Debord e Situacionismo

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CORRÊA, Erick Quintas (...) USP – Ano IX, n. 14, p.

99-115, 2018

Guy Debord e a Internacional Situacionista.


Crítica unitária da economia política e da cultura.

Erick Quintas Corrêa


Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Bolsista CAPES

Resumo
O artigo apresenta o conceito de espetáculo, formulado na década de 1960 pelo situacionista francês Guy
Debord (1931-94), como nucleado por uma indivisível reflexão social (crítica da economia política) e
estética (crítica da cultura). Demonstra-se também como é precisamente com base nessa crítica unitária
da passividade, fundada nas separações tanto da economia como da cultura mercantis, que a
Internacional Situacionista (1957-72) aspirou a uma inédita unificação prática dos programas até então
separados das vanguardas políticas e estéticas.

Palavras-chave economia política, cultura, espetáculo, linguagem, comunicação, vanguardas.

Abstract
The article presents the concept of spectacle, formulated in the 1960s by the French situationist Guy
Debord (1931-94), as nucleated by an indivisible reflection that is both social (critique of political
economy) and aesthetic (critique of culture). It is also demonstrated how it is precisely based on this
unitary critique of passivity, which is founded on the separations of both the economy and the
mercantile culture, that the Situationist International (1957-72) aspired to an unprecedented practical
unification of programs hitherto separated from the political and aesthetic vanguards.

Keywords political economy, culture, spectacle, language, communication, vanguards.

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O espetáculo como expropriação da linguagem comunicativa

conhecida dos leitores de György Lukács a grande influência que História e consciência
É de classe (1923) acabaria por exercer, após a Segunda Guerra Mundial, nas origens do
chamado “marxismo ocidental”, sobretudo no pensamento de Herbert Marcuse e Jean-Paul
Sartre1. Por causa de sua conturbada existência política, seria apenas a partir de 1957 que um
público de língua não germânica conheceria alguns capítulos do livro de 1923, então
publicados em língua francesa pela revista Arguments (1956-62).
O período contemporâneo viu o conceito de “reificação”, originalmente
apresentado no principal capítulo de História e consciência de classe (doravante HCC), atingir
um nível de institucionalização até então nunca visto no interior da ciência burguesa. Para
além das mais antigas reflexões sociológicas sobre o problema, hoje ele se apresenta, também,
frequentemente sem referência ao livro de 1923 e distante de suas origens marxistas, em
pesquisas da psicologia social, da filosofia da linguagem, do campo da ética e da filosofia moral
e até mesmo da cibernética 2. Lukács diria, nesse sentido, que tais tentativas de reinterpretação
do conceito ocupam-se de “formas exteriores de manifestação da reificação” 3, sucedendo-se, na
maioria dos casos, com prejuízo de seu significado conceitual original.
Nas margens esquerdas do campo marxista (tanto oriental como ocidental), HCC
conheceria uma inaudita e original atualização de alguns de seus principais pressupostos
teóricos e metodológicos no pensamento heterodoxo de Guy Debord (1931-94), fundador e,
certamente, o mais influente membro da Internacional Situacionista (1957-72) 4. Será com base
na experiência das vanguardas estéticas, especificamente o dadaísmo e o surrealismo do
entreguerras, que Debord e os situacionistas 5 receberão HCC, formulando a questão da

1 Cf. ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. Porto: Afrontamento, 1976.
2 HONNETH, Axel. La réification. Petit traité de Théorie critique. Paris: Gallimard, 2007, pp. 18-20.
3 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 23.
4 A sociedade do espetáculo, principal livro de teoria situacionista, de autoria de Guy Debord, foi editado pela
primeira vez em novembro de 1967, em Paris, pela Buchet-Chastel. Nesta edição, o autor era apresentado de
modo simples e direto: “Guy Debord é diretor da revista Internacional Situacionista”. Essa simples
apresentação dizia, naquele momento, no entanto, muita coisa. A revista Internacional Situacionista já
contava com 11 números, desde sua primeira aparição, em 1958. E a organização que a editava, a Internacional
Situacionista (IS), era já conhecida por sua intensa e contundente atividade nos meios de vanguarda
europeus desde dez anos antes, quando fora fundada, em 1957, em Cosio d’Arroscia (Itália).
5 O termo “situacionista” aparece pela primeira vez em novembro de 1956, em um ensaio do então jovem
Guy-Ernest Debord (aos vinte e cinco anos) chamado “Teoria da deriva”, publicado no nono número da
revista pós-surrealista belga Les Lèvres Nues: “Entre os diversos procedimentos situacionistas, a deriva se
define como uma técnica de passagem veloz através de ambiências variadas” (Apud BOURSEILLER,
Cristophe. Histoire générale de l’ultra-gauche. Paris: Denoël, 2003, p. 407). Já no sentido da Internacional

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atualidade do programa das vanguardas históricas 6 nas condições “welferizadas” do


capitalismo dos anos 1960.
Em A sociedade do espetáculo, livro que sintetiza as principais teses situacionistas,
Debord retomaria alguns temas centrais de História e consciência de classe, pois a crítica
radical às separações do mundo burguês contida em ambas as obras resulta das escolhas
metodológicas feitas por seus autores. No capítulo de HCC intitulado “Rosa Luxemburgo
como marxista”, Lukács introduz a categoria da totalidade enquanto “essência” da dialética
hegeliana, inseparavelmente de sua reposição histórico-concreta na/pela tematização marxiana
da “totalidade concreta”.
Tanto para Lukács como para Debord, o domínio categorial da totalidade não
apenas carrega “o princípio revolucionário na ciência”, como também constitui uma chave de
acesso à unidade dialética entre teoria e prática, única capaz de ir “ao encontro da prática
social unificada”7 e que, assumida pelo proletariado, poderia “penetrar a realidade social e
transformá-la em sua totalidade”8.
Esse núcleo teórico-metodológico central do pensamento dialético de matiz
hegeliano-marxista, reposto em Lukács, mas também presente nas reflexões de Rosa
Luxemburgo e Karl Korsh, seria, portanto, restaurado por Debord na conjuntura dos anos
1960. Na véspera da explosão de Maio de 68, os situacionistas declaravam, em seu conhecido

