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Sheila Schneck

BEXIGA: COTIDIANO E TRABALHO EM SUAS


INTERFACES COM A CIDADE (1906-1931)

São Paulo

2016
Sheila Schneck

BEXIGA: COTIDIANO E TRABALHO EM SUAS INTERFACES COM A


CIDADE (1906-1931)

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo para obtenção do título de
Doutor em Arquitetura e Urbanismo

Área de Concentração: História e


Fundamentos da Arquitetura e do
Urbanismo

Orientador: Profa. Dra. Beatriz Piccolotto


Siqueira Bueno

São Paulo

2016
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS
DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

E-MAIL DA AUTORA: shschneck@gmail.com

Schneck, Sheila
S358f Bexiga: cotidiano e trabalho em suas interfaces
com a cidade (1906 - 1931) / Sheila Schneck . -- São Paulo, 2016
1 v.: il.

Tese (Doutorado - Área de Concentração: História e


Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) - FAUUSP.
Orientadora: Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno

1.Urbanização – São Paulo (SP) 2.Bairros – História – São


Paulo (SP) 3.Trabalho 4.Sociedade 5.São Paulo (SP) - História
6.Bairro do Bexiga – São Paulo (SP) I.Título

CDU 301(1-21)(816.11)
FOLHA DE APROVAÇÃO

Sheila Schneck
BEXIGA: COTIDIANO E TRABALHO EM SUAS INTERFACES COM A
CIDADE (1906-1931)

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo para obtenção do título de
Doutor em Arquitetura e Urbanismo

Área de Concentração: História e


Fundamentos da Arquitetura e do
Urbanismo

Aprovado em:

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. ______________________________________________________________


Instituição ____________________________ Assinatura ______________________

Prof. Dr. ______________________________________________________________


Instituição ____________________________ Assinatura ______________________

Prof. Dr. ______________________________________________________________


Instituição ____________________________ Assinatura ______________________

Prof. Dr. ______________________________________________________________


Instituição ____________________________ Assinatura ______________________

Prof. Dr. ______________________________________________________________


Instituição ____________________________ Assinatura ______________________
AGRADECIMENTOS

Se o caminho percorrido durante o mestrado já foi árduo, o que dizer dos últimos
seis anos, até o término desta tese!... Trabalho de quem teima em chegar ao fim apesar das
(muitas) dificuldades, mas que principalmente acredita no que faz.
Ao longo das pesquisas por diversas vezes me identifiquei com personagens que
encontrei pelo caminho – nas fontes primárias e em alguns autores que trataram
especialmente dos anônimos que tiveram suas “trajetórias de vida marcadas pela
instabilidade” –, mas que sempre que necessário recomeçaram. Os tempos podem até ter
mudado, mas certas redes de solidariedade tão preciosas permanecem... É a essas pessoas
que dedico os meus primeiros agradecimentos: Olga, Ilíada, Lindener, Ana, Keiko,
Luciana. Vocês não imaginam o quanto o suporte emocional (e por vezes financeiro) foi
importante!!!
Heloísa Barbuy acompanhou minha trajetória desde o mestrado – suas aulas e seus
trabalhos me indicaram os primeiros caminhos a trilhar. Maria Lucia Gitahy me ajudou a
conhecer os meandros (nem sempre conscientes) que interligam o saber
acadêmico/historiográfico ao mundo real. Beatriz Bueno me acompanhou pacientemente
durante o todo o percurso, orientando e, sobretudo, acreditando em mim e me apoiando em
todas as circunstâncias. Agradeço muito a vocês pelo apoio que deram, cada uma à sua
maneira.
Agradeço ainda à CAPES e ao Programa de Pós Gradução da FAUUSP por terem
me contemplado com a bolsa de estudos sem a qual teria sido impossível chegar até aqui.
Por fim, não posso deixar de citar André e Camilla. Acima de terem ajudado a
viabilizar esta tese, são a referência afetiva e familiar fundamental para os caminhos a
serem trilhados daqui para a frente.
RESUMO

SCHNECK, Sheila. Bexiga: cotidiano e trabalho em suas interfaces com a cidade


(1906-1931). 2016. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2016.

O bairro do Bexiga foi resultado de um processo político e econômico mais amplo


pelo qual passava o país desde a segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento
da economia cafeeira e a inserção do estado de São Paulo no mercado exportador,
envolvendo a Abolição da Escravidão, a instauração da República e a readequação das
práticas urbanas de acordo com os parâmetros europeus de urbanização e industrialização.
Nesse processo, iniciativas orientadas por um zoneamento e especialização de usos e
funções explícitos e implícitos na legislação foram adotados com o objetivo de adequar a
capital paulista ao novo papel. Assim, parte das moradias e dos segmentos do comércio de
gêneros alimentícios, bem como oficinas, depósitos e fábricas e serviços menos nobres
deslocaram-se em direção dos bairros vizinhos ao perímetro central. A especialização das
funções urbanas implicou não somente no redesenho das zonas de exercício das atividades
produtivas, como também das áreas de moradias exclusivas para determinados grupos
sociais. Nesse contexto, em função da demanda, surgiram empreendimentos imobiliários
de loteamentos destinados a abrigar moradores e atividades produtivas essenciais à cidade
em expansão, dando origem a novos bairros, sendo o Bexiga um caso exemplar desse
fenômeno.
Esta tese se propõe a conhecer e compreender de que maneira o bairro do Bexiga se
inseriu no movimento de reespacialização social e das funções urbanas – seu papel na
reconfiguração da cidade –, assim como suas conexões com o espaço urbano mais amplo.
De outro lado, no decorrer do século XX, alguns estereótipos foram construídos como
traços determinantes do bairro, conferindo ao Bexiga um caráter de uniformidade
funcional, social, étnica e arquitetônica. Assim, outro objetivo desta tese é desconstruir a
visão estereotipada do Bexiga como um bairro homogêneo em todas as suas instâncias,
destacando: a diversidade das atividades produtivas ali desenvolvidas, a presença e
coexistência de diferentes camadas sociais, a presença de grupos étnicos diversos e as
diferentes formas de moradia envolvendo bem mais do que as “casas operárias”.

Palavras-chave: São Paulo. História. Urbanização. Bairros. Bexiga. Funções. Trabalho.


Sociedade.
ABSTRACT
SCHNECK, Sheila. Bexiga: everyday life and work in a quarter and its interfaces with
the city (1906-1931). 2016. Thesis (Doctorate) – Faculty of Architecture and Urbanism,
University of São Paulo. São Paulo, 2016.

The quarter of Bexiga was a result of a wider economic and political process
through which the country had undergone since the second half of 19th century, with the
development of coffee economy and the insertion of the state of São Paulo in the export
market, involving the Abolition of Slavery, the establishment of the Republic and the
readaptation of the urban practices according to the European parameters of urbanization
and industrialization. In this process, initiatives oriented by a zoning and specialization of
use and functions explicit and implicit in the legislation were adopted with the objective of
adjusting the São Paulo capital to the new role. Thus, part of the dwellings and the
commerce of foodstuff, as well as workshops, store houses, factories and less noble
services moved towards the neighborhoods of central areas. The specialization of urban
functions resulted not only in the redesign of the productive activities zones, but also of the
areas of dwellings exclusive for certain social groups. In this context, according to the
demand, real state enterprises of housing development arose, aimed at sheltering dwellers
and productive activities essential for the expanding city, giving rise to new quarters, and
Bexiga was an exemplary case of this phenomenon.
The present thesis aims at knowing and comprehending how the quarter of Bexiga
became part of the movement of social and urban functions respatialization – its role in the
reconfiguration of the city - , as well as its connections with the wider urban spaces. On the
other hand, throughout the 20th century, some stereotypes were built as determining
features of the quarter, giving Bexiga a quality of functional, social, ethnic and
architectural uniformity. Thus, another objective of this thesis is deconstructing the
stereotyped vision of Bexiga as a homogeneous quarter considering all of its aspects,
highlighting: the diversity of productive activities developed there, the presence and
coexistence of different social strata, the presence of diverse ethnic groups and the
different forms of dwellings involving much more than the “proletarian houses”.

Keywords: São Paulo. Story. Urbanization. Neighborhoods. Bladder. Functions.


Job.Society.
LISTAS DAS ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Planta da Capital do Estado de S. Paulo e seus arrabaldes (1890). Desenhada e


publicada por Jules Martin.

Figura 2 – Esta planta se refere a uma casa a ser construída à rua Manoel Dutra nº 29 (tinta), para
Francisco Lamboglia, em 1906

Figura 3 – O projeto de Donato Picasso apresenta parte de uma casa existente, distante cerca de
10,75m do alinhamento.

Figura 4 - Projeto em nome de Stephano Peluso, para construção de casa à rua Santo Amaro, 89.

Figura 5 – Interior de uma vila/cortiço na rua Rui Barbosa n. 32.

Figura 6 – Planta da Cidade de São Paulo (1881). Levantada pela Cia. Cantareira e Esgotos,
Henry B. Joyner, Engenheiro em Chefe.

Figura 7 – Planta dos Terrenos do Bexiga (1890). Fernando de Albuquerque, engenheiro civil.

Figura 8 – Planta da Capital do Estado de São Paulo e seus arrabaldes (1890). Desenhada e
publicada por Jules Martin.

Figura 9 – Planta da cidade de São Paulo (1895). Ugo Bonvicini.

Figura 10 – Planta da Cidade de São Paulo, levantada pela Divisão Cadastral da 2ª Secção da
Directoria de Obras e Viação da Prefeitura Municipal (1916).

Figura 11 – Mappa Topographico do Municipio de São Paulo, 1930 SARA Brasil, folha 51.

Figura 12 – À direita da foto, o palacete da Baronesa de Limeira, seguido das duas casas de
aluguel construídas na esquina da Avenida Brigadeiro Luís Antônio com a rua do Riachuelo. Foto:
Guilherme Gaensly, 1900.

Figura 13 – Instalação dos trilhos do bonde em trecho da rua Santo Amaro, por volta dos anos
1900, Guilherme Gaensly.

Figura 14 – Nesta foto, de 1903, quando a rua Santo Amaro já estava calçada e os trilhos do bonde
instalados, a situação ainda não havia se modificado. 1903, Guilherme Gaensly.

Figura 15 – Vista parcial do antigo loteamento, tendo aos fundos o centro da cidade.

Figura 16 – No primeiro plano, vemos a rua 13 de Maio e a paralela, a rua Rui Barbosa. No centro
da imagem está a rua Conselheiro Carrão.

Figura 17 – O Vale do Saracura, provavelmente na altura da rua Major Quedinho. Obras de


construção do viaduto do mesmo nome e traçado para a abertura da futura Av. 9 de Julho. C.1920.

Figura 18 – Vista do Vale do Saracura. À direita, os fundos das construções da rua Santo Antônio.
c.1920.

Figura 19 – O Vale do Saracura, aparentemente em direção ao sul. Foto: Autoria desconhecida,


s/data.

Figura 20 – Vale do Saracura, altura da atual Praça 14 Bis. Vincenzo Pastore, 1910.
Figura 21 – Planta da Cidade de São Paulo (1916), com a demarcação dos perímetros central (em
verde), urbano (em rosa) e suburbano (em amarelo).

Figura 22 – A planta cadastral da Cia. Cantareira demonstra que em 1881 a ocupação da via era
incipiente. Planta da Cidade de São Paulo (1881). Levantada pela Cia. Cantareira e Esgotos,
Henry B. Joyner, Engenheiro em Chefe.

Figura 23 – Registro fotográfico da implantação dos trilhos do bonde na Av. Brigadeiro Luís
Antônio, em 1904.

Figura 24 – Projeto arquitetônico de casa com armazém no alinhamento, na esquina da Av.


Brigadeiro Luís Antônio, com a rua Pedroso, apresentado pelo comissário de café Benedicto Dias
de Oliveira, em 31/06/1911.

Figura 25 – O Estado de São Paulo, 04/01/1914.

Figura 26 – Fábrica de chapéus de Manoel Artacho, localizada na Av. Brigadeiro Luís Antônio n.
10, 1912.

Figura 27 – Projeto arquitetônico para ampliação do armazém de José Tosto, na rua Major Diogo,
49.

Figura 28 – Projeto para construção de sobrado com armazém no térreo, para Luiz d’Angelo,
esquina das ruas Francisca Miquelina, 88 e Santo Amaro, 115.

Figura 29 – De acordo com o anúncio em O Estado de São Paulo, de 04/01/1914, naquela data o
endereço residencial do médico, ainda era no n.179. Em 1917, ele se mudaria para a casa ao lado,
no n.177 da Av. Brigadeiro Luís Antônio.

Figura 30 – Anúncio de Gabriel Raja, um dos poucos médicos que seguramente possuiu
consultório na Av. Brigadeiro Luís Antônio, no jornal O Estado de São Paulo, de 04/08/1918.

Figura 31 – Nesses anúncios, temos dois exemplos de profissionais que residiam na Av.
Brigadeiro Luís Antônio, mas possuíam consultório no Centro da cidade. Aqui observamos, por
parte de ambos, a preocupação em divulgar os endereços residenciais.

Figura 32 – Projeto arquitetônico para construção de salão para Jao & Pelliciotti, no n. 50 da Av.
Brigadeiro Luís Antônio. Obras Particulares, 19/12/1906.

Figura 33 – Planta de elevação para a construção de sobrado com armazém no térreo para Ulysses
Pelliciotti, no mesmo local onde fora construído um salão em 1906.

Figura 34 – Planta baixa referente ao mesmo projeto.

Figura 35 – Projeto, em nome de E. Belpiedade & Pasini ,de barracão para oficina de marmoraria
nos fundos do terreno, mais duas salas no alinhamento. Obras Particulares, 02/08/1913.

Figura 36 – Projeto, em nome de Miguel Noschese para construção de galpões para fábrica e
depósito (?), na rua Asdrúbal do Nascimento, 28.

Figura 37 – No mapa SARA Brasil, de 1930, é possível ver que os galpões construídos para
Miguel Noschese ainda mantinham a mesma configuração do projeto encaminhado em 1910. Na
imagem, o Albergue Noturno situa-se exatamente abaixo do referido prédio.
Figura 38 – Notícia acerca do julgamento de José Rahal & Irmão, por compra de mercadorias
“furtadas”, em 12/04/1918.

Figura 39 – Anúncio publicado por Salvador Ferrara no jornal O Estado de São Paulo, em
15/11/1921.

Figura 40 – O Estado de São Paulo, 12/04/1913.

Figura 41 – O Estado de São Paulo, 14/04/1918.

Figura 42 – O Estado de São Paulo, 07/02/1915.

Figura 43 – Academia Commercial Mercurio.

Figura 44 – De acordo com esse anúncio, a Academia Commercial Mercurio foi fundada em 1903.

Figura 45 – Academia Commercial Mercurio.

Figura 46 – O Estado de São Paulo, 13/05/1916.

Figura 47 – O Estado de São Paulo, 05/01/1917.

Figura 48 – O Estado de São Paulo, 06/01/1920.

Figura 49 – Elevação e planta baixa do projeto arquitetônico em nome de José Pucci, para
construção de dois sobrados, ambos com armazém no térreo, na Av. Brigadeiro Luís Antônio, 57 e
59.

Figura 50 – O Estado de São Paulo, 26/09/1915.

Figura 51 – O Estado de São Paulo, 09/02/1917.

Figura 52 – O Estado de São Paulo, 11/10/1917.

Figura 53 – O Estado de São Paulo, 13/12/1921.

Figura 54 – O Estado de São Paulo, 09/05/1912.

Figura 55 – Anúncio de inauguração do Palace Theatre, publicado em O Estado de São Paulo, de


15/12/1912.

Figura 56 – O Estado de São Paulo, 12/02/1913.

Figura 57 – Cartaz do Cine Paramount publicado em O Estado de São Paulo, de 01/05/1929.

Figura 58 – O Estado de São Paulo, 08/07/1934.

Figura 59 – O Estado de São Paulo, 17/11/1933.

Figura 60 – O Estado de São Paulo, 01/06/1914.

Figura 61 – Em 1919, com escritório na rua Líbero Badaró, 120, na Capital. O Estado de São
Paulo, 04/12/1919.

Figura 62 – O Estado de São Paulo, 15/11/1929.


Figura 63 – O Estado de São Paulo, 23/06/1923.

Figura 64 – O Estado de São Paulo, 21/06/1931.

Figura 65 – O Estado de São Paulo, 08/08/1925.

Figura 66 – Impresso da Fabrica de Bilhares “Taco de Ouro”, de Januario Pirillo. Imagem s/data.

Figura 67 – O Estado de São Paulo, 19/03/1929.

Figura 68 – Nesta foto da Av. Brigadeiro Luís Antônio, de 1931, é possível visualizar a placa da
Joalheria Vicente Torzillo acima da entrada da loja, no prédio n.4 da avenida.

Figura 69 – Possibilidades de acesso a outras regiões da cidade.

Figura 70 – O Estado de São Paulo, 27/06/1914.

Figura 71 – O Estado de São Paulo, 03/03/1914.

Figura 72 – O Estado de São Paulo, 08/12/1915.

Figura 73 – Projeto arquitetônico para construção da “officina de carrieiro” de Felippe Serafim, na


rua Major Diogo, 123 (posterior 149).

Figura 74 – À esquerda da foto, temos a casa de Secos e Molhados de Antônio Maradei, e o Café
Soberano, de propriedade da firma Albuquerque & Cia.

Figura 75 – Anselmo Pignatari conseguiu seu alvará de funcionamento, pois em 14 de dezembro


do mesmo ano, o Theatro Esperia já exibia espetáculos teatrais, cujos preços, aparentemente, eram
bastante acessíveis.

Figura 76 – O Estado de São Paulo, 20/10/1929.

Figura 77 – O Estado de São Paulo, 03/01/1931.

Figura 78 – O Estado de São Paulo, 03/02/1940.

Figura 79 – Caso de “aulas de piano” localizado no Estado de São Paulo, sem identificação do
profissional, à rua Conselheiro Ramalho n.8, em 08/05/1924 e 09/04/1925.

Figura 80 – O Estado de São Paulo, 20/06/1917.

Figura 81 – O Estado de São Paulo, 19/12/1917.

Figura 82 – Como podemos observar, no mapa SARA Brasil, o Ginásio Luzitano, entre as ruas
Treze de Maio e dos Ingleses, quase esquina com a Brigadeiro Luís Antônio, fazia de sua
localização um ponto estratégico para os moradores do Morro dos Ingleses.

Figura 83 – O Estado de São Paulo, 04/02/1909.

Figura 84 – O Estado de São Paulo, 15/05/1913.

Figura 85 – Anúncio publicado em O Estado de São Paulo, em 09/03/1980.

Figura 86 – O Estado de São Paulo, 21/02/1914.


Figura 87 – O Estado de São Paulo, 03/11/1925.

Figura 88 – Heitor Quilici, com “gabinete dentário à Av. Celso Garcia, 103, no Brás.

Figura 89 – Aluísio Fagundes, com consultório no Lgo. do Palácio n.7, e residência na rua
Cubatão.

Figura 90 – Ernesto Tramonti, com consultório na Pça. da República n.15.

Figura 91 – Projeto para aumento da oficina de Miglioli & Renzetti, à rua Conselheiro Ramalho
n.221.

Figura 92 – Projeto de autoria de Humberto Badolato, para construção de duas casas na rua Treze
de Maio n.113 e 115. Note-se que as casas eram de propriedade do próprio construtor

Figura 93 – O Estado de São Paulo, 03/11/1928.

Figura 94 – O Estado de São Paulo, 16/09/1934.

Figura 95 – Observe-se no último anúncio a referência à proximidade “aos principais hospitais”.

Figura 96 – Localização exata da fábrica de chapéus de Chiaverini, Magalhães & Cia, na rua
Conselheiro Ramalho n.229, com faces para as ruas Fortaleza e Maria José.

Figura 97 – Planta da Cidade de São Paulo (1895). Editor Hugo Bonvicini, 1895.

Figura 98 – Planta da Cidade de São Paulo. Levantada e organizada pelo Eng. Civil Alexandre M.
Cococi e L. Fructuoso F. Costa, 1913.

Figura 99 – Projeto de reforma para acréscimo de uma sala de negócios na frente da casa existente,
para Pasqual Castello, à rua da Saracura Pequena, “junto ao n.60”.

Figura 100 – Projeto para construção de oficina de marcenaria e de cômodo para depósito de
móveis, certamente uma pequena manufatura de móveis, para Claudino Pontes, na rua da Saracura
Grande n.8 tinta.

Figura 101 – Projeto para acréscimo de oficina para escultura e depósito de “trabalhos”, na
sequência da casa existente, para Domingos Antônio Martins, na rua da Saracura Grande n.16.

Figura 102 – Projeto para reforma de sobrado, com transformação da sala instalada no térreo em
um armazém, de propriedade de Felippe Lollegio, à rua da Saracura Grande n.16 Tinta.

Figura 103 – Como é possível ver no recorte do mapa SARA Brasil, embora seu trajeto
acompanhe toda a extensão do loteamento do Morro dos Ingleses, a imensa área representada pelo
espaço vazio, entre a rua Almirante Marques Leão e a rua dos Franceses, define as diferenças
sociais de seus moradores.

Figura 104 – Nessa imagem da Planta SARA Brasil, vemos a rua Rocha, cujo trajeto se inicia na
Praça São Manoel (atual Praça 14 Bis) e avança pelo grotão, terminando na própria Almirante
Marques Leão.

Figura 105 – Projeto original, encaminhado à Diretoria de Obras em 30/12/1913, para a construção
das casas de Vicente Ferrara e Vicente Gentil, com espaço para armazém no alinhamento do
prédio. Em 10/12/1917, os proprietários renovariam a solicitação, agora para finalização das obras.

Figura 106 – O Estado de São Paulo, 05/06/1915.


Figura 107 – O Estado de São Paulo, 12/09/1917.

Figura 108 – Nesta imagem, localizada no Vale do Saracura Grande, as roupas nos varais e nos
quaradores demonstram a atividade das lavadeiras. c.1920.

Figura 109 – Nesta outra foto a cena se repete: roupas estendidas nos varais e postas a quarar na
encosta do vale. c.1920.

Figura 110 – Nesta imagem temos um típico armazém de secos e molhados no bairro do Brás
(1921).

Figura 111 – Feira-livre na rua São Domingos, c. 1915.

Figura 112 – Neste projeto, anterior ao Decreto 2141, de 1911, temos a localização da cocheira de
propriedade de Joaquim Antunes dos Santos. Com entrada pela rua Fortaleza, temos a cocheira
instalada no centro do terreno, distante 30 metros da rua Conselheiro Ramalho (à esquerda), e mais
de 8m da casa existente na esquina com a rua Rui Barbosa (à direita).

Figura 113 – Texto da Lei n. 2117, de 09/02/1918. Fonte: Câmara Municipal de São Paulo.

Figura 114 – Planta Geral da Cidade de São Paulo, 1905. Alexandre Mariano Cococi e Luiz
Fructuoso F. Costa.

Figura 115 – Planta da Cidade de São Paulo, 1916. Divisão Cadastral da Directoria de Obras e
Viação da Prefeitura Municipal.

Figura 116 – Espacialização conjectural das cocheiras no bairro do Bexiga, entre 1906 e 1923.
Planta SARA Brasil, 1930.

Figura 117 – Entregador de bebidas. Hildegard Rosenthal, c.1940.

Figura 118 – Carroças para entrega e/ou venda de verduras nas proximidades do Mercado central.
Hildegard Rosenthal, c.1940.

Figura 119 – Carroceiro. Hildegard Rosenthal, c.1940.

Figura 120 – Localização das cocheiras de Ignácio Mammana, nas ruas Conselheiro Carrão n.10 e
Maria José n.45.

Figuras 121 a e b – Projeto apresentado por Domingos Longo, em 17/05/1911, para a construção
de “casa com armazém no alinhamento e cocheira nos fundos do terreno, com sete baias”, na rua
Major Diogo n.83.

Figura 122 – Localização da cocheira de Domingos Longo, à rua Major Diogo.

Figura 123 – Projeto da cocheira construída por Victor Mammana em 1912, na rua Rui Barbosa
n.39.

Figura 124 – Localização da cocheira de Victor Mammana, à rua Rui Barbosa n.39. Observar no
lote destacado em laranja, à esquerda da planta, o Grupo Escolar Maria José.

Figura 125 – Projeto arquitetônico para a construção do sobrado de Carlos Biagini, onde
funcionou seu armazém de secos e molhados, à rua Santo Antônio n.156.
Figura 126 – Localização das propriedades de Carlos Biagini: o sobrado, no n. 156; a cocheira, no
número 153; e a casa no n.149.

Figura 127 – Projeto arquitetônico de 19/06/1913 (contendo planta baixa, fachada e elevação),
proposto por Domingos Albanez para o prédio a ser construído na rua São Domingos n.80.

Figura 128 – Localização da cocheira e da padaria de Domingos Albanez, à rua São Domingos
números 82 e 84.

Figura 129 – Localização da cocheira de João Ammirabile, à rua Rui Barbosa n.81.

Figura 130 – Localização da Padaria e Confeitaria Nova Suissa, de Honesto Cinquini, na


Av.Brigadeiro Luís Antônio, 151.

Figura 131 – O Estado de São Paulo, 26/09/1919.

Figura 132 – Projeto arquitetônico para a construção da casa de Thomaz Luppo, à rua Rui Barbosa
n.24, onde podemos observar a “entrada de carroças” na frente do terreno e a cocheira com três
baias nos fundos.

Figura 133 – Localização das cocheiras e negócios de Thomaz e Vicente Lupo, na rua Rui
Barbosa.

Figura 134 – Artigo 32, do Ato n.1426, de 26 de abril de 1920.

Figura 135 – O Estado de São Paulo, 16/01/1912.

Figura 136 – O Estado de São Paulo, 12/03/1913.

Figura 137 – O Estado de São Paulo, 09/08/1906.

Figura 138 – O Estado de São Paulo, 19/12/1914.

Figura 139 – O Estado de São Paulo, 22/12/1902.

Figura 140 – O Estado de São Paulo, 23/07/1913.

Figura 141 – O Estado de São Paulo, 29/10/1929.

Figura 142 – Algumas lavadeiras em atracadouro do rio Tamanduateí. Autoria: Marc Ferrez.

Figura 143 – Lavadeiras à beira do rio Tamanduateí, fotografadas por Guilherme Gaensly, em
1904.

Figura 144 –Vale da Saracura, provavelmente por ocasião dos preparativos para a abertura da
avenida Anhangabaú (atual Nove de Julho). Autoria desconhecida, 1926.

Figura 145 – Anúncio de 14/07/1923, para venda de carros importados da marca Buick, pela
Byington & Co.

Figura 146 – Anúncio da oficina mecânica Luthold & Benquet, associada à Garage Taxi Bloc, na
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 35, publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 29/10/1922.

Figura 147 – Peça publicitária da fábrica de Nicola Infante, discriminando os produtos produzidos
pela mesma, s/data.
Figura 148 – Fachada da Fábrica de Doces Bella Vista, na rua Major Diogo, s/data.

Figura 149 – Fachada do prédio da antiga Scatamacchia & Cia., na rua Major Diogo, tal como se
encontra nos dias atuais.

Figura 150 – Projeto contendo a fachada do prédio onde iria funcionar a tipografia da Casa
Mayença, à rua Santo Antônio, 9.

Figura 151 – Em primeiro plano, temos a rua João Adolfo; a Casa Mayença localizava-se
exatamente no prédio circundado em verde, à esquerda da foto, do outro lado da rua Santo Antônio,
1947.

Figura 152 – Projeto para a construção de salão para Pelliciotti, na Av. Brigadeiro Luís Antônio,
s/n.

Figuras 153 a e b – Fachada e planta baixa do sobrado com armazém no térreo a ser construído na
Av. Brigadeiro Luís Antônio n.50.

Figura 154 – Vista parcial da planta SARA Brasil, Fl.50.

Figura 155 – Vista parcial da planta SARA Brasil, Fl.51.

Figura 156 – Localização do complexo de cortiços Vila Barros, entre as ruas Santo Amaro, Jacareí
e Japurá (antiga Travessa Jacareí.

Figura 157 – Fachada do casarão onde, no início século XX, se instalaria o cortiço Vaticano.

Figura 158 – Este detalhe fornece uma vista parcial de um dos prédios que formavam o cortiço
Geladeira. À esquerda, parte do Navio Parado, onde se pode ver a área de circulação comum dos
moradores. Em segundo plano, à direita, temos os fundos do cortiço Vaticano. 1942. Benedito J.
Duarte e Antônio R. Muller.

Figura 159 – Fachada de casas do cortiço Pombal, voltadas para a rua Japurá; entre os dois prédios
observamos uma passagem para o interior do pátio interno do complexo. 1942. Benedito J. Duarte
e Antônio R. Muller.

Figura 160 – Vista dos fundos do Pombal, voltados para o pátio interno do complexo. 1942.
Benedito J. Duarte e Antônio R. Muller.

Figura 161 – Vista do cortiço Navio Parado, voltado para o pátio interno da Vila Barros. À direita
da imagem, acima do Navio Parado, casario da rua Santo Amaro. 1942. Benedito J. Duarte e
Antônio R. Muller.

Figura 162 – Detalhe do corredor de circulação interna do Navio Parado. 1942. Benedito J. Duarte
e Antônio R. Muller.

Figura 163 – Acima, a planta baixa da propriedade de Vicente d’Andrea, à rua São Domingos n.7.

Figura 164 – A planta demonstra uma série de quatro cômodos (de) “frente para Rua Rui Barbosa
nº 131”.
LISTAS DAS TABELAS

Tabela 1 – Solicitações de licença para novas edificações, entre 1881 e 1914. Fonte: Série Obras
Particulares, AHSP.

Tabela 2 – Tipologias, por número de cômodos, entre 1881 e 1914. Fonte: Série Obras
Particulares, AHSP.

Tabela 3 – Nacionalidades dos construtores que atuaram no bairro do Bexiga entre 1887 e 1914.
Fonte: Série Obras Particulares. AHSP.

Tabela 4 – Atividades desenvolvidas em 1906. Almanaque Laemmert, 1906. Fonte: Acervo Digital
FBN.

Tabela 5 – Atividades desenvolvidas em 1909. Almanaque Laemmert, 1909. Fonte: Acervo Digital
FBN.

Tabela 6 – Atividades desenvolvidas em 1914. Almanaque Laemmert, 1914. Fonte: Acervo Digital
FBN.

Tabela 7 – Atividades desenvolvidas em 1915. Almanaque Laemmert, 1915. Fonte: Acervo Digital
FBN.

Tabela 8 – Atividades desenvolvidas em 1918. Almanaque Laemmert, 1918. Fonte: Acervo Digital
FBN.

Tabela 9 – Atividades desenvolvidas no biênio 1922-23. Almanaque Laemmert, 1922-23. Fonte:


Acervo Digital FBN.

Tabela 10 – Atividades desenvolvidas em 1927. Almanaque Laemmert, 1927. Fonte: Acervo


Digital FBN.

Tabela 11 – Atividades desenvolvidas em 1931. Almanaque Laemmert, 1931. Fonte: Acervo


Digital FBN.

Tabela 12 – Segmentos industriais identificados no Recenseamento de 1920. Fonte: Bóris Fausto,


1981.

Tabela 13 – Cotejamento entre os segmentos industriais identificados na Estatística Industrial de


São Paulo – 1930 e os segmentos manufatureiros identificados no bairro do Bexiga (1906-1931).

Tabela 14 – Segmentos identificados no Almanach do Estado de São Paulo, 1890.

Tabela 15 – Segmentos identificados na Série Alvará e Licença, 1906-1908. Fonte: AHSP.

Tabela 16 – Projetos arquitetônicos indicadores dos usos dos imóveis. Fonte: Série Obras
Particulares, AHSP.

Tabela 17 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1909. Fonte: Acervo Digital FBN.

Tabela 18 – Segmentos identificados na Série Alvará e Licença (1909-1911). Fonte: AHSP.

Tabela 19 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1914. Fonte: Acervo Digital FBN.

Tabela 20 – Relação dos proprietários de automóveis no bairro do Bexiga, em 1914. Fonte: AHSP.
Tabela 21 – Porcentagem dos negócios que permaneceram na “área nobre” do Bexiga, entre 1914
e 1918. Fonte: Almanaque Laemmert, 1914 a 1917. Acervo Digital FBN.

Tabela 22 – Presença de José Tosto nas ruas do Bexiga, entre 1909 e 1923. Fonte: Acervo Digital
FBN.

Tabela 23 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1915. Fonte: Acervo Digital FBN.

Tabela 24 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1918. Fonte: Acervo Digital FBN.

Tabela 25 – Médicos com residência e/ou consultórios na “área nobre”. Fonte: Acervo Digital
FBN.

Tabela 26 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1922-23. Fonte: Acervo Digital


FBN.

Tabela 27 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1927. Fonte: Acervo Digital FBN.

Tabela 28 – Relação dos advogados com residência e/ou escritório na Av. Brigadeiro Luís
Antônio, em 1927. Fonte: Acervo Digital FBN; Acervo O Estado de São Paulo.

Tabela 29 – Profissionais da moda identificados no Almanaque Laemmert em 1927. Fonte: Acervo


Digital FBN.

Tabela 30 – Engenheiros identificados no Almanaque Laemmert em 1927. Fonte: Acervo Digital


FBN.

Tabela 31 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1931. Fonte: Acervo Digital FBN.

Tabela 32 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1906. Acervo Digital FBN.

Tabela 33 – Segmentos identificados na Série Alvará e Licença (1906-1908). Fonte: AHSP.

Tabela 34 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1909. Acervo Digital FBN.

Tabela 35 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1914. Acervo Digital FBN.

Tabela 36 – Profissionais da saúde, com residência estabelecida no loteamento original do Bexiga,


em 1914. Fonte: Almanaque Laemmert. Acervo Digital FBN.

Tabela 37 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1915. Acervo Digital FBN.

Tabela 38 – Porcentagem dos negócios que permaneceram na área abrangida pelo loteamento
original do Bexiga, entre 1914 e 1918. Fonte: Almanaque Laemmert, 1914 a 1918. Acervo Digital
FBN.

Tabela 39 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1918. Acervo Digital FBN.

Tabela 40 – Ocorrência de anúncios publicados no Almanaque Laemmert, entre 1909 e 1931, nas
ruas do loteamento original do Bexiga. Acervo Digital FBN.

Tabela 41 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1922-23. Acervo Digital FBN.

Tabela 42 – Estabelecimentos voltados ao setor de alimentação, conforme a ocorrência por rua do


loteamento original. Almanaque Laemmert, 1922-23. Acervo Digital FBN.
Tabela 43 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1927. Acervo Digital FBN.

Tabela 44 – Negócios que envolvem o comércio e a fabricação de calçados, no loteamento original


do bairro do Bexiga. Almanaque Laemmert, 1927. Acervo Digital FBN.

Tabela 45 – Médicos e dentistas com residência e/ou consultório no loteamento original do


Bexiga, Almanaque Laemmert. Acervo Digital FBN.

Tabela 46 – Advogados com residência e/ou escritório no loteamento original do Bexiga. Fonte:
Almanaque Laemmert. Acervo Digital FBN.

Tabela 47 – Profissionais vinculados ao setor da construção civil, no loteamento original do


Bexiga. Fonte: Almanaque Laemmert. Acervo Digital FBN.

Tabela 48 – Profissionais diretamente vinculados aos canteiros de obras. Fonte: Almanaque


Laemmert. Acervo Digital FBN.

Tabela 49 – Percetuais positivos e negativos identificados nos períodos envolvidos pelas


investigações. Fonte: Almanaque Laemmert. Acervo Digital FBN.

Tabela 50 – Mudanças e permanências no panorama produtivo do loteamento original do bairro do


Bexiga, em 1931. Fonte: Almanaque Laemmert. Acervo Digital FBN.

Tabela 51 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1931. Acervo Digital FBN.

Tabela 52 – Comportamento das atividades produtivas no decorrer do período investigado (1906-


1931). Fonte: Almanaque Laemmert. Acervo Digital FBN.

Tabela 53 – Farmácias localizadas no loteamento original do Bexiga, em 1931, e os supostos anos


de início de atividades. Fonte: Almanaque Laemmert. Acervo Digital FBN.

Tabela 54 – Área nobre X Loteamento original – setores produtivos que se destacaram ao final da
investigação (1931). Fonte: Almanaque Laemmert. Acervo Digital FBN.

Tabela 55 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert nos anos 1909, 1922-23, 1927 e
1931. Acervo Digital FBN.

Tabela 56 – Solicitações de licença para construção e/ou reforma de prédios localizados na área da
Saracura, entre 1900 e 1922. Fonte: Série Obras Particulares, AHSP.

Tabela 57 – Ocorrência de armazéns e quitandas, nos anos 1906, 1909, 1914, 1915, 1918, 1922-23,
1927 e 1931. Observe-se que esses números referem-se ao conjunto das áreas analisadas no bairro:
a “área nobre”, o loteamento original e a Saracura. Fonte: Almanaque Laemmert, Acervo Digital
FBN.

Tabela 58 – Percentual de armazéns e quitandas no bairro do Bexiga, entre 1906 e 1931. Fonte:
Almanaque Laemmert, Acervo Digital FBN.

Tabela 59 – Cruzamento dados da Série Alvará e Licença (1906-1914) e do Almanaque Laemmert


(1906-1931).

Tabela 60 – Listagem cocheiras (1905-1923). Fonte: Série Obras Particulares, AHSP.

Tabela 61 – Ocorrência de cocheiras por logradouros, entre 1905 e 1923. Fonte: Série Obras
Particulares, AHSP.
Tabela 62 – Histórico dos negociantes proprietários de cocheiras. Fonte: Séries Obras
Particulares e Alvará e Licença, AHSP; Almanaque Laemmert, Acervo Digital FBN.

Tabela 63 – Cocheiras, por número de baias (1905-1923). Fonte: Série Obras Particulares, AHSP.

Tabela 64 – Cocheiras com 7 ou mais baias. Fonte: Série Obras Particulares, AHSP.

Tabela 65 – Cocheiras, garages e empresas de transporte identificadas na cobrança do Imposto de


Comércio e Indústria, nos anos de 1923 e 1933. Fontes: Obras Particulares (AHSP) e Diário
Oficial do Estado de São Paulo (DOSP).

Tabela 66 – Histórico dos imóveis e negócios de membros da família Lupo, entre 1905 e 1923.
Fontes: Série Obras Particulares, AHSP; Almanaque Laemmert, Acervo Digital FBN.

Tabela 67 – Serviços pessoais e de saúde presentes no bairro do Bexiga, entre 1906 e 1931. Fonte:
Almanaque Laemmert, Acervo Digital FBN.

Tabela 68 – Solicitações à Diretoria de Obras com informações quanto ao número de operários


empregados. Fonte: Série Obras Particulares, AHSP.

Tabela 69 – Ocorrência das atividades manufatureiras identificadas entre 1906 e 1933, e os


segmentos que apresentaram acréscimos mais significativos em relação ao período, de acordo com
a Série Obras Particulares, o Almanaque Laemmert e o Imposto do Comércio e Indústria. Fontes:
Obras Particulares (1906-1923), Almanaque Laemmert (1906-1931), e Imposto do Comércio e
Indústria (1923 e 1933).

Tabela 70 – Oficinas mecânicas localizadas em ruas do Bexiga. Fonte: Almanaque Laemmert


(1911-1931) e Imposto do Comércio e Indústria (1923 e 1933).

Tabela 71 – Oficinas e manufaturas de maior porte. Fonte: Imposto do Comércio e Indústria, 1923
e 1933; Almanaque Laemmert, 1927 e 1931.

Tabela 72 – Espacialização dos endereços fornecidos no ato da realização do Boletim de


Ocorrência. Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.

Tabela 73 – Distribuição dos possíveis casos de habitações coletivas, por logradouros, conforme a
área de ocorrência. Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.

Tabela 74 – Casos de agrupamento de três ou mais pessoas de sexo, idade, nacionalidade e raças
diferentes num mesmo endereço, por período e área analisados. Fonte: Boletins de Ocorrência,
1911-12, 1914-15-1925. APESP.

Tabela 75 – Número de casos de convivência inter-racial e ínter-étnica no mesmo endereço, em


relação ao total de possíveis habitações coletivas, por período analisado. Fonte: Boletins de
Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.

Tabela 76 – Relação dos supostos moradores do cortiço Navio Parado, à rua Santo Amaro n.58.
Fonte: Boletins de Ocorrência, 1925. APESP.

Tabela 77 – Relação percentual entre o número de habitações coletivas sugeridas pelos Boletins de
Ocorrência e o total de atendimentos nos períodos investigados. Fonte: Boletins de Ocorrência,
1911-12, 1914-15-1925. APESP.

Tabela 78 – Distribuição das etnias e nacionalidades identificadas no bairro do Bexiga, nos três
períodos investigados. Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.
Tabela 79 – Participação de brasileiros e estrangeiros na composição da população
paulistana,1920. Fonte: EMPLASA.

Tabela 80 – Dados comparativos da participação de brasileiros e estrangeiros moradores no bairro


do Bexiga (1925) em relação à composição da população paulistana em 1920. Fonte: Boletins de
Ocorrência, APESP.

Tabela 81 – Distribuição da soma total de 1571 ocorrências nas quais estiveram envolvidas
diferentes etnias, pelas três áreas do bairro do Bexiga. Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-12,
1914-15-1925. APESP.

Tabela 82 – Ocupações dos moradores do Bexiga, identificadas nos Boletins de Ocorrência, em


1911-12, 1914-15 e 1925. Fonte: APESP.

Tabela 83 – Casos passíveis de serem interpretados como “trabalho fora do bairro”. Fonte:
Boletins de Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.

Tabela 84 – Modalidades em que se inseriram as causas das ocorrências médico-policiais no


Bairro do Bexiga, entre 1911 e 1925. Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925.
APESP.

Tabela 85 – Incidência de desastres envolvendo objetos “letais”. Fonte: Boletins de Ocorrência,


1911-12, 1914-15-1925. APESP.

Tabela 86 – Incidência de desastres envolvendo meios de transporte. Fonte: Boletins de


Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.

Tabela 87 – Ocorrência de tentativas de suicídio. Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-12, 1914-


15-1925. APESP.

Tabela 88 – Moradores do Bexiga que permaneceram no bairro por mais de 2 anos. Fonte: Boletins
de Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.
SIGLAS UTILIZADAS

 AHSP – Arquivo Histórico de São Paulo


 APESP – Arquivo Público do Estado de São Paulo
 BMMA – Biblioteca Municipal Mário de Andrade
 CMSP – Centro de Memória da Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da
Universidade de São Paulo
 COGEP – Coordenadoria Geral de Planejamento
 CONDEPHAAT - Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico,
Artístico e Turístico
 DPH – Departamento do Patrimônio Histórico
 EMURB – Empresa Municipal de Urbanização
 FAUUSP – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
 FBN – Fundação Biblioteca Nacional
 FPHES – Fundação Patrimônio Histórico da Energia e Saneamento
 LAP/FAU – Laboratório de Estudos sobre Urbanização, Arquitetura e
Urbanismo
 DIM – Divisão de Iconografia e Museus da Cidade de São Paulo
 EMPLASA - Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano S.A.
 IMS – Instituto Moreira Salles
 MP – Museu Paulista da Universidade de São Paulo
 OESP – O Estado de São Paulo (jornal)
 PMSP – Prefeitura Municipal de São Paulo
 SIRCA - Sistema de Registro, Controle e Acesso ao Acervo
 SMC – Secretaria Municipal de Cultura
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 24

CAPÍTULO 1 – O PERFIL MATERIAL DO BAIRRO RUA A RUA 62


1.1 Os loteadores 64
1.2 Os proprietários dos imóveis 66
1.3 Construção de um bairro: tipologias e programas edilícios no bairro do
Bexiga (1881-1914) 71
1.3.1 Identificação das tipologias e programas arquitetônicos predominantes 72
1.3.2 Implantação nos lotes 75
1.3.3 Tipologias edilícias 78
1.3.4 Os cortiços e/ou habitações coletivas 82
1.4 Os usuários 90
1.5 Os usos 92

CAPÍTULO 2 – INTERFACES BAIRRO-CIDADE: ATIVIDADES PRODUTIVAS


DIVERSIFICADAS E COTIDIANO DOS ESPAÇOS 102
2.1 A “face nobre” do Bexiga 108
2.2 A área do “loteamento original” 112
2.3 A “face pobre” do Bexiga: o Saracura 115
2.4 O universo investigado e as primeiras conclusões 120
2.5 A distribuição espacial das atividades produtivas, conforme a área de
Ocorrência 130
2.5.1 A “área nobre” 131
2.5.2 A área do “loteamento original” 197
2.5.3 O Vale da Saracura 252

CAPÍTULO 3 – ATIVIDADES PRODUTIVAS: ALGUNS CASOS


EXEMPLARES E SUAS RELAÇÕES COM A CIDADE 267
3.1 Atividades produtivas e o comércio de gêneros alimentícios de primeira
necessidade: armazéns, quitandas e casas de frutas 267
3.2 Cocheiras 275
3.2.1 As cocheiras e a lei 277
3.2.2 Localização e espacialização das cocheiras 284
3.2.3 As cocheiras identificadas 290
3.2.4 Alguns casos exemplares 298
3.3 Serviços 315
3.4 Oficinas e manufaturas 330

CAPÍTULO 4 – DIVERSIDADE SOCIAL NOS BOLETINS DE


OCORRÊNCIA 346
4.1 A espacialização das ocorrências 349
4.2 As possíveis habitações coletivas 353
4.3 Nacionalidades e etnias 366
4.4 Ocupações profissionais 370
4.5 Causas das ocorrências 378

CONSIDERAÇÕES FINAIS 397


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 407
FONTES CARTOGRÁFICAS 416
FONTES PRIMÁRIAS 418

ANEXOS 420
BEXIGA:
COTIDIANO E TRABALHO EM SUAS INTERFACES COM A CIDADE (1906-1931)

INTRODUÇÃO

Esta tese é, antes de tudo, fruto de um processo de amadurecimento pessoal


desenvolvido ao longo de quase trinta anos, desde o término da graduação em História na
FFLCH-USP, em 1981. Afastada da academia desde então, a retomada dos estudos em
2007 se deu a partir de uma feliz coincidência e oportunidade que despertou meu interesse
quase intuitivo sobre a arquitetura remanescente de antigos bairros da cidade, sobretudo do
bairro do Bexiga1. Hoje, atribuo os motivos para esse interesse aparentemente destituído de
sentido a um desejo de transcender o significado de morar, em direção de uma noção mais
profunda do que significa viver em um determinado espaço. Na introdução à primeira
edição de Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre2 elabora uma reflexão acerca de seu
objeto de estudo, que traduz esse sentimento:
Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos poucos nos completar: é
outro meio de procurar-se o “tempo perdido”. Outro meio de nos sentirmos nos outros –
nos que viveram antes de nós; e em cuja vida se antecipou a nossa. É um passado que se
estuda tocando em nervos; um passado que se emenda com a vida de cada um; uma
aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos (2003, p.44-
45).

As palavras do autor traduzem, de certa maneira, aquele sentimento que orientou


meus passos para a concretização dos projetos de pesquisa. Num primeiro momento – no
mestrado – quando, ao adentrar os espaços privados pude reconhecer (ao menos
parcialmente) o elo pessoal que restava esquecido no passado. Mas a busca pelo “elo
perdido” não se findou ali. As próprias respostas dadas pelas investigações demonstraram
que não se tratava apenas do espaço restrito ao âmbito doméstico, mas da interação
necessária entre ele e o meio circundante, meio este em que o calor da presença humana –

1
Em 2007 integrei a equipe do projeto de pesquisa em Políticas Públicas, “Arquivo Histórico Municipal
Washington Luís – A cidade de São Paulo e sua Arquitetura”, coordenado por Nestor Goulart Reis Filho e
Beatriz Bueno, que informatizou 30.000 desenhos arquitetônicos da Série Obras Particulares, do Arquivo
Histórico de São Paulo (disponível em: www.projetosirca.com.br). Este corpus documental fundamentou
minha dissertação de mestrado “Formação do bairro do Bexiga em São Paulo: loteadores, proprietários,
construtores, tipologias edilícias e usuários (1881-1913”, em 2010, e agora meu doutorado.
2
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 48ª Edição, São Paulo: Global, 2003.
ou das relações sociais – se mostrava essencial para a obtenção de respostas para as minhas
indagações.
Ainda que o longo afastamento da academia não tenha significado uma ruptura
radical com o “pensar” a história, muito dos fundamentos dados pelo conhecimento
historiográfico como que se dispersou nas trajetórias percorridas até a retomada, quando as
deficiências formais impostas pelo distanciamento temporal foram parcialmente reparadas
por um “instinto de busca” que guiou os passos em direção dos caminhos a serem
percorridos para se alcançar o objetivo final. Este foi um longo (e novo) aprendizado.
Enquanto explorava as possibilidades “instintivas”, a reaproximação do universo
acadêmico me proporcionou o resgate do “pensar” a história, permitindo uma abordagem
mais coerente do objeto de estudo, ao mesmo tempo que me situou no processo de
construção da escrita da história. Agora me parece claro que o que chamei de “instinto”
não é mais do que o reflexo do tempo do historiador, o qual, ao priorizar uma determinada
escala, sob um determinado ponto de vista, está reproduzindo inquietações próprias de seu
momento histórico.
O resultado final desse processo de indagações e busca de respostas está contido
nesta tese. Certamente o conjunto do trabalho não é uniforme, apresentando aqui e ali
falhas de interpretação ou mesmo lacunas. Contudo, carrega a certeza de ter alcançado seu
objetivo essencial. Dessa maneira, acredito ter recuperado um pouco daquele “tempo
perdido” referido por Gilberto Freyre, onde a reconstrução do “passado que se emenda
com a vida de cada um” ajude na compreensão do presente.

O título desta tese já diz muito acerca de minhas intenções. Trata-se, antes de tudo,
de compreender o significado de um determinado espaço urbano em relação ao contexto
mais amplo em que ele está inserido, a cidade. No entanto, ainda que o objeto de estudo
seja o microcosmo de um bairro, acredito que qualquer tentativa de compreensão de um
espaço destacado do todo tem grandes chances de redundar em visões distorcidas da
realidade que se pretende conhecer. Parti de premissas abordadas por Bernard Lepetit
(2001). A primeira se refere à construção de um modelo reduzido do objeto de análise,
onde “o conhecimento do todo precede o das partes” (2001, p.213). Em sintonia com essa
ideia, outra premissa de Lepetit se refere à utilização de diferentes escalas no estudo do
território, onde a escolha de uma dimensão não exclui a importância da outra já que ambas
respondem a pontos de vista diferentes, porém complementares (2001, p.215-216). Neste
caso, o pano de fundo do trabalho é dado por um processo comum às duas escalas, a macro
e a micro. Sob o ponto de vista da história urbana, a primeira escala fornece as dimensões
políticas e econômicas e culturais que incidiram sobre a tessitura material e social do
espaço da cidade como um todo, em um determinado período. Já a escala micro, ao focar
um bairro específico, procura expor de que maneira aquele espaço vivenciou o processo
maior, e como os traços que lhe são peculiares – sua composição étnica e social e material,
por exemplo – incidiram sobre a escala macro, num movimento de contínua interação.
Assim, para pensar o microcosmo de um bairro é necessário que se lance o olhar em
direção ao espaço maior e ao processo que engendrou sua existência para depois retornar
ao objeto inicial.
Para o estudioso da história urbana tão importante quanto apreender o significado
do processo de construção do cenário material é compreender as práticas sociais
estabelecidas entre os atores que viabilizaram a consolidação do bairro e em que medida
suas ações interferiram no meio. Ao privilegiar um determinado território forçosamente
aproximamos nosso olhar dos sujeitos que deram feições ao lugar, mesmo que não seja
possível alcançar a totalidade dessa ação. Nesse sentido é necessário pensar questões
historiográficas acerca dos diferentes pontos de vista assumidos por quem tem o espaço
urbano como objeto, para o que retomamos Bernard Lepetit:
A questão dos atores dissolve-se no postulado da indiferenciação de identidades
culturais partilhadas de que apenas a escala (ou seja, a identificação dos limites
dos grupos que a partilham) está por determinar. A natureza das relações entre a
representação e a ação, embora não explicitada está contida nessa definição.
Representação e ação pertencem a esferas separadas: de um lado há normas,
valores, categorias que dão sentido ao mundo; e, de outro, comportamentos e atos
que os instrumentalizam [...] Por simetria, nessas condições, a ação possui, em
relação à representação, o estatuto de sinal ou índice (Lepetit, 2001, p.233, grifo
nosso).

Entendo que a afirmação do autor não exclui a esfera das representações da esfera
das ações, mas sim que ambas se complementam. A ação, ao colocar em relevo o
comportamento de um determinado grupo social, está colocando em evidência a “reação”
deste grupo às normas e valores dados pelas mentalidades subjacentes àquele momento
histórico.
Por outro lado, a escala em que esse movimento se insere associa-se à outra de
dimensões mais amplas da mesma realidade, aquela do contexto macro. É como se a partir
de diferentes movimentos intercalados e conectados – ora de aproximação e recuo da lente
micro e macroscópica sobre o objeto de estudo a partir da mesma posição, ora a partir da
mudança de nossa própria posição/perspectiva – fosse possível obter um conjunto mais
coerente da realidade que se pretende compreender.
No caso do Bexiga, penso o bairro como resultado de um processo político e
econômico mais amplo pelo qual passava o país desde a segunda metade do século XIX,
com o desenvolvimento da economia cafeeira e a inserção do estado de São Paulo no
mercado exportador, envolvendo a Abolição da Escravidão, a instauração da República e a
readequação das práticas urbanas de acordo com os parâmetros europeus de urbanização e
industrialização. Simultaneamente à entrada de novos atores na cidade, iniciativas
orientadas por um zoneamento e especialização de usos e funções explícitos e implícitos na
legislação foram adotados com o objetivo de adequar a cidade ao novo papel. Nesse
rearranjo, na colina histórica e áreas lindeiras se mantiveram ainda por algum tempo a
coexistência de usos residenciais e atividades produtivas, os quais ficaram restritos a
pessoas condizentes com o espaço reconstruído ao longo das primeiras décadas do século
XX e envolvidas no exercício de atividades distintivas bastante especializadas. Esse foi o
caso de serviços como restaurantes, hotéis, cafés, confeitarias, charutarias, etc, do
comércio de artigos de luxo, de máquinas importadas para a lavoura e indústria, de artigos
de trabalho para profissionais especializados, além das instituições da administração
pública, escritórios e consultórios de profissionais liberais e sedes de instituições
financeiras como os bancos (Barbuy, 2006). Num movimento de clara gentrificação, foram
deslocadas do centro parte das moradias e dos segmentos do comércio de gêneros
alimentícios, bem como oficinas, depósitos e fábricas e serviços menos nobres em direção
aos bairros vizinhos ao perímetro central. Nesse contexto, em função da demanda,
surgiram empreendimentos imobiliários de loteamentos destinados a abrigar moradores e
atividades produtivas essenciais à cidade em expansão, dando origem a novos bairros,
sendo o Bexiga um caso exemplar desse fenômeno (Schneck, 2010).
Enquanto o processo de transformação modernizadora se operava com a
consolidação dos novos espaços/bairros e suas correspondentes funções, no decorrer do
século XX assistimos à construção de uma certa história, onde alguns estereótipos foram
dados como traços determinantes da metrópole: a cidade ordenada (legal e espacialmente)
segundo preceitos ideais, visto que resultante do correto modelo europeu; a cidade
convenientemente branqueada pela presença do imigrante (também) europeu,
principalmente o italiano; a cidade cosmopolita, onde a coexistência de diferentes culturas
supostamente lhe conferia um caráter democrático e, por extensão, oportunidades iguais
para todos; a cidade dinâmica, onde o valor do trabalho, definido pela máxima “São Paulo
não pode parar”, funcionaria como o motor propulsor do progresso do país; enfim, uma
cidade moderna representada pelo espaço público adequado às suas (novas) necessidades e
pela arquitetura imponente de edifícios públicos e privados. Contudo, a manutenção desses
predicados no imaginário urbano tem como consequência funesta a perpetuação de
preconceitos geradores de práticas sociais excludentes. Ao mesmo tempo, e até em
consequência disso, alimentam outro processo funesto que é o ressentimento (inconsciente)
da maioria daqueles que estão envolvidos nessa lógica perversa de exclusão – as camadas
mais pobres da população (Bresciani & Naxara, 2004).
No caso específico do Bexiga, o legado transmitido por essa historiografia ao
imaginário contemporâneo, consagrou o bairro como um espaço essencialmente popular,
cuja população majoritariamente italiana vivia nos inúmeros cortiços construídos ao longo
de suas ruas. Ainda que sejam poucos os trabalhos a abordarem a história do bairro, a
imagem fornecida por eles frequentemente confirma, se não todos, quase todos esses
estereótipos3. Entre os autores que tiveram o Bexiga como objeto de análise, destaco
principalmente os trabalhos de Nádia Marzola (1979) e do memorialista Haim Grünspun,
cujo livro foi publicado no mesmo ano. Nádia Marzola, ainda que não tenha se proposto a
realizar “um trabalho ‘científico’, mas apenas uma coletânea de tudo o que foi dito e
escrito a respeito da Bela Vista” (1979, p.15, grifo nosso) – e talvez até por isso –
referendou lugares-comuns acerca do bairro. É o que demonstram as afirmações feitas pela
autora, ainda na introdução do livro, acerca da “homogeneidade das casas” e sobre a Bela
Vista ter sido, “ao lado do Brás, o bairro dos italianos” (1979, p.16). O termo
homogeneidade ali utilizado coloca em destaque um conceito que no decorrer do trabalho
confere a todas as instâncias constitutivas do bairro um caráter de uniformidade social,
étnica, arquitetônica e funcional. Embora essas características tenham permeado a
realidade do bairro, o resultado de minhas investigações demonstra que nunca foram
realmente definidoras daquele espaço. Em termos das funções urbanas exercidas pelo
Bexiga, encontra-se ali uma profusão de atividades produtivas envolvendo manufaturas,
comércio diversificado e prestação de serviços, cuja utilidade certamente extrapolou os
limites e as necessidades do bairro. Já pensando nas ocupações profissionais dos
moradores do bairro, de acordo com o memorialista Haim Grünspun,

3
A bibliografia sobre o bairro constitui-se basicamente dos seguintes trabalhos: MARZOLA, Nádia. Bela
Vista, In História dos bairros de São Paulo, v.15, SMC/DPH, 1979; GRÜNSPUN, Haim. Anatomia de um
bairro. O Bexiga, São Paulo: Livraria Cultura Editora, 1979; LUCENA, CéliaToledo. Bixiga, amore mio,
São Paulo: Pannartz, 1983; GONTIER, Bernard. Bexiga, São Paulo: Mundo Impresso/Pontes Editores, 1990;
e MORENO, Julio. Memórias de Armandinho do Bixiga, São Paulo: Editora SENAC, 1996.
Os homens do Bexiga em sua maioria não tinham vínculos empregatícios como os
operários nas fábricas da Lapa, Brás, Mooca ou Bom Retiro. Nem queriam muito
este vínculo; portanto, passavam longos dias sem trabalho. Além dos ótimos
artesãos, que também passavam longos períodos de ócio em seu trabalho, os
homens do Bexiga eram igualmente tarefeiros [...] (1979, p.37, grifo nosso).

Diferentemente do que foi sugerido pelo autor, encontrei homens e mulheres


engajados no mercado de trabalho, não apenas no próprio bairro, mas também em outras
áreas da cidade. Tratava-se sobretudo de ocupações não qualificadas, caso dos
trabalhadores da construção civil, dos prestadores de serviços de transporte, dos serviços
domésticos, etc. De outro lado, não foram tão raros os exemplos de profissionais liberais
que utilizaram o bairro como local de moradia, enquanto trabalhavam nas ruas centrais da
cidade.
Realmente, a identificação dos usuários das casas construídas no bairro e dos
negociantes ali radicados, assim como dos usuários dos serviços médicos associados às
Delegacias de Polícia, confirmaram o predomínio do italiano sobre as demais etnias, sem
contudo ignorá-las. Embora liderada pela comunidade italiana, a composição étnica do
bairro envolveu um número significativo de portugueses, espanhóis, sírios e libaneses, mas
também, e principalmente, brasileiros brancos e negros. No caso destes últimos, são quase
inexistentes as referências historiográficas tradicionais acerca da sua presença no bairro.
Tal situação leva a pensar sobre o êxito, mesmo que parcial, do ideário europeizante e
branqueador desenvolvido ao longo do século XX, cujo legado predominante parece ser a
“invisibilidade”. A confirmação dessa assertiva é dada pela imprensa da época, onde as
referências raciais quase sempre associam a cor dos sujeitos a comportamentos desviantes
(traição, embriaguez e agressões), quando não como agente causador, como vítima.
Na arquitetura, de acordo com o trabalho desenvolvido por Célia Toledo Lucena,
numa linha semelhante àquela de Nádia Marzola,
Os calabreses, que foram comprando seus lotes e quintas nas baixadas do Bexiga,
projetaram suas residências, esses conhecidos por “capomastri”, construtores italianos,
que desenhavam o sobrado com a ponta do guarda-chuva em terra batida no chão [...]
Surgiram as casas geminadas, a maioria com três a quatro andares, enriquecidas por
sacadas e floreiras [...] A arquitetura típica dos italianos foi misturada aos modismos da
época. A partir de 1914, as ruas iam sendo calçadas e mostrando fachadas “compoteiras”,
onde traços neoclássicos se misturavam ao barroco colonial, formando o decantado
“estilo macarrônico” (Lucena, 1983, p.86, grifo nosso).
Em grande parte praticada por capomastri não exclusivamente italianos (Schneck,
2010), a edificação das casas do bairro obedeceu antes de tudo à normatização imposta
pelo poder público. Por outro lado, distante da uniformidade das “casas operárias”, o bairro
apresentou uma diversidade de tipologias edilícias que serviram a diferentes camadas
sociais, demonstrando a coexistência entre segmentos sociais distintos. Imóveis térreos e
sobrados, geminados ou em série, de uso misto ou exclusivo dão uma textura bastante
heterogênea à volumetria da área que salta aos olhos quando analisamos a iconografia com
olhos de ver, sem pré-conceitos e preconceitos.
Diante de afirmativas como essas descritas acima, um dos objetivos desta tese é
justamente desmistificar esses estereótipos relacionados ao Bexiga como um bairro
homogêneo social, étnico, arquitetônico e funcional, assumindo como premissa a ideia da
diversidade e elucidando as facetas várias de uma área nem exclusivamente italiana e
tampouco “encortiçada” e “operária”.
Se o processo de pensar o passado de um território está intimamente relacionado ao
que esperamos de seu presente, acredito que antes de mais nada é necessário rever a
memória que possuímos desse lugar, mesmo sabendo que estamos sujeitos aos valores do
momento histórico dessa desconstrução.
Embora meu objeto de estudo seja um território determinado, a complexidade da
cidade de São Paulo exige que não se perca de vista as demais partes desse todo, pois trata-
se de um processo em que cada espaço da cidade representou seu papel, o qual ao mesmo
tempo em que específico é complementar aos demais. Tendo em vista o referencial teórico
que privilegia a micro escala, o diálogo com autores que abordaram a história da cidade de
São Paulo de diferentes pontos de vista foi importante na medida em que forneceu o
contraponto e complemento para a compreensão de meu próprio objeto de trabalho.
A metodologia aqui adotada relaciona-se a uma linha de pesquisa em História da
Urbanização em interface com a História da Cultura Material que vem sendo delineada no
Museu Paulista-USP por Heloísa Barbuy (2006) e na FAUUSP por Beatriz Bueno (2005,
2008 e 2015) e seus orientandos que em muito se aproxima daquela desenvolvida por
Bernard Gauthiez4 em seus estudos sobre a cidade de Lyon. Trata-se de uma linha de
estudos que privilegia o “grão fino”, o lote a lote, o imóvel comum, e a partir dos

4
Tomei como referência os trabalhos realizados em 2008 e 2014: GAUTHIER, Bernard. Lyon em 1824-32:
um plan de la ville sous forme vecteur d’aprés le cadastre ancien. In Géocarrefour, v.83, 1/2008 ; e
GAUTHIER, Bernard & ZELLER, Olivier. Lyons, the spatial analysis of a city in the 17th and 18th centuries.
Locating and crossing data in a GIS built from written sources. In S. Rau and E. Schönherr (eds.), Mapping
Spatial Relations, Their Perceptions and Dynamics, Lecture Notes In Geoinformation and Cartography,
DOI: 10.1007/978-3-319-00993-3_5, Springer International Publishing Switzerland, 2014.
elementos que compõem 90% da tessitura urbana reconstitui as lógicas de produção e
apropriação social dos espaços. Para tanto, a metodologia consiste em mobilizar e cruzar
dados oriundos de séries documentais variadas – impostos, censos, permissões de
construção e reforma de prédios, anuários estatísticos, artigos de jornais, etc – devidamente
espacializados na cartografia e iconografia coeva. As informações coletadas nessas fontes
geram tabelas e mapas temáticos georreferenciados que permitem leituras inusitadas
referentes ao processo e as dinâmicas de produção e reprodução social dos espaços, pondo
luz nos atores envolvidos na longue durée. Por meio do SIG (Sistema de Informação
Geohistórica)5 são produzidas cartografias regressivas das diversas camadas que se
sobrepõem na tessitura urbana de modo a acompanhar as permanências, alterações e seus
ritmos. Dessa maneira, esses autores vêm conseguindo alcançar um nível de detalhamento
de filigranas que hoje permitem nuançar narrativas reiteradas que mereceram estatuto
historiográfico. Ao investigar fontes documentais que contemplam direta ou indiretamente
variadas instâncias da vida urbana na sua dimensão material e cotidiana mais comum (no
sentido “corriqueira”) – como as permissões de construção e reforma de prédios, atividades
profissionais divulgadas nos almanaques, impostos sobre propriedades e atividades
produtivas, Boletins de Ocorrência, etc – é possível visualizar espacializadamente um
panorama social, profissional e material de outra forma invisível, sem o qual fica difícil
historicizar o significado de uma determinada área para a cidade como um todo.
Em sentido oposto, sobretudo ao verticalizar o olhar, essa linha de trabalho na qual
me insiro complementa, corrobora certas teses mas também desmistifica outras delineadas
por uma historiografia de perfil mais horizontal e panorâmico com foco mais nos aspectos
de conjunto que nas filigranas do prédio comum e das ações individuais corriqueiras.
A São Paulo do século XIX e primeiras décadas do XX só muito recentemente vem
merecendo a atenção de pesquisadores. Em função do seu processo voraz de
transformação, arquitetos e urbanistas envolvidos com a docência e as instituições voltadas
à preservação do patrimônio histórico recém-constituídas (COGEP, CONDEPHAAT,
DPH), iniciaram o inventário e o paralelo estudo da história dos edifícios e da tessitura que
compunha o grosso da urbe paulistana. Em fevereiro de 1976, Benedito Lima de Toledo
publicou no Suplemento do Centenário do jornal O Estado de São Paulo a “primeira
5
SIG (ou GIS), conforme a definição fornecida pelo site www.geologo.com, “é um sistema informatizado
para captura, armazenamento, verificação, integração, manipulação, análise e visualização de dados
relacionados a posições na superfície terrestre”. Disponível em: http://www.geologo.com.br/GIS-
EDUMELO.ASP. Consulta em: 20/01/2016. SIG (ou GIS), conforme a definição fornecida pelo site
www.geologo.com, “é um sistema informatizado para captura, armazenamento, verificação, integração,
manipulação, análise e visualização de dados relacionados a posições na superfície terrestre”. Disponível
em: http://www.geologo.com.br/GIS-EDUMELO.ASP. Consulta em: 20/01/2016.
versão” do texto que viria a ser publicado em 1981 sob o título São Paulo: três cidades em
um século. Neste livro, a partir de imagens produzidas por pintores e fotógrafos, o autor
mostrou retrospectivamente o rápido processo de transformações arquitetônicas e
urbanísticas ocorrido na cidade ao longo dos seus três séculos de vida, discutindo como
esse processo implicou a destruição e reconstrução de edifícios e do próprio traçado urbano
num curto período de tempo, destruindo e apagando do imaginário coletivo reiteradamente
a sua memória. Essenciais nesses estudos, iconografia e a cartografia antigas foram
amplamente inventariadas desde então, fundamentando análises dos diversos espaços
representativos de São Paulo, com ênfase sobretudo nas grandes obras, nos bairros das
elites, nos grandes arquitetos, nas importantes instituições, ou seja, naquilo que se
mostrava mais evidente. Na contramão, destacam-se os estudos de Carlos Lemos que desde
cedo elegeram a casa comum como tema – Cozinhas, etc. (1976), Alvenaria Burguesa
(1985), Casa paulista (1999) e A República ensina a morar (melhor) (1999). Nesses livros,
ao descrever as alterações nos materiais, técnicas e sistemas construtivos nas edificações,
atentou para as mudanças nos modos de morar, nos programas de necessidades e nas
linguagens estéticas adotadas, analisando os contextos em que se inseriam tais mudanças
em perspectiva histórica. Seu foco na arquitetura comum esboçou um caminho possível
para a pesquisa de outros investigadores, linha na qual se enquadra esta tese.
O livro Cozinhas, etc. propõe o estudo das soluções desenvolvidas na casa popular
“para ver como as funções da habitação foram e estão sendo exercidas no espaço
arquitetônico”. Alvenaria Burguesa discorre sobre a prática da arquitetura, o uso dos
materiais, das técnicas e dos sistemas construtivos em São Paulo, desde seus primórdios
até a modernização da cidade e a introdução de novas linguagens estéticas. Por fim, em A
República ensina a morar (melhor), o autor analisa “como a legislação republicana
interferiu [...] no planejamento de novas residências [...]”, através dos Códigos de
Posturas (1886) e do Código Sanitário (1894), todos feitos com o intuito de normatizar as
construções conforme os preceitos de higiene então vigentes.
Com foco no urbanismo e no processo de urbanização em seu conjunto, Nestor
Goulart Reis Filho contribuiu particularmente para a compreensão do processo de mudança
na tessitura urbana. Seu livro Quadro da arquitetura no Brasil (1970) analisa o urbanismo,
desde a colônia até meados do século XX, as mudanças na lógica de implantação dos
edifícios no lote urbano e seu papel na configuração de quadras e ruas. Cabe ressaltar que
os estudos de natureza ensaística elaborados pelo autor que resultaram nesse livro foram
pioneiros no sentido de apontar a “interdependência entre os modelos de arquitetura
urbana utilizados no Brasil e as estruturas das cidades em que estão inseridos” (1970,
p.10). Em São Paulo e outras cidades (1994), Nestor Goulart Reis – mais uma vez para
jornal – aprofunda suas considerações acerca da relação entre arquitetura e cidade e, ao
mesmo tempo, destaca a importância do patrimônio ambiental para a compreensão da
evolução urbana:
Nas obras e nas formas de sua produção e uso, é possível compreender as condições de
vida e as etapas de evolução das cidades. O espaço organizado e construído configura, em
boa parte, as relações sociais.[...] Há sempre tendência de se valorizar as grandes obras
do passado – e mesmo do presente – em função de seu uso. Isto é, ignoram-se as condições
de produção social de cada uma delas. [...] Tanto para o historiador como para o
sociólogo, estudar as condições sociais de produção da obra significa procurar conhecer
todos os aspectos que viabilizaram a sua realização: técnicos, financeiros,
macroeconômicos, microeconômicos, de uso e de valor (1994, p.9 a 11, grifo nosso).

