Gravuras No Cotidiano Europeu: Séculos XV e XVI
Gravuras No Cotidiano Europeu: Séculos XV e XVI
Gravuras No Cotidiano Europeu: Séculos XV e XVI
php/mouseion
Canoas, n. 15, ago. 2013
Resumo:
As gravuras se configuraram como uma importante e significativa media para as sociedades
europeias nos sculos XV e XVI; responsveis, entre outros meios, pela circulao dos
pensamentos, das atitudes e dos elementos iconogrficos, tanto entre as classes mdia e alta
quanto entre um vasto pblico popular. A multiplicidade dos temas impressos oferecia, a um
pblico heterogneo, a possibilidade de combinar diversos assuntos de uma forma
desconcertante, assim como proporcionava diversos usos e funes.
Palavras-chave: Gravuras; sculos XV e XVI; recepo; usos; cultura visual.
Doutora em Histria pela Unicamp. Professora adjunta do Departamento de Histria da Arte UNIFESP.
Email: gtflavia@gmail.com
11
Introduo
Aproximadamente nos ltimos vinte anos, o significado e a apropriao das gravuras
no cotidiano e na experincia europeia dos sculos XV e XVI vm recebendo ateno por
parte de historiadores e historiadores da arte. o caso de Jan van der Stock, que analisou as
estampas em Anturpia, durante o sculo XV e at 1585, com o objetivo de perceber como se
dava a produo, a comisso, a circulao e o uso (STOCK, 1998). Podemos citar tambm
Keith Moxey e sua reflexo sobre as xilogravuras publicadas na Alemanha durante a Reforma
(MOXEY, 2004). Tais imagens, por longo tempo consideradas como arte popular ou arte
em massa, formavam uma importante dimenso da cultura visual nesse perodo. Longe de se
estabelecer como a manifestao de uma opinio universal, as gravuras foram o meio pelo
qual se deu a circulao dos pensamentos, das atitudes e dos elementos iconogrficos tanto
nas classes mdia e alta, quanto entre um vasto pblico popular; a multiplicidade dos temas
impressos oferecia, a um pblico heterogneo, a possibilidade de combinar diversos assuntos
de uma forma desconcertante.
As obras de Stock e Moxey so inovadoras na medida em que abriram novo caminho
para o estudo das gravuras, dando maior ateno compreenso de seus significados
simblicos. At ento, a grande maioria das pesquisas dedicadas aos impressos se ateve,
principalmente, aos aspectos tcnicos e formais de sua produo e s obras de renomados
artistas que integravam o cnone artstico por excelncia do Ocidente, em detrimento dos
milhares elaborados por artesos annimos. Vale lembrar que, no perodo aqui estudado, as
gravuras estavam classificadas entre as artes livres, o que no significa que pertenciam a uma
forma menor de arte. No havia uma distino muito clara entre uma pintura habilmente
executada e uma gravura igualmente elaborada, exceto pelo fato mais do que bvio de que
os materiais empregados na pintura eram diversos e muito mais caros do que o papel e a tinta
utilizados nas estampas.
Neste artigo, no cabe a discusso acerca do conceito esttico de uma gravura.
Conforme afirma Ginzburg, uma pintura pode ser significativa para o historiador, por
testemunhar determinadas relaes culturais, importante para o estudioso iconogrfico e, ao
mesmo tempo, irrelevante do ponto de vista esttico (GINZBURG, 1986, p. 57). Assim, para
compreender o significado simblico das imagens por ns analisadas, preciso perceb-las
independentemente desse ponto de vista.
No estamos querendo dizer que, no perodo aqui abordado, as experincias estticas
fossem desconhecidas ou que certos artefatos culturais no fossem vistos de forma anloga
12
nossa prtica contempornea. Mas, como afirma Stock, o pblico no aplicava um critrio
qualitativo quando selecionava uma gravura. O que contava era o preo e o fato do retrato ou
da imagem de um evento histrico se parecer um pouco com o assunto (STOCK, 1998, p.
136).
O propsito do presente artigo no traar a histria da gravura na Europa, mas
buscar apreender alguns aspectos de suas funes e usos. Ora, no se trata de uma tarefa fcil.
A documentao muito dispersa quando no escassa. Mesmo os estudos clssicos
(ALEXANDER, 1997; HOLLSTEIN, S/D; STRAUSS, 1974) no trazem informaes
relativas a sua distribuio e difuso.
