14 Resenha Christian Alves Martins

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DE UM APRENDIZ PARA UM HISTORIADOR:

COMENTRIOS SOBRE UM HISTORIADOR FALA DE


TEORIA E METODOLOGIA: ENSAIOS DE CIRO
FLAMARION CARDOSO
Christian Alves Martins*
Universidade Federal de Uberlndia (UFU)
christian.martins@uol.com.br

Nesta instigante coletnea de ensaios, Ciro Flamarion Cardoso, partindo de


uma dupla perspectiva, tece uma rede de reflexes oportunas e atuais. A primeira, em
forma de polmica, ligada primazia do paradigma tanto na perspectiva marxista
quanto integrada pelos Annales contra um pensamento centrado na unio, dentro da
Histria, do positivismo e historicismo. A segunda diz respeito ao debate sobre as
tendncias ps-modernas, o neoconservadorismo e a Nova Histria Cultura. Dessa
maneira, o pesquisador Ciro Flamarion Cardoso elabora seu livro Um historiador fala
de teoria e metodologia: ensaios.1
Sua obra consiste em um conjunto de ensaios construdos em mais de
quarenta anos de ingente labor envolvendo impresses de um pesquisador que
vivenciou o que Roger Chartier2 chamou de a crise da inteligibilidade histrica.3

Mestrando em Histria Social pela Universidade Federal de Uberlndia e integrante do NEHAC


Ncleo de Estudos em Histria Social da Arte e da Cultura.
1
CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios. Bauru, So Paulo:
Edusc, 2005. As demais notas referentes obra sero incorporadas ao corpo do texto.
2
CHARTIER, Roger. Beira da Falsia: A histria entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed.
Universidade/UFRGS, 2002, p. 7.
3
Chartier trata deste assunto, logo nas primeiras linhas de sua obra Beira da Falsia. O sugestivo ttulo
j insinua metaforicamente, os caminhos imprecisos percorridos pelos profissionais da histria atual.
Ora, marchar sobre rochas altas e ngremes, beira-mar, demonstra expressar, simbolicamente, a
dvida, acompanhado do temor que toma conta das operaes historiogrficas. Como, aps o
entusiasmo da Nova Histria, sobreveio um perodo de insegurana, Chartier, percebe que estas
incertezas e inquietudes, enunciadas no ttulo de sua obra, advm do abandono dos objetos clssicos, da
crtica as categorias, das noes e dos modelos de interpretao, como o estruturalismo e o marxismo,
cho outrora seguro, pertencente historiografia triunfante. Ainda, segundo ele: Todas as grandes
tradies historiogrficas perderam sua unidade, todas se fragmentaram em propostas diversas,

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Cardoso compreende muito bem do que Chartier nos fala, seja pelo seu longo
tempo dedicado ao ofcio de historiador, testemunha ocular de inmeras escolas e
tendncias tericas e metodolgicas, seja pelo espao vivido quando trabalhou na
Universidade Federal do Rio de Janeiro e no prosseguimento de sua carreira na
Universidade Federal Fluminense. Durante sua vida acadmica, Cardoso doutorou-se,
na Europa, pela Universit de Paris X (Nanterre). Mais tarde, atravessou o Atlntico
novamente, visitou o continente americano, pesquisando na Costa Rica e no Mxico, e
regressou ao Brasil, onde permanece at hoje.
Tempo e espao. Talvez no fosse por acaso, que Ciro Flamarion Cardoso
inicia a progresso de seus ensaios com o texto Dimenses: Tempo e Espao. Este
ttulo d-nos a impresso de que o prprio autor adverte os leitores, como se estas no
fossem s suas preocupaes pessoais de trabalho, mas questes importantes para a
prpria criatura humana.
provvel que a noo de espao, esclarece lucidamente o autor, tenha sido
percebida pelos seres humanos antes do tempo, contudo, sua relao com o espao
evidente, mesmo em situaes corriqueiras, quando predicamos o tempo atravs de um
vocabulrio espacial, como longo ou curto.
Digno de nota o que ele denomina como Acelerao Histrica como sendo
os corolrios do aprimoramento dos meios de comunicao, na segunda metade do
sculo XX, que impulsionaram nosso contato com eventos, praticamente, simultneos
ao seu acontecimento. Corroboramos seu ponto de vista, pois este frentico torvelinho
de informaes, a que estamos submetidos, embaraa-nos e dificulta a nossa percepo.
O autor prossegue, refletindo acerca da temporalidade histrica. Para tanto,
serve-se do trabalho de Marc Aug, ao apropriar-se do conceito de Supermodernidade.
Sua inteno entender, com o auxlio deste antroplogo, sobre o desnorteamento
fruto de uma busca incessante por respostas que esta progresso incessante de eventos
provoca na humanidade.
Para os historiadores, essa nova realidade poder representar na histria do
presente, um interesse sedutor, mas, ao mesmo tempo, desafiante para os pesquisadores.

freqentemente, contraditrias que multiplicaram os objetos, os mtodos, as histrias. In: CHARTIER,


Roger. Beira da Falsia: A histria entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed.
Universidade/UFRGS, 2002, p. 7.