Em Habitação popular no Brasil: 1880-1920 (1994), Nestor Goulart contempla as


formas de morar das camadas baixas da população. Ao apresentar as condições precárias
encontradas após a Abolição da Escravidão, onde os centros urbanos como São Paulo e
Rio de Janeiro careciam de infraestrutura adequada para o abrigo de imigrantes e negros
libertos, o autor revela como as cidades lidaram com a questão sanitária e a carência de
moradias: de um lado, as autoridades municipais republicanas efetuando reformas
urbanísticas excludentes e de outro o incremento do mercado imobiliário para a construção
de casas de aluguel. No artigo o autor põe luz em preciosa documentação iconográfica
inédita, a série de fotos realizadas por Geraldo Horácio de Paula Souza para a Secretaria de
Higiene que hoje integra a coleção da Faculdade de Saúde Pública. Já em São Paulo, Vila,
Cidade e Metrópole (2004), também através da documentação iconográfica e cartográfica
exaustivamente levantada, Nestor Goulart Reis descreve como, ao longo de sua história, a
cidade se transformou materialmente, adequando-se às possibilidades dadas pela
topografia, adaptando-se às contingências políticas e econômicas, ultrapassando barreiras
físicas impensáveis e redesenhando-se quando isso se tornou possível e necessário.
A importância dos trabalhos de Nestor Goulart Reis se deve especialmente ao fato
de o autor representar, ao lado de Carlos Lemos e Benedito Lima de Toledo, a “primeira
geração” a pensar, cada um à sua maneira, arquitetura e cidade como parte de um mesmo
processo. De outro lado, simultaneamente ao trabalho acadêmico, e até como extensão do
mesmo, vinculou a preservação do patrimônio edificado à evolução urbana,
desempenhando papel relevante na conceituação de políticas preservacionistas por ocasião
de sua atuação no CONDEPHAAT e na EMURB, entre os anos 1970 e 1980. É na
perspectiva sistêmica proposta pela linha dos estudos de história da urbanização
desenvolvidos por Nestor Goulart, que articulei a micro-escala do bairro do Bexiga e dos
imóveis à escala da cidade, e desta à Província/Estado e ao mundo industrializado.
Nessa direção, trabalhos que privilegiaram a história de bairros foram os pontos de
partida para pensar essa articulação. Desde 1968, o Arquivo Histórico de São Paulo,
através de concurso de monografias sobre a História dos Bairros de São Paulo6, vem
publicando trabalhos que contemplam a trajetória de diferentes espaços da cidade, caso do
já citado volume Bela Vista, de Nádia Marzola. A coleção revela faces invisíveis de uma
cidade em transformação, como ocorreu com Higienópolis: grandeza de um bairro
paulistano (1980), de Maria Cecília Naclério Homem. No livro, a autora analisou a
formação do bairro de Higienópolis, como produto do empreendedorismo de Victor
Nothmann em parceria com Martinho Buchard, no processo de expansão territorial e
modernização de São Paulo. Espaço ocupado sobretudo pela elite cafeeira, industriais e
famílias estrangeiras influentes, o bairro caracterizou-se por aspectos arquitetônicos e
urbanísticos distintivos: o uso exclusivamente residencial das edificações ecléticas, cuja
implantação nos lotes (com recuos frontais e laterais) obedecia aos preceitos modernos do
bem morar e a eficiente legislação municipal; a presença de benfeitorias tais como água,
esgoto, iluminação, ruas largas e calçadas, passeios e linhas de bonde para o transporte
público. Cabe ressaltar que em 2011 o livro ganhou uma reedição, revista e ampliada, à luz
das transformações ocorridas nas últimas três décadas, que implicaram no declínio e na
posterior revitalização que Higienópolis sofreu nesse período7. Além da atualização
temporal do movimento transformador, a introdução de anexo digital contendo
informações relevantes – como o Zoneamento aplicado ao Bairro em 1887 e os
Levantamentos de Gabaritos de Altura de 1979 e 2004, por meio dos quais é possível
perceber a distribuição espacial de usos e o adensamento sofrido por Higienópolis –
alargou as possibilidades analíticas do texto. Assim, até pelo fato de o estudo de Naclério
Homem abordar um bairro aristocrático diametralmente oposto ao caráter popular do
Bexiga, acredito que a identificação e o contraste das diferenças entre as duas áreas
permita refletir sobre o papel complementar que esses espaços representaram no processo
urbanizador da cidade de São Paulo em outros tempos.

6
O Concurso de Monografias sobre a História dos Bairros de São Paulo foi instituído pela Lei n. 8.248, de 7
de maio de 1965. Disponível em:
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/arquivo_historico/publicacoes.
7
HOMEM, Maria Cecília Naclério. Higienópolis: grandeza de um bairro paulistano, 2ª Ed. revista e
ampliada, São Paulo: EDUSP, 2011.
Nos anos 1980-1990 foram lançados novos trabalhos que ampliaram as
perspectivas de análise e compreensão da história da cidade de São Paulo, problematizando
questões pinceladas até então. Trata-se daquela que eu chamaria de “segunda geração” de
autores que pensaram o espaço urbano sob uma perspectiva mais ampla, identificando as
conexões entre as diferentes instâncias da vida pública e privada: legal, política,
econômica, social e cultural. Esse é o caso da tese e depois livro A cidade e a lei:
legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo (1997) de Raquel Rolnik,
na qual a autora analisa de que maneira a legislação urbanística, concebida entre as últimas
décadas do século XIX e primeiras do século XX, determinou a forma de ocupação e usos
dos espaços urbanos, e como os vínculos entre a municipalidade e os interesses das classes
dominantes e da iniciativa privada terminaram por gerar desigualdades sociais definitivas
para os destinos de São Paulo. Na medida em que o poder público representava a
oligarquia política do estado, os padrões urbanísticos estabelecidos para a ocupação do
espaço público e privado correspondiam aos interesses das mesmas. No entanto, o controle
da aplicação efetiva da lei restringia-se ao espaço estritamente urbano, o que significa dizer
que procedimentos que não seriam tolerados ali, o seriam fora dali. Conforme Rolnik, “os
territórios populares ocupavam um espaço ambíguo”, que consistia na “criação, dentro
da ordem legal, de uma possibilidade de escapar da lei, definindo um espaço – a área
suburbana e mais tarde a área rural – em que isso poderia acontecer, sem ficar,
entretanto, sob a responsabilidade do estado” (2003, p.59, grifos nossos). Dessa maneira,
legitimava-se (na prática) as formas de moradia populares, ao mesmo tempo que “se
garantia a rentabilidade do investimento imobiliário independente da faixa de renda a que
se destinava”8, processo este que resultou no estabelecimento de áreas de “obscuridade
social” – os territórios negros e os bairros populares de imigrantes. Hoje, as questões
colocadas por Rolnik são fundamentais para pensarmos a cidade que temos, pois ao mesmo
tempo que auxiliam a compreensão do presente através do passado, impõem novas
indagações acerca das mudanças e permanências através do tempo histórico.
Eva Blay em Eu não tenho onde morar. Vilas operárias na cidade de São Paulo
(1985) e Nabil Bonduki em Origens da habitação social no Brasil (1998), assim como
Raquel Rolnik, fazem parte da geração que refletiu sobre as implicações mais profundas
das políticas urbanas brasileiras levadas a cabo no decorrer do século XX. Enquanto

8
ROLNIK, Raquel – “Para além da Lei: legislação urbanística e cidadania (1886-1936”. In SOUZA, Maria
Adélia A. et al. (Org.). Metrópole e Globalização – Conhecendo a cidade de São Paulo. São Paulo:
Editora CEDESP, 1999. Disponível em: http://docplayer.com.br/7918703-Para-alem-da-lei-legislacao-
urbanistica-e-cidadania-sao-paulo-1886-1936-1.html. Consulta em: 18/01/2016.
Rolnik se empenhou na análise dos efeitos, a curto e a longo prazo, das práticas
urbanísticas oficiais na consolidação e perpetuação dos territórios “informais” na cidade,
aqueles autores estenderam suas considerações à questão da habitação popular. Bonduki,
sob uma perspectiva multidisciplinar em que alia o conhecimento acadêmico da arquitetura
e do urbanismo à prática profissional e política, investigou como, a partir do momento em
que a carência de moradias se torna um problema efetivo para o poder público, desde fins
do século XIX gradativamente o Estado passou a interferir na questão habitacional, seja
indiretamente num primeiro momento através da legislação urbanística – via higienismo –,
seja de forma incisiva a partir da Era Vargas, nos anos 1940, quando passou a intervir no
mercado de locação via Lei do Inquilinato (1942) e da posterior produção direta de
conjuntos habitacionais populares via Institutos de Aposentadoria e Pensões.
O livro de Eva Blay, Eu não tenho onde morar, escrito a partir de investigação
documental e pesquisa oral junto dos trabalhadores atuantes nos anos 1980, sob uma
perspectiva assumidamente sociologica, se concentra no estudo das vilas operárias
enquanto formas de habitação determinadas pelo sistema capitalista. Seja quando
construídas com fins locatícios por empreendedores particulares – caso de profissionais
liberais, pequenos negociantes, industriais, fazendeiros, etc –, seja quando feitas pelas
“Mútuas” (companhias especialmente constituídas com esse fim), seja quando sua
construção esteve vinculada às indústrias como “vilas operárias”. Para desenvolver o
trabalho Eva Blay retomou o contexto histórico em que esse tipo de construção se efetuou.
Para tanto, abordou questões cruciais, tais como a produção das “vilas operárias e o
processo de industrialização”, quando ainda no decorrer do século XIX ocorreram as
primeiras iniciativas no sentido de utilizar a moradia como forma de “atrair e reter a força
de trabalho”, bem como a “politização do espaço urbano”, desde o momento em que os
surtos epidêmicos da varíola são agravados pela carência de moradias levando o poder
público a adotar medidas sanitaristas, até as primeiras discussões acerca da conveniência
de uma intervenção mais incisiva, através de uma Lei do Inquilinato (1890-1920). A autora
focalizou também “a pressão do aluguel sobre os conflitos das relações de trabalho”,
colocando a questão moradia do ponto de vista dos movimentos operários nos anos 1910
como forma de pressão - de locadores de um lado e empregadores de outro: “pressionado
pelo aluguel o trabalhador vê reduzida sua possibilidade de barganha por um salário
melhor, pois está sempre sujeito, em caso de greve, a não poder pagar o aluguel” (1985,
p.123). Por fim, a partir de uma amostra selecionada nas antigas vilas operárias Maria
Zélia, Cerealina, Crespi, Guilherme Giorgi e Beltramo, a autora realizou entre os anos
1970 e 1980 entrevistas com moradores/operários, por meio das quais a avaliou a relação
entre moradia e trabalho como resultado de relações de produção capitalistas.
Por fim, é importante destacar que além de identificar a conexão de aspectos pouco
considerados até então, os autores supracitados têm o mérito de terem sido os primeiros a
deslocar o foco da produção acadêmica para as implicações sociais das práticas
urbanísticas e arquitetônicas.
Já nos anos 2000 vemos surgir um conjunto expressivo de novas contribuições para
a reflexão sobre a arquitetura nas suas interfaces com o espaço urbano, configurando um
terceiro momento da historiografia sobre São Paulo. Próximos aos nossos interesses,
destaco a pesquisa de José Eduardo de Assis Lefèvre, De beco a avenida: a história da rua
São Luiz (2006), que através do estudo de uma área – lote a lote – desvenda lógicas de
transformações da própria cidade. Com foco nas terras de propriedade do Brigadeiro Luís
Antônio de Souza Queiroz na Consolação, que deram origem à Av. São Luiz, mostra a
partir do século XIX o processo de parcelamento dos lotes e sua posterior venda a
terceiros. A presença de famílias tradicionais conferiu uma configuração particular à rua,
onde as construções de caráter exclusivamente residencial deram o tom de distinção ao
espaço. Tal estudo revela as primeiras iniciativas de parcelamento do solo nas áreas
lindeiras ao centro e indiretamente revelam quão dependentes eram aqueles palacetes do
abastecimento e serviços prestados por gente de bairros como o Bexiga, etc.
Outros estudos igualmente importantes para a presente tese foram os de Marisa
Midori Deaecto (2001), Heloísa Barbuy (2006) e Beatriz Bueno (2005, 2008 e 2012) com
foco nas ações individuais e no processo de produção e uso dos espaços entre meados do
século XIX e início do século XX. Marisa Midori, em Comércio e vida urbana na cidade
de São Paulo (1889-1930) explorou faces do comércio e dos comerciantes na evolução da
metrópole, a partir da internacionalização do mercado e da vinculação da economia
brasileira ao sistema capitalista com a expansão das redes de troca via exportação do café e
importação de produtos industrializados, via desenvolvimento da indústria local (que ao
alimentar o comércio local, foi por ele impulsionada), demonstrando a vocação comercial e
financeira do centro da cidade com a crescente especialização na venda de produtos mais
refinados.
Na mesma direção, Heloísa Barbuy em A Cidade-Exposição. Comércio e
cosmopolitismo em São Paulo elegeu as casas comerciais do centro de São Paulo como
ponto de partida para desenvolver o estudo do microterritório do “Triângulo” do ponto de
vista de sua produção material e das mudanças de hábitos e vida urbana ali operados. Para
tanto, delineou uma metodologia de espacialização de dados seriais referentes a 1860 e
1914 com vistas a compreender a cidade como “um complexo de construções materiais
(...) com dimensões física, simbólica e ideológica”. Na linha dos estudos de História da
Cultura Material, em seu trabalho, a arquitetura e a própria cidade são entendidos como
“artefato” que evocam mentalidades, valores e interesses definidos por grupos sociais em
cada momento histórico. Com foco no espaço construído, suas determinantes legais, a
autora desvenda o papel da iniciativa privada na sua produção e uso, com ênfase nesta
segunda dimensão, analisando nas ruas XV de Novembro, Direita e São Bento, lote a lote,
os diversos tipos de negócios vinculados ao comércio e aos serviços e as novas práticas
sociais por eles ensejadas. Nesse sentido, explora o papel do comércio e seus agentes como
produtores e vetores de transformações nos modos de viver na cidade que se pretendia
mais moderna e cosmopolita.
Beatriz Bueno, ao espacializar a Décima Urbana de 1809 em São Paulo também
atentou para o papel das ações da iniciativa privada no processo de transformação da
cidade, lote a lote. Em Aspectos do Mercado Imobiliário em perspectiva histórica: São
Paulo (1809-1950) (2008) a autora analisou a dinâmica de transformação da cidade de São
Paulo através de fragmentos, investigando lote a lote os atores sociais envolvidos
(proprietários e inquilinos), as tipologias arquitetônicas utilizadas e os usos ali instalados.
Além da contribuição metodológica para esta tese, Beatriz Bueno abordou um aspecto
pouco pensado da história da cidade, focalizando o caráter rentista de grande parte das
construções em mãos da iniciativa privada desde o período colonial. Guardadas as
distâncias temporais e espaciais entre o estudo da autora e esta tese, a questão colocada
remete ao universo do Bexiga fruto do efervescente mercado imobiliário rentista vigente
até a Lei do Inquilinato (1942). Já em São Paulo. Um novo olhar sobre a história:
evolução do comércio de varejo e as transformações da vida urbana (2012) a autora
salienta o papel do comércio nas transformações operadas na cidade, também na
perspectiva de longa duração, do período colonial ao presente. Através de extensa pesquisa
envolvendo documentação primária – décima urbana, almanaques, listas telefônicas,
publicidade em jornais e revistas, fotografias e cartões postais – espacializa a geografia do
comércio e suas mudanças, permitindo ao leitor perceber o quanto essa atividade vinculou-
se a processos de valorização fundiária e especulação imobiliária.
Se a maioria dos trabalhos supracitados tiveram como objeto as áreas “nobres” da
cidade das elites (casos de Benedito Lima de Toledo, Maria Cecília Naclério e Eduardo de
Assis Lefevre), na contramão insere-se tanto o Capítulo 3 “Sociabilidades Paulistanas” na
tese de doutorado “Através da rótula: sociedade e arquitetura urbana no Brasil, séculos
XVII-XX” de Paulo César Garcez Marins (1999), como o ensaio Um lugar para as elites:
os Campos Elíseos de Glette e Nothmann no imaginário urbano de São Paulo (2011). No
primeiro, inaugura uma metodologia muito cara aos interessados em cultura material de
espacialização de aspectos invisíveis da história social e urbana por meio da iconografia.
No segundo, aprofunda o olhar sobre a participação dos estrangeiros na construção da
cidade, com foco nos empreendedores Francisco Glette e Victor Nothmann mas, na linha
das hipóteses formuladas por Nestor Goulart Reis Filho ressalta a heterogeneidade do
conjunto e diversidade das atividades presentes num bairro supostamente residencial e
exclusivo das elites. Ao realizar uma análise minuciosa das plantas da cidade de 1881 e
1894, mostra que as intenções originais de fazer daquele um espaço essencialmente
residencial e aristocrático não se confirmaram. O perfil heterogêneo de implantação das
edificações nos lotes e das tipologias adotadas, assim como uma progressiva mistura de
usos, se intensificaram com as crises da cafeicultura e seu consequente reflexo sobre as
famílias locais. A tendência de moradores saírem dos Campos Elíseos em busca de outros
bairros se acentuou, assim como a alteração da composição social do bairro. Tendo em
vista esse panorama, problematiza a imagem corrente dos Campos Elíseos como um bairro
essencialmente de aristocratas e nos incita a pensar sobre em que medida o mesmo
apresentava uma composição heterogêneas e áreas menos nobres, com gente de outro perfil
social e, quem sabe, atividades que dessem suporte ao cotidiano do bairro. Embora sem
conexão direta com o Bexiga, nos leva a pensar em que medida bairros como este
dependessem do Bexiga para seu abastecimento cotidiano, bem como serviços básicos,
algo que os estudos de Benedito Lima de Toledo sobre a Avenida Paulista também
permitem imaginar.
Ana Lúcia Duarte Lanna desenvolveu, dentro do projeto interdisciplinar São Paulo,
os estrangeiros e a construção das cidades (2011), o ensaio O Bexiga e os italianos em
São Paulo, 1890-1920. Neste trabalho, ao abordar a atuação dos imigrantes italianos
originários principalmente do sul da Itália, a autora privilegia o papel desempenhado por
esse segmento tanto na construção do espaço físico, como na conformação de uma
identidade cultural peculiar que distinguiu este bairro de outros ocupados por imigrantes do
mesmo grupo. A partir de estudos de caso de famílias instaladas com residência e negócios
nas ruas do Bexiga, Ana Lúcia Lanna revela como, através das redes de sociabilidade e
acolhimento, a comunidade italiana colaborou para a configuração dessa parte da cidade,
onde a conjunção de usos residenciais e profissionais foi uma constante.
Os trabalhos supracitados, em geral, recortam seus estudos no bairro ou área
eleito(a) sem problematizar as interfaces e interdependência com as outras lindeiras. Da
mesma forma, os estudos sobre os bairros mais populares igualmente não têm a
preocupação de explorar o papel dos mesmos em relação a outras partes da cidade, em
geral, centrando suas atenções nos seus elementos diacríticos mais evidentes – bairro
operário, bairro fabril, bairro aristocrático – sem todavia questionar a eventual pluralidade
de atividades ali existentes. Esses estudos operam na chave da polarização “aristocrático”
versus “popular”, “elite” versus “operário” como se a dinâmica social urbana pudesse se
reduzir a tais binômios.
Por outro lado, esses estudos direta ou indiretamente sinalizam certas recorrências
comuns a quase todos os espaços da cidade constituídos entre o final do século XIX e
início do XX: a especulação imobiliária, a presença de uma certa oligarquia produtora dos
espaços e irmanada ao poder público e da burocracia municipal na normatização e
orquestração das formas de produção e ocupação dos espaços.
Nesse quadro, a presente tese sequencia uma linha de investigação que vem
gradativamente se afirmando com foco no processo de produção e apropriação de áreas
mais pobres da cidade e no papel das camadas médias e baixas da população nesse
processo. Nessa perspectiva, Luciana Além Gennari abordou a constituição de dois bairros
populares de São Paulo na dissertação de mestrado As casas em série do Brás e da Mooca:
um aspecto da constituição da cidade de São Paulo (2005), objetivando, através do estudo
das casas em série para venda ou aluguel, discutir “a composição e consolidação do tecido
urbano” por meio das ações individuais.
Para isso, Gennari se utilizou de uma metodologia e uma documentação primária
que privilegiou a produção material do espaço. Ao investigar os projetos arquitetônicos
que deram origem à construção das casas em série conseguiu não apenas identificar o perfil
das construções, como também perceber a ação dos empreendedores de maneira a
reconstituir um cenário que amplia nosso conhecimento sobre as dinâmicas da cidade
como um todo:
Uma parte da cidade foi erguida e reerguida nos moldes da Mooca e do Brás. Não
necessariamente parecida morfologicamente, mas talvez metodologicamente sim. A clareza
de determinados processos pode nos ajudar a entender como e por que chegamos onde
estamos (2003, p.293).

Na mesma linha, desenvolvi minha dissertação de mestrado, “Formação do bairro


do Bexiga em São Paulo: loteadores, proprietários, construtores, tipologias edilícias e
usuários (1881-1913” (2010). Comparativamente, as diferenças entre Brás, Mooca e
Bexiga são claras: os primeiros são bairros em que a proximidade das vias férreas
propiciou a instalação de indústrias e, em função das fábricas, polarizaram a construção de
casas operárias; o Bexiga notabilizou-se por ser um bairro especializado no abastecimento
e na prestação de serviços, com raras fábricas em seu cenário. Em que pesem as diferenças
entre as duas áreas, é possível traçar alguns paralelos entre ambas. Nos dois casos, a
construção de casas destinadas à população menos abastada, independentemente das
atividades produtivas exercidas por seus moradores, demonstra ter se tornado rentável e
acessível a diversos tipos de empreendedores imobiliários (desde grandes capitalistas,
passando por indivíduos que desejavam diversificar seus negócios, até aqueles mais pobres
que viam no investimento imobiliário a possibilidade de aumentar seus rendimentos e
garantir sua segurança financeira).
Por outro lado, sequenciando tendências de estudos recentes em História Social,
busquei descortinar o papel de grupos menos hegemônicos no processo de transformação e
configuração urbanística e arquitetônica da cidade. Sob tal perspectiva, atores sociais
desconhecidos merecem visibilidade e personagens cujas vidas são marcadas pela
mobilidade, precariedade e transitoriedade têm suas trajetórias investigadas mostrando
permanências de comportamentos em meio às rupturas pretendidas, atitudes “desviantes”
em confronto à modernidade almejada, bem como estratégicas de sobrevivência na
metrópole que aparentemente todos tinham lugar.
Nessa linha, paradigmático é o trabalho de Maria Luiza Ferreira de Oliveira que, ao
estudar o papel das camadas médias e intermediárias na urbanização de São Paulo, mostra
a forma como esses grupos se inseriram no processo. Seus reiterados esforços de
sobrevivência frequentemente passavam pelas possibilidades dadas pela propriedade de
bens de raiz, pela economia informal e pelo apoio de redes de solidariedade, o que nem
sempre lhes garantia uma vida sem percalços. A análise dos inventários post-mortem de
uma gente miúda, assim como todo o processo envolvido em sua abertura, permite que se
acompanhe trajetórias de vida marcadas pela instabilidade e precariedade. Contudo, tão
importante quanto a análise dos documentos interessa particularmente a maneira sensível
como a autora nos introduz no cotidiano desses homens, levando-nos a uma aproximação
quase afetiva dos personagens anônimos. Ao mesmo tempo, faz pensar que a incerteza não
era um fenômeno restrito aos moradores da Várzea do Carmo ou do centro da cidade, mas
que podia se estender a qualquer espaço ocupado pela população mais pobre. Diante de
situações semelhantes em que a tônica era dada pela incerteza do amanhã, o perfil traçado
pela autora remete necessariamente aos usuários do bairro do Bexiga, onde os proprietários
ou inquilinos dos inúmeros armazéns e pequenos serviços também devem ter representado
um papel crucial na vida de moradores às voltas com problemas de insolvência: vendendo
fiado, postergando a cobrança de dívidas antigas, emprestando dinheiro para o pagamento
de aluguéis atrasados, para a prestação do mascate, para a compra de remédios... Por outro
lado, permite evidenciar as interfaces do bairro com outras áreas e seu papel na cidade em
transformação e a espacialização dos espaços.
Essa vertente historiográfica nos remete a Daniel Roche, representante da terceira
geração da Escola dos Annales que se dedicou ao estudo dos setores médios da população
francesa. Em seu livro O povo de Paris9, Roche abordou o impreciso universo dos
trabalhadores parisienses que, de acordo com suas palavras, constitui-se de “operários,
companheiros das indústrias e do comércio (e) criados” entre 1685 e 1789. A partir de
elementos fornecidos pelo estudo dos inventários post-mortem que revelam o cotidiano
dessas camadas sociais – tais como as formas de moradia, o vestuário e a alimentação –, o
autor teceu um abrangente panorama social do século que antecedeu a Revolução
Francesa, ali abordada de um ponto de vista singular. Mais do que o aspecto político do
evento interessou ao pesquisador conhecer o processo de profunda transformação cultural e
social sofrida por uma parcela expressiva dos setores médios da capital francesa ao longo
do século XVIII – processo este que está intimamente ligado ao papel que esses setores
viriam a desempenhar na Revolução Francesa. Trata-se assim de reconstituir uma
identidade social a partir de sua materialidade.
A perspectiva adotada por Daniel Roche e Maria Luiza Ferreira de Oliveira, na qual
os atores sociais assumem a posição central de uma cena marcada pela transitoriedade, tem
muito a ver com a intenção deste trabalho de compreender a tessitura material e social do
bairro do Bexiga. O mesmo ocorre com relação à metodologia utilizada por eles, onde as
expressões materiais possuem um significado importante como documento para a História.
Embora as fontes documentais aqui utilizadas sejam outras, a ideia central é buscar nos
documentos materiais elementos que contribuam para a reconstituição (ainda que
incompleta) do perfil de uma parcela dos moradores do Bexiga.
No entanto, as considerações de Ulpiano Bezerra de Menezes acerca dos “artefatos”
(incluindo-se ai o ambiente construído) alertam para uma questão essencial que os

9
ROCHE, Daniel. O povo de Paris: ensaio sobre a cultura popular no século XVIII. São Paulo: EDUSP,
2004.
historiadores não podem deixar de levar em consideração no exercício de seu trabalho – o
caráter “mutante” do documento (ou da biografia de que são portadores):
O cerne da questão, para o historiador [...] é, acredito, que os artefatos estão
permanentemente sujeitos a transformações de toda espécie, em particular de morfologia,
função e sentido, isolada, alternada ou cumulativamente. [...] para traçar e explicar as
biografias dos objetos é necessário examiná-los 'em situação', nas diversas modalidades e
efeitos das apropriações de que foram parte. Não se trata de recompor um cenário
material, mas de entender os artefatos na interação social. (1998, p.92, grifo nosso).

Aqui, não se tem a intenção de “recompor” o exato cenário material do Bexiga


entre 1906 e 1931, mas sim de tentar recuperar algo da relação estabelecida entre o
elemento humano e o espaço físico em determinada circunstância, quem sabe sua própria
identidade...
Em minha dissertação de mestrado (2010), busquei compreender através das
evidências materiais como se deu o processo de formação do bairro do Bexiga e sua
apropriação pelos diferentes atores e grupos sociais que ali atuaram, entre 1881 e 1914. No
processo de sedimentação da nova ordem econômica, diferentes papéis foram
representados por diversos atores sociais, fossem eles oriundos da oligarquia cafeeira,
estrangeiros recém-chegados, ou personagens urbanos anônimos. Cada um atuou de acordo
com suas posses e interesses, mas sempre buscando auferir vantagens das mudanças
políticas, econômicas e sociais em curso. De um lado, membros de reconhecidas famílias
tradicionais como os Pais de Barros e os Souza Queiroz que, além da atividade
agroexportadora, atuaram em outras frentes, inclusive na especulação imobiliária, e nesse
caso não restringindo-se a iniciativas de grande porte, mas tendo ramificado seus negócios
a empreendimentos populares, caso por exemplo, do arruamento empreendido pela
Baronesa de Limeira, em 1894, em terras que pertenciam à antiga Chácara do Barão de
Limeira, entre o Largo do Riachuelo e a Av. Brigadeiro Luís Antônio.
Como demonstrei no mestrado, em fins dos anos 1880, ao lado dos membros da
oligarquia, também atuaram no promissor mercado imobiliário na antiga Chácara do
Bexiga imigrantes possuidores de capital necessário para investir em terras, como Victor
Nothmann, membros da família Clark e o negociante português Antônio José Leite Braga,
proprietário da maior porção de terras na região. Após a morte de Braga, entrou em cena o
engenheiro Fernando de Albuquerque, um dos principais agentes responsáveis pelo
empreendimento. Em paralelo, se a planimetria do bairro coube a grupos de mais posses, a
volumetria resultou de ações de imigrantes e brasileiros integrantes das camadas médias
para os quais a “modernidade” almejada colocava novas opções de inserção social através
da exploração de pequenos e médios negócios. Dessa forma os imigrantes destituídos de
recursos encontraram na cidade em expansão tanto a possibilidade de sobrevivência como
a oportunidade de conquistar um espaço social. Naquele momento, a atuação praticamente
isolada do imigrante no mercado da construção civil, ao lado de certo espírito
empreendedor, abriu perspectivas para a formação de um pecúlio através da compra de
terrenos e da construção de moradias para locação. De outro lado, entre os anos de 1912 e
1914, o bairro já dava sinais da proliferação das habitações coletivas e do processo de
“encortiçamento” que viria a ocorrer nas décadas seguintes.
Na presente tese retomei o processo de produção do bairro com foco em três áreas
distintas, a saber: uma “área nobre”, entre a Av. Brigadeiro Luís Antônio e a rua Santo
Amaro; a área do próprio loteamento original, entre as ruas Santo Amaro e Santo Antônio;
e a área mais pobre do vale da Saracura, entre a rua Santo Antônio e o leito do córrego do
mesmo nome.
Ao lado das inúmeras construções particularmente destinadas à moradia –
envolvendo tipologias variadas – como casas de fundo de lote, vilas e sobrados, quando
não a transformação e aproveitamento dos espaços disponíveis em habitações coletivas ou
cortiços –, focalizei os inúmeros espaços construídos ou adaptados para o exercício de
atividades produtivas – armazéns, quitandas, manufaturas e oficinas de pequeno porte,
ocupando os espaços possíveis. Os requerimentos encaminhados à Diretoria de Obras do
município solicitando licença para a construção e/ou reforma de prédios indicam que a sala
da frente da casa foi reiteradamente transformada em espaço para negócios. A instalação
de fornos nos fundos das casas indica a existência de pequenas padarias, que poderiam
estar associadas a uma quitanda ou a um armazém de “secos e molhados”, assim como os
barracões construídos nos fundos dos terrenos foram ocupados por fabriquetas de macarrão
ou simples oficinas que faziam de tudo um pouco: conserto de peças utilizadas no dia a dia
(como máquinas de costura, carroças estacionadas nas cocheiras, ferragem dos animais) ou
fabricação de gradis e portões utilizados nas construções, etc. Oficinas também
funcionaram no espaço doméstico, não necessariamente no cômodo da frente, mas,
frequentemente nos porões, comumente utilizados por costureiras, alfaiates e sapateiros.
Nesse sentido, se de um lado observei a heterogeneidade na paisagem resultante da ação de
mãos tão diversas, também notei a diversidade de atividades produtivas ali instaladas.
Busquei assim demonstrar como o ritmo de ocupação do espaço acentuou-se no
decorrer dos anos 1920. As áreas livres reduziram-se e construções mais antigas cederam
lugar para novas edificações voltadas à moradia ou ao trabalho; antigas cocheiras foram
substituídas por casas destinadas a residências ou por barracões destinados a algum tipo de
manufatura. Os embates contínuos entre proprietários e a municipalidade apontam para o
aproveitamento exaustivo dos espaços ainda vazios, onde a construção de cômodos poderia
dar ensejo à instalação de novos cortiços. Por outro lado, as inúmeras intimações, multas e
embargos, que por vezes envolviam um único processo, colocam em evidência o
comportamento reincidente de proprietários e construtores, demonstrando a crescente
perda de controle da situação por parte da Diretoria de Obras frente ao acirramento da
especulação imobiliária, evidenciando a tendência do que iria ocorrer neste e noutros
bairros populares da cidade nas próximas décadas.

Cotidiano e trabalho em foco

Ao concentrar uma parcela das atividades excluídas do centro pela Legislação


Sanitária, o Bexiga certamente desempenhou um importante papel na hierarquia produtiva
da cidade, diferenciando-se de outros bairros como o Brás, a Mooca e a Barra Funda ao
não agregar fábricas e operários, mas aproximando-se deles ao desenvolver certos tipos de
atividades de abastecimento de outras áreas da cidade. Ali se instalaram pessoas de
pequenas e médias posses, assim como o comércio mais simples voltado basicamente ao
abastecimento alimentar e à prestação de serviços menos especializados, apresentando a
coexistência entre moradia e trabalho.
Raquel Rolnik já havia constatado situação semelhante, quando em virtude da
instabilidade do mercado de trabalho regular e das sucessivas crises conjunturais que
atingiram a produção fabril, parte dos trabalhadores urbanos, mesmo os estrangeiros,
tenderam a estabelecer-se por conta própria, explorando as possibilidades dadas pelo
trabalho informal.
Assim, nos fundos de quintal, em estalagens ou em algum cômodo da casa de seu
proprietário, funcionavam vidraçarias, marcenarias, ateliês de pintura e de costura,
ourivesarias, alfaiatarias; havia mestres de caligrafia, gravatarias, sapatarias, fazedores
de luvas, de chapéus, selarias, confecionadores de arreios, de laços e artigos de couro
para montaria. [...] A existência desse tipo de empreendimento familiar [...] definia uma
multifuncionalidade no espaço da casa e do quintal, e ao mesmo tempo, a convivência da
família extensa ou de indivíduos sem laço de parentesco no mesmo espaço físico. (2003,
p.79-80, grifo nosso).
O primeiro objetivo da presente tese é justamente precisar o papel desempenhado
pelo bairro do Bexiga e consequentemente por seus moradores no mercado informal de
trabalho. Ainda que ali tenham se realizado atividades produtivas aparentemente
“menores” do ponto de vista da macroeconomia, com pequenos estabelecimentos
comerciais e de serviços, acredito que elas tenham sido fundamentais para o
funcionamento do todo, na medida em que os negócios ali abertos tinham um papel
específico no processo de reespacialização das funções urbanas.
Em minhas investigações me surpreendi com o elevado número de negócios
direcionados ao abastecimento alimentar que apontava para um fenômeno, no mínimo,
curioso. Identifiquei 76 quitandas entre 1906 e 1914 na Série Alvará e Licença do Arquivo
Histórico de São Paulo (AHSP), número que pareceu-me desproporcional para o bairro.
Levando-se em conta que aquele era um tempo em que as pessoas não tinham como
conservar produtos perecíveis, a presença de vários desses estabelecimentos numa mesma
rua, muitas vezes distantes poucos metros entre si, levou-me a questionar quem seriam os
possíveis consumidores dos produtos ali vendidos.
A busca de resposta a essa pergunta resultou na hipótese central desta tese de que a
clientela potencial para os produtos vendidos nas quitandas não estivesse vinculada apenas
aos moradores do Bexiga, mas se encontrasse fora dos limites do bairro. Nesse sentido, o
depoimento de alguns memorialistas que escreveram sobre a cidade naquele período
forneceram os indícios iniciais que nortearam a hipótese. Esse foi o caso, por exemplo, de
Jorge Americano, que em suas memórias de infância dedicou um capítulo inteiro aos
vendedores ambulantes que circulavam pelas ruas dos Campos Elíseos (2004, p.103-112).
Entre os inúmeros personagens listados por ele, alguns bem que poderiam ser originários
do Bexiga: o leiteiro, a carroça de verduras, a carroça do padeiro, o homem que vendia
frangos, o fruteiro, o caixeiro do armazém, o baleiro, o sorveteiro, etc10.
O Bexiga era um território encravado entre os bairros ocupados pelas camadas
médias e altas da população – o Morro dos Ingleses, a Liberdade, o Paraíso, a Avenida
Paulista e, desde os anos 1920, a Vila América (atual Jardim Paulista). Com exceção da
Liberdade e do Paraíso, marcados por uma mescla de usos residenciais e comerciais, os
demais bairros possuíam um caráter exclusivamente residencial. Parece bastante razoável a
ideia de que a localização do Bexiga em relação a esses bairros colocasse os negócios de
comércio de alimentos em situação privilegiada. Outro artefato predominante do bairro a

10
AMERICANO, Jorge – São Paulo naquele tempo (1895-1915), 2ª Edição. São Paulo: Carrenho
Editorial/Carbono 14, 2004. p.103-112.
meu ver também corroborava a hipótese: as inúmeras cocheiras presentes nas ruas do
Bexiga, identificadas na Série das Obras Particulares do AHSP, utilizadas como uma
espécie de estacionamento, abrigando carroças e animais, essenciais para o transporte de
pessoas e mercadorias. Identifiquei 81 cocheiras na Série Obras Particulares entre 1906 e
1923 que sinalizam que parte dos veículos ali guardados servia à distribuição de alimentos
comercializados em quitandas e armazéns do próprio bairro do Bexiga, possivelmente
voltadas ao fornecimento dos bairros lindeiros.

Cabe reiterar que a representação do Bexiga como um bairro italiano ocupado pelas
camadas mais pobres da população é resultado de uma narrativa construída ao longo do
século XX, e como tal sujeita a distorções. Assim, se pretendemos nos aproximar mais
efetivamente do objeto de estudo – o cenário e os atores correspondentes –, é necessário
repensar as bases materiais e sociais sobre as quais esses agentes atuaram. Trata-se de um
bairro que, em suas origens, foi prioritariamente ocupado pelas camadas médias e baixas
da população, oriundas de contextos étnicos e culturais diversos. De um lado, brasileiros
brancos e afrodescendentes negros e pardos, ambos carregando o ônus de um passado
escravista recente que determinava a priori a sua posição na escala social, circunstância
esta agravada pela crença generalizada na superioridade racial e cultural do estrangeiro. De
outro, imigrantes europeus em busca de oportunidades de conquistar, através do trabalho, a
estabilidade que lhes era negada no local de origem. Nessas circunstâncias, o convívio
entre os dois grupos podia significar uma disputa desigual pelas oportunidades de trabalho
e pelo espaço, gerando ressentimentos em todos os lados envolvidos.
No longo prazo essa situação só fez ratificar a discriminação, ainda que
dissimulada, dos valores atribuídos ao segmento negro da sociedade contemporânea,
particularmente àqueles estabelecidos no bairro do Bexiga. Atualmente, embora a presença
dos afrodescendentes seja um fato reconhecido, sua importância aparece reduzida cultural
e espacialmente: de um lado, porque limitada aos eventos culturais dados pelo calendário
festivo da cidade – o Carnaval –, e de outro porque restringe sua presença ao vale da
Saracura, supostamente a única área ocupada por esse segmento social. Diante desse
panorama reducionista que exclui uns em favor de outros, estabeleci como segundo
objetivo desmistificar tais estereótipos e identificar a presença tanto de imigrantes como de
brasileiros integrantes das camadas médias e baixas da população para os quais o bairro
significou não apenas um espaço de moradia, mas também de sobrevivência.
No decorrer de minhas investigações tive a oportunidade de constatar a ocorrência
de conflitos entre usuários do bairro, que podiam se manifestar de diversas formas, por
exemplo, na relação entre inquilinos e proprietários ou na disputa pela clientela por parte
de prestadores de serviços e comerciantes. Nesses casos, tudo indica que se tratava de
conflitos com motivação claramente vinculada a disputas por espaço de trabalho. Menos
evidentes são os conflitos originados de relações interraciais, mas existiam. Armandinho
do Bixiga fornece algumas pistas, se não de conflitos abertos, pelo menos de tensões
expressas em manifestações preconceituosas dos italianos em relação aos negros, o que,
provavelmente, não devia se restringir a esse caso específico11.

Jacques Le Goff12, ao analisar a configuração da nova sociedade urbana francesa


no decorrer dos séculos XII ao XIV nos fala de uma “sociotopografia” típica das cidades
medievais. Assim como na cidade colonial brasileira, na aparente homogeneidade do
conjunto verificava-se numa mesma rua um dégradé social, dispondo-se indivíduos de
grupos sociais distintos em áreas topograficamente mais e menos valorizadas ou às vezes
coexistindo lado a lado (Bueno, 2008). Outro objetivo desta tese é fornecer um quadro da
sociotopografia do bairro do Bexiga. Nessa época, de uma maneira geral, São Paulo vivia
um momento de transformação, no qual observamos a tendência para a concentração de
determinadas camadas sociais em determinados bairros, de acordo com os interesses e
conveniências específicos deste ou daquele segmento. Ao contrário da cidade colonial,
concentrada na colina histórica e aparentemente mais homogênea, apresentando uma
sociotopografia menos evidente, a cidade da Primeira República apresentava uma
tendência à especialização dos espaços: o perímetro central, com comércio e serviços; os
perímetros urbano e suburbano com bairros residenciais destinados às camadas médias,
baixas em meio às manufaturas e ofícios indesejados.
Os objetivos traçados acima buscaram responder a duas hipóteses que orientaram a
pesquisa. A primeira envolvendo o papel do bairro na reconfiguração de São Paulo como
metrópole moderna e cosmopolita, através da articulação das atividades produtivas ali
desenvolvidas com o restante da cidade, via comércio e prestação de serviços. A segunda,
envolvendo o desvendamento da sociotopografia e das formas de sociabilidade, assim
como de tensões existentes entre os diferentes grupos humanos que vivenciaram o bairro,

11
MORENO, Júlio. Memórias de Armandinho do Bixiga, São Paulo: Editora SENAC, 1996, p.88.
12
LE GOFF, Jacques. A nova sociedade urbana. O apogeu da cidade medieval, São Paulo: Martins Fontes,
1992, p. 94 a 123. Disponível em: <http://groups.google.com.br/group/digitalsource> Acesso em:
17/05/2009.
através da identificação do perfil dos atores sociais predominantes. Assim, tendo em vista
os objetivos e as hipóteses acima, acredito estar contribuindo para a elucidação de aspectos
fundamentais, mas até então inexplorados pela historiografia, para a compreensão do
processo de urbanização da cidade de São Paulo na passagem do Império para a Primeira
República.

Três Bexigas em um

De acordo com o projeto elaborado pelo engenheiro Fernando de Albuquerque, os


limites do loteamento original do Bexiga13, ainda que mal situados quanto ao
posicionamento norte-sul da cidade, são bem precisos. O córrego da Saracura em direção à
região oeste, e a rua Santo Amaro em direção à região leste da cidade indicam atributos
naturais e artefatos pré-existentes ao empreendimento. As ruas que compõem o desenho do
loteamento, com uma nomenclatura que seria alterada posteriormente, correspondem
exatamente às ruas Major Diogo, Conselheiro Ramalho, Treze de Maio, Conselheiro
Carrão, Manoel Dutra e São Domingos (Schneck, 2010). Porém, no processo de ocupação
humana crescente o empreendimento espraiou-se em diversas direções, como que se
amalgamando a outros espaços. Assim, frente à necessidade de compreender o próprio
processo de configuração daquele espaço geográfico, a cartografia disponível sobre a
cidade de São Paulo foi um instrumento fundamental já que através dela foi possível
reconstituir o processo de loteamento e apropriação do bairro do Bexiga e sua inserção no
conjunto da cidade em expansão.
Ocorre que em 1910, através da Lei n.1.242, a grande área que envolvia o
“loteamento original” do Bexiga passou a ser denominada Bela Vista. Ao determinar a
criação “do districto de paz de ‘Bella Vista’, desmembrado do da Consolação, do
municipio da Capital”, a lei enfatiza o distrito e não o bairro. Embora os termos da lei
indiquem o espaço do distrito como uma unidade administrativa vinculada ao município,
eles não definem o que seria o bairro. Por outro lado, as plantas da cidade elaboradas
naquele período, ao adotar os dois termos também não fazem a distinção entre as duas
instâncias, gerando dúvidas acerca de sua conformação e abrangência. Estendendo a
observação às plantas elaboradas nos anos posteriores, em 1916 e 192414, foi possível

13
Planta dos Terrenos do Bexiga (1890). Fernando de Albuquerque, engenheiro civil Fonte: Arquivo
Aguirra/Museu Paulista/USP.
14
Planta da Cidade de São Paulo, levantada pela Divisão Cadastral da 2ª Secção da Diretoria de Obras e
Viação da Prefeitura Municipal, Edição Provisória de 1916; Planta da Cidade de São Paulo mostrando todos
concluir que em nenhuma delas o Bexiga foi representado como um bairro independente.
Essa situação só viria a se alterar na Planta SARA Brasil, de 1930, na qual nenhum bairro
ou distrito recebe qualquer tipo de referência nesse sentido. Por fim, é na planta de 1943
que o Bexiga volta a constar como um bairro independente15, ainda que vinculado ao
distrito da Bela Vista.

Na Planta da Cidade de São Paulo (1916), procurei localizar, aproximadamente, os limites entre as três áreas: o
arruamento feito pela Baronesa de Limeira (tracejado em amarelo), o loteamento original (tracejado em vermelho) e a
área do Saracura, um tanto indefinida (tracejado em verde). Fonte: Planta da Cidade de São Paulo, Divisão Cadastral da
2ª Secção da Diretoria de Obras e Viação da Prefeitura Municipal, 1916. Histórico Demográfico do Município de São
Paulo.

Frente às dificuldades do olhar contemporâneo em separar o bairro do distrito, se


fez necessário restringir o foco espacial do trabalho. Tomando como ponto de partida o
Largo do Riachuelo, local que delimitava a fronteira do Bexiga com o Centro, busquei
contemplar aquela que foi a área do loteamento original do bairro, sem contudo ignorar
parte do que se convencionou chamar de Bela Vista. Nesse sentido, a região do Vale da
Saracura, cujo início da ocupação, ainda que rarefeita, antecedeu o empreendimento
original, forçosamente seria incluída no trabalho. Entretanto, as águas e ribanceiras do
córrego, ao interpor barreiras físicas ao deslocamento dos moradores, estabeleceram um

os arrabaldes e terrenos arruados, Rio de Janeiro, 1924. Disponíveis em:


http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/img/mapas/1916.jpg; e
http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/img/mapas/1924.jpg.
15
Planta da Cidade de São Paulo e Municipios Circumvizinhos, organizada pela Repartição de Electricidade
da The São Paulo Tramway Light and Power Co. Ltd., janeiro de 1943. Fonte: Secretaria de Estado de
Economia e Planejamento. Instituto Geográfico e Cartográfico - IGC. Acervo - Tombo: 1153. Disponível em:
http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/1940.php. Consulta em 26/04/2014.
segundo limite físico do bairro. Por fim, uma terceira área somou-se às anteriores, por
contiguidade, e corresponde às ruas abertas pela Baronesa de Limeira alinhadas ao
loteamento original. Tratava-se, pelas dimensões dessa terceira área, de um espaço restrito,
sujeito a ser envolvido pelo caráter mais amplo dado pela ocupação do loteamento vizinho
– a Liberdade – que, de acordo com as plantas elaboradas entre 1905 e 1924, tinha limites
imprecisos entre a rua Tamandaré e a Av. Brigadeiro Luís Antônio. Por sua vez, a avenida
Brigadeiro Luís Antônio, artéria do loteamento da Baronesa de Limeira, pela sua condição
articuladora do Centro e da Liberdade estruturou-se numa tríplice função de local de
atividades produtivas, de ocupação humana e via de acesso, representando a verdadeira
fronteira, aí entendida no sentido metafórico de lugar de “encontros” e não de barreira
física tal como definida por Peter Burke (2011), entre os bairros do Bexiga e a Liberdade.
É evidente que a depender do interesse particular de cada observador, os critérios adotados
para a delimitação da área de estudo podem ser questionados, mas acredito que se prestem
ao propósito da tese, envolvendo portanto, o loteamento original, a zona do Saracura e o
loteamento da Baronesa de Limeira.

O tempo dos espaços e das pessoas

Definidos os recortes espaciais da pesquisa, convém explicitar as balizas temporais


eleitas.
Os primeiros sinais de ocupação do espaço datam de 1882, ocasião em que a
construção das primeiras casas dá indicações sobre a viabilidade do emprendimento que
aos poucos foi se concretizando. Simultaneamente, os primeiros negócios foram instalados
e, em 1906, a presença de quitandas, armazéns de secos e molhados, açougues, jogos de
bola, padarias e oficinas demonstra que o bairro já apresentava um certo amadurecimento
em termos de suas práticas produtivas. Assim, levando-se em conta a confirmação efetiva
dos usos no espaço – moradia e trabalho – e por meio dos indícios sugeridos pelas fontes
documentais, o ano de 1906 foi utilizado como baliza inicial de trabalho.
A partir do contexto urbano tomado em sua totalidade, procurei imaginar como se
desenrolou o cotidiano de um bairro constantemente sujeito ao movimento mais amplo, no
qual determinantes sociais, políticas, econômicas e culturais interferiam direta ou
indiretamente. O Bexiga nasceu em meio às demandas por novos loteamentos fruto da
expansão demográfica, entre o Império e a República. A modernização e a expansão da
cidade atingiu seu ápice em fins dos anos 1920, até a Revolução de 1930. As
consequências decorrentes desse processo, ainda que os usuários do bairro não tenham se
envolvido diretamente nos acontecimentos gerais, estão implícitas nos depoimentos de
personagens que por ali circularam, atestando o início de um novo momento no qual usos e
práticas se tranformaram, delineando os traços do espaço que deu origem ao que hoje
compreendemos como o grande distrito da Bela Vista, mais comumente conhecido como
“Bixiga”. Assim, diante das inequívocas transformações operadas naquele território,
envolvendo rupturas e permanências, elegemos o ano de 1930 como baliza final do
trabalho.

Materiais e métodos

Por fim, impõe-se explicitar as fontes e a metodologia utilizadas para a consecução


dos objetivos e fundamentação da tese, sem as quais a apreensão – bastante pretenciosa –
de um universo de implicações tão variadas e pormenorizadas não teria sido possível.
Tendo em vista a busca de respostas acerca do papel representado pelo bairro na
hierarquia produtiva da cidade, algumas fontes entrecruzadas deram elementos para
compor a tessitura da tese. A Série Obras Particulares, do Arquivo Histórico de São Paulo
(AHSP), conjunto documental que envolve os requerimentos encaminhados à Diretoria de
Obras do Município visando a concessão de licença para a construção, demolição ou
reforma de prédios foi a fonte eleita para se reconstituir a materialidade dos imóveis lote a
lote. Aos documentos já investigados anteriormente para a elaboração de minha dissertação
de mestrado, abrangendo prédios de uso residencial, comercial, de prestação de serviços,
fabris e manufatureiros, no período de 1906 a 1914, acrescentei os requerimentos
apresentados entre 1915 e 1923, agora com foco nas obras que indicassem o exercício ou a
intenção de ali exercer atividades produtivas.
Outra fonte investigada no AHSP foi a Série Alvará e Licença, coleção que contém,
via de regra, os processos de solicitação de licença para a abertura de negócios comerciais
e/ou de serviços.
Ainda no AHSP, realizei o levantamento dos Índices de Emplacamento das ruas do
bairro, de maneira a acompanhar sempre que necessário as alterações na numeração dos
imóveis, entre 1907 e 1930.
Num primeiro momento supus que a Série Alvará e Licença seria suficiente para a
identificação dos negócios estabelecidos no bairro, entretanto, logo percebi ser necessário
cotejá-la com as informações fornecidas pelos almanaques. Na Série Alvará e Licença os
negócios ficavam restritos quase que unicamente às casas comerciais, excluindo-se os
estabelecimentos voltados à prestação de serviços e os profissionais liberais. Assim, acabei
por restringir sua utilização ao período entre 1906 e 1914 e priorizar os anuários para a
caracterização das atividades produtivas como um todo16. Essas publicações anuais, muito
difundidas durante o século XIX e primeira metade do XX, continham informações
relevantes sobre as cidades, tais como, estatísticas demográficas e econômicas, indicadores
de ruas, lista dos cidadãos “notáveis”, listas de atividades de comércio e serviços, listas de
indústrias e profissionais liberais, listas de “empresários e capitalistas”. No caso desta tese,
as seções contendo os indicadores comerciais e de serviços (“Comércio, indústrias e
profissões”) constituíram-se em arsenal precioso de informações sobre as atividades
produtivas. Organizadas por segmentos econômicos, forneceram os nomes dos negociantes
e dos profissionais entre 1906 e 1931, assim como seus respectivos endereços17,
permitindo o cruzamento com os projetos arquitetônicos da Série Obras Particulares do
AHSP e com os requerimentos da Série Alvará e Licença, bem como espacializar os
imóveis nas plantas da época.
Aos nomes dos atores identificados foram acrescidas informações complementares,
tanto do perfil social como das atividades, para o que recorri à imprensa comercial e
oficial. No caso específico da Série Obras Particulares, os pedidos de licença para
construção e/ou reforma de imóveis, em sua maioria acompanhados pelos respectivos
projetos arquitetônicos, permitiram a identificação dos programas e tipologias edilícias
utilizados na construção de prédios de uso misto que abrigaram tanto atividades produtivas
(oficinas, lojas, armazéns etc.) como residências, cujos proprietários nem sempre

16
Cumpre destacar que os exemplares do Annuario Administrativo, Agrícola, Profissional, Mercantil e
Industrial dos Estados Unidos do Brasil – Almanak Laemmert (1900-1931), disponibilizados pelo site da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro foram de extrema importância para os resultados finais deste trabalho.
A disponibilidade de praticamente todos os números na web, foi fator decisivo para tal escolha, na medida
em que poupou o tempo gasto em percorrer os acervos da cidade de São Paulo em busca das publicações que
contemplassem todo o período investigado.
17
Almanack Administrativo, Commercial e Industrial da Provincia de São Paulo para o ano bissexto de
1884. Organizado por Francisco Ignacio Xavier de Assis Moura, 2º ano, São Paulo, Editores proprietários
Jorge Seckler e Cia, 1883; Almanach do Estado de São Paulo, para 1890. Por Jorge Seckler. Sétimo Anno,
São Paulo, Editores-Proprietarios Jorge Seckler & Comp. Fonte: Biblioteca Municipal Mário de Andrade;
Annuario Administrativo, Agrícola, Profissional, Mercantil e Industrial dos Estados Unidos do Brasil. O
Almanaque Laemmert, nome pelo qual ficou conhecido o anuário, foi publicado inicialmente por iniciativa
dos irmãos Laemmert, e posteriormente, por membros daquela mesma família, na cidade do Rio de Janeiro.
A publicação, iniciada em 1844, após passar por sucessivas crises, chegou até os anos 1914, quando passou a
se chamar Anuário do Brasil. Em 1925, o anuário passou a ser editado por membros do Jockey Club do Rio
de Janeiro, voltando a ter o nome original, Almanaque Laemmert Ltda. De acordo com as informações
fornecidas pelo site http://www.cultura.gov.br, o Center for Research Libraries foi o responsável pela
digitalização de todo o almanaque, encaminhando o material à Biblioteca Nacional, que, por sua vez
disponibilizou-o na web. O Estado de São Paulo conta com volumes especiais, publicados entre 1909 e 1931,
além de outros anos.
anunciavam suas atividades nas páginas dos almanaques. Por outro lado, o conjunto de
casos que envolveram a transformação de espaços comerciais em residenciais, e vice-
versa, em determinados momentos da história da cidade e do bairro – geralmente em
momentos de crise econômica – apontaram para as possíveis soluções encontradas pela
população para sobreviver, conviver e/ou superar as dificuldades. Se o negócio dava
prejuízo, a locação do imóvel para moradia podia ser uma solução...
Quanto à imprensa comercial, utilizei principalmente o acervo do jornal O Estado
de São Paulo. Nesse caso, a propaganda publicitária e mesmo as matérias relacionadas a
situações comuns (participação em eventos esportivos, associações de classe ou mesmo
obituários), deram a conhecer um pouco mais sobre o cotidiano dos moradores do bairro.
As queixas relacionadas a serviços urbanos, acidentes, violência, segurança pública em
geral, deram pistas das condições de vida no bairro, bem como dos conflitos e tensões ali
existentes.
Já os Diários Oficiais da União e do Estado permitiram identificar pessoas e
empresas atuantes no período investigado, envolvendo a abertura de firmas e falências,
além de decretos oficiais estabelecendo normas de conduta e funcionamento dos
estabelecimentos comerciais, regulação dos preços de gêneros alimentícios18, etc.
Ao indicar os nomes das pessoas envolvidas em atividades produtivas diversas, as
três fontes citadas acima – Almanaque Laemmert, Obras Particulares e Alvará e Licença –
propiciaram um acesso parcial aos atores que vivenciaram o cotidiano do bairro. Já para a
identificação daqueles para quem o bairro significou antes de tudo um espaço de moradia e
vivência, os Boletins de Ocorrência do Posto Médico da Assistência Policial que integram
o Fundo da Secretaria da Segurança Pública do Arquivo Público do Estado de São Paulo
(APESP), foram essenciais. Nesses documentos foram formalizadas as ocorrências
médico-policiais entre os anos de 1911 e 1940 o que propicia o acesso a um conjunto de
dados básicos acerca da população atendida: nome, cor, nacionalidade, idade, filiação
(quando se tratava de menores de 18 anos), profissão, endereço e motivação da ocorrência.
Enfim, ao detalhar informações elementares sobre personagens comuns, os Boletins de
Ocorrência permitiram dar rosto e identidade a pessoas anônimas, acessando a dimensão
humana no cotidiano do bairro.

18
Essa documentação encontra-se disponibilizada para consulta on line pelo site JUS Brasil. As publicações
disponibilizadas pelo site abrangem os Diários do Executivo, do Judiciário e Legislativo; Tribunais
Regionais Eleitorais, Tribunais Regionais Eleitorias; e Ministérios Públicos, a partir de 1891. Disponível em:
http://www.jusbrasil.com.br/
Em síntese essas foram as fontes que alicerçaram a tese. Resta falar sobre a
relevância de dois instrumentos utilizados ao longo de todo o processo de investigação e
escrita deste trabalho: a espacialização cartográfica das atividades produtivas em paralelo à
análise da iconografia.
Para a espacialização dos casos identificados no Almanaque Laemmert me vali dos
referenciais metodológicos já amadurecidos por outros autores que também dissertaram
sobre espaços físicos da cidade. Foi o caso dos trabalhos desenvolvidos por Heloísa
Barbuy (2006), José Eduardo de Assis Lefèvre (2006) e Beatriz Bueno (2005, 2008 e
2012) focados na reconfiguração urbanística e arquitetônica especialmente de áreas do
perímetro central. Nesses estudos, os autores buscaram reconstituir a localização dos
imóveis, lote a lote, por meio da elaboração de mapas conjecturais a partir de bases
cartográficas antigas. Nesse sentido, a elaboração de bancos de dados a partir dos anuários
e as listagens decorrentes dos mesmos permitiram visualizar: a) as atividades produtivas
conforme sua ocorrência em cada rua do bairro, obedecendo a ordem crescente da
numeração; b) a quantidade de atividades identificadas em cada uma das vias, o que
permitiu o reconhecimento das tendências de ocupação dos espaços pelas diferentes
atividades produtivas; c) as diferentes categorias produtivas, identificadas cada uma por
uma cor diferente, de forma que cada cor correspondesse a um setor produtivo. De uma
maneira geral, essas categorias envolveram: agentes comerciais; alimentação, alojamentos
e lazer; artes e ofícios; comércio de aparelhos elétricos, máquinas e equipamentos
domésticos e profissionais; comércio em geral; construção civil; educação; manufaturas;
informação e comunicação; móveis, utilidades e serviços domésticos; saúde; serviços
pessoais; transporte; e vestuário e acessórios pessoais. A partir desses procedimentos, a
espacialização dos dados resultou em mapas temáticos, reconstituindo dinâmicas sociais e
interfaces entre o bairro e o resto da cidade.
Julgo que a espacialização de informações sobre um determinado espaço urbano,
ainda que baseada em suposições, solicita uma base cadastral, de maneira a obter-se um
retrato lote a lote da realidade em questão. No caso desta tese, me vali da Planta SARA
Brasil19 por representar o bairro no seu estágio já consolidado, sobretudo antes das
reformas urbanísticas ocorridas a partir dos anos 1950. Entretanto, ainda que a planta
contenha informações detalhadas acerca da realidade física da área – curvas de nível,

19
A planta SARA Brasil é resultado do primeiro levantamento aerofotogramétrico realizado no Brasil, pela
empresa italiana Societá Anonima de Rilevamenti Aerofotogrammetrici – SARA, entre 1929 e 1930. O
exemplar utilizado neste trabalho é reprodução do original pertencente ao acervo do Arquivo Histórico de
São Paulo.
logradouros públicos, quadras e lotes (ocupados ou vazios), projeção dos imóveis sobre os
lotes – as dificuldades para identificação de cada endereço fornecido pelos almanaques
foram enormes, muitas vezes gerando dúvidas. No sentido de superar essas dificuldades, os
projetos arquitetônicos contidos nos pedidos de licença para construção e/ou reforma na
Série Obras Particulares do AHSP foram um instrumento de utilidade ímpar. Isso ocorreu
particularmente nos casos em que os processos contendo a planta de situação indicassem
que o imóvel se localizava na confluência de duas ruas. Na sequência, a comparação da
planta com a projeção do imóvel no SARA Brasil terminou por confirmar o endereço.
Dessa maneira, foi possível localizar com certeza um número razoável de edificações e
negócios instalados no bairro, estratégia utilizada como referência para as demais
espacializações.
Outra dificuldade encontrada para a espacialização dos endereços refere-se às
mudanças na numeração dos imóveis no decorrer do tempo. Pelo menos desde os anos
1900, o aumento de novas edificações na cidade colocou para o poder público a
necessidade de atualização da numeração dos prédios nas vias públicas, procedimento
conhecido como “emplacamento”20. Consequentemente, as alterações de endereço geraram
dúvidas acerca da posição dos imóveis e atividades, a depender das datas fornecidas pelos
anunciantes. Para solucionar esse problema, a utilização do Indice de Emplacamentos do
AHSP contemplando as atualizações segundo as ruas da cidade por ano de ocorrência, foi
fundamental. O mapa SARA Brasil data de 1930 e as informações a serem espacializadas
derivaram de diferentes anos. Portanto, para cada ano foi necessário atualizar os endereços
fornecidos pelos anunciantes de acordo com a data do emplacamento que envolvesse o
período focado.
Creio que o resultado final dessa metodologia de trabalho, ainda que apresente
algumas distorções incontornáveis, mostrou-se bastante satisfatório tendo em vista o
objetivo proposto de elaborar cartografias regressivas de tempos pretéritos. Através das
atividades espacializadas no mapa (devidamente caracterizadas pelas cores referentes a
cada setor produtivo) é possível perceber o papel dos moradores do Bexiga para a cidade,
objetivo central da presente tese. De outro lado, também permite perceber as possibilidades

20
Esses procedimentos apresentam uma frequência variável de rua para rua. Encontramos desde casos em
que houve apenas um emplacamento no espaço de quase trinta anos (caso da rua Dr. Luís Barreto – antiga
rua do Sol), como outros em que no mesmo período houve até cinco atualizações (caso das ruas Manoel
Dutra, Treze de Maio, e Av. Brigadeiro Luís Antônio). A primeira situação demonstra claramente que a
ocupação dessa via ocorreu de forma mais lenta do que nas demais, enquando nos outros casos a situação se
inverteu, impondo a necessidade de emplacamentos mais frequentes. Porém, de uma maneira geral, na
maioria dos casos, entre os anos de 1907 e 1930, foram realizados uma média de três emplacamentos por via.
de expansão deste ou daquele empreendimento para além das ruas do bairro, a depender de
sua localização em relação às vias de acesso a outros bairros da cidade.
A reconstituição do perfil material dos espaços em épocas pretéritas coloca uma
dificuldade de aproximação, impedindo que se perceba nuances que poderiam ser
esclarecedoras do cotidiano que se pretende compreender. Dessa maneira, a iconografia se
mostrou como a base documental ideal para remeter, mesmo que parcialmente, ao tempo
passado. Heloísa Barbuy21, José Eduardo de Assis Lefèvre (2006) e Beatriz Bueno (2005,
2008 e 2012) se utilizaram de maneira exemplar de fotografias e cartões postais antigos
para dar concretude aos olhos contemporâneos à cidade existente na passagem do século
XIX para o século XX. Contudo, ainda que o espaço-objeto de análise seja familiar, a
imagem que se possui dele ou é contemporânea (destituída de praticamente todas as
características peculiares ao momento histórico enfocado) ou é um recorte feito por um
fotógrafo, sob um determinado prisma, num determinado momento. Esse foi o caso dos
principais fotógrafos que atuaram na cidade e o seu legado, embora de um valor
inquestionável, é impregnado do papel desempenhado por cada um deles no exercício de
suas funções.
Um dos raros profissionais da fotografia a captar imagens de ruas do bairro do
Bexiga foi Guilherme Gaensly. O fotógrafo, além do estúdio fotográfico próprio localizado
na rua XV de Novembro, trabalhou durante 25 anos para a São Paulo Tramway Light and
Power Company. Ali, Gaensly “registrou obras e instalações do serviço paulistano de
energia elétrica, assim como as transformações ocorridas na capital e no Estado de São
Paulo”22. Foi a serviço da Light que Gaensly registrou a instalação dos trilhos do bonde na
Avenida Brigadeiro Luís Antônio e na rua Santo Amaro, nos primeiros anos do século XX.
Aurélio Becherini, como fotógrafo oficial da Prefeitura, ao registrar o “antes” e o
“depois” das reformas urbanas efetuadas pela municipalidade, talvez tenha sido o fotógrafo
que melhor traduziu as transformações ocorridas durante as duas primeiras décadas do

21
“Seguindo Militão pelas ruas da cidade”. In FERNANDES JR., Rubens; BARBUY, Heloísa; FREHSE,
Fraya – Militão Augusto de Azevedo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.34-49.
22
Guilherme Gaensly, nascido na Suíça em 1843, viveu no Brasil desde 1848, quando sua família emigrou
para o Brasil, mais precisamente para Salvador. Nessa cidade ele iniciou, no final da década de 1860, suas
atividades fotográficas, tendo se associado a Rodolpho Lindemann em 1882 na firma Photographia Gaensly
& Lindemann. No início dos anos 1890, ainda em sociedade com Lindemann, Gaensly se transferiu para São
Paulo, abrindo ali uma filial da firma baiana. No início dos anos 1900 a sociedade entre os dois fotógrafos
seria desfeita e Gaensly ficaria com a casa sediada em São Paulo. KOSSOY, Boris. Dicionário histórico-
fotográfico brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910). São Paulo: Instituto Moreira
Salles, 2002, p.155-159. As informações complementares sobre Gaensly foram obtidas no site da Fundação
Energia e Saneamento. Disponível em: http://www.energiaesaneamento.org.br/o-que-
fazemos/serviços/publicações/imagens-de-são-paulo-gaensly-no-acervo-da-light-(1899-1925).aspx>. Acesso
em: 20/11/2013.
século XX. Embora, segundo Angela Garcia23, seja possível perceber um “certo tom
otimista com relação aos empreendimentos urbanísticos capitaneados pela gestão
municipal”, as fotos de Becherini revelam (nos planos secundários) outros aspectos
igualmente relevantes (mas menos evidentes) para a compreensão do processo de
transformação material e social da cidade.
Os dois fotógrafos citados acima estavam vinculados a instituições públicas e
privadas envolvidas com grandes obras. Ao retratar determinados aspectos das
transformações urbanas, ao mesmo tempo em que fixaram momentos únicos, traduziram
interesses bem específicos: realçar o valor e o papel desempenhado pelo poder público e
pelas empresas responsáveis pela implantação de modernos equipamentos urbanos e assim
impulsionar a cidade em direção à modernidade. No entanto, dão a ver outras facetas
menos evidentes, inclusive áreas menos nobres da cidade, daí sua relevância no presente
estudo.
Vincenzo Pastore é autor de imagem emblemática do vale da Saracura na década de
1900 e de uma vista geral do bairro da Bela Vista, a partir do Viaduto do Chá24, e,
diferentemente dos demais, tem o mérito de ter registrado instantâneos de personagens
anônimos, sistematicamente ignorados pela iconografia “oficial”: carroceiros, engraxates e
vendedores ambulantes, entre outros. Dessa maneira, as imagens produzidas por Pastore,
ao revelar o lado humano e social da cidade em transformação, dão vida ao cenário
cotidiano de certos espaços.
Outra fonte iconográfica fundamental para este trabalho se encontra na Coleção
Geraldo Horácio de Paula Souza, sediada no Centro de Memória da Saúde Pública da
Universidade de São Paulo (CMSP). Rico acervo documental e iconográfico, produzido no
período em que o sanitarista Geraldo de Paula Souza esteve à frente do Serviço Sanitário
do Estado de São Paulo, mostra aspectos raros do cotidiano dos cortiços e zonas
desprovidas dos serviços sanitários, ou seja, facetas da “cidade não oficial”. Os registros
fotográficos de Paula Souza originaram-se de “missões fotográficas” realizadas com o
objetivo de conhecer e identificar os espaços potencialmente insalubres e,
consequentemente, sujeitos à intervenções sanitaristas do Estado. Como tal, representa o

23
Aurélio Becherini conhecido por ter sido repórter fotográfico de O Estado de São Paulo também prestou
serviços para outros jornais, como o Correio Paulistano e Jornal do Comércio, além das revistas A Cigarra,
A Vida Doméstica e Cri-Cri. Conforme notícia de seu falecimento, em maio de 1939, veiculada no jornal O
Estado de São Paulo, “contam-se por milhares (as fotografias) que tirou da Força Pública, da Guarda Civil
a serviço de diversas secretarias de Estado etc”. GARCIA, Angela C. O primeiro repórter fotográfico
paulistano. BECHERINI, Aurélio. Aurélio Becherini. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 31-41; O Estado de
São Paulo, 17/05/1939, p.5.
24
Instituto Moreira Salles. Na rua: Vincenzo Pastore. São Paulo: IMS, 2009, p.16-19.
próprio discurso sanitário visando instaurar a salubridade nos espaços públicos e privados,
assim como regulamentar as práticas sociais25. Através das imagens de Paula Souza foi
possível obter a visualização de faces invisíveis do bairro do Bexiga, no vale da Saracura,
onde as ações normatizadoras demoraram mais a chegar. Dessa maneira, foi levando em
conta o trabalho realizado por esses profissionais, como também as implicações de suas
próprias funções dentro do establishment daquele momento, que me utilizei do material
iconográfico desses fotógrafos.

