacional, o que os prenderam dentro de um cosmos social separado e inferior, o que por sua vez acentuou o seu isolamento fsico. Mas at a segregao involuntria na base da ordem urbana no produz guetos eo ipso e isso est demonstrado no fim que levaram os banlieues franceses depois dos anos 1980. Apesar de serem extensamente deplorados como guetos pelo discurso pblico e de seus componentes compartilharem a percepo da excluso em um espao penalizado, pleno de tdio, angstia e desespero (PTONNET, 1982), a relegao de seus habitantes a essas concentraes deprimidas de moradia popular na periferia urbana baseada em classe e no em etnia. Como resultado, as concentraes so culturalmente heterogneas, tipicamente contendo tanto famlias francesas nativas como imigrantes de dezenas de outras nacionalidades. Seus habitantes sofrem no de duplicao institucional, mas, pelo contrrio, de uma falta de estrutura organizacional que seja capaz de sustent-los na ausncia de um emprego rentvel e de servios pblicos adequados. Assim como as cidades britnicas e holandesas e os conglomerados de imigrantes da Alemanha urbana ou da Itlia, os banlieues franceses so, sociologicamente, antiguetos (WACQUANT, 2001). 3. Guetos e bairros tnicos tm estruturas diferentes e funes opostas: se movermos a anlise para alm da perspectiva gradativa e focarmos o padro peculiar das relaes sociais dentro do gueto, ou entre o gueto e a cidade que o circunda, veremos uma diferena grande entre gueto e os conglomerados tnicos e bairros de imigrantes que se formaram nas metrpoles de diversos pases. As colnias de estrangeiros da Chicago do entreguerras, que Robert Park, Ernest Burgess e Louis Wirth e, mais tarde, a tradio liberal da Sociologia e historiografia assimilacionistas confundiram com guetos brancos, eram na verdade constelaes mveis e dispersas, advindas da afinidade cultural e concentrao ocupacional. A segregao nessas constelaes era parcial e porosa, um produto da solidariedade dos imigrantes e da atrao tnica, e no imposta por um grupo hostil externo a elas. Assim, a separao residencial no era uniforme ou rgida entre esses grupos: em 1930, quando o bairro negro de Bronzeville continha 92% da populao afro-americana da cidade, a Pequena Irlanda de Chicago continha uma mistura tnica de 25 nacionalidades compostas apenas por um tero de irlandeses e apenas 3% da descendncia irlandesa da cidade (PHILPOTT, 1978, p. 141-145). Alm disso, as instituies caractersticas dos enclaves de imigrantes europeus viravam-se para
160
161
QUE GUETO?
de nveis mltiplos para a anlise comparativa e especificao emprica. Ela pode ficar atenuada a ponto de, por meio da eroso gradativa de seus limites espaciais, sociais e mentais, involuir e tornar-se uma concentrao tnica eletiva, operando como propulsora na integrao estrutural e/ou assimilao cultural dentro da formao social geral. Isso descreve bem a trajetria das Chinatowns dos Estados Unidos do comeo do sculo XX (ZHOU, 1994) e o status do enclave imigrante cubano em Miami, que promoveu a integrao por meio do biculturalismo depois do xodo de Mariel em 1980 (PORTES & STEPICK, 1993). Isto tambm caracteriza as Kimchee cities, para as quais os coreanos convergiram das reas metropolitanas do Japo, e que tm uma mistura de qualidades que as tornam um hbrido de gueto e aglomerao tnica (DEVOS & CHUNG, 1981): so lugares de infmia que surgiram a partir da inimizade e do confinamento, mas cujas populaes tornaram-se um misto tnico por meio dos anos e permitiram aos coreanos socializar e casar com seus vizinhos japoneses, assim como obter cidadania japonesa por meio da naturalizao. Este esquema tambm se encaixa no gueto gay, que mais bem caracterizado como uma comunidade