As imagens impressas no cotidiano
As primeiras xilogravuras das quais se tem conhecimento datam do final do sculo
XIV, provavelmente inspiradas pelo processo j conhecido de estamparia em tecidos. Por
grande parte da Europa Ocidental, colees de imagens de cenas religiosas em xilogravuras
j estavam sendo produzidas uma gerao antes da Bblia de Gutenberg (BRIGGS E
BURKE, 2004, p. 47). Na segunda metade do sculo XV, a compatibilidade entre matrizes de
madeira e os tipos mveis atraiu os editores a ilustrar os textos com o uso da nova tcnica.
Nos primeiros exemplares, as imagens e as palavras eram inseridas no mesmo bloco de
madeira, diminuindo o tempo e barateando a produo como um todo. Uma vez dominada a
tcnica, as xilogravuras se tornaram o principal mtodo de ilustrao dos livros. Segundo
Briggs e Burke, o crescimento da figura impressa foi a mudana mais profunda da
comunicao visual de todo aquele perodo, pois permitia, como nunca, que as imagens
ficassem disponveis para difuso (BRIGGS E BURKE, 2004, p. 47).
Tal vantagem econmica foi decisiva para que os editores optassem por esse mtodo
nos primeiros anos aps a inveno de Gutenberg. Desenhadas e gravadas por pequenos
mosteiros ou impressores independentes em branco e preto ou coloridas a mo, segundo o
gosto do comprador , as imagens eram produzidas tanto para comunidades religiosas quanto
para o pblico leigo.
No tardaria muito para que seu uso estivesse amplamente disseminado em virtude da
mobilidade dos artesos, que buscavam trabalho ao longo das rotas comerciais. De Mainz, a
nova mdia ramificou-se pelas cidades das margens do rio Reno, regio dos Alpes,
Lombardia, Toscana, Vneto, Frana e Pases Baixos.
A estampa esteve intimamente ligada s muitas edies e tradues, simples ou
suntuosas, em lngua verncula ou latim, de livros diversos. Entre os religiosos, encontravamMOUSEION,
n.
15,
ago.
2013,
p.
10-28.
ISSN
1981-7207
13
se as bblias, hagiografias, livros de salmos etc; e, dentre os de carter secular, fbulas,
mitologias, lendas, romances de cavalaria, histrias de guerra, crnicas, mapas, herbrios,
calendrios, tratados de medicina ou astronmicos e temas satricos. Tal como os assuntos, as
representaes abarcavam um leque imenso, causando significativo impacto nos leitores:
desde o Cristo, a Virgem e os santos a cenas de batalha ou de entradas triunfais; retratos de
governantes a peste, ars moriendi, a dana da morte, o diabo e a fragilidade da vida,
camponeses, carnavais e festivais diversos, soldados mercenrios, batalhas entre os sexos,
informaes de execues, aparies celestiais testemunhadas por pessoas extremamente
religiosas ou nascimentos disformes.
Para alm do universo dos livros, as gravuras marcaram presena no cotidiano dos
habitantes das cidades e do campo, circulando em frontispcios de panfletos e folhas volantes
ou, ento, afixadas nas portas das casas, com o objetivo de proteger seus moradores contra
doenas, praga, morte, fogo, furto ou invases. Assim como sob a forma de imagens votivas,
cujo uso poderia se dar tanto no espao privado das casas quanto no espao pblico das
procisses ao ar livre. Tal como a ladainha, a visualizao de uma mesma [e adorada] imagem
lembrava aos fiis a invocao constante da f; como as oraes, as gravuras caracterizavam a
prpria vida religiosa.
Presena em dias de festa e peregrinao
Em dias de festa, a devoo popular era estimulada por imagens de santos, da Virgem
e do Cristo. Registros paroquiais e inventrios de irmandades trazem uma riqueza de
informaes inestimvel e diversas possibilidades de pesquisa relativa ao uso das
xilogravuras. Vejamos alguns exemplos. Em Anturpia, os primeiros registros datam de 1460,
ordenados pelos diretores da Igreja de Saint Jacobs e da Guilda de Saint James. Cinquenta e
um anos depois, a Guilda de Onze-Lieve-Vrouwe-Lof2, responsvel pelo culto da Virgem
Maria, encomendou uma matriz de madeira especfica, a partir da qual trezentas pequenas
gravuras foram impressas com o intuito de serem penduradas nas tochas durante os
cortejos. Nos inventrios do perodo 1520-1575 dessa guilda, as anotaes indicam a
comisso quase anual de duzentas gravuras, para o cortejo e para exposio na prpria capela,
uma novidade para a poca (STOCK, 1998). Os inventrios da Guilda de Santo Ambrsio3,
2
Estabelecida em 1479, na cidade de Anturpia, a irmandade era formada por mercadores, comerciantes, artistas
e burgueses de distintas nacionalidades, como alemes, portugueses, espanhis e italianos.
