Debord e Situacionismo
Debord e Situacionismo
Debord e Situacionismo
99-115, 2018
Bolsista CAPES
Resumo
O artigo apresenta o conceito de espetáculo, formulado na década de 1960 pelo situacionista francês Guy
Debord (1931-94), como nucleado por uma indivisível reflexão social (crítica da economia política) e
estética (crítica da cultura). Demonstra-se também como é precisamente com base nessa crítica unitária
da passividade, fundada nas separações tanto da economia como da cultura mercantis, que a
Internacional Situacionista (1957-72) aspirou a uma inédita unificação prática dos programas até então
separados das vanguardas políticas e estéticas.
Abstract
The article presents the concept of spectacle, formulated in the 1960s by the French situationist Guy
Debord (1931-94), as nucleated by an indivisible reflection that is both social (critique of political
economy) and aesthetic (critique of culture). It is also demonstrated how it is precisely based on this
unitary critique of passivity, which is founded on the separations of both the economy and the
mercantile culture, that the Situationist International (1957-72) aspired to an unprecedented practical
unification of programs hitherto separated from the political and aesthetic vanguards.
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conhecida dos leitores de György Lukács a grande influência que História e consciência
É de classe (1923) acabaria por exercer, após a Segunda Guerra Mundial, nas origens do
chamado “marxismo ocidental”, sobretudo no pensamento de Herbert Marcuse e Jean-Paul
Sartre1. Por causa de sua conturbada existência política, seria apenas a partir de 1957 que um
público de língua não germânica conheceria alguns capítulos do livro de 1923, então
publicados em língua francesa pela revista Arguments (1956-62).
O período contemporâneo viu o conceito de “reificação”, originalmente
apresentado no principal capítulo de História e consciência de classe (doravante HCC), atingir
um nível de institucionalização até então nunca visto no interior da ciência burguesa. Para
além das mais antigas reflexões sociológicas sobre o problema, hoje ele se apresenta, também,
frequentemente sem referência ao livro de 1923 e distante de suas origens marxistas, em
pesquisas da psicologia social, da filosofia da linguagem, do campo da ética e da filosofia moral
e até mesmo da cibernética 2. Lukács diria, nesse sentido, que tais tentativas de reinterpretação
do conceito ocupam-se de “formas exteriores de manifestação da reificação” 3, sucedendo-se, na
maioria dos casos, com prejuízo de seu significado conceitual original.
Nas margens esquerdas do campo marxista (tanto oriental como ocidental), HCC
conheceria uma inaudita e original atualização de alguns de seus principais pressupostos
teóricos e metodológicos no pensamento heterodoxo de Guy Debord (1931-94), fundador e,
certamente, o mais influente membro da Internacional Situacionista (1957-72) 4. Será com base
na experiência das vanguardas estéticas, especificamente o dadaísmo e o surrealismo do
entreguerras, que Debord e os situacionistas 5 receberão HCC, formulando a questão da
1 Cf. ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. Porto: Afrontamento, 1976.
2 HONNETH, Axel. La réification. Petit traité de Théorie critique. Paris: Gallimard, 2007, pp. 18-20.
3 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 23.
4 A sociedade do espetáculo, principal livro de teoria situacionista, de autoria de Guy Debord, foi editado pela
primeira vez em novembro de 1967, em Paris, pela Buchet-Chastel. Nesta edição, o autor era apresentado de
modo simples e direto: “Guy Debord é diretor da revista Internacional Situacionista”. Essa simples
apresentação dizia, naquele momento, no entanto, muita coisa. A revista Internacional Situacionista já
contava com 11 números, desde sua primeira aparição, em 1958. E a organização que a editava, a Internacional
Situacionista (IS), era já conhecida por sua intensa e contundente atividade nos meios de vanguarda
europeus desde dez anos antes, quando fora fundada, em 1957, em Cosio d’Arroscia (Itália).