Situacionista, o termo “exprime exatamente o contrário daquilo a que, em português, se chama [...] um
partidário da situação existente” (INTERNATIONALE SITUATIONNISTE. Internationale
Situationniste (1958-1969). Paris: Fayard, 1997, p. 388. Tradução nossa). É curioso notar como o termo
“situacionista” ganharia em língua portuguesa, contemporaneamente, um sentido dissociado daquele
formulado pela IS e, particularmente, por Debord, porém igualmente oriundo do universo artístico de
vanguarda, na obra do brasileiro Hélio Oiticica: “Agora, nessa fase da arte na situação, de arte antiarte, de
‘arte pós-moderna’ [...] os valores propriamente plásticos tendem a ser absorvidos na plasticidade das
estruturas perceptivas e situacionistas” (PEDROSA, Mário. Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio
Oiticica. In: OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 9. Grifos
nossos). Entretanto, para os situacionistas, os happenings e performances artísticas apresentavam-se senão
como imagem invertida da construção de situações perseguida pela IS: “Falamos de recuperação do jogo
livre, quando ele é isolado no único terreno da dissolução artística vivida” (IS, 1997, p. 316).
6 Entendemos por “vanguardas históricas” tanto as vanguardas artísticas/estéticas quanto as vanguardas
políticas, categoria que, negligenciada por Jameson (e utilizada por Bürger para distinguir o dadaísmo e o
surrealismo das neovanguardas que surgiam nos anos 60), nos permite compreender melhor o esforço
situacionista de unificação de seus programas. Concordamos, nesse sentido, com o filósofo italiano Mario
Perniola, para quem “a Internacional Situacionista representou a última vanguarda histórica do século XX”
(Cf. Os situacionistas: o movimento que profetizou a “Sociedade do espetáculo”. São Paulo: Annablume, 2009,
p. 13).
7 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo [1967]; Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo
[1979]; Comentários sobre A sociedade do espetáculo [1988]. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 135.

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libelo intitulado Da miséria no meio estudantil, que “a crítica radical do mundo moderno
agora deve ter por objeto e por objetivo a totalidade”9.
Entretanto, não seria apenas o domínio da categoria da totalidade que influenciaria
profundamente o pensamento de Debord, mas, sobretudo, o capítulo de HCC sobre o
fenômeno da reificação mercantil. Articulando crítica da economia política e filosofia, Lukács
desenvolve o conceito de reificação no momento em que a racionalidade mercantil já havia
invadido esferas da vida social que não apenas a do trabalho alienado, fenômeno por ele visto
como totalitário e totalizante. Já Debord pôde constatar, quarenta anos mais tarde, o
momento em que a mercadoria “ocupou totalmente a vida social”10.
Em História e consciência de classe, lê-se que, com a mecanização, especialização e
fragmentação da produção, decorreriam tanto uma expropriação da atividade produtiva
quanto da consciência do proletário, tornado “espectador impotente de tudo o que ocorre
com sua própria existência, parcela isolada e integrada a um sistema estranho” 11. No curta-
metragem Crítica da separação (1961), em que Debord reivindica um novo uso da vida, a
passividade e o estranhamento que, no início do século XX, o proletário experimentava no
interior do processo de produção, passaria a se impor, com o avanço do capitalismo após a
Segunda Guerra Mundial, também fora dele:

Os eventos que chegam à existência individual tal como ela é organizada, aqueles que nos concernem
realmente e exigem a nossa atenção, são precisamente aqueles que nada mais nos exigem senão a
posição de espectadores distantes e entediados, indiferentes12.

Se, na fase primitiva da acumulação capitalista, a economia política burguesa visava a


assegurar ao operário apenas o mínimo indispensável para a conservação de sua força de
trabalho, no estágio da abundância mercantil atingido pela sociedade do espetáculo, “esse
ponto de vista da classe dominante [...] exige uma colaboração a mais por parte do
operário”13. Nesse sentido, o espetáculo refere-se ao momento em que a vida cotidiana

Grifos no original.
8 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 125.
9 INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Baderna situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo:
Conrad, 2002, p. 49. Grifos no original.
10 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Op. Cit., p. 30.
11 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Op. Cit., p. 205.
12 DEBORD, Guy. Œuvres. Paris: Gallimard, 2006, p. 550. Tradução nossa.
13 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Op. Cit., p. 31. Grifos no original.

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encontra-se inteiramente colonizada pela economia política burguesa, “como ocupação da


maior parte do tempo vivido fora da produção moderna”14.
Segundo Lukács, a universalidade da categoria mercantil significa o paradigma da
mudança qualitativa que distingue a sociedade produtora de mercadorias das sociedades pré-
capitalistas e, através dela, “o destino do operário torna-se o destino geral de toda a
sociedade”15. A generalização desse destino resultaria, segundo Debord, na proletarização do
mundo, quando a atitude passiva que em HCC caracterizava a atividade do trabalhador no
interior das fábricas se estende também para o conjunto da vida social, pois no processo de
ampliação da dominação da racionalidade formal e da exploração econômica própria ao
capitalismo mais avançado, “toda comunidade e todo sentido crítico dissolveram-se” 16, “a
unidade e a comunicação tornam-se atributo exclusivo da direção do sistema”17.
Já no início da década de 1960, os situacionistas parecem intuir que a lógica alienada
típica do trabalho assalariado havia se estendido à totalidade da vida cotidiana, ao conduzirem
a luta de classes para os domínios dos lazeres 18, da arquitetura e do urbanismo 19, da
comunicação20 e da arte moderna21. Em A sociedade do espetáculo, Debord incorpora e
aprofunda essa intuição ao sustentar uma concepção mais ampla de proletariado, como a
“imensa maioria de trabalhadores que perderam todo poder sobre o uso de sua própria
vida”22.
No que diz respeito à estrutura da reificação, Lukács assinalava em 1923 um
“reforço” de suas condições quando a racionalização formal atingira o direito, o Estado e,