Esta tese foi estruturada em quatro capítulos. No primeiro, reelaborei questões que
embora já desenvolvidas na dissertação de mestrado, são fundamentais para a apreensão do
objeto de estudo, já que dizem respeito aos atores responsáveis pela produção material e
configuração dos espaços ocupados. A partir dos aspectos geográficos que condicionaram
o tipo de ocupação, procurei identificar os atores que alavancaram o empreendimento.
Nesse sentido, analisei tanto as premissas dadas pela legislação sanitária e
urbanística para a edificação dos imóveis, como a ação fiscalizadora do poder público; de
outro lado, analisei as tipologias e programas arquitetônicos predominantes adotados por
proprietários e construtores. Na sequência, foram focados os usuários finais dos imóveis
edificados, de modo a discernir suas origens étnicas e sociais e a compreender sua inserção
no bairro. Por fim, a partir da identificação dos usos dados às edificações, busquei
reconhecer as tendências vocacionais daquele espaço, considerando-se sempre a ideia de
três Bexigas em um.
O segundo capítulo procurou, inicialmente, apreender o papel do bairro em relação
à cidade, através das plantas elaboradas entre 1881 e 1916. Contudo, uma análise mais
consistente das práticas de sobrevivência dos usuários do bairro alertou para aspectos
imperceptíveis a um primeiro olhar, os quais envolviam diferenças na própria distribuição
espacial e humana do bairro. Dai a necessidade de aprofundamento dos aspectos que
atribuíam especificidades às três áreas distintas no interior do bairro, fruto das interfaces
que estabeleciam com áreas lindeiras, verificando a heterogeneidade de espaços e atores
num bairro aparentemente homogêneo. Identifiquei assim as várias faces de um bairro e de
seus usuários e a distribuição dos diferentes espaços de trabalho, rua a rua. Ao longo da
pesquisa, foi possível constatar que a configuração assumida pelo bairro extrapolava os

25
De acordo com Eliana Almeida de Souza Rezende, “a utilização da fotografia pela medicina e pela justiça
foi uma constante (...). O caráter documental e comprobatório era tomado como prova de realidade e
acompanhava a rotina de trabalho de diferentes profissionais”. REZENDE, Eliana Almeida de. Construindo
imagens, fazendo clichês: fotógrafos pela cidade. Anais do Museu Paulista, v.15, n.1, São Paulo, jan.-
jun.2007, p.116.
limites dados pelo loteamento original. Pelo menos desde 1910, quando da criação do
distrito da Bela Vista, os limites do antigo Bexiga (con)fundiram-se com as áreas contíguas
ao vale da Saracura (entre o leito da atual Av. 9 de Julho e a rua Santo Antônio) e ao
arruamento empreendido pela Baronesa de Limeira (entre a rua Santo Amaro e a Av.
Brigadeiro Luís Antônio), gerando espaços diferenciados. Mais do que a ampliação do
espaço físico, esse alargamento territorial implicou na apropriação por atividades distintas.
Num segundo momento, tendo em vista a necessidade de parâmetros metodológicos para a
avaliação das atividades produtivas, elaborei um quadro classificatório contendo as
categorias econômicas envolvidas, a partir do qual foi possível analisar cada uma das áreas
identificadas. Ao mesmo tempo, introduzi estudos de casos emblemáticos, cujos
representantes foram colhidos ao longo dos levantamentos documentais, de maneira a
enriquecer as situações analisadas, colaborou para o resultado final do trabalho.
No terceiro capítulo realizei a análise dos casos exemplares das atividades
produtivas que se destacaram no bairro, abrangendo particularmente os setores de
comércio e serviços, de serviços pessoais, de transporte e as oficinas manufatureiras. Ao
lado das atividades notoriamente identificadas com o bairro, caso dos armazéns, quitandas,
açougues e padarias, das lojas de armarinhos, de ferragens e quinquilharias, dos
encanadores, eletricistas etc., contemplei atividades de aparente irrelevância, caso das
inúmeras cocheiras disseminadas pelo bairro, assim como das lavadeiras, que embora
jamais tenham constado dos anuários, foram peças fundamentais no cotidiano urbano.
Paralelamente, elaborei um histórico analítico dessas atividades, de modo a conceituar o
significado desses espaços de trabalho no contexto mais amplo da cidade. A constatação de
uma presença significativa de certos tipos de negócio determinou a introdução de estudos
de casos paradigmáticos envolvendo a trajetória dos atores envolvidos.
Diante de um cenário material recuperado, no quarto capítulo procurei traçar o
perfil dos moradores do Bexiga. Aos usuários já identificados – os proprietários de imóveis
e negócios – acrescentei as pessoas comuns, os personagens anônimos que vivenciaram o
dia a dia do bairro, morando ou trabalhando. Através dos registros efetuados pelo poder
público no momento dos atendimentos médicos à população, foi possível verificar as
informações básicas sobre essas pessoas: as origens étnicas, as formas de moradia e a
inserção no mercado de trabalho. O conjunto dessas informações, aliado ao
reconhecimento das causas que levaram à busca de atendimento médico viabilizou a
recuperação, ainda que parcial, de aspectos essenciais para a reconstituição da tessitura
social do bairro: os valores culturais que nortearam o convívio de pessoas de origens tão
diversas; a vulnerabilidade dessa população diante das transformações do espaço urbano,
onde a permanência de antigos costumes convivia com as práticas introduzidas pela
modernidade; a precariedade dos vínculos pessoais com o lugar, denunciada pela constante
mudança de endereços de moradia. Por fim, os estudos de caso, ao abordarem situações
específicas vividas por personagens “de verdade”, ajudaram a compor o retrato de pelo
menos uma parcela dos atores que habitaram o Bexiga.
CAPÍTULO 1 – O PERFIL MATERIAL DO BAIRRO RUA A RUA

O Bexiga data das últimas décadas do século XIX. Hoje definido como parte do
distrito da Bela Vista, este território decorre do processo de transformação da própria
cidade de São Paulo no período. O sucesso da produção cafeeira em terras paulistas fez de
São Paulo o centro comercial e financeiro do país, polarizando levas de mão de obra
estrangeira a partir de 1870, cujos desdobramentos na formação deste novo bairro são
evidentes.
Grande parte desses imigrantes se estabeleceu na capital, seja porque não se
adaptou ao regime de trabalho imposto nas lavouras cafeeiras, seja porque a urbe em
desenvolvimento se mostrou uma opção mais atraente. O crescimento demográfico
condicionou a demanda por moradias, problema que se agravou após 1888 com a
Abolição e o afluxo de ex-escravos e imigrantes para as cidades em busca de trabalho.
É nesse cenário que São Paulo, de cidade acanhada, limitada à colina entre os rios
Tamanduateí e Anhangabaú, iniciou sua expansão. As áreas envoltórias do perímetro
urbano foram adensadas e novos bairros surgiram nos arrabaldes da cidade.
Na “Planta da Capital do Estado de São Paulo e seus Arrabaldes”, de 1890,
desenhada e publicada por Jules Martin, vemos que a área (cercada em verde) apontada
como Bela Vista, se comparada a outros bairros, está muito próxima da colina (cercada em
laranja). No entanto, acidentes geográficos dificultavam tal articulação. O relevo
acidentado e os córregos do Saracura e do Bexiga tornavam a área pouco atraente para
ocupação, determinando uma relativa desvalorização dos terrenos ali localizados – se
comparados a loteamentos próximos, como foi o caso do Morro dos Ingleses –, atraindo,
por outro lado, as camadas médias e pobres da população em expansão. Já desde a
primeira década do século XIX, essas características geográficas propiciaram que a área se
tornasse refúgio de escravos fugidos26 e viesse a mesclar uma população composta de
imigrantes e brancos ou negros de baixo poder aquisitivo.

26
Conforme o “requerimento de Marciano Pires de Oliveira e outros pedindo permissão para fechar os
lugares por onde passa o ribeiro do Bexiga, em cujas margens se acoutam escravos fugidos, e ladrões[...]”,
3ª Sessão Ordinária a 09/05/1831. Atas da Câmara, vol.XXVI, p.62. AHSP.
Figura 1 – Planta da Capital do Estado de S. Paulo e seus arrabaldes. Desenhada e publicada por Jules Martin, em 1890.
Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20): set/out.2008 http://www.arquivohistorico.sp.gov.br. Consulta
em outubro/2012.
Na presente tese não tenho a intenção de fazer uma tradicional história de bairro,
mas, com base em elementos da cultura material – arquitetônicos e urbanísticos –, traçar o
processo de configuração daquele espaço, partindo de estudos anteriores, em particular da
minha dissertação de mestrado defendida na FAUUSP em 201027. Em linhas gerais, neste
capítulo busquei analisar aspectos materiais do bairro e os atores envolvidos na produção
dos espaços: quem empreendeu o loteamento das chácaras? Quem comprou os lotes para
posterior construção? Quem construiu as casas? Qual foi o papel do poder público e da
legislação sanitária e urbanística na orquestração do processo de edificação dos imóveis?
Quais foram os usos predominantes? Quem foram os principais usuários do bairro? Em
que medida houve o predomínio do elemento imigrante, sobretudo de italianos, na
formação e uso daquele espaço?

1.1 Os loteadores

As primeiras notícias sobre a área onde hoje se localiza o bairro do Bexiga


remetem a Nuto Sant’Anna (1937). Segundo o autor, em 1559, a área que originalmente
“faria parte da sesmaria do Capão” pertencia a “Antônio Pinto, tabelião em Santos”.
Aproximadamente dois séculos depois, em 1750, a área “seria conhecida por chácara da
Samambaia, propriedade agrícola de Pedro Taques, o historiador”. Data de 1794 o
registro da venda por Melchior Pereira a Antônio Soares Calheiros e Abreu de “uma
chácara nesta cidade na paragem Anhangabahú, denominada vulgarmente Bexiga”.
Beatriz Bueno ao investigar a “Décima Urbana” de 1809, primeiro imposto predial
estabelecido para as cidades brasileiras, identificou que Antônio Soares Calheiros era
proprietário das doze casas que compunham o Largo do Bexiga, “residindo no n.1, num
sobrado de uma loja e um lanço”(2008, p.36-37). O topônimo, nome geográfico do
Bexiga, associado à varíola, doença que assolava boa parte das cidades brasileiras,
inclusive São Paulo, remetendo ao lugar onde provavelmente foram registrados casos e
quem sabe a esse indivíduo, cujo apelido aludia à presença de Antônio Calheiros. Este era
também conhecido como Antônio Bexiga e esse dado é registrado por Saint-Hilaire na sua
primeira visita a São Paulo, em 1819, ocasião em que pernoitou por algumas noites na
“[...] hospedaria de um tal Bexiga, que possuía, dentro de São Paulo, vastas pastagens”

27
Formação do bairro do Bexiga em São Paulo: loteadores, proprietários, construtores, tipologias edilícias
e usuários (1881-1913). Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação da FAU-USP,
2010.
(Saint-Hillaire, 1976, p.121-122). Em 1878, a chácara do Bexiga foi vendida por Thomaz
Luís Álvares (ou Thomaz Cruz) a Antônio José Leite Braga. No mesmo ano foram
publicados os primeiros anúncios para a venda de terrenos no Bexiga no jornal A
Província de São Paulo28.
Os fatores geográficos apontados acima, e a possível vinculação com a varíola
(doença então alcunhada de “bexigas”) baratearam a chácara, e o empreendimento
imobiliário ali realizado destinou-se predominantemente às camadas médias e baixas da
população.
Desde o lançamento do loteamento no jornal A Província de São Paulo, entre 1883
e 1891, ao lado dos anúncios para venda de casas e terrenos aparecem algumas casas para
aluguel nas ruas Monte de Ouro (atual João Passalacqua), Santo Amaro e São
Domingos29. Dessa maneira é possível depreender que o empreendimento imobiliário
avançava e destinava-se à exploração locatícia das casas construídas, tendência que iria se
confirmar na primeira década do século seguinte.
Paulatinamente, alguns serviços urbanos foram instalados na área, de modo a
valorizar o loteamento e atrair outros empreendedores imobiliários. Em 1891, foi
inaugurada a linha de bonde de tração animal entre o Bom Retiro e a Bela Vista pela Cia.
Ferro Carril de São Paulo. Já o conforto de serviços hoje considerados essenciais, como a
instalação de encanamentos de águas e esgotos, demorou a chegar e data somente de 1906
(vinte e oito anos após o início do empreendimento).
Os primeiros anúncios referentes ao loteamento, publicados entre maio e outubro
de 1872, fazem alusão aos atrativos do empreendimento que, ao que tudo indica, não
tivera o sucesso de vendas esperado pelos capitalistas envolvidos. O leilão anunciado em
abril e maio de 1881, nove anos após o primeiro anúncio, enfatiza a presença dos
chafarizes e tanques públicos que abasteciam a área de água e o cercamento dos terrenos:
NOVO LEILÃO NA 5ª FEIRA, 05 DO CORRENTE ÀS 5 HORAS DA TARDE...
Vende em leilão, sábado, às 5 horas da tarde por conta e ordem de quem pertencer,
terrenos prontos para edificar situados no Bexiga, junto ao Tanque do Reúno, a 5 minutos
da cidade. Esses belíssimos terrenos constam de 50 braças de frente, sobre mais de 35 de
fundo, banhados todos pelas águas do tanque Reúno.
CHARAFIZ
(...) um chafariz de bela e cristalina água nativa, dando mais de 50 pipas por dia, é que ali
há de mais lucrativo. O terreno é todo cercado por fio inglez e postes.

28
A Província de São Paulo, 10/05, 23/06, 17 e 27/07 e 30/11/1878.
29
A Província de São Paulo, janeiro e dezembro/1883; e O Estado de São Paulo, maio/1891.
O leilão será a queimar? Em um só lote, ou em detalhe à vontade do comprador.
O comprador dará 20% de sinal (...) 30.

O anúncio alude a terrenos no Bexiga, mas em 22 de junho de 1883, é


encaminhado ao Presidente da Câmara Municipal de São Paulo um abaixo-assinado
solicitando “a mudança do nome de Campo do Bixiga para o de Campo da Bella Vista,
visto como aquelle nome nenhuma tradição nos faz recordar” 31. Essa iniciativa evidencia
as intenções dos peticionários: mudar o nome do bairro para revesti-lo de uma nova
conotação e valorizá-lo, libertando-o da alcunha pejorativa de “Bexiga” que remetia à
doença e à topografia acidentada que marcava boa parte da área, enfatizando apenas a
“Bela Vista” das suas partes mais altas. Partindo do pressuposto de que as pessoas que
assinaram o documento eram proprietárias de terrenos no bairro, é compreensível que
quisessem “agregar valor” ao empreendimento.
Entre os signatários do documento figuram alguns sobrenomes de famílias
tradicionais paulistanas, comprovando a participação da velha oligarquia em loteamentos,
inclusive em empreendimentos populares. Esse é o caso de João Pedro da Veiga Filho,
Flávio de Oliveira Queirós, Tobias de Aguiar, João Otávio Nébias e João Fermino Martins
Barros. Ali também figuram Eugênia Pereira de Albuquerque, viúva de Antônio José Leite
Braga, assim como seu atual marido, Fernando de Albuquerque.
Independentemente de sabermos se a mudança de nome realmente atingiu o
objetivo de valorização formal, o fato é que em 26 de dezembro de 1910 foi promulgada a
Lei nº 1.242, criando “o districto de Paz de Bella Vista, desmembrado do da Consolação,
do municipio da Capital” (grifo nosso)32. Os peticionários haviam alcançado pelo menos
parte de seus propósitos. Sintomático é constatar que após a mudança, o processo de
comercialização continuou e, dez anos mais tarde esses personagens desapareceram, o que
leva a concluir que a primeira etapa do empreendimento havia sido cumprida.

1.2 Os proprietários dos imóveis

Em 1893, a Prefeitura Municipal introduziu novos procedimentos para a


construção de novas edificações, tornando obrigatória a apresentação de projetos

30
A Província de São Paulo. 04 e 05/05/1881.
31
Papéis Avulsos, AHSP.
32
Diario Official do Estado de São Paulo, 04/01/1911.
Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/diarios/DOSP/1911/01/04>. Acesso em: 07/06/2014.
arquitetônicos junto de requerimentos pelos particulares interessados em edificar. A
documentação remanescente – Série Obras Particulares –, hoje sediada no Arquivo
Histórico de São Paulo (AHSP), é riquíssima para se reconstituir em pormenores a história
do bairro e pôr luz em diversos personagens33. Entre os 1.170 processos levantados no
Arquivo Histórico de São Paulo referentes à Bela Vista, localizei 552 proprietários, 344
dos quais relacionados a novas edificações.
De acordo com os dados analisados, excetuando-se os casos extremos do
(provável) português Joaquim Antunes dos Santos, com 23 imóveis em seu nome, e da
família Passalacqua, possuidora de pelo menos 21 imóveis, encontrei apenas seis pessoas
que concentravam mais de oito propriedades em seu nome. Os imóveis restantes eram, em
geral, pertencentes a proprietários de um ou no máximo dois imóveis. Esses dados
sumários autorizam concluir que o bairro foi construído, predominantemente, por pessoas
comuns, na sua grande maioria imigrantes ou seus descendentes, que de algum modo
conseguiram se firmar como proprietários de bens de raiz, constituindo parte do imenso
universo de anônimos que contribuíram para a produção material da cidade de São Paulo.
Através dos processos das Obras Particulares, é possível acompanhar a trajetória
de alguns desses atores pelas ruas do bairro para melhor compreender o caráter de sua
presença. Joaquim Antunes dos Santos, por exemplo, ao falecer em 20 de abril de 1913,
teria deixado quatro supostos herdeiros34. Desde o primeiro registro em seu nome, datado
de 10/04/1899 (quando solicitou licença para a construção de duas casas à “rua Ruy
Barbosa, pegado ao 27”), e o último de 03/10/1912 (no qual solicitou a construção de um
muro à rua “Ruy Barbosa, junto ao 143”), se passaram treze anos. Durante esse tempo ele
construiu e reformou diversas casas em três ruas diferentes, porém próximas: Rui Barbosa,
Fortaleza e Conselheiro Ramalho. Entre julho e agosto de 1906, Joaquim Antunes
solicitou licença para construir dez casas na rua Fortaleza: primeiro, seis casas “junto ao
número 12” e, em seguida, mais quatro casas sem identificação de número. Seis anos mais
tarde, em 1912, Joaquim Antunes construiu mais duas casas e uma oficina de marcenaria,
respectivamente nos números 13 e 11 da mesma rua. Um outro exemplo de seus
empreendimentos está no processo de 17/12/1907. Ali, ele diz que sendo “proprietário de

33
À época de nosso mestrado, desenvolvemos pesquisa para o Projeto Arquivo Histórico Municipal
“Washington Luís”: a cidade de São Paulo e sua arquitetura, uma parceria do Arquivo Histórico Municipal
“Washington Luís” e da FAUUSP, realizada através do programa de pesquisa em Políticas Públicas da
FAPESP, de 2008 a 2010. O projeto objetivava a informatização de parte dos documentos da Série Obras
Particulares (OP) pertencentes ao acervo daquele arquivo. As informações obtidas a partir desses
documentos foram fundamentais para a metodologia utilizada em nosso trabalho. Para consultas, ver
http://www.projetosirca.com.br/.
34
Cartório do Primeiro Ofício, Maço 361, 1913. Arquivo do Estado de São Paulo.
uma cocheira nos fundos da rua Conselheiro Ramalho, n.222, e desejando transformá-la
em duas habitações para operário, conforme a planta junta, solicita a licença
necessária”. A iniciativa de Joaquim Antunes de transformar uma cocheira em duas
habitações “operárias” demonstra alguns aspectos característicos do bairro do Bexiga: o
aproveitamento de todas as áreas disponíveis para a construção e/ou reforma com fins
locatícios, o direcionamento das iniciativas aos segmentos mais pobres, e uma certa
tendência ao encortiçamento.
Outros personagens são os membros da família Passalacqua, umas das mais antigas
do bairro, eternizados na toponímia das ruas35. O primeiro registro encontrado em nome
de José Maria Passalacqua data de 23 de novembro de 1891 e está relacionado a um
pedido de “alinhamento para edificação” à rua Major Diogo, esquina com a rua
Conselheiro Carrão. Já João Passalacqua, em 04 de maio de 1899 encaminhou à Diretoria
de Obras da Prefeitura um requerimento referente à “abertura de um portão” no muro da
propriedade, à rua Conselheiro Ramalho n. 82. No mesmo ano, em 11 de julho, solicitou
licença para “aumentar um puchado” na casa da rua Monte de Ouro (atual João
Passalacqua) n. 45. Em 04 de setembro de 1907, o Monsenhor Camillo Passalacqua pediu
licença para reformar a casa da rua Conselheiro Ramalho n. 82. Esse pedido seria seguido
de outros dois, datados de 10 de fevereiro de 1912, para as ruas João Passalacqua e
Manoel Dutra. Esses dois sujeitos indicam que a família possuía diferentes imóveis no
bairro. Entretanto, o caso que mais chama a atenção é o de José Maria que, sozinho,
apresentava 15 imóveis em seu nome: oito propriedades à rua Conselheiro Ramalho; três à
rua Major Diogo; uma à rua João Passalacqua; uma à rua da Abolição; uma à rua Maria
José; e outra à rua Rui Barbosa. No caso especial desse último imóvel, o projeto
arquitetônico que acompanha o processo demonstra claramente tratar-se de um cortiço. O
processo teve início em 11/07/1914 e prolongou-se até pelo menos 15/03/1917, quando
um parecer do engenheiro Saboya deixa claro que se tratava de “aumento de cortiço
existente, em desacordo com o Código de Posturas, Artigo 20, não sendo pela lei nº 1788,
Art. 5º, então vigente, tolerados novos cortiços e, consequentemente, aumento dos
existentes”36.
A análise desses processos não deixa dúvidas quanto à exploração locatícia dos
imóveis, no âmbito de um mercado imobiliário rentista vigente na cidade até a Lei do
Inquilinato de 1942. Se não toda a família, pelo menos José Maria construiu e reformou

35
Trata-se das ruas João Passalacqua, antiga rua Monte de Ouro, localizada entre as ruas São Domingos e
Manoel Dutra; e a Monsenhor Passalacqua, entre as ruas Pedroso e Humaitá.
36
Obras Particulares, 11/07/1914, Cx. R2. Fonte: AHSP.
para alugar, e fez isso atendendo aos diversos usos possíveis dos imóveis. Das quinze
edificações registradas em seu nome, oito eram para uso comercial e as sete restantes
destinavam-se a moradia, com o detalhe que uma delas era um cortiço. Digamos que ele
não apenas explorou o mercado de locação, mas levou essa exploração às últimas
consequências. Cabe acrescentar que no lançamento do Imposto Predial para os anos de
1915 e 1916, José Maria Passalacqua consta como proprietário de 23 imóveis, distribuídos
pelas ruas da Abolição, Conselheiro Carrão, Conselheiro Ramalho, Major Diogo e Av.
Brigadeiro Luís Antônio, pelos quais deveria pagar o montante de pouco mais de
(3:501$420) três mil, quinhentos e um contos de réis. Naquele ano, o valor cobrado a José
Maria seria superado apenas pelos valores a serem pagos por Maria Eugenia Braga
(5:622$860 réis) e Amaro Rodrigues da Silva (5:657$960 réis)37.
Todavia, nem só grandes proprietários ocuparam o bairro. Um bom exemplo da
atuação de pequenos empreendedores é Manoel (ou Emanuele) Paladine. Ele se destacou
por ser um dos poucos personagens a jamais mudar de endereço. Nós o encontramos em
diferentes momentos, entre 1899 e 1915. Na primeira ocasião, em 19/08/1899, solicitou
licença para construir uma casa na rua Manoel Dutra n. 1538. O projeto apresentado era
muito simples: sala, quarto e cozinha. Em 20/01/1911, doze anos depois, aparentemente já
estabelecido com uma quitanda no mesmo endereço, solicitou alvará de licença e guia para
“pagar o imposto do negócio”, licença essa renovada no final do ano, quando “desejando
continuar com o negócio, neste endereço, solicita guia para pagamento do imposto do
próximo ano”39.
Sua última aparição na Diretoria de Obras foi em 08/02/1912, quando entrou com
outro requerimento: “desejando transformar uma janela da frente de seu prédio em porta,
solicita guia para pagamento de imposto”. Essa transformação certamente tinha como
objetivo abrir uma (outra) porta para quitanda. O requerimento foi aprovado e a obra
orçada em 150$000 réis. Manoel Paladine parece ter levado uma vida bem modesta,
começando com um prédio de uso residencial com somente três cômodos e quintal e
transformando-o num negócio que não deve ter dado errado, já que renovou a licença pelo
menos duas vezes junto à Seção de Polícia e Higiene40 da mesma Prefeitura.

37
Arrecadação do Imposto Predial e Taxa de Esgotos, Lançamento para os exercícios de 1915 e 1916. Diário
Oficial do Estado de São Paulo, em 20 e 21/11/1914.
Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/
38
Obras Particulares, Processo de 19/08/1899, v. 243, p. 107. Fonte: AHSP.
39
Alvará e Licença, Processos de 20/01/1911, v. 721; e 27/12/1911, v. 722. Fonte: AHSP.
40
Trata-se da Série Alvará e Licença (AL), Grupo Polícias Administrativa e Higiene, Fundo Prefeitura
Municipal, 1906 a 1921, do Arquivo Histórico de São Paulo. As solicitações contidas nessa Série se referem
a: abertura de negócios; renovação de licença; mudança de endereço; transferência para o nome de outro
Não sabemos se em algum momento Paladine aumentou sua casa, se acrescentou
cômodos no espaço disponível no quintal, ou se fez qualquer tipo de alteração no imóvel
além da “transformação da janela em porta”. O fato de ter construído uma casa, adaptada
posteriormente para acomodar um negócio, indica que o imóvel possuía uso misto.
Paladine certamente está entre os inúmeros proprietários que sobreviveram no bairro do
Bexiga à custa de seu trabalho como pequeno comerciante, fato comprovado pela sua
presença nos exemplares do Almanaque Laemmert de 1913 e 1914, onde ele consta como
proprietário de uma quitanda.
Vale destacar ainda uma informação que demonstra o contraste entre os
proprietários do bairro. No lançamento do mesmo Imposto Predial, para 1915 e 1916, que
cobrava de José Maria Passalacqua a vultosa quantia de 3:501$420 réis, Manoel Paladine
consta como proprietário de um único imóvel, justamente aquele localizado na rua Manoel
Dutra n.15, pelo qual devia pagar 69$360 réis (sessenta e nove mil, trezentos e sessenta
mil réis).
Não me alongarei na descrição de casos isolados e que já foram objeto de análise
em minha dissertação de mestrado. Importa ressaltar que a grande maioria dos imóveis do
bairro destinava-se a pequenos e médios empreendedores. Se os proprietários tinham um
pouco mais de recursos, os locatários eram gente pobre, que dispondo de poucos recursos
se sujeitavam a viver em condições difíceis, morando de aluguel em pequenas casas ou
mesmo em cortiços, procurando através do trabalho familiar acumular algum capital que
propiciasse a compra de um terreno para construção futura de um imóvel próprio.
Primeiro a compra do lote, posteriormente a construção dos primeiros cômodos (de acordo
com as exigências da municipalidade) e, com o passar do tempo, o acréscimo de outros.
Esse processo é claramente visível nos requerimentos encontrados em nome de uma
mesma pessoa e referentes a um mesmo endereço. Após os pedidos de alinhamento para
construção, quase que invariavelmente se sucederam os pedidos de licença para
acréscimos. Alguns anos mais tarde, observam-se os pedidos de licença para construção
nos fundos do terreno, visando à ocupação de outros familiares, ou mesmo a locação para
terceiros com intuito de aumentar a renda da família. Ao lado dos acréscimos para
moradia apareciam os acréscimos para abertura de negócios, como mais uma forma de
aumentar os rendimentos familiares.

proprietário; colocação de letreiro na fachada do estabelecimento; e licença para funcionamento fora dos dias
e horários previstos pela lei. Como se vê, a coleção envolve informações que dizem muito sobre o tipo de
negócios realizados na cidade.
1.3 A construção de um bairro: tipologias e programas edilícios no bairro do Bexiga
(1881-1914)

Embora a literatura sobre o bairro forneça indícios de que se tratava de uma área
ocupada basicamente por “casas operárias” e cortiços habitados pelas camadas sociais
mais pobres, observamos, através dos exemplares remanescentes, a presença de casas
claramente destinadas à moradia de classe média. Assim, tendo em vista a relevância da
reconstituição material do bairro, me utilizei do conjunto documental da Série Obras
Particulares, cujos projetos submetidos à aprovação da Prefeitura por particulares foram
fundamentais para alcançar os objetivos propostos. A série contém os requerimentos
encaminhados à Prefeitura entre 1881 e 1914, nos quais constam pedidos de licença para
alinhamento, construção e/ou reforma de edifícios destinados a residências simples e
mistas, fábricas e manufaturas ou negócios em geral. Já a partir de 1915, privilegiei os
processos que envolvem a construção e/ou reforma de prédios destinados ao exercício de
atividades produtivas.
Inicialmente, a intenção era investigar somente os prédios novos, contudo, os
dados sobre as reformas e acréscimos em edificações existentes se mostraram demasiado
significativos para serem ignorados, principalmente aqueles correspondentes ao período
de 1905 a 1914, quando o processo de construção de imóveis no bairro se torna mais
intenso. Se pensarmos que os acréscimos visavam, sobretudo, aumentar a área construída
das casas, seja para melhor acomodar os moradores, seja para possibilitar o exercício de
atividades produtivas, a sua análise fornece informações elucidativas sobre a vida dos seus
ocupantes.
Convém salientar que foram consultados todos os processos referentes ao bairro
nos períodos supracitados e, por meio dos dados coletados, percebi que, desde a primeira
década do loteamento até 1889, houve um crescimento moderado de, no máximo, 13
novas edificações por ano. Observa-se por meio da dinâmica de construção a partir de
1893, com 28 novas edificações, até 1895, e desde então 41 edificações/ano. Em 1899 o
número de construções decaiu para 34 novas edificações, chegando a apenas 12 em 1901 e
voltando a subir a partir de 1905, agora num movimento quase sempre ascendente,
chegando ao número máximo de 109 em 1913. Já no ano seguinte, 1914, houve um
decréscimo no número das novas construções para moradia ou negócio.
A paralisação do setor que há anos apresentava um crescimento contínuo deve ser
analisada de um ponto de vista mais abrangente. Desde 1913, o agravamento da crise
econômica mundial com a consequente paralisação do mercado do café refletiu-se nos
setores produtivos nacionais, trazendo recessão, alta de preços e desemprego. O problema
se agravaria com a I Guerra Mundial, em 1914, e a indústria da construção civil não ficou
imune.
Significativamente, no mesmo ano de 1914, o único setor a apresentar alta na
atividade construtiva no Bexiga foi aquele dedicado às reformas e acréscimos para
negócios, o que leva a pensar na hipótese de que em tempos de alta de preços e
desemprego reformar a casa para abrir um negócio podia ser uma solução viável para
escapar da crise ou que os pequenos e médios empreendedores que ainda dispusessem de
algum capital preferissem investir em negócios próprios e menos arriscados.
Esse panorama sucinto configura duas fases de apogeu do crescimento do bairro, a
primeira, de 1882 até 1899; a segunda, de 1905 até 1914. As duas últimas décadas do
século XIX assistiram ao primeiro surto construtivo vivido pela cidade ainda em fins do
Império. Desde os anos 1870, São Paulo iniciou sua expansão urbana. O crescente afluxo
de estrangeiros a partir dos anos 1880-1890 implicou na demanda por novas moradias e
novos bairros foram se formando. Prova disso são os inúmeros anúncios nos jornais da
época, alardeando as vantagens desse ou daquele empreendimento nos novos bairros.
Porém, num primeiro momento isso ocorreu numa intensidade mais ou menos estável,
excetuando-se o período 1895-1899, quando esse ritmo intensificou-se um pouco mais.

1.3.1 Identificação das tipologias e programas arquitetônicos predominantes

A leitura dos processos da Série Obras Particulares, assim como dos projetos
arquitetônicos ali contidos, demonstrou que o bairro do Bexiga apresenta um universo
bem mais complexo do que aquele relatado por Carlos Lemos em A República ensina a
morar (melhor) (1999) e por Luciana Gennari em As casas em série do Brás e da Mooca
(2005). No início da análise dos processos acreditava que os critérios metodológicos
utilizados por esses autores seriam suficientes para o trabalho proposto. Porém, ao tentar
identificar as formas de ocupação do espaço com base na implantação dos imóveis nos
lotes, das tipologias edilícias e dos programas arquitetônicos predominantes, me deparei
com uma diversidade de soluções que era impossível de ser ignorada. O aproveitamento
de terrenos irregulares, através da “reinvenção” de tipologias usuais, adequando as
necessidades programáticas às condições dos terrenos, bem como a introdução das casas
tipo “apartamento”41, otimizando o aproveitamento dos espaços, foram alguns exemplos
da diversidade encontrada no bairro. Ainda que essas soluções não fossem a regra,
levantaram questões sobre os modos de construir, de morar e de trabalhar na região, dando
origem ao que eu chamaria de traços de individualidade do bairro, elementos diacríticos
estes relacionados à diversidade social dos atores que ali atuaram e das práticas que ali
exerceram.
Como já me referi acima, a ocupação da área abrangida pelo bairro do Bexiga foi
condicionada por aspectos geográficos determinantes: a topografia irregular e de difícil
acesso e a proximidade dos rios Anhangabaú, Saracura e Bexiga, onde as baixadas
próximas aos cursos d’água e sujeitas a constantes cheias e inundações na época das
chuvas foram marcadas pela insalubridade e pela dificuldade natural de conexão com
outras áreas da cidade. Esses fatores, de certa maneira, condicionaram o perfil dos
empreendimentos nas zonas junto dos córregos a uma parcela da população de baixo
poder aquisitivo e com poucas chances de escolha. Nesse sentido, ali viveram ex-escravos
ou imigrantes de poucas posses. No Vale da Saracura encontrei não apenas italianos, mas
significativa concentração de afrodescendentes egressos da escravidão, sobretudo aqueles
sem inserção no mercado formal de trabalho, como já demonstrado por Maria Cristina
Wissenbach42. As proximidades da rua Saracura Grande – ocupada atualmente pelo leito
da avenida Nove de Julho (altura aproximada das atuais ruas Almirante Marques Leão,
Una e Rocha, e da praça 14 Bis) foi uma zona importante de concentração de
afrodescendentes em São Paulo, algo que a historiografia ignorava até os estudos
supracitados. Essa foi uma das áreas mais prejudicadas, tanto pelas condições topográficas
como pela ausência de infraestrutura urbana, que só chegaria ali anos mais tarde, a partir
do prolongamento da rua Conselheiro Carrão e da abertura das vias apontadas acima.
Iconografia preciosa produzida no período em que o sanistarista Geraldo Horácio Paula
Souza esteve à frente do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo, revela a precariedade
das habitações na área.
De uma maneira geral, tais condições se estenderam do vale da Saracura até as
proximidades da rua Treze de Maio, a partir de onde ainda que o relevo mantivesse os
declives característicos do bairro, a distância das áreas inundáveis permitia uma ocupação
mais regular do espaço pelas camadas médias da população, sobretudo entre aquela via e a

41
Sobrados contendo duas habitações unifamiliares: uma no térreo e outra no pavimento superior.
42
WISSENBACH, Maria Cristina Cortes. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade
possível. História da Vida Privada no Brasil, v. 3, São Paulo: Cia.das Letras, 1998, p.115-117; e
KOGURAMA, Paulo – Conflitos do imaginário. A reelaboração das práticas e crenças afro-brasileiras na
“metrópole do café”. 1890-1920. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2001, p. 210 a 212.
rua Major Diogo. Porém, os riscos de inundação voltavam a incidir na área entre as ruas
Major Diogo e Santo Amaro, por onde corria o córrego do Bexiga (que equivale,
aproximadamente, ao percurso das atuais ruas Japurá e Humaitá), não por acaso ocupado
pelo complexo de cortiços da Vila Barros (Navio Parado, Pombal, Vaticano e Geladeira)
por volta dos anos 1920 (Bonduki, 1998, p.68-69). A partir da rua Santo Amaro até a Av.
Brigadeiro Luís Antônio as condições físicas do terreno – mais plano e regular – se tornam
mais propícias à ocupação por camadas médias e altas população, justificando assim a
presença dos inúmeros moradores e negócios diferenciados ali encontrados no decorrer
das pesquisas.
Enfim, para compreender como esses atores sociais se apropriaram do bairro,
nessas condições específicas, foi necessário pensar em outras formas de abordagem que
abarcassem a complexidade do universo investigado. Primeiro, através da identificação
das formas de implantação nos lotes; em seguida, pelo detalhamento das tipologias
edilícias adotadas e organizadas pelo número de cômodos construídos; por fim, pela
análise do caso especial dos cortiços.
Convém salientar a dificuldade de se precisar para os fins almejados o conceito
aqui adotado do que seriam as camadas baixas e médias.
Na primeira categoria enquadram-se afrodescendentes e imigrantes pobres, mas
não necessariamente excluídos do mercado formal de trabalho. Nesse sentido, um caso
interessante é o de Manoel Gomes da Silva, português nato e frentista contratado pelo
Escritório de Ramos de Azevedo, ali atuando por doze anos como estucador encarregado
da ornamentação das fachadas. Manoel participou das obras monumentais do Palácio das
Indústrias e do Mercado Municipal e ganhava 12 mil réis mensais, ou seja, possuía renda
fixa e estava inserido no mercado formal de trabalho. Como ele, certamente ali moravam
muitas lavadeiras e outros sujeitos vinculados ao mercado formal com ganhos inferiores
àqueles necessários para pagar o aluguel de uma moradia unifamiliar, daí a alternativa dos
cortiços (Bueno, 2015, p.203-204). Tal categorização permite inclusive rever o conceito
de cortiço e desvestí-lo das conotações pejorativas emanadas do discurso higienista de
então, na linha das pesquisas de Margareth Rago (2004, p.411). Para Rago, os cortiços
eram espaços privilegiados de sociabilidade na metrópole em transformação e ali
entreteciam-se redes de solidariedade, parentesco e amizade. O estereótipo das condições
sanitárias precárias veiculado no discurso da matriz higienista acabou por criar no
imaginário coletivo a representação de um perfil social igualmente precário, encobrindo a
pluralidade de pessoas que ali habitavam.
Por setores médios, entende-se os segmentos sociais envolvendo “negociantes,
funcionários públicos, guarda-livros e os que viviam de rendas, famílias que começavam
a experimentar um pouco mais de estabilidade”, tal como definido por Maria Luiza
Ferreira de Oliveira em seus estudos sobre a “experiência da urbanização” vivenciada
pelas camadas médias – aliás, de difícil definição – no processo de transformação da
cidade de São Paulo entre 1874 e 1901 (Oliveira, 2005, p.86-87, grifo nosso).

1.3.2 Implantação nos lotes

Durante os primeiros anos do loteamento, a ocupação dos lotes se mostrou bastante


tradicional (Reis Filho, 2ª Edição, 2004, p.43- 62), caracterizando-se basicamente por:
 Lotes de testada estreita e compridos, possuindo aproximadamente 5m de frente
por 50m de fundo. Podiam ocorrer lotes menores, com um mínimo de até 4 metros
de frente, ou ainda lotes que ultrapassavam essas medidas, com uma média de 6 a
7 metros de frente. Em relação à profundidade dos terrenos, com o avançar dos
anos, percebe-se uma certa tendência para a construção no fundo dos lotes,
especialmente a partir da década de 1910, implicando na consequente diminuição
das áreas livres destinadas aos quintais. Dentro das casas, encontra-se uma forma
típica de distribuição espacial dos cômodos (todos enfileirados, desde a sala da
frente até a cozinha nos fundos).
Figura 2 - Esta planta se refere a uma casa a ser
construída à rua Manoel Dutra nº 29 (tinta), para
Francisco Lamboglia, em 1906. Ela demonstra uma
forma tradicional de implantação no lote. Construída no
alinhamento, a casa térrea sobre porão apresenta
fachada com duas janelas voltadas para a rua e um
corredor lateral de onde se tem acesso ao interior da
residência através de duas portas, uma na sala de visitas
e outra na sala de jantar. O corredor lateral também
leva ao quintal. Nos fundos do quintal, à esquerda, a
latrina. Internamente, da sala de visitas parte um
corredor, dando acesso a dois quartos e à sala de jantar
que se comunica com a cozinha. Nos quartos e na sala
de jantar abrem-se janelas para o corredor lateral e, da
cozinha para o quintal. Embora não seja possível
identificar a proporção exata dos cômodos, devido à
ausência de escala gráfica, as informações contidas no
respectivo processo informam tratar-se de uma casa
com 6,40m de frente e área construída total de 95 m2.
O corte indica a cobertura e a platibanda, bem como o
afastamento do assoalho do solo, aparentemente
inferior a 50cm; pé direito por volta de 4m. Fonte:
Obras Particulares, Processo de 18/09/1906, Cx. M1-
09. AHSP.
 Casas construídas no alinhamento, por vezes um pouco recuadas, o que no bairro
nem sempre traduzia a intenção de um jardim, mas, mais frequentemente, a
intenção de dar espaço a uma futura sala ou ainda a um posterior salão de negócios.
Um caso típico de acréscimo para introdução de cômodos, data de 16/08/1912, na
rua Quatorze de Julho n. 46, quando Donato Picasso solicitou licença para
”construir dois cômodos em sua casa, conforme a planta junta”. Também foi
muito comum encontrar pessoas pedindo licença para acrescentar uma pequena
“sala de negócios” à edificação existente, tal como Vicente Policastro que, em
06/05/1914, pediu licença para aumentar o prédio da rua Santo Antônio n. 25443.
Porém, mais comuns foram os casos de acréscimo nos fundos de “casa existente”,
onde os requerentes pretendiam aumentar o espaço doméstico da edificação.

Figura 3 – O projeto de Donato Picasso apresenta parte de uma casa existente, distante cerca de 10,75m do
alinhamento. A planta indica o acréscimo, no alinhamento, de uma sala, com 5,50m x 4,35m, seguida de um
dormitório, com 5,25m x 4,35m. O acesso à sala e, provavelmente, aos fundos da residência deveria ser feito através
de corredor descoberto, para onde também davam as janelas dos cômodos posteriores. A circulação passava,
necessariamente, pelo interior dos cômodos, já que não havia corredor interno. A elevação, além de demonstrar duas
janelas voltadas para a rua, platibanda e porão, aponta para pé direito de aproximadamente 4,40m e cerca de 50cm
de porão. Fonte: Obras Particulares, 16/08/1912, Cx. P4/Q1. AHSP.

 Algumas casas apresentaram uma porta de entrada junto ao alinhamento. A


iluminação dos cômodos era feita através de um pátio de iluminação. Essa típica
implantação da edificação nos lotes do Bexiga respondeu às exigências do Código
de Posturas de 1886 e, mais tarde, do Código Sanitário de 1894 que, de resto,

43
Obras Particulares, 06/05/1914, Cx. S2. Fonte: AHSP.
parece não se diferenciar muito do que ocorreu em outros bairros mais modestos da
cidade, como descrito por Carlos Lemos:
[...] a partir da legislação de 1886, nasceu a nova tipologia da casa paulistana, novo
partido arquitetônico derivado, em resumo, da obrigatoriedade do alinhamento do lote
[...]; da obrigatoriedade de porão que às vezes ficava bastante alto, pois nem todos os
lotes eram em nível; da obrigatoriedade da platibanda e da conveniência de corredor
lateral descoberto que permitisse a iluminação direta dos cômodos. Enquanto a classe
abastada assim procedia, a classe média, atendendo às rigorosas exigências do ‘Padrão
Municipal de 1886, continuou por muitos e muitos anos a levantar casas no alinhamento
[...]’ (Lemos, 1999, p.22, grifo nosso).

Figura 4 - Projeto em nome de Stephano Peluso, para


construção de casa à rua Santo Amaro, 89. A testada
do imóvel possui somente 3,20m e a área a ser
construída contava com 55,50 m2. Casa com
distribuição sequencial dos cômodos. Sala e quarto com
janelas para o pátio; varanda com porta para o pátio e o
quintal. O corte demonstra a existência de platibanda e
porão, e pé direito de 4,40m para o interior da
residência. Fonte: Obras Particulares, Processo de
17/11/1906, rua Santo Amaro, 88. Cx. S1. AHSP.

Realmente, os porões são uma constante em todas as plantas analisadas, sejam eles
com a altura mínima exigida, de 50 cm, ou os mais constantes, com alturas que variavam
de 2 a 2,5 metros. Nos casos de alturas superiores a 2,50 metros, frequentemente encontra-
se a previsão de algum tipo de uso especial para esses espaços, geralmente como
depósitos. Podiam conter, inclusive, até uma outra residência. Embora esse tipo de
residência tenha aparecido definido em plantas aprovadas pela municipalidade em
algumas poucas ocasiões, achamos por bem inventariá-las, já que apontam para uma
tendência nos anos posteriores ao período investigado. Quanto às platibandas, embora nem
sempre tenha sido possível confirmar sua existência, já que nem todos os projetos
possuem os respectivos cortes ou elevações, em alguns casos foi possível constatar a
intenção de colocação em edificações já existentes, através de pedidos de autorização para
reforma da fachada dos imóveis.

1.3.3 Tipologias edilícias

De uma maneira geral, as tipologias adotadas no bairro se definem por


características particulares: a) as casas simples, casas térreas e sobrados destinados
exclusivamente à moradia, com fachada voltada para a rua; b) as casas de fundo, que da
mesma forma que as casas simples, também podiam ser térreas ou sobrados, porém, eram
instaladas no fundo dos terrenos; c) as casas em série44, que muitas vezes são geminadas e
que podem contar com duas ou mais moradias – embora essas casas possuam plantas
basicamente iguais, eventualmente, algumas unidades podem apresentar um salão
destinado a uso comercial, o que é comum ocorrer em terrenos de esquina; d) as vilas
constituídas pelas casas em série, localizadas no interior de lotes maiores, com uma rua
interna; e) os sobrados com dupla residência, uma no pavimento térreo e outra no
pavimento superior – eventualmente, o cômodo frontal, no térreo, também era ocupado
por alguma atividade comercial; f) as casas de uso misto, aquelas edificações planejadas e
construídas com a finalidade de abrigarem residências e atividades comerciais; e g) os
cortiços que, configurando uma tipologia com programa específico, serão analisados
adiante.
O início dos empreendimentos imobiliários no Bexiga, conforme as pesquisas
realizadas nos jornais A Província e O Estado de São Paulo, ocorreu no final dos anos
1880, e pelo menos até o final do século XIX as casas foram construídas alinhadas às ruas.
Com o passar do tempo, por volta dos anos 1900, os fundos dos terrenos começaram a ser
ocupados por novas casas. A aquisição de dois ou mais lotes, geralmente pela mesma
pessoa, deu ensejo à construção de vilas ou mesmo de pequenos aglomerados de duas ou
três casas nesses fundos de terreno, construídas em momentos diferentes. Foi muito
comum encontrar solicitações para acréscimo de novas casas em um terreno já edificado.
A análise dos projetos arquitetônicos durante todo o período deixa perceber que a
partir dessa época houve o que hoje chamaríamos de otimização do espaço, ou seja, todo e
qualquer pedaço de terreno passou a ser aproveitado, de maneira que mais unidades
residenciais se multiplicassem. Foi o caso não somente das vilas, construídas no interior

44
Aqui adotamos a terminologia utilizada por Luciana Alem Gennari em sua dissertação de Mestrado As
casas em série do Brás e da Mooca: um aspecto da constituição da cidade de São Paulo, FAUUSP, 2005.
dos terrenos, mas também dos sobrados. Ainda que em pequeno número, chamam atenção
as plantas envolvendo duas unidades residenciais diferentes, uma no andar térreo e outra
no pavimento superior, remetendo à ideia contemporânea de “apartamento”. A opção por
tal tipo de moradia, certamente, estava longe de implicar em conceitos pré-elaborados
sobre soluções alternativas para a questão habitacional.
Como é possível observar na tabela abaixo, as casas simples compuseram
aproximadamente 39,34% das casas a serem edificadas; as casas em série vêm em
seguida, representando 33,82% do universo investigado. Embora as casas de uso misto
totalizem apenas 11,05% da amostra, é importante destacar que tanto as casas em série
como os sobrados com dupla residência (5,04%) também podiam apresentar espaços
destinados à implantação de negócios. No caso das primeiras, quando próximas de uma
esquina, era muito comum que os cômodos da frente dos prédios localizados na esquina se
destinassem a algum tipo de negócio; já nos sobrados com dupla residência,
frequentemente, constatamos a presença de algum comércio no piso térreo. E mais,
quando se acrescenta a esses casos os 71 pedidos de licença para reformas que implicavam
no acréscimo de cômodos para uso comercial, os prédios de uso misto apresentam um
aumento significativo, atingindo um patamar de 139 unidades – e essa é uma marca do
Bexiga, o exercício de atividades produtivas por muitos de seus moradores.
NÚMERO DE TOTAL DE UNIDADES
TIPOLOGIAS
SOLICITAÇÕES A CONSTRUIR
CASAS SIMPLES 242 242
CASAS DE FUNDOS 20 20
CASAS EM SÉRIE (ENVOLVENDO MAIS DE UMA RESIDÊNCIA) 79 208
VILAS (ENVOLVENDO MAIS DE UMA RESIDÊNCIA) 10 46
SOBRADOS C/DUPLA RESIDÊNCIA (ENVOLVENDO DUAS RESIDÊNCIAS) 15 31
CASAS MISTAS 68 68
TOTAL 434 615

Tabela 1 – Solicitações de licença para novas edificações, entre 1881 e 1914. Fonte: Série Obras Particulares, AHSP.

É claro que toda essa situação estava sujeita a alterações. As casas simples térreas
poderiam vir a se transformar em casas com dupla residência, com uma posterior
ocupação do porão, ainda que de forma ilegal, podendo até dar origem a futuros cortiços.
Quanto mais passou o tempo e se foram os testemunhos vivos dessa realidade, mais
diminuíram as certezas acerca das intenções e usos reais que se fizeram das edificações da
cidade. Não se pode esquecer que estamos lidando com um período em que o bairro estava
se formando, cuja configuração ainda estava muito longe da atual. O processo de
configuração espacial de um bairro não é algo estanque e está sujeito às constantes
transformações no tempo e assim ocorreu com o Bexiga, pelo menos até os anos de 1950.
Ainda que na aparência de suas ruas e fachadas o Bexiga da década de 1910 seja o mesmo
daquele dos anos 1930, a ocupação e o uso das edificações se alteraram muito no decorrer
de 20 anos; prova disso são as frequentes solicitações apresentadas, com o objetivo de
reforma e acréscimo de novos cômodos.
A entrada maciça de gente na cidade durante as últimas décadas do século XIX
aumentou a demanda por moradias, propiciando a formação de um mercado consumidor
composto pelos setores médios e baixos. Para quem quisesse investir no mercado locatício
gastando menos, o Bexiga era um bairro ideal, já que a disponibilidade de terrenos a preços
mais acessíveis permitia o ingresso de diferentes investidores. Até mesmo aquelas pessoas
que dispunham de poucas posses podiam investir na compra de um terreno de 5m x 50m e,
com o passar do tempo, construir uma casa nos fundos ou um sobrado de duas residências
ou mesmo as duas coisas. Porém, o número de terrenos disponíveis, com o passar dos anos,
certamente se reduziu. O fato é que as formas de ocupação dos terrenos foram se
intensificando, sempre de maneira a aproveitar melhor cada pedaço de chão disponível.
Frequentemente, encontrei a expressão “casa operária” nos processos analisados,
porém nem sempre essa nomenclatura se refere às pequenas casas descritas por Lemos
(1999, p.33-34), com somente três cômodos, podendo conter até cinco cômodos, se
encaixando perfeitamente na categoria classe média. Diversos projetos, cujas plantas
indicam uma sala de visitas, dois dormitórios, sala de jantar, cozinha e instalação sanitária,
e que poderiam se classificar até como de classe média propriamente dita são apresentados
como sendo casas operárias. Por outro lado, alguns exemplares portadores de “gabinetes”
possuem apenas quatro cômodos e poderiam se enquadrar na categoria classe média baixa.
Assim, encontra-se diversos exemplos, onde ocorre essa “mistura” de possibilidades de
formas de ocupação, impossibilitando que se utilize as categorizações stricto sensu
relacionada a uma ou outra classe social.
É possível perceber, com o avançar da década de 1910, a intenção de
especialização dos espaços do interior das moradias; se nem sempre de fato, ao menos na
introdução de nomenclaturas mais de acordo com os padrões modernos nos projetos
arquitetônicos. Contudo, também constatei a permanência de alguns termos, mesmo em
anos mais avançados. As “varandas” e as “salas de jantar” – cômodos equivalentes – estão
presentes em todos os anos investigados, assim como alguns casos de “alcovas”. Em
18/06/1901, havia um processo referente a uma edificação à rua Santo Antônio n. 5C, que
tinha sala, alcova, dois dormitórios, varanda, banheiro, despensa e cozinha45. Outro
exemplo, já de 02/01/1907, na rua São Domingos, n. 6 A, se refere à uma moradia com

45
Requerimento em nome de Francisco de Mattos Dias, Obras Particulares, v. 312, p.15. Fonte: AHSP.
apenas sala, alcova e varanda46, só que com iluminação direta. Nos dois casos, embora se
mantivesse a denominação antiga, remetendo a um período anterior às exigências das
posturas municipais, tratava-se na verdade de cômodos com janelas para o exterior47.
Em todas essas categorias, eventualmente constata-se a presença de cômodos
destinados a usos mais especializados e socialmente valorizados, como vestíbulos,
escritórios, quartos de engomar e de criada, despensas e copas, além de eventuais fornos,
depósitos, terraços e alpendres. Dessa maneira, na impossibilidade de se avaliar a
utilização efetiva desses espaços pelos seus usuários, para a sua classificação foram
mantidos os critérios a partir do número de cômodos encontrados. Quanto aos terraços,
frequentemente funcionavam como substitutos de quintais, ou ainda, como áreas para
iluminação e circulação de ar.
ATÉ 3 4 5 6 MAIS DE 6 CASAS A
TIPOLOGIAS
CÔMODOS CÔMODOS CÔMODOS CÔMODOS CÔMODOS CONSTRUIR
CASAS SIMPLES 78 51 43 35 35 242
CASAS DE FUNDO 9 3 5 1 2 20
CASAS EM SÉRIE 53 50 40 23 42 208
VILAS 15 18 12 1 - 46
SOBRADOS 7 4 9 3 8 31
CASAS MISTAS 26 19 12 6 5 68
TOTAL 18 8 145 121 69 92 615

Tabela 2 – Tipologias, por número de cômodos, entre 1881 e 1914. Fonte: Série Obras Particulares, AHSP.

Os números apresentados na tabela acima indicam o predomínio das casas com até
3 cômodos. Excluindo os cortiços, essas casas certamente se destinavam às camadas pobres
da população do bairro. Em seguida vêm as casas de 4 cômodos e 5 cômodos - os dois
casos provavelmente voltados para as camadas médias. Já as casas com 6 ou mais cômodos
contam com poucas unidades, e demonstram destinarem-se a moradores com mais posses.
A questão é que tanto as casas com 6 cômodos, como aquelas com mais de 6
cômodos, podiam apresentar programas mais complexos. Nos dois casos encontramos a
presença de “gabinetes”, “vestíbulos”, “despensas”, “copas”, “quartos de criadas”, etc.,
além das instalações sanitárias, aí já definidas como “banheiros” ou “salas de banho”.
Entretanto, as moradias maiores, com mais de 6 cômodos, se destacavam pela presença de
um número maior de quartos ou dormitórios, assim como por um cuidado especial na
distribuição espacial dos cômodos nas plantas. Eventualmente, apresentavam uma
implantação no lote que as diferenciava da vizinhança mais pobre. Eram construídas, por
vezes, distantes dos alinhamentos, possuindo recuos frontais e laterais, ocupados por
jardins. Algumas delas apresentavam-se elevadas em relação ao nível da rua devido à

46
Obras Particulares, 1907, Cx. 26. Fonte: AHSP.
47
Observe-se que as antigas alcovas eram cômodos instalados no interior da residência, sem quais aberturas
para o exterior.
presença de porões mais altos, em geral relacionados à topografia mais propícia para tanto.
Observa-se a coexistência dessas tipologias numa mesma rua, embora houvesse certa
concentração de casas mais simples na zona x ou mais complexas na zona y.
Os novos materiais, as técnicas e os sistemas construtivos introduzidos na segunda
metade do século XIX, assim como as novas linguagens arquitetônicas adotadas,
significaram uma mudança nas formas de morar e construir. Se somarmos as edificações
de até 3 cômodos, àquelas com 4 e 5 cômodos, teremos 73,82 % do universo investigado,
ou seja, essa tipologia constituía a grande maioria das casas, construída sobretudo por
empreendedores dos setores médios da população, com fins locatícios. Essas casas
possuíam porão e corredor ou pátio de iluminação, e de três a quatro cômodos.
Excetuando-se a cozinha de utilização mais específica, em todos os outros cômodos as
atividades poderiam se alternar, conforme as necessidades dos moradores – salas “de
visitas” podiam se converter em dormitórios, “salas de jantar” em quartos de costura ou de
passar, enfim, tratava-se da superposição de atividades referida por Lemos (1999, p.37). A
garantia de melhor iluminação, a gás ou elétrica, certamente implicava num viver mais
saudável e, sobretudo, no uso do dia mais prolongado para o exercício das atividades
domésticas ou de trabalho. No transcorrer dos anos investigados, observa-se nos projetos
arquitetônicos a introdução de termos como “vestíbulos”, “despensas” e “copas” para
designar os cômodos das casas, mesmo naquelas mais pobres, demonstrando uma intenção
de valorização social do “viver” nas mesmas.

1.3.4 Os cortiços e/ou habitações coletivas

As dificuldades em estabelecer critérios para a caracterização dos cortiços parece


ser consenso entre os autores que se detiveram nesta questão. Também me senti distante de
chegar a uma definição conclusiva acerca do conceito de cortiço. Assim, decidi começar a
pensar o assunto a partir do Código Sanitário de 1894, especialmente com base nos
capítulos que envolvem as habitações com diferentes indivíduos ou várias famílias, além
daquelas consideradas das classes pobres.
De maneira geral, o Capítulo III desse documento parece prever a construção de
novos edifícios destinados às habitações coletivas, colocando parâmetros para tanto, tais
como: a localização fora do perímetro urbano, que envolveria os novos loteamentos nos
arrabaldes da cidade; construções horizontais, que excluam a ocupação de sobrados e o
aproveitamento de porões; obediência aos princípios de higiene recomendados para
qualquer tipo de habitação; instalação de latrinas para um determinado número de pessoas.
Já no Capítulo IV é clara a permissão para se utilizarem casas já edificadas para fins de
locação de quartos a terceiros, contanto que fosse feita escolha escrupulosa, respeitando-se
os princípios da higiene. A possibilidade de aproveitamento de casas existentes indica que
subdivisões de madeira seriam proibidas, porém a lei não faz menção a eventuais
acréscimos ou divisões de cômodos feitos em alvenaria. Por outro lado, proibia claramente
a utilização dos porões como moradia.
O Capítulo V indica cuidados com a construção de casas operárias e vilas em
geral. Certamente prevendo a utilização dessas casas como cortiços, o capítulo se inicia
com a sua proibição, além de indicar a necessidade de se destruir aqueles existentes. Aqui
observa-se uma certa confusão entre o que era cortiço, casa de pensão e habitação para as
camadas pobres, sobretudo no artigo que proíbe a subdivisão de grandes casas. Afinal,
esse seria um problema pertinente às casas de pensão. Como distinguir a casa de pensão
do cortiço, já que ambos eram ocupados por um número variado de indivíduos? E ainda,
como delimitar o número de pessoas que podiam viver na casa de pensão ou no cortiço?
De acordo com o Artigo 127 do Capítulo IV, sobre os hotéis e casas de pensão, “o
número de locatarios deverá ser proporcional á capacidade do edificio e não deverão ser
permitidos menos de 14 metros cubicos de espaço para cada indivíduo, nos aposentos dos
locatarios”. Já o Artigo 144 do Capítulo V, sobre as habitações das classes pobres, indica
que “deve ser determinada a lotação dessas casas, não sendo permittidos aposentos de
dormir com menos de 14 metros cubicos livres para cada indivíduo”. Nos caso dos dois
tipos de moradia, as orientações legais acerca das dimensões mínimas para cada pessoa
são as mesmas e não deixam margem à dúvidas. O mesmo se pode dizer sobre o número
de pessoas permitido num e noutro caso. Aparentemente, tudo dependia das dimensões
dos prédios, se ocupados por hotéis, casas de pensão ou pelas classes pobres.
De qualquer modo, do ponto de vista do Código, todas essas modalidades de
moradia parecem implicar na ocupação por pessoas pobres. Excetuando-se as casas de
pensão, que poderiam ser ocupadas por qualquer tipo de gente – de filhos de fazendeiros
ricos que estudavam na capital a pessoas sozinhas que trabalhavam no comércio, no
funcionalismo público, etc. –, cortiços, casas operárias e vilas deviam estar fora do
perímetro urbano. A intenção de segregação é muito clara, o que não fica claro são as
definições do que eram cortiços, casas de pensão e habitações das camadas pobres, assim
como as diferenças entre os tipos de habitação coletiva. De uma maneira geral, foram esses
os pontos do Código de Posturas utilizados para a identificação e análise dos cortiços no
bairro do Bexiga. Ali percebe-se o quanto essas categorias se misturavam e se confundiam,
demonstrando que também para a municipalidade foram pontos obscuros, nem sempre
interpretados de forma objetiva.
Certamente as imprecisões encontradas na legislação reguladora “do construir e do
morar” em São Paulo se relacionam ao desejo de exclusão das chamadas classes perigosas
(Chalhoub, 1996, p.36 a 46). Nesse sentido, as recomendações do Código Sanitário para
que tais edificações fossem feitas fora das aglomerações urbanas são bem claras.
Entretanto, acredito que a forma confusa como os executores da lei – engenheiros e fiscais
– lidaram com a questão também resultou do fato de se tratar de uma realidade nova para
todos. Conforme Carlos Lemos, até o Império não havia preocupação por parte da Câmara
ou do governo central de regulamentar a construção e organização interna das moradias
(1999, p.13). No entanto, alguns autores como Sidney Chalhoub e Ivone Salgado, indicam
que a preocupação com a questão sanitária associada às condições de moradia era mais
antiga. Sidney Chalhoub localiza as primeiras discussões acerca da questão sanitária no
início da década de 1850, quando as epidemias de febre amarela (1850) e cólera (1855) no
Rio de Janeiro elevaram as taxas de mortalidade, colocando “na ordem do dia a questão
da salubridade pública, em geral, e das condições higiênicas das habitações coletivas, em
particular”. Nessa ocasião ocorreu a criação da Junta Central de Higiene, “órgão do
governo imperial encarregado de zelar pelas questões de saúde pública, e a Câmara
Municipal da Corte passou a discutir medidas destinadas a regulamentar a existência das
habitações coletivas”. E alguns anos mais tarde, em 1866, o médico José Pereira Rego
apresentaria projeto à Câmara Municipal da Corte, prevendo intervenções mais efetivas nas
formas de moradia coletiva (Chalhoub, 1996, p.29-33, grifo nosso). Ivone Salgado,
igualmente, se reporta às epidemias de 1850 e 1855 como ponto de partida para a
reestruração dos serviços de saúde por parte do governo imperial: “Esta conjuntura fez
com que as determinações sanitárias, previstas na legislação imperial de 1828, fossem
incorporadas à legislação das câmaras municipais de forma mais incisiva e acarretou,
ainda, um incremento da ação fiscalizadora das condições sanitárias das cidades por
parte do poder publico nos períodos de surtos epidêmicos”48.
Essa preocupação era recente, principalmente a partir dos anos 1880, devido ao
aumento populacional e à demanda por moradia. A ocupação desordenada do espaço

48
Grifo nosso. SHINYASHIKI, SOUZA & SALGADO - Obras públicas da cidade de São Paulo na metade
do século XIX: o higienismo e a construção do cemitério público, do mercado público e do matadouro
público, Associação Nacional de História – ANPUH XXIV Simpósio Nacional de História, São
Leopoldo/RS, 2007.
urbano ocorrida então, gerando problemas sérios como os surtos epidêmicos, impôs a
necessidade urgente de organizar e regulamentar o ato de construir e, consequentemente de
morar, traduzidos nos Códigos de Posturas de 1886 e no Código Sanitário de 1894. Se
pensarmos que desde a metade da década de 1880, quando aumentou o número de ex-
escravos e imigrantes e outros trabalhadores na cidade, até o ano de elaboração do Código
Sanitário, se passaram apenas dez anos, compreende-se que foi muito pouco tempo para
que autoridades e habitantes se adaptassem à nova realidade urbana. De um lado, as
autoridades tentando definir parâmetros, que embora “ideais”, conformavam-se ao
“possível”; de outro, proprietários tirando proveito dos lucros auferidos pela construção de
imóveis para renda de aluguel; por fim, os citadinos todos tendo que se habituar, inclusive
culturalmente, às novas normas.
A análise dos casos em que se evidenciou a presença de cortiços indicou que as
reformas e acréscimos a prédios existentes envolveram a maior parte (58,98%) das
habitações coletivas. Já o conjunto das novas edificações respondeu por 41,02% dos casos
passíveis de serem interpretados como cortiços: dez solicitações referentes a moradia,
simples ou de uso misto; três referentes a uma cocheira e dois barracões para depósitos; e
três referentes a prédios destinados à instalação de manufaturas.
A partir da década de 1910 se evidenciou a tendência, se não de eliminar os
cortiços, de evitar que aumentassem de tamanho, o que fica bastante explícito no processo
a seguir. Em 1914, o pedido de licença para acréscimo de cozinha, latrina e tanque, para a
casa localizada à rua Rui Barbosa n. 131, cujo requerimento estava em nome de José Maria
Passalacqua, gerou um longo processo, que se estendeu até ser indeferido, em 1917. Nessa
ocasião, o parecer do engenheiro Arthur Saboya deixava claro que se tratava de aumento
de cortiço existente, em desacordo com o Código de Posturas, Artigo 20, não sendo pela
lei nº 1788, Art. 5º, então vigente, tolerados novos cortiços e, consequentemente, aumento
dos existentes49. Este processo bastante complicado, já no final do período investigado,
indica que por mais que as autoridades municipais se esforçassem dali em diante, a luta
entre poder público, proprietários e moradores se intensificaria.
É arriscado fazer afirmações categóricas sobre uma realidade que no período
investigado ainda estava se configurando. As tentativas nesse sentido, a partir de conceitos
contemporâneos, podem resultar em ideias estereotipadas sobre o bairro e sobre os atores
sociais que ali atuaram. Assim, em minha dissertação de mestrado (2010) procurei realizar
uma análise exaustiva e criteriosa dos processos para construção e/ou reforma dos imóveis

49
Obras Particulares, Processo de 11/07/1914, Cx. R-2. Fonte: AHSP. Grifo nosso.
passíveis de serem interpretados como cortiços ou habitações coletivas. Se a análise e o
julgamento desses processos não forem falhos, o número total de processos que
envolveram a construção de moradias destinadas a algum tipo de habitação coletiva é
muito pequeno quando comparado ao universo investigado – apenas 39 casos entre as 886
solicitações de licença para novas edificações, reformas e/ou acréscimos.
Essa constatação leva ao questionamento da ideia corrente do Bexiga ter sido
sempre um bairro predominantemente ocupado por “cortiços”. A interpretação dos dados
apresentados pela Série Obras Particulares permitiu concluir que foi a partir de 1905 que
a especulação imobiliária tomou maior impulso, tornando-se mais agressiva nos anos de
1912, 1913 e 1914. A investigação direcionada ao reconhecimento das formas de moradia
terminou neste último ano, mas o processo de adensamento populacional e o consequente
superaproveitamento dos espaços possíveis, com um aumento efetivo do número de
cortiços no bairro, certamente concretizou-se no decorrer da próxima década. Prova disso
é a identificação de aproximadamente 80 casos de possíveis habitações coletivas nas ruas
do Bexiga no ano de 1925, conforme se poderá verificar no Capítulo 4.
Ao analisar a cidade de São Paulo nos anos de 1920, Nicolau Sevcenko (1992,
p.129-132) chama a atenção para o fato do crescimento da cidade ter sido
desproporcionalmente maior do que as possibilidades de controle por parte do poder
público. Conforme Sevcenko, apesar do empenho demonstrado pela municipalidade em
controlar o crescimento urbano desenfreado através da ação da Diretoria de Obras e da
Inspetoria Sanitária, fatores como os limites orçamentários e a estrutura administrativa
enxuta da municipalidade, dificultaram e até impediram quaisquer reações contra a
pressão exercida pelas manobras especulativas e contra o descaso por parte daqueles que
detinham o controle político e econômico da cidade. A conjugação desses fatores trouxe
como consequência funesta a ocupação desenfreada dos espaços possíveis. Enquanto os
novos loteamentos envolviam regiões esparsas pela cidade e distantes do centro, extensas
áreas intermediárias foram propícias à especulação mais agressiva. Nesse contexto de
demanda por moradias é que as possibilidades de uso do solo urbano nas áreas mais
próximas do centro foram exploradas exaustivamente, envolvendo todas as possibilidades
habitacionais que permitissem a presença de um maior número de pessoas: casas de
cômodos, pensões e cortiços.
As informações coletadas nas Obras Particulares indicam que 25 dos 39 possíveis
casos de cortiços se concentrava nas ruas Major Diogo, Rui Barbosa, Santo Antônio e
Conselheiro Ramalho. Os demais casos se distribuíam pontualmente pelas outras ruas do
bairro. Resta saber que motivos levariam as pessoas a escolherem essas ruas e não outras
para instalar as habitações coletivas, fossem cortiços ou pensões. Haveria algum
condicionante que levasse os proprietários a selecionarem ruas determinadas para explorar
o “negócio” de locação? Algumas ruas disporiam de “vantagens” suficientes para atrair
novos locatários? Algo como a disponibilidade de meios de transporte, como o bonde, a
facilidade de acesso ao centro ou mesmo ao comércio local, etc?

Figura 5 – Interior de uma vila/cortiço na rua Rui Barbosa n. 32. Observe-se a fachada das casas, com porta e uma única
janela. Foto: Geraldo Horácio de Paula Souza, c. 1919-1925. Fonte: Centro de Memória da Saúde Pública/Faculdade de
Saúde Pública/USP.