5 O termo “situacionista” aparece pela primeira vez em novembro de 1956, em um ensaio do então jovem
Guy-Ernest Debord (aos vinte e cinco anos) chamado “Teoria da deriva”, publicado no nono número da
revista pós-surrealista belga Les Lèvres Nues: “Entre os diversos procedimentos situacionistas, a deriva se
define como uma técnica de passagem veloz através de ambiências variadas” (Apud BOURSEILLER,
Cristophe. Histoire générale de l’ultra-gauche. Paris: Denoël, 2003, p. 407). Já no sentido da Internacional
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Situacionista, o termo “exprime exatamente o contrário daquilo a que, em português, se chama [...] um
partidário da situação existente” (INTERNATIONALE SITUATIONNISTE. Internationale
Situationniste (1958-1969). Paris: Fayard, 1997, p. 388. Tradução nossa). É curioso notar como o termo
“situacionista” ganharia em língua portuguesa, contemporaneamente, um sentido dissociado daquele
formulado pela IS e, particularmente, por Debord, porém igualmente oriundo do universo artístico de
vanguarda, na obra do brasileiro Hélio Oiticica: “Agora, nessa fase da arte na situação, de arte antiarte, de
‘arte pós-moderna’ [...] os valores propriamente plásticos tendem a ser absorvidos na plasticidade das
estruturas perceptivas e situacionistas” (PEDROSA, Mário. Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio
Oiticica. In: OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 9. Grifos
nossos). Entretanto, para os situacionistas, os happenings e performances artísticas apresentavam-se senão
como imagem invertida da construção de situações perseguida pela IS: “Falamos de recuperação do jogo
livre, quando ele é isolado no único terreno da dissolução artística vivida” (IS, 1997, p. 316).
6 Entendemos por “vanguardas históricas” tanto as vanguardas artísticas/estéticas quanto as vanguardas
políticas, categoria que, negligenciada por Jameson (e utilizada por Bürger para distinguir o dadaísmo e o
surrealismo das neovanguardas que surgiam nos anos 60), nos permite compreender melhor o esforço
situacionista de unificação de seus programas. Concordamos, nesse sentido, com o filósofo italiano Mario
Perniola, para quem “a Internacional Situacionista representou a última vanguarda histórica do século XX”
(Cf. Os situacionistas: o movimento que profetizou a “Sociedade do espetáculo”. São Paulo: Annablume, 2009,
p. 13).
7 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo [1967]; Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo
[1979]; Comentários sobre A sociedade do espetáculo [1988]. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 135.
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libelo intitulado Da miséria no meio estudantil, que “a crítica radical do mundo moderno
agora deve ter por objeto e por objetivo a totalidade”9.
Entretanto, não seria apenas o domínio da categoria da totalidade que influenciaria
profundamente o pensamento de Debord, mas, sobretudo, o capítulo de HCC sobre o
fenômeno da reificação mercantil. Articulando crítica da economia política e filosofia, Lukács
desenvolve o conceito de reificação no momento em que a racionalidade mercantil já havia
invadido esferas da vida social que não apenas a do trabalho alienado, fenômeno por ele visto
como totalitário e totalizante. Já Debord pôde constatar, quarenta anos mais tarde, o
momento em que a mercadoria “ocupou totalmente a vida social”10.
Em História e consciência de classe, lê-se que, com a mecanização, especialização e
fragmentação da produção, decorreriam tanto uma expropriação da atividade produtiva
quanto da consciência do proletário, tornado “espectador impotente de tudo o que ocorre
com sua própria existência, parcela isolada e integrada a um sistema estranho” 11. No curta-
metragem Crítica da separação (1961), em que Debord reivindica um novo uso da vida, a
passividade e o estranhamento que, no início do século XX, o proletário experimentava no
interior do processo de produção, passaria a se impor, com o avanço do capitalismo após a
Segunda Guerra Mundial, também fora dele:
Os eventos que chegam à existência individual tal como ela é organizada, aqueles que nos concernem
realmente e exigem a nossa atenção, são precisamente aqueles que nada mais nos exigem senão a
posição de espectadores distantes e entediados, indiferentes12.
Grifos no original.
8 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 125.
9 INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Baderna situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo:
Conrad, 2002, p. 49. Grifos no original.
10 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Op. Cit., p. 30.
11 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Op. Cit., p. 205.
12 DEBORD, Guy. Œuvres. Paris: Gallimard, 2006, p. 550. Tradução nossa.
13 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Op. Cit., p. 31. Grifos no original.