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No obstante o que parece coerente que, em torno dos acontecimentos, ou seja, o olhar
sobre a curta durao no poder estar desassociada do processo histrico.
Cardoso, fundamentado em Pierre Nora, escreve que:
O historiador que se ocupa com a Histria imediata teria interesse em
investir, pelo contrrio, no acontecimento, utilizando-o como meio
para, por seu intermdio, conscientemente, fazer surgir o passado, o
espessor histrico, as estruturas, em lugar de, como era habitual no
trabalho dos historiadores, fazer inconscientemente surgir o presente
no passado (ou seja, projetar o presente no passado). Em outras
palavras, os acontecimentos permitiriam evidenciar o sistema, a curta
durao revelaria a longa durao estrutural. (p. 16)

Isto nos parece claro e com o que acordamos, pois se trata da importncia de
entender na Acelerao Histrica um fato na vida moderna uma oportunidade
valiosa para tentar compreender, no presente, o desencadeamento de embates, como
disputas de poder, ocorridas no passado.
Esta questo parece ficar mais lcida, quando Cardoso prope refletir sobre a
memria. Para tanto, o consagrado historiador se sustenta nos trabalhos do j citado
Pierre Nora aos distinguir a relao entre Histria e Memria Coletiva. O dilogo entre
o autor e Nora nos remete aos trabalhos de Maurice Halbwachs, que tambm
compartilha da idia de que a histria distinta do rememorar coletivo. Em A
Memria coletiva, Halbwachs diz:
A histria, sem dvida, a compilao dos fatos que ocuparam o
maior espao na memria dos homens. Mas lidos em livros, ensinados
e aprendidos nas escolas, os acontecimentos passados so escolhidos,
aproximados e classificados conforme as necessidades ou regras que
no se impunham aos crculos de homens que deles guardaram por
muito tempo a lembrana viva.4

Lido o trecho do autor francs, fica evidente a distino entre Histria e a


construo da memria coletiva, que coaduna com as palavras de Ciro Flamarion
Cardoso ao escrever que:
A Histria que fazem os historiadores qualitativamente diferente,
pelo menos em muitos casos, tanto em seu contedo quanto em suas
formas de construo, das memrias coletivas dominantes, oficiais,
que o poder constri; na verdade, com freqncia se ocupa com a
desmistificao destas ltimas. (p. 35)

A disputa de memria, a que o professor alude no trecho acima, ilustra e


esclarece a responsabilidade social do historiador e seu ofcio. Mas, sobretudo,
4

HALBWACHS, Maurice. A Memria coletiva. So Paulo: Editora Centauro, 2004, p. 80.

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necessrio afirmar perante as transformaes no espao e no tempo, o pesquisador da


histria, nunca poder deixar de pensar seu objeto histrico desligado de sua
contemporaneidade.

Ser possvel desassociar forma e contedo?


Dando prosseguimento aos nossos comentrios, vejamos o captulo
Epistemologia em Debate. Nele, Ciro Flamarion Cardoso desenvolve pertinentes
questes acerca da epistemologia do anti-realismo. Nesta parte da obra, o autor se
debrua sobre o instigante tema da narrativa histrica.
Em Narrativa e Mundo Real: Continuidade ou descontinuidade?, o autor
aborda o debate conceitual que envolve a escrita da histria, e, por conseguinte, todos os
profissionais da Histria comprometidos com a produo de conhecimento.
O autor descreve este debate recordando que os historiadores tradicionais
conferiam verdade s narrativas histricas, uma vez que estas estivessem sob orientao
de regras de procedimento.
Lembra tambm que recentemente verificou-se um ataque a esta posio,
partindo do pressuposto que a realidade humana no se organizaria como nas narrativas.
Assim, qualquer tentame narrativo em registrar a realidade seria enganosa, a partir de
sua prpria constituio formal de se expressar.
Ento, a Histria produz textos cientficos ou, meramente, textos da mesma
ordem dos da literatura ficcional? (p. 63) Esta questo est posta em todos os centros
de pesquisa histrica. Ora, este debate atual, mas no comea na era contempornea,
ou seja, ela est presente em toda a cultura filosfica ocidental. Desde a Grcia Antiga,
h uma preocupao entre renomados pensadores, no intuito de compreender as relaes
entre o discurso histrico e discurso literrio, como constatamos na Potica5 de
Aristteles.
Algumas centenas de anos depois, acompanhamos o retorno deste mesmo
debate, nas proposies da Escola Metdica empunhando o estandarte do
cientificismo, representada pelos autores setecentistas Charles Langlois e Charles

ARISTTELES. Os pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1979.