3
A Guilda de Santo Ambrsio foi fundada em 1530, por professores e professoras que ensinavam crianas a ler
e a escrever em lngua verncula, nas escolas privadas da Anturpia. Segundo Stock (1998), Anturpia contava
com pelo menos duzentas escolas privadas no perodo de 1530-1585.
14
arrolados entre 1530 e 1586, tambm apontam para a comisso anual de gravuras, impressas a
partir de uma matriz pertencente sociedade, para utilizao como adorno nas tochas durante
as procisses em homenagem ao seu santo patrono.
O mais interessante a ressaltar o nmero de itens comissionados anualmente pelas
guildas de Onze-Lieve-Vrouwe-Lof e de Santo Ambrsio, apontando para a ausncia de um
estoque permanente e a necessidade de realizar novas impresses a cada solicitao. De onde
se conclui que as gravuras no eram vendidas ao acaso, tampouco utilizadas em outra ocasio
que no a da procisso. Stock argumenta que se tratava de uma oferenda e prova de
comparecimento em massa em honra aos santos patronos, ao mesmo tempo em que fazia
papel de recibo de pagamento da anuidade dos membros das guildas (STOCK, 1998).
Vale acrescentar mais um elemento: o uso das gravuras configurou-se como sinal de
pertencimento e distino. Identificaes familiares ou dos diferentes grupos eram
normalmente bordadas em bandeiras ou nas prprias roupas. J no final do sculo XV,
estampas como emblemas substituam as tradicionais insgnias. o que nos mostra o
desenho de autoria annima, em que homens seguram tochas com insgnias durante cerimnia
de entrada de Joo I de Navarra em Bruxelas, no ano de 1495 (Berlim, Staatliche Museen zu
Berlin, Kupferstichkabinett, inv. MS. 78D5, fol. 10r)
Outro exemplo pode ser encontrado nas encomendas que a j citada Onze-LieveVrouwe-Lof realizou nos anos de 1535, 1548, 1550, 1551, 1562 e 1572, visando impresso
de gravuras para a procisso do dia de So Michel. Esse evento tornara-se habitual em virtude
de uma epidemia de gripe que vitimou mais de quatrocentas pessoas na cidade de Anturpia,
em 1529. A prefeitura decretara que todas as milcias civis e irmandades se juntassem ao
cortejo, obrigando-as a carregar tochas nas quais o emblema de cada grupo estaria visvel.
As gravuras votivas tambm tinham funes diversas, como a de souvenir e a de indulgncia.
Tomemos como exemplo a obra de Michel Ostendorfer (1495-1549), The Pilgrimage to the
Fair Virgin in Regensburg [Fig. 1]. Em 21 de fevereiro de 1519, a cidade de Regensburg,
Alemanha, expulsou a grande e prspera comunidade judaica que l vivia, destruindo seu
cemitrio e a sinagoga. No tardou para que o esprito religioso atribusse milagres nova
situao da cidade: um homem que trabalhava na demolio do templo machucou-se
gravemente, restabelecendo-se de forma milagrosa. Tal prodgio encorajou comunidade crist
a realizar contribuies para a edificao de uma capela dedicada Virgem, a Schne Maria,
no mesmo lugar em que se encontrava a sinagoga (BAXANDALL, 1998). Terminada a
construo, o altar recebeu uma pintura da santa. Cpias dessa representao foram
encomendadas ao artista alemo Albrecht Altdorfer (1480-1538), assim como uma esttua
MOUSEION,
n.
15,
ago.
2013,
p.
10-28.
ISSN
1981-7207
16
KOERNER, Joseph Leo. The Reformation of the Image. Chicago: The University of Chicago Press, 204, p. 129
17
que devers possuir / Uma casa requer tanto enxoval Que aqui nem
um dcimo se pintou. 5
Figura 2: Annimo. Ilustrado por Hans Paur. Household goods. Nuremberg: ca. 1480-1485.
