Bourdieu
Bourdieu
Bourdieu
contemporânea da cultura
Sergio Miceli
abril 2003 65
Bourdieu e a renovação da sociologia contemporânea da cultura
Mas não se pode fechar essa etapa sem uma referência mais detida aos
modos de construção da figura social e literária de Flaubert, nessa sua
primeira fulguração no imaginário sociológico de Bourdieu. Muitos anos
depois, o romancista seria o inventor-mor do artista criador, e seu roman-
ce A educação sentimental propiciaria os materiais expressivos (e históricos)
com os quais Bourdieu reformaria, quase por completo, suas primeiras
formulações de como a sociologia poderia e deveria apreender o trabalho
intelectual (Bourdieu, 1992).
Não obstante, mesmo nesse artigo pioneiro, Flaubert já merecia um trata-
mento à altura de sua condição de protagonista da vida literária, muito embo-
ra em meio a uma certa distância, eivada de reservas e restrições. Flaubert é
mencionado de início como um “mandarim intelectual”, afeito à estetização
extremada de toda a existência; como representante modelar da “arte pela
arte”, ele assume feições próprias em oposição às demais escolas, quer em
relação aos escritores “burgueses”, quer perante os “socialistas”, o que o levaria
tanto a rejeitar como se identificar, ora com o “burguês”, ora com o “povo”,
derivando desse sentimento de estar como que sitiado, no interior de sua classe
de origem, uma concepção inescapável de aristocratismo intelectual.
A despeito de eventuais dissensões em torno do grau de acerto em rela-
ção às tomadas de posição ideológicas de Flaubert, Bourdieu pretendia mui-
to mais situá-lo no interior da cena cultural em gestação entre 1830-1850,
embrião do que viria a ser o campo intelectual e literário plenamente con-
figurado em fins do século XIX, do que se cingir ao exame dos procedimen-
tos e estratégias de fabricação de seus romances. Contudo, o fascínio exerci-
do pelas posturas assumidas por Flaubert, em sua escrita pela escrita, tal como
é nomeada no artigo citado, como que insinuava pistas de uma prática de-
sejosa de banir do discurso quaisquer índices ou marcadores sociais.
Tal conclusão ilustra uma atitude diametralmente oposta àquela adotada
por Bourdieu nos anos de 1990. Essa modalidade de censura ou advertência
ficará então restrita aos pontos cegos de uma história literária convencional,
purista, resistente ao registro dos ligamentos entre, de um lado, os indicadores
do referente social mais inclusivo, coletivamente compartilhado, e, de outro,
as propriedades inventivas da ilusão romanesca. Por conta disso, os registros
sociológicos mais pertinentes, detectados por Sartre na biografia de Flaubert,
parecem sempre redundantes quando confrontados às informações construí-
das por uma análise da posição e das tomadas de posição da escola da “arte
pela arte” em seu conjunto.
Dito isso, não custa fazer o balanço dos ingredientes característicos desse
emprego exploratório das noções de campo e habitus. A título de mera ana-
logia, tudo se passa como se Bourdieu quisesse, a essa altura, restringir-se a
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campo da sociologia da cultura. Ainda que tenha projetado tal análise como
abertura de um livro que, fosse outro o começo, poder-se-ia sem mais tachá-lo
como reducionista nos antigos sentidos de uma sociologia “dura”, sem imagi-
nação, tem-se a impressão, à medida que avança sua leitura do romance, o
quanto o sociólogo foi se deixando empolgar pelos procedimentos e recur-
sos criativos de Flaubert.Tamanha identidade projetiva e o palpável entusias-
mo pelos resultados da criação literária decerto contribuíram para uma apreen-
são bem mais burilada dos materiais expressivos da ficção e, por conseguinte,
pelo registro cuidadoso dos expedientes literários mobilizados por Flaubert,
os quais, no limite, forçaram-no a refletir acerca das semelhanças e das dife-
renças entre a criação literária e a análise sociológica.
A despeito do que se poderia temer, ou melhor, para decepção de seus
detratores, a análise do romance escora-se quase por completo em materiais
fornecidos pela obra. E mesmo no terceiro anexo desse texto, a projeção das
trajetórias dos personagens no mapa urbano parisiense efetua, a rigor, uma
representação espacial de histórias de vida romanescas, sem um naco
3. Ver o Anexo 3,“Le Pa- interpretativo de Bourdieu3 . São pontuais as referências à revolução de 1848,
ris de l’éducation senti- invocação de praxe em monografias recentes, ou a quaisquer datas, eventos
mentale”, Bourdieu
ou personagens históricos, como que abrindo mão de converter o romance
(1992, pp. 68-71).
em “documento sociológico ou histórico”. Portanto, não se percebe ne-
nhum apreço especial por informações de contexto, ou por elementos
anedóticos que pudessem servir ao deslindamento do enredo. Tudo se passa
como se o romance tivesse o dom mágico, quase miraculoso, de haver produ-
zido uma ilusão fervilhante de vida, tão ou mais aliciante do que o compacto
histórico da sociedade francesa em meados do século XIX.
O romance acaba impondo-se como prova contundente e persuasiva da
força da literatura, esse invento que tomou alento e brilho próprio justamen-
te em mãos de autores inovadores, como Flaubert ou Baudelaire, que tiveram
meios e recursos para uma reinvenção da vida e do trabalho do escritor e do
artista, assunto de que trata em detalhe a segunda parte do livro (cf. Bourdieu,
1992), consagrada às etapas decisivas de constituição do campo literário francês.
