Corpo e Teatro
Corpo e Teatro
Corpo e Teatro
br/poslit
o CORPO NO TEATRO
RESUMO
O teatro exige a presença de corpos. É necessário, no
entanto, repensar a concepção de que o corpo, numa
encenação, subordina-se à imagem, ou seja, a seu caráter
explícito de representação; é necessário levar em conta
que o contato de corpos no espaço cena-platéia não visa
apenas a veicular uma convenção ficcional: há, no teatro,
um excesso de corpo que transvaza da ficção. A relação
rad. entre ator e personagem é necessária - o teatro só existe
através de um pacto ficcional-, mas não é suficiente - a
De significação do corpo do ator não se esgota no fato de ser
personagem. Como pensar, então, as relações entre as
camadas de signos que agem no espaço teatral? Como se
iva/
dá a semiose que torna possível uma ficção gerada pelo
contato de corpos?
iva,
and PALAVRAS-CHAVE
corpo, semiótica, teatro
stre
Meu corpo é, portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem que atua
como outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com a única diferença,
talvez, de que meu corpo parece escolher, em uma certa medida, a maneira de
devolver o que recebe. l
Os objetos que cercam meu corpo refletem a ação possível de meu corpo sobre
eles. 2
m corpo, coexiste com sua ficcionalidade, não estando subordinada a ela. O corpo do ator
efetivamente veicula a idéia de personagem, mas excede tal idéia, isto é, o ator - corpo
le - coexiste com a personagem - imagem.
a. Paradoxalmente, essa independência ptoduz um maior imbricamento entre cena/
la audiência. Merleau-Ponty afirma que "as coisas imbricam-se umas nas outras porque
la estão uma fora da outra".3 Chega-se aqui ao segundo aspecto: a atuação mútua. Há, no
le teatro, não apenas o movimento que vai da cena até o espectador, mas um outro
movimento, que vai do espectador para a cena. Assim, em função da presença dos corpos,
ia a participação do espectador não consiste apenas em completar a cadeia de significação
to gerada pela obra-cena, pois se trata de uma participação que afeta a própria obra.
io Se é inegável que o papel de qualquer leitor é sempre ativo, já que o sentido de um
texto pressupõe sua recepção, é preciso lembrar que no teatro a atividade do leitor
espectador pode ser, de uma forma ou de outra, absorvida pelo texto-cena, afetando, assim,
o ponto de partida da produção do sentido. Desse modo, não apenas o sentido da obra
modifica-se em função do espectador, mas a própria obra também se modifica. Esse efeito
se dá em qualquer manifestação teatral, apesar de ser mais evidente em propostas nas
lia quais a interferência do espectador é um dado previsto para o desenvolvimento da cena.
~a,
Quando Bergson fala de ação possível entre corpos e objetos, o sentido de "possível",
de
no teatro, deve ser entendido dentro de um duplo desdobramento. Diz respeito à liberdade
de ação - o fator independência mútua - e ao condicionamento da ação - o fator
determinação mútua.
ro
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É
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'o,
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ão
na
le, Ensaio de A rua da amargura, Grupo Galpão.
no Foto de Gustavo Campos.
5 IBIDEM. p.64.
Há ainda um terceiro aspecto: o corpo como imagem. Vale a pena, aqui, recorrer à
concepção de imagem formulada por Peirce. Segundo ele, qualquer imagem material é
fala de signo icônico e não de ícone, o que aponta para o valor convencional da imagem.
Por outro lado, ao situá-la em uma primeiridade, enfatiza seu caráter de expressão direta
de uma qualidade. Nas palavras de Peirce: liA única maneira de comunicar diretamente
signos, ou seja, mediações. O que faz com que, ao olhar para a pessoa no parque, sejamos
nosso olho. Contudo, é inegável que tal operação é inerente à percepção humana, é um
corpo, o que vemos é um conjunto de signos - o que nossos sentidos podem e/ou querem
perceber. Mas se é somente a tais signos que estamos fadados a ter acesso, passamos a
No evento teatral, a presença dos corpos é mediada por duas camadas de signos.
dos corpos. A segunda é a própria percepção dos corpos. No entanto, como se viu, as
camadas não se fundem, ou seja, a percepção do corpo do ator não está subordinada à
imediatos. Daí o efeito de uma primeiridade que se impõe, e não apenas se sujeita, à
terceiridade no teatro.