Folha volante, xilogravura, 25,4 x 36,3 cm. Staatliche Graphische Sammlung, Munique
No original: Were zu de Ee greyffen welle Der tracht das er dar zu bestelle / Hautrat das er nit mangel hab
Hye merck du dirn und iunger knab / Wiltu dich hauhaltens nemem an So tracht was du der zu must han / In
ein hau gehort als vil Haurat Das der Zeenteil nit hie gemalet stat (citado por PARSHALL E SCHOCH,
2005, p. 214).
18
19
ideia de como decoravam os interiores das moradias, oficinas e tavernas por meio de fontes
escritas e visuais.
Cenas religiosas respondiam por grande parte dos impressos cujo propsito era
decorar os interiores. De certa forma, configuravam-se como um substituto barato para as
imagens devocionais elaboradas pelo pincel e a tinta. Na Itlia, por exemplo, tendiam a
utilizar as mesmas frmulas visuais das pinturas contemporneas dos afrescos ou altares.
Nesse caso, um dos artifcios utilizados foi a criao de molduras na prpria mancha da
gravura. As referidas molduras eram pensadas de forma a ressaltar o tema representado na
mesma medida em que o faziam com a pintura.
Imagens votivas faziam parte da decorao dos dormitrios em grande parte das
residncias europeias no final do sculo XV. Em 1492, o inventrio dos Mdici para a Villa di
Poggio, em Caiano, lista um pequeno nmero de obras de arte, indicando que em cada um dos
quatro quartos de dormir havia uma pequena Madonna ou a imagem de um santo: alguns
pintados em painel de madeira, outros em tela. Para David Landau, em residncias menos
prsperas, essas imagens deveriam ser impressas, sugerindo que as gravuras religiosas de
baixo custo competiam corpo a corpo com o mercado de pinturas votivas (LANDAU, 1984).
Alis, neste, como em outros casos, os editores comearam a ganhar frente aos pintores em
um mercado sofisticado.
Diversas pinturas nos trazem indcios da existncia de impressos pendurados nos
interiores das residncias. Vejamos alguns exemplos. Em meados do sculo XV, Robert
Campin (ca. 1375-1444), conhecido como Mestre de Flemalle, realizou A Anunciao, que
pertence ao acervo do Metropolitam Museum of Art, de Nova Iorque. Ao lado direito da
Virgem e afixada cornija da lareira, h uma gravura. Alis, o detalhe de estampas em
retbulos, cujo tema era a Anunciao, parece ter sido bastante comum, conforme se pode
perceber na pintura de Joos van Cleve (ativo em 1507 ca. 1540/41), do mesmo museu, que
alia cenas do Novo e do Velho Testamento: no primeiro plano, encontram-se Gabriel e Maria;
na parede ao fundo, presa por pregos, a gravura retrata Moiss segurando as tbuas da lei.
Por volta de 1450, Petrus Christus (ativo entre 1444-1475/1476) elaborou um trptico
a pedido de um casal da comunidade italiana que movimentava grande nmero de interesses
comerciais em Bruges.7 Formando o conjunto, estava Portrait of a Female Donor, no qual se
v a comitente rezando de joelhos. O cenrio nos leva a supor que o trptico tenha sido
7
A documentao da National Gallery of Art, em Washington D.C, museu em que se encontra a obra, revela que
a mulher pertencia proeminente famlia Vivaldi, genovesa, com fortes interesses comerciais e bancrios no
norte, e seu marido famlia Lomellini conforme demonstra o braso de armas em seu retrato.
20
pintado para a devoo privada, na residncia do casal. Atrs da figura da mulher, h uma
xilogravura colorida a mo, de Santa Elizabeth da Turngia, afixada por gotas de cera.
Provavelmente, a escolha dessa representao no se deu ao acaso: alm de ter pertencido
realeza, Elizabeth da Turngia era uma das mais proeminentes representaes femininas de
caridade e humildade. Logo, podemos concluir que a santa atestava tanto o status social
quanto a religiosidade da comitente.
Contudo, segundo argumenta Parshal, o casal tinha encomendado um retbulo valioso
a um artista bastante conhecido; porm, a gravura da santa, produo em papel voltada para o
grande pblico, destoa do rico ambiente sua volta. Para o autor citado, tal disjuno
aparente parte do conceito de imagem, e no uma fonte histrica do uso de uma imagem
(PARSHALL E SCHOCH, 2005, p. 41). Ora, no nosso objetivo aprofundar tal questo.
Claro que preciso considerar o fato de que todo o artefato sempre est mediado por uma
srie de significados. Qualquer que fosse a inteno do artista ou do comitente, cada uma das
pinturas e gravuras que buscavam representar as formas de uso das estampas pode ser
considerada um indcio para a anlise.