Observei momentos de “pico” nas ocorrências de cortiços e/ou habitações coletivas


durante os anos de 1900, 1905, 1912, 1913 e 1914, quando registrei 23 documentos que,
de alguma maneira, remetem à presença desse tipo de moradia, o que confirma as
constatações sobre as fases de aumento populacional no bairro e na cidade. Quando da
análise sobre a presença de profissionais de origem estrangeira na construção de novos
edifícios, verifiquei a incidência de um maior número de italianos nos anos de 1895, 1898,
1900, 1905, 1913 e 1914. Ainda que a análise ali realizada se relacione a um segmento
específico, ela implica no aumento da presença de elementos estrangeiros na cidade e, em
última instância, no aumento de pessoas na cidade, inclusive daquelas em busca de
moradias baratas.
Na verdade, a legislação e o consequente controle na maneira de construir tinham
como objetivo especialmente as moradias dos setores mais pobres da população –
almejava-se coibir o uso de materiais construtivos, equipamentos ou mesmo ocupação de
terreno que implicassem em danos para a coletividade. Por outro lado, os setores mais
ricos tinham consciência dos benefícios oferecidos pelos novos padrões, geralmente
adotando-os para suas próprias residências.
Acredito que nos primeiros anos de ocupação do bairro do Bexiga tais regras
construtivas tenham sido ignoradas, porém, na medida em que a fiscalização se tornou
mais rígida, acarretando multas e, às vezes, até a demolição e reconstrução de obras já
concluídas, a sujeição aos padrões impostos pelo poder público se mostrou um “mal
necessário”. No caso do bairro do Bexiga, ainda que os levantamentos realizados não
tenham envolvido a totalidade dos projetos apresentados no período em questão, não resta
dúvida sobre o aumento da ação do poder público a partir da década de 1890. Contudo, se
de um lado a presença da fiscalização é um fato comprovado pela constância dos
embargos às obras em desacordo com a legislação, de outro, essa mesma constante
fiscalização indica a reincidência de comportamentos abusivos, problema esse que se
estendia, inclusive, às casas construídas ou adaptadas a cortiços.
A conjugação desses fatores trouxe como consequência a ocupação irregular e
desenfreada dos espaços possíveis. Enquanto os novos loteamentos apresentavam grandes
lotes e baixas densidades, os bairros destinados às camadas médias e pobres da população
apresentavam intenso parcelamento do solo e altas densidades. Nesse contexto de
demanda por moradias, as áreas mais próximas do perímetro central foram exploradas
exaustivamente, envolvendo todas as possibilidades habitacionais que permitissem a
presença de um maior número de pessoas: casas de cômodos, pensões e cortiços. De
qualquer maneira, independentemente do alcance até certo ponto limitado da ação
fiscalizadora do poder público, a análise dos pareceres contidos nos processos de licença
para construir e/ou reformar imóveis demonstra o empenho dos fiscais e engenheiros
municipais responsáveis pelo deferimento ou não de tais licenças.
As mesmas regras construtivas garantiram um padrão bastante bom mesmo para as
casas mais pobres: mínimo de três cômodos; paredes com pelo menos 5 metros de pé-
direito para o térreo, 4,88 metros para o primeiro andar e 4,56 metros para os outros
andares; obrigatoriedade de porões mínimos de 50 cm de altura; corredor lateral
descoberto, permitindo a iluminação direta dos cômodos, etc (Lemos, 1999, p.22), tijolos
como material predominante, etc. Comparativamente ao presente, observa-se a qualidade
dos espaços construídos nesse período.

Se a presença dos capomastri no bairro, e de resto em toda a cidade, foi uma


realidade inquestionável, o mesmo não se pode dizer de seu poder de decisão na hora de
construir, assim como da eventual influência da arquitetura italiana no estilo das casas
edificadas. Como já disse, para a aprovação do imóvel era necessário satisfazer as
exigências da Diretoria de Obras do município – sem o que, a solicitação não era
deferida, e, se porventura alguém resolvesse dar continuidade à obra, esta seria
embargada, quando não demolida. Dessa maneira, a idéia de que o casario do bairro surgiu
“sem qualquer projeto, da forma mais empírica possível” e de que “residências eram
desenhadas pelos ‘capomastri’, arquitetos que não usavam planta”, não se sustenta
(Lucena, 1983, p.86). Por outro lado, as fachadas de caráter eclético, que ainda hoje são
possíveis de serem observadas no bairro, foram comuns a outras cidades e capitais
brasileiras em que a presença do imigrante italiano não foi representativa, assim como a
distribuição interna dos cômodos observáveis nos projetos arquitetônicos. Ou seja, embora
proprietários e usuários sejam majoritariamente imigrantes, sobretudo italianos, os
imóveis não traduzem seu modo de viver específico, mas resultam da legislação imposta
pela municipalidade e de padrões de habitação há muito consolidados no Brasil – com o
receber à frente, o repouso no meio e os serviços no fundo (Lemos, 1999).
Nem exclusivamente italiano, nem encortiçado. A imagem que a análise dos
processos da Série Obras Particulares propicia é de um bairro tipicamente suburbano para
as camadas pobres e média, compostas de imigrantes de variadas nacionalidades e etnias,
além dos afrodescendentes. Tampouco os cortiços devem ser interpretados exclusivamente
segundo a chave das políticas higienistas, mas, sobretudo, como os espaços onde as
chances de sobrevivência humana para essas camadas sociais – através do estabelecimento
das redes de solidariedade, parentesco e amizade – eram possíveis (Rago, 2004).
Por fim, no que tange aos construtores, os processos consultados remetem
sobretudo a “práticos” na linha dos sujeitos estudados por Lindener Pareto Jr. (2010), não
exclusivamente italianos, como se pode ver na tabela abaixo, onde a presença de
profissionais brasileiros e/ou portugueses é quase tão significativa quanto aquela de
italianos. Por sua vez, os programas edilícios decorrentes da atuação desses profissionais
não diplomados são bastante homogêneos por emanar do Padrão Municipal e não
resultarem de acentos culturais relacionados aos seus lugares de proveniência.
NACIONALIDADES CONSTRUTORES Nº %
BRASILEIROS E/OU PORTUGUESES 41 37,97
ITALIANOS 48 44,44
GERMÂNICOS 5 4,63
OUTROS (SUPOSTOS ESPANHÓIS E FRANCESES) 6 5,56
NÃO IDENTIFICADOS 8 7,40
TOTAL 108 100%

Tabela 3 – Nacionalidades dos construtores que atuaram no bairro do Bexiga entre 1887 e 1914. Fonte: Série Obras
Particulares. AHSP.
Além das edificações para moradias, os processos investigados contêm registros de
outras solicitações de licenças importantes que implicavam em: construção de edifícios
para fábricas e/ou manufaturas; construção de edifícios para comércio ou outro tipo de
negócio; reformas e acréscimos em construções existentes (para moradia ou negócio), etc.

1.4 Os usuários

Até agora tentei traçar um perfil do bairro de modo a esclarecer alguns aspectos da
sua configuração: as pessoas envolvidas no empreendimento inicial; as pessoas que
compraram os terrenos e ali construíram; o papel da legislação urbanística e sanitária, via
fiscalização da Diretoria de Obras do município; o tipo de edificação que se realizou
naquele espaço; e os construtores envolvidos. Resta, no entanto, falar dos principais
personagens da presente tese, aqueles que deram vida e cara ao bairro. Afinal, quem eram
essas pessoas? De onde vieram? O que faziam para viver?
Da mesma forma que quem fosse construir ou reformar uma casa teria que pedir
autorização para a Diretoria de Obras do município, aqueles que quisessem abrir algum
negócio, deveriam encaminhar os pedidos de licença ao setor de Alvará e Licença da
Seção Polícia Administrativa e Higiene da Prefeitura municipal. Pensando no número
significativo de casas que envolviam uso misto – negócio e residência –, busquei nas
entrelinhas desses documentos os primeiros indícios dos moradores do bairro.
De acordo com a EMPLASA, três anos antes da Proclamação da República, os
italianos formavam o maior contingente de estrangeiros na cidade (80,22%), seguidos dos
portugueses e alemães, com 11,98% dos habitantes da capital paulista. Já em 1920, em
plena vigência da Primeira República, a população italiana se mantinha como a maior
colônia estrangeira em São Paulo, perfazendo 15,84% da população total. Na sequência,
vinham portugueses (11,19%), espanhóis (4,31%) e os indivíduos de origem germânica
(3,07%) – todos em meio a 372.376 brasileiros (64,46%), numa população total de
577.621 habitantes (Emplasa, 2001). No bairro do Bexiga, a partir dos nomes
identificados na Série Obras Particulares, foi possível perceber que entre 1906 e 1914
houve um claro predomínio dos proprietários italianos no bairro: de um total de 552
pessoas, 65,22% eram italianos, 25,91% eram brasileiros e/ou portugueses, 6,34% eram de
outras nacionalidades e 2,53% não tiveram sua origem identificada. Já a partir dos dados
fornecidos pela Série Alvará e Licença, entre os 177 usuários identificados na amostra
investigada, 80,22% eram italianos, 11,30% eram brasileiros e/ou portugueses, 3,39%
eram de outras nacionalidades e 5,09% não tiveram sua origem identificada. Como era de
se esperar, constatei a presença maciça de italianos, e, ao lado desses, alemães, prováveis
espanhóis e, certamente, portugueses. Porém, essa situação se altera ao longo dos anos
investigados. Embora durante todo o tempo a maioria italiana se destaque, nos anos de
1910 e 1911 houve um aumento considerável dessas pessoas, o que deve ser atribuído
tanto à entrada de novos imigrantes na cidade como no bairro.
Contudo, o universo dos possuidores de negócios no bairro é restrito e a grande
maioria dos moradores possivelmente tenha ficado de fora dessa análise. Para sanar esse
vazio, busquei outros documentos que fornecessem algum tipo de informação sobre essa
parcela da população, tais como os Boletins de Ocorrência, onde estão registrados, pelo
Gabinete de Assistência Policial da Secretaria da Justiça e Segurança Pública do Estado
os atendimentos realizados no “posto médico da assistência policial de São Paulo" nos
anos de 1911 a 1940. Por se tratar de atendimento feito em um órgão de segurança
pública, ao serem socorridas as pessoas deviam fornecer informações básicas sobre si:
nome, idade, estado civil, cor, nacionalidade, endereço, ocupação e, é claro, a causa da
ocorrência. Foram exatamente esses os dados utilizados para obter uma aproximação do
universo dos moradores do bairro do Bexiga. A relevância desta informação está em que,
além de identificar a nacionalidade dos habitantes do bairro do Bexiga que foram
atendidos no posto médico, ela esclarece a questão que ficou em aberto em pesquisas
anteriores acerca da presença de afrodescendentes no bairro do Bexiga. Eles estão
presentes sim – possuem nome, sobrenome, idade, profissão e endereço! Assim, esses são
indícios relevantes que não devem ser subestimados, mas levados em conta para
repensarmos a ideia corrente sobre a onipresença italiana no Bexiga nas primeiras décadas
do século XX, assunto que será abordado no Capítulo 4.
Com relação à população afro-descendente, em diferentes momentos há notícias do
movimento de escravos e ex-escravos em duas direções. A primeira delas, próximo ao
Caaguassu (região que envolvia a Avenida Paulista e arredores), não se sabe exatamente a
partir de quando, mas certamente até a valorização daquelas terras por volta dos anos 1890
(Wissenbach, 1989), quando teriam sido expulsos, dando lugar aos loteamentos da
Avenida Paulista e da Vila América (atual Jardim Paulista). A segunda, próxima da várzea
do córrego da Saracura (Kogurama, 2001, p.210 a 212) onde até hoje se encontra ao
menos uma parcela dos descendentes dos primeiros ocupantes (rua Almirante Marques
Leão e arredores). Ali, também não é possível precisar o momento exato da ocupação, que
deve ter ocorrido até os anos de 1930, quando da abertura da Avenida 9 de Julho. Por
outro lado, pelo menos até os anos 1950, eles também estiveram presentes nos cortiços
localizados entre as ruas Japurá, Santo Amaro e Jacareí (Bonduki, 1998, p.68-69). Aliás,
nos Boletins de Ocorrência, se destaca o fato de os dois únicos endereços registrados na
rua da Saracura Grande (leito da atual 9 de Julho) pertencerem a afrodescendentes.
Tratava-se de dois homens, Luiz da Silva e Sebastião Ferreira de Andrade. O primeiro, um
carroceiro de 24 anos, casado, e envolvido em um caso de ferimento por agressão; e o
segundo, um pedreiro de 29 anos, solteiro, cujo atendimento teve a mesma causa,
ferimento por agressão, sendo que as ocorrências de ambos se deram em janeiro de 1915.
Os dois casos isolados, mesmo que não confirmem a presença de uma maioria de
afrodescendentes na região, dão indicações de que isso ocorria. No mais, todas as
informações apontam para a distribuição mais ou menos uniforme de todos os grupos e
etnias em todo o bairro.

1.5 Os usos

Resta saber o que as pessoas que moravam no Bexiga faziam para sobreviver e que
tipo de ocupação possuíam, outro tema central da presente tese, aqui explorado em linhas
gerais, e pormenorizado nos Capítulos 2 e 3. Entre todas as ocorrências apontadas nos
Boletins há uma profusão de ocupações relacionadas a diferentes setores da economia
formal ou informal: serviços de alimentação, comércio, manufaturas, construção civil,
indústria, trabalho doméstico, serviço público, serviços “diversos”, etc. Infelizmente, as
categorias indefinidas, onde se encontram trabalhadores e serviços domésticos,
concentram a maior parcela dos casos, tornando impossível uma avaliação mais efetiva.
De todo modo, excetuando-se essas categorias, somente os trabalhadores da construção
civil e trabalhadores domésticos obtiveram uma representação mais significativa.
Chama a atenção a pulverização das diferentes ocupações, quaisquer que sejam as
atividades principais a que estivessem atreladas. A presença de pessoas que trabalhavam,
aparentemente, em todas as áreas em que se precisasse de um profissional, fosse como
“oficiais” manufatureiros ou como prestadores de serviços, parece apontar para a situação
constatada por Haim Grüsnpun na década de 1930. Ainda que se leve em conta a distância
temporal entre os anos de 1910 e aqueles vivenciados pelo autor, parece ter se mantido a
lógica do trabalho masculino no bairro, onde, principalmente os homens, “trabalhavam
mais como tarefeiros e de expediente (...) os homens eram ajudantes por dia (...)
tarefeiros. Sempre ajudantes de alguma coisa, quer no bairro, quer fora do bairro”
(Grünspun, 1979, p.37). Por outro lado, a presença, ainda que em número restrito, de
profissionais especializados são um indício de que o Bexiga não era um espaço exclusivo
dos setores mais pobres da cidade.
Em relação às pessoas envolvidas com algum tipo de comércio ou prestação de
serviços e estabelecidas no bairro, além das informações fornecidas pelas licenças junto à
Prefeitura, os anúncios dos Almanaques mercantis publicados na época foram de grande
valia. Além dos anúncios em jornais, eram muito comuns os anúncios em almanaques,
publicações anuais que divulgavam informações sobre o “comércio, indústria e
profissões, com classificação pelos ramos de negócios”. Curiosamente, o Almanaque
Laemmert, publicado na capital da República, na cidade do Rio de Janeiro, fornece um
imenso rol de atividades. Atribuo o interesse na publicação nesse anuário à gratuidade do
serviço, pelo menos para uma parte dos anunciantes: “É grátis a inserção no texto do
Almanak em caixa baixa ou typos comuns e uma vez só dos nomes e endereços dos
negociantes, profissionaes, agricultores, lavradores e industriaes, empregados publicos,
empresas, companhias, sociedades, etc.(...)”50. Embora houvesse almanaques publicados
na cidade de São Paulo, pelo menos “para o Almanaque de O Estado de São Paulo, para
1896 era preciso pagar a soma de 12$000 para anúncios de meia página (...)”51.
Voltando à infinidade de negócios exercidos no bairro, verifiquei uma variada
gama de comércios/serviços e manufaturas. Predominam quitandas, armazéns de secos e
molhados e açougues, além de padarias, pequenas “fábricas” de massas alimentícias e de
torrefações de café em meio a lojas de vestuário, calçados e chapéus e as atividades
ligadas ao lazer (cinema, teatro e jogos de bola). Destacam-se também manufaturas
(sapatos, chapéus, sabão, velas, louças de barro, caixotes, bebidas, cigarros, fogos de
artifício, etc.) e a prestação de serviços diversos (farmácias, barbearias, sapateiros,
costureiras, fotógrafos, etc). No Bexiga também moravam artífices voltados ao ramo da
construção civil. Havia ainda casas que vendiam de tudo um pouco, como as lojas de
armarinhos e fazendas, de “ferragens e quinquilharias”, louças, etc, além daquelas
atividades destinadas a dar suporte ao próprio comércio e manufaturas em geral.

50
Grifo nosso. Almanak Laemmert para 1913, 3º Volume – Estado de SãoPaulo. Rio de Janeiro, 1913.
51
TRIZOTTI, Patrícia T. – “Teias que se tecem: o caso do Almanaque de O Estado de São Paulo para
1896”. XIV Encontro Regional da ANPUH Rio – Memória e Patrimônio, Rio de Janeiro, julho/2010.
Em breves linhas, analisarei as atividades que mais se destacaram, seja pela
quantidade de estabelecimentos que apresentaram, seja pelo papel que cumpriram no
processo de expansão da cidade nos primeiros anos do século XX.
O que primeiro chama a atenção é o grande número de “quitandas” e “armazéns de
secos e molhados” existentes em praticamente todas as ruas do bairro. Ocorre que desde as
últimas décadas do século XIX, diversas iniciativas do poder público deslocaram o
comércio de gêneros alimentícios para fora do perímetro central. Disso decorreu: o
Mercado de São João ou Mercado de Verduras, na atual Praça do Correio; o mercado da
rua 25 de Março, conhecido como Mercado dos Caipiras, e substituído posteriormente
pela versão mais moderna do Mercado Grande (Campos Jr., 2007); e o Matadouro
Municipal, originalmente localizado na rua de Santo Amaro que, por problemas de
higiene, em 1887, foi transferido para o bairro de Vila Mariana (Martins, 2003, p.153).
Entretanto, se os antigos espaços foram substituídos por outros mais modernos e mais
aptos a satisfazer as necessidades da população em crescimento, sua localização colocava
outro problema: a distância dos novos bairros situados nos arrabaldes da cidade,
dificultando o acesso dos seus moradores a esses lugares de comércio atacadista.
Consequentemente, as necessidades diárias de abastecimento dessa população ficavam
comprometidas. Assim, é compreensível que os moradores dos bairros periféricos
buscassem alternativas para a compra de alimentos, o que explica a grande quantidade de
“quitandas” e “armazéns”. Na ausência de geladeira, a reposição diária de alimentos era
imperativa. As quitandas e armazéns de bairros como o Bexiga certamente abasteciam os
bairros vizinhos e disso decorrem as diversas cocheiras para estacionamento de animais e
carroças destinados às entregas.
Na medida em que a cidade se expandia, com a formação de novos bairros,
consolidava-se a indústria da construção civil, com o consequente aumento da demanda de
mão de obra, especializada ou não. O trabalho na construção civil, desempenhado
principalmente por imigrantes italianos nas duas primeiras décadas do século passado era
bastante valorizado o que se traduzia pelos salários mais altos em relação a outros setores
produtivos. Porém, as condições de acesso à moradia nem sempre corresponderam à
valorização de seu trabalho, razão pela qual se explica a presença desses trabalhadores no
bairro também como moradores. Para aqueles cujas funções exigiam menor
especialização, certamente os salários eram menores, dessa maneira, a possibilidade de
morar pagando aluguéis mais baratos e a proximidade do centro onde se localizava grande
parte dos canteiros de obras naqueles anos, mesmo que frequentemente se tratasse de
cortiços sem condições de habitalidade, funcionavam como fator de atração para esse
segmento. Com exceção dos empreiteiros, que muitas vezes conseguiam formar um
pecúlio através da compra de terrenos e construção de moradias para locação, acredito que
a maioria dos profissionais da construção civil não tenha conseguido possuir casa própria.
Por outro lado, tão importante quanto ter funcionado como local de moradia para uma
parcela da mão de obra desse segmento, foi o fato de o bairro ter abrigado outros
profissionais relacionados indiretamente à construção civil. Esse é o caso dos
empreiteiros, pedreiros, serventes de pedreiros, pintores, estucadores, carpinteiros,
marceneiros, vidraceiros, bombeiros hidráulicos (encanadores) e ferreiros que se
distribuiram principalmente pelas ruas da Abolição, Conselheiro Ramalho, Fortaleza,
Major Diogo, Santo Amaro e Santo Antônio.
O acúmulo de gente de todas as camadas sociais no bairro e nos arredores implicou
na necessidade de prestadores de serviços que atendessem às necessidades das famílias:
barbeiros, sapateiros, lavadeiras, empregados domésticos, oficinas de costura, “lavadores e
enformadores” de chapéus e fotógrafos, sem esquecer dos profissionais ligados ao
transporte, de cargas e pessoas. Nesse item específico, é importante ressaltar a presença de
muitas cocheiras, assim como de pessoas que exerceram atividades de alguma maneira
ligadas ao transporte de pessoas e mercadorias (carroceiros, cocheiros, seleiros, ferradores,
e até de um veterinário), casos que serão devidamente explorados nos Capítulo 2 e 3.
Por fim, cabe destacar as atividades ligadas ao lazer, que embora sejam de
diversidade restrita, revelam, de um lado, os entretenimentos possíveis para a população
de baixo poder aquisitivo e, de outro, as práticas de sociabilidade entre os moradores do
bairro. No topo dos divertimentos, estavam os inúmeros jogos de bola, ou bocce como
diziam os italianos. Armandinho do Bexiga mencionou a permanência desses espaços,
ainda na década de 1940, e ao que parece geralmente instalados no fundo das cantinas.
Identifiquei pelo menos três casos em que estava implícito que funcionariam nos “fundos
do prédio”, além de outros que falavam sobre estarem “junto ao negócio” principal. Esta
prática deve ter sido usual – aproveitar a freguesia da quitanda ou do armazém para
explorar um entretenimento. Tanto deve ter sido assim que a referência de Armandinho é
bem explícita. Ao falar das cantinas, disse que “Bocha algumas tinham, outras não. A do
‘Chico Jafalô’ não tinha. Para ter bocha precisava ser grande e a maior parte eram
pequenas”. Mais adiante, ao citar Alcântara Machado, diz que o autor “[...] no Brás,
Bexiga e Barra Funda, fala do Armazém Progresso. É a única coisa do Bixiga que ele cita
nesse livro. O armazém existia mesmo. Era na Rua Abolição. Com bocha e restaurante no
fundo, mas eu não cheguei a conhecer” (Moreno, 1996, p.150, grifo nosso).
Na maioria das ruas sempre havia pelo menos um desses jogos, e cheguei a
identificar até quatro casos na rua Conselheiro Ramalho. Contudo, os almanaques não
fazem nenhuma referência aos “jogos de bola”52, sinal de que se tratava de divertimentos
restritos aos habitantes do bairro. Certamente eram jogos populares que deviam agradar
principalmente a população de origem italiana. É possível imaginar que após um dia de
trabalho cansativo, a parada nas quitandas e nos botequins, tenha representado para os
homens do bairro o momento de descanso e encontro com os amigos.
Data de agosto de 1908 a primeira notícia sobre a presença de um cinematógrafo
no bairro, na rua Conselheiro Ramalho n. 177, de propriedade de um certo Ernesto de
Marco 53. Alguns anos depois, em 1912, a firma Salgado & Cia. encaminhou à Diretoria
de Obras da Prefeitura um pedido de licença para a ampliação de um barracão localizado à
rua Conselheiro Ramalho n. 205, visando à adaptação do espaço para a realização de
“espetáculos cinematográficos”54. De fato, naquele endereço funcionou o Saquia Théatre,
como atestam os anúncios no Almanaque Laemmert, em 1913 e 1914. Conforme essa
publicação, houve outro cinema na rua Major Diogo n. 39A, o Cine Recreio, de
propriedade de S. Carmo. Não é possível saber o que ocorreu, mas é fato que o cinema já
existia antes de 1911, pois nesse ano Salvador Caruso havia solicitado licença para a
“reabertura” do Pavilhão Recreio, na Major Diogo, esquina com a rua Jaceguai55.
Em abril de 1914, há outra solicitação, agora para o n.132 da rua Conselheiro
Ramalho, em nome da firma Anselmo Pignatari & Cia, onde o requerente “Desejando
inaugurar o "Theatro Especial" com espetáculos cinematográficos e estando tudo de
acordo com a lei, solicita o respectivo alvará de licença para pagamento dos impostos”56.
Quase vinte anos depois, é possível verificar na planta SARA Brasil (1929-1930) a
existência de um Theatro Esperia na Conselheiro Ramalho, entre as ruas Conselheiro
Carrão e Manoel Dutra.
A constatação de que pessoas diferentes e em momentos diversos tivessem se
proposto a explorar a apresentação de “espetáculos cinematográficos” como forma de
negócio num bairro habitado por segmentos mais pobres da população dá a medida da

52
Não localizamos nenhuma definição técnica do “jogo de bola”. Entretanto, até pela citação de Armandinho
do Bixiga, tudo leva a crer que se trate da popular “bocha”.
53
Alvará e Licença, 12/12/1908, AHSP.
54
Obras Particulares, 14/08/1912, AHSP.
55
Alvará e Licença, 23/11/1911, AHSP.
56
Alvará e Licença, 27/03/1914, AHSP.
popularidade e do interesse despertado por esse tipo de lazer naquele momento. Mais do
que isso, talvez essas primeiras iniciativas tenham sido o embrião da tendência do bairro
em sediar manifestações de caráter cultural: o Teatro Esperia seria desativado por volta de
1954 e reinaugurado dois anos mais tarde por iniciativa dos atores Sérgio Cardoso e Nydia
Licia, como Teatro Bela Vista; e na mesma rua Major Diogo, onde funcionou o Cine
Recreio (não necessariamente no mesmo endereço), seria inaugurado em 1949 o Teatro
Brasileiro de Comédia, pelo empresário italiano Franco Zampari.
Por fim, havia as festas e, essas parecem ter tido um papel significativo no lazer
dos moradores do bairro. Os registros encontrados sobre esses eventos datam de 1907 e
1911, e indicam que eram festas religiosas, realizadas em agosto e setembro, e dedicadas
aos santos de devoção dos moradores do bairro. Uma das festas realizadas em setembro,
na esquina da rua Rui Barbosa com a Conselheiro Ramalho, era dedicada a Nossa Senhora
da Penha. Possivelmente, a outra festa realizada na rua da Saracura Pequena, fosse para a
mesma santa, já que acontecia no mesmo mês. A terceira festa, realizada na rua 13 de
Maio, no mês de agosto, provavelmente era em homenagem a Nossa Senhora da
Achiropita, já que é nesse mês que se comemora o dia dessa santa. Já Maria Cristina
Caporeno (2014) arrolou seis festas realizadas entre 1906 e 1910 no bairro do Bexiga: São
Manoel, no Largo São Manoel (atual Praça 14 Bis), em 1906 e 1910; Nossa Senhora da
Incoronata, na rua Santo Antônio (1906); Nossa Senhora da Ripalta, na rua Rui Barbosa
(1906 e 1908); Nossa Senhora do Bom Parto, na esquina das ruas Rui Barbosa e
Conselheiro Carrão (1909); Nossa Senhora da Glória, na rua 13 de Maio (1908); além de
uma outra sem referências ao santo homenageado, também na rua 13 de Maio (1907)57.
Essas eram comemorações abertas para todos, sem distinção de camada social.
Parecem ter sido organizadas por iniciativa dos moradores mais ricos, pois implicavam em
gastos com montagem de coretos e depósito em dinheiro para a Seção de Polícia e
Higiene, tendo em vista cobrir eventuais incidentes que ocorressem. Exemplo disso é que,
em 15 de setembro de 1911, após o término das festividades, Francisco Lucito e Nicola
Picca encaminharam o seguinte pedido: “Os abaixo-assinados, tendo feito um depósito de
50$000, para realizarem as festas nos dias 7 e 8, solicitam a restituição feita de acordo
com as leis”58. Nas três ocasiões em que localizei referências às festas, elas se realizaram

57
CAPORENO, Maria Cristina - Festas paulistanas em perspectiva histórica de longa duração: produção e
apropriação social do espaço urbano, permanências e rupturas (1711-1935). Tese de doutorado apresentada
à FAUUSP, 2014, p.478-479.
58
Alvará e Licença, 15/09/1911, AHSP.
nas ruas Rui Barbosa, Saracura Pequena e 13 de Maio, o que coincide com os locais
indicados na tese de Maria Cristina Caporeno.
O panorama descrito revela, ainda que parcialmente, os esforços empreendidos por
quem viveu no bairro do Bexiga para ganhar o “pão de cada dia” e garantir, senão um
futuro melhor, ao menos a sua sobrevivência diária. Na verdade, não é possível afirmar
que tudo sempre correu da melhor maneira possível para todos os envolvidos. A relativa
frequência de negócios abertos e fechados em curto espaço de tempo, bem como as
mudanças de endereços ou mesmo de proprietários, é um indicador dessa fragilidade. Por
vezes, os pedidos de baixa vêm acompanhados das respectivas justificativas, dando
chances de compreender o que acontecia. Em 10 de fevereiro de 1910, Generoso Rubino,
dono de uma quitanda na rua Conselheiro Ramalho n. 50 diz que “tendo em vista não
estar vendendo, pede encerramento do negócio”59. Algo semelhante ocorreu com João
Ferraciano, que em 03 de abril de 1907 decidiu fechar a “fábrica de massas alimentícias”
que possuía à rua Santo Antônio n. 208 por “ter feito pouco negócio com a fábrica,
solicita perdão pelos três meses de licença que deve pagar” 60. Seu caso, inclusive, pode
indicar porque tantas “fábricas” encontradas no decorrer de nossas pesquisas raramente
aparecem mais de uma vez nos almanaques ou outros documentos. Na verdade, embora
fossem assim citadas por seus proprietários, tratava-se mais de pequenas manufaturas do
que de fábricas propriamente ditas.
Às dificuldades de venda, fossem quais fossem os motivos e os produtos
oferecidos, acresciam-se os gastos implícitos no exercício do negócio, no mínimo o
aluguel do imóvel e os impostos semestrais ou anuais. Assim, se o negócio não gerasse os
ganhos esperados, o seu proprietário se veria em dificuldades para saldar os
compromissos, o que certamente poderia levá-lo a desistir do empreendimento. No
entanto, o fracasso de uma determinada atividade não significava que não se tentasse
buscar um outro caminho. Isso aconteceu, por exemplo, com o próprio João Ferraciano,
que parece não ter desanimado com o fracasso da sua fábrica de macarrão, pois sete anos
depois ele estava instalado com um “armazém de secos e molhados” na rua Manoel Dutra
n. 6561.
Dos 596 negócios identificados entre 1906 e 1914, 14 se mantiveram no decorrer
desses anos. Este número é muito reduzido, correspondendo a 2,35% do total, e entre
esses, em apenas seis ocasiões seus proprietários se mantiveram no mesmo endereço.

59
Alvará e Licença, 10/02/1910, AHSP.
60
Alvará e Licença, 03/04/1907, AHSP.
61
Alvará e Licença, 23/03/1914, AHSP.
Entretanto, quase sempre eles permaneceram no mesmo ramo de negócios, com exceção
de Luiz d’Angelo. A primeira notícia de d’Angelo data de 1907, quando ele solicitou
licença para a abertura de um “jogo de bolas”, na rua Maria José n. 5562. Curiosamente,
nos anos de 1913 e 1914 ele se achava estabelecido com negócio de “secos e molhados”
na Avenida Brigadeiro Luís Antônio n. 170 (Almanaque Laemmert), onde também se
apresentava como empreiteiro de obras. Essa avenida funcionava como um divisor das
diferentes camadas sociais que habitavam a área: entre ela e o córrego da Saracura ficava
o bairro do Bexiga, ocupado pelos segmentos mais pobres; e entre ela e a rua da
Liberdade, ficavam as moradias dos segmentos mais ricos. É provável que Luiz d’Angelo,
ao instalar seu negócio de “secos e molhados” na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, num
ponto bem próximo da Avenida Paulista, esperasse contar com uma clientela de maior
poder aquisitivo. Acresce que alí ele exercia outra aptidão, a de empreiteiro de obras, o
que também o qualificava para explorar as possibilidades abertas pelo desenvolvimento da
construção civil.
A exploração de diferentes ramos de negócios no mesmo endereço foi um fato
relativamente comum entre os negociantes do Bexiga, principalmente entre 1913 e 1914,
quando aparecem estabelecimentos onde conviviam Armarinhos e fazendas/Sapateiro;
Botequim/Fábrica de bonés; Barbearia/Secos e molhados; Ferreiro/Secos e molhados;
Armarinhos e fazendas/Comércio de louças, porcelanas e cristais/Ferragens e
quinquilharias/Secos e molhados; Empreiteiros/Fábrica de sabão/Secos e molhados;
Empreiteiros/Papelaria/Tipografia. Essa variedade de combinações podia significar tanto
a necessidade de diversificar para atender ao maior número possível de pessoas e assim
garantir ganhos maiores, quanto demonstrava o espírito empreendedor de seus
proprietários. Se uma coisa não desse certo, a outra poderia dar...
Se desde os tempos coloniais, até aproximadamente a década de 1860, as
construções da cidade concentravam moradias e negócios indistintamente, a partir da
Primeira República (1889-1930), com o consequente processo de expansão da malha
urbana observa-se a reordenação dos espaços e o zoneamento e especialização dos seus
usos e funções. Nesse movimento, atividades que até então se realizavam no centro da
cidade, assim como parte de seus habitantes, foram obrigados a se dispersar, buscando
novos locais para morar e exercer atividades indesejadas na área central. Dessa maneira, a
área da “colina histórica” ficou restrita ao comércio mais elegante, às instituições
financeiras, aos escritórios e consultórios de profissionais liberais, aos hotéis, restaurantes,

62
Alvará e Licença, 19/01/1907, AHSP.
cafés, além das instituições da administração pública, deslocando-se as moradias, ofícios e
serviços menos nobres para os bairros adjacentes.
No entorno do “perímetro central”, bairros como Bom Retiro, Barra Funda, Brás e
Mooca, ou regiões mais distantes como a Lapa e a Água Branca, por exemplo, passaram a
concentrar preferencialmente fábricas, resultando na dualidade de usos, que envolvia
trabalho e moradia. Ali, os novos loteamentos realizados por empreendedores para venda e
locação mesclaram fábricas e moradia barata. Outros bairros, como o Cambuci e o Bexiga,
abrigaram o comércio simples voltado basicamente ao abastecimento alimentar e à
prestação de serviços menos especializados, ali existindo raramente grandes fábricas e
inexistindo as chamadas “vilas operárias” construídas pelos donos dos estabelecimentos.
No Bexiga, predominaram moradia em meio ao comércio miúdo, aos serviços, oficinas e
manufaturas de menor porte. Todavia, em todos esses bairros observamos a coexistência
entre moradia e trabalho. Já as camadas altas, ao deixar o “centro”, num primeiro momento
fixaram-se nos bairros melhor localizados a Oeste, como Campos Elíseos, por volta dos
anos 1870, para logo em seguida buscar áreas altas e nobres aos olhos do discurso
higienista, como o Morro dos Ingleses, a Avenida Paulista e Higienópolis, áreas de uso
exclusivamente residencial.
Foi nesse processo de reordenação urbana, com a realocação de pessoas e
atividades produtivas, que se definiram as funções do bairro do Bexiga. Aparentemente,
talvez nada de muito significativo em termos da macroeconomia, mas foi justamente a
presença dos "pequenos ofícios" que contribuiu para sedimentar o papel da cidade no
contexto social, econômico e político mais amplo. Se os bairros fabris se destacaram por
abrigar as indústrias que determinariam o futuro da cidade como metrópole progressista, os
bairros, como o Bexiga, desempenharam um papel secundário, mas não menos importante.
Vimos acima uma profusão de pequenos negócios destinados ao comércio de alimentos e
de produtos básicos para o abastecimento de moradores do próprio Bexiga e, certamente,
dos bairros (mais ricos ou não) localizados nos arredores. Daí, a presença (e importância)
das cocheiras para abrigo de veículos e animais que seriam usados na entrega diária de
leite, pão, frutas, verduras e outros produtos. As oficinas, onde se fazia de tudo um pouco,
da fabricação ao conserto de utensílios usados no dia a dia: os carpinteiros, marceneiros,
encanadores, ferralheiros, vidraceiros, forneceram não somente os materiais e a mão de
obra necessária para as novas construções, como também viabilizaram a sua manutenção,
os funileiros e mecânicos consertavam automóveis, os novos veículos utilizados pelas
famílias mais ricas; as costureiras, alfaiates e sapateiros confeccionavam e consertavam
artigos de vestuário e calçados; as lavadeiras, cujo ofício, conforme Haim Grünspun, “era
uma das profissões mais comuns” no bairro, serviam os moradores do próprio Bexiga, do
Morro dos Ingleses e do Paraíso.
Apesar de se tratar de uma das regiões da cidade que menos sofreu o impacto da
especulação imobiliária durante o século XX, tendo legado um conjunto urbano e
arquitetônico significativo para a história da cidade, não há como negar o atual estado de
degradação do bairro. Apesar do tombamento, realizado em 2002, continuam sendo feitas
intervenções nos imóveis, de maneira a adequá-los às necessidades de seus atuais usuários,
sejam eles os proprietários de algum tipo de negócio, sejam os moradores dos velhos e dos
novos cortiços. Nesse cenário, com exceção de alguns espaços destinados à alimentação
(caso das padarias), não é possível precisar em que medida as atividades exercidas
atualmente no bairro derivam dos antigos ofícios desenvolvidos há um século. É possível
que os espaços de lazer (cinemas e teatros) identificados nas pesquisas que fundamentaram
esta tese, assim como as festas populares de rua, tenham realmente sido o embrião do
caráter cultural que o bairro possui atualmente, as quais certamente se devem aos
diferentes grupos sociais e etnias, principalmente de afrodescendentes, que se fizeram
presentes desde o início da história do bairro. No mais, se trata de outro momento desta
cidade em contínua transformação.
CAPÍTULO 2 – INTERFACES BAIRRO-CIDADE:
ATIVIDADES PRODUTIVAS DIVERSIFICADAS E COTIDIANO DOS ESPAÇOS

A primeira aproximação com o bairro do Bexiga foi realizada por ocasião do


mestrado, quando do levantamento cartográfico das plantas da cidade de São Paulo, de
1847 a 1930, de modo a acompanhar a evolução do loteamento em consonância com a
evolução da própria cidade. Através desses documentos procurei perceber as
transformações ocorridas na área correspondente ao loteamento original do Bexiga em face
à forma como foi pensado por seus idealizadores.
Somente a partir de 1913 o bairro aparece representado nas plantas da cidade com o
nome de Bexiga. No entanto, a Planta da Cidade de São Paulo, elaborada pela Cia.
Cantareira de Águas e Esgotos, em 1881, com o objetivo de mapear a cidade para o
cumprimento dos objetivos propostos por ocasião da sua contratação e cobrar pelo
fornecimento dos serviços lote a lote, já apontava o traçado daquele que viria a ser o futuro
loteamento.
Como se pode observar na Figura 6 (Anexo 1.1), a planta de 1881 procurou
abranger, além da colina histórica, todo o espaço ocupado pela cidade, envolvendo
inclusive os novos loteamentos como o Bexiga. As ruas projetadas ainda não possuíam
nome, indicando que na época da elaboração da planta o empreendimento era apenas uma
promessa. Na planta, a posição das ruas não é exatamente a mesma encontrada nas plantas
posteriores. Algumas foram prolongadas, outras foram posteriormente abertas cortando
quadras ao meio e, outras foram criadas de maneira a alargar os limites do bairro (à
esquerda e à direita). O fato é que o espaço a ser ocupado pelo bairro já estava definido.

Figura 6 - Planta da Cidade de São Paulo (1881).


Levantada pela Cia. Cantareira e Esgotos, Henry B.
Joyner, Engenheiro em Chefe. Fonte: Informativo
Arquivo Histórico Municipal, 4 (20):
set/out.2008<http://www.arquivohistorico.sp.gov.br.
Consulta em 22/05/2009.
Conforme anúncios veiculados nos jornais da época, a intenção do
empreendimento é anterior à fatura dessa planta, sendo que a primeira notícia a seu
respeito data de 187863, quando o jornal A Província de São Paulo publicou anúncio para
venda de lotes:
TERRENOS DO BEXIGA
Os proprietários destes terrenos mandaram levantar um plano geral de arruamento e
expor à venda em lotes e às braças, à vontade do comprador. As pessoas que desejarem
possuir algumas braças de terrenos próprios, com excelente vista, água nascente e livre de
qualquer ônus podem desde já examinar e dar as suas encomendas no escritório deste
jornal a Emílio Rangel Pestana, ou nas oficinas de Santo Antonio (no Bexiga) aos
proprietários dos referidos terrenos que facultarão aos srs. compradores a entrada e
exame dos mesmos64.

O anúncio não discrimina quem eram os proprietários dos terrenos, mas as


“oficinas de Santo Antonio” ali citadas eram de propriedade de Domingos José Coelho da
Silva, em sociedade com Antônio José Leite Braga. Este, de acordo com Nuto Sant’Anna,
foi quem comprou a antiga “Chácara do Bexiga” de Thomaz Luís Álvares, em 187865. Um
ano após o fechamento do negócio, Braga faleceu, tendo deixado viúva e filhos. Passados
aproximadamente cinco anos de sua morte, a viúva, Eugenia Pires já estava casada com o
engenheiro Fernando de Albuquerque66. A oficialização do empreendimento só ocorreu
em 1890, conforme atesta o croqui elaborado por Fernando de Albuquerque (Figura 7,
Anexo 1.2), sugerindo que foi sob sua influência que o empreendimento tomou as
proporções que conhecemos. O croqui apresenta um arruamento semelhante, não apenas
àquele encontrado na planta de 1881, como também nas plantas elaboradas
posteriormente. Contudo, com exceção da rua Conselheiro Carrão, a nomeação das demais
difere completamente da toponímia futura. A rua ali identificada como Santo Amaro era,
na realidade, a rua Santo Antônio.

63
Jornal A Província de São Paulo, 10/05/1878, APESP, Microfilme 01.01.004.
64
Grifo nosso. A Província de São Paulo, 10/05/1878, p. 2. Arquivo do Estado.
65
SANT’ANNA, Nuto – São Paulo Histórico (Aspectos, Lendas e Costumes), v. I, Departamento De
Cultura, São Paulo, 1937. P. 153 a 162.
66
Em 14 e 24/12/1876, o jornal A Província de São Paulo informava sobre o retorno do engenheiro santista
Fernando de Albuquerque ao Brasil, formado pela Universidade de Easton, na Pensilvania.
Não sabemos exatamente de quando data essa união, mas, em 1884, quatro anos após a morte de Antônio
José Leite Braga, a viúva Eugenia Pires, agora casada com Fernando de Albuquerque, aparece doando o
grande terreno no Bexiga, para a edificação do novo prédio da Santa Casa (SANT’ANNA).
Figura 7 - Planta dos Terrenos do Bexiga (1890). Fernando de Albuquerque, engenheiro civil. Fonte: Arquivo
Aguirra/Museu Paulista/USP.

Alguns aspectos do documento se destacam. As anotações acerca das “linha de


bonde projectada” para a Avenida Celeste (atual rua Major Diogo) e rua Santo Amaro (na
verdade, Santo Antônio) indicam a intenção de implementação desse tipo de serviço de
transporte público para viabilizar o negócio, fator que condicionaria a valorização do
empreendimento. Também foi possível encontrar ali alguns nomes de prováveis
proprietários de lotes: Luiz Americano, Lourenço Cruz, Lourenço Carmo, Maria de Paula,
Francisco Gullo, Alexandrina Maria do E.S.67 e Antônio Sotero. Porém, o que mais chama
a atenção é a referência aos “terrenos de Victor Nothmann” logo acima da Avenida
Celeste.
A presença de Nothmann no futuro bairro do Bexiga indica que ele também
investiu em áreas menos valorizadas da cidade. Envolvido desde os anos 1880 com o
loteamento dos Campos Elíseos, em sociedade com Frederico Glette, ao qual sucedeu
após sua morte68, Nothmann realizou em 1890 a compra, agora em sociedade com
Martinho Buchard, das “terras do barão de Ramalho” na área que viria a ser ocupada
pelo bairro de Higienópolis 69. Assim, a presença de Nothmann no futuro bairro do Bexiga
indica que ele também investiu em áreas menos valorizadas e destinadas a um público de
menores posses. Em suma, aquele era um momento de investir na compra de terras para
posterior venda, não importando a que faixas de renda se destinariam.
Em consonância, certamente nem um pouco casual com os empreendimentos de
Nothmann e Fernando de Albuquerque, no mesmo ano de 1890, foi publicada a planta
67
Identificamos a mesma Alexandrina Maria do E. S., como Alexandrina Maria do Espírito Santo, vizinha do
proprietário Silvério Lavarito, no Morro do Caaguaçú., Série Obras Particulares, 02/03/1888, v. 30, f. 35.
68
MARINS, Paulo César Garcez – “Um lugar para as elites: os Campos Elíseos de Glette e Nothmann no
imaginário urbano de São Paulo”. In LANNA, Ana Lúcia Duarte et al. (Organ.) São Paulo, os estrangeiros
e a construção das cidades, São Paulo: Alameda, 2011, p.216-217.
69
HOMEM, Maria Cecilia Naclério – Higienópolis: grandeza de um bairro paulistano. 2ª Edição, São Paulo:
Edusp, 2011, p.53-54.
elaborada por Jules Martin, “Planta da Capital do Estado de São Paulo e seus
arrabaldes”, na qual pela primeira vez aparece o bairro do Bexiga como um fato
consumado. Nessa planta (Figura 8, Anexo 1.3), pela primeira vez, o bairro do Bexiga se
apresenta conforme o projeto de Fernando Albuquerque. Quase todas as ruas existentes
possuem nomes, ainda que nem todos definitivos. Vemos as ruas Conselheiro Antônio
Prado e da Horta que deram lugar às ruas Manoel Dutra e Fortaleza e, perpendicular a
elas, as ruas Pires da Motta, dos Valinhos e da Misericórdia (que, por sua vez, deram lugar
às ruas Treze de Maio, Major Diogo e Abolição). No ponto de encontro entre as ruas
Santo Antônio e São Domingos, vemos o caminho do “aterrado da Bella Vista” em
direção à rua da Consolação que, a partir da planta de 1895, seria identificado como rua
Martinho Prado.

Figura 8 - Planta da Capital do Estado de São Paulo e


seus arrabaldes (1890). Desenhada e publicada por
Jules Martin. Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20):
set/out.2008<http://www.arquivohistorico.sp.gov.br.
Consulta em 22/05/2009.

As duas últimas plantas apresentadas possuem algo em comum. Embora o croqui


de Fernando de Albuquerque se intitule “Planta dos Terrenos do Bexiga”, a indicação
abaixo do título indica o nome “Bella Vista”. Já na planta de Jules Martin, o nome Bexiga
sequer é mencionado. Cabe lembrar que em 1883 a Câmara Municipal de São Paulo
recebera um abaixo-assinado encaminhado por proprietários de terrenos localizados na
área da Chácara do Bexiga 70, pleiteando “a mudança do nome de Campo do Bixiga para
o de Campo da Bella Vista, visto como aquelle nome nenhuma tradição nos faz
recordar”. O texto do documento deixa bem claro quais eram as intenções dos
peticionários: “tradicional” associação à varíola ou, quiçá pior, às bexigas de boi do antigo
Matadouro Municipal sito à rua Santo Amaro, cujos odores maléficos infestavam o ar.

70
Atas da Câmara da Cidade de São Paulo, Op. Cit., p. 31.
Partindo do pressuposto de que as pessoas que assinaram o documento eram
proprietárias de terras na área, interessadas em participar do “boom” imobiliário em curso
na cidade, é compreensível que quisessem “agregar valor” ao empreendimento.
Independentemente de sabermos se a mudança de nome realmente atingiu o objetivo de
valorização formal, o fato é que pela Lei n.1.242, de 26 de dezembro de 1910, foi criado
“o districto de paz de ‘Bella Vista’, desmembrado do da Consolação, do municipio da
71
Capital” . Aqui é interessante observar que o texto da lei se refere ao distrito e não ao
bairro. Dessa maneira, é compreensível que o uso do nome Bexiga tenha se mantido entre
os moradores e usuários do bairro. É possível que para a maioria dos atores sociais que ali
viveram a referência afetiva e identitária fosse mais forte do que quaisquer necessidades
de valoração social e econômica do espaço. Na planta editada em 1895, o nome “Bella
Vista” ainda se mantém (Figura 9, Anexo 1.4), mas a partir de 1913, apesar de todo o
empenho demonstrado pelos primeiros investidores, o nome Bexiga volta a figurar nas
representações cartográficas da cidade, agora ao lado do nome do novo distrito – Bella
Vista. Assim, tudo indica que o traçado se manteve, estendendo-se até a outras ruas que
não aquelas contidas no loteamento original. Conforme a planta de 1916 (Figura 10,
Anexo 1.5), a Bela Vista envolvia além do próprio Bexiga, as ruas localizadas entre ele e
as avenidas Paulista e Brigadeiro Luís Antônio. Nesse processo de “ampliação” do bairro
para configurar o distrito, outras áreas também passaram a ser popularmente conhecidas
como Bexiga. No que concerne a este trabalho, esse foi o caso, principalmente, do
arruamento empreendido pela Baronesa de Limeira, em 1894, em terras que pertenciam à
antiga Chácara do Barão de Limeira, entre o Largo do Riachuelo e a Av. Brigadeiro Luís
Antônio.

71
Diario Official do Estado de São Paulo, Anno 21, n.3, 04/01/1911. Disponível em:
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/DOSP/.
Figura 9 - Planta da cidade de São Paulo (1895). Ugo Bonvicini. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4
(20): set/out.2008<http://www.arquivohistorico.sp.gov.br. Consulta em 22/05/2009.

Figura 10 - Planta da Cidade de São Paulo, levantada


pela Divisão Cadastral da 2ª Secção da Directoria de
Obras e Viação da Prefeitura Municipal, 1916.
Histórico Demográfico do Município de São Paulo.
Disponível em:
http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/
img/mapas/1916.jpg.

As investigações realizadas sinalizaram para uma primeira questão a ser levada em


conta se quisermos conhecer e compreender de que maneira o bairro do Bexiga se inseriu
no movimento de redefinição espacial e social e das funções urbanas da cidade de São
Paulo. A análise dos documentos analisados (cartografia, jornais e almanaques) permite
concluir que o bairro não pode ser visto como um organismo homogêneo, com
“características” iguais em toda a sua extensão, mas sim como um bairro com tendências
de ocupação e uso diversificadas, a depender da área focalizada. Assim, as observações
acima são importantes na medida em que podem esclarecer sobre as diferenças
identificadas.
Igualmente importante é lembrar que a topografia do Bexiga é acidentada em
certas áreas e mais plana em outras, o que resulta em formas de articulação diversificadas
com os bairros contíguos. A parte mais acidentada corresponde ao vale da Saracura; o
eixo da Brigadeiro Luís Antônio é quase um prolongamento natural do centro, subindo em
direção à Av. Paulista; por sua vez, a áreaa correspondente ao loteamento original é
desigual e cheia de “altos e baixos”.
2.1 A “face nobre” do Bexiga

Esta área, destacada na planta SARA Brasil pela cor laranja (Figura 11, Anexo 1.6)
abrange o trecho localizado entre as ruas Santo Amaro, Riachuelo e a Av. Brigadeiro Luís
Antônio. Ela é formada pelas ruas Asdrúbal do Nascimento, Genebra, Maria Paula,
Francisca Miquelina, Aguiar de Barros, Santo Amaro, um pequeno trecho da Jaceguai e
pela própria Brigadeiro Luís Antônio, avenida que funciona como marco divisor entre os
bairros do Bexiga e da Liberdade. Iniciando-se na rua do Riachuelo, caminha em direção
ao sul da cidade ao ultrapassar a Av. Paulista. Tendo em vista o espaço eleito para nosso
estudo, privilegiamos o percurso dessa via até o momento de seu cruzamento com a rua
Treze de Maio.

Figura 11 - Mappa Topographico do Municipio de São


Paulo, folha 51. SARA BRASIL, 1930. Fonte: AHSP.

Conforme se pode visualizar no mapa, o trajeto percorrido pelas ruas Asdrúbal do


Nascimento e Jaceguai excede o espaço do bairro do Bexiga propriamente dito. A primeira
tem seu início no Largo do Riachuelo, atravessa a Brigadeiro Luís Antônio e termina na
rua da Assembléia, já no bairro da Liberdade. A segunda começa na Av. da Liberdade e,
aproximadamente na altura do número 50, atravessa a Brigadeiro Luís Antônio,
transformando-se, após a rua Major Diogo, na rua Manoel Dutra. Porém, ainda que essas
vias, de uma maneira geral, extrapolem o bairro, fazem parte do que hoje entendemos
como Bexiga, razão pela qual são objeto da nossa análise.
À primeira vista, embora as atividades produtivas estejam presentes nessa área, sua
existência parece ser pouco significativa. Ainda que levemos em conta que a maioria das
ruas apresenta trajetos relativamente curtos e, consequentemente, com menos edificações,
foi possível perceber que nas ruas Aguiar de Barros, Asdrúbal do Nascimento, Francisca
Miquelina, Genebra, Jaceguai, Maria Paula e Santo Amaro houve uma ocupação
predominantemente residencial, aparentemente por segmentos das camadas médias da
população. A área resultou de parcelamento de solo empreendido pelos herdeiros do
Brigadeiro Luís Antônio, não por acaso eternizados na toponímia das ruas (Aguiar da
Barros, Genebra, Maria Paula e Francisca Miquelina).
Em relação à Av. Brigadeiro Luís Antônio, é certo que também se integrou ao
contexto do bairro, apresentando alguns aspectos peculiares ao Bexiga. A condição de via
de ligação entre o Centro e os arrabaldes sul da cidade, e entre os bairros adjacentes a este
trajeto, conferiu uma certa neutralidade àquela avenida, o que possivelmente viabilizou sua
ocupação por diferentes grupos sociais e por variados tipos de negócios. Acredito que o
fato de se iniciar num ponto muito próximo da Faculdade de Direito e do próprio centro da
cidade tenha valorizado os terrenos localizados em seu entorno e atraído pessoas de
maiores posses. No entanto, houve fatores talvez menos evidentes, porém mais decisivos
para essa valorização. A presença na área da residência da Baronesa de Limeira, viúva de
Vicente de Souza Queiroz (o Barão de Limeira) e nora do Brigadeiro Luís Antônio que deu
nome à via, fornece o primeiro indício de que há algo mais a ser considerado.
A prática comum de união por casamentos ou alianças políticas e/ou de negócios
entre membros das famílias Aguiar de Barros e Souza Queiroz desde meados do século
XIX foi marcada pela defesa de seus interesses econômicos, o que incluía iniciativas de
valorização fundiária de seu patrimônio. Esse foi o caso das terras localizadas na área
analisada. Nos primeiros anos da República, em 1894, a própria Baronesa mandou abrir a
avenida, na qual construiu o palacete para sua residência “na esquina da via recém-aberta
com a rua Riachuelo, acompanhada de duas casas de aluguel”72.
Essa parece ter sido uma forma bastante consciente de valorização da área. Ainda
que a fotografia de Gaensly (Figura 12), de 1900, demonstre uma via desocupada, ladeada
por amplos terrenos vazios, certamente tinha-se consciência da sua vocação natural de
conexão entre o Centro e a Av. Paulista (inaugurada em 1891 e aberta com base em
interesses bem definidos de ocupação social privilegiada).

72
In CAMPOS JR. Eudes – Os Pais de Barros e a Imperial Cidade de São Paulo. Texto elaborado a partir de
uma palestra dada pelo autor no Museu Republicano de Itú, em 15 de junho de 2007. Informativo Arquivo
Histórico Municipal, Ano 3, n. 16, São Paulo, 2008. Disponível em:
http://www.arquiamigos.org.br/info/info16/i-estudos.htm.
Figura 12 – À direita da foto, o palacete da Baronesa de Limeira, seguido das duas casas de aluguel construídas na
esquina da Avenida Brigadeiro Luís Antônio com a rua do Riachuelo. Foto: Guilherme Gaensly, 1900. Fonte: Fundação
Energia e Saneamento.

Mas, além da construção do palacete, que pode ser vista como uma forma de
valorização através da presença física de uma pessoa ilustre, a foto mostra dois outros
aspectos que determinariam a ocupação dessa área do bairro: o bonde e a iluminação
pública. A implantação de serviços públicos fundamentais na avenida – transporte e
iluminação –, pode aqui ser vista como a comprovação inquestionável do interesse dos
promotores do empreendimento na sua valorização econômica e social, potencial este que,
por extensão, se ampliava às ruas vizinhas, inclusive à rua Santo Amaro, antigo caminho
para o loteamento do Bexiga, também ela servida por transporte público.

Figura 13 – Instalação dos trilhos do bonde em trecho da rua Santo Amaro, por volta dos anos 1900. A imagem dos lotes
ainda vazios demonstra que, naquele momento, esta ainda era uma área a ser ocupado e que os melhoramentos urbanos
antecederam e certamente potencializaram a ocupação. Foto: Guilherme Gaensly, 1900. Fonte: Fundação Energia e
Saneamento.
A presença de membros das famílias Aguiar de Barros e Souza Queiroz não se
restringiu à avenida, estendendo-se às vias adjacentes, seja como proprietários de imóveis,
seja emprestando seus nomes às ruas, como vimos nos topônimos das ruas Aguiar de
Barros, Genebra, Francisca Miquelina e Maria Paula73. A isso acrescentamos a Escola de
Primeiras Letras, fundada em 1882, em terreno doado pela Baronesa de Limeira, na
esquina da rua Santo Amaro com a rua Aguiar de Barros.

Figura 14 – Nesta foto, de 1903, quando a rua Santo Amaro já estava calçada e os trilhos do bonde instalados, a situação
ainda não havia se modificado. Foto: Guilherme Gaensly, 1903. Fonte: Fundação Energia e Saneamento.

A adoção desses nomes, contudo, significava mais do que uma simples


homenagem. Ela refletia principalmente a importância dessas famílias no processo de
consolidação política e econômica e urbanística da capital paulista, entre as últimas
décadas do Império e o início da República. Assim, julgo que essa área possa ser
identificada, senão como a face mais “nobre” do bairro, como aquela cuja população, pelo
menos simbolicamente, mantinha laços com os segmentos mais aristocráticos da cidade,
quase que como uma “ilha” sob a influência daquelas famílias. Entretanto, ao mesmo
tempo em que se destacava pelos traços pretensamente “aristocráticos”, tratava-se de um

73
Conforme o Ato n.10, de 14 de maio de 1894, o Intendente Municipal fazia “publico que, nos termos dos
arts. 3º e 4º da Lei n. 55, acceita as ruas e largo, de accordo com a planta que fica archivada na Secretaria
desta Intendencia, offerecidos pela Baroneza de Limeira, em terrenos de sua propriedade, dentro da área
comprehendida entre os fechos nos fundos de sua chacara à rua do Riachuelo, e bem assim que approva as
denominações dadas ao referido largo e ruas (...)”. Entre as ruas referidas pelo intendente, conseguimos
identificar as ruas do Brigadeiro Luíz Antônio, Dona Genebra de Souza, Maria Paula e Dona Maria
Miquelina; as vias não identificas são a rua S.Vicente de Paula, que “principia na rua de Santo Amaro,
atravessa o largo de S. Vicente, e termina na do Brigadeiro Luiz Antonio”, e o largo do mesmo nome, que
“fica situado entre as ruas D. Maria Miquelina, D. Genebra de Souza e S. Vicente de Paula”. A planta de
1895 não trás referências à denominação das vias, nem deixa clara a existência de um largo, mas cremos que
a rua S. Vicente de Paula seja a atual rua Aguiar de Barros. Disponível em:
http://camaramunicipalsp.qaplaweb.com.br/iah/pt/index.htm. Consulta em: 04/10/2013.
espaço contíguo ao primitivo loteamento do Bexiga, um empreendimento de caráter
nitidamente mais popular.
Conforme a planta de 1895 (Anexo 1.4), no trecho compreendido por essa chamada
“área nobre”, as ruas ainda nem ao menos estavam nomeadas, diferentemente do que
ocorrera no loteamento original do Bexiga, demonstrando que aqui o processo de ocupação
foi um pouco mais tardio em relação àquele. Vimos que a Av. Brigadeiro Luís Antônio na
planta nomeada como “Grande Avenida” foi aberta em 1894 pela Baronesa de Limeira e
que, assim como ela, outros membros das famílias Aguiar de Barros e Souza Queiroz eram
proprietários de terrenos na área... Este, de fato, foi um outro empreendimento, cuja área,
passados os anos integrou-se ao “grande” Bexiga.
Além do perfil mais “aristocrático” da área, observamos ali também a
predominância do uso residencial, o que lhe conferia “mais nobreza” em relação ao
entorno. A pesquisa dos documentos da Série Obras Particulares (AHSP) demonstrou que
no período de 1906 a 191474, entre os 382 pedidos de licença para construção e/ou reforma
encaminhados à Diretoria de Obras, somente 65 projetos arquitetônicos indicavam a
presença de algum tipo de negócio.

2.2 A área do “loteamento original”

Esta área, formada pelas ruas do loteamento original circunscrito entre as ruas de
Santo Antônio, Santo Amaro, Treze de Maio e a Av. Brigadeiro Luís Antônio (parte
destacada no mapa pela cor verde – (Anexo 1.6), envolve a maior parte do bairro. Além
das vias já citadas, compõe-se das ruas Jacareí, Dr. Ricardo Batista, São Domingos, 14 de
Julho, Manoel Dutra, São Vicente, Conselheiro Carrão, Fortaleza, Japurá, Abolição,
Vicente Prado, Humaitá, Major Diogo, Maria José, Conselheiro Ramalho, João
Passalacqua, Rui Barbosa, 13 de Maio e Dr. Luís Barreto.

74
O levantamento dos projetos referentes ao período entre 1906 e 1914 foi realizacom base nos dados
contidos no Sistema de Registro, Controle e Acesso ao Acervo – SIRCA, do Arquivo Histórico de São Paulo,
construído a partir do Projeto Arquivo Histórico Municipal “Washington Luís”: a cidade de São Paulo e sua
arquitetura, entre 2007 e 2010. Projeto realizado pelo então Arquivo Histórico Municipal “Washington
Luís”, em parceria com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, através do
programa de pesquisa em Políticas Públicas da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo. Já de 1915 a 1921, o levantamento foi feito a partir de investigação dos documentos originais.
Infelizmente, a documentação relativa aos anos posteriores encontra-se no Arquivo do Piquerí, não estando
ainda disponível para consulta pública.
O loteamento lançado por volta dos anos 1870-1880 sob a liderança inicial do
comerciante português Antônio José Leite Braga e, em seguida, por empreendedores de
origem diversificada, mostrou-se marcado, sobretudo, pela atuação de pequenos e médios
investidores. Contudo, alguns documentos atestam a presença de nomes importantes na
vida política e econômica da cidade de membros da elite cafeeira a imigrantes bem
sucedidos. Conforme nos referimos acima, na Planta dos Terrenos do Bexiga de 1890, por
exemplo, encontramos referência a Victor Nothmann, mais conhecido por seus
investimentos no bairro dos Campos Elíseos. Já no abaixo-assinado encaminhado à
Câmara Municipal de São Paulo, solicitando “a mudança do nome de Campo do Bixiga
para o de Campo da Bella Vista”75, verificamos entre os signatários do documento a
presença de membros das famílias Clark76, Albuquerque, além de um Tobias de Aguiar.
Por fim, entre as solicitações de licença para construir, encaminhadas à Diretoria de Obras
no início do loteamento, em pelo menos três ocasiões localizamos referências às famílias
Pais de Barros e Souza Queiroz. Em 1889, a Baronesa de Limeira aparece na qualidade de
“vizinha” de Albertina de Souza Guimarães por ocasião do alinhamento solicitado por esta
para a rua Monte de Ouro (futura rua João Passalacqua). Neste caso, no parecer do
engenheiro responsável, consta que o “alinhamento será dado pela casa da Sra. Baronesa
de Limeira, dos dois lados”77. Em 1895, Francisco Xavier Pais de Barros (o Barão de
Tatuí) apresentou, através da firma Domingos Ferreira Bento & Cia., um pedido de licença
para a construção de uma casa na rua Santo Amaro s/n78. Anos mais tarde, em 28/02/1913,
foi a vez de Genebra de Souza Barros solicitar licença para a construção de quatro casas na
rua Santo Amaro números 81, 81 A, 81 B e 83, certamente para locação79. Em 1912,
Leopoldina de Araújo Cintra, descendente de tradicional família de Atibaia, construiu três
sobrados para aluguel na rua São Domingos80.
Entretanto, tratava-se de um grupo restrito e, independentemente do interesse
dessas pessoas pelo empreendimento, o fato é que as investigações anteriores (Schneck,
2010) não deixam dúvida quanto ao predomínio de investidores de pequenas e médias
posses na construção de imóveis para uso próprio ou aluguel, sendo estes os verdadeiros
responsáveis pela volumetria da área. Para termos ideia, de 1882 a 1914, entre os 1.170

75
In Abaixo Assinado encaminhado à Câmara na Sessão Ordinária de 27/06/1883. Atas da Câmara da
Cidade de São Paulo, v. 69-70 (1883-1884), Divisão do Arquivo Histórico, vol. LXIX. Departamento de
Cultura, 1951, p. 31. O documento original do abaixo assinado encontra-se nos Papéis Avulsos.
76
Proprietários da fábrica de calçados do mesmo nome.
77
Obras Particulares, 19/03/1889, AHSP.
78
Obras Particulares, 22/03/1895, AHSP.
79
Obras Particulares, 28/02/1913, AHSP.
80
Obras Particulares, 04/09/1912, AHSP.
processos analisados em minha dissertação de mestrado (solicitações de licença para
reformar e construir no bairro) identifiquei 552 proprietários, representando 47,17% da
amostra. Desse total, destaco os requerimentos para edificação de novos prédios, chegando
a 344 pessoas, ou 62,31%. Nesse universo, observa-se que apenas 12,05% dos indivíduos
concentravam mais de três imóveis; os 87,05% restantes eram proprietários de um único
imóvel. Portanto, é principalmente a partir desses proprietários que se deve pensar a
composição social predominante no bairro do Bexiga, imaginando tratar-se principalmente
de imóveis para uso próprio mesclando moradia a trabalho.

Figura 15 – Vista parcial do antigo loteamento, tendo aos fundos o centro da cidade. Nesta imagem é possível perceber,
à esquerda da foto, um grande vazio que seria ocupado pela Av. 9 de Julho; à direita, temos a rua 13 de Maio, onde
sobressai a cúpula da Igreja de N. S. da Achiropita. 1940. Fonte: DIM/DPH/SMC/PMSP.

Figura 16 – No primeiro plano, vemos a rua 13 de Maio e a paralela, a rua Rui Barbosa. No centro da imagem está a rua
Conselheiro Carrão. As duas fotos demonstram a predominância de imóveis de pequeno porte, um “mar de casinhas
residenciais ou de uso misto” construídas no alinhamento das ruas, imagem que só seria alterado a partir dos anos 1950.
Fonte: DIM/DPH/SMC/PMSP.

Ainda de acordo com minhas investigações anteriores na série Obras Particulares,


a abertura de negócios foi outra possibilidade explorada pelos imigrantes moradores (na
sua maioria imigrantes) do bairro do Bexiga, proliferando assim armazéns, quitandas,
manufaturas e oficinas de pequeno porte ocupando as novas edificações.
Não é possível ignorar que esse cenário não era estático, mas sujeito às alterações
fruto do sucesso ou insucesso dos empreendimentos decorrentes do próprio ritmo de
crescimento econômico da cidade. Após 1918 a economia paulista, particularmente aquela
do bairro, demonstrou um ritmo de crescimento acentuado, superando a crise advinda do
conflito mundial de 1914. Assim, ao longo do período investigado, constata-se a presença
de diferentes estratos sociais, certamente, fruto do processo de crescimento econômico
vivenciado por seus usuários – moradores e negociantes – envolvendo toda a extensão do
antigo loteamento.

2.3 A “face pobre” do Bexiga: o Saracura

Destacada no mapa do Anexo 1.6 com a cor azul, esta é a área menos urbanizada do
bairro, pelo menos até o final dos anos 1920. Situa-se, aproximadamente, nos limites entre
o lado direito da rua Santo Antônio e o córrego do Saracura, junto à Av. Anhangabaú,
envolvendo parte das ruas Manoel Dutra, São Vicente, como também as ruas Rocha,
Almirante Marques Leão (antiga Saracura Grande) e Saracura Pequena (atual Dr. Plínio
Barreto). Certamente, a presença do córrego e das encostas formadas pelas suas margens
determinou uma ocupação tardia e precária, como se pode deduzir da sequência de
imagens apresentadas a seguir.

Figura 17 – O Vale do Saracura, provavelmente na altura da rua Major Quedinho. Obras de construção do viaduto do
mesmo nome e traçado para a abertura da futura Av. 9 de Julho. C.1920. Fonte: C.1920. Fonte: DIM/DPH/SMC/PMSP.
Figura 18 – Vista do Vale do Saracura. À direita, os fundos das construções da rua Santo Antônio. A curva à direita em
direção ao centro da cidade, pode indicar que este trecho se localiza mais ou menos entre a Martinho Prado e a rua João
Adolpho. c.1920. Fonte: DIM/DPH/SMC/PMSP.

Figura 19 – O Vale do Saracura, aparentemente em direção ao sul. Foto: Autoria desconhecida, s/data. Fonte:
DIM/DPH/SMC/PMSP.