PASSAGEM AO LIMITE
termo a outro de tais paradoxos. O deslizamento pode ser ilustrado pela seguinte passagem
de Bergson:
5 IBIDEM. p.64.
nosso corpo, separado de nosso corpo por um intervalo, nunca exprime mais do
que uma ação virtual. Porém, quanto mais diminui a distância entre esse objeto e
nosso corpo, tanto mais o perigo torna-se urgente ou a promessa imediata, tanto
mais a ação virtual tende a se transformar em ação real. Passemos agora ao limite,
suponhamos que a distância se torne nula, ou seja, que o objeto a perceber coincida
com nosso corpo, enfim, que nosso próprio corpo seja o objeto a perceber. Então
não é mais uma ação virtual, nas uma ação real que essa percepção muito particular
irá exprimir: a afecção consiste exatamente nisso. ó
11
o teatro faz uso dessa promessa de passagem ao limite, de oscilação entre ação
11
virtual e real sobre o corpo do espectador. A imagem-corpo do teatro requer, do espectador,
I,
prontidão de todos os sentidos. Por isso é possível encontrar em diversos autores, como
n em Roland Barthes, referências ao caráter erótico do teatro:
i. A função erótica do teatro não é acessória, porque só o teatro, dentre todas as
artes figurativas (cinema, pintura), dá os corpos e não sua representação. O corpo
e de teatro é ao mesmo tempo contingente e essencial: essencial, não pode ser
possuído (ele é magnificado pelo prestígio do desejo nostálgico); contingente,
poderia sê-lo, pois bastaria ficarmos loucos por um momento (o que está dentro de
o nossas possibilidades), pular para o palco e tocar aquilo que desejamos.)
n
n No entanto, a noção de "tocar" pode ser pensada não apenas como um desejo
n possível, mas de um modo mais amplo. O tato não se limita à fricção entre corpos. Pode
a se pensar que há uma relação de toque estabelecida pelo simples fato de dois corpos
estarem presentes em uma mesma sala, o ar e seus deslocamentos sendo elementos táteis
I.
que põem corpos em contato. Os sentidos humanos são regidos pela necessidade de
o contato direto - mediado, certamente, pela percepção - com os objetos. É por meio da
IS
aproximação física, cujos limites podem ser variáveis, que os sentidos atuam. Isso faz
à com que seja impossível isolar qualquer uma das funções sensoriais. É o que mostra, em
e relação à visão, Julio Plaza:
o Pela própria complexidade do mundo perceptivo, do qual o canal visual é apenas
IS uma parte, as experiências espaciais tornam-se tão interligadas ao sentido tátil que
à os dois sentidos não podem ser separados: olho e tato se contêm mutuamente. Tal
separação é meramente cultural. 8
ou de um signo que comunica coisas inexistentes (...), mas porque ele finge não ser um
signo".ll Pensando-se dessa maneira, chega-se à conclusão redutora de que a presença
do corpo teria por função apenas criar um "efeito de real", teria sempre uma pretensão
ilusionista, ou seja, o objetivo seria meramente a simulação, com o corpo se sujeitando à
ficção que ele deve veicular. Contraposta a essa concepção, está o fato de que, se é verdade
que o signo teatral se afirma como ficção, também é indiscutível que se afirma como
não-ficção, corpos que são signos de si mesmos. É dessa afirmação paradoxal, da
coexistência de apresentação e representação - e não de um "fingir não ser o que é"
que se alimenta o teatro. Pensar a ficcionalidade apenas como fingimento é não levar em
conta que a ficção efetivamente cria realidades (todo texto cria um objeto; uma peça de
teatro não é um objeto tão concreto quanto qualquer outro?); é ainda uma maneira de
entender o processo de significação somente no seu caráter de referência, de signos que
remetem a objetos externos a eles.
OBJETOS POSSíVEIS
13 IBIDEM. p.161.
ABSTRACT
Theater requires the presence of bodies. However, it's
1 a necessary to check the conception that body, in staging, is
no subordinated to image, to its explicit feature of
representation; it's necessary to take into account that the
:to
contact of bodies in stage-audience space doesn't just
do intend to transmit a fictional convention: in theater, there
ra: is an excess cífbody that draws off fiction. The relationship
1m between actor and character is necessary - theater only
~ o exists through a fictional pact - , but it's not sufficient
the meaning of the actor's body is not limited to its being
do
character. How to think the relationships between the
:ia, layers of signs that actuate in theatrical space? How is the
.ia, semiosis that makes a fiction created by the contact of
bodies possible?
ao
em KEY WORDS
body, semiosis, theater
as,
as,
ém REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
de ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. São Paulo: Max Limonad,
lão 1984.
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
:to Cultrix, 1987.
pia BERGSON, Henri. Matéria e memória. Trad. Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes,
1990.
;ão
Eco, Umberto. Parâmetros da semiologia teatral. In: HELBO, André (org.). Semiologia da
.do
representação. São Paulo: Cultrix, 1980.
MERLEAu-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. In: Textos selecionados. Trad. Marilena Chauí.
São Paulo: Abril Cultural, 1980. Coleção Os Pensadores.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Trad. Teixeira Coelho. São Paulo: Perspectiva, 1987.
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