Poder-se-ia talvez concentrar numa fórmula a receita literária empregada
por Flaubert para dar notável verossimilhança à ilusão romanesca em meio a
qual se enredam, primeiro, os personagens, em seguida, o próprio romancista
como narrador e espectador, depois os leitores, dentre os quais até mesmo
Bourdieu, o sociólogo que se sentiu chacoalhado por esse arrastão tão bem
talhado de mundo social, empolgante e arrebatador. No intento de diferir ao
máximo o desfecho dessas vidas cruzadas e, ao mesmo tempo, de dilatar a
progressão de injunções sociais inelutáveis, Flaubert configurou um grupo de
jovens, com disposições muitíssimo variáveis em termos de projetos e carrei-
ras, adolescentes nesse trânsito entre ser e fazer, entre arte e dinheiro, entre
potência e impotência. O partido ficcional de flagrar o mundo social por
meio de personagens adolescentes infunde, pois, certa virtualidade difusa no
enredo, dotando-o de um conjunto de possibilidades e trajetórias possíveis.
Frédéric Moreau, o personagem central, exacerba essa conjuntura de in-
determinação em todos os domínios de sua existência: no plano amoroso e
sexual, além dos encantos que o fazem uma figura cobiçada pelos homens,
numa espécie de postura homossexual latente, ele se sente dividido interna-
mente entre as quatro mulheres em relação às quais projeta suas pulsões e
expectativas; no plano profissional, hesita entre projetos intelectuais e carrei-
ras políticas; no plano patrimonial, oscila entre diferentes alternativas de fazer
valer sua herança. Essa indeterminação, quase insanável, que se espraia em
todas as dimensões de sua vida – gênero, idade, classe, profissão –, adquire
feições ainda mais tensas e ambivalentes devido às inúmeras qualidades pes-
soais – beleza, inteligência, temperamento – que vão acirrando e intensifi-
cando a força de identificação por parte do leitor.
Conforme a expressão de Henry James, essa “epopéia asfixiante” recupera
certas experiências estruturais de aprendizagem do mundo social. A “educa-
ção sentimental” revela os processos de envelhecimento social e, nesse passo,
faz aflorar as incompatibilidades entre os universos sociais em que se movem
os personagens. A progressão romanesca efetua-se por intermédio de moda-
lidades socialmente configuradas de acasos e circunstâncias: primeiro, situan-
do-os em lugares do mundo social, de onde descortinam itinerários e lances
potenciais de investimento para suas pulsões; segundo, ao problematizar os
processos de socialização que levam à assunção plena ou rebaixada de uma
condição social, mormente os percalços atinentes ao manejo da herança;
terceiro, os acasos e os acidentes de percurso que acabam se mostrando, ao
cabo de suas virtualidades, como lances inscritos nas condições prévias de
trânsito e movimentação dos personagens.
Justamente em decorrência da indeterminação que modela o persona-
gem central, operando à maneira de um joguete lançado em diversas direções
contraditórias e inconciliáveis, o romance deriva sua força de impacto desse
quiasma entre os devaneios de Frédéric e as constrições a que todos estão
expostos, como se os personagens não se pudessem furtar à progressão inelu-
tável das injunções materiais, políticas e sexuais. A maleabilidade dessa força
motriz de determinação social transparece tanto mais pelo desígnio flauber-
tiano de evidenciar o grau de permeabilidade impregnando todos os domí-
nios da atividade social, como se qualquer um deles – por exemplo, o consu-
mo diferenciado de vinhos ou as formas de arte – operasse como espelho de
refração dos demais.
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Referências Bibliográficas
BOURDIEU, P. & PASSERON, J. C. (1967), “Sociology and philosophy in France since 1945:
death and resurrection of a philosophy without subject”. Social Research, XXXIV: 162-
212, Nova York.
Resumo
O artigo examina a sociologia da cultura de Pierre Bourdieu à luz de três conceitos chaves –
as noções de prática, habitus e campo –, buscando, de um lado, apreender os significados
cambiantes desses termos em diferentes momentos da trajetória intelectual do autor e, de
outro, ressaltando as conexões entre os objetos empíricos abordados e os respectivos modelos
de interpretação sociológica da vida intelectual e cultural ancorados nesse paradigma.
Palavras-chave: Bourdieu; Estruturalismo; Estrutura; Prática; Habitus; Campo; Sociologia da
cultura.
Abstract
The article examines Pierre Bourdieu’s sociology of culture and three key concepts – the
notions of practice, habitus and field –, with the aim of, on the one hand, studying the changing
meanings of these terms at different periods of the author’s intellectual development and, on
the other, highlighting the links between the empirical objects analyzed and the respective
models of sociological interpretation of intellectual and cultural life anchored on this paradigm.
Key words: Bourdieu; Structuralism; Structure; Practice; Habitus; Field; Sociology of culture.
Sergio Miceli é profes-
sor titular de Sociologia
na Universidade de São
Paulo e autor, entre ou-
tras obras, de Intelectuais
à brasileira (São Paulo, Cia.
das Letras, 2001) e Na-
cional estrangeiro: história
social e cultural do moder-
nismo artístico em São Pau-
lo (São Paulo, Cia. das Le-
tras, 2003).
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