Figura 20 – Vale do Saracura, altura da atual Praça 14 Bis. Vincenzo Pastore, 1910. Fonte: DIM/DPH/SMC/PMSP.
A Lei n. 1874 (12/05/1915), regulamentada pelo Ato n. 849 editado em 1916,
dispôs sobre a divisão do município em quatro perímetros: central, urbano, suburbano e
rural. De acordo com o documento, em 1916 a área correspondente ao bairro do Bexiga se
encontrava dentro do perímetro urbano da capital, estando sujeita às leis municipais. A
análise das imagens realizadas provavelmente entre as décadas de 1910 e 1920 demonstra
claramente as condições de precariedade da sua ocupação. Embora razoavelmente próxima
do perímetro central, possuía feições visivelmente diferentes, entremeando vazios a
pequenos embriões de ocupação, o que demonstra que o perímetro urbano da capital foi
lentamente ocupado e, só mais tarde, o foi o perímetro suburbano. Ali se destacam algumas
situações que conflitam com os objetivos propostos pela legislação: a implantação aleatória
das construções, a ausência de esgotamento sanitário, a presença de varais e imensos
quaradouros de roupa, bem como a presença de estábulos. Tudo isso demonstra que nos
anos seguintes à implementação da lei o controle público da área era ainda deficiente.
Como base da Lei n. 1874, é possível saber os limites de cada perímetro, bem como
o que podia e o que não ser realizado em cada área. Nos primeiro e segundo perímetros
(respectivamente, central e urbano) ninguém poderia construir “sem planta previamente
aprovada pela Prefeitura”, seria “proibido o plantio de capinzais” e as hortas só seriam
toleradas “na extremidade do segundo” perímetro. Por fim, ao terceiro perímetro
(suburbano), cabia todas as atividades poluentes e ruidosas proibidas nos demais com base
no zoneamento de funções imposto pela legislação sanitário, inclusive fábricas e cortiços.
Ademais, neste perímetro “não se permitirá construção alguma sem que primeiro o
terreno tenha sido arruado”.
Figura 21 – Planta da Cidade de São Paulo (1916), com a demarcação dos perímetros central (em verde), urbano (em
rosa) e suburbano (em amarelo). Fonte: Histórico Demográfico do Município de São Paulo. Disponível em:
http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/img/mapas/1916.jpg.

A inexistência de infraestrutura e serviços urbanos na zona do vale da Saracura, tais


como ruas calçadas, transporte, iluminação pública, fornecimento de água e escoamento de
esgoto, condicionou uma ocupação mais precária em terrenos menos valorizados e
vendidos a preços mais baratos do que aqueles comercializados no loteamento original,
sendo área consequentemente ocupada pelos mais pobres, brancos e afrodescendentes,
imigrantes, nacionais e ex-escravos.
Particularmente em relação aos negros, o trabalho de Paulo Kogurama faz
referências inequívocas de sua presença no local. No texto publicado pelo Correio
Paulistano, em 03/10/1907, o autor da crônica expõe as condições de vida dos moradores
do Saracura:
A Saracura. É um pedaço da África. As relíquias da pobre raça impellida pela civilização
cosmopolita que invadiu a cidade, ao depois de 88, foi dar alli naquela furna.
Uma linha de casebres borda as margens do riacho.
O Valle é fundo e estreito. Poças dagua esverdeada marcam os logares donde sahiu a
argilla transformada em palacetes e residências de luxo.
Cabras soltas na estrada, pretinhos seminus fazendo gaiolas, chibarros de longa barba ao
pé dos velhos de carapinha embranquecida e lábio grosso de que pende o cachimbo, dão
áquele recanto uns ares do Congo. [...]
As casas são pequenas; as portas baixas. Há pinturas enfumaçadas pelas paredes
esburacadas. A mobília, caixa velha e tóros de pau, sobre ser pobre, é sórdida. [...]
(Kogurama, 2001, p.210-211, grifo nosso).

As referências são de uma área quase rural e desprovida de tudo.


As memórias de Haim Grünspun, embora mais recentes, demonstram a
permanência do quadro na década seguinte:
Todo o Bexiga era uma descida para o vale.
Se as ruas não eram em descida, e muito poucas não eram, as casas tinham as escadarias
sempre para baixo em direção ao vale.
Dois, três, quatro lances de degraus afundando nos subsolos buscavam o vale. O vale, com
o nome genérico de Saracuras. A Saracura Grande e a Saracura Pequena, onde somente
havia casebres e não casarões com escadarias.
As casas, mesmo, começavam no lado esquerdo das ruas Rocha, Manoel Dutra, Almirante
Marques Leão, Santo Antonio e São Vicente. Neste lado baixo do bairro é onde se
encontrava o maior número de cortiços, com escadarias sempre afundando para baixo[...].
(Grünspun, 1979, p.21).

O autor da crônica citada por Kogurama faz menção a cortiços entremeados a outra
tipologia então considerada “sórdida”: a de casas pequenas, com “portas baixas” e
“paredes esburacadas” com “pinturas enfumaçadas”, aludindo a “casebre”, quiçá de pau-
a-pique ou tijolo sem reboco e fogão à lenha. Esses “casebres” são um tipo de ocupação
clandestina, à margem da lei, distintas das “casas operárias” ou definidas pelo “padrão
municipal”. Certamente esses “casebres” não passaram pelo crivo da Diretoria de Obras e
portanto não constam entre as obras aprovadas na Série Obras Particulares, daí a
dificuldade de caracterizá-los na sua materialidade.
Infelizmente há, na literatura disponível, poucas referências à área e a seus
moradores, mas acredito que o cenário fornecido pelas imagens supracitadas e pelos
depoimentos do cronista do Correio Paulistano e pelo memorialista Haim Grünspun seja
bastante ilustrativo das condições de vida dos habitantes do Saracura nas três primeiras
décadas do século XX.
Ainda em relação à área do Saracura, cabe destacar que durante as investigações
anteriores observei que algumas das ruas originais do loteamento tiveram seu percurso
expandido em direção à futura Avenida 9 de Julho, caso das ruas Manoel Dutra e São
Vicente, já no final do período pesquisado naquela ocasião (1881-1913). Outras, como as
ruas da Saracura Grande e Saracura Pequena (ausente no mapa), foram alvo de poucas
solicitações de licenças junto à Diretoria de Obras. No entanto, a referência na planta
SARA Brasil (Anexo 1.6) à Av. Anhangabaú já demonstra a intenção de ocupação do leito
do córrego por uma via de acesso à região sudoeste da cidade como parte do Plano de
Avenidas elaborado por Prestes Maia para o prefeito Pires do Rio que viria a completar-se
nos anos 1930.
Tudo indica que a urbanização da área se fez informalmente, sem passar pelos
crivos da prefeitura e disso resulta a ausência de projetos na Série Obras Particulares.

2.4 O universo investigado e as primeiras conclusões

No primeiro ano levantado, 1906, quando os anúncios do Almanaque Laemmert


ainda se concentravam num único volume, foram poucos os anunciantes no bairro do
Bexiga, somente onze casos. Naquele ano, a categoria que abrangeu maior número de
assinantes foi aquela ligada à construção civil, superando outras categorias que mais tarde
se destacariam, tais como os setores de alimentos e vestuário, fato bastante compreensível
já que naquele momento o bairro ainda estava apenas parcialmente ocupado.
ATIVIDADES N. ANÚNCIOS %
CONSTRUÇÃO CIVIL 5 45,46
ALIMENTAÇÃO, BEBIDAS, ALOJAMENTOS E LAZER 2 18,18
SAÚDE 2 18,18
COMÉRCIO DE GÊNEROS DIVERSOS 1 9,09
SERVIÇOS PESSOAIS 1 9,09
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS - -
ARTES E OFÍCIOS - -
1906
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS - -
TRANSPORTE - -
COMÉRCIO DE APARELHOS ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS - -
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO - -
OFICINAS E MANUFATURAS - -
AGENTES COMERCIAIS - -
EDUCAÇÃO - -
TOTAL 11 100%

Tabela 4 – Atividades desenvolvidas em 1906. Almanaque Laemmert, 1906. Fonte: Acervo Digital FBN.

O ano de 1906 insere-se justamente num período de configuração física do bairro,


quando ocorre o primeiro grande impulso construtivo com a edificação de grande número
de prédios destinados à moradia e negócios. Conforme verificado anteriormente (Schneck,
2010), na primeira fase da ocupação efetiva do bairro, entre 1893 e 1895, foram
encaminhadas à Diretoria de Obras cerca de 132 solicitações de licença para construção
e/ou reforma de edifícios residenciais e comerciais. Já para o triênio de 1905-1906-1907,
localizei 202 solicitações de licença para a construção e/ou reforma de prédios destinados a
moradia e negócios. No entanto, a ausência de dados no Almanaque para o ano de 1906
deve ser relativizada. A escassez de anunciantes naquele ano pode se justificar pelo fato de
se tratar de um loteamento recente e de ocupação rarefeita, onde, talvez, pouca gente
tivesse consciência do alcance de uma publicação destinada à divulgação de atividades
econômicas. Por outro lado, naquele momento, a grande maioria dos usuários do bairro,
moradores e negociantes, era composta por pessoas de pequenas ou médias posses, cujos
empreendimentos apenas estavam começando.
Já em 1909 o quadro se transforma, com o número de anunciantes chegando a 136
casos. Nesse ano o número de atividades relacionadas ao setor de alimentação se destaca,
com um total de 72 anúncios, representando pouco mais de 52% do total, tendência essa
que se manterá por praticamente todo o período investigado.
ATIVIDADES N. ANÚNCIOS %
ALIMENTAÇÃO, BEBIDAS, ALOJAMENTOS E LAZER 72 52,94
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 12 8,82
COMÉRCIO DE GÊNEROS DIVERSOS 12 8,82
SERVIÇOS PESSOAIS 14 10,29
CONSTRUÇÃO CIVIL 6 4,41
TRANSPORTE 5 3,68
OFICINAS E MANUFATURAS 5 3,68
1909
SAÚDE 4 2,94
ARTES E OFÍCIOS 4 2,94
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 2 1,48
COMÉRCIO DE APARELHOS ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS - -
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO - -
AGENTES COMERCIAIS - -
EDUCAÇÃO - -
TOTAL 136 100%

Tabela 5 – Atividades desenvolvidas em 1909. Almanaque Laemmert, 1909. Fonte: Acervo Digital FBN.

Em 1913, pela primeira vez, o Almanaque Laemmert dedicou um volume inteiro


para o Estado de São Paulo. Nesse período a economia do estado se mostrava em franca
ascensão, chegando a competir com a capital federal, o que justifica a iniciativa81. De fato,
um exame detalhado da publicação demonstra que somente o bairro do Bexiga apresentou
290 anúncios naquele ano, um aumento de aproximadamente 114% em relação a 1909.
Em 1914, esse total chegaria a 376 anúncios, sendo que o setor de alimentação
representava 51% do conjunto. Entre junho e agosto de 1914, deflagrou-se a I Grande
Guerra, com sérias consequências para a economia mundial e, por extensão, para a
economia brasileira. Porém, convém ressaltar, ainda que sucintamente, que o início do
conflito só fez piorar uma situação que já estava dada pela própria conjuntura econômica
brasileira. Desde 1913 vinha se desenhando um quadro de recessão na economia do país
em razão da queda dos preços dos principais produtos de exportação, particularmente do

81
De acordo com as orientações dos editores do almanaque, os anúncios simples (em caixa baixa), de uma ou
duas linhas, que se referissem apenas uma vez aos negócios seriam gratuítos. Já por aqueles que excedessem
esses limites seria cobrada uma taxa de 2$000 por linha. Porém, embora grande parte dos anúncios se
encaixasse nos requisistos impostos pelos editores, no caso dos grandes anunciantes as cifras cobradas
podiam chegar a 300$000, como acontecia com os anúncios localizados na lombada da publicação. Assim, se
pensarmos no volume de anúncios, de diferentes modalidades, que a cada ano se acrescentavam à publicação,
será fácil compreender a inclusão de um único volume para o estado.
café e da borracha, ao mesmo tempo em que se mantinha o nível de importações,
acarretando um grave déficit na balança comercial (o montante a se pagar aos credores
externos se mantinha sempre além do que se tinha a receber).
ATIVIDADES N. ANÚNCIOS %
ALIMENTAÇÃO, BEBIDAS, ALOJAMENTOS E LAZER 193 51,32
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 38 10,10
COMÉRCIO DE GÊNEROS DIVERSOS 31 8,24
CONSTRUÇÃO CIVIL 30 7,97
SAÚDE 23 6,11
SERVIÇOS PESSOAIS 21 5,58
ARTES E OFÍCIOS 15 3,99
1914
TRANSPORTE 11 2,92
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 4 1,06
OFICINAS E MANUFATURAS 4 1,06
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO 3 0,79
COMÉRCIO DE APARELHOS ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS 1 0,26
AGENTES COMERCIAIS 1 0,26
EDUCAÇÃO 1 0,26
TOTAL 376 100%

Tabela 6 – Atividades desenvolvidas em 1914. Almanaque Laemmert, 1914. Fonte: Acervo Digital FBN.

O agravamento da crise, após o início da guerra condicionou a paralisação do


mercado do café que, por sua vez, refletiu-se nos setores produtivos nacionais, gerando
recessão, alta de preços, redução dos salários e desemprego82. A análise das atividades
produtivas desenvolvidas no bairro do Bexiga permite constatar em que medida a crise
gerada na macro escala se refletiu na microescala do bairro, afetando a vida e os negócios
de pessoas comuns, gente que talvez nem compreendesse a exata dimensão do problema,
mas que certamente carregou o seu ônus.
Contudo, de acordo com os anúncios divulgados no almanaque, as consequências
da crise somente foram sentidas a partir do início de 191583, quando o anário registrou
apenas 39 anúncios para o bairro do Bexiga. Curiosamente, nesse ano, o setor da saúde,
representado por oito médicos e seis farmácias, foi responsável pela maioria dos anúncios
publicados: 14 casos, ou aproximadamente 36% do total de 39 registros, restando ao setor
de alimentação apenas sete registros (dois açougues, quatro padarias e um armazém de
secos e molhados). Já a construção civil seria representada pelo anúncio de apenas um
engenheiro... No caso dos dois setores é flagrante a presença de anúncios de profissionais
liberais. Embora não se saiba exatamente qual a realidade desses profissionais, dificilmente
eles estariam isentos das consequências da crise financeira do país. O mais provável é que,
justamente por se tratar de um momento de crise, investissem esforços extras na
divulgação de seu trabalho.

82
FAUSTO, Boris – A Revolução de 1930. Historiografia e História, 7ª Edição, São Paulo: Brasiliense,
1981, p.157-158.
83
A publicação do anuário era feita no início do ano, portanto, as informações relativas a 1914 foram
anteriores à deflagração do conflito.
ATIVIDADES N. ANÚNCIOS %
SAÚDE 14 35,90
ALIMENTAÇÃO, BEBIDAS, ALOJAMENTOS E LAZER 7 17,95
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 4 10,26
AGENTES COMERCIAIS 4 10,26
SERVIÇOS PESSOAIS 3 7,70
ARTES E OFÍCIOS 3 7,69
COMÉRCIO DE GÊNEROS DIVERSOS 1 2,56
1915
CONSTRUÇÃO CIVIL 1 2,56
TRANSPORTE 1 2,56
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO 1 2,56
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS - -
COMÉRCIO DE APARELHOS ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS - -
OFICINAS E MANUFATURAS - -
EDUCAÇÃO - -
TOTAL 39 100%

Tabela 7 – Atividades desenvolvidas em 1915. Almanaque Laemmert, 1915. Fonte: Acervo Digital FBN.

Com pequenas flutuações, a situação perduraria até 1918, ano do final do conflito,
quando localizei 134 anúncios. Naquele momento, o setor de alimentação, com 41
anúncios, voltaria a se destacar sobre os demais, seguido pelo da saúde, com 35 anúncios,
representando respectivamente, 30,60% e 26,11% desse total. Já o setor da construção
civil, com oito anúncios (5,97%), demoraria ainda algum tempo para se recuperar,
perdendo lugar, inclusive, para o setor de vestuário e acessórios (9,70%).
ATIVIDADES N. ANÚNCIOS %
ALIMENTAÇÃO, BEBIDAS, ALOJAMENTOS E LAZER 41 30,60
SAÚDE 35 26,11
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 13 9,70
SERVIÇOS PESSOAIS 10 7,46
ARTES E OFÍCIOS 10 7,46
CONSTRUÇÃO CIVIL 8 5,97
COMÉRCIO DE GÊNEROS DIVERSOS 6 4,47
1918
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 4 2,97
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO 3 2,38
AGENTES COMERCIAIS 2 1,48
TRANSPORTE 1 0,75
OFICINAS E MANUFATURAS 1 0,75
COMÉRCIO DE APARELHOS ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS - -
EDUCAÇÃO - -
TOTAL 134 100%

Tabela 8 – Atividades desenvolvidas em 1918. Almanaque Laemmert, 1918. Fonte: Acervo Digital FBN.

Vale lembrar ainda que a publicação do anuário acontecia no início do ano, e que a
assinatura do armistício ocorreu em 11 de novembro de 1918. Portanto, as tendências de
crescimento já estavam dadas há quase um ano. O fato é que, independentemente das crises
geradas pela guerra, nesse momento a economia paulista já mostrava sinais de recuperação,
pelo menos no que tange ao espaço do bairro do Bexiga.
No biênio 1922-1923 observa-se a retomada do crescimento. Passados quatro anos
desde o final da guerra, as atividades ligadas à alimentação mantêm a liderança em relação
às demais. Entre os 440 anúncios registrados, 178 deles (40,45%) se referem a atividades
de algum modo vinculadas ao setor, composto quase sempre, por açougues, padarias e
armazéns de secos e molhados destinados à satisfação de necessidades básicas, mas
também de estabelecimentos dedicados ao comércio e serviços que envolviam produtos
considerados “supérfluos”, tais como confeitarias, confeitos, salsicharias e comércio de
vinhos, ou ainda, alguns botequins.
ATIVIDADES N. ANÚNCIOS %
ALIMENTAÇÃO, BEBIDAS, ALOJAMENTOS E LAZER 178 40,45
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 50 11,36
SERVIÇOS PESSOAIS 46 10,45
SAÚDE 44 10
CONSTRUÇÃO CIVIL 35 7,95
COMÉRCIO DE GÊNEROS DIVERSOS 31 7,05
ARTES E OFÍCIOS 18 4,10
1922-23
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 10 2,27
AGENTES COMERCIAIS 8 1,82
EDUCAÇÃO 7 1,60
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO 5 1,14
TRANSPORTE 4 0,91
COMÉRCIO DE APARELHOS ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS 2 0,45
OFICINAS E MANUFATURAS 2 0,45
TOTAL 440 100%

Tabela 9 – Atividades desenvolvidas no biênio 1922-23. Almanaque Laemmert, 1922-23. Fonte: Acervo Digital FBN.

Na sequência, se destaca o setor de vestuário e acessórios, com 50 anúncios


(11,36%), envolvendo a manufatura e o comércio de roupas, sapatos e chapéus. Também é
nesse momento que os anúncios divulgando serviços de caráter pessoal ganham destaque.
Do total de 440 anúncios, 46, ou aproximadamente 10% se relacionam a algum tipo de
serviço, desde aqueles mais básicos, prestados por barbeiros e tintureiros, até aqueles
envolvendo profissionais liberais como os advogados.
Nos anos 1922-1923, a saúde se mantém como uma das categorias a concentrar um
grande número de anúncios de farmácias, médicos, parteiras, dentistas e até um químico.
Com 44 registros, o setor representa aproximadamente 10% dos anunciantes naquele ano.
De modo geral, os dados coletados nesse biênio evidenciam alguns aspectos
relevantes. Pela primeira vez desde 1914, nenhuma das categorias elencadas se apresenta
em branco. Mesmo aquelas atividades de menor importância no cenário produtivo
demonstram alguma preocupação de divulgação profissional, caso especialmente dos
agentes comerciais, do comércio de aparelhos elétricos, máquinas e equipamentos, e das
atividades vinculadas à informação e comunicação e à educação. Nesses casos, a
introdução de atividades de caráter aparentemente menos essenciais (ainda que em número
reduzido), que pelos menos teoricamente deveriam estar circunscritas ao Centro da cidade,
parece indicar uma certa tendência de especialização das atividades no perímetro central,
deslocando-se para as áreas envoltórias os estabelecimentos voltados para a venda de
maquinario, os pequenos serviços, as oficinas e pequenas manufaturas outrora ali sediadas.
De toda maneira, quaisquer conclusões nesse sentido pedem uma análise mais detalhada,
envolvendo a localização desses negócios, assim como o tempo de permanência naquele
espaço. Fato é que os dados relativos aos anos 1922-23 demonstram um amadurecimento
do papel representado pelo bairro do Bexiga na economia urbana da cidade de São Paulo.
Entretanto, a insurreição militar de 1924, deflagrada em 05 de julho daquele ano, se
não interrompeu o ritmo de crescimento da economia paulistana, reduziu drasticamente seu
impulso. Um conjunto de fatores decorrentes do conflito afetou principalmente os bairros
populares. O clima de insegurança diante da ameaça constante dos bombardeios ocorridos
em alguns bairros levou parte da população a buscar abrigo no interior paulista, e a
população que permaneceu na cidade viu-se frente à escassez de alimentos em virtude da
dificuldade de abastecimento. Consequentemente, ocorreram saques em armazéns e
depósitos, gerando prejuízos a comerciantes e produtores. Até os últimos anos da década, a
recuperação da economia foi parcial, sem nunca atingir o nível alcançado no biênio 1922-
1923.
ATIVIDADES N. ANÚNCIOS %
ALIMENTAÇÃO, BEBIDAS, ALOJAMENTOS E LAZER 159 32,12
SERVIÇOS PESSOAIS 69 13,94
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 53 10,71
COMÉRCIO DE GÊNEROS DIVERSOS 50 10,10
SAÚDE 49 9,90
CONSTRUÇÃO CIVIL 35 7,08
ARTES E OFÍCIOS 28 5,67
1927
AGENTES COMERCIAIS 19 3,84
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 10 2,02
TRANSPORTE 7 1,41
EDUCAÇÃO 6 1,21
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO 4 0,80
COMÉRCIO DE APARELHOS ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS 3 0,60
OFICINAS E MANUFATURAS 3 0,60
TOTAL 495 100%

Tabela 10 – Atividades desenvolvidas em 1927. Almanaque Laemmert, 1927. Fonte: Acervo Digital FBN.

Em 1927, embora alguns setores (como alimentação, vestuário e acessórios


pessoais, comércio de gêneros diversos, serviços pessoais e saúde) mantivessem um certo
ritmo de crescimento, o total de 495 registros demonstra uma pequena desacelaração em
relação ao biênio 1922-23. Se ali, a ordem de crescimento em relação ao período anterior
chegou a mais de 220%, agora o salto seria muito inferior, de pouco mais de 12%.
Contudo, ainda que o crescimento tenha sido reduzido, os dados coletados continuam a
apontar para a tendência, já esboçada nos anos anteriores, de concentração daqueles setores
entre as atividades exercidas no bairro do Bexiga. O mesmo pode ser dito para 1931.
Passados quatro anos, os anúncios publicados no Almanaque Laemmert totalizaram 604
registros, com um crescimento de 22,02%.
Na realidade, a perda do impulso de crescimento, registrada entre 1918 e 1923, tem
a ver com uma questão mais ampla da economia brasileira, caracterizada pela dependência
do setor agrário-exportador, cabendo aos setores secundários (fábricas) e terciário
(comércio e serviços) um papel secundário. A dependência das exportações do café desde
há muito constituía um problema para o país, mas foi a crise gerada pela quebra da Bolsa
de Nova York, em 1929, que detonou a recessão e o fim de uma fase da economia
brasileira. De uma maneira geral, a queda das exportações e a redução das importações, o
fechamento de fábricas e de estabelecimentos comerciais e o consequente desemprego
foram o estopim para os enfrentamentos entre os segmentos politicamente atuantes naquele
período, que culminariam na Revolução de 1930, e nas mudanças políticas e sociais dela
decorrentes.
ATIVIDADES N. ANÚNCIOS %
ALIMENTAÇÃO, BEBIDAS, ALOJAMENTOS E LAZER 237 39,24
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 72 11,92
COMÉRCIO DE GÊNEROS DIVERSOS 62 10,26
SERVIÇOS PESSOAIS 56 9,27
CONSTRUÇÃO CIVIL 51 8,44
SAÚDE 37 6,13
ARTES E OFÍCIOS 26 4,30
1931
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 19 3,15
TRANSPORTE 19 3,15
COMÉRCIO DE APARELHOS ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS 8 1,32
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO 5 0,83
OFICINAS E MANUFATURAS 5 0,83
AGENTES COMERCIAIS 3 0,50
EDUCAÇÃO 3 0,50
TOTAL 603 100%

Tabela 11 – Atividades desenvolvidas em 1931. Almanaque Laemmert, 1931. Fonte: Acervo Digital FBN.

Portanto, os índices apresentados pelos anúncios publicados no Almanaque


Laemmert no decorrer do período estudado mostram-se coerentes com a realidade
econômica e política subjacente à realidade de nosso bairro.
Para obter informações mais esclarecedoras sobre o período busquei no trabalho de
Bóris Fausto84 desvendar o papel dos setores envolvidos na Revolução de 1930 e obter
subsídios que dessem conta da atuação dos principais setores econômicos atuantes naquele
momento. O autor, na segunda parte do primeiro capítulo, “A indústria na década de
vinte”, a partir do Recenseamento de 1920, definiu o que ele mesmo classificou como
“alguns traços essenciais da indústria brasileira da década de vinte”.
PRODUÇÃO
SEGMENTOS INDUSTRIAIS %
(VALOR)
INDÚSTRIAS DA ALIMENTAÇÃO 1.100.118:000$ 40,2
INDÚSTRIAS TÊXTEIS 825.400:650$ 27,6
INDÚSTRIAS DO VESTUÁRIO E TOUCADOR 246.201:560$ 8,2
INDÚSTRIAS DE PRODUTOS QUÍMICOS PROPRIAMENTE DITOS E ANÁLOGOS 237.315:001$ 7,9
OUTROS PRODUTOS INDUSTRIAIS 480.141:070$ 16,1
TOTAL 2.9989.176:281$ 100%

Tabela 12 – Segmentos industriais identificados no Recenseamento de 192085. Fonte: Bóris Fausto, 1981.

84
FAUSTO, Bóris. Op.cit., p.19 a 28.
85
De acordo com Fausto, os dados apontados no Recenseamento de 1920 se referem apenas ao primeiro ano
da década. O autor ressalta ainda que “As atividades predominantes por setor são as têxteis e as alimentares,
Entre as informações trazidas por Bóris Fausto, destacamos duas tabelas. A
primeira, reproduzida acima, foi formulada a partir do Recenseamento daquele ano e
fornece os dados relativos à posição dos diferentes segmentos industriais no contexto
nacional. A tabela demonstra que o setor de maior impacto é aquele relacionado à
alimentação, seguido das indústrias têxtil, de vestuário, produtos químicos e outros. Ainda
que esses dados refiram-se à indústria, trata-se da produção de artigos que de alguma
maneira são destinados ao consumo da população. Portanto, podemos deduzir que o
comércio dos produtos resultantes da atividade industrial está aí implícito. Assim temos,
numa escala macro, a confirmação das informações obtidas na realidade circunscrita de um
bairro popular da cidade de São Paulo, situação essa que, com exceção de 1915, se
repetiria a cada ano investigado.
Os dados relativos às demais categorias são numericamente pouco significativos
para o nosso microcosmo, o que não lhes tira a importância. Eles demonstram que na busca
do êxito, a diversificação se mostrava um caminho a ser seguido pelos empreendedores,
fosse através do comércio, da prestação de serviços ou mesmo da produção de artigos
destinados ao consumo cotidiano.
A segunda tabela, Indústrias com capital igual ou superior a 5.000 contos (de réis),
no Estado de São Paulo86, contém informações sobre as empresas com presença expressiva
no Estado, com o nome da mesma, o local de atuação (cidade), o capital empregado, o
número de operários, o número de fusos e teares e a quantidade de força motriz utilizada.
A partir dessa tabela, organizei uma outra, na qual, na coluna à esquerda foram
relacionados os segmentos industriais identificados no Estado de São Paulo e, à direita, as
manufaturas identificadas no bairro do Bexiga.
No panorama traçado pela tabela, verifica-se que com exceção dos segmentos de
couros e peles, vidros e cristais, artefatos de borracha e das empresas de eletricidade,
ausentes no bairro, as demais atividades constam em pelo menos uma ocorrência de
estabelecimentos destinados à fabricação de algum tipo de produto, inclusive, de artigos
não contemplados pela Estatística Industrial de São Paulo, tais como sabão e sabonetes,
graxas para calçados, brinquedos, presuntos e salames, botões e até uma fábrica e oficina
de carruagens.

sendo significativo notar que os ramos básicos da infra-estrutura industrial (siderurgia, mecânica pesada,
por exemplo) não representam qualquer contingente apreciável”. Op.cit., p.19.
86
Fonte citada pelo autor: Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio de São Paulo, Estatística
Industrial de São Paulo – 1930. São Paulo, Tip. Garraux, 1931.
SEGMENTOS INDUSTRIAIS IDENTIFICADOS NA SEGMENTOS MANUFATUREIROS IDENTIFICADOS
ESTATÍSTICA INDUSTRIAL DE SÃO PAULO (1930 ) NO BAIRRO DO BEXIGA (1906-1931)
1. INDÚSTRIAS TÊXTEIS DE FIOS E TECIDOS TÊXTEIS
FIAÇÃO E TELECELAGEM DE ALGODÃO CASEMIRAS
FIAÇÃO E TECELAGEM DE JUTA -
FIAÇÃO E TECELAGEM DE SEDA -
LINHAS PARA COSER, CORDAS, BARBANTES -
2. INDÚSTRIAS DE COUROS E PELES -
3. INDÚSTRIAS DE MADEIRAS MADEIRAS
- CAIXOTEIROS
- MÓVEIS DE MADEIRA
4. INDÚSTRIA DE PREPARAÇÃO DE METAIS, FABRICAÇÃO DE PREPARAÇÃO DE METAIS, FABRICAÇÃO DE MÁQUINAS,
MÁQUINAS, APARELHOS E INSTRUMENTOS APARELHOS E INSTRUMENTOS
FUNDIÇÃO DE AÇO -
FERRO ESMALTADO CAMAS E MÓVEIS DE FERRO
MÁQUINAS BALANÇAS, PESOS E MEDIDAS
- CALDEIREIROS/ CUNHAGEM DE MEDALHAS/ DOURADORES/
FUNDIÇÕES/ FUNILEIROS/ GALVANIZADORES/ GRAVADORES/
LATOEIROS/ NIQUELADORES/ PRATEADORES/ OURIVESARIAS
5. VIDROS E CRISTAIS -
6. INDÚSTRIAS DA PREPARAÇÃO DE MATERIAIS PARA EDIFICAÇÃO PREPARAÇÃO DE MATERIAIS PARA EDIFICAÇÃO
CIMENTO E CAL -
TIJOLOS, TELHAS, TUBOS PARA ESGOTO E LOUÇAS DE BARRO LOUÇAS DE BARRO
7. INDÚSTRIAS DE PRODUTOS QUÍMICOS PRODUTOS QUÍMICOS
PRODUTOS QUÍMICOS E FARMACÊUTICOS PRODUTOS QUÍMICOS E FARMACÊUTICOS
FÓSFOROS -
- CERA PARA ASSOALHO
- POMADAS PARA CALÇADOS
- SABÃO E SABONETES
- VELAS
8. INDÚSTRIAS DA ALIMENTAÇÃO ALIMENTAÇÃO
BEBIDAS AGUARDENTE/ CERVEJA/ VINHO
CIGARROS, CHARUTOS E FUMOS MANIPULADOS CIGARROS
- DOCES/ MASSAS ALIMENTÍCIAS/ TORREFAÇÕES DE CAFÉ
9. INDÚSTRIAS DO VESTUÁRIO VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS
- CALÇADOS
- CHAPÉUS
- ALFAIATES/ OFICINAS DE COSTURA/ CONFECÇÕES
- BOTÕES
10. ARTES GRÁFICAS ARTES GRÁFICAS
- ENCADERNAÇÕES/ ESTAMPARIAS/ LITOGRAFIAS/ OFICINAS DE
GRAVURAS/ OFICINAS GRÁFICAS/ TIPOGRAFIAS
11. PAPEL E PAPELÃO PAPEL E PAPELÃO
- PAPEL E PAPELÃO
12. ARTEFATOS DE BORRACHA -
13. EMPRESAS DE ELETRICIDADE -
- OUTROS PRODUTOS
- BRINQUEDOS
- CARRUAGENS

Tabela 13 – Cotejamento entre os segmentos industriais identificados na Estatística Industrial de São Paulo – 1930 e os
segmentos manufatureiros identificados no bairro do Bexiga (1906-1931).

Aqui é importante lembrar que não estamos tratando de uma região tipicamente
fabril, como era o caso dos bairros como Brás, Mooca, Lapa e Barra Funda. Mesmo não
possuindo informações quanto à dimensão desses estabelecimentos e o número de pessoas
neles empregadas, é necessário ter cautela ao adotar o termo “fábrica”, comumente
utilizado pelos anunciantes. Muito provavelmente, se tratava de pequenas e médias
manufaturas, ou simples oficinas, capitaneadas por pessoas de pequenas ou medianas
posses, que no afã de divulgar o negócio procuravam revestí-lo de um significado mais
qualificado. Em algumas ocasiões cheguei a encontrar “fábricas” dividindo o mesmo
endereço com outro tipo de negócio, ambos do mesmo proprietário, o que parece confirmar
minha hipótese. Assim, o que o setor de Estatística Industrial de São Paulo indicava como
‘indústria’ deve ser lido com cautela e, na maioria dos casos, entendido como ‘manufatura’
no sentido estrito de oficina para “confecção de determinados produtos”.
De uma maneira geral, a análise das listagens oriundas do levantamento dos
87
Almanaques e reunidas no Anexo 2 – Atividades identificadas , indicou aspectos
relevantes para a compreensão da evolução das atividades produtivas no bairro do Bexiga:
a) O predomínio dos estabelecimentos voltados para alimentação, incluídas as
atividades comerciais e de serviços em relação a outros setores produtivos. Em
1914, por exemplo, esse segmento foi responsável por aproximadamente 54% do
total de 310 atividades registradas nas ruas do bairro. Em algumas delas, chegou a
compor a quase totalidade dos negócios (caso das ruas Aguiar de Barros,
Conselheiro Carrão, Maria Paula, Santo Amaro e do Sol). A exceção ficou por
conta da Av. Brigadeiro Luís Antônio, onde o setor de alimentos respondeu por
apenas 35,84% do total de 53 atividades registradas. Trata-se de armazéns de secos
e molhados e quitandas, voltados ao abastecimento doméstico de gêneros de
primeira necessidade.
b) A variedade e complexidade do comércio e serviços oferecidos em determinadas
ruas, de modo a suprir praticamente todas as necessidades dos moradores do bairro
e dos bairros adjacentes. A rua Conselheiro Ramalho é um dos exemplos mais
expressivos desse fenômeno, só superado pela Av. Brigadeiro Luís Antônio. A
tendência se acentuou com o passar dos anos. Em 1921, a diversificação de
negócios foi acompanhada, ainda que timidamente, pela introdução de serviços
mais especializados (livrarias, papelarias, comércio de fotografias e bilhetes postais,
comércio de jornais e revistas, editores de livros e músicas, tipografias, serviços de
importação e exportação, representantes de casas comerciais, ourives e relojoeiros,

87
Tendo em vista a necessidade de lidar com aspectos e conceitos que fogem à minha formação, sem
contudo perder o rigor interpretativo, pensei num primeiro momento, em adotar a classificação
contemporânea do IBGE, a Classificação Nacional de Atividades Economicas-CNAE, de maneira a
enquadrar os segmentos envolvidos nas atividades produtivas do bairro nos parâmetros daquela instituição –
setores primário, secundário e terciário. Porém, ao longo dos anos investigados, o universo produtivo do
bairro mostrou-se cada vez mais complexo e diversificado, dificultando a classificação das atividades em
categorias fechadas e possivelmente anacrônicas. Assim, ao invés de inserir as atividades nos respectivos
segmentos usualmente utilizados, procurei criar categorias abrangentes que envolvessem a vida pública e
privada da cidade, tais como alimentação, construção civil, saúde, transportes, vestuário, etc. Em seguida,
montei um quadro específico, contendo as Atividades Identificadas no Bairro do Bexiga (1906-1931), o
Anexo 2. Ali, na primeira coluna foram elencadas as categorias principais; na segunda coluna, foram
inseridas as diferentes modalidades relativas às categorias principais (se comércio, serviços ou outro); e
finalmente, da última coluna constam todas as atividades localizadas nos almanaques, de acordo com as
categorias principais. Como pode ser visto nesse quadro, para cada uma das categorias principais utilizei uma
cor básica que representa o grupo de atividades que integra o conjunto. Fonte: IBGE – Classificação
Nacional de A tividades Econômcas. Versão 2.0. Rio de Janeiro, 2007. Disponível em:
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv36932.pdf.
professores de violino e piano, afinadores de pianos, modistas e comércio de modas
e confecções, alfaiatarias, casas de banho, etc), quase todos até então praticamente
exclusivos das ruas do Triângulo (15 de Novembro, Direita e São Bento). Ao lado
desses estabelecimentos, outros menos “charmosos” respondiam às necessidades de
produtos e serviços mais simples, porém fundamentais (barbearias, sapatarias,
tinturarias, marcenarias, carpintarias, ferreiros, bombeiros hidráulicos, construtores,
correarias e selarias, farmácias, parteiras, como também as lojas de armarinhos,
fazendas e modas, de materiais de construção, ferragens e quinquilharias, carvão
vegetal, etc).
c) A presença de um número considerável de profissionais liberais (professores,
engenheiros, advogados, médicos, farmacêuticos, dentistas e até um veterinário) em
diversas ruas do bairro, desde o ano de 1909, comprova que nesse momento o
bairro já se mostrava como um espaço que abrigava diferentes camadas sociais.
d) A conjugação de diferentes tipos de negócios num mesmo endereço,
eventualmente com um mesmo proprietário.

2.5 A distribuição espacial das atividades produtivas, conforme a área de ocorrência

O objetivo deste tópico foi verificar, através de cada setor produtivo identificado e
do número de anúncios veiculados pelo Almanaque Laemmert em cada ano, a “vocação”
de cada uma das três áreas eleitas para estudo. Contudo, é importante destacar que da
mesma maneira que o bairro do Bexiga não pode ser entendido como uma unidade
homogênea em toda a sua extensão, apresentando diferentes faces a depender das
condições dadas pelo espaço físico (topográfico), pelo perfil social de seus ocupantes,
assim como pelo tipo de ocupação e usos que esses agentes sociais fizeram do lugar, de
forma que as “vocações” de cada área não eram estanques, estando sujeitas a variações,
inclusive nas interfaces que estabeleciam com outros bairros da cidade.
Embora o propósito final desta pesquisa seja compreender como o bairro do
Bexiga, em sua totalidade, se inseriu no contexto da cidade como um todo, julgo que uma
análise detalhada de cada uma das áreas envolvidas seja necessária, até para que seja
possível verificar a contribuição de cada uma delas no quadro geral da urbanização de São
Paulo e, a partir do panorama obtido, formular algumas hipóteses.
2.5.1 A “área nobre”

De acordo com o Almanaque Laemmert, as atividades produtivas registradas em


1906 no bairro do Bexiga se resumiram a um único comércio de materiais de construção,
na rua Santo Amaro n. 65, de propriedade de Amaro José da Silva. Porém, haviam se
passado mais de quinze anos desde o início do loteamento, e naquela altura o bairro já
vinha sendo efetivamente ocupado. Pensando que pelo menos alguns serviços básicos
tivessem sido abertos em função da população que aos poucos se apropriava do espaço,
decidi retroagir no tempo e buscar no Almanach do Estado de São Paulo para 189088
outras informações.
ALMANACH DO ESTADO DE SÃO PAULO
SEGMENTOS ECONÔMICOS N. TOTAL
ATIVIDADES PRODUTIVAS (1890)
AÇOUGUES 5
DEPÓSITOS DE SAL 2
ALIMENTAÇÃO E LAZER DEPÓSITOS E COMÉRCIO DE VINHOS 2 17
PADARIAS 1
SECOS E MOLHADOS 7
COMÉRCIO EM GERAL FAZENDAS E ARMARINHOS 3 3
MATERIAIS P/CONSTRUÇÃO 1
CONSTRUÇÃO CIVIL 2
SERRARIAS E DEPÓSITOS DE MADEIRAS 1
MÓVEIS E UTILIDADES DOMÉSTICAS LOUÇAS E PORCELANAS 1 1
SAÚDE FARMÁCIA 1 1
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS ROUPAS FEITAS 1 1
TOTAL 25

Tabela 14 – Segmentos identificados no Almanach do Estado de São Paulo, 1890.

No Anuário de 1890 verifiquei a presença de um único comerciante na rua Santo


Amaro n.20, Antônio Joaquim do Pinho, dono de um armazém de secos e molhados a
varejo. Entretanto, nesse anuário, nota-se que todos os negócios que porventura
envolvessem as necessidades básicas dos moradores ainda se localizavam nos limites da
colina histórica, basicamente no Largo da Memória, Ladeira Dr. Falcão, Largo e Ponte do
Piques e Largo do Riachuelo. Localizei um total de 25 negócios, sendo a maioria (17)
destinada à alimentação (sete secos e molhados, sendo que em dois casos os mesmos
comerciantes também exploravam depósitos e comércios de sal no mesmo endereço, cinco
açougues, dois depósitos e comércio de vinhos e uma padaria). Havia também três lojas de
fazendas e armarinhos, dois comércios de materiais de construção (materiais em geral e
madeiras), uma loja de louças, porcelanas e cristais, uma loja de roupas prontas e uma
farmácia.
Realmente, a totalidade dos negócios localizados na entrada do bairro destinava-se
à satisfação de necessidades básicas de quem vivesse nas vias circundantes, fosse da
colina, ou além de seus limites, caso do Bexiga. É possível que os moradores do novo
88
Almanach do Estado de São Paulo, para 1890. Por Jorge Seckler. Sétimo Anno, São Paulo, Editores-
Proprietarios Jorge Seckler & Comp.
loteamento também se servissem desses estabelecimentos. Contudo, a ideia inicial de que
em 1906 a região já contasse com um comércio próprio não se fundamentou.
Não se pode esquecer que a rua Santo Amaro é anterior ao loteamento, já constando
da Planta da Cia. Cantareira de 1881 (Figura 22), sendo grandes as chances daquele
negócio ser mais antigo, o que se confirmou no Almanack Administrativo, Commercial e
Industrial da Provincia de São Paulo para o ano bissexto de 188489. Ali constata-se que o
comércio de secos e molhados, de propriedade de Antônio Joaquim do Pinho, já existia,
sendo anterior ao empreendimento. Em se tratando de uma área de saída da cidade para os
arrabaldes, talvez envolvesse inicialmente o abastecimento de zonas mais afastadas no
periurbano.

Figura 22 – A planta cadastral da Cia. Cantareira demonstra que em 1881 a ocupação da via era incipiente, pouco
ultrapassando o traçado da futura rua Jacareí (tracejada em vinho). Destacamos em amarelo o lote que julgamos
corresponder ao n.20, que conforme é possível observar está muito próximo do Largo do Riachuelo e da Faculdade de
Direito. “Planta da Cidade de São Paulo” (1881). Levantada pela Cia. Cantareira e Esgotos, Henry B. Joyner,
Engenheiro em Chefe. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20).

89
Almanach Administrativo, commercial e industrial da Provincia de São Paulo, para o ano bissexto de
1884. São Paulo, Ed. Jorge Seckler & Cia., 1883.
Aprofundei então as investigações sobre as atividades desenvolvidas no circuito
próximo ao centro, recorrendo aos pedidos de licença para abertura de negócios, da Série
Alvará e Licença (AHSP) no período entre 1906 e 1908.
SEGMENTOS ATIVIDADES PRODUTIVAS (1906-1908) N. TOTAL
AÇOUGUE 3
ARMAZÉM DE SECOS E MOLHADOS 1
ALIMENTAÇÃO E LAZER 8
JOGO DE BOLAS 3
QUITANDA 1
CONSTRUÇÃO CIVIL OFICINA DE ESCULTURA/ COMÉRCIO DE GESSO E CIMENTO 1 1
TOTAL 9

Tabela 15 – Segmentos identificados na Série Alvará e Licença, 1906-1908. Fonte: AHSP.

Em 1906, localizei três pedidos de licença para abertura de dois açougues e um


jogo de bolas no trecho da rua Santo Amaro que, a partir de 1908, daria continuidade à
Av. Brigadeiro Luís Antônio. No ano seguinte, identifiquei no n.50 da mesma avenida,
uma oficina de escultura, de propriedade de JAO & Pellicciotti, cujo letreiro anunciava:
“Officina artístico-industrial Jao & Pellicciotti. Decorações em cimento e gesso. Forros
de estuque. Gesso francez. Cimento Presa Rapida e Porthland. Executam-se em granilita –
imitação do granito natural – Obras architectonicas e ornamentais para edificios e
monumentos etc.”. Havia também um açougue na rua Santo Amaro n.24B, de propriedade
de Raphael Capello, e um armazém de secos e molhados no n.96 daquela rua, de
propriedade de José Graziano. Por fim, em 1908, localizei dois jogos de bola na Av.
Brigadeiro Luís Antônio nos números 133 e 140, e uma quitanda no n. 21 da rua Santo
Amaro.
Vemos que num curto espaço de tempo, nos pedidos de Alvará e Licença para a
abertura de novos negócios, assim como para o pagamento dos impostos, o segmento de
alimentação e lazer concentrou o maior número de atividades, seguido por um único caso
de atividade vinculada à construção civil. Percebe-se assim uma certa transformação em
relação ao cenário da última década do século XIX. Ali, embora a alimentação também
concentrasse o maior número de negócios, e o comércio em geral (armarinhos, louças,
vestuário etc.) possuísse uma relativa representatividade, é provável que os produtos e
serviços anunciados se dirigissem a um outro tipo de consumidor que não era exatamente
aquele que viria a ocupar as ruas localizadas entre a Av. Brigadeiro Luís Antônio e a Santo
Amaro. Naqueles primórdios, o antigo comércio localizado nas cercanias do Largo do
Riachuelo provavelmente servisse aos moradores do entorno do largo, exatamente na área
limítrofe da antiga colina. Realmente tratava-se de outro momento. Os anúncios do
Almanaque Laemmert revelam que a ocupação das ruas do Bexiga envolveria novos
moradores e estes trariam outras necessidades/prioridades.
Há um outro aspecto que pode ajudar a esclarecer a presença ou ausência de
atividades produtivas nessa região no que se refere aos usos dados às próprias edificações
do local. Os documentos da Série Obras Particulares (AHSP), contendo as solicitações de
licença para construir e/ou reformar, indicam algumas tendências. O levantamento dos
requerimentos encaminhados à Diretoria de Obras referentes às ruas em questão,
permitiram elaborar um quadro no qual destacamos aspectos dos programas das
edificações indicativos do tipo de uso ali predominante.
PROJETOS ENVOLVENDO ALGUM PROJETOS ESPECÍFICOS
LOGRADOUROS TOTAL
TIPO DE NEGÓCIO PARA RESIDÊNCIAS
AGUIAR DE BARROS - - -
ASDRÚBAL DO NASCIMENTO 3 6 9
BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 4 49 53
FRANCISCA MIQUELINA - 3 3
GENEBRA 2 16 18
JACEGUAI - 1 1
MARIA PAULA - 4 4
SANTO AMARO 3 26 29
TOTAL 12 105 117

Tabela 16 – Projetos arquitetônicos indicadores dos usos dos imóveis. Fonte: Série Obras Particulares, AHSP.

Observa-se na Tabela 16 que entre os 117 projetos registrados no SIRCA90,


abrangendo os anos de 1906 a 1908, apenas 12 (10,25%) apresentam indícios da presença
de algum tipo de atividade produtiva. Independentemente de se tratar da construção de um
novo prédio, ou de reforma e/ou acréscimo em um prédio existente, os casos analisados
envolvendo algum tipo de negócio referiam-se a:
 5 edificações de uso misto, construídas no alinhamento da rua, com residência e
negócio instalado geralmente na sala da frente;
 1 edificação construída no alinhamento da rua, especialmente destinada ao
exercício de negócio/atividade;
 5 galpões e/ou barracões nos fundos do terreno para instalação de fábrica ou
manufatura;
 1 cocheira instalada nos fundos do terreno.

Ainda que esses prédios, a depender das necessidades de seus usuários, possam ter
tido seu uso alterado no decorrer do tempo, ou mesmo dentro do período aqui enfocado,
impondo a necessidade de relativização desses números, as diferenças entre as informações
fornecidas pelas Obras Particulares e aquelas oriundas dos almanaques são muito grandes
para serem ignoradas. Portanto, se levarmos em consideração os números apresentados na
Tabela 15, nossa hipótese sobre o predomínio do uso residencial naquela área, entre os

90
SIRCA – Sistema de Registro, Controle e Acesso ao Acervo. Instrumento de pesquisa desenvolvido pelo
Arquivo Histórico de São Paulo, desde 2013, para as atividades de descrição documental. Disponível em:
http://www.projetosirca.com.br/.
anos de 1906 e 1908 se confirma. Partindo-se desse pressuposto, não é de estranhar a
ausência de anúncios no almanaque de 1906.

Figura 23 – Registro fotográfico da implantação dos trilhos do bonde na Av. Brigadeiro Luís Antônio, em 1904. O muro
alto, à esquerda da foto, provavelmente se refira ao terreno ocupado pela residência da Baronesa de Limeira; à direita, o
amplo espaço ainda vazio dá a dimensão do que era aquela área do Bexiga nos primeiros anos do século XX, despida do
casario que viria a ser construído nos próximos anos. Fonte: http://hagopgaragem.com/saopaulo/sp_comparativo/
sp_compa_302.jpg91

Por outro lado, é preciso lembrar que a instalação das atividades produtivas
sugeridas pelos projetos arquitetônicos talvez não tenha realmente se efetivado, já que
alguns deles não possuem uma definição clara de sua utilização. O que essa fonte nos
fornece, na verdade, são indícios que devem ser explorados, mesmo que depois sejam
descartados.
O bairro do Bexiga, em toda a sua extensão, mostrou-se particularmente pobre em
termos de lazer para a sua população. Com exceção de dois cinematógrafos que surgiram
nos anos 1910, os moradores do bairro contavam somente com as festas anuais em
homenagem aos santos de devoção dos imigrantes italianos, com os circos que
eventualmente pousavam em algum terreno desocupado e principalmente com os jogos de
bolas. Bastante presente nos documentos da Série Alvará e Licença, aquela era uma forma
de lazer popular que, a julgar pela frequente ocorrência nos requerimentos da Série e uma
prática bastante difundida entre os moradores do Bexiga. Curiosamente, não há referências
ao jogo nos almanaques, porém, ao confrontar nomes e endereços dos solicitantes com as
listagens dos Almanaques Laemmert identifiquei vários casos em que se tratava da mesma
pessoa, embora a atividade fosse outra, geralmente um botequim, uma quitanda ou um
armazém de secos e molhados. Via de regra, os jogos estavam instalados nos fundos do
prédio, ou mesmo no quintal, evidenciando que este não era o negócio principal, mas

91
Consulta realizada em 22/01/1914.
somente uma extensão daquele, o que justifica sua omissão nos almanaques. Por outro
lado, se o objetivo da divulgação era justamente alcançar uma clientela para além dos
limites do Bexiga, o mais provável é que os jogos de bola (ou bocha) se destinassem aos
próprios moradores do bairro.
Uma última questão a ser levantada se refere a não oficialização do negócio junto
aos órgãos da municipalidade. Ainda que a legislação municipal dispusesse sobre a
obrigatoriedade de Alvará para funcionamento de qualquer tipo de atividade, nem sempre
os fiscais da Diretoria de Polícia e Higiene conseguiram ter o controle absoluto sobre todas
as atividades produtivas exercidas na cidade.
Para fins de avaliação do processo de implantação das atividades produtivas no
bairro, resumi algumas informações referentes a determinados anos, com base na Série
Alvará e Licença, cruzando os dados sempre que possível com os dos almanaques
supracitados.

 1909
Desde o ano anterior, o Almanaque Laemmert registrava um aumento flagrante no
número de anunciantes para a cidade de São Paulo. Para se ter uma ideia desse
crescimento, em 1906 os anunciantes da capital paulista em geral ocuparam vinte e três
páginas do anuário; em 1908 o total ampliou-se para sessenta e cinco páginas; já em 1909
esse número retrocedeu, chegando a quarenta e duas páginas. Porém, esse é um índice
válido para a cidade como um todo e deve ser visto com reservas quando pensamos nas
diferentes partes que compunham o todo, principalmente para os novos bairros em
formação.
ATIVIDADES TOTAL
ALIMENTAÇÃO, ALOJAMENTOS E LAZER 17
COMÉRCIO EM GERAL 5
CONSTRUÇÃO CIVIL 5
OFICINAS E MANUFATURAS 4
SERVIÇOS PESSOAIS 1
TRANSPORTE 1
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 1
ARTES E OFÍCIOS -
COM. APAR. ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIP. DOMÉSTICOS E PROFISSIONAIS -
EDUCAÇÃO -
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO -
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS -
SAÚDE -
AGENTES COMERCIAIS -
TOTAL 34

Tabela 17 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1909. Fonte: Acervo Digital FBN.

De qualquer modo, nesse ano, a “área nobre” do Bexiga registrou um total de 34


anúncios, onde o setor de alimentação concentrou 17 casos de estabelecimentos
comerciais, entre açougues e armazéns de gêneros alimentícios. Na sequência, os dados
mais significativos apontam para: cinco comércios de ferragens, fazendas e armarinhos;
cinco atividades vinculadas à construção civil (oficinas de carpintaria e marcenaria,
estucadores, serralherias e também por um engenheiro); e quatro pequenas manufaturas
(três caixoteiros e um fabricante de sabão).
Cabe ressaltar o papel exercido pela construção civil num momento em que o
bairro e a cidade se expandiam. Os serviços oferecidos por esses profissionais no ano de
1909, quase todos eles localizados na Av. Brigadeiro Luís Antônio, certamente
contribuíram para a edificação da cidade. Ali residia o engenheiro Augusto Fried92,
morador do n. 245 daquela avenida (quase em frente à rua Treze de Maio), bem como
outros profissionais vinculados às atividades braçais (o estucador J. Pelicioti, o serralheiro
Diogo Brussetti e os carpinteiros e marceneiros João Capoano e Antônio Parente).
Nesse momento, a Av. Brigadeiro Luís Antônio, com 22 negócios, já concentrava a
maioria dos anunciantes. As ruas Santo Amaro e Asdrúbal do Nascimento apresentavam
quatro atividades cada uma. A presença de algum tipo de atividade nas demais vias ainda
era muito insignificante.
Na Série Alvarás e Licenças localizei quatro requerimentos, entre 1909 e 1911, que
envolviam negócios na região da Brigadeiro Luís Antônio. Em 1910, José Curia
encaminhou um pedido de renovação de licença para a quitanda da rua Santo Amaro n.29,
do que se deduz que o estabelecimento já funcionava há pelo menos um ano.
SEGMENTOS ATIVIDADES PRODUTIVAS (1909-1911) N. TOTAL
CIA. EQUESTRE 1
ALIMENTAÇÃO E LAZER 2
QUITANDA 1
SAPATARIA 1
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS 2
OFICINA DE COSTURA E CHAPÉUS 1
TOTAL 4

Tabela 18 – Segmentos identificados na Série Alvará e Licença (1909-1911). Fonte: AHSP.

Em 1911, Alberto de Andrade solicitou licença para a “apresentação de


espetáculos no ‘rink’”, de sua Companhia Equestre, localizada na Av. Brigadeiro Luís
Antônio n.69. No mesmo ano e na mesma avenida, encontrei dois pedidos de licença para
instalação de letreiros, um para a “Sapataria Modelo (onde) executam-se trabalhos sob
medida e com perfeição”, de Januário Infanti (n.28), e outro para a “Casa Landucci.
Officina de Costuras e Chapeos” de A.B. Landucci (n.39). Posteriormente, tentei localizar

92
Conforme a Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais, Fried na verdade era arquiteto e foi sócio do
também arquiteto, Carlos Ekman, na firma Fried & Ekman. Entre os projetos desenvolvidos por Augusto
Fried, estão a Residência de Adam Von Bülow (1895), na Avenida Paulista e o prédio do colégio alemão
Porto Seguro (1910), atual Caetano de Campos, em frente à Praça Roosevelt. Disponível em:
http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_IC/Enc_Artistas/. Consulta em: 02/10/2013.
esses negócios nos almanaques referentes aos anos em questão, mas não tive sucesso.
Porém, descobri que alguns deles publicaram anúncios em anos posteriores. Em 1913,
A.B. Landucci continuava com o negócio, só que agora comercializando somente chapéus
“para senhoras e crianças” e havia mudado de endereço, transferindo sua loja para a rua
Asdrúbal do Nascimento n.70; em 1913 Jannuario Infanti anunciou os serviços de
sapateiro no n.30B da Av. Brigadeiro Luís Antônio, bem ao lado do antigo endereço.
Essas novas informações chamam a atenção para alguns aspectos que merecem
uma investigação mais acurada. Em primeiro lugar, o descompasso entre os anúncios
publicados e os requerimentos visando a obtenção ou renovação de licença para o exercício
do negócio. Logicamente o alvará podia existir sem que houvesse o anúncio
correspondente, mas não o contrário – todo negociante deveria, pelo menos teoriamente,
constar nos registros da administração municipal, o que nem sempre ocorria. Essa é uma
questão que diz respeito aos limites da ação normatizadora do poder público, e, de certa
maneira, remete ao que disse acima acerca da eventual (ou nem tanto) falta de controle
sobre todas as atividades comerciais ou de serviços existentes na cidade.

 1914
Em 1914, o comércio e os serviços de alimentação, construção civil, saúde e
vestuário mantêm a liderança das atividades produtivas exercidas na área “mais nobre” do
Bexiga. O setor alimentação contou com 45 anunciantes – 41,66% do total de 108
atividades. Mais da metade desses casos distribuía-se indistintamente por toda a extensão
da Av. Brigadeiro Luís Antônio, entre o Largo do Riachuelo e a rua Santo Amaro: 13
armazéns de secos e molhados, quatro açougues, três padarias, um botequim, um
comércio de salame e mortadela, um comércio de café torrado e moído e uma confeitaria.
ATIVIDADES TOTAL
ALIMENTAÇÃO, ALOJAMENTOS E LAZER 45
CONSTRUÇÃO CIVIL 16
SAÚDE 10
SERVIÇOS PESSOAIS 10
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 9
COMÉRCIO EM GERAL 7
OFICINAS E MANUFATURAS 5
ARTES E OFÍCIOS 2
TRANSPORTE 2
COM. APAR. ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIP. DOMÉSTICOS E PROFISSIONAIS 1
EDUCAÇÃO 1
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 1
AGENTES COMERCIAIS 1
TOTAL 110

Tabela 191 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1914. Fonte: Acervo Digital FBN.

Contudo, é necessário observar que vários desses negócios, embora fossem


anunciados separadamente, funcionavam no mesmo endereço e pertenciam ao mesmo
proprietário. É o caso, por exemplo, de Savério Guzzi, estabelecido no n.133 da Brigadeiro
Luís Antônio, que comercializava além dos tradicionais secos e molhados, café
torrado/moído e os embutidos salame/mortadela. É claro que essa foi a maneira que Guzzi
julgou ideal para divulgar o seu comércio. Ele poderia simplesmente anunciar seu
comércio na categoria secos e molhados, mas preferiu destacar-se dos demais armazéns
investindo na possibilidade de atrair clientes de gostos mais especializados e, por que não
dizer, mais refinados, bem de acordo com a modernidade da metrópole em transformação.
Processo semelhante ocorreu com Benedito Dias Oliveira, que anunciou o seu
armazém de secos e molhados e seus serviços de comissário de café e outros, igualmente
na Av. Brigadeiro Luís Antônio, n.244. Também J. Silva anunciou confeitaria e padaria
no n.43 e ainda Luiz d’Angelo que anunciou no mesmo endereço padaria, secos e
molhados, comércio de ferragens e quinquilharias incluindo ali também serviços de
empreiteiro.

Figura 24 – Projeto arquitetônico de casa com


armazém no alinhamento, na esquina da Av. Brigadeiro
Luís Antônio, com a rua Pedroso, apresentado pelo
comissário de café Benedicto Dias de Oliveira, em
31/06/1911. Na planta SARA Brasil (Anexo 3.3), é
possível visualizar a sua casa de secos e molhados
divulgada no Almanaque Laemmert de 1914. Fonte:
Obras Particulares, OP/1911/000.665 (AHSP).

Embora a concentração de atividades vinculadas à alimentação na Av. Brigadeiro


Luís Antônio possa parecer excessiva, temos que lembrar que esta era uma via bastante
longa, e sua área de influência estendia-se, aproximadamente, até a Av. Paulista. O que
causa mais estranheza é a presença de cinco armazéns de secos e molhados muito
próximos uns dos outros, por exemplo na rua Asdrúbal do Nascimento, somente no trecho
entre a rua do Riachuelo e a Brigadeiro Luís Antônio. A rua Santo Amaro, por sua vez,
concentrava seis negócios, desde secos e molhados a açougues, e sua extensão era três
vezes maior do que aquela da Asdrúbal do Nascimento.
Na construção civil o destaque também ficou para a Av. Brigadeiro Luís Antônio,
que concentrou nove estabelecimentos de algum modo vinculados ao segmento: comércio
de madeiras, gesso, ladrilhos e mosaicos, e materiais de construção em geral; fabricação
de ladrilhos; escultores, vidraceiros e empreiteiros. Como no caso do setor de alimentos,
encontramos na mesma casa a conjugação de prestação de serviços e comércio, como
acontecia no estabelecimento de Ulysses Pellicciotti, no n.50 daquela avenida. A rua
Asdrúbal do Nascimento, igualmente, agrupou um número razoável de atividades
relacionadas à construção civil: uma carpintaria, uma marcenaria e um pintor e
decorador. As demais atividades distribuíram-se pelas ruas Francisca Miquelina, Jaceguai
e Santo Amaro.
Os serviços de saúde totalizaram 10 anúncios na “área nobre” do Bexiga e foram
outro segmento representativo: três farmácias na Av. Brigadeiro Luís Antônio; dois
dentistas (um na mesma avenida e outro na rua Genebra) e cinco médicos (quatro na
Brigadeiro e um na rua Santo Amaro). No caso desses profissionais liberais, é possível que
alguns endereços apontados pelo Almanaque Laemmert se referissem a residência dos
mesmos. Durante todo o período investigado, eventualmente, encontrei anúncios de
médicos e dentistas com seus respectivos endereços, tanto o da residência como o do
consultório, este último geralmente localizado nas imediações ou no próprio Triângulo
central. Mas essa era uma exceção e não a regra, o que demonstra que o importante era a
divulgação do nome do profissional e que, em geral, os daquela área talvez tivessem
posses mais modestas e inserção menor na cidade como um todo.
Localizei um anúncio publicado no jornal O Estado de São Paulo, datado de 04 de
janeiro de 1914, no qual um certo Dr. Herisson (que também consta no Almanaque daquele
ano) anunciava-se como “único medico francez clinicando em S. Paulo” e especialista em
cirurgia e partos. De acordo com o jornal, o médico possuía consultório na rua Quintino
Bocaiúva e morava na Av. Brigadeiro Luís Antônio n.181.

Figura 25 – O Estado de São Paulo, 04/01/1914.

Entre os nove anúncios de artigos de vestuário e acessórios, novamente


encontramos a Av. Brigadeiro Luís Antônio agrupando o maior número de casos (seis):
uma fábrica e comércio de chapéus para senhoras e crianças, uma loja de coletes para
senhoras e uma loja de roupas brancas no trecho inicial da via, entre as ruas dos Riachuelo
e Maria Paula; e uma loja de calçados e uma alfaiataria entre as ruas Conselheiro
Ramalho e Maria José. No mais, os negócios envolvendo oficinas ou o comércio
restringiram-se às ruas Asdrúbal do Nascimento (uma fábrica de calçados), Francisca
Miquelina (uma loja de roupas brancas) e Maria Paula (uma oficina de costura).

Figura 26 – Fábrica de chapéus de Manoel Artacho,


localizada na Av. Brigadeiro Luís Antônio n. 10. Data:
1912. Fonte: Blog Quando a cidade era mais gentil.
Disponível em: https://quandoacidade.wordpress.
com/category/arquitetos/. Consulta em: 14/10/2014.

Além da continuidade dos segmentos econômicos presentes desde o início da


ocupação das ruas abertas pela Baronesa de Limeira, em 1914 vemos a introdução de
novas atividades que podem dizer algo sobre a mudança nos hábitos da população
paulistana, assim como sobre uma certa ‘especialização’ profissional.
Em primeiro lugar, temos o setor de artes gráficas, onde se destaca a tipografia de
Corradini & Cia. no n.55 da Av. Brigadeiro Luís Antônio. Em seguida, as manufaturas
que reuniram profissionais dedicados ao trabalho com metal, quase todos localizados na
Av. Brigadeiro Luís Antônio. Ali encontramos, no número 44 (quase na esquina com a rua
Maria Paula), dois anúncios da firma de Raphael Lucibello & Irmão que prestavam
serviços de gravadores e cunhagem de medalhas. Em frente à rua Rui Barbosa, no n.227,
havia o funileiro Paschoal Antonucci. O outro funileiro, A. Oliveira da Rocha, possuía
oficina no n. 5A da rua Asdrúbal do Nascimento, muito perto do centro. Rocha foi um dos
tantos que diversificou suas atividades, anunciando também um comércio de aparelhos de
eletricidade no mesmo endereço da oficina supracitada, negócio até então inusitado na
área. O anúncio não discrimina o tipo de aparelho elétrico comercializado, mas naquele
momento o comércio de produtos mais especializados, e geralmente importados (provável
caso dos ‘aparelhos elétricos’), concentrava-se no Triângulo (no centro da cidade) e,
sobretudo nas ruas São Bento e Boa Vista. Marisa Midori Deacto (2002, p.191), ao chamar
nossa atenção para o comércio de vestuário e acessórios, nos remete às inúmeras
ocorrências de comércios e serviços típicos do centro, mas também identificados na região
do Bexiga. De acordo com a autora, ao se levar em consideração somente as “casas de
luxo” dedicadas àquele tipo de comércio, deixa-se de contabilizar “os estabelecimentos
que ficaram à margem do Triângulo. Pois o comércio popular ficou nas ruas limítrofes do
antigo núcleo ” (grifo nosso). No caso do comércio de fazendas no atacado e varejo, a
autora cita sua localização em ruas como a Florêncio de Abreu e 25 de Março, assim como
no bairro do Brás, que contava com “seu próprio centro comercial”. Suponho que um
processo semelhante tenha ocorrido naquela área do Bexiga, onde a posição privilegiada de
suas vias – tão perto do centro e ao mesmo tempo próximas do bairro da Liberdade, da Av.
Paulista e do próprio bairro do Bexiga que se tornava cada vez mais populoso – favorecia a
instalação de negócios diferenciados.
PROPRIETÁRIOS ENDEREÇO TIPO
ELPÍDIO FERRERO RUA ABOLIÇÃO, 35 A ALUGUEL
DANIEL DHILOMNE LARGO TREZE DE MAIO, 1 PARTICULAR
THEODORO DE CARVALHO RUA TREZE DE MAIO, 321 PARTICULAR
ELPÍDIO DE PAIVA AZEVEDO RUA CONSELHEIRO RAMALHO, 7 PARTICULAR
CELSO DE MORAES SALLES RUA TREZE DE MAIO, 323 PARTICULAR
DOMENICO FERRARO RUA SANTO AMARO, S/N. ALUGUEL
BELARMINO BARBOSA RUA MAJOR DIOGO, 6 PARTICULAR
LUIZ MARTELLA RUA MAJOR DIOGO, 41 ALUGUEL
SERAFINO TAVERNA RUA CONSELHEIRO RAMALHO, 255 ALUGUEL
RAPHAEL PIPPA RUA SÃO DOMINGOS, 77 ALUGUEL
JOÃO MONTEIRO RUA TREZE DE MAIO, 296 ALUGUEL
AMADEU ANNASSELMI RUA CONSELHEIRO RAMALHO, 208 ALUGUEL
MONSENHOR CAMILLO PASSALACQUA RUA CONSELHEIRO RAMALHO, 86 ALUGUEL
FRANCISCO SCARDAPAME RUA MAJOR DIOGO, 196 ALUGUEL
BENTO R. VIANNA RUA MAJOR DIOGO, 26 ALUGUEL
TIBURTINO AUGUSTO MONDIN RUA CONSELHEIRO RAMALHO, 81 ALUGUEL
MARIANO P. ARAUJO CARVALHO RUA CONSELHEIRO RAMALHO, 81 PARTICULAR

Tabela 20 – Relação dos proprietários de automóveis no bairro do Bexiga, em 1914. 93

O setor de transporte embora apresente poucos casos é revelador da introdução de


novos hábitos entre os moradores do bairro e adjacências. No n.47 da Av. Brigadeiro Luís
Antônio estava instalada uma garagem da Cia. Taxi Bloc. Na Série Alvara e Licença,
localizei uma “solicitação de certidão” contendo a relação dos “particulares” proprietários
de automóveis na cidade de São Paulo, justamente no ano de 1914. Através desse
documento fica-se sabendo que só no bairro do Bexiga havia 17 pessoas que possuíam
automóveis, sendo 11 deles veículos de aluguel ou de ‘praça’. De acordo com Ricardo

93
De acordo com o documento, trata-se de uma “Solicitação (de) certidão com relação dos nomes e
residências de todos os particulares possuidores de automóveis, assim como as garagens existentes nesta
capital”. Grupo Seção de Polícia e Higiene, Série Alvará e Licença. Solicitação de licença para veículos e
cartas de motoristas. Cx.1300. AHSP.
Mendes (2007), em 1906 foi aprovada a lei orçamentária n.956, indicando “a adoção do
novo veículo, como carro de aluguel”. Essas informações só vêm confirmar que o anúncio
da Cia. Taxi Bloc sugeria a crescente utilização do automóvel (particular ou de aluguel)
pelos paulistanos, moradores do bairro ou não.
Se esse anúncio prenuncia uma mudança nos hábitos, o segundo anúncio vinculado
ao transporte demonstra que o automóvel convivia com antigos meios de transporte, tais
como carroças e carruagens. Esse foi o caso da oficina de carroças de Carmine Gallo,
instalada na Av. Brigadeiro Luís Antônio n.93. Embora se tratasse de uma oficina para
conserto de veículos utilizados no transporte de carga, esta é uma boa indicação da
coexistência no cenário urbano de diferentes meios de transporte, inclusive de veículos
ainda movidos à tração animal. Gallo continuaria com o negócio (agora em sociedade com
o filho) até 1926, quando consta no Almanaque como fabricante e oficina de carruagens e
frete de carroças. No ano seguinte, ele aparentemente mudou de ramo, pois o negócio em
seu nome e no mesmo endereço, passou a constar como sendo uma carpintaria. Entretanto,
em 1931 ainda encontramos uma oficina de carroças na rua São Domingos n.47, de
propriedade de Diogo Antônio Mastroroco, cuja família estava no ramo de fabricação e
conserto de carroças e carruagens desde 1924. Nos anos 1960, nos bairros mais distantes
da região central da cidade ainda era possível cruzar com esse tipo de veículo...
Em 1914 encontrei, pela primeira vez, referências ao segmento da educação.
Tratava-se de um professor de línguas, H. Clarkson Lloyd, que anunciava seus serviços na
Av. Brigadeiro Luís Antônio n.12. Entretanto, a presença desse professor foi um caso
isolado e demoraram alguns anos para que ocorressem outras iniciativas nesse sentido.
Em relação aos agentes comerciais, já no ano de 1913, em três ocasiões, localizei
pessoas envolvidas na representação comercial de diferentes produtos, fosse por conta
própria ou com sistema de comissão, todos eles instalados na área de influência da Av.
Brigadeiro Luís Antônio. No n.37 da própria avenida, Leonel de Souza anunciava o serviço
de comissões, consignações e conta própria e importação e exportação, e Benedito Dias
de Oliveira, estabelecido com negócio de secos e molhados no n. 244, também operava
como comissário de café e outros generos. Já a firma Vianna, Milazzo & Cia. trabalhava
com importação e exportação e seu estabelecimento localizava-se na rua Genebra n.2. Um
ano depois, somente Benedito Dias de Oliveira continuava com seu negócio no mesmo
local.
 1915
Convém reiterar que a publicação dos almanaques era feita no início de cada ano, o
que explica o número relativamente alto de anúncios em 1914 quando teve início a I
Guerra Mundial (28 de julho de 1914). Como era de se prever, o Almanaque Laemmert de
1915, publicado seis meses após o início do conflito, demonstrou uma redução drástica no
número de anúncios (29), sendo que a diferença em relação ao ano anterior, apenas para a
região de influência da Av. Brigadeiro Luís Antônio, chegou a aproximadamente 74%.
Entretanto, a primeira leitura dos almanaques publicados nos anos posteriores a
1915, antes ainda do final do conflito (entre 1916 e 1918), indicava o retorno de pelo
menos parte dos empreendedores identificados anteriormente, sugerindo que se tratava de
uma crise sem maiores consequências. Assim, tendo em vista a necessidade de uma
avaliação mais consistente, realizamos um levantamento contendo a totalidade dos
negociantes presentes nas ruas daquela área do bairro, entre os anos de 1914 e 1917, tendo
o cuidado de discriminar os que não alcançaram o pós-guerra daqueles que mantiveram
seus negócios. O resultado foi surpreendente: entre os 111 casos de profissionais que
anunciaram seus serviços nesse período, apenas 34 (30,63%) conseguiram manter seu
negócio aberto, conforme pode ser visto na tabela abaixo.
NEGÓCIOS NEGÓCIOS QUE NÃO NEGÓCIOS QUE
LOGRADOURO PRESENTES ENTRE ALCANÇARAM O PÓS- PERMANECERAM NO PÓS-
1914 E 1916 GUERRA GUERRA
AGUIAR DE BARROS 5 3 2
ASDRÚBAL DO NASCIMENTO 10 8 2
BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 58 33 25
FRANCISCA MIQUELINA 9 8 1
GENEBRA 6 5 1
JACEGUAI 6 6 -
MARIA PAULA 3 3 -
SANTO AMARO 14 11 3
TOTAL 111 77 (69,37 %) 34 (30,63 %)

Tabela 21 – Porcentagem dos negócios que permaneceram na “área nobre” do Bexiga, entre 1914 e 1918. Fonte:
Almanaque Laemmert, 1914 a 1917. Acervo Digital FBN.