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nouvelles formes d’action contre la politique et l’art” (1967/1997, pp. 528-532), assinado por René Vienet.
22 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Op. Cit., p. 81. No mesmo aforismo (§ 114), Debord diz que tal
concepção era objetivamente reforçada tanto pelo “movimento de desaparecimento do campesinato”, como
pela “extensão da lógica do trabalho fabril que se aplica a grande parte dos ‘serviços’ e das profissões
intelectuais”.
23 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Op. Cit., p. 221.
24 Ibid., p. 222.
25 DEBORD, Guy. Œuvres. Paris: Gallimard, 2006, p. 215. Tradução nossa.
26 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Op. Cit., p. 205.
27 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Op. Cit., p. 22.
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32 ADORNO, Theodor. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 11.
33 Ibid., p. 11.
34 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Op. Cit., p. 85.
35 ADORNO, Theodor. Dialética Negativa. Op. Cit., p. 125.
36 INTERNACIONAL SITUACIONISTA. “Enragés e situacionistas no movimento das ocupações” [1968].
In: CORRÊA, Erick; MHEREB, Maria Teresa (orgs.). 68: como incendiar um país. São Paulo: Veneta, 2018,
p. 31.
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the King’s men [Todos os homens do Rei] (1963), Debord também advertia que “o programa
da poesia realizada” teria por objetivo “e resultado efetivo, a transparência imediata de certa
comunicação, do reconhecimento recíproco, do acordo”43.
O “acordo”, o “reconhecimento recíproco” de que fala Debord, contudo, não
coincide com a langage commun que, de modo romântico, Lefebvre parece lamentar a perda:
“essa linguagem precisa ser reencontrada na práxis, que reúne em si a atividade direta e sua
linguagem”44. Para Debord, reencontrar a “linguagem comum” perdida se confundia com
reinventar a revolução, “como evidenciam algumas fases das revoluções mexicana, cubana ou
congolesa”, assim como o “acordo” imanente a uma comunicação prática “não é nada menos
do que criar ao mesmo tempo acontecimentos e sua linguagem, inseparavelmente” 45. Debord
concebia os períodos revolucionários como sendo aqueles “em que as massas, agindo, acedem
à poesia”46.
Numa leitura próxima àquela originalmente formulada por Walter Benjamin em
suas enigmáticas teses Sobre o conceito de História (1940)47, para Debord, o momento
revolucionário, em que explode a espontaneidade das massas, “recoloca em jogo as dívidas não
quitadas da história [...] Fourier e Pancho Villa, Lautréamont e os dinamiteiros das Astúrias –
cujos sucessores inventam agora novas formas de greves –, os marinheiros de Kronstadt ou de
Kiel”48. Coincide com os “círculos da aventura poética”: as sublevações dos operários de
Berlim oriental em 1953 e de Budapeste em 1956 são vistos por Debord ao mesmo tempo como
herdeiros da poesia moderna e como “os emissários da nova poesia”49.
Se, no século XIX, Engels havia apresentado o movimento operário como herdeiro
da filosofia clássica alemã, no prolongamento que faz do materialismo histórico herdeiro do
idealismo alemão, no século XX, Debord e os situacionistas se esforçaram por adicionar à
herança filosófica do proletariado uma outra, artística:
O proletariado, que já era no século XIX o herdeiro da filosofia, tornou-se agora, além disso, o
herdeiro da arte moderna e da primeira crítica consciente da vida cotidiana. Ele não pode se suprimir
sem realizar, ao mesmo tempo, a arte e a filosofia50.
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Debord tinha, portanto, uma visão forte, ampla, de cultura, que unifica, em um
duplo movimento, “seu conhecimento e sua poesia”51. Contudo, a comunicação prática de
que fala Debord é um exemplo e não um modelo a ser seguido: “O momento da poesia real,
que tem todo o tempo diante dela, quer sempre reorientar, conforme seus próprios fins, o
conjunto do mundo e todo o futuro”52. Em termos benjaminianos: no momento
revolucionário, o passado está aberto e o continuum da história é implodido.