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Seignobos6 relativas questo da narrativa, nas operaes historiogrficas. Porm,


sculos depois, esta mesma discusso comea a ser pensada por muitos intelectuais,
historiadores ou no, que percebem, neste assunto, algo fundamental para o fazer
Histria.
Um deles foi o ctico, porm notvel, Hayden White. Este terico muito
contribuiu neste campo ao propor um enfrentamento da relao escrita/histria, a partir
da crena de aspectos literrios dos textos histricos.
Polmicas parte causadas pelos textos de Hayden White, ligadas histria e
fico, mas principalmente envolvendo a neutralidade do documento histrico e da
qual discordamos no podemos deixar de perceber a colaborao de White para o
debate sobre a escrita da histria. Sua contribuio torna-se patente, sobretudo, na
orientao sobre o produto final do trabalho de um historiador.
Ao propor um compromisso com a inteligibilidade de um tema, atravs do que
ele denominou em seus estudos, por urdidura de enredo, o historiador no dependeria
apenas da escrita objetiva orientao essencialmente positivista para se fazer
entendido. Para Hayden White fica claro que:
O modo como uma determinada situao histrica deve ser
configurada depende da sutileza com que o historiador harmoniza a
estrutura especfica de enredo com o conjunto de acontecimentos
histricos aos quais deseja conferir um sentido particular.7

Apesar da tendncia literria, indicada pelo autor do trecho acima, sobrepondo


a verificabilidade histrica, mas sem perder o status de verossmil, no h como negar a
lcida e corajosa colaborao epistemolgica de White, com o que ele chamou, como j
o dissemos, de urdidura de enredo, para a historiografia atual.
Talvez compartilhando deste mesmo ceticismo, Paul Veyne8 tambm
desenvolve estudos acerca da escrita histrica. dele a famosa noo de intriga (ou
trama segundo outras tradues) para denominar o tecido da histria. No que tange a
questo da narrativa, Veyne desenvolve lcidas reflexes, e utiliza o recurso da
metfora para se fazer compreendido. As reflexes deste pesquisador francs nos
6

LANGLOIS, Charles; SEIGNOBOS, Charles. Determinao dos fatos particulares, Condies gerais da
construo histrica e Exposio. In: Introduo aos Estudos Histricos. So Paulo: Renascena,
1946.
7
WHITE, Hayden. O texto histrico como artefato literrio. In: Trpicos do discurso: Ensaios sobre a
crtica da cultura. So Paulo: EDUSP, 1994, p. 102.
8
VEYNE, Paul. Como se escreve a histria; Foucault revoluciona a histria. Traduo de Alda Baltar e
Maria Auxiliadora Kneipp. 4. ed. Braslia: Ed. UnB, 1998.

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orientam a pensar sobre a problemtica da escritura da histria, relativizando sobre a


questo da narrativa, aludido pelo professor Ciro Cardoso, em sua obra
supramencionada.
Contudo, dentre todo o repertrio terico-metodolgico que abarca esse
assunto, o historiador Michel de Certeau,9 parece tratar desta questo de forma
moderada, ao propor uma viso mais harmnica do problema. Este, atravs de seus
estudos, oferece ao pesquisador, em concordncia com seu compromisso investigativo,
uma liberdade de construo do discurso histrico. Assim, o ponto de vista de Certeau
nos orienta a pensar na materialidade presente na forma e inerente no trabalho humano.
E, como ele mesmo nos alerta, tanto para a criatura quanto para o criador,
ambos carregam a marca de seu tempo. Por isso a importncia de pensar orientados
pelo pesquisador francs sobre as produes do lugar: afinal De que lugar se
escreve?, desta maneira, concordamos que no existe pesquisa neutra, e tampouco
pesquisadores. E a forma estar sempre presente neste processo.
Neste debate, Cardoso posiciona-se a favor da continuidade entre a narrativa e
o mundo social real. (p. 66) Compromissado com a busca por uma histria mais
inteligvel, sensatamente o professor explica que
A estrutura da ao (passado/presente/futuro, comeo/meio/fim)
comum ao texto e vida, narrativa, realidade. Quem prope a
descontinuidade, afirmando que na vida real no h comeo, meio e
fim, esquece no s o nascimento e a morte como, tambm, inmeras
formas menos definitivas de estruturaes dotadas de incios e
concluses. Por que um incio no seria real, na vida, s pelo fato de
que antes dele aconteceram outras coisas? Ou por que no o seria um
fim, s porque depois vieram outros eventos? (p. 66)

Esta citao evidencia a profunda relao entre o contedo, o nosso objeto de


pesquisa, e o aspecto formal, meio pelo qual o historiador opta durante a urdidura de seu
trabalho para melhor se fazer compreendido.
Destarte, a obra Um Historiador fala de Teoria e Metodologia: Ensaios, do
historiador Ciro Flamarion Cardoso, representa uma valiosa antologia, digna de
pertencer como leitura obrigatria de qualquer programa de Ps-Graduao, pois
contempla as mais importantes e oportunas questes terico-metodolgicas, vivenciadas
pelo historiador atual. , com certeza, uma contribuio meritria e bem-vinda para

CERTEAU, Michel de. A escrita da histria. Traduo de Maria de Lourdes Menezes. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitria, 2002.

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jovens pesquisadores que desejam ampliar o debate acerca do trabalhoso, mas, ao


mesmo tempo, sedutor ofcio do fazer Histria.

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