quase-tnica j que a maior parte das pessoas gay podem passar e no precisam ficar restritas interao com os seus e ningum forado a residir em reas de concentrao de instituies gay (MURRAY, 1979, p. 169). A dupla face do gueto como arma e escudo implica que, na medida em que sua completude institucional e autonomia minguam, seu papel protetor para o grupo subordinado diminui, restando somente a fora de sua funo exclusivista. Nos casos em que residentes deixam de ter valor econmico para o grupo dominante, o encapsulamento etno-racial pode aumentar a ponto de o gueto servir como um aparato que simplesmente aloja o grupo ou prepara-o para a pior forma de ostracismo, i. e., sua destruio fsica. O primeiro cenrio ilustra a evoluo do hipergueto afro-americano na era ps-direitos civis: tendo perdido sua funo de reservatrio para o poder do emprego desqualificado, ele ligou-se de maneira simbitica ao sistema carcerrio hipertrofiado dos Estados Unidos, por meio de uma relao de homologia estrutural, substituio funcional e fuso cultural (WACQUANT, 2004). O segundo cenrio foi implementado pela Alemanha nazista, que reavivou o Judenghetto entre 1939 e 1944, primeiramente para empobrecer e concentrar os judeus por meio do processo de relocao; depois, quando a deportao macia tornou-se um incmodo, para direcion-los aos campos de extermnio (FRIEDMAN, 1980; BROWNING, 1986). A intensificao de sua natureza exclusivista sugere que o gueto talvez seja melhor estudado no em analogia s favelas, aos bairros de classe baixa ou aos enclaves de imigrantes, mas s reservas, aos campos de refugiados e priso, pertencendo assim a uma categoria maior de instituies de confinamento forado de grupos despossudos e desonrados. No por acaso que Bridewell de Londres (1555), o Zuchthaus de Amsterdam (1654) e o Hospital gnral de Paris (1656), cuja finalidade era ensinar a disciplina do trabalho assalariado a vagabundos, pedintes e criminosos por meio do encarceramento, foram inventados na mesma poca que o gueto judeu. Tambm no por acaso que o aumento de campos de refugiados em Ruanda, Sri Lanka e nos territrios ocupados da Palestina assemelham-se cada vez mais a uma mistura entre os guetos do final da Europa medieval e gulagui gigantescos.
Loc Wacquant (loic@uclink4.berkeley.edu) Professor de Sociologia na Universidade da Califrnia (Berkeley) e Pesquisador do Centre de sociologie europenne do Collge de France.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ABU-LUGHOD , J. L. 1980. Rabat : Urban Apartheid in Morocco. Princeton : Princeton University. BROWNING, C. R. 1986. Nazi Ghettoization Policy in Poland, 1939-1941. Central European History, Leiden, n. 19, v. 4, p. 343-368, Dec. CALDEIRA, T. 2001. City of Walls : Crime, Segregation and Citizenship in So Paulo. Berkeley, Calif. : University of California. CLARK, K. B. 1965. Dark Ghetto : Dilemmas of Social Power. New York : Harper.
162
163
QUE GUETO?
_____. 2001. Os condenados da cidade. Estudo sobre marginalidade avanada. Rio de Janeiro : Revan. _____. 2004. Deadly Symbiosis : Race and the Rise of Neoliberal Penality. Cambridge, Mass. : Polity. WARD, D. 1989. Poverty, Ethnicity, and the American City, 1840-1925. Cambridge : Cambridge University. WESTERN , J. 1981. Outcast Cape Town . Minneapolis : University of Minnesota. WILSON, W. J. 1987. The Truly Disadvantaged : The Inner City, the Underclass and Public Policy. Chicago : University of Chicago. WIRTH , L. 1928. The Ghetto . Chicago : University of Chicago. WIRTH, L. 1964 [1956]. The Ghetto. In : _____. On Cities and Social Life. Chicago : The University of Chicago. ZHOU, M. 1992. Chinatown : The Socioeonomic Potential of an Urban Enclave. Philadelphia : Temple University.
164