No livro Poétique des groupes littéraires [Poética dos grupos literários] (1997), o
crítico literário suíço Vincent Kaufmann introduz o seu estudo sobre as vanguardas modernas
dizendo que “o século XX – e nada indica que se dará o mesmo com o seguinte – foi
incontestavelmente o século das vanguardas” 53. Analisando esta frase retrospectivamente,
parece não haver dúvidas de que a modernidade artística, marcada no século XX pelo
fenômeno avant-gardiste, tenha de fato chegado ao XXI desgastada por um secular processo
de decomposição cultural. Prospectivamente, porém, pensamos que tal processo de
decomposição não deva necessariamente levar a um fechamento conclusivo do horizonte
vanguardista.
Segundo nossa hipótese, o problema do desgaste e da perda de importância das
linguagens artísticas denunciado pela arte moderna de vanguarda encontraria na teoria e na
prática da Internacional Situacionista uma tentativa dialética e revolucionária de
ultrapassagem da arte (dépassement de l’art). Afinal, se para o ideário pós-modernista, não
mais haveria, após o suposto fim da arte, senão “mercadorias culturais”, para os situacionistas
a arte moderna deveria ser “ultrapassada, conservada e superada numa atividade mais
complexa”54.
Nesse sentido, o estudo de Kaufmann tem uma vantagem sobre aquele apresentado
pelo filósofo alemão Peter Bürger em sua Teoria da vanguarda (1974)55. Pois, em sua análise do
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56 Também o sociólogo e crítico literário marxista britânico Terry Eagleton, a exemplo de Bürger (e, como
veremos na sequência, de Fredric Jameson), ignora (misteriosamente, diga-se) o papel da Internacional
Situacionista na arte de vanguarda do segundo pós-guerra: “Por algum motivo ainda não os incluí [os
situacionistas] em meus trabalhos” (EAGLETON, Terry. A tarefa do crítico. São Paulo: Ed. Unesp, 2010, p.
259).
57 Apressadamente denominada “pós-estruturalista” pelos estruturalistas norte-americanos e cuja origem
reside na filosofia francesa dos anos 1970. Cf. JAMESON, Fredric. A cultura do dinheiro. Ensaios sobre a
globalização. Petrópolis: Vozes, 2001.
58 É curioso notar como essa negação da realidade histórica das vanguardas modernas por Jameson assemelha-
se ao tratamento que Lucien Goldmann dava, nos anos 1960, ao mesmo fenômeno, ocultando de sua análise
o dadaísmo alemão e o primeiro surrealismo francês em favor de Ionesco, Beckett, Adamov e Duras
(enquanto para Debord a mesma linguagem não-comunicativa característica das vanguardas tardias - ou
“neo-dadaístas” - também se expressava nos epígonos da “alta cultura”). Os situacionistas ironizavam: “Pode
ele [Goldmann] não saber que a recusa da literatura, a destruição mesma da escrita, foi a primeira tendência
dos vinte ou trinta anos de pesquisas de vanguarda na Europa?” (INTERNATIONALE
SITUATIONNISTE. Internationale Situationniste (1958-1969). Op. Cit., p. 310. Tradução nossa).
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Quanto à crítica do projeto artístico, não era entre os vendedores ambulantes de happenings nem nos
farelos de vanguarda que se devia procurá-la, mas nas ruas, nas paredes e no movimento geral de
emancipação que trazia a realização da arte60.
Em sentido restrito, pode-se falar da atividade de vanguarda a propósito de tudo o que, em qualquer
setor, vai à frente (medicina, indústria de vanguarda). Em sentido forte, geral, uma vanguarda do
nosso tempo é aquela que se apresenta como projeto de ultrapassagem da totalidade social; como
crítica e construção aberta, que constitui uma alternativa no conjunto das realidades e problemas
inseparáveis da sociedade existente62.
A questão a ser resolvida pela vanguarda “em sentido forte” no segundo pós-guerra
era, para Debord e os situacionistas, a de ultrapassar (dépasser) a arte moderna, tal como ela se
exprimiu no dadaísmo e no surrealismo do entreguerras63.
59 Lembremos o elogio da mercantilização da arte feito por Andy Warhol nos anos 1960.
60 INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Enragés e situacionistas no movimento das ocupações. Op. Cit., p.