14 Ibid., p. 14. Grifos no original.


15 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Op. Cit., p. 203.
16 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Op. Cit., p. 21.
17 Ibid., p. 22.
18 Cf. Da Internacional Situacionista, consultar os artigos: “Sur l’emploi du temps libre” (1960/1997, pp. 111-3);
“Perspectives de modifications conscientes dans la vie quotidienne” (1961/1997, pp. 218-225), assinado por
Guy Debord.
19 Cf. Da Internacional Situacionista, consultar os artigos: “Formulaire pour un nouveau urbanisme”
(1958/1997, pp. 15-20); “Essai de description psychogéographique des Halles” (1958/1997, pp. 45-50), assinado
por Abdelhafid Khatib; “Théorie de la dérive” (1958/1997, pp. 51-55), assinado por Guy Debord;
“L’urbanisme unitaire a la fin des anées 50” (1959/1997, pp. 79-84); “Positions situationnistes sur la
circulation” (1959/1997, pp. 104-5), assinado por Guy Debord; “Programme élémentaire du bureau
d’urbanisme unitaire” (1961/ 1997, pp. 214-7), assinado por Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem;
“Commentaires contre l’urbanisme” (1961/1997, pp. 231-5), assinado por Raoul Vaneigem.
20 Cf. Da Internacional Situacionista, consultar os artigos: “Communication prioritaire” (1962/1997, pp. 260-
4); “All the king’s men” (1963/1997, pp. 225-230); “Les mots captifs (Préface a un dictionnaire situationniste”
(1966/1997, pp. 462-7), assinado por Mustapha Khayati.
21 Cf. Da Internacional Situacionista, consultar os artigos: “Le sens du deperissement de l’art (1959/1997, pp.
71-76); “La fin de l’économie et la réalisation de l’art” (1960/1997, pp. 127-130), assinado por Asger Jorn; “La
création ouverte et ses ennemis” (1960/1997, pp. 175-196), assinado por Asger Jorn; “Les situationnistes et les

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consequentemente, a administração burocrática. Influenciado pela sociologia de Max Weber


(1864-1920), advertia que a objetividade burocrática não representava um “abrandamento” da
reificação em face da objetividade mercantil. Pelo contrário, a divisão do trabalho que no
taylorismo invadia até a “alma” do trabalhador, no caso do burocrata penetrava também na
“ética”23.
Para além do horizonte de questões inseparáveis do Estado moderno, como a
administração e a dominação burocrática (com sua racionalização formal), Lukács via também
na atividade jornalística em expansão no primeiro quarto do século XX o “ponto
culminante” da reificação capitalista. Nela, as faculdades intelectuais do jornalista tornar-se-
iam mercadorias, fazendo dele não apenas um espectador do devir social, como também
levando-o a assumir “uma atitude contemplativa em relação ao funcionamento de suas
próprias faculdades”24.
Para Debord, a informação jornalística apenas reproduz a separação e a
contemplação características da totalidade da experiência social subsumida às exigências de
autovalorização do valor, dado que “somente a linguagem que perdeu toda referência
imediata à totalidade pode fundar a informação” 25. Nesse sentido, o deslizamento da
comunicação social à mera informação unilateral dos mass media é imanente à totalidade do
“sistema econômico da separação”, da passividade e da incomunicabilidade generalizada que é
o espetáculo.
Partindo da observação lukacsiana de que “a desintegração mecânica do processo de
produção também rompe os elos que, na produção ‘orgânica’, religavam a uma comunidade
cada sujeito do trabalho”26, Debord aprofundaria o seu significado, desviando-o com base em
sua concepção de reificação enquanto expropriação da linguagem comunicativa, enquanto
unilateralidade da comunicação espetacular: “com a separação generalizada entre o
trabalhador e o que ele produz, perde-se todo ponto de vista unitário sobre a atividade
realizada, toda comunicação pessoal direta entre os produtores”27.

nouvelles formes d’action contre la politique et l’art” (1967/1997, pp. 528-532), assinado por René Vienet.
22 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Op. Cit., p. 81. No mesmo aforismo (§ 114), Debord diz que tal
concepção era objetivamente reforçada tanto pelo “movimento de desaparecimento do campesinato”, como
pela “extensão da lógica do trabalho fabril que se aplica a grande parte dos ‘serviços’ e das profissões
intelectuais”.
23 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Op. Cit., p. 221.
24 Ibid., p. 222.
25 DEBORD, Guy. Œuvres. Paris: Gallimard, 2006, p. 215. Tradução nossa.
26 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Op. Cit., p. 205.
27 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Op. Cit., p. 22.

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A linguagem reificada e “sem resposta” do espetáculo, produzida pela “vitória da


aniquilação que, no terreno da economia, o valor de troca alcançou sobre o valor de uso” e
que repercute, segundo Lukács, “no interior da comunidade, na qual ela atua de maneira
desagregadora”28, é vista e criticada por Debord como forma universal da sociabilidade
tardoburguesa.
Concebida por Debord como mediação necessária à tomada de consciência da
estrutura histórico-concreta da reificação e instrumento privilegiado da prática crítico-
negativa imanente a ela, a linguagem comunicativa assume, em sua reflexão, o núcleo a partir
do qual se articulam solidariamente crítica teórica e crítica prática à reificação capitalista.
Segundo nossa hipótese, a verdadeira inovação que Debord traz à reflexão social do segundo
pós-guerra reside precisamente na tese de que a expropriação da atividade autônoma, na
transformação, pelo salariato, da força de trabalho em mercadoria, tem por consequência a
imediata expropriação da linguagem comunicativa.
Para Marx e Engels, “a linguagem é a consciência real, prática, que existe para os
outros homens e, portanto, existe também para mim mesmo; e [...] nasce, como a consciência,
da carência, da necessidade de intercâmbio com outros homens” 29. Deste modo, constitui-se
diretamente conexa à práxis social, como processo de objetivação sem o qual não há nem pode
haver produção e reprodução do homem como ser histórico-social.
Consequentemente, para Debord, uma prática social reificada (pois fundada nas
separações do mundo burguês), leva não apenas a uma alienação da consciência – leitmotiv de
HCC – como também, e de um modo um tanto quanto essencial, a uma expropriação
sistemática da comunicação intersubjetiva, a uma alienação da “consciência real prática” que
atingiria, na sociedade do espetáculo, “o optimum de separação entre os homens e sua
atividade e entre os próprios homens”30.
Sua crítica da société du spectacle é, portanto, constituída por uma indivisível reflexão
social (crítica da economia política) e estética (crítica da cultura)31, cujo objetivo não era outro
senão o de denunciar, ao mesmo tempo, a passividade fundada tanto na separação da
economia quanto da cultura mercantil. Como vimos, tal crítica unitária corresponde à época
na qual as relações fetichistas da economia atingem a totalidade da vida social cotidiana.