Exemplo disso so os inmeros exemplares produzidos na Alemanha e nos Pases
Baixos, cujos motivos no eram nem religiosos nem polticos. Nesses casos, as imagens j
comeavam a dar uma mostra de um tipo de representao que teria seu auge na Holanda dos
Seiscentos, a pintura de gnero: cenas de soldados e homens em tavernas ou bordis
bebendo, jogando cartas e flertando com jovens mulheres; camponeses ingerindo bebidas
alcolicas ou lutando entre si, fumando tabaco e, geralmente, divertindo-se em feiras,
casamentos ou outros eventos; alm de brigas entre casais.
Figura 3: Monogramista de Brunswick. Tavern Scene, ca. 1540. leo sobre painel de
carvalho, 29 x 45 cm. Staatliche Museen, Berlim
21
Vejamos Tavern Scene [Fig. 3], obra atribuda ao Monogramista de Brunswick, como
ficou conhecido, ativo em Anturpia em 1540. O artista pintou em um dos seus leos uma
cena pitoresca da vida cotidiana, na qual diversos homens e mulheres comem e bebem em
uma taverna. direita, duas mulheres esto brigando, assistidas por trs outras pessoas que
nada fazem para separ-las. A insinuao de prostituio, bebedeira e o embate fsico
conferem uma natureza alegrica obra e no deixam dvidas quanto s consequncias
desagradveis da embriaguez. O detalhe da obra que nos interessa faz parte da decorao da
taverna: a gravura pendurada mostra vrios mercenrios, alm de contar com frases obscenas.
Frans Huys (1522-1562) nos brinda com outro exemplo. Datada de meados do sculo
XVI, The Lute Makers Shop [Fig. 4] introduz o observador no interior de uma loja, onde um
homem e uma velha mulher seguram alades ele, alis, est tocando o instrumento. Atrs do
luthier, a criada avisa da chegada de outra cliente, que tambm segura um alade. O texto
impresso abaixo da imagem relata a conversa em curso: Mestre John Cabea M, voc
arrumar meu alade? Eu o farei, Senhora Nariz Comprido, mas deixe-me em paz, por que eu
tenho que guardar para Mame Mula, que tambm quer seu alade.
Figura 4: Frans Huys. The Lute Makers Shop, metade do sculo XVI. Xilogravura.
Rijksmuseum, Amsterdam
22
da sugestiva cena, penduradas na cornija da lareira: uma estampa com cinco pequenas cenas
de casais camponeses danando. As imagens foram transpostas de duas sries de gravuras
executadas por Hans Sebald Beham (1500-1550) em 1537 e em 1546-47. Para Moxey, a
presena dos camponeses no interior de uma casa simples sugeria que essa classe social era,
muitas vezes, associada a comportamentos sexuais duvidosos (MOXEY, 2004).
A nosso ver, as gravuras funcionavam como ornamento dos espaos, vetores de
advertncia de certos comportamentos sociais e instrumentos de moralizao e normatizao
das condutas individuais.
O pblico
Os editores apostavam cada vez mais no mercado popular do impresso, difundido por
vrias cidades europeias; entre os fatores que o impulsionaram, estava o tamanho reduzido
das estampas, o que facilitava o transporte. O comrcio era realizado no campo e nas cidades,
nos diversos mercados e feiras, por mercadores ambulantes ou lojas especializadas. A
estratgia de venda adotada esteve intimamente ligada clientela que se procurava atingir. A
escolha dos temas e gneros procurava alcanar o maior nmero possvel de leitores. Mas
ganhar uma clientela assim diversificada em status social-econmico e no espao
geogrfico requeria o estabelecimento de uma frmula editorial que baixasse os custos de
impresso e, consequentemente, os de venda. Isso porque, alm das elites, havia que se pensar
em uma clientela popular (CHARTIER, 1999) razoavelmente ampla: artesos, lojistas,
pequenos comerciantes, entre outros.
Ora, a princpio, o valor de uma xilogravura ou folha volante dependia muito do custo
de um dos seus principais insumos: o papel. No sculo XIV, o papel comeou a ser produzido
na Europa Ocidental, porm, em quantidades modestas. Com a inveno da imprensa, a
demanda por esse material se intensificou e, em consequncia, o preo chegou a quase metade
dos custos da produo de um livro. J ao longo do sculo XVI, o preo do papel frente aos
custos do livro cairia drasticamente. Segundo Rolf Engelsing, o custo dos livros vendidos na
feira de Frankfurt, entre 1470 e 1513, caiu 40% (citado por MOXEY, 2004, p. 23). Em
relao aos preos das xilogravuras e das folhas volantes, pouco se sabe. Bruno Weber
calculou que o valor de uma folha volante ilustrada variava entre quatro a oito pfennings
(MOXEY, 2004). Para Weber, em 1522, dois pfennings compravam o equivalente a seis ovos
ou trs arenques ou uma salsicha, em um tempo no qual um mestre de obras ganhava 28
pfennings e seu auxiliar, 24 pfennings por dia.