Porém, acredito que essa permanência não tenha sido fácil. Dentre aqueles que
permaneceram, localizei oito negociantes que mudaram de endereço, quase todos para
outras ruas do bairro. O relevante dessa informação é que cinco deles se situavam na Av.
Brigadeiro Luís Antônio, uma via que como estamos observando se destacava pela posição
privilegiada de conexão entre o centro e a Av. Paulista, o que sem sombra de dúvidas deve
ter determinado a alta dos aluguéis, inviabilizando assim a continuidade do negócio. Dessa
maneira, buscar outras ruas para alocar o negócio com custos mais baixos foi uma
alternativa plausível. Coincidentemente ou não, essas mudanças ocorreram justamente
entre os anos de 1915 e 1917, no auge da crise econômica gerada pelo conflito mundial.
Desse ponto de vista, a busca de outras informações que fornecessem um panorama mais
preciso da realidade vivida pelos anunciantes do Almanaque Laemmert durante aqueles
anos difíceis, é oportuna. Assim, antes de analisar a atuação de cada segmento produtivo
no ano de 1915, realizei um breve histórico do caminho percorrido por nossos atores.
ATIVIDADE ENDEREÇO ANO
AÇOUGUES ASDRÚBAL NASCIMENTO 63 1909
AÇOUGUES ASDRUBAL DO NASCIMENTO 75 1915
AÇOUGUES ASDRUBAL DO NASCIMENTO 75 1916
AÇOUGUES MAJOR DIOGO 71 1909
GÊNEROS ALIMENTÍCIOS MAJOR DIOGO 43 1910
AÇOUGUES MAJOR DIOGO 43 1913
AÇOUGUE MAJOR DIOGO 43 1914
SECOS E MOLHADOS MAJOR DIOGO 43 1913
SECOS E MOLHADOS MAJOR DIOGO 43 1914
SECOS E MOLHADOS BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 29 1913
AÇOUGUE BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 29 1914
AÇOUGUES BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 29 1913
SECOS E MOLHADOS BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 29 1914
SECOS E MOLHADOS MAJOR DIOGO 49 1917
SECOS E MOLHADOS MAJOR DIOGO 49 1918
FERRAGENS E QUINQUILHARIAS MAJOR DIOGO 49 1921
SECOS E MOLHADOS MAJOR DIOGO 49 1921
FERRAGENS E QUINQUILHARIAS MAJOR DIOGO 49 1922/23
SECOS E MOLHADOS MAJOR DIOGO 49 1922/23

Tabela 22 – Presença de José Tosto nas ruas do Bexiga, entre 1909 e 1923. Fonte: Acervo Digital FBN.

Um caso bem interessante é o de José Tosto, que desde 1909 explorava o ramo de
alimentação. Naquele ano, ele abriu dois açougues, um na rua Asdrúbal do Nascimento,
onde permaneceu até 1916, e outro na rua Major Diogo; em 1910, ele acrescentou ao
açougue da Major Diogo um comércio de secos e molhados. As coisas pareciam estar
dando certo para Tosto e, em 1913, talvez contando que valeria a pena arriscar em um
endereço mais privilegiado (e certamente mais caro), ele abriu outra casa na Av.
Brigadeiro Luís Antônio, onde continuou a explorar o comércio de carnes e secos e
molhados. Ocorre que, em 1917, o encontramos com apenas um estabelecimento, aquele
da rua Major Diogo n.49 (antigo 43), ocasião em que diversificou seu comércio entre
secos e molhados, ferragens e quinquilharias. Ali ele ficou até 1923.
Figura 27 – Projeto arquitetônico para ampliação do
armazém de José Tosto, na rua Major Diogo, 49. Fonte:
Obras Particulares, 24/11/1913. OP/1913/Cx.M1,
AHSP.

No intervalo entre 1915 e 1917, exatamente o período em que a crise econômica


teve seu pior momento, Tosto abriu mão dos negócios da rua Asdrúbal do Nascimento e da
Av. Brigadeiro Luís Antônio, preferindo concentrar seu capital e seu trabalho num único
endereço, na rua Major Diogo, onde o imóvel era de sua propriedade. Como se pode
verificar no projeto arquitetônico encaminhado à Prefeitura para aprovação de reforma, em
1913, ele ampliaria o espaço do negócio, introduzindo mais uma porta, além do corredor
lateral que dava acesso à residência94.
Os outros quatro casos de negociantes que se mudaram da Brigadeiro Luís Antônio
para outras ruas são José Fiasco, Luís d’Angelo, Angelo Guacelli e Salvador Osso &
Irmão.
José Fiasco possuía sapataria no n.180 daquela avenida, pelo menos nos anos de
1913 e 1914. Já entre 1917 e 1923, mudou o negócio de calçados para a rua Major Diogo
n.204. Curiosamente, localizei uma solicitação junto à Diretoria de Obras da Prefeitura,
pedindo autorização para a construção de “um barracão para depósito de materiais, nos
fundos do terreno” localizado no n. 200 daquela rua. Os endereços são muito próximos, o
que leva a pensar na possibilidade de se tratar de imóveis de sua propriedade. Mas isso já é
especulação...
O Almanaque Laemmert dá contas do botequim de Angelo Guacelli no n.32A da
Av. Brigadeiro Luís Antônio nos anos 1913 e 1914. Depois disso ele simplesmente
desapareceu das páginas do almanaque para retornar, em 1931, na rua Santo Antônio,

94
É importante destacar que durante a consulta aos documentos da Série Obras Particulares, em nenhum
momento o encontramos em algum outro local que não a rua Major Diogo.
agora com uma leiteria. Muito tempo havia se passado, sendo impossível tecer qualquer
comentário sobre o negócio ou o próprio negociante.
Luís d’Angelo foi um negociante que testou diversas possibilidades de
empreendimentos no decorrer de sua vida. Entre 1911 e 1916, quando seu endereço
comercial ainda era na Av. Brigadeiro Luís Antônio, nas proximidades da rua Major
Diogo, além do armazém de secos e molhados, padaria, ferragens e quinquilharias e
louças, porcelanas e cristais, ele também se apresentava como empreiteiro de obras.
Contudo, embora tenha estado naquela avenida até 1916, em 1913 ele apresentou
solicitação para a construção de um sobrado na esquina das ruas Francisca Miquelina n.88
e Santo Amaro n.115, exatamente o endereço dos anúncios de 1917. Talvez a intenção de
d’Angelo fosse mesmo construir um prédio para o exercício de seu negócio, iniciativa que,
por ocasião da I Guerra, mostrou-se bastante oportuna. Embora tenha abandonado um
endereço supostamente mais “elegante”, o novo ponto parece ser tão bom quanto o
anterior, já que estava localizado entre a própria Brigadeiro Luís Antônio e a rua Santo
Amaro, próximo de outras vias do bairro.

Figura 28 – Projeto para construção de sobrado com armazém no térreo, para Luiz d’Angelo, esquina das ruas Francisca
Miquelina, 88 e Santo Amaro, 115. Fonte: Obras Particulares, 08/11/1913. OP/1913/004.543, AHSP.

Encontramos na Série Obras Particulares, no ano de 1919, uma solicitação de


licença em nome de Savério Osso, para a “substituição de duas portas em janelas”, no
imóvel localizado no n.198 (antigo 166) da Av. Brigadeiro Luís Antônio95. O solicitante
alega que “há cerca de oito anos, por conveniência de seus negócios”, as antigas janelas
haviam sido substituídas por portas. Agora, se ele desejava o retorno das janelas é porque

95
Pedido de licença para substituição de duas portas por janelas. Interessante saber que Savério Osso
esclarece que “há cerca de oito anos, por conveniência de seus negócios”, as antigas janelas do prédio foram
substituídas por portas, numa clara demonstração da instalação de um negócio no local. Obras Particulares,
12/06/1919. DOC.5 – CX.B7.
não havia mais necessidade de portas abertas para a rua. O negócio em questão, de acordo
com o Almanaque Laemmert, pertencia a Salvador Osso & Irmão. Ora, o n.166 a que
Savério se referia é exatamente aquele onde funcionava a casa de calçados dos irmãos
Osso. O documento não esclarece se Savério era proprietário do imóvel, mas o fato é que
entre 1915 e 1916 os negociantes não constam nas páginas do almanaque, só retornando
em 1917, agora na rua Conselheiro Ramalho n.278, onde ficaram até 1918. Em 1921 eles
voltaram a mudar, desta vez para o n.241 da mesma rua.
Dos quatro casos restantes de negociantes que mudaram de endereço, dois se
referem a pessoas que continuaram na Av. Brigadeiro Luís Antônio, porém em outro
endereço: o barbeiro Carmine Grecco e o médico Pedro Dias da Silva.
Figura 29 – De acordo com o anúncio em O Estado de
São Paulo, de 04/01/1914, naquela data o endereço
residencial do médico, ainda era no n.179. Em 1917,
ele se mudaria para a casa ao lado, no n.177 da Av.
Brigadeiro Luís Antônio.

O terceiro caso foi o da firma Celeste Pintucci & Cia., proprietária da carpintaria e
marcenaria localizada na rua Asdrúbal do Nascimento n.3, onde permaneceu até 1914. Em
1917 a carpintaria voltou a constar no Almanaque, agora na rua Francisca Miquelina n.18.
Por fim, a Tinturaria Paulistana, de Antônio Solimone que entre 1913 e 1914 estava
instalada na rua Francisca Miquelina n.15, passou a funcionar no n.31 da Av. Brigadeiro
Luís Antônio.
De tudo que foi dito percebe-se que uma pequena parcela dos comerciantes que
mudaram de endereço saiu da área de influência da Av. Brigadeiro Luís Antônio,
deslocando-se para ruas do loteamento original do bairro do Bexiga onde as atividades
produtivas em geral eram marcadas por um caráter mais popular. Isso demonstra que, para
esses empreendedores, o mais importante era a sobrevivência de seu negócio. Hoje, não há
como ter certeza absoluta das opções e dos caminhos percorridos por essas pessoas, mas
tudo indica que não devem diferir muito do panorama traçado. Independentemente de onde
estivessem, o fato é que conseguiram atravessar os anos de crise. De outro lado, através
desses casos, percebe-se que para a movimentação de comerciantes entre o que denomino
de “área nobre” para o loteamento original de “caráter mais popular” parecia não haver
limites precisos. É possível que se estabelecer na “área nobre” fosse o objetivo de certos
tipos de negócios e negociantes do Bexiga, o que não significa que em momentos de
dificuldades financeiras não se optasse pelo espaço possível.
Sempre é bom lembrar que a redução de anúncios no ano de 1915 não significa,
necessariamente, que os negócios tivessem sido fechados. Prova disso é o retorno de
antigos anunciantes às páginas dos almanaques nos anos seguintes. Pela primeira vez o
segmento da alimentação cede lugar a outro setor, a saúde. Isso talvez não seja muito
significativo, já que dos nove anúncios listados no Almanaque Laemmert, dois se
relacionam a farmácias localizadas na Av. Brigadeiro Luís Antônio, e os demais ao
exercício da medicina: cinco médicos naquela avenida e dois na rua Santo Amaro. Com
exceção das farmácias, os outros anunciantes eram profissionais liberais, geralmente
pertencentes às camadas médias e altas da população, provavelmente menos atingidos pela
crise. É importante lembrar que naquele momento, no quesito saúde, o destino das pessoas
mais pobres que necessitassem de serviços médicos era a Santa Casa de Misericórdia e não
o médico de família. Portanto, a clientela desses profissionais estaria supostamente
garantida pelos moradores da Av. Paulista, do Morro dos Ingleses ou até de bairros mais
distantes, embora os vínculos com as comunidades de imigrantes implicassem que o filho
formado médico cuidasse dos parentes e demais pessoas de seu círculo social.
ATIVIDADES TOTAL
SAÚDE 9
ALIMENTAÇÃO, ALOJAMENTOS E LAZER 5
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 4
AGENTES COMERCIAIS 3
OFICINAS E MANUFATURAS 2
ARTES E OFÍCIOS 1
SERVIÇOS PESSOAIS 1
TRANSPORTE 1
COMÉRCIO EM GERAL 1
CONSTRUÇÃO CIVIL 1
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO 1
EDUCAÇÃO -
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS -
COM. APAR. ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIP. DOMÉSTICOS E PROFISSIONAIS -
TOTAL 29

Tabela 23 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1915. Fonte: Acervo Digital FBN.

Aliás, no sentido dos serviços menos essenciais para a população, naquele ano, a
Av. Brigadeiro Luis Antônio foi praticamente a única a abrigar um número razoável de
atividades: o comércio conjugado de instrumentos cirúrgicos e engenharia e joalherias,
ourivesarias e relojoarias de José Ferreira Martins; a Garage Andrade e agência teatral de
H. Barbosa & Cia; a Casa Editora Musical Brasileira; e o engenheiro J. Charvolin.
Na rua Francisca Miquelina encontramos o comissário de café, Angelo Soares,
também envolvido com importação e exportação, e Antônio Araujo Franqueira,
igualmente comissário de café. Por fim, a oficina de encadernações de S. Bigi & Cia., na
rua Santo Amaro.
No caso dos setores essenciais, as atividades ligadas à alimentação e ao vestuário
são as que concentram o maior número de registros. Embora a Brigadeiro Luís Antônio
continuasse a concentrar a maioria das atividades na categoria alimentação, ali constava
apenas a presença de três padarias, um açougue e o único comércio de secos e molhados
que ficava na rua Santo Amaro. Fenômeno semelhante envolvia também a categoria
vestuário e acessórios, com um comércio de calçados, uma fábrica de chapéus e uma
alfaiataria instalados na avenida, e uma casa de modas e confecções na rua Francisca
Miquelina.

 1918
Neste ano, dos 72 anúncios identificados na “área nobre” do bairro, observa-se um
aumento de 148,27% em relação ao total dos 29 anúncios publicados em 1915. Porém, se
compararmos esse número com o crescimento verificado no bairro como um todo (com
134 anúncios), percebemos que esse aumento beneficiou principalmente os negociantes
estabelecidos na Av. Brigadeiro Luís Antônio. Ali, os 72 anúncios corresponderam a um
acréscimo de 53,71% em relação ao total de anúncios no bairro. Ou seja, embora essa área
fosse proporcionalmente menor, concentrou a maioria dos anúncios publicados no
Almanaque. É muito possível que a presença de mais atividades na “área nobre” do bairro
se justifique pelo “poder de fogo” dos negociantes ali instalados que supostamente teriam
condições financeiras mais favoráveis para arcar com os valores mais altos dos aluguéis, as
taxas devidas ao município para obtenção dos “alvarás e licenças” para exercício do seu
negócio e a aquisição de mercadorias e instrumentos de trabalho, despesas essas que talvez
fossem mais onerosas para os negociantes mais modestos do Saracura e mesmo do antigo
loteamento do Bexiga.
ATIVIDADES TOTAL
ALIMENTAÇÃO, ALOJAMENTOS E LAZER 22
SAÚDE 19
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 7
ARTES E OFÍCIOS 5
CONSTRUÇÃO CIVIL 5
SERVIÇOS PESSOAIS 4
COMÉRCIO EM GERAL 3
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO 2
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 2
OFICINAS E MANUFATURAS 2
TRANSPORTE 1
EDUCAÇÃO -
AGENTES COMERCIAIS -
COM. APAR. ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIP. DOMÉSTICOS E PROFISSIONAIS -
TOTAL 72

Tabela 24 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1918. Fonte: Acervo Digital FBN.
Por outro lado, ainda que a situação econômica apresentasse uma certa melhora,
possivelmente muitos negociantes ainda se sentissem inseguros, até porque a sombra dos
tempos difíceis ainda estava muito presente. Tanto era assim, que mesmo nas ruas
adjacentes à Brigadeiro Luís Antônio a ocorrência de anúncios ainda se mostrava rarefeita
no ano de 1918, tendo aquela avenida se mantido à frente das demais vias com 50
anunciantes.
Na avenida, entre os 16 serviços voltados à saúde, 13 se relacionavam aos médicos
que ali moravam e/ou clinicavam – justamente os profissionais que, pelo menos em teoria,
teriam sido menos prejudicados pela crise. Coincidentemente, esse foi o ano em que
encontramos o maior número de médicos na área nobre do bairro, jamais superado depois.
Ainda na Brigadeiro Luís Antônio, temos o dentista Antônio Dias de Arruda, no n.270; as
Pharmácias Vita, de Nicolau A.T. Vita no n.31, e Humanitária de Daunt& Carvalho no
n.209.

ENDEREÇOS RESIDENCIAIS
N. MÉDICOS ENDEREÇOS PROFISSIONAIS
E/OU PROFISSIONAIS
AV. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 42 GABRIEL RAJA -
AV. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 48 GINO GELLI RUA JOSÉ BONIFÁCIO, 10
AV. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 56 ANGELO VESPOLI -
AV. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 77 RICCIOTI ALLEGRETTI RUA JOSÉ BONIFÁCIO, 16
AV. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 81 SALLES JÚNIOR -
AV. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 87 PAULO DE SOUZA QUEIROZ -
AV. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 119 ALBERTO SEABRA RUA SÃO BENTO, 45
AV. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 177 PEDRO DIAS DA SILVA RUA SÃO BENTO, 45
AV. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 181 GABRIEL HERRISON -
AV. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 198 CARLOS DE CAMPOS -
AV. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 206 JAMBEIRO COSTA RUA LÍBERO BADARÓ, 67, 2º. AND.
AV. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 253 (PEDRO) MARQUES SIMÕES -
AV. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 267 VALERIANO DE SOUZA -
RUA SANTO AMARO 16 (NICOLAU) ESHER SOARES DO -
COUTO
RUA SANTO AMARO 59 EDUARDO MONTEIRO -
RUA SANTO AMARO 71 EVARISTO DA VEIGA -

Tabela 25 – Médicos com residência e/ou consultórios na “área nobre”. Fonte: Acervo Digital FBN.

Localizei na Série Obras Particulares uma informação interessante que pode


acrescentar algo mais sobre o médico Jambeiro Costa. Em 22/12/1915, na qualidade de
proprietário do imóvel na Av. Brigadeiro Luís Antônio n.208, ele encaminhou uma
solicitação de licença para a “reforma no barracão existente nos fundos do quintal”,
exatamente ao lado do endereço fornecido no Almanaque Laemmert três anos depois. Não
sabemos a que fim se destinava o barracão, se era para um simples depósito de objetos,
para uma garagem, ou mesmo para um suposto consultório. O caso é que essa informação
confirma que o médico era proprietário daquele imóvel e, provavelmente, também do
imóvel onde morava. Por outro lado, a situação privilegiada dessa avenida leva a supor que
os imóveis ali localizados eram bastante valorizados, hipótese que se confirmada,
comprova a posição social desses profissionais da saúde.

Figura 30 – Anúncio de Gabriel Raja, um dos poucos


médicos que seguramente possuiu consultório na Av.
Brigadeiro Luís Antônio, no jornal O Estado de São
Paulo, de 04/08/1918. Figura 31 – Nesses anúncios, temos dois exemplos de
profissionais que residiam na Av. Brigadeiro Luís
Antônio, mas possuíam consultório no Centro da
cidade. Aqui observamos, por parte de ambos, a
preocupação em divulgar os endereços residenciais. O
Estado de São Paulo, 04/07/1918.

Os serviços de saúde restantes referem-se aos médicos Nicolau Soares do Couto


Esher, Eduardo Monteiro e Evaristo da Veiga, todos eles com residência e/ou consultórios
na rua Santo Amaro.
Referentes a negócios de alimentação havia 22 anúncios, 13 deles na Av.
Brigadeiro Luís Antônio. Além das modalidades já conhecidas – sete casas de secos e
molhados, uma delas associada ao comércio de presuntos, salames e conservas de carnes;
um açougue; uma padaria –, identifiquei a introdução de novas atividades: um restaurante
no n.53 da Av. Brigadeiro Luís Antônio e uma horticultura (Chácara de Plantas) instalada
no n.149 da mesma avenida, na altura da rua Major Diogo96. Na sequência, vem a rua
Santo Amaro com cinco anunciantes: quatro armazéns de secos e molhados e uma
confeitaria. As demais atividades, três negócios de secos e molhados e uma leiteria, se
distribuíam pelas ruas Francisca Miquelina, Genebra e Maria Paula.
O segmento de vestuário e acessórios novamente coloca a Av. Brigadeiro Luís
Antônio na liderança dos negócios desenvolvidos na área: para as sete atividades
identificadas no ramo na Avenida no trecho junto ao centro, duas eram casas de calçados,
uma era loja de chapéus para senhoras e crianças, uma alfaiataria e uma oficina de
costura. Já nas ruas Asdrúbal do Nascimento e Santo Amaro encontramos mais dois
alfaiates. Significativamente, entre todas as atividades relacionadas a esse segmento,
somente o alfaiate localizado na rua Santo Amaro estava mais distante do centro da cidade,
o que remete à ideia de que a presença desses estabelecimentos se justificava

96
No caso da Chácara de Plantas, é interessante notar que, de acordo comb o Art.10, da Lei n.1874, de
12/05/1915, as hortas só seriam toleradas na extremidade do segundo perímetro urbano da cidade. Ora,
aquela avenida localizava-se justamente dentro desse perímetro, bem longe do que a lei considerava
“extremidade”, conforme pode ser observado na Planta da Cidade de São Paulo, editada em 1916 96. O
primeiro anúncio da chácara data de 1917, ou seja, dois anos após a implantação da Lei 1874, e sua presença
confirma-se até 1922-23. Disso poderíamos deduzir que, de um lado, a lei não foi acatada de pronto e que a
própria Prefeitura fazia “vista grossa” para eventuais transgressões à lei. Por outro lado, a presença da
chácara indica a manutenção da prática agrícola dentro da cidade, fato comum até o início do século XX.
principalmente pela proximidade com a Faculdade de Direito (entre o Largo São Francisco
e a rua do Riachuelo).
O setor de artes e ofícios reuniu cinco negócios, dois deles na Av. Brigadeiro Luís
Antônio, caso da Casa Editora Musical Brasileira, de Campassi & Camin e da oficina de
gravuras de Raphael Lucibello & Irmão, todas elas respectivamente nos números 30A e
44. Nas duas ocasiões, trata-se de atividades bastante especializadas, certamente destinadas
a uma clientela com hábitos mais requintados. Já os três profissionais estabelecidos na rua
Santo Amaro estavam de alguma maneira ligados ao universo musical: o afinador de
pianos Francisco Morsa, não necessariamente um músico, mas alguém que viabilizava a
performance musical dos amantes da música; o professor de violino Luiz Filgueiras e o
professor de piano Egydio Lucchesi.
A construção civil, ainda que não tenha retomado o mesmo impulso verificado em
1914 (quando 16 profissionais divulgaram seus serviços), em 1918 apresentou uma
pequena recuperação. Se em 1915 identifiquei apenas um engenheiro, em 1918 localizei
um fabricante de ladrilhos e mosaicos, um marmorista, um bombeiro hidráulico e duas
marcenarias.
De acordo com o Almanaque Laemmert, Ulysses Pellicciotti, o fabricante de
ladrilhos e mosaicos, iniciou seu negócio por volta de 1909. No entanto, já em 1906, um tal
de Jao (sic) Pellicciotti encaminhou à Diretoria de Obras um projeto arquitetônico para a
construção de um salão, na Av. Brigadeiro Luís Antônio s/n. Tratava-se do mesmo negócio
mencionado no ano 1908, de pedido de licença para instalação de letreiro para oficina de
escultura, encaminhado em 1907 ao setor de Polícia e Higiene da cidade de São Paulo. Já
em 1914, localizei um outro projeto, ao que parece, para o mesmo local. Como se pode
notar nos projetos abaixo, o último revela que o negócio havia dado certo, tanto que seu
proprietário se propunha a aumentar a área construída.
Os préstimos oferecidos por Pellicciotti no decorrer dos quase dez anos de atividade
variaram entre o comércio de materiais de construção (cimento, gesso, telhas de vidro,
azulejos, cerâmicas, ladrilhos), os serviços de estucador, escultor e estatuário, além da
própria fabricação de parte desses produtos, sempre no mesmo endereço, à Av. Brigadeiro
Luís Antônio n.50 (que após o Emplacamento de 1919 tornou-se n.86).
Figura 32 – Projeto arquitetônico para construção de
salão para Jao & Pelliciotti, no n. 50 da Av. Brigadeiro
Luís Antônio. Obras Particulares, 19/12/1906.
OP/1906/000.265, AHSP.

Figura 33 – Planta de elevação para a construção de Figura 34 – Planta baixa referente ao mesmo projeto.
sobrado com armazém no térreo para Ulysses
Pelliciotti, no mesmo local onde fora construído um
salão em 1906. Obras Particulares, 30/05/1914.
OP/1914/000.780, AHSP.

Os marmoristas E.Belpiede & Pasini anunciaram no Almanaque pela primeira vez


em 1917, porém, em 02/08/1913, eles haviam encaminhado à Diretoria de Obras uma
solicitação de licença para a construção de um barracão para oficina de marmoraria nos
fundos do terreno sito à Av. Brigadeiro Luís Antônio s/n conforme projeto arquitetônico
abaixo.
Figura 35 – Projeto, em nome de E. Belpiedade &
Pasini ,de barracão para oficina de marmoraria nos
fundos do terreno, mais duas salas no alinhamento.
Obras Particulares, 02/08/1913. OP/1913/000.931,
AHSP.

O mesmo sucedeu com Francisco Peixoto, proprietário da marcenaria instalada no


n.78 da rua Santo Amaro. De acordo com a Série Obras Particulares, em 14/04/191497,
Peixoto encaminhou um pedido de licença para a construção de um barracão para oficina
de carpintaria naquele mesmo endereço. Ainda que a solicitação fosse para uma
carpintaria – frequentemente encontrei a associação entre dois ofícios (marceneiro e
carpinteiro). O fato é que a oficina estava ali há quatro anos.
A constatação de que essas empresas já existiam há vários anos reforça a ideia de
que sempre é necessário ter cuidado ao trabalhar com os dados obtidos através dos
almanaques, pois nem sempre os negociantes desta e de outras partes da cidade utilizaram
tal tipo de divulgação para seus negócios.
Sobre o marceneiro Francisco Russo e o bombeiro hidráulico (encanador) Angelo
Rivitti há pouco o que dizer, apenas que ambos possuíam suas oficinas nos números 70 e
170, respectivamente, e que aparentemente iniciaram seus negócios em 1918.
Em vista de uma conjuntura na qual prédios continuavam a ser construídos e a
cidade continuava em franco crescimento, se pensarmos em toda a área de influência da
Av. Brigadeiro Luís Antônio (envolvendo as ruas Asdrúbal do Nascimento, Genebra,
Francisca Miquelina, Jaceguai, Maria Paula e Santo Amaro, além das ruas localizadas nos
bairros adjacentes tais como o centro e a Liberdade, e do próprio Bexiga), percebe-se que
as cinco atividades relacionadas à construção civil representam um número bem reduzido.
Resta saber como o segmento se apresentou nas demais áreas do bairro do Bexiga, o que se
verá mais adiante.

97
Obras Particulares, 14/04/1914. OP/1914/S2.
Se esse setor já se mostrou pouco significativo, pior foi a situação dos demais. Na
categoria serviços pessoais, nota-se a presença de uma tinturaria e três advogados, dois na
Av. Brigadeiro Luís Antônio e outro na rua Santo Amaro. No ramo de comércios em geral,
havia: duas casas de armarinhos e fazendas na Av.Brigadeiro Luís Antônio; um comércio
de tecidos elásticos na rua Asdrúbal do Nascimento; duas lojas de móveis e utilidades
domésticas na avenida; um fabricante de pomada para calçados na rua Santo Amaro; e a
já conhecida Garage Taxi Bloc.
Desses negócios, destaca-se o caso interessante do comércio de tecidos elásticos, de
Michele Noschese, na rua Asdrúbal do Nascimento n.28. Em 11/05/1910, um certo Miguel
Noschese se propôs a construir um grande galpão para a instalação de uma fábrica, não se
sabe de quê. Conforme o projeto encaminhado à Diretoria de Obras, o galpão seria
construído nos fundos do n. 28 da rua Asdrúbal do Nascimento, com entrada pela pequena
via que circundava o antigo Albergue Noturno. Se compararmos a planta de situação do
projeto com o mapa SARA Brasil, veremos que a lateral da fábrica estava voltada para a
Travessa Noschese que, por sua vez, tinha uma saída para a rua Santo Amaro. O fato de a
travessa ter seu sobrenome significa que Noschese foi proprietário de outros terrenos
naquele local, e certamente se tratava da mesma pessoa, sendo que o nome Miguel é a
versão abrasileirada de Michele. Uma matéria veiculada no jornal O Estado de São Paulo,
em 21 de julho de 1917, a respeito das greves realizadas naquele ano, indica que entre os
“estabelecimentos que subscreveram as clausulas do accordo geral de 14 do corrente”
estava a Fábrica de Tecidos Elásticos Michele Nosches. Ainda que o anúncio no
Almanaque de 1918 não especifique que o negócio envolvia também a produção de
tecidos, a matéria do jornal não deixa dúvida quanto a isso. Um ano mais tarde, a atividade
de Noschese seria definida como “fabricação de tecidos elásticos” nos anúncios do referido
almanaque.

Figura 36 – Projeto, em nome de Miguel Noschese para construção de galpões para fábrica e depósito (?), na rua
Asdrúbal do Nascimento, 28. Obras Particulares, 11/05/1910. OP/1910/000.223, AHSP.
Figura 37 – No mapa SARA Brasil, de 1930, é
possível ver que os galpões construídos para Miguel
Noschese ainda mantinham a mesma configuração do
projeto encaminhado em 1910. Na imagem, o Albergue
Noturno situa-se exatamente abaixo do referido prédio.
Fonte: SARA Brasil, Fl.51, 1930. AHSP.

Assim, constatamos a combinação de fabricação e comércio de produtos, fato


bastante comum no bairro, principalmente no ramo vestuário, aspecto que voltaremos a
abordar mais a frente.

 1922-23
A I Grande Guerra de 1914-18 havia terminado há quase cinco anos e o volume de
anúncios publicados no Almanaque Laemmert no biênio 1922-23 98 demonstra que pouco a
pouco os negócios foram se recuperando da crise econômica. Neste período, os 440
anúncios abrangendo a totalidade do bairro do Bexiga significaram um acréscimo de pouco
mais de 228 % em relação ao período anterior (com 134 anúncios). Já a “área nobre”, com
142 anunciantes, foi responsável por 32,27% de todas as atividades produtivas
desenvolvidas no bairro.
ATIVIDADES TOTAL
ALIMENTAÇÃO, ALOJAMENTOS E LAZER 40
SAÚDE 22
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 21
CONSTRUÇÃO CIVIL 13
SERVIÇOS PESSOAIS 10
COMÉRCIO EM GERAL 8
ARTES E OFÍCIOS 5
EDUCAÇÃO 5
TRANSPORTE 4
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 4
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO 3
AGENTES COMERCIAIS 3
OFICINAS E MANUFATURAS 3
COM. APAR. ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIP. DOMÉSTICOS E PROFISSIONAIS 1
TOTAL 142

Tabela 26 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1922-23. Fonte: Acervo Digital FBN.

Os setores de alimentação, saúde, vestuário, construção civil, serviços pessoais e


comércio em geral mantêm a tendência de liderança que registrado desde o início das
investigações. Também não constitui novidade o fato de a Av. Brigadeiro Luís Antônio
continuar a abrigar a maior parte dos negócios, seguida de longe, apenas pela rua Santo

98
Desta feita, excepcionalmente, a publicação do almanaque abrangeu dois anos, 1922-1923.
Amaro. A novidade do período está no acréscimo de novos empreendimentos dentro de
segmentos já existentes, e no surgimento de novas modalidades de negócios, alterações
essas que ocorreram basicamente no setor da alimentação.
Como já mencionei, os médicos residentes no bairro aos poucos começaram a
abandonar o local. Nota-se a saída de dois dos dezesseis profissionais presentes em 1918.
Em compensação, aparece um novo profissional, o químico Manoel Pereira de Rezende 99,
com provável residência no n. 175 da Av. Brigadeiro Luís Antônio. Além desses
profissionais liberais, constata-se a permanência de duas farmácias antigas, o acréscimo de
uma nova e de um comércio de drogas pertencente ao negociante Fernando Mentges Filho.
Esse foi o caso de um agente que ficou pouquíssimo tempo na Av. Brigadeiro Luís
Antônio n.78, apenas dois anos, tendo sido decretada sua falência antes do término de
1922100.
Ainda dentro do setor saúde localizei um caso curioso. Tratava-se de uma atividade
que desde 1917 se anunciava como uma Chácara de Plantas voltada para a horticultura,
porém, em 1922 o anúncio indica a presença de um hervanário no local. É claro que uma
chácara “de plantas” sempre poderia produzir qualquer tipo de vegetal, de legumes, frutas
e verduras destinados à alimentação, até aqueles utilizados para fins medicinais. O que
causa estranheza é a súbita mudança de foco, ou a especificação da mesma, numa nítida
especialização.
Assim como nesse caso, em outras situações voltei a notar a conjugação de
diferentes modalidades de negócio. É o que ocorreu particularmente no ramo dos calçados,
vestuário e chapéus, no qual comércio e serviços parecem se combinar num mesmo
endereço sob a liderança da mesma pessoa. Como exemplo, em 1918, temos Lanfranchi &
Cia. e Roque Mariani & Filho, respectivamente localizados na Av. Brigadeiro Luís
Antônio, nos números 22B e 25, que anunciavam seus negócios como casas de calçados,
dando a entender que ali comercializavam o produto. Já em 1922-23, seus anúncios
designam sapatarias, levando-nos a crer que se tratava de uma prestação de serviços. Em
1913, o mesmo Roque Mariani anuncia seu negócio como sapateiro, que no linguajar atual
significa o profissional que conserta calçados. É bem provável que esses profissionais

99
De acordo com a Estatística Industrial de São Paulo, publicada pela Secretaria da Agricultura, Indústria e
Comércio do Estado de São Paulo em 1930, o setor químico foi um dos segmentos explorados pela indústria
nacional. Porém, não conseguimos obter mais informações acerca das possíveis áreas de atuação deste novo
profissional (o químico), nem o seu grau de envolvimento com a indústria farmacêutica. In FAUSTO, Bóris,
A revolução de 1930. Historiografia e História. 7ª Edição, São Paulo: Brasiliense, 1981, p.26.
100
Diário Oficial de 14/09/1922, contendo decreto de falência em 11 do mesmo mês. Disponível em:
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2021690/pg-23-secao-1-diario-oficial-da-uniao-dou-de-14-09-
1922/pdfView. Consulta em: 28/10/2013.
realmente realizassem todas as operações apontadas nos almanaques – fabricação,
consertos e comércio. Aqui há duas possibilidades: o próprio Almanaque, ao classificar as
atividades de seus anunciantes confundia as aptidões, ou os anunciantes procuravam
destacar esta ou aquela especialidade a depender do que os valorizasse como profissionais
em diferentes momentos. Coisa semelhante aconteceu com o vestuário, onde a mesma
pessoa ora anuncia sua atividade como oficina de costura (1917), ora como modista (1922-
23). Esse caso das Irmãs de Léo, estabelecidas no n.2 da Av. Brigadeiro Luís Antônio, ora
como modas e confecções (1922-23), ou o caso dos coletes para senhoras de Georgina
Queiroz (1925), estabelecida no n.22 daquela avenida. Possivelmente, a sucessiva mudança
na denominação das atividades se relacione ao desejo de agregar valor ao negócio e,
consequentemente, atrair uma clientela mais requintada.
No caso dos serviços voltados para a construção civil, embora tenha havido um
acréscimo no total do número de atividades anunciadas, o único segmento que realmente
apresentou um crescimento relevante foi aquele dos bombeiros hidráulicos, nossos atuais
encanadores 101. De um único caso identificado em 1918, Angelo Rivitti, sediado no n.170
da Av. Brigadeiro Luís Antônio, agora há outros quatro profissionais na mesma avenida.
No caso dos demais serviços (carpintarias, ferrarias, serralherias, marmorarias, comércio
de madeiras, produção e comércio de ladrilhos e mosaicos), identifiquei um profissional
para cada atividade. A exceção ficou por conta das marcenarias que tiveram seu número
reduzido, de três estabelecimentos em 1918 para dois nos anos 1922-23.
Merece destaque o único engenheiro identificado no biênio 1922-23, Antônio Rapp.
Trata-se de um profissional da construção civil que atuou na construção da cidade, pelo
menos desde 1912. Rapp possuía elos familiares com o já citado engenheiro Augusto Fried
e, ao que tudo indica, foi quem o sucedeu após sua morte. O endereço publicado por Rapp
na edição de 1922-23 do almanaque coincide com aquele fornecido por Fried em 1909 e
1910 na Av. Brigadeiro Luís Antônio n.245102.
As informações mais importantes sobre o engenheiro-arquiteto Antônio Rapp são
da Série Obras Particulares, onde além de constar na solicitação de aprovação do projeto

101
Note-se que na cidade do Rio de Janeiro, esses profissionais até hoje são conhecidos como “bombeiros
hidráulicos”.
102
Em trabalhos acadêmicos encontramos raras referências a esse profissional, mas tivemos oportunidade de
conhecer seu trabalho por ocasião do projeto “Arquivo Histórico Municipal Washington Luís – A cidade de
São Paulo e sua Arquitetura”. Já de todas as informações coletadas nos jornais da época, uma se mostrou
especialmente relevante: o comunicado feito pela viúva de Augusto Fried, através do jornal O Estado de São
Paulo, de 03/08/1912, onde ela participa que “todos os assuntos referentes ás obras em andamento e bem
assim a liquidação de contas” do falecido engenheiro estarão por conta de “seu genro, o engenheiro
arquitecto, sr. Anton Rapp”.
arquitetônico para as “reformas no escritório do arquiteto Antonio Rapp”, nas
proximidades da rua Santa Madalena103, seu nome figura como um profissional que
desenvolveu uma série de projetos para prédios comerciais nas principais ruas do centro da
cidade e para edifícios residenciais em vários bairros, inclusive na sofisticada Av. Paulista.
Já o trabalho de Marina Nardim Prado104 esclarece que o prédio original do Hospital Santa
Catarina, de 1906, e localizado na mesma avenida, também é de sua autoria.
As investigações sobre Antônio Rapp forneceram alguns indícios que podem
confirmar, ainda que parcialmente, a hipótese acerca dos critérios utilizados pelos
profissionais liberais para a escolha da Av. Brigadeiro Luís Antônio como endereço
residencial e/ou profissional conveniente para o desenvolvimento de suas carreiras. Por
outro lado, reafirma a posição estratégica da avenida.
A próxima categoria na sequência das atividades que tiveram desempenho mais
significativo no biênio 1922-23 foi a de serviços pessoais, envolvendo uma barbearia na
rua Genebra e quatro na Av. Brigadeiro Luís Antônio, bem como três tinturarias na mesma
avenida. Entre os profissionais liberais, notam-se dois advogados, um deles o futuro
presidente do Estado de São Paulo, Carlos de Campos105, mais um personagem a valorizar
a Av. Brigadeiro Luís Antônio...
O comércio em geral contou com oito atividades produtivas, sendo seis delas
localizadas na Av. Brigadeiro Luís Antônio: três casas de armarinhos, um comércio de
artigos para sapateiros, uma casa de ferragens e quinquilharias e um comércio de pipas.
Já na rua Maria Paula encontramos uma casa de armarinhos, e na rua Santo Amaro um
comércio de graxa e pomada para calçados. As lojas de armarinhos possuem uma
característica comum: pertenciam a pessoas provenientes do Oriente Médio. Naquele
momento já era possível verificar a forte presença de turcos, sírios, libaneses e judeus nas
ruas Florêncio de Abreu e 25 de Março, geralmente no negócio de armarinhos e fazendas.
Mas, pelo que indicam os almanaques, parece que pelo menos alguns deles iniciaram suas

103
Série Obras Particulares, Projeto SIRCA, 1916, DOC.44-Cx.B5.
104
PRADO, Marina Nardin. TFG Avenida Paulista. Roteiro de arquitetura. FAUUSP. s/data. p.16.
Disponível em: issuu.com/npmari/docs/caderno_tfg2. Consulta em: 31/10/2013.
105
Em 02/12/1894, no dia seguinte à apuração das eleições para o congresso estadual de 01 de dezembro do
mesmo ano, o jornal O Estado de São Paulo noticiou o resultado parcial do pleito, onde Carlos de Campos
figurava como um dos deputados governistas mais votados, com 9.902 votos. O advogado, filho do
presidente do estado de São Paulo Bernardino de Campos, também governou o estado entre maio de 1924,
até a sua morte, em 1927. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_de_Campos. Consulta em
01/11/2013.
Sobre Carlos de Campos, é curioso notar a presença de um médico, com o mesmo nome, nos Almanaques de
1918 e no biênio de 1922-23, sendo que o endereço deste profissional distava poucos metros do advogado:
um residia no número 198 e o outro, no número 222. Infelizmente, não conseguimos apurar nada sobre o
médico, restando a dúvida se eram da mesma família, ou mera coincidência...
atividades em outras áreas da cidade, inclusive em partes do bairro do Bexiga, como será
possível observar no tópico destinado ao “loteamento original”.
Os sócios David & Abrahão, possivelmente judeus, estavam estabelecidos na Av.
Brigadeiro Luís Antônio, assim como os sírios Zaedan Calux & Irmão e A. Saadi & Cia. Já
José Rahal & Irmão – também de origem síria – possuíam loja na rua Santo Amaro. Em
busca de mais informações sobre esses comerciantes, descobri no jornal O Estado de São
Paulo de 13/04/1918 que os irmãos Rahal estiveram envolvidos com a compra de
mercadoria ilícita, fruto de furto “do estabelecimento de Emilio Schultz”, razão pela qual
foram ao Tribunal do Júri. Embora tenham sido absolvidos, a notícia do jornal não deixa
claro o alcance do envolvimento dos acusados no roubo. De qualquer maneira, as
mercadorias deviam se destinar ao abastecimento da loja, que naquele ano ainda estava
instalada na Av. Brigadeiro Luís Antônio.

Figura 38 – Notícia acerca do julgamento de José


Rahal & Irmão, por compra de mercadorias “furtadas”,
em 12/04/1918. O Estado de São Paulo, 13/04/1918.

A partir de 1922, constata-se a introdução de um novo segmento no cenário do


bairro de atividades vinculadas à educação. Naquele momento, professores e instituições
de caráter educativo passam a figurar nas páginas do Almanaque Laemmert. São poucos os
casos, entretanto, são indicativos da importância adquirida pela educação formal na cidade
de São Paulo. Ainda que a abordagem dessa questão tenha obedecido a propostas políticas
opostas, derivadas de momentos políticos diversos (a Proclamação da República e o final
da Primeira República), do ponto de vista do ideário republicano, e de acordo com autores
que se debruçaram sobre a questão, a educação foi encarada como um “instrumento de
progresso social e espaço de tratamento moral, capaz de colocar o Brasil em sintonia com
as sociedades civilizadas”, ou seja, uma forma de inserção do país na modernidade
almejada por educadores, administradores e a sociedade de uma maneira geral (Silva &
Mate, 2009, p.1). Embora não seja possível dimensionar o significado particular dessa
questão para os diferentes segmentos sociais, especialmente para os moradores da área
analisada, o fato é que em 1922 identificamos três professores e duas escolas particulares.

Figura 39 – Anúncio publicado por Salvador Ferrara


no jornal O Estado de São Paulo, em 15/11/1921.

Desde 1882, a região já contava com uma escola pública, a Escola de Primeiras
Letras instalada na rua Aguiar de Barros, esquina com rua Santo Amaro, no terreno doado
pela Baronesa de Limeira em 1877. Esse é o endereço fornecido pelo professor de
contabilidade Salvador Ferrara. Além de trabalhar naquela escola, Ferrara também dava
aulas particulares no Largo 7 de Setembro, bairro da Liberdade, localidade não muito
distante da rua Aguiar de Barros. Talvez esse fosse o endereço da sua residência.
O professor de francês, Jean Maibon, indicou a rua Santo Amaro n.73, certamente
também seu endereço residencial. Conforme o anúncio publicado no jornal O Estado de
São Paulo, em 1913, tratava-se de um estudante de Ciências Naturais que havia realizado
seus estudos na França. Apesar de qualificado como ‘cientista natural’, Maibon lecionava
francês no Colégio Franco-Brasileiro, além de dar aulas particulares para estudantes de
medicina. Cinco anos depois, ele era diretor e, em seguida, professor na mesma escola. A
última notícia a seu respeito data de 17/02/1924, quando um comunicado da Sociedade
Rádio Educadora Paulista o identifica como um dos sócios fundadores.

Figura 40 – O Estado de São Paulo, 12/04/1913.

Figura 41 – O Estado de São Paulo, 14/04/1918.

Já o Dr. Arthur de Oliveira Fausto morava no sobrado do prédio n.8 da Av.


Brigadeiro Luís Antônio. O almanaque não especifica sua especialidade, porém pelo
anúncio do Gymnasio “Oswaldo Cruz” publicado no Estado de São Paulo em 1915, indica
que Fausto talvez fosse professor de física ou química.
Figura 42 – O Estado de São Paulo, 07/02/1915.

Se os três casos citados não dizem muita coisa sobre as escolas do bairro, eles
demonstram que viver no Bexiga era uma opção interessante para os setores médios da
população. A espacialização dos endereços desses professores na Planta SARA Brasil
(Anexo 3.6 – Espacialização de atividades) revela que, com exceção de Salvador Ferrara,
cujo anúncio se referia especificamente ao espaço de trabalho, Jean Maibon (rua Santo
Amaro) e Arthur de Oliveira Fausto (Av. Brigadeiro Luís Antônio) moravam em vias
servidas por linhas de bondes elétricos, o que em si já é um fator de atração para quem
viesse de outras partes da cidade para ter aulas.
Contrariando a primeira impressão sobre a escola Aprendizes Artífices sediada na
Av. Brigadeiro Luís Antônio, não se trata da instituição federal denominada Escola de
Aprendizes Artífices então localizada na Av. São João n. 404. Infelizmente, não foi
possível obter informações adicionais acerca desse estabelecimento de instrução. Julgo que
se tratava de uma iniciativa de caráter privado que se apropriou do nome daquela
instituição pública como forma de valorizar a iniciativa.
Esse parece não ter sido o caso do Commercial Mercurio, estabelecido no n.108 da
mesma avenida. Desde fins do século anterior, em decorrência da importância adquirida
pelo comércio em suas diferentes modalidades na economia nacional e local, e a abertura
de inúmeros novos negócios, “surge uma nova demanda profissional: empregados
qualificados para trabalhar nas empresas e administradores para gerenciá-las”106. Assim,
em 1901, nota-se o aparecimento das primeiras iniciativas para a criação de cursos
especializados nas ‘artes’ do comércio – para os escritórios comerciais e comércio em
geral (escriturários, datilógrafos, guarda-livros, contadores, secretariado) –, que irão se
materializar um ano depois, com a aprovação dos “Estatutos da Escola Prática de
Comércio de São Paulo”, a futura Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado,

106
POLATO, Mauricio Fonseca – A Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (Fecap) e o ensino
comercial em São Paulo (1902-1931). Dissertação de Mestrado em Educação: História, Política, Sociedade,
PUC/SP, 2008, p.79.
primeira instituição de ensino de práticas relacionadas ao comércio no país. A partir dessa
iniciativa, outras escolas foram abertas nos anos seguintes com o mesmo objetivo, caso da
Academia Commercial Mercurio, fundada em 1903. Em 1913, conforme o anúncio
publicado no jornal O Estado de São Paulo, a escola funcionava na rua Manoel Dutra, mas
dois anos depois iria se mudar para a Av. João n.173, como demonstra outro anúncio de
1915. A partir de 1921, a Commercial Mercurio voltaria ao bairro, agora na Av. Brigadeiro
Luís Antônio no n.108, sobrado onde ficou pelo menos até 1931.

Figura 43 – Academia Commercial Mercurio. O Figura 44 – De acordo com esse anúncio, a Academia
Estado de São Paulo, 17/09/1913. Commercial Mercurio foi fundada em 1903. O Estado
de São Paulo, 11/10/1915.

Figura 45 – Academia Commercial Mercurio. O Estado de São Paulo, 14/02/1921.

Um pequeno conjunto de negócios merecedor de destaque é aquele relacionado ao


ramo de informação e comunicação, no qual reuni as atividades que de algum modo
disponibilizassem à população o acesso a jornais, revistas, livros e outros produtos
impressos, inclusive bilhetes e cartões postais (Anexo 2 – Atividades identificadas). Em
1915, o Almanaque Laemmert registra tais atividades numa loja até então inexistente no
bairro: a Casa Editora Musical Brasileira, de Campassi & Camim, situada na Av.
Brigadeiro Luís Antônio n.59. Havia também o comércio de jornais e revistas, O Cometa,
na rua Genebra n.15, e o comércio de bilhetes postais de José Pasqualucci na rua Santo
Amaro n.139.
A Casa Editora Musical Brasileira, ou G.Campassi & Cia., foi o caso mais
significativo. Tratava-se de uma firma voltada para a “gravação e impressão de música em
edições próprias ou por conta de terceiros”, conforme o anúncio publicado no jornal O
Estado de São Paulo de 03 de janeiro de 1917. Alguns anos mais tarde, em 06 de janeiro
de 1920, o mesmo jornal indica que “a casa dispõe (também) de maestros competentes
para arranjos, reducções, correcções, etc.”. Como se pode depreender dos anúncios, os
dizeres “a casa dispõe de maestros competentes para arranjos, reducções, correções, etc.,
etc.” indicam que além de se tratar de uma atividade especializada, os editores procuravam
oferecer aos clientes serviço personalizado que deveria valorizar o trabalho de músicos e
autores musicais.

Figura 47 – O Estado de São Paulo, 05/01/1917.

Figura 46 – O Estado de São Paulo, 13/05/1916.

Figura 48 – O Estado de São Paulo, 06/01/1920.

A julgar pelas referências à Editora Musical Brasileira, encontradas na Web, trata-


se de uma casa importante para a divulgação do trabalho de músicos brasileiros famosos,
como Marcelo Tupinambá (1919) e Villa-Lobos (1922)107. O fonógrafo chegou ao Brasil

107
Conforme o blog Daniella Thompson om Brazil, o tango Sou Batuta foi publicado pela Casa Editora
Musical Brasileira, em 1919. Disponível em: http://daniv.blogspot.com.br/2002/11/boeuf-chronicles-
pt_09.html; sobre a música Brasil novo: hymno revolucionario, de Heitor Villa-Lobos, sua gravação data de
em fins do século XIX e a Casa Edison, no Rio de Janeiro, foi responsável pela primeira
gravação musical no país em 1902. Porém, em nenhuma dessas citações fica claro se o
trabalho da G.Campassi & Cia. se restringia às partituras ou se envolvia a gravação de
discos. De qualquer maneira, o anúncio de 13/05/1916, “Officina completa para impressão
de música” sugere que tratava-se de gravadora de fonogramas.
No caso de José Pasqualucci, o comércio de bilhetes postais deve ter sido apenas
uma opção momentânea, cuja permanência talvez dependesse do sucesso ou insucesso da
empreitada. Em 1920, Pasqualucci encaminhou à Diretoria de Obras um pedido de licença
para a “construção de um prédio para fábrica de calçados” na rua Maria José n.27.
Acresce que entre os anos 1924 e 1927, o mesmo Pasqualucci encontrava-se estabelecido
com comércio de calçados, agora na rua Major Diogo n.118. O negócio de calçados deve
ter prosperado, porque em 1931 há uma referência à loja de calçados exatamente no n.33
da rua Maria José108. Sob o ponto de vista das diferenças resultantes de uma pretensa
segmentação espacial das áreas envolvidas neste estudo, o caso de José Pasqualucci é mais
um exemplo de que os limites entre a “área nobre” e o “loteamento original” eram menos
precisos do que se poderia imaginar à primeira vista. Por outro lado, o comércio de bilhetes
postais não deve ter tido o resultado esperado, pois em 1924 seu nome não figura nas
páginas do Almanaque Laemmert. Assim, esse é um exemplo dentre tantos outros de
múltiplas tentativas por parte dos negociantes do Bexiga.
Por fim, além das atividades de maior expressão relacionadas acima, no biênio
1922-23 voltamos a encontrar os agentes comerciais, ausentes desde 1915. Entretanto, se
naquele ano os agentes comerciais se concentravam na rua Francisca Miquelina, agora
passaram para a Av. Brigadeiro Luís Antônio: Francisco A. Iorio, envolvido com negócios
de importação e exportação; e Sylvain Levy e Antônio José Ribeiro da Silva Jr, corretores
de mercadorias e navios. Desses agentes comerciais, Francisco Iorio foi o único sobre o
qual foi possível obter alguma informação: em 1908 ele possuía uma casa de jóias na rua
Barão de Itapetininga n.28, muito provavelmente jóias importadas109.

1922. Disponível em: http://villalobos.iu.edu/Brasil-novo. Para mais informações acessar os sites


http://www.almanack.paulistano.nom.br/avbluiz.html; http://www.dicionariompb.com.br/pedro-angelo-
camin/biografia; http://mpbantiga.blogspot.com.br/2011/07/impressao-musical-no-brasil-parte-6.html; e ver
AMARAL, Euclides – Alguns aspectos da MPB, 2ª Edição, Rio de Janeiro: Esteio Editora, 2010. Ver ainda
BESSA, Virginia de Almeida – A cena musical paulistana: teatro musicado e canção popular na cidade de
São Paulo (1914-1934). Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História Social,
FFLCH, 2010.
108
Conforme o Ìndice de Emplacamentos da Prefeitura, o número 33 da rua Maria José correspondia ao
antigo número 27, anterior ao emplacamento de 1921.
109
O Estado de São Paulo, de 23/10/1908.
 1927
Nesse ano, a “área nobre” do Bexiga registrou um total de 213 atividades
produtivas, correspondendo a um aumento de 50% em relação ao biênio 1922-23, com 142
atividades. A concentração de negócios em determinados setores manteve a tendência
desde o início do período investigado, com poucas variações entre um ano e outro, com a
alimentação sempre à frente, e os setores de vestuário, saúde, construção civil, serviços
pessoais, comércio em geral e artes e ofícios se reveza em número e importância,
conforme se pode verificar na tabela abaixo.
A mudança significativa manifestou-se basicamente na incorporação de novos
negócios aos setores já existentes e na introdução de algumas novas modalidades de
comércio e serviços. No caso da alimentação, constata-se a abertura de quatro novos
comércios de secos e molhados, assim como a introdução de uma sorveteria, dois bilhares
e uma pensão. Nesses casos, os dois últimos merecem uma pequena análise à parte.
ATIVIDADES N. ANÚNCIOS
ALIMENTAÇÃO, BEBIDAS, ALOJAMENTOS E LAZER 48
SERVIÇOS PESSOAIS 37
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 32
SAÚDE 21
COMÉRCIO DE GÊNEROS DIVERSOS 19
CONSTRUÇÃO CIVIL 14
AGENTES COMERCIAIS 11
ARTES E OFÍCIOS 10
TRANSPORTE 6
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 5
OFICINAS E MANUFATURAS 5
EDUCAÇÃO 2
COM. APARELHOS ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS 2
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO 1
TOTAL 213

Tabela 27 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1927. Fonte: Acervo Digital FBN.

De acordo com o historiador Antônio Paulo Benatte110, o bilhar foi introduzido no


Brasil por volta de 1830. Originalmente, um divertimento de caráter “elegante e refinado”,
com o incremento do processo de urbanização e de industrialização, “o jogo deixava de ser
um passatempo aristocrático e era progressivamente apropriado pelos trabalhadores e
pelas camadas populares em geral”, instalando-se principalmente em botequins. Da
mesma maneira, a referência feita por Benatte sobre o caráter popular dos bilhares parece
se aplicar ao jogo de bola mencionado acima.
O primeiro contato com o jogo de bilhar na “área nobre” do Bexiga foi em 1924,
quando localizei dois estabelecimentos especialmente destinados a esse fim, tendo ambos
permanecidos no mesmo local até pelo menos 1927. Porém, embora o Almanaque não

110
BENATTE, Antônio Paulo. Sinuca de bico. Revista de História da Biblioteca Nacional, 09/09/2007.
Disponível em:< http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000249900&fd=y>. Consulta
em: 15/01/2014.
registre a atividade após esse ano, é muito provável que a sua prática tenha permanecido
nos seguintes, à exemplo do ocorrido com os jogos de bola, estes nunca citados no anuário.
De qualquer maneira, os dois casos identificados localizavam-se na Av. Brigadeiro Luís
Antônio, números 12 e 106, e ambos, aparentemente, pertenciam a proprietários
portugueses, Manoel J. Ferreira e Joaquim da Cunha.
O caso das pensões é especial. O primeiro caso identificado ocorreu em 1915 e,
embora até aquele ano não haja nenhuma situação em que a existência de serviços de
hospedagem se confirmasse efetivamente, não há dúvidas quanto à sua presença. Em
minha pesquisa de mestrado já havia constatado a existência de duas edificações,
certamente destinadas a pensões no início da rua Santo Antônio 111. Posteriormente,
localizei outros indícios no jornal O Estado de São Paulo. Em 15/06/1914, um anúncio
noticiou o leilão a realizar-se na rua Aguiar de Barros n.9 de “todos os moveis, louças,
ornatos, trens de cozinha e mais objectos existentes naquella bem montada pensão”. Já em
09/02/1917, outro anúncio divulgava a locação de “uma boa sala de frente com entrada
independente para rapaz de commercio ou de escriptorio (...), á rua Francisca Miquelina
n.16”. Ainda que o primeiro caso se referisse a um negócio que deixaria de existir, e o
segundo não especificasse a atividade pensão, o fato é que ambos indicam a prática de
locação de cômodos para terceiros. De outro lado, tanto no caso da rua Santo Antônio
quanto da área de influência da Av. Brigadeiro Luís Antônio, a proximidade do Largo de
São Francisco e do próprio Triângulo, assim como a presença das linhas de bondes,
representam fatores de atração para quem necessitasse de moradia bem localizada.
A Pensão Avenida, de Edma Dumont, na Av. Brigadeiro Luís Antônio, números 53
e 55, foi a primeira registrada no Almanaque Laemmert. Interessante é que doze anos antes
(26/09/1915), um anúncio no jornal O Estado de São Paulo divulgava a locação de
“grande e luxuoso sobrado para pensão” no n.59 daquela avenida. Coincidentemente,
dois anos antes, José Pucci encaminhara à Diretoria de Obras um projeto para a construção
de dois sobrados com armazém no térreo. Apesar do projeto abaixo não permitir identificar
precisamente, não há dúvidas que se trata do mesmo “grande e luxuoso sobrado”.

111
Tratava-se de dois requerimentos encaminhados à Diretoria de Obras, ambos referentes à construção de
dois sobrados, para a mesma pessoa, Antônio Fernandes Pinto. O primeiro caso, de 23/10/1913, para a rua
Santo Antônio, esquina com o Largo do Riachuelo. No segundo, de 15/12/1913, o requerente apresentou um
projeto semelhante, agora para o nº 6 da rua Santo Antônio. Fonte: Obras Particulares, 23/10/1913 e
15/12/1913, Cx. S2. AHSP.
Figura 49 – Elevação e planta baixa do projeto arquitetônico em nome de José Pucci, para construção de dois sobrados,
ambos com armazém no térreo, na Av. Brigadeiro Luís Antônio, 57 e 59. Fonte: Obras Particulares, 26/02/1913.
OP/1913/000.930, AHSP.

Conforme O Estado de São Paulo, o sobrado envolvia 25 quartos, salões de visitas


e jantar e quatro banheiros e, em 09/02/1917, o edifício aparece ocupado pela “Grande
Pensão Mello Franco – exclusivamente familiar”, cujo endereço anterior era no centro da
cidade. Em outubro do mesmo ano, a casa deixaria de se chamar Mello Franco para se
tornar a Pensão Avenida, e assim ficaria até pelo menos, 1927.
O último anúncio da pensão naquele jornal data de 1921 (Figura 53) e é bastante
esclarecedor da importância de sua localização, “a cinco minutos da cidade”.

Figura 50 – O Estado de São Paulo, 26/09/1915. Figura 52 – O Estado de São Paulo, 11/10/1917.

Figura 51 – O Estado de São Paulo, 09/02/1917.

Figura 53 – O Estado de São Paulo, 13/12/1921.

Entre as categorias que mais cresceram no período de 1927, os serviços pessoais,


particularmente aqueles oferecidos pelos advogados, foram os mais expressivos: dos dois
únicos casos registrados nos anos 1922-23, o Almanaque passou a registrar 28 bacharéis,
18 deles com residência na Av. Brigadeiro Luís Antônio.
ENDEREÇOS ENDEREÇOS E/OU ATIVIDADES
ADVOGADOS Nº
RESIDENCIAIS PROFISSIONAIS
JUVENAL DE TOLEDO RAMOS ASDRÚBAL DO NASCIMENTO 21 AJUDANTE DO DISTRICTO DO CARTÓRIO DE CASAMENTOS/
AV. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO, 59
ALBERTO CINTRA BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 277 MEMBRO DO CONSELHO FISCAL DA CIA.HIDRO-ELECTRICA DE
ADUBOS CHIMICOS E ALCALIS /
PRESIDENTE INTERINO DA ASS. COMMERCIAL DE SANTOS
ALFREDO ALMEIDA REZENDE BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 285 RUA BENJAMIN CONSTANT, 38
ANTÔNIO CARLOS SALLES JUNIOR BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 9 DEPUTADO FEDERAL PELO 1º DISTRICTO/
HOTEL CENTRAL – RIO
ANTÔNIO OLINDO REZENDE BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 101 RUA SÃO BENTO, 33
(ANTÔNIO OLINTHO DE REZENDE)
ANTÔNIO PÁDUA SALLES BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 93 MEMBRO DO CONSELHO FISCAL DA CIA.HIDRO-ELECTRICA DE
ADUBOS CHIMICOS E ALCALIS
CARLOS DE CAMPOS BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 222 PRESIDENTE DO ESTADO/PALÁCIO DOS CAMPOS ELYSEOS
FRANCISCO SALLES PUPO BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 49 -
HUGO OLIVEIRA RIBEIRO BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 55 -
JOSÉ MARCONDES MACHADO BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 81 -
LUÍS CAMPOS MAIA BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 270 -
MARIO DENTE BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 119 TRAVESSA DO COMÉRCIO, 2
OSCAR MOTTA MELLO BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 164 FUNCIONÁRIO DO PATRONATO AGRÍCOLA
PAULO BARBOSA EVERDAL BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 85 -
PAULO C. AGUIAR BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 164 -
PAULO DE SOUZA QUEIROZ BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 97 -
PAULO PADUA SALLES BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 91 -
RENATO ALBUQUERQUE SALLES BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 149 -
VICTOR HUGO OLIVEIRA RIBEIRO BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 133 ESCRIVÃO DO 4º OFÍCIO DE ORPHÃOS/ RUA SANTO AMARO, 146
SALVADOR RUSSOMANO GENEBRA 11 -
LAERTE SETÚBAL JACEGUAI 53 -
PAULO SETUBAL JACEGUAI 53 RUA SÃO BENTO, 54
AURELIANO COUTINHO NETTO JACEGUAI 110 -
LUÍS FERREIRA MARIA PAULA 32 -
J. BARROS DE OLIVEIRA MARIA PAULA 33 -
JOSÉ RAMOS OLIVEIRA MARIA PAULA 36 -
MANOEL CORRÊA DIAS SANTO AMARO 62 -
ANTÔNIO SOUSA VEIGA SANTO AMARO 71 -

Tabela 28 – Relação dos advogados com residência e/ou escritório na Av. Brigadeiro Luís Antônio, em 1927. Fonte:
Acervo Digital FBN; Acervo O Estado de São Paulo.

Busquei outras informações sobre os advogados anunciados além daquelas


fornecidas pelo Almanaque e apurei que em sete casos (conforme nomes destacados na
tabela acima) tratava-se de pessoas que aparentemente não exerciam a profissão,
envolvidos com funções diversas, sendo um deles Carlos de Campos, Presidente do Estado
de São Paulo entre 1924 e 1927, ano de seu falecimento112. Apenas quatro advogados
apresentavam endereços profissionais e sobre os demais não consegui localizar quaisquer
referências. Interessante notar a presença quase que absoluta de brasileiros, ficando a
exceção por conta de um único sujeito de nome italiano, Salvador Russomano.
Outras atividades que tiveram um aumento considerável no número de ocorrências
foram: na categoria vestuário e acessórios, as casas de calçados e sapateiros que passaram
de oito para treze estabelecimentos; as modistas, lojas de modas, confecções e oficinas de
costura em geral, que quase triplicaram de número, ao passar de 4 para 11
estabelecimentos; no comércio em geral, as lojas de armarinhos, que dobraram, passando
de 4 para 8 casas; e no ramo da construção civil, os engenheiros que passaram a ter 7

112
Disponível em: http://www.spshow.com/sao-paulo/Governadores.htm. Consulta em 12/11/2013.
registros, seis a mais do período entre 1922-23, quando encontramos somente um
profissional.
As atividades vinculadas à produção e ao comércio de vestuário e acessórios estão
intimamente ligadas às transformações urbanas ocorridas nas primeiras décadas do século
XX, entre elas, a expansão de um hábito de consumo que pertencia particularmente ao
universo feminino, a moda, pelo menos para as mulheres das classes mais abastadas.
Assim, justifica-se a ampliação do número de espaços voltados a esse tipo de
estabelecimento, principalmente se pensarmos que a maioria se localizava na primeira
quadra da Av. Brigadeiro Luís Antônio, que conforme observado até aqui, parece ter
concentrado os consumidores mais exigentes da região. Os únicos a fugir à regra foram o
fabricante e negociante de roupas brancas, Aich Said (Brigadeiro Luís Antônio n.104), e a
modista Isabel Alcede (Francisca Miquelina n.45), mas ainda assim não estavam tão
distantes do centro, como se pode verificar na Planta Sara Brasil (Anexo 3.7).
Ainda pensando no aumento do consumo de moda há um detalhe que deve ser
levado em consideração: em 1927, as lojas de armarinhos foram anunciadas como
armarinhos, fazendas e modas, do que se pode concluir que, além de artigos destinados à
confecção de roupas (agulhas, alfinetes, linhas, botões, fazendas, etc), essas lojas também
deviam comercializar peças prontas de vestuário. Contudo, em virtude dos demais anos
investigados não fazerem menção ao quesito “moda”, somente contabilizei os
estabelecimentos efetivamente anunciados como modas, modistas, confecções, etc.
ESTABELECIMENTO/
LOGRADOURO Nº ATIVIDADE
PROPRIETARIO
BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 2 DE LÉO IRMÃOS MODAS E CONFECÇÕES
BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 10 JOSÉ LACAFERIA (OU LACAPRIA) COLETES PARA SENHORAS
BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 22 GEORGINA QUEIROZ MODISTAS/COLETES PARA SENHORAS
BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 30 A.ALMEIDA & CIA. MODAS E CONFECÇÕES
BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 48 MARIETTA LEPPI MODAS E CONFECÇÕES
BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 58 MIGUEL ORMANDO MODAS E CONFECÇÕES
BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 104 AICH SAID FABRICANTES E NEGOCIANTES DE ROUPAS BRANCAS
FRANCISCA MIQUELINA 45 ISABEL ALCEDE MODISTAS
MARIA PAULA 10 ROSA GARCIA/ MANUFACTURA ESPERANÇA FABRICANTES E NEGOCIANTES DE ROUPAS BRANCAS

Tabela 29 – Profissionais da moda identificados no Almanaque Laemmert em 1927. Fonte: Acervo Digital FBN.