28 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Op. Cit., p. 196.


29 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (I – Feuerbach). São Paulo: Hucitec, 1984, p. 43.
30 INTERNATIONALE SITUATIONNISTE, Internationale Situationniste (1958-1969). Op. Cit., p. 468.
Tradução nossa.
31 Cf. AQUINO, João Emiliano Fortaleza de. Reificação e linguagem em Guy Debord. Fortaleza:
EdUECE/Unifor, 2006.

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Por uma crítica teórica e prática da comunicação

Em Dialética negativa (1966), Theodor W. Adorno (1903-69) afirmava que a


filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, “mantém-se viva porque perdeu-se o instante de
sua realização”32. Seu esforço em criticar a “dialética da identidade” tal como ela se apresenta
em Hegel, Marx e Lukács partia da constatação de que o “instante de sua realização”, a
transformação do mundo, teria passado e, com ele, a transição da filosofia para a práxis.
Adorno se refere ao período em torno de 1848, época na qual as teses marxianas sobre a
realização da filosofia e o Manifesto do Partido Comunista (1847) coincidem com a
experiência revolucionária da Primavera dos Povos.
Enquanto Adorno afirmava que a práxis encontrava-se “adiada por um tempo
indeterminado”, enxergando-a como mero pretexto para que os “executores estrangulem
como vão o pensamento crítico do qual carecia a práxis transformadora” 33 , Debord apostava
justamente na unidade entre teoria e prática, numa crítica téorico-prática que acabaria por
fornecer uma expressão teórica geral das revoluções de 1968, dado que “a organização
revolucionária é a expressão coerente da teoria da práxis ao entrar em comunicação não
unilateral com as lutas práticas, em devir para a teoria prática”34.
Entretanto, era precisamente essa unidade teórico-prática um dos alvos centrais da
crítica de Adorno em Dialética negativa: “A exigência da unidade entre práxis e teoria
rebaixou irresistivelmente a teoria até torná-la uma serva; ela alijou da teoria aquilo que ela
teria podido realizar nessa unidade”35. Para Debord, a aposta de realização encontrava-se antes
no polo oposto, na prática revolucionária, ao passo que a teoria não saía “alijada” desse
movimento, como argumentava o então diretor do Instituto Para Pesquisa Social de
Frankfurt.
Será precisamente o núcleo central das reflexões do jovem Marx acerca da realização
da filosofia que Debord recolocará em jogo nas condições do capitalismo do segundo pós-
guerra. Tal orientação permitiu aos situacionistas constituírem o único grupo organizado na
França para o qual uma revolução da amplitude e profundeza como a da que explodiu na
primavera de 1968 não era algo imprevisível. Pelo contrário, para os situacionistas “essa
explosão foi uma das menos imprevisíveis de todas”36.

32 ADORNO, Theodor. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 11.
33 Ibid., p. 11.
34 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Op. Cit., p. 85.
35 ADORNO, Theodor. Dialética Negativa. Op. Cit., p. 125.
36 INTERNACIONAL SITUACIONISTA. “Enragés e situacionistas no movimento das ocupações” [1968].
In: CORRÊA, Erick; MHEREB, Maria Teresa (orgs.). 68: como incendiar um país. São Paulo: Veneta, 2018,
p. 31.

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A reflexão de Debord e a prática da Internacional Situacionista se inscrevem, nesse


sentido, na tradição de um pensamento “insurrecional” comum ao período de ultrapassagem
da filosofia com Hegel, Feuerbach, Marx e, inseparavelmente, de seu reflexo na poesia e na arte
modernas com Sade, Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, os dadaístas e os surrealistas. No
interior dessa tradição, é curioso notar como a postura de Debord diante da arte e da reflexão
estética moderna se assemelha àquela de Marx diante da economia política e da própria
filosofia: busca-se a realização da arte na e pela práxis revolucionária.
Adorno e Debord concordariam que a realização da filosofia coincide com os
momentos revolucionários. Porém, enquanto o autor de Dialética negativa concentrava-se
numa crítica geral da ontologia, que se exprime particularmente numa crítica ao “espírito
conciliador” da “dialética da identidade” hegeliana, A sociedade do espetáculo é um livro
profundamente influenciado pela lógica dialética, sobretudo no esforço de conciliação entre
teoria e prática ali apresentado.
Desse desacordo parece decorrer a direção oposta em que os autores moveriam suas
reflexões filosófico-estéticas, desacordo que o crítico alemão Peter Bürger exprime em sua
Teoria da vanguarda (1974) pelo antagonismo entre as perspectivas vanguardista e
modernista. Grosso modo, a perspectiva “vanguardista” nega a autonomia da arte, enquanto a
perspectiva “modernista” a defende. Nestes termos, Debord representaria a primeira e,
Adorno, a segunda perspectiva.
A conhecida defesa do filósofo de Frankfurt à autonomia da arte reflete a sua posição
diante do projeto de realização da filosofia, a realização da arte estando, desse modo, não
“acima, mas abaixo da cultura”37. Nas antípodas da posição adorniana, portanto, era
justamente uma junção dos programas históricos de realização da filosofia e de realização da
arte que nucleavam a teoria e a prática de Debord e da Internacional Situacionista. Trata-se aí
de uma nova articulação entre crítica social e crítica estética, de modo que elas se tornam,
então, inseparáveis. Para o situacionista tunisiano Mustapha Kayathi, a unidade desses
programas deveria ser realizada também na prática: “Dadá tinha uma possibilidade de
realização na prática revolucionária do proletariado alemão. O fracasso deste fazia o seu
inevitável”38.
De um lado, Debord critica a pseudocomunicação reificada da sociedade burguesa,
crítica já presente nas reflexões do jovem Lukács em seu Teoria do romance (1916) e de Walter
Benjamin em “O narrador” (1936). De outro, a defesa da “expressão estética” por Adorno é