147.
61 Entre 1958-61, de acordo com a periodização de Jean-François Martos.
62 DEBORD, Guy. Œuvres. Op. Cit., p. 638. Tradução nossa.
63 A morte ou a vida da arte é preocupação da filosofia desde Hegel e, a ele, a reflexão estética do fim do século
XX costuma recorrer para validar a perspectiva de seu esgotamento. Para Márcia Gonçalves, no entanto, “a
tese sobre o fim da arte [...] ignora a compreensão histórico-dialética presente em todo o sistema filosófico
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de Hegel, segundo a qual não se pode falar de fim, sem que se possa pensar em um novo começo”
(GONÇALVES, Márcia C. F. “A morte e a vida da arte”. In: Kriterion. Belo Horizonte: nº 109, jun. 2004, p.
50).
64 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Op. Cit., p. 125.
65 Ibid., p. 125.
66 INTERNATIONALE SITUATIONNISTE. Internationale Situationniste (1958-1969). Op. Cit., p. 112.
Tradução nossa.
67 Cf. WILLET, John. Arte e revolução. In: HOBSBAWM, Eric. História do marxismo, v. 9. São Paulo: Paz e
Terra, 1987.
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Uma nova revista, O Surrealismo a Serviço da Revolução, seria lançada com a agressividade necessária,
embora o título marque um nítido recuo em relação ao projeto de A Revolução Surrealista. Com um
surrealismo a reboque de uma revolução, ela mesma atrelada à locomotiva do partido comunista, o
destino, quer da poesia quer dos revolucionários, está traçado.68
(...) criar certas ligações para constituir um movimento novo, que deveria ser no conjunto uma
reunificação da criação cultural de vanguarda e da crítica revolucionária da sociedade. Em 1957, a
Internacional Situacionista se formará efetivamente sobre tal base 70.
Debord deixa claro, portanto, que considera as pesquisas letristas superadas pelo
desenvolvimento das atividades situacionistas71. Segundo nossa perspectiva, a coerência
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Desde a formação do próprio conceito de vanguarda cultural, por volta da metade do século XIX e
paralelamente à existência de vanguardas políticas, suas manifestações históricas passaram da
vanguarda de uma única disciplina artística a formações de vanguarda que tendem a cobrir a quase-
totalidade do campo cultural (surrealismo, letrismo). Estamos hoje no ponto em que a vanguarda
cultural somente pode definir-se reunindo-se (e portanto a suprimindo como tal) à vanguarda
política real72.
Como vimos, a questão do “fim da arte” e, com ela, do “fim das vanguardas”
encontra-se formulada por Debord e pelos situacionistas na década de 1960 com base em
preocupações inseparavelmente políticas e estéticas. É exatamente este avanço teórico-prático
presente no conjunto das atividades situacionistas que Bürger e Jameson negligenciam em
suas análises, não sem algum prejuízo à reflexão contemporânea sobre as vanguardas, a arte e o
modernismo. Pois, entre a perspectiva habermasiana que vê a modernidade ainda enquanto
um “projeto inacabado” e aquela pós-moderna que se apressa em determinar o seu descarte,
irrompe o exemplo da Internacional Situacionista, cuja experiência histórica se tornaria
paradigmática, no sentido de uma superação concreta da aparente dicotomia entre os
paradigmas da modernidade e da pós-modernidade, nos campos da política, da arte e da
filosofia.
‘marcha para noroeste’ da geografia da verdadeira vida, que tantas vezes fora buscada durante mais de um
século, sobretudo a partir da autodestruição da poesia moderna. As tentativas anteriores, em que tantos
exploradores se perderam, nunca tinham chegado diretamente a essa perspectiva. Talvez porque ainda lhes
faltasse devastar alguma coisa da velha província artística, e, sobretudo, porque a bandeira das revoluções
parecia manejada anteriormente por outras mãos, mais experientes. Mas, além disso, nunca essa causa havia
sofrido derrota tão completa nem havia deixado o campo de batalha tão vazio, como no momento em que
viemos ocupá-lo” (Op. Cit., p. 152).
72 DEBORD, Guy. Œuvres. Op. Cit., p. 638. Tradução nossa.
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