Com relação aos profissionais dedicados à “alta costura”, conforme menciona


Wanda Maleronka, “muitas modistas fixaram importantes raízes no comércio de luxo em
São Paulo, dando força e dinamismo ao processo de crescimento da cidade”. Entre os
nomes elencados pela autora, há duas mulheres identificadas no Almanaque Laemmert:
Maria de Léo (da Casa Parisiense), e Georgina Queiroz (proprietária da casa Ao Pequeno
Luxo), ambas na Av. Brigadeiro Luís Antônio, respectivamente, nos números 2 e 22 113. Por
outro lado, ainda que o Almanaque não traga referências específicas e que seja impossível
dimensionar sua presença, ao lado dos ateliês de modistas socialmente reconhecidas
podemos contar como certo o trabalho das costureiras – nas palavras de Ana Paula
Simioni, as “trabalhadoras da agulha” – tanto na “área nobre”, como em todo o bairro do
Bexiga.
Na área da saúde, como já referido acima, o número de médicos começou a decair
na área. O Almanaque de 1927 registra 11 médicos contra os 14 registrados anteriormente.
De outro lado, o número de dentistas passa a cinco, contra o único registrado
anteriormente, além de constatar-se o aparecimento da primeira parteira a atuar naquelas
ruas. Tratava-se de Estrella Deodato, estabelecida na rua Asdrúbal do Nascimento n.27114
entre 1924 e 1927.
No segmento Artes e ofícios constam 15 anúncios no Almanaque Laemmert.
Destaca-se o aumento significativo de atividades, pouco mais que o dobro do biênio 1922-
23. Verifica-se também a introdução de novas modalidades (cinematografia, maestros,
professores de música e pintura) ou o acréscimo de novos profissionais às atividades já
existentes.
Na categoria pequenas manufaturas ou oficinas, destaca-se o caso dos funileiros
que pode ser revelador dos novos hábitos adotados pela população, onde o automóvel,
ainda que restrito a poucos, passa a ter um papel de destaque no imaginário urbano como
símbolo de status social e riqueza. Acredito que não por acaso os quatro profissionais
localizavam-se todos na Av. Brigadeiro Luís Antônio (dois no início da avenida e dois nas
proximidades da Av. Paulista), onde seus serviços eram disponibilizados aos proprietários
que residissem nas imediações. Contudo, esta é apenas uma suposição, já que esses
serviços também podiam atender à construção civil ou a algum outro setor que necessitasse
de profissionais da metalurgia, tais como a produção de calhas, baldes, regadores, etc. De

113
Wanda Maleronka. Fazer roupa virou moda. Um figurino de ocupação da mulher (São Paulo, 1920-
1950), São Paulo: Ed. SENAC, 2007, p.101. Sobre o mesmo trabalho, é interessante a resenha feita por Ana
Paula Cavalcanti Simioni: “Mulheres e moda em São Paulo: das vitrines iluminadas às sombrias salas de
costura”. Cadernos pagu (31), julho-dezembro de 2008:565-572.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332008000200025&script=sci_arttext.
Consulta em: 15/11/2013.
114
Sobre essas profissionais é interessante o trabalho de Maria Lucia Mott et al. “As parteiras eram “tutte
quante” italianas (São Paulo1870-1920), onde as autoras se propõem a problematizar o papel da profissional
italiana que, embora “vista tradicionalmente pela historiografia como leiga, sem formação profissional ou
qualificação técnica”, já trazia em sua bagagem de imigrante o diploma e a habilitação que lhe conferia o
saber necessário à prática do parto, a ponto de disputar com as profissionais brasileiras formadas ou não. In
História: Questões & Debates, n.47. p. 65-94.Editora UFPR. Disponível em:
http://www.latindex.ppl.unam.mx/index.php/browse/browseBySet/24109?sortOrderId=1&recordsPage=6
Consulta em: 13/11/2013.
qualquer maneira, ao buscar informações sobre a categoria no jornal O Estado de São
Paulo no decorrer dos anos 1920, das doze ocorrências de anúncios solicitando
empregados, localizei pelo menos um caso que dizia respeito a oficinas de automóveis115.
Outra categoria em evidência em 1927 foi a construção civil, onde os engenheiros
se destacaram pelo acréscimo de mais seis profissionais, em relação ao biênio 1922-23.
ENGENHEIROS ENDEREÇOS Nº
FELIX CUNHA BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 121
JOSÉ PUCCI BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 6
JOSÉ DE SÁ ROCHA BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 117
LUÍS MARINHO DE AZEVEDO BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 117
LINO FINOCCHIO FRANCISCA MIQUELINA 13
LUÍS DELPY FRANCISCA MIQUELINA 82
OSCAR KRUG GENEBRA 76

Tabela 30 – Engenheiros identificados no Almanaque Laemmert em 1927. Fonte: Acervo Digital FBN.

Na tabela acima destacam-se os nomes de José Pucci, José de Sá Rocha, Luís


Marinho de Azevedo e Oscar Krug. Pucci, além de ser engenheiro, era proprietário de
imóveis na Av. Brigadeiro Luís Antônio. Em 1911 o encontramos como proprietário de
dois sobrados a serem construídos naquela avenida (sem número); o mesmo ocorreu em
116
1913, agora nos números 57 e 59, prédios utilizados pela Pensão Avenida . Quanto à
Oscar Krug, em 1916, localizamos um documento emitido pela Junta Commercial de São
Paulo e publicado no Diário Oficial do Estado, com a matrícula da firma Krug & Cia.,
aberta pelo “engenheiro Edmundo Krug e (o também) engenheiro Oscar Krug (...) para a
exploração de escriptorio technico, trabalhos de engenharia em geral (...)”117. Contudo,
de acordo com o comunicado da Prefeitura Municipal da Capital, publicado no jornal O
Estado de São Paulo, a firma Krug & Cia. já estava em atividade pelo menos desde
1910118. O comunicado se refere ao pagamento de 6:438$000 réis “pelo fornecimento de
madeira e parallelepidos de madeira á Directoria de Obras Municipaes, para a execução
de diversos serviços em outubro, novembro e dezembro do anno passado”119. Pouco mais
de um ano depois, o mesmo jornal publicava o seguinte anúncio:

115
Jornal O Estado de São Paulo, 24/03/1925.
116
Obras Particulares, respectivamente, OP/1911/000.648 e OP/1913/000.930.
117
Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/3810427/pg-3757-diario-oficial-diario-oficial-do-
estado-de-sao-paulo-dosp-de-26-09-1916/pdfView. Consulta em: 14/11/2013.
118
O Estado de São Paulo, 22/02/1911.
119
O Estado de São Paulo, 09/05/1912.
Figura 54 – O Estado de São Paulo, 09/05/1912.

Independentemente de sabermos quem eram os sócios-proprietários da firma Krug


& Chaves, esta última publicação demonstra que alguém da família Krug (se não toda a
família) era proprietária da fábrica de tubos de barro, material esse que poderia ser
utilizado tanto na instalação doméstica quanto na instalação do serviço de esgotamento
sanitário; e, ao que indica o comunicado anterior da Prefeitura Municipal, Krug & Cia. já
eram fornecedores de outros materiais para a Diretoria de Obras (madeira e
paralelepípedos de madeira).
Já José Sá Rocha foi engenheiro da Diretoria de Obras. Seu nome aparece pela
primeira vez no Almanaque Laemmert de 1910, onde figura ao lado de outros engenheiros
responsáveis pela Diretoria, entre eles, Arthur Saboya, que posteriormente viria a se tornar
diretor daquela instituição. Sá Rocha dividia o endereço (provavelmente profissional) com
o engenheiro-eletricista Luís Marinho de Azevedo, um dos proprietários da Companhia
Ytuana Força e Luz, criada em 16 de agosto de 1903120.
Informações como essas, ainda que possam parecer destituídas de sentido nesse
contexto, ajudam a compreender um pouco melhor o papel interpretado por certos atores,
assim como o papel do espaço ocupado pelos mesmos na cidade. Ao mesmo tempo,
funcionam um pouco como um jogo de quebra-cabeças, onde uma peça aqui e outra ali se
juntam e dão sentido àquele momento histórico. Personagens que parecem díspares
repentinamente se encontram, evidenciando uma rede de relações e interesses que vão
além do aparentemente visível.

 1931
Acima, falei sucintamente sobre a crise econômica e política atravessada pelo país
no decorrer dos anos 1920. O desequilíbrio da balança de pagamentos gerado pela
superprodução do café, a queda nas exportações e a interrupção do fluxo de capital
estrangeiro terminaria por condicionar a diminuição das importações, o aumento geral dos
preços, o fechamento de certas fábricas e estabelecimentos comerciais e,
120
“Companhia Ituana Força e Luz”. Artigo publicado in História & Energia. Patrimônio Arquitetônico da
Fundação Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo. 2ª Ed. São Paulo: Fundação Patrimônio Histórico
da Energia de São Paulo, 2000. n.8, 76 p. anual. Disponível em:
http://www.energiaesaneamento.org.br/media/28425/martini_sueli_e_kuhl_julio_cesar_assis_companhia_itu
ana_de_forca_e_luz.pdf. Consulta em: 18/11/2013
consequentemente, o desemprego no campo e na cidade. De outro lado, os setores
oligárquicos agrários (representados por lideranças políticas de Minas Gerais, Rio Grande
do Sul e Paraíba), insatisfeitos com os rumos tomados pelas eleições de março de 1930,
tomariam o poder em outubro daquele ano. Esse foi o pano de fundo para as
transformações que os habitantes da cidade de São Paulo iriam vivenciar a partir de então,
mas que naquele momento talvez não estivessem tão evidentes.
De acordo com o levantamento dos anúncios publicados no Almanaque Laemmert
no início de 1931, distantes apenas três meses dos acontecimentos que marcariam o início
de uma nova fase da República brasileira, os desdobramentos resultantes daquele
movimento aparentemente ainda não se faziam sentir. Levando em consideração os dados
referentes à toda a extensão do bairro do Bexiga (com 604 anunciantes), é de se esperar
que em virtude da crise houvesse um decréscimo no número de anúncios veiculados pelo
anuário. Porém, se compararmos esses dados com o total de 495 anúncios publicados em
1927, veremos que houve um acréscimo de 22,02% em relação ao período anterior. A
constatação de que, pelo menos aparentemente, nada havia mudado significativamente no
cenário produtivo do bairro pode ser parcialmente explicada por uma certa demora no
impacto da Revolução de 1930 no dia a dia de negociantes, profissionais liberais e toda a
gama de atores estabelecidos no bairro. Contudo, como se trata da “área nobre” do bairro,
percebe-se que no mesmo período o número de anúncios se reduziu de 215 para 184,
aproximadamente 16,84%. Embora essa não tenha sido uma queda drástica, foi
representativa de que alguma coisa se transformava no panorama dos negócios.
No decorrer das investigações e a partir da análise dos resultados obtidos procurei
pensar os aspectos que poderiam dizer mais (não apenas sobre os atores que
desenvolveram algum tipo de atividade produtiva no bairro) mas sobre a conjuntura nas
primeiras décadas do século XX. Conhecer o tempo de permanência de cada homem de
negócio naquele espaço, assim como a manutenção ou alteração de seu negócio, mostrou-
se como um dos aspectos mais reveladores dessa conjuntura.
Dos 215 anunciantes identificados em 1927, apenas 39 se mantiveram no negócio
no período seguinte, sendo que quatro deles se mudaram para outro endereço na mesma
região. Levando-se em conta a redução do volume de anúncios naquela área (184) em
1931, constata-se o ingresso de 145 novos anunciantes. Eventualmente, ao confrontar os
dados relativos a atividades e proprietários relacionados aos anos de 1927 e 1931, percebe-
se que a atividade se mantinha, porém, nas mãos de outras pessoas, caso de pelo menos 10
negócios. De todos os casos, o que mais se destacou foi aquele do antigo Palace Theatre,
localizado nos números 77 e 79 da Av. Brigadeiro Luís Antônio. Classificado no
Almanaque Laemmert como teatro, desde 1921, em 1931 o espaço daria lugar ao Cine
Theatro Paramount, agora identificado como cinematógrafo. Tendo em vista a importância
que o espaço alcançou durante a primeira metade do século XX, vale à pena retomar um
pouco de sua história.
Localizei um comunicado de Alberto Andrade no O Estado de São Paulo, onde este
declara a extinção da firma que possuía em sociedade com Antônio Pinto da Costa,
empresa que explorava o “rink”, no número 6 (?) da Av. Brigadeiro Luís Antônio121. Um
ano mais tarde, o Diário Oficial da União de 28 de outubro de 1912, citava a marca Palace
Theatre, em nome de Alberto Andrade & Cia. De acordo com o texto do Diário, os
comerciantes “estabelecidos com casa de diversões, bar, restaurante e comercio de
bebidas e comestiveis proprios dessas casas, applicarão essa marca que serve de
denominação ao seu estabelecimento, de forma adequada (...) e a tudo o mais attinente ao
seu ramo de negocio” 122. Em 17 de dezembro do mesmo ano o requerimento foi aprovado
pela Junta Comercial. Porém, dois dias antes O Estado de São Paulo já anunciava a
inauguração do teatro.

Figura 55 – Anúncio de inauguração do Palace Theatre, publicado em O Estado de São Paulo, de 15/12/1912.

121
O Estado de São Paulo, 22/09/1911 ; Vicente de Paula Araújo, autor de Salões, circos e cinemas de São
Paulo, dá como endereço do Rink Avenida (ou Rink Theatre) não o número 6 da Av. Brigadeiro Luís
Antônio, mas sim o número 69, a mesma localização do futuro Palace Theatre. São Paulo: Ed. Perspectiva,
1981, p.310.
122
Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/DOU/1912/12/28;
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/1947423/pg-68-secao-1-diario-oficial-da-uniao-dou-de-17-12-
1912/pdfView. Consulta em: 04/12/2013.
Em 12 de fevereiro de 1913, outro anúncio naquele jornal anunciou o espetáculo
“As manobras do Outomno” a ser representado no Palace Theatre, localizado na “Avenida
Brigadeiro Luiz Antonio, próximo ao Largo de S. Francisco”. É bem possível que esta
tenha sido a primeira apresentação do teatro – conforme o livro Cem anos de teatro em São
Paulo (1875-1974), de Sábato Magaldi & Maria Thereza Vargas (2001, p.58), “Na
Brigadeiro Luís Antonio inaugura-se, em 1913, o Palace Théâtre que dispõe de 40 frisas,
45 e cinco camarotes, uma platéia de 700 lugares e uma galeria de 600”.

Figura 56 – O Estado de São Paulo, 12/02/1913.

Duas coisas chamam a atenção nesse anúncio: a menção à proximidade com o


Largo de São Francisco, e a referência aos serviços de bondes “para todas as linhas”,
assim como dos táxis da empresa Taxi Bloc. Ambos demonstram a importância da
localização da casa em relação ao Centro, assim como a disponibilidade de meios de
transporte que facilitavam o acesso das pessoas às suas residências após o espetáculo.
Assim temos que, embora o primeiro anúncio publicado no Almanaque Laemmert date
somente de 1921, a casa já funcionava anos antes. No mesmo almanaque há referências,
em 1915 e 1916, às agências teatrais de H. Barbosa & Cia., localizadas no número 69A da
Av. Brigadeiro Luís Antônio (conforme o Serviço de Emplacamentos da Prefeitura
correspondente ao número 79), onde se localizava o Palace Theatre. Infelizmente, não
consegui obter informações sobre a empresa H. Barbosa & Cia., não sendo possível
estabelecer ligação entre seu estabelecimento e aquele de Alberto Andrade.
Os anúncios classificados do Almanaque Laemmert registram as atividades do
Palace Theatre até 1927 porém, no ano seguinte, Alberto de Andrade ainda constava no
“Indicador nominal dos habitantes da cidade de São Paulo” como empresário daquela
casa.

Figura 57 – Cartaz do Cine Paramount publicado em


O Estado de São Paulo, de 01/05/1929.

Em 14 de abril de 1929, O Estado de São Paulo comentava o filme que, na véspera


inaugurara o Cine Theatro Paramount, e a grande inovação técnica então introduzida por
aquele teatro – o cinema falado. Após a reforma do prédio na Av. Brigadeiro Luís Antônio,
o antigo teatro se especializou na exibição de filmes, agora “parâmetro de elegância e
cultura” (Simões, 1990, p.15-18) para os habitantes de São Paulo123.
As profundas transformações por que passava a cidade eram sentidas em todos os
âmbitos da vida urbana e o lazer não constituiria uma exceção. Até a segunda década do
século XX os moradores do Bexiga dispunham de poucas oportunidades de lazer (Schneck,
2010, p.226-227) porém, se até aquele momento as festas religiosas se mostravam como o
principal divertimento, principalmente para as pessoas mais pobres, os anos 1910
introduziram uma novidade que estava ao alcance de todos, o cinema. No decorrer da
década, o mesmo Palace Theatre, assim como outras salas de espetáculo da cidade que
pareciam ainda não ter priorizado um tipo de apresentação específica, alternavam a
programação com espetáculos teatrais, apresentações circenses124 e exibição de filmes. Já a

123
Infelizmente não obtivemos informações sobre a construção do prédio do teatro. Encontramos referências
desencontradas a diversos arquitetos e/ou engenheiros, supostamente responsáveis pelo projeto original, mas
nenhuma delas se confirmou. Para mais informações, ver GALLO, Haroldo – “Relatos e reflexões sobre uma
experiência de trabalho de restauro: a intervenção no antigo Cine-Teatro Paramount em São Paulo”. In
ARQUITEXTOS, Ano 2, mar/2002. Disponível em:
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.022/805. Consulta em: 03/12/2013.
124
ARAÚJO, Vicente de Paula. Op. Cit. p.236-237.
reabertura da casa, em 1929, contou com programação definida, envolvendo espetáculos
cinematográficos, o que demonstra a importância desse tipo de entretenimento desde então.
Sobre o Cine-Theatro Paramount, de acordo com Inimá Simões (1990, p.16-18),
Otávio Gabus Mendes e Guilherme de Almeida não pouparam elogios às modernas
técnicas adotadas, assim como à sua luxuosidade. Guilherme de Almeida, na crítica
publicada em O Estado de São Paulo, dizia que:
A concepção suntuosa das salas e o luxo ostentado parecem avalizar os esforços
civilizatórios da elite local e é por isso que se insiste tanto no mérito de ser a terceira
cidade do mundo (fora dos EUA) e primeira da América do Sul a contar com tal engenho.
Isso já a coloca num patamar acima do habitual, equiparando-a a outras metrópoles (grifo
nosso).

Através da crítica positiva ao novo espaço, o parecer do poeta demonstra


claramente as intenções civilizatórias da elite paulistana. A instalação de uma casa desse
porte (equiparando a capital paulista a outras metrópoles norte-americanas e da América do
Sul) na Av. Brigadeiro Luís Antônio só vem confirmar a tendência dada àquela avenida
desde o início do século, de espaço a ser usufruído pelas classes abastadas. Isso, contudo,
não isenta a rua das consequências da crise econômica de fins dos anos 1920. É de se
supor, inclusive, que o próprio encerramento das atividades do Palace Theatre tenha a ver
com a incapacidade de gerir o negócio num momento de queda da capacidade de consumo
dos paulistanos. Por outro lado, a entrada de uma empresa no mercado da embrionária
“indústria cultural” e focada em demandas mais seletas é sinal dos novos tempos. Então,
somente os grandes empreendimentos sobreviveram.
Ainda que os números relativos às atividades produtivas identificadas entre o biênio
1922-23 e o ano de 1927 tenham registrado um movimento ascendente, a permanência de
poucos agentes no período posterior é indicativa de que nem tudo correu tão bem quanto se
esperava. A impressão que se tem através da observação dos anos até aqui analisados é de
que uma grande euforia tomou conta dos pequenos e médios empreendedores, levando
cada vez mais pessoas a investirem seus recursos em qualquer atividade que parecesse
promissora. Isso explica a abertura de novos negócios em segmentos que aparentemente já
se mostravam saturados, particularmente as inúmeras casas de secos e molhados, as
fábricas e lojas de calçados e as confecções de roupas. A economia do bairro, de uma
maneira geral, girava em torno do comércio e da prestação de serviços, e o sucesso ou
insucesso das empreitadas dependia dos possíveis consumidores no próprio bairro ou nos
bairros vizinhos. De outro lado, nos últimos anos da década de 1920, a população de São
Paulo já sofria os efeitos do desequilíbrio crescente entre a produção cafeeira e a
exportação daquele produto – a recessão, as falências e as concordatas fatalmente
conduziram à inflação e ao desemprego. Os negociantes e moradores do Bexiga, inclusive
aqueles da “área nobre”, não seriam exceção. Porém, ainda que os tempos fossem de
dificuldades financeiras, sempre é necessário levar em consideração a possibilidade de
esses negociantes terem migrado para outras regiões da cidade.
Agora vejamos como se portam outras atividades produtivas desenvolvidas naquela
região. O setor alimentação manteve sua liderança no mesmo patamar, com igual número
de anúncios (48). Contudo, alguns segmentos cederam lugar a outros. Esse foi o caso
principalmente do comércio de secos e molhados, cujos anunciantes caíram de 24 para 16.
O mesmo pode ser observado em relação aos molhados finos, envolvendo três novas casas.
Observa-se também um comércio de laticínios; no entanto, decaíram em número as
confeitarias, reduzidas a três casas, bem como a ausência de certos anúncios de bares e
botequins, bilhares, quitandas, sorveterias e comércio de embutidos (presuntos, salames,
salsichas e conservas de carnes) – se não fecharam, deixaram de anunciar. Por outro lado,
se a única quitanda presente em 1927 desapareceu, agora temos a introdução de sete casas
destinadas ao comércio de frutas.
ATIVIDADES TOTAL
ALIMENTAÇÃO, ALOJAMENTOS E LAZER 48
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 27
COMÉRCIO EM GERAL 19
SAÚDE 16
SERVIÇOS PESSOAIS 13
ARTES E OFÍCIOS 12
CONSTRUÇÃO CIVIL 11
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 9
TRANSPORTE 9
OFICINAS E MANUFATURAS 8
COM. APAR. ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIP. DOMÉSTICOS E PROFISSIONAIS 4
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO 3
AGENTES COMERCIAIS 3
EDUCAÇÃO 2
TOTAL 184

Tabela 31 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1931. Fonte: Acervo Digital FBN.

Mas será que essas frutarias só vendiam frutas? A não ser que se tratasse de
comércios de dimensões muito reduzidas, onde seus proprietários dispusessem de poucos
recursos, é difícil imaginar que pessoas estabelecidas em endereços razoavelmente
privilegiados, investissem no comércio de um único produto. Não se pode esquecer que a
implantação de qualquer tipo de negócio implicava, pelo menos, em gastos com taxas à
Prefeitura e com o aluguel do imóvel (que naquelas ruas não devia ser barato). Entretanto,
esta é apenas uma suposição, pois embora esse raciocínio pareça lógico, não há como
avaliar sua veracidade. O fato é que esse foi um dos poucos casos significativos de
aumento de atividades relacionadas à alimentação, só secundado pelos açougues que, dos
cinco estabelecimentos existentes em 1927, passaram a nove. Cinco desses proprietários de
açougues eram realmente novos no bairro e pouco acrescentam à realidade daquele
momento. Porém, os quatro restantes dão indícios sobre o momento em que ali atuaram.
Pedro Elias, embora fosse aparentemente novo no bairro, possuía, além do açougue da rua
Jaceguai, um outro na rua Conselheiro Ramalho n.30. Seraphino Benedetti estava
estabelecido na Av. Brigadeiro Luís Antônio desde 1921. O primeiro negócio funcionou no
n.234 e, a partir de 1924, no n.274; em 1931, o açougue possuía uma filial no número 372
da avenida, além de uma outra casa na rua Vergueiro n.212, no bairro de Vila Mariana.
Nesses casos, o fato de ambos possuírem mais de um estabelecimento leva a crer que
tivessem uma posição privilegiada em relação aos demais, portanto estariam,
supostamente, mais aptos a lidar com as dificuldades impostas pela crise econômica. Já
Francisco Minelli, com açougue no n.90 da rua Francisca Miquelina, possuía seu negócio
desde 1921, sendo que naquele ano o endereço fornecido ao Almanaque era no n.88A.
Entre 1924 e 1927, o estabelecimento aparece como sendo de propriedade de Marcello
Minelli, voltando a Francisco em 1931. Esse era um típico negócio de família... Por fim,
Raphael Marco era o açougueiro mais antigo e esteve sempre no mesmo local, desde 1913.
Encontrei em 1919 uma informação interessante a seu respeito, que diz algo acerca do
comportamento dos comerciantes (desta e de outras paragens) e do controle exercido pelos
órgãos públicos (federais e estaduais) sobre o comércio de produtos alimentícios. Nessa
ocasião, Marco, “proprietário do açougue Aguia, sito a avenida Luís Antonio n.196”,
sofreu uma autuação “pela infracção da tabella do Commissariado”, a qual resultou em
multa de 200$000 réis125. A infração referia-se à venda de gêneros alimentícios por preços
superiores à tabela126. O informe veiculado pelo jornal inclui, além de Raphael de Marco,
outros comerciantes voltados ao setor de alimentos na Av. Brigadeiro Luís Antônio:
Antônio dos Santos Mattos, proprietário da Casa Santo Antonio (n.236), José Fernandes
Baptista (n.156), Francisco Caporal Netto, proprietário do Empório Caporal (n.244) e José
Fernandes Vicente, dono do Empório e Confeitaria Fernandes (n.106). Para os dois

125
Informe divulgado pela Junta de Alimentação Pública, no jornal O Estado de São Paulo, 26/06/1919.
126
De acordo com o Suplemento do Diário Oficial da União, para alguns municípios de Minas Gerais, de
30/10/1919,“A venda de generos por preços superiores aos desta tabella sujeita os vendedores á pena do
200$ a 50:000, nos termos do art. 8º do decreto lei 13.193 de 13 de setembro de 1918, e, no caso de
reincidencia, á de prisão acrescida ou não de multa, podendo tambem ser-lhes cassada a licença para
commerciar, de accordo com o art. 10 do mesmo decreto”. Disponível em:
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/1878368/pg-57-secao-1-diario-oficial-da-uniao-dou-de-30-10-
1919/pdfView.
últimos, se tratava de intimação para comparecimento na sede da Junta, certamente para se
explicarem.
A Junta de Alimentação Pública, entidade vinculada ao Comissariado da
Alimentação Pública e derivada do Decreto 15.493 de 13/09/1918, estabelecia as regras de
controle da produção de gêneros alimentícios de primeira necessidade, distribuição e
preços praticados pelos comerciantes127. Poucos dias após a promulgação do decreto
presidencial, O Estado de São Paulo informava que a tabela de preços dos gêneros de
primeira necessidade organizada pela Junta naquela ocasião seria submetida ao prefeito da
capital paulista, para então serem tomadas as providências para a sua implementação. Em
23 de outubro do mesmo ano, o Prefeito Washington Luís assinou o Ato n.1267128,
mandando “regulamentar a tabella de preços máximos porque podem ser vendidos a
varejo os generos de primeira necessidade nella contemplados” e incumbindo “aos
administradores e zeladores de mercados e á administração municipal fazer observar (...)
a tabela”.
A decisão de controlar os preços de produtos essenciais para alimentação se deveu
ao abuso praticado pelos comerciantes de maneira geral. Assim, a autuação sofrida por
Raphael de Marco e outros comerciantes do Bexiga é um sinal de que a administração
municipal procurava cumprir seu papel coercitivo. Se as medidas adotadas pela
municipalidade tiveram êxito é uma outra questão. Aparentemente, à medida que a cidade
crescia e os habitantes se multiplicavam, tudo indica que esse controle tenha sido cada vez
mais difícil, quando não inviável.
Finalmente, a análise dos números referentes à alimentação demonstra a perda de
espaço do setor na área nobre do bairro. Até a introdução de segmentos como molhados
finos e laticínios, aparentemente indicativos de um certo refinamento nos hábitos de
consumo, na verdade pode ser vista mais como uma tentativa de “criar um hábito” e
ampliar a capacidade de venda do que outra coisa. De todo modo, se mantém a primazia da
Av. Brigadeiro Luís Antônio (com 26 atividades) sobre as demais vias da região, inclusive
sobre a rua Santo Amaro, esta com apenas seis negócios.
Na sequência dos negócios dedicados à alimentação, o setor dos serviços pessoais
cede espaço para vestuário e acessórios, com 27 atividades. Aqui, a liderança ficou por
conta do comércio de chapéus para senhoras e crianças e das alfaiatarias, cada qual com

127
“Attribuições do Commissariado da Alimentação, Decreto assinado pelo Senhor Presidente da Repúbica.
A nova tabela de preços”. In O Estado de São Paulo, 14 e 16/09/1918.
128
Acto 1267, de 23 de outubro de 1918. Disponível em:
http://camaramunicipalsp.qaplaweb.com.br/iah/fulltext/actos/A1267-1918.pdf. Consulta em: 09/12/2013.
oito e cinco negócios. Porém, as modistas, modas, confecções e oficinas de costura não
fizeram feio, concentrando 10 negócios. Enquanto isso, o comércio e a fabricação de
calçados reduziram-se a menos da metade do período anterior, passando de 13 para 5
casos.
O relativo avanço das atividades vinculadas à confecção e ao comércio de roupas
faz pensar nos motivos que levaram ao aumento no número de negócios, contrariando as
tendências do momento de queda do consumo.
A migração de profissionais de outras áreas da cidade para a região, talvez em
busca de aluguéis mais baratos ou de consumidores de maior poder aquisitivo (moradores
na área de influência da Av. Brigadeiro Luís Antônio, Av. Paulista, Morro dos Ingleses e
Jardim América) é uma hipótese que, entretanto, não se confirmou. De outro lado, em
tempos difíceis, “costurar para fora” podia ser uma opção de sobrevivência para quem não
dispusesse de outros meios para ganhar a vida, e localizei nove oficinas de costuras que
poderiam se encaixar nesse perfil, oito delas estabelecidas na Av. Brigadeiro Luís Antônio.
Até os anos 1950 era muito comum as mulheres possuírem máquina de costura em casa
que, em horas de “aperto”, poderiam fazer pequenos serviços que auxiliassem nas despesas
domésticas. Certamente muitas mulheres fizeram disso um ofício 129. Essa parece ser uma
explicação coerente, onde a combinação entre a necessidade de sobrevivência, o saber
específico do ofício e a existência de uma potencial clientela justifica o crescimento do
setor. Por outro lado, a gratuidade dos anúncios no Almanaque Laemmert garantia a
divulgação dessas profissionais, sem maiores gastos.
Os alfaiates do Bexiga formam uma categoria à parte. Em toda a extensão do
bairro, incluindo o Bexiga “italiano” no loteamento original, localizei durante todo o
período investigado nada menos do que 36 profissionais, sendo que aqueles da “área
nobre” corresponderam a aproximadamente 45% desse total.
Mais do que pelo elevado número de profissionais no bairro, a atividade se destaca
pela especialização do ofício. Se no período investigado, a tendência era de as costureiras
aprenderem o ofício junto de parentes (mães, avós ou tias), no caso dos alfaiates o
aprendizado costumava ser junto a profissionais já estabelecidos e envolvia um longo
processo até que o aprendiz estivesse pronto a exercer o ofício.

129
O assunto foi explorado por Wanda Maleronka no livro Fazer roupa virou moda: um figurino de
ocupação da mulher, São Paulo: Editora SENAC, 2007; Haim Grünspun também se refere às oficinas de
costura: “Não havia casa no Bexiga em que não houvesse máquina de costura Singer e alguém costurando.
Além de costura para casa, havia costureiras famosas, com aprendizes, e que costuravam para casamentos”.
In GRÜNSPUN, Haim – Anatomia de um bairro. O Bexiga, São Paulo: Livr. Cultura Editora, 1979, p.88-89.
Conforme Haim Grünspun, no bairro do Bexiga, a grande maioria dos alfaiates se
dedicava à reforma de calças e paletós e raramente à confecção de ternos novos, estes
geralmente confeccionados para “... fregueses de fora do Bexiga. (...) O alfaiate cortava e
costurava o paletó e tinha alguns ajudantes e aprendizes que até comiam na casa”. O
autor não esclarece quem eram esses profissionais e em que ruas estavam locados, mas
tudo leva a crer que estivesse se referindo ao espaço compreendido entre as ruas Santo
Antônio e Major Diogo (Grünspun, 1979, p.25-26,89), excluindo assim o trecho entre a rua
Santo Amaro e a Av. Brigadeiro Luís Antônio, justamente a área objeto deste item do
presente capítulo. De todo modo, ainda que esses espaços fossem portadores de diferenças
relevantes, acredito que o universo social dos profissionais “da costura” não difira muito de
uma área para a outra. E mais, a referência do autor aos “fregueses de fora” do bairro
parece indicar que pelo menos parte das atividades produtivas dali se destinassem a suprir
necessidades da cidade de São Paulo como um todo.
Embora em 1931 o número de alfaiates ainda se mantivesse proporcionalmente alto
em relação aos demais segmentos do ramo vestuário, restaram poucos dos nomes
identificados em outros anos da pesquisa. O mais antigo era Pedro Tessarina (ou
Tessarini), desde 1913 estabelecido na Av. Brigadeiro Luís Antônio, alternadamente nos
números 182, 202 e 30. A oficina de Pedro de Luccia funcionou desde 1917 no mesmo
local, na rua Asdrúbal do Nascimento n.11; entre 1924 e 1927 os anúncios referentes à
alfaiataria estão em nome de Victor Manoel Lucci (um provável parente), retornando ao
nome de Pedro de Luccia em 1931. De 1917 também é o primeiro registro da Alfaiataria
Bela Vista de Januario e Gervasio Abatte, na rua Santo Amaro n.52. O último alfaiate
registrado anteriormente foi Nicola P. Stopelli. Inicialmente, em 1924, sua oficina
funcionava no n.130 da rua Santo Amaro, mas em 1931 ela se mudou para o n.134 da
mesma rua.
O setor de chapéus para mulheres e crianças destacou-se numa única quadra –
exatamente quatro estabelecimentos, nos números 2, 10, 21 e 22 da Av. Brigadeiro Luís
Antônio. A quinta casa registrada localizava-se na rua Santo Amaro n.12. Com exceção de
Maria de Oliveira, cujo primeiro anúncio de atividade data de 1931, os demais negócios
estavam há muito tempo no local, contudo nem sempre nas mãos da mesma pessoa ou com
o mesmo tipo de negócio. O caso mais antigo é o de Maria de Léo ou mais exatamente do
endereço em que ela estava estabelecida, no n.2 da Av. Brigadeiro Luís Antônio. Trata-se
de um caso exemplar que merece ser descrito com detalhes. Entre 1909 e 1917
encontramos no local um comércio de gêneros alimentícios em nome de Nicola de Léo. De
1918 a 1920 não há registro em seu nome, que volta a aparecer a partir de 1921. Então,
tratava-se de um negócio de modas e confecções, sob o comando dos Irmãos De Léo.
Finalmente, em 1931, quem toma a frente do negócio, agora voltado ao comércio de
chapéus para mulheres e crianças, é Maria de Léo. Não há dúvidas quanto a se tratar de
membros da mesma família, o que pode ser confirmado até pela propriedade do imóvel.
Em 1917, localizei dois requerimentos encaminhados à Diretoria de Obras do município
por Nicola de Léo, na condição de proprietário dos prédios em questão. No primeiro
documento, de 27 de agosto, De Léo solicitava licença para a “transformação de uma
janela em porta, para colocação de vitrine”, no prédio de n.2 da Brigadeiro Luís Antônio;
no segundo, de 11 de setembro, a solicitação era para a transformação de uma “janela em
porta”, no prédio n.4 da mesma avenida. O prédio que iria receber a vitrine era o mesmo
da casa de modas e de confecções (1921 a 1927) e de chapéus (1931), e o outro seria
ocupado primeiro por uma oficina de costura (1917) e depois por uma casa de secos e
molhados (1924 a 1927). Os dois imóveis eram contíguos e, tanto os prédios como os
negócios, pertenciam à mesma família. Em 1931, o negócio de Nicola de Léo já não consta
mais das páginas do Almanaque Laemmert, mas Maria de Léo se mantém de alguma forma
no ramo do vestuário.
A permanência dessa família no comércio por mais de vinte anos pode se justificar
por alguns aspectos – a localização privilegiada associada à retaguarda financeira familiar.
Os De Léo, além de proprietários dos imóveis, possuíam recursos para investir nas
reformas efetuadas e em negócios dirigidos a uma clientela de luxo, caso da Casa
Parisiense. Não consegui obter informações acerca dos motivos que levaram à mudança de
ramo de Maria de Léo, mas uma consulta ao Almanaque Laemmert de 1935 demonstrou
que neste ano o negócio de chapéus se mantinha em nome das Irmãs de Léo.
A família Lacapria sucedeu Manoel Artacho, este estabelecido no local pelo menos
desde 1910, com fábrica e comércio de chapéus. Em 1917, o estabelecimento estava em
nome de Antônio Lacapria ou, como anunciado no Almanaque até 1927, Fábrica de
Chapéus de Antonio Lacapria. Porém, a divulgação do negócio passou a ser feita em nome
de José Lacapria & Filhos entre 1921 e 1923. O mesmo José Lacapria esteve envolvido
com o comércio (e possivelmente a produção) de coletes para senhoras, no mesmo
endereço (1921 e 1923). Finalmente, em 1931, encontrei aquele que parece ter sido o
último membro da família a gerir o negócio, Vicente Lacapria.
Acima, quando abordei o ano de 1927 me referi à casa Ao Pequeno Luxo, de
Georgina de Queiroz. Georgina iniciou seu negócio em 1921, com uma casa de modas e
confecções na Av. Brigadeiro Luís Antônio n.30 e, em 1923, ela mudou para o imóvel
n.22, onde ficou até 1931. Ao longo de todo o período investigado o negócio foi anunciado
como modas e confecções, modistas, coletes para senhoras e oficinas de costura, porém,
em 1931 passou a ser classificado apenas como chapéus para senhoras e crianças. O local
da casa de Georgina de Queiroz, na primeira quadra da Av. Brigadeiro Luís Antônio,
remete à Francisca de Paula Souza Queiroz, a Baronesa de Limeira, proprietária do
sobrado localizado na esquina da rua do Riachuelo. O sobrenome em comum e a
proximidade fazem pensar que se tratava de mulheres da mesma família e, se isso for
verdade, o nome de família aliado à localização privilegiada pode ter colaborado para o
sucesso da modista.
Na sequência do setor do vestuário vem o comércio de artigos diversos, com 19
anúncios. Muito embora o setor tenha mantido o mesmo número de atividades do período
anterior, alguns segmentos desapareceram, dando lugar ao comércio de outros produtos,
tais como chás, ceras e sementes, lenha, perfumaria e objetos de toilette e sacos de papel.
Porém, o surgimento desse tipo de comércio na “área nobre” do Bexiga não significa que
esses artigos não tenham sido comercializados em outros momentos. A lenha, por
exemplo, era um artigo essencial para o funcionamento dos fogões à carvão, ainda
amplamente utilizados pela população mais pobre sem acesso aos modernos fogões
elétricos ou à gás130. É provável que o abastecimento do produto, tanto no bairro do Bexiga
como em toda a cidade, tivesse sido num primeiro momento através de vendedores
ambulantes e, posteriormente, através de casas comerciais especializadas ou não131.
Esse assunto merece ser aprofundado. Em 1909, a firma inglesa San Paulo Gas
Co.Ltd., que desde 1872 possuía licença para explorar os serviços públicos de iluminação
na cidade, publicou anúncio no jornal O Estado de São Paulo, onde se lia que “Esta
companhia offerece aos consumidores de gás, cujas casas se acham em posição normal
(?), um FOGÃO a GAZ proprio para familia de seis pessoas e de typo 295 dos afamados
fabricantes Richmond & C., com a installação completa pelo preço baratissimo de
160$000 (réis)”. Parece claro que essa era uma maneira da empresa agradar a seus
clientes, ao mesmo tempo em que aumentava suas possibilidades de ganho. Três anos mais
tarde, o controle acionário daquela companhia passou às mãos da Light & Power Co. Ltd..

130
SILVA, João Luís Máximo da – “Transformações do espaço doméstico – O fogão a gás e a cozinha
paulistana, 1870-1930”. In Anais do Museu Paulista, jul./dez. Ano 15, n.2, 2007, p.210.
131
Luís Americano se refere ao homem, “sempre de raça branca”, que fazia a entrega dos sacos de carvão nas
portas das casas e ao carro com “lenha bruta, vindo de Santo Amaro, puxado por junta de bois“, que fazia a
entrega do produto de porta em porta. In São Paulo naquele tempo (1895-1915). 2ª Edição, São Paulo:
Carenho Editorial/Narrativa Um/Carbono 14, 2004, pp.99-111.
Porém, a responsabilidade pela distribuição de gás doméstico permaneceu em nome da San
Paulo Gas Co. Ltd., enquanto a Light ficou com a iluminação e o transporte público.
As ambições expansionistas da Light foram beneficiadas pelas medidas sanitárias
implementadas pelo poder público através do Código Sanitário de 1918 e do Padrão
Municipal de 1920. Conforme João Luís Máximo (2007, p.207), neste documento a
legislação procurou definir como “deveria ser a cozinha, estabelecendo tamanho, forma
de circulação e materiais utilizados”, de forma a disciplinar a higiene e a salubridade
desses espaços. Assim, na medida em que a municipalidade intervinha mais rigorosamente
no interior doméstico, parece ter se ampliado as possibilidades de sucesso da companhia
distribuidora de gás, que oferecia serviços e produtos condizentes com as condições
propostas pela lei: “fogão a gaz mais seguro, mais ligeiro, mais fresco e mais limpo”;
além de tudo, “mais economico do que qualquer outro fogão”132.

Figura 58 – O Estado de São Paulo, 08/07/1934.

Figura 59 – O Estado de São Paulo, 17/11/1933.

Contudo, apesar dos esforços empreendidos pelo poder público e pela prestadora de
serviços, os fogões a lenha e a carvão continuaram a ser utilizados. É o que se depreende
dos anúncios veiculados pelo Estado de São Paulo nos anos 1930.

132
O Estado de São Paulo, 03/04/1932.
Em 1890, quando o comércio da cidade era todo localizado nas ruas do Triângulo, o
segmento de chás, ceras e sementes era comercializado em casas como a Loja da China, A
Flor Paulista ou a Loja do Japão, lojas que se distinguiam pela variedade de produtos
oferecidos – plantas, artigos de Carnaval, fogos de artifício, etc133. Passados quarenta anos,
Angelo Pelegrino, até então especializado em produtos para calçados, decide diversificar a
linha de produtos de seu estabelecimento, passando a negociar também com chás, ceras e
sementes. Esse foi o único caso encontrado no bairro do Bexiga.
Novidade no Almanaque são as loterias e os belchiores134, pelo menos na “área
nobre”, o que não significa que não existissem. Em relação às casas lotéricas, o Almanak
da Provincia de São Paulo para 1873135 já indicava sua presença na rua do Comércio e na
rua da Imperatriz no centro da cidade, e, em 1929, o jornal O Estado de São Paulo dava
notícias sobre um certo Adolpho Schiller, comerciante “conhecido como receptador de
objetos roubados”, revendidos em seu estabelecimento Casa de Occasião136. O negócio de
Schiller funcionou na Avenida São João n.320 e no Largo do Paissandú n.48A e,
independentemente da ilegalidade do empreendimento, comprova a presença do comércio
de artigos usados na cidade desde muito cedo.
Entre os segmentos voltados para o comércio em geral, as seis casas de armarinhos
embora tenham perdido dois estabelecimentos, se mantêm como o segmento que
concentrou mais atividades no ano de 1931. A maioria, como era de se esperar, localizadas
na Avenida Brigadeiro Luís Antônio e, diferentemente do ocorrido com as chapelarias,
mais distantes do centro, aproximadamente entre as ruas Maria José e Treze de Maio.
Destas, vale destacar o caso de Oscar Estefano, da Casa Mimosa. A primeira impressão
que se tem ao cotejar as informações contidas em diferentes números do Almanaque
Laemmert a respeito de Oscar Estefano é que, a princípio, a sua Casa Mimosa era
especializada no comércio de calçados, e que em 1931 ele tenha optado pela mudança de
ramo, passando a comercializar artigos de armarinhos e fazendas. Entretanto, entre 1913 e
1927 ele já possuía loja na rua Conselheiro Ramalho n.174, onde explorava diversos ramos
de comércio: armarinhos e fazendas, calçados, roupas brancas e roupas feitas. Não
encontrei outras notícias a seu respeito, mas tudo indica que o momento de crise tenha

133
Almanach do Estado de São Paulo, para 1890. Por Jorge Seckler. Sétimo Anno, São Paulo, Editores-
Proprietarios Jorge Seckler & Comp., p.171.
134
Conforme o Dicionário Aurélio, o termo de refere ao comércio de objetos usados, também conhecido
atualmente como ‘brechó’.
135
Almanak da Provincia de São Paulo, para 1873. Organizado e publicado por Antônio José Baptista de
Luné e Paulo Delfino da Fonseca. Primeiro Anno. São Paulo, Typographia Americana, 2 - Largo de Palacio -
2, 1873. Edição fac-similar, Imprensa Oficial do Estado-IMESP, 1985, p.119.
136
O Estado de São Paulo, 02/07/1929.
levado Estefano a encerrar o negócio da rua Conselheiro Ramalho, mantendo somente a
loja da Av. Brigadeiro Luís Antônio. O fato é que em 1935, Oscar Estefano ainda tinha sua
casa de armarinhos na Brigadeiro Luís Antônio, só que agora no n.214.
No período pós 1927, o setor da saúde confirma uma tendência que vinha se
delineando desde 1923, de queda no número de profissionais liberais, médicos e dentistas.
Dos cinco dentistas residentes na Av. Brigadeiro Luís Antônio, restaram somente três
profissionais. Chamou a atenção o fato de dois profissionais apresentarem o mesmo
endereço, levando a crer que se tratava de pessoas que alugavam espaços em casas de
família137, prática que parece ter sido comum aos profissionais em início de carreira. Assim
sendo, é compreensível que não permanecessem muito tempo no mesmo local. A lógica é
que, tão logo tivessem condições, buscassem endereços que lhes garantissem mais
privacidade.
Entre os três dentistas que anunciaram seus serviços no Almanaque de 1931,
Antônio Dias de Arruda era o único a morar no mesmo local há muitos anos, mais
precisamente a partir de 1918. Já os quatro médicos que restaram na região, com exceção
de Gabriel Raja de quem falei acima, três eram novatos no local. No entanto, o próprio
Raja mudou três vezes de endereço ao longo do tempo em que morou na Av. Brigadeiro
Luís Antônio.
Se médicos e dentistas abandonaram as páginas do Almanaque de 1931, as
parteiras parecem ter percorrido um movimento inverso, já que nesse ano houve um
acréscimo de duas. Mas mesmo a presença dessas profissionais não era uma constante.
Fazendo um balanço nos nomes anunciados entre 1927 e 1931, concluí que nenhuma das
parteiras presentes em 1931 estava ali no período anterior.
Desde o final do Império, pelo menos em teoria, só poderiam exercer a profissão de
parteira as pessoas portadoras de diplomas reconhecidos pelas escolas de medicina do país.
Nas últimas décadas do século XIX, frente aos inúmeros problemas decorrentes de
procedimentos obstétricos sem as necessárias condições de higiene e segurança, e a
consequente morte de bebês e parturientes, ainda se discutia a necessidade de
regulamentação da profissão, atitude compartilhada por profissionais da classe médica e
pelo estado138. Entretanto, até a década de 1930 os partos eram realizados majoritariamente

137
A presença de pessoas que apresentavam o mesmo endereço, particularmente médicos, foi um fato comum
no período analisado, havendo diversos exemplos de profissionais liberais nessa condição.
138
A historiadora Maria Lucia Mott analisou as inúmeras iniciativas no sentido de regulamentação da
profissão das parteiras. Entre elas, destacamos aquela da Escola Livre de Farmácia, Odontologia e Obstetrícia
de São Paulo: “Em 1903, uma representação da ELFOO forneceu ao Congresso um esboço de regulamento
sobre o exercício profissional de farmacêuticos, dentistas e parteiras que, depois de uma série de discussões e
por parteiras leigas (Mott, 2001, p.52). Não sabemos até que ponto as profissionais que
anunciavam seus préstimos nos almanaques e nos jornais realmente possuíam os diplomas
exigidos por lei, o fato é que sua presença no bairro do Bexiga e em toda a cidade era uma
realidade. Por outro lado, dar à luz em hospitais e maternidades só passou a ser uma prática
efetivamente recomendada pelos médicos a partir dos anos 1930. Até então, além de
haverem poucos locais destinados ao atendimento de parturientes, ter filhos em casa era
um hábito das mulheres, fossem elas pobres ou ricas139.
Os serviços pessoais, que em 1927 somavam 37 atividades, reduziram-se
drasticamente em 1931, passando a constar somente 13 anúncios, 10 deles representados
por barbearias. O curioso é que enquanto todo o bairro do Bexiga contou com 85
profissionais ao longo do período investigado, apenas 17 barbeiros atuaram na “área
nobre” entre a rua Santo Amaro e a Av. Brigadeiro Luís Antônio. Essa ausência pode ter
relação com o fato de raramente os negociantes serem proprietários dos imóveis onde
funcionavam seus negócios, estando assim sujeitos a reajustes de alugueis nem sempre
compatíveis com seus ganhos. Quando se tratava de negócios de vulto e com clientela
garantida, o retorno do capital aplicado em instalações, aluguel, taxas e no próprio estoque
podia garantir a sua permanência. Esse, provavelmente não era o caso dos barbeiros que,
via de regra, tinham estabelecimentos de pequeno porte. Mesmo que a clientela da região
de influência da Av. Brigadeiro Luís Antônio fosse supostamente mais rica e garantisse o
ganho do dia a dia, os barbeiros ainda teriam que lidar com a concorrência dos
profissionais estabelecidos em outras ruas do bairro, que não eram poucos. Entre todos os
barbeiros que tiveram negócio naquela região, localizamos somente um que
comprovadamente era dono do imóvel no qual trabalhava. Tratava-se de Vicente Laporta
que, em 06/12/1923, solicitou licença para a construção de “uma divisória de madeira no
salão de barbeiro” de sua propriedade, no n.33 da Av. Brigadeiro Luís Antônio140, onde
ainda o encontramos atuando em 1931. Nesse ano, apenas dois barbeiros estavam no

modificações, foi aprovado cinco anos mais tarde pelo legislativo paulista, em 1908. Pelo novo regulamento
só poderiam exercer a profissão de parteira no Estado: 1) as mulheres diplomadas pela ELFOO de São Paulo
ou por qualquer das escolas oficiais ou equiparadas da União; 2) as parteiras diplomadas por escolas
estrangeiras que tivessem sido habilitadas perante as mesmas escolas do Estado ou da União, provada a
identidade da pessoa. Para exercer a profissão no Estado, a parteira era obrigada a registrar seu título na
Diretoria do Serviço Sanitário (SÃO PAULO, 1908)”. In MOTT, Maria Lucia – “Fiscalização e formação
das parteiras em São Paulo (1880-1920)”. In Revista da Escola de Enfermagem da USP, v.35, n.1, p.47,
2001. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v35n1/v35n1a07.pdf. Consulta em: 16/12/2013.
139
Ainda conforme Maria Lucia Mott, até a década de 1920, os poucos estabelecimentos voltados para o
atendimento a parturientes restringiam-se às Maternidades de São Paulo e Sant’Anna, e aos hospitais Santa
Catarina e Samaritano. In MOTT, Maria Lucia – “Assistência ao parto: do domicílio ao hospital (1830-
1960)”. Proj. História São Paulo, (25), dezembro/2002, p.206. Disponível em:
http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/10588/7878. Consulta em: 16/12/2013.
140
Obras Particulares, 06/12/1923, AHSP.
bairro há muito tempo. O mais antigo deles era Carmine Grecco que há trinta anos exercia
seu ofício na rua Santo Amaro n.228. Em 1909, Carmine estava estabelecido na Brigadeiro
Luís Antônio n.207; em 1913, no n. 221 e, a partir de 1924, ele já estava no n. 252 onde
ficou até 1931. Braz (ou Biaggio) Russo estava ali há menos tempo, desde 1921, sempre no
mesmo endereço, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio n.28; em 1931, Russo mudou-se
para a rua Santo Amaro n.148.
Vimos constatando que ao longo dos quatro anos passados, desde 1927, muitas
mudanças ocorreram no cenário dos negócios da “área nobre” do Bexiga, mas nada
surpreende mais do que o desaparecimento dos 28 advogados que residiam no local
naquele ano. Em 1931, o único advogado a divulgar seus préstimos no Almanaque
Laemmert foi Atugasmin Medici, com escritório na rua Francisca Miquelina n.1A,
provavelmente situado no segundo pavimento de um sobrado. Enquanto outros
profissionais liberais, em algum momento, abandonaram o bairro em busca de outros locais
mais apropriados para o exercício do seu ofício, geralmente na região do Triângulo, Medici
parece ter feito caminho contrário. Através dos anúncios no jornal O Estado de São Paulo,
é possível acompanhar um pouco a trajetória desse advogado.

Figura 60 – Em 1914, atuação na cidade de São Carlos “e comarcas circumvizinhas”. O Estado de São Paulo,
01/06/1914.

Figura 61 – Em 1919, com escritório na rua Líbero Badaró, 120, na Capital. O Estado de São Paulo, 04/12/1919.

Figura 62 – Em 1929, com escritório na rua Francisca Miquelina, 1-A, em “installações proprias”. O Estado de São
Paulo, 15/11/1929.

De acordo com o anúncio publicado em 1914, naquela data ele advogava em São
Carlos, levando a crer que provavelmente fosse natural daquela cidade141. Cinco anos
depois, Médici já se encontrava em São Paulo, com escritório na rua Líbero Badaró
n.120142, onde parece ter estado até aproximadamente 1929. Nesse ano, o advogado
divulga a localização do novo escritório, agora no bairro do Bexiga. A referência à pouca

141
O Estado de São Paulo, 01/06/1914.
142
O Estado de São Paulo, 04/12/1919.
distância do centro parece querer tranquilizar os clientes quanto ao possível aborrecimento
que um deslocamento maior provocasse, o que também pode ser visto como um sinal de
que esse não seria o endereço esperado para profissionais bem sucedidos e competentes.
Por outro lado, o fato de se tratar de “instalações próprias” indica que Médici, àquela
altura, já era um profissional bem sucedido e competente, inclusive proprietário do imóvel.
Em relação às atividades vinculadas ao setor de artes e ofícios, sua distribuição pela
“área nobre” se mostrou bastante pulverizada em 1931. Para cada um dos segmentos que
compunham o setor, identifiquei um máximo de duas atividades, quando muito, sendo que
algumas delas deixaram de existir. Esse foi o caso dos profissionais ligados à música
(maestros, professores de música, professores de piano, professores de violino e afinadores
de piano e órgãos), às artes pláticas (oficinas de gravuras e professores de pintura).
Das atividades restantes, vale a pena destacar o caso de dois estabelecimentos que,
de alguma forma, vinculavam-se à fotografia. O primeiro deles, da firma Kodak Brasileira
Ltda., localizada no n.96D da Av. Brigadeiro Luís Antônio, indica a entrada da empresa
americana de materiais fotográficos em São Paulo. A Kodak possuía escritório de
representação no Rio de Janeiro desde 1920 e, embora o histórico fornecido pelo site da
Kodak143 só se refira à instalação da empresa em São Paulo a partir de 1954 (“com a
aquisição da fábrica Wessel, em Santo Amaro” e, em 1958, com a transferência do
escritório central do Rio de Janeiro para São Paulo), o anúncio no Almanaque Laemmert é
uma prova inquestionável de sua presença na cidade desde os primeiros anos da década de
1930. Não consegui mais informações acerca da atuação da empresa na cidade, a não ser
que em 1935 seu endereço passara a ser no n.72A da Av. Brigadeiro Luís Antônio.
Da mesma forma que o escritório da Kodak, o estúdio fotográfico de Raphael (de)
Castro também funcionava na Brigadeiro Luís Antônio, no n.172. Infelizmente, também
foram raras as informações sobre esse fotógrafo. O jornal O Estado de São Paulo de 11 de
agosto de 1929, na seção dedicada às “Notícias do Rio”, informa, sem especificar a data do
ocorrido, que “esteve no Cattete o senhor Raphael de Castro afim de agradecer ao chefe
da Nação a visita que fez á sua exposição de photographia instalada na sede da
Polyclinica Geral do Rio de Janeiro” 144. Embora a nota do jornal comprove a existência
do fotógrafo, não fornece outras referências a seu respeito – se era um profissional
conhecido, se era natural do Rio de Janeiro, etc. Contudo, a partir dessa informação, é de

143
Disponível em: http://www.kodak.com.br/ek/BR/pt/Our_Company/Historia_da_Kodak_Brasileira.htm.
Consulta em: 18/12/2013.
144
O Estado de São Paulo, 11/08/1929, p.2.
se imaginar que Castro tivesse algum destaque para merecer uma exposição que seria
visitada pelo próprio Presidente da República.
As demais atividades produtivas registradas no Almanaque de 1931, pouco
acrescentam ao quadro apresentado até agora. A exceção relevante ficou por conta do setor
de manufaturas, reunindo três fabricantes de caixas de papel e papelão, um fabricante de
bilhares, um fabricante de cera para assoalho, um joalheiro e um gravador.
O Bexiga não foi um bairro caracterizado pela existência de fábricas, mas pela
presença de pequenas manufaturas, geralmente instaladas em galpões nos fundos dos
terrenos. Uma grande parte dos setores produtivos aqui examinados em função de
necessidades básicas da população (alimentação, artes e ofícios, construção civil,
transporte, vestuário e acessórios etc.) envolveu algum tipo de manufatura. Porém, aqui
interessam, particularmente, os casos desvinculados das atividades típicas do bairro. Trata-
se da fabricação de artigos específicos, que poderiam alimentar atividades produtivas
desenvolvidas em outras regiões da cidade. Um caso exemplar é aquele das fábricas de
papel, papelão, ou mesmo de caixas de papelão, estas utilizadas em embalagens para
sapatos, sabonetes, cobertores, ampolas para remédios, frutas para exportação e toda sorte
de produtos que se possa imaginar. A julgar pelas inúmeras comunicações publicadas no
jornal O Estado de São Paulo, nos anos 1910, pelos navios que chegavam ao porto de
Santos carregados de mercadorias importadas, o papel, o papelão e as caixas do mesmo
material estavam entre os artigos importados. Isso leva a crer que até aquela década,
industriais e comerciantes dependiam, ao menos parcialmente, da importação desse
material para a embalagem de seus produtos145. Entretanto, desde 1920 há anúncios
relacionados à fabricação de caixas de papelão, ora divulgando os fabricantes, ora
buscando empregados especializados para o exercício do ofício.

Figura 63 – O Estado de São Paulo, 23/06/1923.

145
Esse foi o caso do vapor alemão “Hohenstaufens”, proveninte de Hamburgo. Entre as encomendas
trazidas pelo navio havia: “22 caixas de papelão (...) à ordem”; “6 fardos de papelão (...) à ordem”; “2
caixas de papel (...) a Stupakoff & Cia.”; “2 fardos de papel (...) a Pedro dos Santos & Cia.”; “2 caixas de
papel (...) a Guilherme Gerch”; “4 caixinhas de papelão (...) a ordem”; “1 caixa de papel (...) a ordem”; e
“20 fardos de papel (...) e 1 caixa de papel (...) a Riechmann & Cia.”. In O Estado de São Paulo,
08/07/1910.
Figura 64 – O Estado de São Paulo, 21/06/1931.

Datam de 1931 os registros de três estabelecimentos dedicados ao comércio e


manufatura de papel e de caixas de papelão no Bexiga. Do primeiro fabricante, instalado
na rua Santo Amaro n.72, não há informações além do anúncio. Já a firma Amadeu
Andrade & Cia. possuía fábrica e depósito de papel e papelão na rua Asdrúbal do
Nascimento n.1, e antes disso estava envolvida com a exportação do produto, já que em 18
de fevereiro de 1927 o jornal O Estado de São Paulo notificou o encontro havido entre
Getúlio Vargas e os exportadores de papel para discutir a elevação “para 300 réis (d)a
taxa de papel para escrever”. Entre os exportadores presentes estava Amadeu Andrade146.
Pacheco, Rizzo & Cia. Ltda., estabelecido no n.94A da Av. Brigadeiro Luís
Antônio, comprou o negócio já montado em 1925. De acordo com o comunicado de 08 de
agosto daquele ano, tratava-se da venda da filial paulista da fábrica de caixas e cartuchos
de papelão ondulado da firma carioca de J. Costa Ribeiro, naquela ocasião instalada no
n.57 da referida avenida.

Figura 65 – O Estado de São Paulo, 08/08/1925.

Um caso interessante é o de J. Pirillo & Cia., proprietário da fábrica de bilhares


Taco de Ouro. A primeira notícia a respeito de uma firma com essa denominação data de
1913 e se refere à “demolição do prédio do salão de bilhares Taco de Ouro, na rua da Boa
Vista, 52”147. Em 1918, consta nas páginas do Almanaque Laemmert, o anúncio da fábrica

146
Confirmamos o envolvimento de Amadeu Andrade com negócios de importação e exportação através do
Almanaque Laemmert de 1926. Naquele momento Andrade possuía escritório na rua do Riachuelo, 130.
147
O Estado de São Paulo, 13/01/1913.
de bilhares Taco de Ouro, de Januario Pirillo, então localizada no Largo General Osório
n.29. Dois anos depois, Pirillo:
Proprietario da GRANDE FÁBRICA DE BILHARES “TACO DE OURO” comunica que
(...) transferiu o seu estabelecimento industrial do largo General Osorio ns. 27 e 29 para
edificios e terrenos de sua propriedade á rua Maestro Cardim n.1 esquina da rua Pedroso,
ficando o escriptorio funccionando provisoriamente em sua residencia á rua Pedroso
n.13148.

Figura 66 – Impresso da Fabrica de Bilhares “Taco de Ouro”, de Januario Pirillo. Imagem s/data 149.

Em 22 de novembro de 1933, a matéria publicada no jornal Correio de São Paulo,


intitulada “Absolvição de um conhecido industrial paulista”, notificava a sentença em
favor do industrial e comerciante J. Pirillo S. Filho, em processo movido contra ele pela
Companhia Brunswick do Brasil. Conforme o anúncio publicado no jornal O Estado de
São Paulo, em 1929, tratava-se de um fabricante de mesas de bilhar, e a frase abaixo do
desenho da mesa – “não confundir os verdadeiros Brunswick’s com as imitações, só
iguaes na apparencia” – dá pistas sobre os motivos do processo. Tratava-se de uma
disputa entre concorrentes.

Figura 67 – O Estado de São Paulo, 19/03/1929.

148
O Estado de São Paulo, 06/07/1920.
149
Esse é um impresso fixado em mesa de sinuca colocada à venda no site Mercado Livre. Disponível em:
http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-527177378-mesa-de-sinuca-taco-de-ouro-_JM. Consulta em:
19/12/2013.
Independentemente das razões que levaram ao processo, cabe destacar que nessa
ocasião a Taco de Ouro já funcionava na rua Maestro Cardim. Não é possível saber o
motivo de a fábrica ter funcionado na Av. Brigadeiro Luís Antônio n.141. Talvez Pirillo
tenha tido necessidade de reformar os “edifícios” referidos de maneira a adaptá-los para
usos industriais, o que pode ter levado um certo tempo. O fato é que a estadia de uma
grande fábrica como a Taco de Ouro na “área nobre” do Bexiga é um caso atípico no
bairro. Por outro lado, esse caso vem comprovar mais uma vez a posição privilegiada das
atividades produtivas que se estabeleceram na área de influência da Av. Brigadeiro Luís
Antônio. Tratava-se de um espaço onde, ao longo do tempo, diferentes usos se misturaram
– residências, comércio e serviços –, sem que se perdesse com isso um certo tom de
refinamento dado pela proximidade com o Centro e pela própria origem das vias em
questão, abertas por famílias tradicionais paulistas, cujo objetivo pretendia atender
interesses bem específicos de valorização fundiária do próprio patrimônio.
Por fim, há os casos de um gravador (em metal) e dois joalheiros, ambos com
oficina na Av. Brigadeiro Luís Antônio.

Figura 68 – Nesta foto da Av. Brigadeiro Luís Antônio, de 1931, é possível visualizar a placa da Joalheria Vicente
Torzillo acima da entrada da loja, no prédio n.4 da avenida. Fonte: Fundação Energia e Saneamento.
2.5.2 O “loteamento original”

 1906
Vinte e cinco anos após o lançamento do empreendimento do bairro do Bexiga, em
1881, o Almanaque Laemmert registrou um total de 9 anúncios, envolvendo dois
estabelecimentos ligados ao comércio de alimentos, dois profissionais da saúde (um
médico e um dentista), duas atividades vinculadas à construção civil (um engenheiro e um
comerciante de cimento), um pintor retratista, um advogado e um comércio de sacarias.
Conforme se pode observar na espacialização da Planta SARA Brasil referente a 1906
(Anexo 1.1), foram bem poucas as atividades, distribuídas em apenas algumas ruas:
Abolição, Conselheiro Carrão, Conselheiro Ramalho, Major Diogo, Treze de Maio e Santo
Antônio, sendo que esta última concentrou quatro casos. Embora as ruas do antigo
loteamento tenham apresentado um número superior de atividades comparativamente ao
encontrado na “área nobre” (lá, nesse período, encontramos uma única atividade), se
pensarmos tratar-se de uma área de uma área maior, percebe-se que a situação é
praticamente a mesma.
ATIVIDADES TOTAL
ALIMENTAÇÃO, ALOJAMENTOS E LAZER 2
CONSTRUÇÃO CIVIL 2
SAÚDE 2
COMÉRCIO EM GERAL 1
SERVIÇOS PESSOAIS 1
ARTES E OFÍCIOS 1
AGENTES COMERCIAIS -
COM. APAR. ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIP. DOMÉSTICOS E PROFISSIONAIS -
EDUCAÇÃO -
OFICINAS E/OU MANUFATURAS -
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO -
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS -
TRANSPORTE -
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS -
TOTAL 9

Tabela 32 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1906. Acervo Digital FBN.

Contudo, como já verificado na área de abrangência da Av. Brigadeiro Luís


Antônio, em 1906 a divulgação de serviços e comércio ainda não era uma prática corrente
entre os negociantes do bairro. Dessa maneira retomei as ocorrências da série Alvará e
Licença, entre os anos de 1906 e 1908, com o objetivo de confrontar os dados do
Almanaque Laemmert com os pedidos efetivamente encaminhados à municipalidade
(envolvendo a abertura de firmas, renovação de licença, mudança de endereços, etc.).
No decorrer desses três anos, das 63 ocorrências na Série Alvará e Licença,
constatei que somente 18 negociantes anunciaram seus préstimos nos almanaques, e ainda
assim, nenhum deles em 1906. Nos anos seguintes muitos viriam a adotar os almanaques
como forma de divulgação, mas essa visivelmente não era a regra no período analisado.
SEGMENTOS ATIVIDADES PRODUTIVAS (1906-1908) N. N. TOTAL
AÇOUGUE - 4
QUITANDAS 17
QUITANDA/ SECOS E MOLHADOS 2
22
QUITANDA/ SECOS E MOLHADOS/JOGO DE BOLAS 2
QUITANDA/ JOGO DE BOLAS 1
SECOS E MOLHADOS 5
ALIMENTAÇÃO E LAZER SECOS E MOLHADOS/ FRUTAS 1 8 55
SECOS E MOLHADOS/ JOGO DE BOLAS 2
FRUTAS - 2
JOGO DE BOLAS - 14
BOTEQUIM E BILHAR 1
3
BOTEQUIM/ JOGO DE BOLAS 2
FÁBRICA DE BEBIDAS (CERVEJA E LICORES) - 2
ARTES E OFÍCIOS CINEMATÓGRAFO - 1
3
FOTÓGRAFOS AMBULANTES - 2
COMÉRCIO EM GERAL FOGOS DE SALÃO 1 1
CONSTRUÇÃO CIVIL MARCENARIA 1 1
SAÚDE FARMÁCIAS 1 1
TRANSPORTES OFICINA MECÂNICA 1 1
VESTUÁRIO FÁBRICA DE CALÇADOS 1 1
TOTAL 63

Tabela 33 – Segmentos identificados na Série Alvará e Licença (1906-1908). Fonte: AHSP.

O interessante dessa fonte é que além de esclarecer as dúvidas a respeito dos


negócios no bairro, ela revela aspectos silenciados nos almanaques. Na tabela acima
percebemos, além da clara prevalência do setor da alimentação – as quitandas e casas de
secos e molhados concentram a maioria dos casos –, a interpenetração de atividades
(quitandas associadas a secos e molhados, estes armazéns a casas de frutas, e ambos a
jogos de bola), num emaranhado de atividades que dificultam saber onde terminava uma
coisa e começava outra. No caso dos jogos de bola é fácil perceber que se tratava do
“aproveitamento” de um negócio principal para se explorar um tipo de lazer acessível aos
moradores do bairro. Algumas solicitações indicam isso e o caso de Paulo Franciullo,
proprietário de um negócio na rua Conselheiro Carrão n.30 é exemplar. Em sua petição,
Franciullo declara que:

(...) estabelecido com armazém de secos e molhados (e) desejando fazer em seu negócio
um pequeno divertimento de jogo de bolas vem (vem) solicitar (a) licença e guia, a fim de
pague (sic) o seu imposto. Outrossim, o suplicante tem no mesmo negócio uma quitanda a
que pede (...) mandar (a) fim de que possa efetuar o referido pagamento (grifo nosso) 150.

A associação entre quitandas/secos e molhados/frutas parece demonstrar uma certa


indefinição dos negociantes envolvidos, no sentido de que talvez ainda se tratava de
tentativas de acerto, mais do que certezas. O objetivo de todos, antes de qualquer coisa,
seria desenvolver um negócio que prosperasse. A cidade crescia, a população aumentava, e
150
Série Alvará e Licença, 1911. Cx.721, AHSP.
a demanda maior era certamente por alimentos. De outro lado, pelo menos naquele
momento, o loteamento foi prioritariamente ocupado por pessoas com poucos recursos
passíveis de serem investidos em negócios de caráter definitivo. Diante da incerteza, valia
a pena tentar diversas alternativas possíveis. Porém, se era possível adotar esse
151
procedimento junto à municipalidade , o mesmo não se aplicava em relação aos
anúncios nos almanaques que pareciam possuir critérios mais objetivos para a sua própria
organização. Ali, pelo menos aparentemente, os anúncios eram agrupados de acordo com o
ramo de atividade principal, ao qual os anunciantes deveriam se integrar da melhor forma,
o que talvez explique a profusão de anúncios no segmentos dos “gêneros alimentícios”
encontrados no período analisado.
De qualquer maneira, o fato é que independentemente da fonte consultada, o setor
da alimentação mostrou-se responsável pela maioria absoluta das atividades produtivas
identificadas naquele momento, ocupando quase todas as ruas do loteamento original, mas
principalmente a Conselheiro Ramalho e a Santo Antônio. Ainda de acordo com a Série
Alvará e Licença, os demais setores tiveram presença pouco significativa, sendo
representados por uma farmácia, uma oficina mecânica, uma fábrica de calçados e um
comércio de fogos de salão 152. A exceção ficou por conta do setor de artes e ofícios, com
um cinematógrafo na rua Conselheiro Ramalho n.177 e dois fotógrafos ambulantes, ambos
moradores na rua São Domingos n.42 153.