37 JAPPE, Anselm. Guy Debord. Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p. 229.


38 INTERNATIONALE SITUATIONNISTE. Internationale Situationniste (1958-1969). Op. Cit., pp. 463-4.
Tradução nossa.

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criticada buscando superar a oposição entre comunicação e expressão em favor de uma


comunicação prática. Comunicação direta, que “intervém nos acontecimentos” e comunica na
prática uma ideia carregada de significação teórica, que se move contra e para além da
informação reificada da comunicação espetacular, hierárquica, unilateral e “sem resposta”, a
comunicação prática, segundo Debord, secundariza na ação direta as palavras. Enquanto
crítica prática, ela é uma negação em ato(s), cuja potência maior é a construção da
comunicação.
Alguns elementos de natureza teórica e prática permitiram a Debord formular esta
crítica situacionista da comunicação:
1. A constatação e a crítica da subcomunicação generalizada do espetáculo, entendida
como expropriação das potencialidades comunicativas sociais que, nas condições do
capitalismo do segundo pós-guerra, “tornam-se atributo exclusivo da direção do sistema”39.
2. Um ponto de vista interno ao processo histórico de destruição crítica e consciente
da antiga “linguagem comum” na e pela arte moderna, o que permite aos situacionistas
atualizar o seu programa.
3. A recuperação da teoria situacionista pela cultura dominante, visível no conjunto
das atividades do que Lucien Goldmann chamava de “vanguarda da ausência”. Período esse
em que os happenings Fluxus representavam uma repetição vazia e positivadora do dadaísmo,
operando a diluição da arte na vida cotidiana e, deste modo, estetizando a realidade no
sentido contrário à realização da arte perseguida pela Internacional Situacionista em seu
primeiro período40.
4. O segundo período situacionista41 (de 1962 até a auto-dissolução em 1972) que,
marcado pelo esforço central em formular uma teoria revolucionária moderna e pela questão
da linguagem comunicativa, impôs à organização a necessidade de buscar um diálogo prático
com as tendências revolucionárias de sua época.
No livro Le langage et la société [A linguagem e a sociedade] (1966), o marxista
francês Henri Lefebvre afirmava que “uma verdadeira comunicação tem lugar apenas quando
duas palavras, cada uma utilizando à sua maneira os materiais da língua, encontram uma
linguagem comum, portanto um acordo, uma transparência”42. Três anos antes, no texto All

39 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Op. Cit., p. 22.


40 Para os situacionistas, os happenings e performances artísticas não se apresentavam senão como imagem
invertida da construção de situações: “Falamos de recuperação do jogo livre, quando ele é isolado no único
terreno da dissolução artística vivida” (INTERNATIONALE SITUATIONNISTE. Internationale
Situationniste (1958-1969). Op. Cit., p. 316. Tradução nossa).
41 MARTOS, Jean-François. Histoire de L’Internationale Situationniste. Paris: Ivrea, 1995, pp. 151-276.
42 LEFEBVRE, Henri. Le langage et la société. Paris: Gallimard, 1966, p. 363. Tradução nossa.

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the King’s men [Todos os homens do Rei] (1963), Debord também advertia que “o programa
da poesia realizada” teria por objetivo “e resultado efetivo, a transparência imediata de certa
comunicação, do reconhecimento recíproco, do acordo”43.
O “acordo”, o “reconhecimento recíproco” de que fala Debord, contudo, não
coincide com a langage commun que, de modo romântico, Lefebvre parece lamentar a perda:
“essa linguagem precisa ser reencontrada na práxis, que reúne em si a atividade direta e sua
linguagem”44. Para Debord, reencontrar a “linguagem comum” perdida se confundia com
reinventar a revolução, “como evidenciam algumas fases das revoluções mexicana, cubana ou
congolesa”, assim como o “acordo” imanente a uma comunicação prática “não é nada menos
do que criar ao mesmo tempo acontecimentos e sua linguagem, inseparavelmente” 45. Debord
concebia os períodos revolucionários como sendo aqueles “em que as massas, agindo, acedem
à poesia”46.
Numa leitura próxima àquela originalmente formulada por Walter Benjamin em
suas enigmáticas teses Sobre o conceito de História (1940)47, para Debord, o momento
revolucionário, em que explode a espontaneidade das massas, “recoloca em jogo as dívidas não
quitadas da história [...] Fourier e Pancho Villa, Lautréamont e os dinamiteiros das Astúrias –
cujos sucessores inventam agora novas formas de greves –, os marinheiros de Kronstadt ou de
Kiel”48. Coincide com os “círculos da aventura poética”: as sublevações dos operários de
Berlim oriental em 1953 e de Budapeste em 1956 são vistos por Debord ao mesmo tempo como
herdeiros da poesia moderna e como “os emissários da nova poesia”49.
Se, no século XIX, Engels havia apresentado o movimento operário como herdeiro
da filosofia clássica alemã, no prolongamento que faz do materialismo histórico herdeiro do
idealismo alemão, no século XX, Debord e os situacionistas se esforçaram por adicionar à
herança filosófica do proletariado uma outra, artística:

O proletariado, que já era no século XIX o herdeiro da filosofia, tornou-se agora, além disso, o
herdeiro da arte moderna e da primeira crítica consciente da vida cotidiana. Ele não pode se suprimir
sem realizar, ao mesmo tempo, a arte e a filosofia50.

43 DEBORD, Guy. Œuvres. Op. Cit., p. 616. Tradução nossa.


44 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Op. Cit., p. 122.
45 DEBORD, Guy. Œuvres. Op. Cit., p. 615. Tradução nossa.
46 Ibid., p. 615. Tradução nossa.
47 Muito embora destituída de sua heterodoxa junção, ao mesmo tempo profana e teológica, entre os
horizontes da revolução (marxismo) e da redenção (messianismo judaico).
48 DEBORD, Guy. Œuvres. Op. Cit., p. 617. Tradução nossa.
49 Ibid., p. 617.
50 INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Baderna situacionista: teoria e prática da revolução. Op. Cit., 58.