23
Assim, podemos concluir que o baixo custo tornava as gravuras acessveis a diferentes
classes sociais. Enquanto negociantes, os editores procuravam imprimir para o grande
pblico; da os valores praticados. No havia uma considervel diferena entre as estampas
encomendadas como no caso das insgnias das guildas e as produzidas para o mercado em
geral. Conforme afirma Stock, o valor de uma gravura elitista da guilda era equivalente ao
de uma popular para peregrinos (STOCK,1998).
O preo das estampas tampouco estava ligado valorao esttica das imagens. Como
mencionado no incio deste artigo, tal critrio no era aplicado pelo pblico no momento da
compra de uma gravura. O que realmente contava era o preo e o fato de a imagem procurar
representar o mais prximo possvel o tema ao qual se referia (um retrato, um acontecimento
histrico etc.).
Se o custo das gravuras e folhas volantes permitia sua aquisio por grande parte da
populao, como podemos saber exatamente quais eram os grupos ou classes nelas
interessados? Eis uma questo bastante delicada, que precisa contemplar alguns aspectos
importantes. A escassez de documentao dificulta a formulao de um quadro abrangente.
Contudo, podemos comear a traar um tmido panorama a partir de algumas pistas.
Vimos, acima, como alguns tipos de gravuras estavam direcionados a grupos
especficos: guildas as usavam como insgnia ou recibo de pagamento e, em ambos os casos,
tratava-se de um smbolo de pertencimento a uma comunidade; imagens de santos e da
virgem encontravam-se presentes no cotidiano nos catlicos apostlicos romanos;
indulgncias eram gravadas para os fiis, a fim de diminuir os anos passados no purgatrio.
Ao mesmo tempo, as demandas por parte do pblico eram variadas, dependendo do contexto
e do espao geogrfico. Esperava-se que as estampas apotropaicas fossem eficazes e
cumprissem sua funo; no caso daquelas cujo tema era a peste, podemos pensar que sua
presena fosse mais recorrente nas regies afetadas pela doena. Alegorias polticas e
religiosas circulavam nos territrios cujos governantes ou lderes estavam sendo satirizados.
Em outras palavras, se uma gravura era adquirida por uma ampla gama de pessoas ou por um
pblico extremamente especfico, dependia, em primeiro lugar (e principalmente), do uso ao
qual estava destinada.
Nas linhas anteriores, procuramos perceber como valores e usos podiam influenciar na
compra das gravuras. Agora, devemos buscar mais indcios para apreender as distintas formas
de recepo das imagens impressas. Grande parte das folhas volantes contava com legendas
detalhadas que ajudavam o leitor a acompanhar o significado do episdio representado (por
exemplo, as Figuras 2 e 4). As legendas podiam ser em latim visando a um pbico
MOUSEION,
n.
15,
ago.
2013,
p.
10-28.
ISSN
1981-7207
24
altamente culto ou em lngua verncula. Combinada com um texto, a imagem tinha como
funo ampliar e conferir um sentido de imediatismo s palavras. Mas, em vrios casos, a
imagem visual dependia em muito das informaes conferidas pelo texto. Para Landau, uma
vez que certo grau de alfabetizao era necessrio para compreender algumas gravuras,
podemos assumir que no estavam destinados aos pobres (LANDAU, 1994, p. 81). A
afirmao, no entanto, pressupe que as gravuras interessavam somente queles que
dominavam a leitura. Ora, por exemplo, na Alemanha do incio do sculo XVI, somente 5%
da populao estava alfabetizada, grande parte concentrada nas cidades (MOXEY, 2004).
Nos ltimos anos, historiadores como Natalie Zemon Davis, Roger Chartier e Robert
Darnton debruaram-se sobre o assunto em questo, demonstrando a importncia da leitura
comunal na disseminao dos textos. Por isso, o alto ndice de iletrados no se constituiu
como fator de limitao para a recepo das imagens e seus textos. Muito pelo contrrio:
segundo Moxey, no conturbado perodo da Reforma momento em que modos de pensar
diferentes e conflituosos estavam em jogo, afetando a sociedade como um todo , deve ter
havido uma grande curiosidade em relao s informaes que circulavam de forma impressa,
tanto por parte daqueles que eram letrados quanto dos que no eram (MOXEY, 2004).