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Debord tinha, portanto, uma visão forte, ampla, de cultura, que unifica, em um
duplo movimento, “seu conhecimento e sua poesia”51. Contudo, a comunicação prática de
que fala Debord é um exemplo e não um modelo a ser seguido: “O momento da poesia real,
que tem todo o tempo diante dela, quer sempre reorientar, conforme seus próprios fins, o
conjunto do mundo e todo o futuro”52. Em termos benjaminianos: no momento
revolucionário, o passado está aberto e o continuum da história é implodido.

A crítica situacionista da separação entre as vanguardas políticas e estéticas

No livro Poétique des groupes littéraires [Poética dos grupos literários] (1997), o
crítico literário suíço Vincent Kaufmann introduz o seu estudo sobre as vanguardas modernas
dizendo que “o século XX – e nada indica que se dará o mesmo com o seguinte – foi
incontestavelmente o século das vanguardas” 53. Analisando esta frase retrospectivamente,
parece não haver dúvidas de que a modernidade artística, marcada no século XX pelo
fenômeno avant-gardiste, tenha de fato chegado ao XXI desgastada por um secular processo
de decomposição cultural. Prospectivamente, porém, pensamos que tal processo de
decomposição não deva necessariamente levar a um fechamento conclusivo do horizonte
vanguardista.
Segundo nossa hipótese, o problema do desgaste e da perda de importância das
linguagens artísticas denunciado pela arte moderna de vanguarda encontraria na teoria e na
prática da Internacional Situacionista uma tentativa dialética e revolucionária de
ultrapassagem da arte (dépassement de l’art). Afinal, se para o ideário pós-modernista, não
mais haveria, após o suposto fim da arte, senão “mercadorias culturais”, para os situacionistas
a arte moderna deveria ser “ultrapassada, conservada e superada numa atividade mais
complexa”54.
Nesse sentido, o estudo de Kaufmann tem uma vantagem sobre aquele apresentado
pelo filósofo alemão Peter Bürger em sua Teoria da vanguarda (1974)55. Pois, em sua análise do

51 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Op. Cit., p. 135.


52 DEBORD, Guy. Œuvres. Op. Cit., pp. 216-17. Tradução nossa.
53 KAUFMANN, Vincent. Poétique des groupes littéraires. Paris: Presses Universitaires de France, 1997, p. 3.
Tradução nossa.
54 INTERNATIONALE SITUATIONNISTE. Internationale Situationniste (1958-1969). Op. Cit., p. 112.
Tradução nossa.
55 Cf. BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2008. Livro no qual o ataque dadaísta à
“instituição arte” é apresentado como o alfa e o ômega de um movimento negativo portador histórico da
“autocrítica” da arte, então revelada e criticada como esfera autônoma e institucionalizada no seio da
moderna sociedade burguesa.

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“álbum de família” das vanguardas modernas, Kaufmann não desconsidera a importância da


experiência situacionista, justamente o dado novo que, ignorado por Bürger, permite-nos
entrever saídas, no presente, para o que chamamos de fechamento pós-moderno do horizonte
vanguardista56.
Entendemos o fenômeno pós-moderno como um antimodernismo, pois, mais do
que uma sucessão cronológica da modernidade, ele implica justamente a sua negação. Para
Fredric Jameson, a literatura social pós-moderna57 opera uma verdadeira “estetização do
pensamento” na escrita de autores como Barthes e Deleuze, que dissolvem a filosofia na
literatura (e vice-versa) em suas experimentações retóricas. Mas o próprio Jameson, ao destacar
a emergência de uma arte “pós-vanguardista”, após a subsunção da “obra de arte autêntica” à
racionalidade mercantil, também parece declarar o óbito das vanguardas estéticas.
O problema do fim das vanguardas retorna, assim, como uma paródia pós-moderna
da ultrapassagem da arte experimentada pela Internacional Situacionista no período de
refluxo das vanguardas históricas, iniciado nos anos 1930 e que se estenderia até o final da
Segunda Guerra Mundial, com o início das atividades letristas e depois situacionistas, entre o
final da década de 1950 e início da de 1960.
Nesse “fim da vanguarda” declarado por Jameson em A cultura do dinheiro: ensaios
sobre a globalização (2001), a experiência teórico-prática da Internacional Situacionista é
também problematicamente ignorada, pois, em sua trajetória, a questão da arte moderna (e da
vanguarda estética) seria recolocada numa perspectiva ampla, que permitiu aos situacionistas
tanto atualizarem os programas heroicos do dadaísmo e do surrealismo quanto posicionarem-
se, de modo crítico, frente às “neovanguardas” (ou vanguardas tardias) que Jameson toma
como base de sua análise acerca da “arte pós-modernista” 58. Os happenings Fluxus, assim como

56 Também o sociólogo e crítico literário marxista britânico Terry Eagleton, a exemplo de Bürger (e, como
veremos na sequência, de Fredric Jameson), ignora (misteriosamente, diga-se) o papel da Internacional
Situacionista na arte de vanguarda do segundo pós-guerra: “Por algum motivo ainda não os incluí [os
situacionistas] em meus trabalhos” (EAGLETON, Terry. A tarefa do crítico. São Paulo: Ed. Unesp, 2010, p.
259).
57 Apressadamente denominada “pós-estruturalista” pelos estruturalistas norte-americanos e cuja origem
reside na filosofia francesa dos anos 1970. Cf. JAMESON, Fredric. A cultura do dinheiro. Ensaios sobre a
globalização. Petrópolis: Vozes, 2001.
58 É curioso notar como essa negação da realidade histórica das vanguardas modernas por Jameson assemelha-
se ao tratamento que Lucien Goldmann dava, nos anos 1960, ao mesmo fenômeno, ocultando de sua análise
o dadaísmo alemão e o primeiro surrealismo francês em favor de Ionesco, Beckett, Adamov e Duras
(enquanto para Debord a mesma linguagem não-comunicativa característica das vanguardas tardias - ou
“neo-dadaístas” - também se expressava nos epígonos da “alta cultura”). Os situacionistas ironizavam: “Pode
ele [Goldmann] não saber que a recusa da literatura, a destruição mesma da escrita, foi a primeira tendência
dos vinte ou trinta anos de pesquisas de vanguarda na Europa?” (INTERNATIONALE
SITUATIONNISTE. Internationale Situationniste (1958-1969). Op. Cit., p. 310. Tradução nossa).

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as performances de Joseph Beuys, forneciam a Jameson as razões de sua crítica à pós-


modernidade artística, principalmente contra a “desdiferenciação” entre as esferas da arte e da
vida que marcaria globalmente esse período59. Mas o que opõe os situacionistas às vanguardas
tardias dos anos sessenta, de que são contemporâneos, é justamente uma tentativa de
superação das cisões e hierarquias do mundo burguês constituído (através de uma crítica
prática de suas especializações), mais do que uma vontade de integrá-las abstratamente na e
pela arte:

Quanto à crítica do projeto artístico, não era entre os vendedores ambulantes de happenings nem nos
farelos de vanguarda que se devia procurá-la, mas nas ruas, nas paredes e no movimento geral de
emancipação que trazia a realização da arte60.

A “construção de situações” buscada pela Internacional Situacionista em seu


primeiro período61 recolhia, de fato, um significado muito diferente daquele atribuído por
Jameson aos happenings e performances artísticas. Com a “situação livremente construída”, os
situacionistas não pretendiam “embaralhar” arte e vida, “estetizar o real”, mas sim realizar a
arte, algo carregado de uma significação mais forte, radical, tanto de arte como de realidade.
Em correspondência de 1963 com o linguista francês Robert Estivals, Debord
distinguia uma “interpretação restrita” de uma “interpretação geral” do fenômeno
vanguardista:

Em sentido restrito, pode-se falar da atividade de vanguarda a propósito de tudo o que, em qualquer
setor, vai à frente (medicina, indústria de vanguarda). Em sentido forte, geral, uma vanguarda do
nosso tempo é aquela que se apresenta como projeto de ultrapassagem da totalidade social; como
crítica e construção aberta, que constitui uma alternativa no conjunto das realidades e problemas
inseparáveis da sociedade existente62.

A questão a ser resolvida pela vanguarda “em sentido forte” no segundo pós-guerra
era, para Debord e os situacionistas, a de ultrapassar (dépasser) a arte moderna, tal como ela se
exprimiu no dadaísmo e no surrealismo do entreguerras63.

59 Lembremos o elogio da mercantilização da arte feito por Andy Warhol nos anos 1960.
60 INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Enragés e situacionistas no movimento das ocupações. Op. Cit., p.
147.
61 Entre 1958-61, de acordo com a periodização de Jean-François Martos.
62 DEBORD, Guy. Œuvres. Op. Cit., p. 638. Tradução nossa.
63 A morte ou a vida da arte é preocupação da filosofia desde Hegel e, a ele, a reflexão estética do fim do século
XX costuma recorrer para validar a perspectiva de seu esgotamento. Para Márcia Gonçalves, no entanto, “a
tese sobre o fim da arte [...] ignora a compreensão histórico-dialética presente em todo o sistema filosófico

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Assim como, para Marx, na Crítica da filosofia do direito de Hegel (1844), a


superação da filosofia era inseparável de sua realização, para Debord, “a supressão e a
realização da arte são os aspectos inseparáveis de uma mesma superação da arte”64. Apenas
desse modo podemos apreender adequadamente o sentido dialético da afirmação de Debord
segundo a qual “o dadaísmo e o surrealismo são as correntes que marcaram o fim da arte
moderna”65.
Assim, a realização da filosofia no século XIX e a realização da arte no século XX
encontram-se, de modo crítico, com a posição revolucionária que somente o proletariado
pode afirmar diante da sociedade de classes. Em outras palavras, para Debord, a revolução
proletária deveria portar positivamente a herança da arte moderna e seu programa negativo de
destruição crítica e consciente da antiga “linguagem comum”, da tradição. Ao mesmo tempo,
a arte se realizaria na transformação da inteira vida cotidiana, superando-a enquanto esfera
separada da vida: “Seus elementos poderão se reencontrar aí parcialmente, mas
transformados, integrados e modificados pela totalidade”66.
A operação situacionista visava a uma síntese de duas palavras de ordem até então
separadas na prática social revolucionária: o “transformar a realidade” de Marx com o “mudar
a vida” de Rimbaud, cujos respectivos horizontes emancipatórios seriam tanto a “sociedade
sem classes” como a “verdadeira vida”.
Segundo Vincent Kaufmann, tratava-se de inverter aquela relação entre vanguardas
políticas e estéticas vigente no primeiro quarto do século XX, pela qual a poesia e as
linguagens artísticas em geral deveriam servir à revolução. Em sua visão, para os situacionistas,
a revolução é que deveria estar a serviço da poesia. Experiência que se distingue,
particularmente, daquela russa do primeiro quarto do século XX, na qual o programa das
vanguardas estéticas via-se frequentemente subordinado ao programa das vanguardas
políticas67. Tal subordinação também ocorreria na segunda fase do surrealismo, quando a
revista do movimento passa a se chamar O Surrealismo a serviço da revolução (1930-33). O
situacionista belga Raoul Vaneigem (sob o pseudônimo de Jules-François Dupuis) comenta, a
respeito, que:

de Hegel, segundo a qual não se pode falar de fim, sem que se possa pensar em um novo começo”
(GONÇALVES, Márcia C. F. “A morte e a vida da arte”. In: Kriterion. Belo Horizonte: nº 109, jun. 2004, p.
50).
64 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Op. Cit., p. 125.
65 Ibid., p. 125.
66 INTERNATIONALE SITUATIONNISTE. Internationale Situationniste (1958-1969). Op. Cit., p. 112.
Tradução nossa.
67 Cf. WILLET, John. Arte e revolução. In: HOBSBAWM, Eric. História do marxismo, v. 9. São Paulo: Paz e
Terra, 1987.