Se as fontes documentais raramente proporcionam informaes referentes recepo
das estampas pelo pblico iletrado, o mesmo no pode ser dito a respeito do pblico
alfabetizado. As freiras do convento de Katharinenkloster, em Nuremberg, tinham o hbito
de comprar xilogravuras e utiliz-las para ilustrar os livros da biblioteca do convento. O
prefeito da cidade, Hieronimus Dress, colou duas estampas nas capas de seu brevirio. Na
Itlia, Jacopo Rubieri (?-1500), notrio da cidade de Parma, que viveu em Roma e Veneza,
compilou alguns textos legais. Ele reuniu seu trabalho em livros, decorando-os com gravuras
que havia colecionado durante suas viagens a trabalho. Na Letnia, o filho do prefeito de
Riga, Reinhold Soltrump, era proprietrio de 49 gravuras em metal. Bianca Maria Sforza
(1472-1510), esposa do imperador Maximiliano I, costurou estampas em seu livro de oraes
e o Imperador Ferdinando I (1503-1564) inseriu xilogravuras ilustradas por insgnias de
peregrinaes em seu exemplar (PARSHALL E SCHOCH, 2005). Todos esses so indcios a
partir dos quais possvel perceber o uso das imagens impressas pelas classes letradas e/ou
por aqueles que pertenciam aos nveis mais altos da hierarquia social.
Colecionismo
A recepo das estampas por parte desse pblico pode, tambm, ser sentida a partir
das inmeras colees cuja origem remonta ao final do sculo XV. Enquanto artefato, as
MOUSEION,
n.
15,
ago.
2013,
p.
10-28.
ISSN
1981-7207
25
prprias gravuras fornecem dados relativos emergncia de seu colecionismo. Desde as
primeiras impresses, percebe-se a existncia de um espao entre a imagem frequentemente
circundada por uma linha e a marca da prensa da matriz no papel. Provavelmente, a
inteno era a de que a gravura fosse emoldurada; da a necessidade do espao deixado. E,
conforme mencionado, em alguns casos, os prprios impressores criavam ao redor da mancha
de impresso uma moldura em tromp loeil.
A leitura dos estudos referentes histria da gravura mostra pontos de vista diversos
no que se refere sua importncia enquanto objeto de interesse dos colecionadores nos
sculos XV e XVI. Para Landau, tratava-se de um meio que requeria marketing e que estava
inerentemente inclinado a induzir o fenmeno do colecionismo (LANDAU, 1994, p. 64).
Moxey afirma que, com exceo das gravuras utilizadas como propaganda de Maximiliano I
as quais tinham sido distribudas para um pblico especfico e, por isso, apreciadas como
objeto de valor , as estampas e folhas volantes, a princpio, no foram objeto de nenhum
colecionador em especial: aparentemente elas no eram consideradas itens colecionveis, no
sentido de possurem algum valor esttico, at o final do sculo XVI (MOXEY, 2004, p. 23).
Por sua vez, Griffiths (2003) argumenta que a chance de uma gravura se tornar objeto de uma
coleo estava diretamente relacionada ao seu custo original. Enfim, Macdonald menciona a
dificuldade em apreender o gosto por gravuras e a extenso de seu colecionismo durante o
Renascimento; para ele, compreender o status e a importncia desses artefatos para os
colecionadores no fcil, j que as colees no chegaram at ns em sua forma completa e
original (MACDONALD, 2003).
Em suma, sem tender a favor de um ou outro estudioso, fato que, desde o sculo XV,
colees de gravuras comearam a pulular em diferentes pases europeus. Como seus
colecionadores as armazenavam? De que forma era possvel garantir-lhes uma vida
duradoura? Estavam eles preocupados com isso? As imagens poderiam ser emolduradas e
penduradas nas paredes de bibliotecas ou de gabinetes de curiosidades; mesmo assim, poucas
sobreviveram. Mas, o que se pode dizer das colees de folhas volantes? Sem a proteo de
uma moldura, elas poderiam sofrer danos como rasgos e dobras. S havia um mtodo de
preservao que poderia lhe garantir alguma sobrevida: o armazenamento entre as folhas de
um livro ou lbum. Por isso, nos lbuns que se deve comear qualquer tipo de investigao
acerca das colees de gravuras.
Os primeiros traos de colecionismo podem ser vislumbrados pela atividade de
Hartmann Schedel (1440-1514), humanista e mdico, autor de Nuremberg Weltchronik, que
adquiriu centenas de xilogravuras durante a vida. Parte substancial de sua coleo encontra-se
MOUSEION,
n.
15,
ago.
2013,
p.
10-28.
ISSN
1981-7207
26
Segundo Macdonald (2003), essa quantidade pode no ser exata, uma vez que existe mais de um registro para a
mesma gravura.
27
Ainda h muito que pesquisar sobre a compreenso de seus significados simblicos, recepo
e apropriao, aspectos bastante complexos que merecem maior investigao e reconstituio.
Referncias
ALEXANDER, Dorothy. The German single-leaf woodcut 1600-1700. New York: Abaris
Books, 1977.
BRIGGS, Asa e BURKE, Peter. Uma histria social da mdia: de Gutenberg Internet. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004,
BAXANDALL, Michael. The Limewood Sculptors of Renaissance Germany. 6 edio. New
Haven: Yale University Press, 2004.
CHARTIER, Roger. Leituras e Leitores Populares da Renascena ao Perodo Clssico. In:
CAVALLO, Guglielmo e CHARTIER, Roger. Histria da Leitura no Mundo Ocidental. vol
2. So Paulo: Editora tica, 1999.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. Morfologia e histria. So Paulo: Companhia
das Letras, 1986.
GRIFFITHS Anthony. The archeology of the print. In: BAKER, Christopher, ELAM,
Caroline e WARWICK, Genevieve. Collecting Prints and Drawingsin Europe c.1500-1750.
Aldershot: Ashgate: Burlington Magazine, 2003.
HOLLSTEIN, F.W.H. 79 volumes. The new Hollstein Dutch & Flemish etchings, engravings
and woodcuts, 1450-1700. Rotterdam: Sound & Vision Publishers (vrias datas).
KOERNER, Joseph Leo. The Reformation of the Image. Chicago: The University of Chicago
Press, 2004.
LANDAU, David. The Renaissance Print, 1470-1550. New Haven: Yale University Press,
1994.
MACDONALD, Mark P. Extremely curious and important!: reconstructing the print
collection of Ferdinand Columbus. In: BAKER, Christopher, ELAM, Caroline e
WARWICK, Genevieve. Collecting Prints and Drawingsin Europe c.1500-1750. Aldershot:
Ashgate: Burlington Magazine, 2003.
MOXEY, Keith. Peasants, Warriors and Wives. Popular Imagery in the Reformation.
Chicago and London: The University of Chicago Press, 2004.
PARSHALL, Peter; SCHOCH, Rainer. Origins of European Printmaking. Fifteenth-Century
Woodcuts and Their Public. Washington; New Haven: National Gallery of Art: Yale
University Press, 2005.
STIBER, Linda; EUSMAN, Elver; ALBRO, Sylvia. The Triumphal Arch and the Large
Triumphal Carriage of Maximilian I: Two oversized, multi-block, 16th-century Woodcuts
from the Studio of Albrecht Durer. The Group and Paper Book Annual. American Institute for
Conservation of Historic and Artistic Works, volume 14, 1995. Disponvel em: <
http://cool.conservation-us.org/coolaic/sg/bpg/annual/v14/bp14-07.html>. Acesso em 15 de
outubro de 2009.
MOUSEION,
n.
15,
ago.
2013,
p.
10-28.
ISSN
1981-7207
28
STOCK, Jan van der. Printing Images in Antwerp. The Introduction of Printmaking in a City.
Fifteenth Century to1585. Rotterdam: Sound & Vision Interactive Rotterdam, 1998.
STRAUSS, Walter. The illustrated Bartsch. 71 volumes. New York: Abaris Book (vrias
datas).
_______________. 3 volumes. The German single-leaf woodcut, 1550-1600 : a pictorial
catalogue. New York: Abaris Books, 1975. GEISBERG, Max. The German single-leaf
woodcut, 1500-1550. New York: Hacker Art Books, 1974.
TALBOT, Charles. Prints and the Definite Image. In: TYSON, Geral P; WAGONHEIM,
Sylvia S. (orgs.) Print and Culture in Renaissance. Essays on the Advent of Printing in
Europe. Newark, Del: University of Delaware Press/London: Associated University Press,
1986.