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Uma nova revista, O Surrealismo a Serviço da Revolução, seria lançada com a agressividade necessária,
embora o título marque um nítido recuo em relação ao projeto de A Revolução Surrealista. Com um
surrealismo a reboque de uma revolução, ela mesma atrelada à locomotiva do partido comunista, o
destino, quer da poesia quer dos revolucionários, está traçado.68

Para Kaufmann, a origem do fenômeno vanguardista é poético-literária e não


plástico-pictórica – como advertia o artista plástico russo Kazimir Malevitch (1878-1935),
célebre fundador do suprematismo abstrato, para quem o início da modernidade artística
teria se dado com a emergência do cubismo. Segundo o crítico suíço, se “as vanguardas
literárias e artísticas” da década de 1920 à de 1960 constituem-se majoritariamente em grupos
ou movimentos (artísticos ou literários, “do surrealismo ao situacionismo”), é porque a
emergência do fenômeno avant-gardiste seria marcada centralmente por “um desejo de
partilha” confiada à prática artística, “concebida como a expressão imediata ou mesmo o
princípio produtor de uma realidade vivida, comunicável e partilhável”69.
Segundo Kaufmann, a “exigência comunitária” que atravessa o ethos vanguardista
emanaria do “Livro total” de Mallarmé. Para ele, a centralidade que a linguagem assume na
teoria e na prática situacionista adviria precisamente desta exigência. Porém, sua leitura atribui
um peso desproporcional ao período letrista (1954-57) de Debord, que não representa senão
um curto espaço de tempo, marcado por julgamentos acerca do processo de decomposição da
arte moderna que tinham apenas, segundo Debord, o objetivo de:

(...) criar certas ligações para constituir um movimento novo, que deveria ser no conjunto uma
reunificação da criação cultural de vanguarda e da crítica revolucionária da sociedade. Em 1957, a
Internacional Situacionista se formará efetivamente sobre tal base 70.

Debord deixa claro, portanto, que considera as pesquisas letristas superadas pelo
desenvolvimento das atividades situacionistas71. Segundo nossa perspectiva, a coerência

68 DUPUIS, Jules-François. História desenvolta do surrealismo. Lisboa: Antígona, 2000, p. 33.


69 KAUFMANN, Vincent. Poétique des groupes littéraires. Op. Cit., p. 4. Tradução nossa.
70 DEBORD, Guy. Potlatch (1954-1957). Paris: Gallimard, 1996, p. 8. Tradução nossa. Na apresentação desta
edição completa dos 29 números do boletim letrista, que data de 1985, Debord atualiza seu julgamento a
respeito da arte, afirmando que “desde 1954 nunca mais se viu aparecer, onde quer que seja, um único artista
ao qual se poderia reconhecer um verdadeiro interesse” (p. 9).
71 Em seu Prefácio (1979) à quarta edição italiana de A sociedade do espetáculo, Debord realiza uma síntese de
seu próprio percurso, indissociável do desenvolvimento que o levaria do letrismo de Isidore Isou à fundação
da Internacional Letrista e, posteriormente, da Internacional Situacionista: “Em 1952, quatro ou cinco
pessoas pouco recomendáveis de Paris decidiram investigar a superação da arte. Por feliz consequência da
marcha ousada nessa direção, as velhas linhas de defesa que haviam barrado as ofensivas anteriores estavam
descontroladas e corrompidas. Surgiu assim a ocasião de se tentar mais uma. Essa superação da arte é a

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buscada pelos situacionistas é, simultaneamente, de ordem poético-comunicativa e ético-


política. Isso porque Debord acrescenta à herança mallarméenne (se aceitamos a hipótese de
Kaufmann, a nosso ver simpática, mas unilateral), poético-literária, a crítica marxiana da
economia política burguesa, junção essa que, como vimos, desembocaria na teoria crítica do
espetáculo e constituiria o programa situacionista de unificação das experiências históricas das
vanguardas políticas e estéticas.
Debord pensa uma saída prática para a antinomia existente entre vanguarda política
e vanguarda cultural, entendida aí não apenas em sua forma poético-literária, mas desde uma
perspectiva histórica:

Desde a formação do próprio conceito de vanguarda cultural, por volta da metade do século XIX e
paralelamente à existência de vanguardas políticas, suas manifestações históricas passaram da
vanguarda de uma única disciplina artística a formações de vanguarda que tendem a cobrir a quase-
totalidade do campo cultural (surrealismo, letrismo). Estamos hoje no ponto em que a vanguarda
cultural somente pode definir-se reunindo-se (e portanto a suprimindo como tal) à vanguarda
política real72.

Como vimos, a questão do “fim da arte” e, com ela, do “fim das vanguardas”
encontra-se formulada por Debord e pelos situacionistas na década de 1960 com base em
preocupações inseparavelmente políticas e estéticas. É exatamente este avanço teórico-prático
presente no conjunto das atividades situacionistas que Bürger e Jameson negligenciam em
suas análises, não sem algum prejuízo à reflexão contemporânea sobre as vanguardas, a arte e o
modernismo. Pois, entre a perspectiva habermasiana que vê a modernidade ainda enquanto
um “projeto inacabado” e aquela pós-moderna que se apressa em determinar o seu descarte,
irrompe o exemplo da Internacional Situacionista, cuja experiência histórica se tornaria
paradigmática, no sentido de uma superação concreta da aparente dicotomia entre os
paradigmas da modernidade e da pós-modernidade, nos campos da política, da arte e da
filosofia.

‘marcha para noroeste’ da geografia da verdadeira vida, que tantas vezes fora buscada durante mais de um
século, sobretudo a partir da autodestruição da poesia moderna. As tentativas anteriores, em que tantos
exploradores se perderam, nunca tinham chegado diretamente a essa perspectiva. Talvez porque ainda lhes
faltasse devastar alguma coisa da velha província artística, e, sobretudo, porque a bandeira das revoluções
parecia manejada anteriormente por outras mãos, mais experientes. Mas, além disso, nunca essa causa havia
sofrido derrota tão completa nem havia deixado o campo de batalha tão vazio, como no momento em que
viemos ocupá-lo” (Op. Cit., p. 152).
72 DEBORD, Guy. Œuvres. Op. Cit., p. 638. Tradução nossa.

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