 1909
O elevado número de anúncios publicados no Almanaque Laemmert no ano de
1909 faz crer que, àquela altura, negociantes e profissionais sediados no bairro do Bexiga
já haviam, no mínimo, se habituado à ideia de que a divulgação de seus préstimos em uma
publicação de alcance nacional seria um “bom negócio”. Por outro lado, conforme a
Tabela 34 abaixo, o levantamento dos pedidos de licença para a abertura e/ou renovação de
negócios junto à Polícia Administrativa do município, realizados entre 1906 e 1908, já

151
Até porque, no caso da Seção de Polícia e Higiene, a cada alvará concedido, correspondia uma nova taxa
a ser paga, o que sem dúvida implicava em aumento de arrecadação para o erário.
152
Convém destacar que confome a licença solicitada por Fausto Thomaz de Aquino, morador à rua
Conselheiro Ramalho n.15, esse comércio de fogos de salão se restringia ao mês de junho (período das festas
juninas). Série Alvará e Licença, 27/05/1908.
153
Em relação a esses profissionais, localizamos no jornal O Estado de São Paulo, a publicação de um
despacho aprovando a licença requerida por um deles (Raphael Basile), para “photographias instantaneas”,
com a ressalva de que o perímetro central da cidade estava excluído da licença. Conforme a solicitação
original, Raphael Basile, “morador neste endereço e desejando explorar o ramo de fotografias instantâneas,
exibindo pelas ruas e praças da Capital aparelho fotográfico com tripé, solicita a licença pelo prazo de seis
meses”. Série Alvará e Licença, 07/08/1907. O despacho aprovando o pedido foi publicado no jornal O
Estado de São Paulo, em 10/08/1907.
davam indicações da expansão das atividades produtivas no bairro, principalmente aquelas
destinadas a suprir a demanda por alimentos.
De acordo com o Almanaque Laemmert, em 1909, embora tenha se concentrado nas
ruas Conselheiro Ramalho, Rui Barbosa, Conselheiro Carrão, Major Diogo e Santo
Antônio, o setor de alimentação e lazer esteve presente em praticamente todas as ruas do
bairro. Foram 12 açougues, 4 casas de frutas, 25 comércios de gêneros alimentícios, 7
botequins e bilhares, além dos estabelecimentos voltados à produção de algum tipo de
alimento: 3 fabricantes de doces, um fabricante de massas alimentícias e um fabricante de
cerveja.
ATIVIDADES TOTAL
ALIMENTAÇÃO, ALOJAMENTOS E LAZER 53
SERVIÇOS PESSOAIS 14
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 11
COMÉRCIO EM GERAL 7
SAÚDE 4
TRANSPORTE 4
OFICINAS E/OU MANUFATURAS 4
ARTES E OFÍCIOS 1
CONSTRUÇÃO CIVIL 1
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 1
AGENTES COMERCIAIS -
COM. APAR. ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIP. DOMÉSTICOS E PROFISSIONAIS -
EDUCAÇÃO -
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO -
TOTAL 100

Tabela 34 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1909. Acervo Digital FBN.

Em comparação, o setor dos serviços pessoais, vestuário e acessórios respondeu


por relativamente poucas ocorrências, distribuídas basicamente pelas ruas Conselheiro
Ramalho, Major Diogo e Santo Antônio. O primeiro, com 12 barbearias e cabeleireiros e
uma tinturaria; e o segundo, com 2 comércios de acessórios para calçados, 4 fabricantes
de chapéus, 3 comerciantes de chapéus, uma loja de calçados e uma costureira. Nas
mesmas vias distribuiu-se o comércio em geral, dividido em 4 casas de fazendas e
armarinhos e 3 casas de ferragens, louças e tintas.
Os demais setores encontravam-se pulverizados. As oficinas e manufaturas
somaram quatro atividades: 3 funilarias, localizadas nas ruas Conselheiro Ramalho e Santo
Antônio e um fabricante de velas na mesma via; a saúde, com 2 farmácias e um dentista,
na rua Conselheiro Ramalho e uma médica na rua Major Diogo; o setor de transporte,
representado por 3 ferradores e um seleiro, distribuiu-se pelas ruas Santo Antônio, São
Domingos e Major Diogo. Por fim, encontramos um empreiteiro (construção civil) na rua
Conselheiro Ramalho, um comércio de molduras e quadros (móveis e utilidades
domésticas) na rua Santo Antônio e um encadernador (artes e ofícios).
Entre todas as atividades listadas, uma em especial chama a atenção, a fábrica de
velas localizada no n.42 da rua Santo Antônio, de propriedade da firma Garcia, Nogueira
& Cia. A fábrica pertencia aos mesmos donos da conhecida Loja do Japão, cujo endereço
naquele ano era na rua São Bento n.42. De acordo com Heloisa Barbuy, além do comércio
de artigos variados, muitos identificados com um certo exotismo oriental, a loja “mantinha
uma fábrica de velas e outra, que produzia os fósforos da marca ‘Violeta’, na rua Espírito
154
Santo” . Certamente, a fábrica de velas a que a autora se refere era esta da rua Santo
Antônio. Não é possível saber se a produção da fábrica se dava em função do
abastecimento da própria loja, mas de qualquer maneira, acredito que sua localização,
razoavelmente próxima do Triângulo e do endereço comercial da Garcia, Nogueira & Cia.,
deve ter sido conveniente para seus proprietários. Porém, de acordo com o Almanaque
Laemmert dos anos subsequentes, a fábrica permaneceu no local somente até 1910. Dali
por diante desaparecem quaisquer referências a seu respeito, no Bexiga ou em outro local.

 1914
Era o início de 1914 e a I Guerra Mundial ainda não havia sido deflagrada. Nos
primeiros dias de janeiro, o jornal O Estado de São Paulo registrava que “notícias
recebidas de Viena dizem estarem formados na Macedonia varios bandos de bulgaros e
turcos, que perseguem os servios e gregos”. Destaca ainda que “essas notícias, por serem
155
de fonte insuspeita, causaram a peor impressão possível” . Contudo, apesar da má
impressão, nada mais havia no jornal que denunciasse a proximidade da grande guerra,
nem ao menos alguma indicação de conflitos originados por interesses econômicos
divergentes entre os países que viriam a participar do conflito.
ATIVIDADES TOTAL
ALIMENTAÇÃO, ALOJAMENTOS E LAZER 128
SERVIÇOS PESSOAIS 29
COMÉRCIO EM GERAL 24
CONSTRUÇÃO CIVIL 14
SAÚDE 13
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 12
OFICINAS E/OU MANUFATURAS 9
TRANSPORTE 8
ARTES E OFÍCIOS 3
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 3
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO 2
AGENTES COMERCIAIS -
COM. APAR. ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIP. DOMÉSTICOS E PROFISSIONAIS -
EDUCAÇÃO -
TOTAL 245

Tabela 35 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1914. Acervo Digital FBN.

154
Heloisa Barbuy, em seu trabalho A cidade-exposição. Comércio e cosmopolitismo em São Paulo, 1860-
1914, traçou um histórico detalhado da trajetória da Loja do Japão, fundada em 1883, por Manoel Garcia da
Silva. São Paulo: EDUSP, 2006. p. 165-172.
155
O Estado de São Paulo, 04/01/1914, p.2.
No bairro do Bexiga, um microcosmo da capital paulista, o aumento de quase 150%
dos anúncios em relação à 1909 parece demonstrar que os negociantes e profissionais que
ali trabalhavam e eventualmente habitavam estavam confiantes nos rumos da economia e
talvez alheios à possibilidade de uma eventual guerra. Contudo, ao comparar os dados
deste ano com aqueles de 1913, quando o Almanaque Laemmert registrou 290 anunciantes
no bairro, percebe-se que as coisas já não caminhavam tão bem. De todo modo, é visível
que a grande maioria das pessoas ainda acreditava que valia à pena anunciar seu negócio.
Os segmentos ligados de alguma maneira ao setor da alimentação lideravam de
longe as atividades produtivas no Bexiga, o que já havia sido constatado na “área nobre”
do bairro. Muito atrás da alimentação vinham os serviços pessoais e o comércio em geral.
O grosso do comércio e serviços de alimentação se localizava nas ruas Santo Antônio (33),
Conselheiro Ramalho (27) e Major Diogo (20). As demais atividades se distribuíam pelas
ruas Manoel Dutra (11), Rui Barbosa (9), Treze de Maio (9), Conselheiro Carrão (5),
Fortaleza (5), Abolição (4), São Domingos (4) e Dr. Luís Barreto (1).
Daquelas 128 atividades relacionadas à alimentação, nada menos que 88 casos
representavam armazéns de secos e molhados, sendo que 52 desses estabelecimentos
também se concentravam nas ruas Santo Antônio (21), Conselheiro Ramalho (17) e Major
Diogo (14). Na sequência, as atividades numericamente mais representativas foram 15
açougues e 10 quitandas. Da mesma forma que os armazéns de secos e molhados, a
maioria dos açougues se localizava nas ruas citadas. As quitandas foram a exceção, pois
distribuíram-se mais ou menos igualitariamente por diversas ruas.
O arrolamento acima, ainda que bastante sucinto, demonstra a importância dos
estabelecimentos localizados nas vias citadas. Mas, mais do que essa constatação, ele
levanta uma questão em relação ao comércio varejista de alimentos. Até que ponto o
elevado número de atividades desse setor se dirigia exclusivamente às demandas dos
moradores do bairro ou estaria voltado para a satisfação das necessidades de moradores
dos bairros localizados no entorno e mesmo de outras áreas da cidade?
Creio que a resposta à essa pergunta deve ser buscada na realidade urbana de São
Paulo daquele momento. Desde as últimas décadas do século anterior, alavancada pela
expansão da economia cafeeira, a cidade iniciava um processo de reordenação de seus
espaços, a começar pelo próprio centro. Assim, no início do novo século, enquanto o
centro concentrou os serviços e os comércios especializados (casos, por exemplo, do setor
financeiro e do comércio de importação e exportação de artigos de luxo), os
estabelecimentos comuns destinados a suprir a demanda por produtos básicos tenderam a
se expandir em direção aos bairros mais afastados. Os arrabaldes, menos valorizados
socialmente, passaram a desempenhar funções específicas, tendo em vista fatores bem
objetivos – basicamente, as condicionantes geográficas que barateavam o preço dos
terrenos para implantação dos negócios que demandavam menores investimentos e a
localização em relação ao centro e aos bairros exclusivamente residenciais. A região
ocupada pelo loteamento original do Bexiga preenchia esses requisitos, mas
principalmente, também possuía uma população disposta a investir nos esforços
necessários à sua inserção no mercado urbano.
O Bexiga possuía uma posição privilegiada em relação a alguns bairros ocupados
pelas camadas médias e altas da população. Ao Norte, os largos da Memória e do
Riachuelo acessavam o Vale do Anhangabaú e as ruas Dr. Falcão, do Ouvidor e Riachuelo,
que por sua vez, acessavam o Largo São Francisco; todas essas vias levavam ao Centro. Na
direção Leste, a rua Manoel Dutra, e na continuidade, a rua Jaceguai, acessavam a Av.
Brigadeiro Luís Antônio, dali desembocando em outras vias vitais para o acesso ao bairro
da Liberdade: a própria Jaceguai, a Condessa de São Joaquim, a Humaitá, a Pedroso e a
Santa Madalena. Ao Sul, a rua Treze de Maio, ao atravessar a Av. Brigadeiro Luís Antônio
à esquerda, interligava-se ao bairro do Paraíso. A mesma Brigadeiro Luís Antônio,
acessava à direita as ruas do Morro dos Ingleses; continuando em linha reta, chegava-se à
Av. Paulista e, ao atravessá-la, seguia-se em direção do novo bairro da Vila América,
loteamento recente correspondente ao atual Jardim Paulista e, mais adiante, acessava-se a
Estrada de Santo Amaro. Na direção Oeste, a rua Santo Antônio ao percorrer quase toda a
extensão do loteamento, encontrava algumas saídas para o Vale do Saracura: as ruas Paim,
Manoel Dutra, São Vicente e Almirante Marques Leão. A partir da rua Santo Antônio,
futuros viadutos viriam permitir a transposição do Saracura e o acesso ao bairro da
Consolação, através das ruas Martinho Prado e Major Quedinho. Mas isso só viria a
ocorrer a partir dos anos 1930. Por fim, não importando a direção para onde se olhe, todas
as vias perpendiculares ao bairro acessavam a rua Santo Antônio e a Av. Brigadeiro Luís
Antônio.
Figura 69 – Possibilidades de acesso a outras regiões da cidade: a partir do Largo do Riachuelo, acesso ao Centro da
cidade e aos bairros localizados ao Norte; a partir das ruas Manoel Dutra e Jaceguai, acesso aos bairros localizados à
Leste (Liberdade e Paraíso); a partir da Av. Brigadeiro Luís Antônio, acesso ao Morro dos Ingleses, Avenida Paulista,
Vila América e à Estrada de Santo Amaro, ao Sul da cidade; e a partir da rua Santo Antônio, acesso ao Vale do Saracura,
à rua Augusta, à Consolução e aos bairros localizados à Oeste. Fonte: Planta SARA Brasil, AHSP.

Em relação à Avenida Brigadeiro Luís Antonio, já detalhei a importância de sua


localização para os negócios estabelecidos naquela área de abrangência. Contudo, após
analisar as alternativas de acesso do bairro do Bexiga para outras regiões da cidade na
Planta SARA Brasil, percebe-se que suas possibilidades se ampliam ainda mais quando se
pensa nos negócios estabelecidos no loteamento original. Assim, creio que essa breve
análise permite fundamentar a tese aqui em discussão de que o bairro do Bexiga realmente
tenha funcionado como espaço de abastecimento para os moradores dos bairros vizinhos.
Em suma, a correlação proposta neste trabalho – entre casas de comércio de
alimentos/cocheiras e caminhos de acesso a outros bairros demonstra o papel prioritário do
Bexiga como área vocacionada ao abastecimento alimentar de outras tantas da cidade em
processo de especialização e zoneamento de funções. Mais adiante analiso outros dados
que alicerçam a tese.
Quando considerei a distribuição das atividades produtivas pelas ruas do bairro,
observei que no caso das casas comerciais voltadas para a alimentação, por vezes as
distâncias entre um estabelecimento e outro eram muito curtas. O acúmulo do mesmo tipo
de atividade às vezes em um único quarteirão sugere uma competição acirrada entre os
comerciantes daquela rua, o que provavelmente ocorria. Por outro lado, acredito que se a
única intenção desses comerciantes fosse atender as necessidades do próprio bairro, por
mais amadores que fossem as iniciativas de abertura de novos negócios, dificilmente não
iriam levar em conta a proximidade dos concorrentes.
Retornando ao conjunto das atividades identificadas em 1914, os serviços pessoais,
com 29 registros, responderam por aproximadamente 11,88% do total de 244 atividades.
Esse grupo reuniu 12 sapateiros, 15 barbeiros, sapateiros, um guarda-livros e uma casa
de enformadores e lavadores de chapéus. Os sapateiros se concentraram nas ruas Santo
Antônio, com 5 casos; Conselheiro Ramalho, com 4 casos; e Major Diogo, com 2 casos.
As barbearias por sua vez, distribuíram-se por mais vias do bairro, ficando a rua Santo
Antônio com 6 casos; as ruas Manoel Dutra, Major Diogo e Conselheiro Ramalho, cada
uma com 2 casos; e as ruas Abolição, Fortaleza e Rui Barbosa com um caso cada uma. Já o
enformador e lavador de chapéu localizava-se na rua Conselheiro Ramalho e o guarda-
livros na rua Treze de Maio.
Entre as 24 casas de comércio de produtos diversos, se destacaram as 10 lojas de
armarinhos e fazendas, estando 5 delas estabelecidas na rua Conselheiro Ramalho. As
demais se espalharam por outras ruas, onde encontramos 2 casos na rua Major Diogo, 2 na
rua Santo Antônio e um caso na rua Treze de Maio. No entanto, em diversas ocasiões os
mesmos espaços eram divididos com outros tipos de produtos e/ou atividades, geralmente
em mãos do mesmo negociante. Esse foi o caso, de Ignacio Vecchio, estabelecido nos
números 129 e 131 da rua Conselheiro Ramalho, onde ele também comercializava couros e
peles; de Oscar Estefano, que além de artigos de armarinhos e fazendas também vendia
calçados e roupas no número 174 da mesma rua; da firma Chohfi & Cia., instalada no
número 278, onde os proprietários, com o comércio de modas, ampliaram suas
possibilidades de negócios; de Paschoal Arbamonte, cuja loja de armarinhos e fazendas
dividia espaço com o comércio de secos e molhados, na rua Santo Antônio n.47. Outro
negociante, Angelo Longo, levou a diversificação de seu negócio às últimas
consequências. Na casa instalada na rua Santo Antônio n. 108, nas proximidades da rua
Major Quedinho, ele explorou um comércio bem mais variado – armarinhos e fazendas;
ferragens e quinquilharias; louças, porcelanas e cristais; e secos e molhados. Além disso,
Longo dividiu o espaço de seus negócios com outro comerciante, o açougueiro Ignacio
Pamiconni. Ocorre que ele possuía um diferencial em relação à maioria dos comerciantes
156
do bairro, ele era proprietário do imóvel em que estava estabelecido , o que lhe
possibilitava ampliar sua renda.
Em duas outras situações, localizei casos de um mesmo endereço sendo ocupado
por uma casa de armarinhos e fazendas e por outra atividade independente. O primeiro
caso se refere ao estabelecimento de Abdo Facta e da funilaria de A.Galati, ambas
instaladas no número 53 da rua Major Diogo; e o segundo caso se refere à casa de
armarinhos e fazendas de José Ami e ao armazém de secos e molhados de Michelina
Paulina, na rua Treze de Maio n.1A.
A construção civil reuniu 14 atividades produtivas: 4 marcenarias, 3 carpintarias,
2 bombeiros hidráulicos, 2 empreiteiros, 2 ferreiros e um vidraceiro. A rua Santo Antônio
abrigou o maior número e a maior diversidade de prestadores de serviço vinculados ao
setor: 2 empreiteiros, 2 bombeiros hidráulicos, 1 ferreiro e 1 vidraceiro. Enquanto isso, a
rua Conselheiro Ramalho abrigou apenas oficinas que trabalhavam com madeira, uma
carpintaria e 2 marcenarias, e mesmo assim, em um desses casos o mesmo profissional
desempenhava as duas funções. O mesmo ocorreu nas ruas Abolição e Fortaleza onde
encontramos em cada uma os registros de uma carpintaria e de uma marcenaria, ambos do
mesmo proprietário, Vicente Lancia. Por fim, temos a rua Major Diogo, com um único
ferreiro.
Falar em construção civil significa também pensar no comércio dos produtos que
alimentavam o setor. Chama a atenção, neste ramo de atividade, a ausência do comércio de
quaisquer tipos de materiais de construção. Esses possivelmente fossem adquiridos nas

156
Conforme a solicitação de licença para transformação de janela em porta, em 21/09/1915. Série Obras
Particulares, OP 1915.003.447. Em 02 de outubro do mesmo ano, o jornal O Estado de São Paulo publicava
a aprovação da planta encaminhada por Angelo Longo à Prefeitura. p. 6. Ainda de acordo com a Série Obras
Particulares, em 04/05/1911, Longo seria proprietário de pelo menos mais um imóvel, localizado na rua
Augusta n.1Tinta. OP 1911.000.278.
lojas localizadas na Av. Brigadeiro Luís Antônio, onde já constatamos um número elevado
de estabelecimentos a este ramo de comércio.
O setor da saúde, com 13 anúncios, embora numericamente inferior, demonstrou
que o loteamento original do bairro, apesar do caráter mais popular, também foi procurado
por profissionais liberais. Ali identifiquei as residências de seis médicos (três na rua Santo
Antônio, dois na rua Conselheiro Ramalho e um na rua Major Diogo); dois dentistas (um
na rua Manoel Dutra e outro na rua Santo Antônio) e, por fim, há o anúncio de uma
parteira na rua Conselheiro Ramalho.
Em fins do século XIX e primeiras décadas do XX, quando a maioria da população
ainda era analfabeta, possuir um diploma de “doutor”, além de habilitar seu portador ao
exercício de uma profissão diferenciada também era um sinal inconteste de distinção
social. Mas isso não bastava para um indivíduo comum se distinguir dos demais. Outros
símbolos de distinção deveriam ser buscados, entre eles, os locais de moradia e de
trabalho. Os anúncios em almanaques e jornais da época são plenos de exemplos de
profissionais liberais – advogados, engenheiros, arquitetos, médicos e dentistas – que
procuraram as ruas do Triângulo para instalarem escritórios e consultórios. Contudo, nem
sempre os jovens recém-formados possuíam recursos ou suporte financeiro familiar para
arcar com os altos aluguéis cobrados pelos espaços disponíveis nas ruas do Centro e
também por moradias localizadas em endereços elegantes. Talvez fosse o caso de adequar
as escolhas às necessidades mais prementes e, nesse sentido, a opção seria pelo espaço
profissional. Os anúncios nos meios de comunicação são a prova cabal disso. Dessa
maneira, pelo menos enquanto a carreira não se firmasse, podia-se optar por endereços
residenciais menos nobres. Cremos que esse pode ter sido o caso de inúmeros profissionais
que residiram nas ruas do loteamento original do Bexiga, onde os aluguéis eram mais
baratos e os imóveis relativamente próximos do Centro, havendo linhas de bondes que os
conectavam às demais áreas da cidade.
Acredito que vale a pena conhecer um pouco mais sobre o perfil e os caminhos
trilhados por alguns desses personagens
A primeira pessoa a se destacar é a médica Maria Renotte. Antes de tudo, por ser
uma mulher que exerceu a medicina num universo absolutamente masculino, ostentando
sempre posições claramente em defesa da população mais pobre, mas também por se tratar
de uma profissional presente no bairro desde 1909. Naquele ano a médica consta do
Almanaque Laemmert no domicílio à rua Major Diogo n.2. A partir de 1914, até 1927, o
almanaque divulga o domicílio da Dra. Maria Renotte na rua Santo Antônio n.99 –
157
tratando-se de um imóvel de sua propriedade segundo Maria Lucia Mott . A ausência de
anúncios em seu nome nos jornais da época provavelmente indique que, diferentemente
dos colegas de profissão, a médica clinicou no mesmo endereço de sua residência.
ENDEREÇOS RESIDENCIAIS
NOMES PROFISSÕES N.
E/OU PROFISSIONAIS
ATTILIO RUSPOLI DENTISTA SÃO DOMINGOS 30
JOAQUIM SERRA DENTISTA MANOEL DUTRA 13
FERNANDO MACHADO MÉDICO CONSELHEIRO RAMALHO 133
J. GOMES TEIXEIRA MÉDICO SANTO ANTÔNIO 30A
LUÍS F. JARDIM MÉDICO SANTO ANTÔNIO 158
MARIA RENOTTE MÉDICA SANTO ANTÔNIO 99
MELCHIADES JUNQUEIRA MÉDICO MAJOR DIOGO 8
RAUL R. RUDGE (ADVOGADO) MÉDICO CONSELHEIRO RAMALHO 218
GUILHERMINA ALEOTTI PARTEIRA CONSELHEIRO RAMALHO 167

Tabela 36 – Profissionais da saúde, com residência estabelecida no loteamento original do Bexiga, em 1914. Fonte:
Almanaque Laemmert. Acervo Digital FBN.

O médico Melchiades Junqueira, morador na rua Major Diogo n.8, possuía laços de
parentesco com a família Almeida Nogueira de tradicionais fazendeiros em Bananal. Era
genro do conceituado advogado e professor da Faculdade de Direito, José Luís de Almeida
Nogueira, morador da casa n.7 na mesma rua. Conforme o jornal O Estado de São Paulo,
em 28/02/1909, Junqueira era inspetor sanitário na Diretoria do Serviço Sanitário do
Estado e, pelo menos entre 1912 e 1913, foi médico do Hospital de Isolamento de São
158
Paulo . De 1914 até 1917, o endereço nas páginas do Almanaque Laemmert se mantém
na rua Major Diogo de onde se mudou em 1918, para a rua Treze de Maio n.288.
Coincidência ou não, Melchiades mudou-se para o trecho mais nobre da rua, agora no
bairro do Paraíso.
Um caso interessante foi aquele do médico Fernando Machado, que nos anos de
1913 e 1914 consta no Almanaque Laemmert como médico residente na rua Conselheiro
Ramalho n.133. A partir de 1921, até 1927, seu nome se mantém no mesmo endereço,

157
Nascida na Bélgica, a então professora Maria Renotte mudou-se para o Brasil em 1878. O percurso
profissional percorrido por ela envoveu a estadia em outros países como a França, Alemanha e Estados
Unidos. Ali, cursou o Woman's Medical College of Pennsylvania (WMCP), tendo se formado em 1893. De
acordo com Maria Lucia Mott, no retorno ao Brasil, por volta de 1894, “Maria Rennotte passou a clinicar
antes mesmo de revalidar o diploma, sendo, até onde se sabe, a primeira e única médica na capital paulista
por mais de uma década (...). No ano seguinte (1895), apresentou na Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro a tese para revalidação do diploma, conforme exigido por lei. Foi contratada como médica interna
pela Maternidade de São Paulo, considerada a primeira instituição do gênero na cidade, voltada
exclusivamente para assistência ao parto da mãe pobre”. Além da prática clínica, Maria Renotte atuou em
outras instituições médicas, tais como a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e a Cruz Vermelha
brasileira. Os anos de trabalho engajado no Brasil lhe valeram o reconhecimento acadêmico e profissional
por parte das instituições onde atuou e da clientela que angariou ao longo de todo o tempo de trabalho. Ainda
conforme M. Lucia Mott, seu sucesso pode ser avaliado pelo retorno financeiro: “Em 1914, ela era
proprietária de pelo menos dois imóveis na cidade de São Paulo, na Rua Santo Antônio, 99 e 101 e na Rua
Conselheiro Ramalho, 203”. In MOTT, Maria Lucia. “Gênero, medicina e filantropia: Maria Renotte e as
mulheres na construção da Nação”. Cadernos Pagu (24), jan/jun 2005, pp.41-67. Grifo nosso.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n24/n24a04.pdf. Consulta em: 25/02/2013.
158
O Estado de São Paulo, 11/07/1912.
porém, agora classificado na categoria advogado. Busquei sinais de Fernando Machado
profissional da medicina nas páginas do jornal O Estado de São Paulo, mas todas as
menções a seu nome remetem a um advogado homônimo e não a um médico. Essa não foi
a primeira ocasião em que encontrei uma mesma pessoa exercendo duas profissões
diferentes em um curto espaço de tempo, do que se deduz que fosse uma prática
relativamente comum. Esse é por exemplo o caso do médico Raul R. Rudge. Enquanto em
1913 e 1914 Rudge anunciava seus serviços como médico, em 1917 ele se anunciava como
advogado. A informação se confirmou no anúncio publicado no mesmo ano, onde Rudge e
J. Quartim Barbosa divulgam seu endereço profissional, à rua São Bento n.4.

Figura 70 – O Estado de São Paulo, 27/06/1914.

De todo modo, independentemente da profissão exercida por Fernando Machado, o


Bexiga deve ter lhe parecido um bom lugar para viver, já que ali permaneceu por quatorze
anos, ou mais. O mesmo ocorreu com outros profissionais da saúde, como o dentista
Joaquim Serra e a parteira Guilhermina Aleotti (ou Guilhioti).
Conforme o anúncio publicado no jornal O Estado de São Paulo, Joaquim Serra,
morador na rua Manoel Dutra n.13 em 1914, dividia seu gabinete de trabalho à rua São
Bento n.31 com Benedicto Novaes. Talvez também dividisse com o colega o endereço
residencial, assim como outro gabinete – é o que se depreende daquele anúncio. Em
29/05/1918, o mesmo jornal publicou a notícia da mudança do “cirurgião dentista”
Joaquim Serra juntamente com a família para Belo Horizonte, o que não deve ter dado
certo, pois em 1921 ele voltou a anunciar seus préstimos no almanaque. O endereço
permaneceu o mesmo, na rua Manoel Dutra n.13, onde ficou pelo menos até 1927.

Figura 71 – O Estado de São Paulo, 03/03/1914.

Sem nenhuma menção a seu nome na imprensa da época, a parteira Guilhermina


Aleotti atendeu a sua clientela, entre 1913 e 1923, sempre no mesmo endereço, à rua
Conselheiro Ramalho n.167.
Os setores produtivos analisados representaram cerca de 80% das atividades
desenvolvidas no bairro. Outros setores, como vestuário e acessórios, artes e ofícios,
transportes, manufaturas, móveis e utilidades domésticas e informação e comunicação,
mostraram-se pouco significativos em termos numéricos. Porém, independentemente de
sua incidência, alguns casos merecem um olhar mais aprofundado sobre o significado de
sua presença naquele lugar e naquele momento. O primeiro deles se refere ao segmento do
vestuário, onde identifiquei 12 estabelecimentos vinculados à produção e ao comércio de
roupas. O aumento da população urbana que vinha ocorrendo desde as duas últimas
décadas do século XIX abriu perspectivas para investimentos no setor de vestuário e
acessórios. Investimentos esses que envolveram desde pequenos produtores e comerciantes
voltados para as camadas médias e baixas, até as casas especializadas na produção e venda
de artigos dirigidos às classes mais abastadas. Nas ruas do Triângulo, lojas sofisticadas
vendiam roupas importadas ou produzidas em ateliês de costuras comandados por alfaiates
ou modistas; nos bairros populares, mascates dividiam com lojas varejistas e pequenas
oficinas de costura a clientela de menos recursos.
No caso de negócios com endereço fixo, essas lojas geralmente associavam o
comércio de roupas, calçados, armarinhos e fazendas. Localizei, no Bexiga, três
comerciantes nessas condições: a firma Francisco & Irmão, com loja de armarinhos e
fazendas associada a loja de modas na rua Conselheiro Ramalho n.96; Oscar Estefano, com
um comércio variado de armarinhos e fazendas, calçados, roupas brancas e roupas feitas,
no número 174 da mesma rua; e Chohfi & Cia, com loja de armarinhos e fazendas e modas
no número 278. Percebe-se claramente que nesses casos a intenção era abrir o máximo de
perspectivas num único local, de maneira a otimizar os investimentos em aluguel do
imóvel, taxas de funcionamento etc. Por outro lado, ainda que o poder aquisitivo da
potencial clientela fosse relativamente restrito, o mercado consumidor representado por
moradores de um bairro em contínua expansão se mostrava amplo o suficiente para
justificar a iniciativa. Tanto é que cada um desses ramos de negócio foi anunciado
separadamente no Almanaque Laemmert, como se fossem estabelecimentos distintos –
tendo mais opções a oferecer e assim garantindo mais lucro.
Oscar Estefano parece ter sido um caso que deu certo, pois além de seu comércio
permanecer naquele local até 1927, em 1931 sua loja de armarinhos e fazendas havia se
mudado para um endereço mais “qualificado”, na Av. Brigadeiro Luís Antônio n.238.
Ademais, é possível que o imóvel da rua Conselheiro Ramalho fosse de sua propriedade, já
que o prédio de número 175 o era 159.

159
Conforme pedido de licença para “aumento do armazém existente, ligando-o a casa n.177”. 09/07/1918.
Série Obras Particulares, Doc.33, Cx.C7. AHSP.
Outro exemplo nesse sentido pode ter sido o da firma Chohfi & Cia. Não há como
saber se o proprietário da loja de modas possuía laços de parentesco com as famílias do
conhecido comerciante Niazi Chohfi, ou ainda de Ragueb Chohfi, estabelecidos na rua
Vinte e Cinco de Março, mas é possível que sim. Sua presença no Bexiga confirma-se
apenas nos anos de 1913 e 1914, o que leva a supor que talvez fossem parentes recém-
chegados ao Brasil que, aproveitando a prática familiar no ramo do comércio tivessem
160
iniciado seu próprio negócio num bairro promissor e que, posteriormente, teriam
migrado para a região da Vinte e Cinco de Março. Se assim for, trata-se aqui das redes de
apoio estabelecidas por elos familiares e identidade de origens étnicas, que certamente
foram comuns a atores sociais oriundos de diferentes procedências (Lanna, p.117-127).
Diferentemente das lojas de roupas localizadas na rua Conselheiro Ramalho, as
duas oficinas de costuras existiram de maneira independente. Uma delas pertencia a Alice
Fonzari e funcionava no número 65 da rua Santo Antônio; a outra, localizada no número
106 da mesma rua, pertencia a Mme. Graciana M. Mammana. A primeira permaneceu na
rua Santo Antônio, embora em endereços diferentes, entre 1909 e 1914; e em 1931 o
almanaque registra sua atividade na rua Aguiar de Barros. Já Mme. Graciana Mammana
anunciou por apenas dois anos, 1913 e 1914. Ao introduzir a expressão francesa “M me”
junto do nome, a intenção de Graciana Mammana foi, sem dúvida, distinguir seu trabalho
daquele de outras costureiras do bairro, como se isso a qualificasse para trabalhar para uma
freguesia de gosto mais requintado e a colocasse mais perto daqueles profissionais da
costura que atuavam nas ruas do Triângulo. Se essa tática funcionou, não há como
confirmar, o fato é que sua passagem pelo Bexiga foi bastante fugaz.
Um segundo setor digno de nota, no ano de 1914, é o de transporte, destacando-se
4 lojas de forragens, 2 de alfafas, um ferrador e um médico veterinário. No caso dessas
atividades destacam-se dois aspectos associados: de um lado, todas se vinculam ao
transporte movido à tração animal, e de outro, sua localização estratégica do ponto de vista
do acesso a outras regiões da cidade. Nicolau Cuccio concentrou em seu nome três dessas
atividades, um comércio de alfafa e forragens na rua Conselheiro Ramalho n. 192A e um
comércio de forragens na rua Fortaleza n.1. O detalhe importante dos negócios de Cuccio é
que, conforme podemos observar na Planta SARA Brasil de 1914 (Anexo 3.3), sua
160
No período pesquisado, encontramos outros comerciantes de origem síria, caso de Chain, Ozen & Irmãos,
da Casa Syria que, entre 1918 e 1927, instalou-se no mesmo local ocupado anteriormente pela firma
Francisco & Irmão, na rua Conselheiro Ramalho n.96; e de Chob Gazel que em 1931 tinha uma loja de
armarinhos e fazendas na rua Jaceguai n.77. A confirmar nossa hipótese, Haim Grünspun, ao se referir às
famílias judias proprietárias de duas lojas de fazendas e armarinhos no Bexiga, esclarece que “as outras lojas
(de não judeus) eram de sírios-libaneseses ou libaneses só, que tinham parentes com grandes armazéns na
rua 25 de março”. GRÜNSPUN, 1979, p.83.
localização é muito próxima – no cruzamento entre as ruas Conselheiro Ramalho e
Fortaleza – de um dos acessos do antigo loteamento do Bexiga para a Av. Brigadeiro Luís
Antônio. Ou seja, essa era uma localização favorável para os veículos que desejavam se
dirigir ao Centro ou ao Sul da cidade.
Uma posição privilegiada também caracterizou a oficina de ferrador de Velardo &
Maschella – no cruzamento das ruas Major Diogo n.45, com as ruas Manoel Dutra e
Jaceguai (esta, o prolongamento da primeira). Ali, através da rua Jaceguai, o acesso ao
Centro ou ao Sul também poderia ser feito pela Av. Brigadeiro Luís Antônio. Acerca do
negócio dos ferradores Velardo & Maschella, vale a pena destacar a associação, no mesmo
endereço, destes com o veterinário Luiz Picollo. Constatei a presença desse profissional
apenas nos anos 1913 e 1914; em 1915 seu nome aparece nas páginas de O Estado de São
161
Paulo, mas agora atendendo à rua Pedroso n.69A . Resta comentar que embora a
parceria entre um ferrador e um veterinário pareça oportuna, ela não deve ter funcionado,
pois em nenhuma outra ocasião voltamos a identificar um caso semelhante.

Figura 72 – O Estado de São Paulo, 08/12/1915, p.10.

O negócio de alfafa e forragens de Felix Pinto, localizado no início da rua Santo


Antônio, mostrava-se beneficiado pela proximidade do Largo do Riachuelo, e portanto, do
Centro. Mas os veículos também podiam dirigir-se para a Av. Anhangabaú, em direção ao
bairro da Consolação ou à Cidade Nova se, ao sair do estabelecimento, tomassem o lado
direito da rua Santo Antônio e, em seguida, a rua João Adolpho. Mas para isso teriam que
atravessar o Saracura, o que seria mais difícil em tempos de chuvas e dos consequentes
alagamentos. O mesmo problema se colocava para os clientes do comércio de forragens de
Carlos Lascala, localizado no número 139 da rua Santo Antônio – quase em frente à rua
Martinho Prado –, se optassem pela saída através desta rua, em direção ao Vale do
Saracura, e dali em direção ao Vale do Anhangabaú. A alternativa seria a própria rua Santo

161
De acordo com diversos anúncios em O Estado de São Paulo, publicados durantes vários anos, Luiz
Picollo era italiano e havia se formado pela Universidade de Turim. Mais tarde, conforme entrevista realizada
com o cientista Martins Penha acerca do Instituto Biológico, em 1934, o veterinário Luiz Picollo era chefe da
seção de Assistência Veterinária da Secretaria de Agricultura. In PENHA, Adolfo Martins. Adolfo Martins
Penha (depoimento, 1977). Rio de Janeiro, CPDOC, 2010. 45 p. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/historal/arq/Entrevista418.pdf. Consulta em: 19/03/2014.
Antônio, em direção ao Largo do Riachuelo, e dali ao Centro 162. Vale acrescentar que o
comércio de forragens não era o negócio principal de Lascala, mas sim o armazém de
secos e molhados ao qual ele estava associado.
O último caso a chamar especialmente a atenção é aquele da livraria de Jovenal
Forster, instalada na rua Conselheiro Ramalho n.59. A presença dos segmentos vinculados
ao setor informação e comunicação no bairro sempre se mostrou incipiente e a
identificação de uma única livraria, até 1921, é prova disso. Os anúncios do Almanaque
Laemmert de 1913 e 1914 indicam dois segmentos diferentes no endereço fornecido por
Jovenal Forster – além da livraria citada, uma papelaria. Um ano depois, Forster e sua loja
desaparecem das páginas dos almanaques. A rua voltará a ter outras duas livrarias, cada
uma em momentos distintos, e sempre como iniciativas isoladas. Aparentemente, os
moradores do Bexiga não eram afeitos à leitura, e quando o fossem, talvez preferissem se
dirigir às livrarias do Centro da cidade. De qualquer forma, voltarei a falar sobre esses
estabelecimentos quando analisar os períodos posteriores a 1914.

 1915
Como já constatado na área de influência da Av. Brigadeiro Luís Antônio, o
conflito mundial de 1914/17 também iria impactar as atividades produtivas desenvolvidas
no loteamento original do bairro, só que aqui, conforme o Almanaque Laemmert, isso
ocorreria de forma mais dramática.
ATIVIDADES TOTAL
SAÚDE 5
ALIMENTAÇÃO, ALOJAMENTOS E LAZER 2
SERVIÇOS PESSOAIS 2
AGENTES COMERCIAIS 1
ARTES E OFÍCIOS -
COM. APAR. ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIP. DOMÉSTICOS E -
PROFISSIONAIS
COMÉRCIO EM GERAL -
CONSTRUÇÃO CIVIL -
EDUCAÇÃO -
OFICINAS E/OU MANUFATURAS -
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO -
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS -
TRANSPORTE -
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS -
TOTAL 10

Tabela 37 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1915. Acervo Digital FBN.

Se em 1914 o Almanaque registrara 243 anúncios, em 1915 esse número caiu para
apenas 10 atividades, com uma redução de aproximadamente 96%. Através do

162
É necessário lembrar que o levantamento aerofotogramétrico para a Planta SARA Brasil foi realizado por
volta de 1929. Portanto, embora a Planta indique que, no trecho entre a rua Martinho Prado e a
Av.Anhangabaú, o córrego da Saracura já está canalizado, em 1914 isso ainda não havia ocorrido.
levantamento dos negociantes na “área nobre” verifica-se que o impacto da guerra perdeu
força nos anos subsequentes ao início da guerra, o que também se confirmou para o
loteamento original.
Aqui, repeti o procedimento adotado na “área nobre”, quando levantei os
negociantes atuantes naquelas ruas durante a guerra (entre 1914 e 1918). É possível
deduzir dos dados da tabela abaixo, que ainda que o volume de atividades fosse muito
superior àquele identificado na área de influência da Av. Brigadeiro Luís Antônio, que os
índices de permanência/ausência do loteamento original não foram muito diferentes.
Enquanto lá o número de negociantes que permaneceram após o final da guerra foi de
30,63%, aqui esse índice correspondeu a 36,45%; lá, os negociantes e profissionais que
aparentemente encerraram suas atividades foram cerca de 69%, enquanto aqui esse índice
teve um ligeiro decréscimo, atingindo 63,55%.
NEGÓCIOS QUE NÃO NEGÓCIOS QUE
NEGÓCIOS ENTRE
LOGRADOURO ALCANÇARAM O PÓS- PERMANECERAM NO PÓS-
1914 E 1918
GUERRA GUERRA
CONSELHEIRO RAMALHO 90 54 36
SANTO ANTÔNIO 74 47 27
MAJOR DIOGO 52 32 20
TREZE DE MAIO 19 13 6
MANOEL DUTRA 15 10 5
RUI BARBOSA 11 7 4
SÃO DOMINGOS 10 5 5
CONSELHEIRO CARRÃO 10 8 2
ABOLIÇÃO 8 5 3
FORTALEZA 8 7 1
DR. LUÍS BARRETO 1 1 -
JOÃO PASSALACQUA 1 1 -
TOTAL 299 190 (63,55%) 109 (36,45%)

Tabela 38 – Porcentagem dos negócios que permaneceram na área abrangida pelo loteamento original do Bexiga, entre
1914 e 1918. Fonte: Almanaque Laemmert, 1914 a 1918. Acervo Digital FBN.

Outra questão a ser lembrada se refere ao fato de que nem sempre a ausência de
uma atividade em determinado endereço significa que o negócio tenha sido encerrado.
Encontrei, em pelo menos quinze ocasiões, negociantes que simplesmente mudaram de
endereço para imóveis na mesma rua e, em duas ocasiões a mudança foi para ruas da “área
nobre” do bairro, caso do seleiro Felippe Serafim e da costureira Alice Fonzari.
Em 09/07/1909, Felippe, na qualidade de proprietário do imóvel, solicitou licença
para construção de uma oficina para “carrieiro” na rua Major Diogo n.123, bem ao lado de
uma casa já edificada também de sua propriedade. A partir daquele ano, até pelo menos
1913, ele anunciou seus serviços de correaria e selaria, e em 1917 já o encontramos na
Av. Brigadeiro Luís Antônio n.173.
Figura 73 – Projeto arquitetônico para construção da
“officina de carrieiro” de Felippe Serafim, na rua Major
Diogo, 123 (posterior 149). Fonte: Obras Particulares,
09/07/1909. OP/1909/001.500 (AHSP).

Em 14/06/1916, Felippe volta a figurar na Série Obras Particulares, aparentemente


por ter transformado o imóvel em cortiço, pelo menos é o que acreditam os fiscais da
Diretoria de Obras. Não há como saber o que aconteceu no espaço de tempo entre 1914 e
1917 – se realmente a casa se transformou ou se o negócio deixou de funcionar, enfim, de
alguma maneira Felippe viveu as consequências do conflito mundial. O fato é que a partir
de 1917 ele passou a divulgar seus serviços de seleiro na Av. Brigadeiro Luís Antônio,
onde ficou até 1927. Já Alice Fonzari, entre 1909 e 1913, trabalhou como costureira em
dois imóveis diferentes da rua Santo Antônio, primeiro no n.45 e depois no n.65. Após
1914 seu nome deixou de figurar nos almanaques por um largo período, só retornando em
1931 quando o endereço fornecido situa-se na rua Aguiar de Barros n.20.
No entanto, também ocorreu o percurso inverso – sair da “área nobre” em direção
do loteamento original. De acordo com o lançamento do Imposto Predial de 1915163, André
Belize era proprietário de dois imóveis (na rua Genebra n.34 e na rua Santo Amaro n.23),
onde possuía negócio de secos e molhados. Já em 1921, o negócio da rua Santo Amaro
deixara de existir, mantendo-se aquele da rua Genebra. Nesse mesmo ano o encontramos
estabelecido no loteamento original com uma fábrica de massas alimentícias na rua Santo
Antônio n.51 e uma padaria na rua Treze de Maio n.148.
Por fim, uma outra possibilidade a ser pensada (embora a hipótese não tenha sido
verificada, já que extrapolaria o espaço definido no nosso trabalho) é a saída do
profissional do Bexiga em busca de outros bairros. O fato é que sejam quais foram os

163
Recebedoria de Rendas da Capital, ImpostoPredial para 1915, Diário Oficial do Estado de São Paulo, em
06 e 08/12/1914. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/
motivos que o levaram a isso, a ausência de anunciantes no período marcado pelo conflito
é flagrante.
A ocorrência de atividades vinculadas ao setor da saúde, em 1915, já havia se
destacado na “área nobre”, o mesmo ocorrendo no loteamento original. A diferença é que
aqui, entre as 5 atividades arroladas identifiquei apenas um médico em meio a 4 farmácias.
Dessas, apenas duas tiveram vida longa: a Pharmácia Vaz, de Luiz Thiers da Fonseca Vaz,
na rua Santo Antônio n.150, e a Pharmácia Ítalo-Americana, de Raffaele Bartoletti, na rua
Conselheiro Ramalho n.147. A Pharmacia Niccoli (Rui Barbosa n.23) ficou apenas mais
um ano no bairro, o mesmo acontecendo com a Nossa Senhora do Rosário (Conselheiro
Ramalho n.98).
O único médico presente naquele ano foi Luís Felippe Jardim, “especialista em
moléstias de senhoras”, estabelecido à rua Santo Antônio n.58. Jardim permaneceu por
apenas três anos no bairro (1914-1916) e o percurso empreendido por ele chamou a
atenção, particularmente pelas constantes alterações de endereços. De acordo com o jornal
O Estado de São Paulo, desde o primeiro anúncio publicado pelo médico naquele jornal,
em 1899, e o último, em 1927, Jardim clinicou em dezoito endereços diferentes, situação
que se repetiu em relação a seus endereços residenciais. Em seu percurso profissional ele
percorreu vários bairros da cidade, tais como Bom Retiro, Campos Elíseos, centro,
Liberdade, Bexiga, Mooca e Perdizes – de norte a sul, de leste a oeste. O Bexiga foi
apenas um entre os tantos espaços explorados por Luís Felippe Jardim...

 1918
Nesse ano, ainda que os anunciantes do Almanaque Laemmert tenham se mostrado
mais dispostos a divulgar seu trabalho, o grosso dos anúncios se concentrou em poucas
ruas: Conselheiro Ramalho, Santo Antônio e Major Diogo, o que só confirma uma
tendência desde 1909. Essas ruas possuíam uma virtude que as destacavam das demais,
qualificando-as como locais ideais para o exercício de atividades econômicas. E aqui, cabe
observarmos um aspecto importante do espaço ocupado pelas atividades produtivas no
Bexiga – o seu posicionamento estratégico em relação aos meios de transportes urbanos e,
em decorrência disso, de potencial mercado consumidor. É claro que se tratava de vias
longas, aptas a abrigar um grande número de negócios, porém o mais relevante certamente
foi o fato de todas elas serem beneficiadas por linhas de bonde. No caso das ruas Major
Diogo e Santo Antônio, pelo menos metade de seu percurso era servido pelos bondes, e na
rua Conselheiro Ramalho eles percorriam toda sua extensão. Ocorre que as ruas Manoel
Dutra e Rui Barbosa, logo abaixo das anteriores em termos de número de atividades
produtivas, embora fossem vias curtas também eram servidas pelo transporte público.
ATIVIDADES TOTAL
ALIMENTAÇÃO, ALOJAMENTOS E LAZER 19
SAÚDE 16
SERVIÇOS PESSOAIS 6
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 6
ARTES E OFÍCIOS 3
COMÉRCIO EM GERAL 3
CONSTRUÇÃO CIVIL 3
AGENTES COMERCIAIS 2
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 2
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO 1
OFICINAS E/OU MANUFATURAS 1
COM. APAR. ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIP. DOMÉSTICOS E PROFISSIONAIS -
EDUCAÇÃO -
TRANSPORTE -
TOTAL 62

Tabela 39 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1918. Acervo Digital FBN.

A Tabela 40 abaixo contém as ocorrências dos anúncios publicados nos almanaques


nos anos selecionados para análise. Nela é possível constatar que, com pouquíssimas
variações, independentemente das oscilações ocorridas no decorrer desses anos, as ruas
beneficiadas com a presença de transporte público – bondes – concentraram a maioria dos
negócios e atividades do loteamento original do Bexiga.
RUAS 1909 1914 1915 1918 1922-23 1927 1931
SANTO ANTÔNIO 23 81 3 11 69 63 90
CONSELHEIRO RAMALHO 27 64 2 28 69 60 71
MAJOR DIOGO 13 36 - 16 41 30 57
MANOEL DUTRA 5 16 - 1 24 26 39
RUI BARBOSA 9 10 1 - 19 15 27
CONSELHEIRO CARRÃO 6 5 1 1 10 15 26
TREZE DE MAIO 4 11 1 1 24 29 25
SÃO DOMINGOS 4 6 - 1 14 13 17
DR. LUÍS BARRETO 1 1 - - - 5 10
FORTALEZA 3 8 1 1 7 2 9
ABOLIÇÃO 2 7 1 1 8 5 8
MARIA JOSÉ - - - - 2 2 7
JAPURÁ - - - - - 1 5
JOÃO PASSALACQUA 3 - - 1 5 2 4
DR. RICARDO BAPTISTA - - - - - - 1
JACAREÍ - - - - - - 1
QUATORZE DE JULHO - - - - 1 2 1
SÃO VICENTE - - - - 1 1 1
HUMAITÁ - - - - - 1 -

Tabela 40 – Ocorrência de anúncios publicados no Almanaque Laemmert, entre 1909 e 1931, nas ruas do loteamento
original do Bexiga. Acervo Digital FBN.

Conforme demonstra a tabela, embora a rua Santo Antônio tenha, de uma maneira
geral, sempre agrupado o maior número de negociantes, em 1918 observa-se equivalência
na rua Conselheiro Ramalho. Neste ano, destacam-se ali nove atividades que envolviam o
comércio de alimentos (5 casas de secos e molhados, 2 padarias, 1 leiteria e 1 comércio de
vinhos); 5 atividades vinculadas ao setor de vestuário e acessórios (4 casas de calçados e 1
alfaiataria); e 7 atividades envolvendo serviços de saúde (4 parteiras, uma farmácia e 2
médicos). No caso das parteiras, 1918 foi um dos anos em que ocorreu um maior número
dessas profissionais no loteamento original do Bexiga, exatamente 5 profissionais, 4 delas
na rua Conselheiro Ramalho: Idalina Jordão, Palmyra Galbiati, Guilhermina Gilhioti e
Pecoro Caranchiolo (provavelmente um parteiro).
Levando em conta as diferentes proporções, da mesma forma que na rua
Conselheiro Ramalho, na rua Major Diogo os setores de alimentos e saúde lideraram os
negócios ali instalados. O primeiro, com 5 atividades (3 casas de secos e molhados, 1
leiteria e 1 fabricante de massas alimentícias); e o segundo com 2 dentistas e 1 farmácia;
na sequência, temos 2 advogados e 2 construtores. Já na rua Santo Antônio, sobressaem as
5 atividades vinculadas à saúde: 3 farmácias, 1 médica e 1 parteira.
De uma maneira geral, excluindo-se as atividades citadas, o ano de 1918 pouco
acrescentou ao cenário produtivo do loteamento original do Bexiga. Mas, aos poucos, o
bairro retomaria o dinamismo verificado anteriormente.

 1922-23
No biênio 1922-1923, o Bexiga não apenas recuperou o impulso produtivo, como
também superou os índices alcançados em 1914, ano em que o Almanaque Laemmert
registrou o máximo de anúncios verificados para os negociantes da área, num total de 244
atividades.
ATIVIDADES TOTAL
ALIMENTAÇÃO, ALOJAMENTOS E LAZER 129
SERVIÇOS PESSOAIS 55
COMÉRCIO EM GERAL 23
CONSTRUÇÃO CIVIL 22
SAÚDE 22
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 12
ARTES E OFÍCIOS 8
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 6
AGENTES COMERCIAIS 5
OFICINAS E/OU MANUFATURAS 5
EDUCAÇÃO 2
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO 2
COM. APAR. ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIP. DOMÉSTICOS E PROFISSIONAIS 1
TRANSPORTE -
TOTAL 292

Tabela 41 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1922-23. Acervo Digital FBN.

Se em relação a 1914, houve um aumento de 20,49% no número de anúncios


publicados, em relação ao período imediatamente anterior (1918), esse aumento significou
pouco mais de 370%!!! Porém, essa diferença deve ser relativizada porque entre os 292
anunciantes de 1922-23, cerca de 60 já estavam estabelecidos em 1914, incluídos aí
aqueles que nesse intervalo de nove anos se mudaram da “área nobre” para o loteamento
original e/ou diversificaram suas atividades. O que comprova que a ausência de anúncios
no almanaque de 1918 não significa necessariamente o encerramento do negócio. Talvez
esse “silêncio” por parte de comerciantes e profissionais em geral tenha significado apenas
uma atitude de espera em face à situação política e econômica tensa para que se
normalizasse e os estimulasse a voltar a empreender...
Atividades como alimentação, serviços pessoais, comércio de produtos diversos,
saúde e construção civil se mantiveram como as mais representativas na totalidade do
bairro, com poucas variações no decorrer de todo o período investigado. Contudo, as
categorias relacionadas à alimentação se destacaram pelo aumento no número de
estabelecimentos, sobretudo de armazéns de secos e molhados com nada menos que 86
registros.
RUAS ATIVIDADES ESTABELECIMENTOS TOTAL
AÇOUGUES 3
BOTEQUINS 2
CONFEITARIAS 1
MASSAS ALIMENTÍCIAS 1
SANTO ANTÔNIO 25
PADARIAS 1
SECOS E MOLHADOS/MANTIMENTOS E 17
MOLHADOS/CEREAIS, BATATAS E
CEBOLAS
AÇOUGUES 3
BOTEQUINS 3
CONFEITOS, BALAS E DOCES 1
MAJOR DIOGO
LEITERIAS 1 19
MASSAS ALIMENTÍCIAS 1
SECOS E MOLHADOS/CEREAIS, BATATAS 10
E CEBOLAS
AÇOUGUES 3
BOTEQUINS 1
CONSELHEIRO
COMÉRCIO DE VINHOS 1 16
RAMALHO
PADARIAS 2
SECOS E MOLHADOS 9
BOTEQUINS 1
CONFEITOS, BALAS E DOCES 1
DESTILÁRIA E DEPÓS. AGUARDENTE E 1
RUI BARBOSA 13
ÁLCOOL
LEITERIAS 1
SECOS E MOLHADOS 9
AÇOUGUES 4
BOTEQUINS 1
MANOEL DUTRA 12
SECOS E MOLHADOS/CEREAIS, BATATAS 7
E CEBOLAS
AÇOUGUES 2
TREZE DE MAIO PADARIAS 1 13
SECOS E MOLHADOS 10
AÇOUGUES 1
BOTEQUINS 1
SÃO DOMINGOS 10
SECOS E MOLHADOS 7
TORREFAÇÃO E MOAGEM DE CAFÉ 1
CONSELHEIRO AÇOUGUES 2
7
CARRÃO SECOS E MOLHADOS 5
AÇOUGUES 1
ABOLIÇÃO 5
SECOS E MOLHADOS 4
PADARIAS 1
FORTALEZA 4
SECOS E MOLHADOS 3
JOÃO PASSALACQUA SECOS E MOLHADOS 2 2
MARIA JOSÉ SECOS E MOLHADOS 2 2
SÃO VICENTE SECOS E MOLHADOS 1 1
TOTAL 129

Tabela 42 – Estabelecimentos voltados ao setor de alimentação, conforme a ocorrência por rua do loteamento original.
Almanaque Laemmert, 1922-23. Acervo Digital FBN.
Embora a maioria desses negócios tenham se concentrado prioritariamente nas ruas
Santo Antônio, Major Diogo, Treze de Maio, Conselheiro Ramalho e Rui Barbosa, eles se
difundiram por todas as ruas do bairro.

Figura 74 – À esquerda da foto, temos a casa de Secos e Molhados de Antônio Maradei, e o Café Soberano, de
propriedade da firma Albuquerque & Cia., localizadas respectivamente, na rua São Domingos n.58A e 58B, 1922. Fonte:
AHSP.

Alguns serviços e comércios diferenciados, pontualmente introduzidos nos últimos


dez anos merecem ser lembrados. Dentro do segmento de artes e ofícios, nota-se o caso
dos professores de piano e violino e dos teatros. A partir de 1921, encontramos 5
profissionais dedicados ao ensino de instrumentos musicais: a professora de violino,
Dinorah Millone, na rua da Abolição n.31; os professores de piano Cordélia Sampaio, na
rua Conselheiro Ramalho n.63 e Esther Pacheco no 218 da mesma rua, Sylvio Motta, na
rua Santo Antônio n.25 e Vicentina Gentile, na rua Treze de Maio n.100. Com exceção de
Esther Pacheco e Vicentina Gentile, os demais seguramente foram professores do
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, sendo que Sylvio Motta também foi
maestro.
Quanto ao item teatros, o loteamento original contava com uma casa que consta no
Almanaque Laemmert na categoria “teatros e cinemas” – o Theatro Esperia, na rua
Conselheiro Ramalho n.132. O primeiro registro do teatro no almanaque data de 1921,
porém, localizamos na Série Alvará e Licença (AHSP), já em 1914, o seguinte pedido em
nome de Anselmo Pignatari & Cia: “Desejando inaugurar o ‘Theatro Especial’ com
espetáculos cinematográficos e estando tudo de acordo com a lei, solicita o respectivo
alvará de licença para pagamento dos impostos” (Série Alvará e Licença, AHSP,
02/04/1914).

Figura 75 – Anselmo Pignatari conseguiu seu alvará de


funcionamento, pois em 14 de dezembro do mesmo
ano, o Theatro Esperia já exibia espetáculos teatrais,
cujos preços, aparentemente, eram bastante acessíveis.
Um lugar na “geral” do teatro podia ser adquirido por
apenas 1$000, enquanto a “friza” custava 6$000. O
Estado de São Paulo, 14/12/1914.

Um ano depois, um outro pedido em nome do mesmo Anselmo Pignatari, foi


encaminhado à Diretoria de Obras, com a intenção de obter licença para a abertura de uma
porta “para comodidade do serviço... no muro divisório do teatro ‘Esperia’” (Série Obras
Particulares, AHSP, 22/03/1915).

Figura 76 – O Estado de São Paulo, 20/10/1929.

Figura 77 – O Estado de São Paulo, 03/01/1931.


Figura 78 – O Estado de São Paulo, 03/02/1940.

Desde a abertura da tal porta, até 1955, sob a direção do ator Sérgio Cardoso,
quando passou a se chamar Teatro Bela Vista, o espaço passou por fases distintas. Em
1929 passou a ser administrado pela Empresa Reunidas Ltda., apresentando “excellentes
pelliculas e variada programação”, conforme elogios feitos “pelas familias do populoso
bairro da Bella Vista” que frequentavam o local; em janeiro de 1931, foi utilizado como
de palco de lutas de pugilismo na categoria de amadores; promoveu bailes carnavalescos
em fevereiro de 1940 e bailes de formatura em dezembro de 1948 164. Por fim, após a
incorporação, reforma e reabertura empreendidas por Sérgio Cardoso, entre 1955 e 1956,
já se tratava de uma nova casa, vivendo um outro momento de sua história, assim como da
história do próprio bairro. Tanto quando o Bexiga, a casa incorporou ao caráter do ‘bairro
italiano’ o status de reduto cultural paulistano.
Acredito que a presença de profissionais envolvidos com todas as formas de
educação (formal e informal) constatadas no bairro do Bexiga nesse período, assim como
em outras partes da cidade, deve ser creditada à crescente valorização do papel da
educação na formação dos jovens brasileiros das camadas médias. Contudo, há que se
destacar que no caso das mulheres, se de um lado a educação formal as preparava para um
novo papel na sociedade – de educadora e formadora das próximas gerações, através do
magistério –, de outro, tal mudança de perspectiva se ancora, sobretudo, no desejo de
aprimoramento da mulher para um papel que ainda era fundamental, o de esposa e mãe –
saber tocar piano, por exemplo, podia ser tão importante quanto conhecer um outro idioma,
educar os filhos ou saber administrar um lar (Saviani et all., 2003, p.73), pelo menos para
as mulheres das camadas médias. Por outro lado, do ponto de vista deste território (o
loteamento original do Bexiga), a oferta desse tipo de serviço pressupõe a presença de
pessoas que se encaixassem no perfil – famílias de posses médias para quem a educação

164
O Estado de São Paulo, 20/10/1929, 03/01/1931, 03/02/1940 e 19/12/1948. Conforme matérias
publicadas no mesmo jornal, “descoberto por Sérgio Cardoso, o cine-Teatro Esperia, depois de quase
cinquenta anos de existência como cinema, embora em seu palco se exibissem também conjuntos teatrais,
estava prestes a ser transformado em garagem”. Nessa ocasião o local foi arrendado por Otto Meinberg,
Ricardo Capote Valente e pelo próprio Sérgio Cardoso, passando por reformas que o transformaram no
Teatro Bela Vista, finalmente inaugurado em 15 de maio de 1956. Em 27/11/1955, 13 e 15/05/1956 e
27/11/1958.
tivesse um significado de “capital social” simbólico. Não há como avaliar o resultado
dessas iniciativas, se foram positivas ou negativas. São raras as informações a esse
respeito, além daquelas fornecidas pelos anúncios do Almanaque Laemmert que informam
que em 1927 o bairro ainda dispunha de professores de música e maestros, o que não mais
ocorria em 1931.

Figura 79 – Caso de “aulas de piano” localizado no Estado de São Paulo, sem identificação do profissional, à rua
Conselheiro Ramalho n.8, em 08/05/1924 e 09/04/1925.

Entre as novidades do biênio 1922-23, estava a introdução dos serviços oferecidos


por dois estabelecimentos educacionais, a Escola Cívica Mixta e o Ginásio Luzitano, o
que ocorreu no mesmo momento que na “área nobre”. Como já me referi anteriormente ao
analisar aquela área, a presença de escolas particulares no bairro demonstra a valorização
da educação formal na cidade, mas não apenas, visto que o Bexiga já contava com quatro
escolas públicas. O que sobressai neste momento, especialmente no loteamento original, é
o fato de se tratar de escolas particulares, que, além de serem instituições educacionais,
eram uma iniciativa privada. Se, de um lado, o objetivo principal desses empreendimentos
era a educação, de outro, não há como negar que também deveriam gerar lucro para seus
proprietários. Quem se aventurasse a instalar escolas privadas no bairro, certamente o faria
com a intenção de obter êxito no empreendimento, e para isso calcula-se que se apoiasse
em algum aspecto positivo – nesse caso, a existência de famílias com poder aquisitivo
suficiente para arcar com os gastos com a educação dos filhos.
A Escola Cívica Mixta funcionava na rua Santo Antônio n. 45 e não obtive
informações a seu respeito. Quanto ao Ginásio Luzitano, de propriedade de Custódio José
Fernando, foi inaugurado em 1908. Contudo, as primeiras notícias sobre a escola datam de
janeiro de 1913, quando os diretores do estabelecimento anunciaram a abertura das
matrículas para aquele ano, a ser efetuada no prédio da Praça da República n.30. De acordo
com a nota, tratava-se de uma instalação provisória, “até se poder instalar definitivamente
em seu prédio novo”165. A mudança definitiva ainda levaria algum tempo, pois em outro
anúncio, de 26/01/1916, os endereços do Gimnásio Luzitano “C. Fernando” constavam
como sendo à rua da Consolação n.442 e Av. Paulista n.7166. Localizei na Série Obras
Particulares uma solicitação de licença, datada de 31/05/1917, em nome de C. Fernando,
165
O Estado de São Paulo, 03/02/1913.
166
O Estado de São Paulo, 26/01/1916.
para a “construção de cinco salas para “aulas colegiais”, em acréscimo do colégio
existente” na rua Treze de Maio n.162. Ao que indica a solicitação, tratava-se do aumento
da escola que ainda não havia sido inaugurada, o que ocorreu menos de um mês depois, em
20 de junho, conforme demonstra o anúncio reproduzido abaixo.

Figura 80 – O Estado de São Paulo, 20/06/1917.

Figura 81 – O Estado de São Paulo, 19/12/1917.

Custódio Fernando veio a falecer em 24 de outubro do mesmo ano e, a partir daí, a


direção do ginásio passou às mãos de J. Pereira da Silva e Maria da Silva Carneiro167.
Em dezembro seria fundada no mesmo local (rua Treze de Maio n.162), a escola de
Commercio “Lusitana”. As últimas notícias do Ginásio Luzitano, no jornal O Estado de
São Paulo, datam de 20 de junho de 1920. Porém, em 1927, o Almanaque Laemmert ainda
publicou anúncio da escola. A depender das referências fornecidas pelos anúncios

167
O Estado de São Paulo, 24 e 25/10/1917. De acordo com a nota de falecimento de Custódio Fernando, ele
era um professor de matemática formado pela Universidade de Coimbra, e atuante na cidade há muitos anos,
pelo menos, desde 1902. Antes de abrir sua própria escola, Custódio havia lecionado “em casa das
principaes famílias da capital”, sendo “muito considerado” na cidade. Realmente, entre as pessoas que
prestigiaram o seu enterro, constavam nomes de famílias importantes, tais como Eduardo Prado Sobrinho,
Flávio Uchôa, Alfredo Prado e outros.
publicados em O Estado de São Paulo, a escola era portadora de qualidades que
qualificavam os seus serviços para as famílias de fino trato da região – “as mais vastas e
luxuosas accommodações, aulas próprias, grande pomar, grande recreio e terreno para
jogos e divertimentos”. Sua localização era especialmente estratégica: na rua Treze de
Maio, esquina com a Av. Brigadeiro Luís Antônio; e mais – uma das entradas do prédio
era feita pela rua dos Ingleses.

Figura 82 – Como podemos observar, no mapa SARA


Brasil, o Ginásio Luzitano, entre as ruas Treze de Maio
e dos Ingleses, quase esquina com a Brigadeiro Luís
Antônio, fazia de sua localização um ponto estratégico
para os moradores do Morro dos Ingleses. E por que
não dizer? Para as famílias mais abastadas do próprio
loteamento original. Fonte: SARA Brasil, Fl.51, 1930.
AHSP.

 1927
Neste ano, o número de anunciantes no Almanaque Laemmert decaiu para 272
atividades, com uma diminuição de 6,84% em relação ao biênio 1922-23. Embora esta
redução tenha se manifestado em todos os ramos beneficiados no período anterior
(alimentação, serviços pessoais, comércio em geral, saúde e construção civil), é possível
observar que alguns segmentos de certos setores produtivos apresentaram um pequeno
avanço. Isso ocorreu especialmente no caso dos setores de vestuário e acessórios, saúde,
serviços pessoais e comércio em geral.
ATIVIDADES TOTAL
ALIMENTAÇÃO, BEBIDAS, ALOJAMENTOS E LAZER 104
SERVIÇOS PESSOAIS 31
COMÉRCIO EM GERAL 28
SAÚDE 28
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 21
CONSTRUÇÃO CIVIL 20
ARTES E OFÍCIOS 11
AGENTES COMERCIAIS 8
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 5
COM. APARELHOS ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS 4
EDUCAÇÃO 4
OFICINAS E/OU MANUFATURAS 4
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO 3
TRANSPORTE 1
TOTAL 272
Tabela 43 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1927. Acervo Digital FBN.
O item vestuário e acessórios foi aquele que sofreu um aumento mais significativo,
pois dos 12 anúncios publicados anteriormente, passou a 21, em 1927. Nesse caso, o ramo
de calçados, representado pelo comércio e fabricação desse produto (com onze
ocorrências), foi determinante para o crescimento do setor.
LOGRADOURO N. ATIVIDADE PROPRIETÁRIO
CONSELHEIRO RAMALHO 24 CALÇADOS/ FÁBRICANTES DE CARMINE VALENTE
CALÇADOS
CONSELHEIRO RAMALHO 103 CALÇADOS JACOB DI LASCIO
CONSELHEIRO RAMALHO 141 CALÇADOS M. VECCHIO & CIA.
MAJOR DIOGO 54 FABRICANTES DE CALÇADOS ANGELO D’ARACE
MAJOR DIOGO 118 CALÇADOS JOSÉ PASQUALUCCE
MANOEL DUTRA 68 B FABRICANTES DE CALÇADOS C. PELLEGRINO & CIA.
SANTO ANTÔNIO 19 CALÇADOS OROZIMBO OLIVEIRA & CIA.
SANTO ANTÔNIO 254 CALÇADOS J. STABILE & COURADO
(SAPATARIA SANTO ANTÔNIO)
SANTO ANTÔNIO 456 CALÇADOS CASA VENERE
SÃO DOMINGOS 110 FABRICANTES DE CALÇADOS BRAZ MARCHESANO
TREZE DE MAIO - CALÇADOS MIGUEL ABRAHÃO KEIRALLA

Tabela 44 – Negócios que envolvem o comércio e a fabricação de calçados, no loteamento original do bairro do Bexiga.
Almanaque Laemmert, 1927. Acervo Digital FBN.

O fabricante e comerciante de calçados Carmine Valente, pelo menos desde 1921,


teve seu negócio sempre no mesmo endereço, na rua Conselheiro Ramalho n.24. O mesmo
ocorreu com Jacob di Lascio, cujo estabelecimento também localizava-se na rua
Conselheiro Ramalho n.103. Antes de dedicar-se ao comércio de calçados, entre 1909 e
1914, Lascio foi proprietário de duas casas de secos e molhados. Da primeira, localizada
no número 89 da mesma rua, temos a notícia que em fevereiro de 1909 foi vendida para
Luiz Musiello; já a segunda casa foi comprada pela firma Ortoli & Comp., em 15 de maio
de 1913. De acordo com o comunicado publicado em O Estado de São Paulo naquela data,
a venda do negócio teria sido por motivos de viagem do proprietário à Europa. Entretanto,
ainda há referências ao estabelecimento no exemplar do Almanaque de 1914.

Figura 83 – O Estado de São Paulo, 04/02/1909.

Figura 84 – O Estado de São Paulo, 15/05/1913.

Sejam quais forem as motivações para Lascio se desfazer dos negócios – se teve
problemas financeiros, ou mesmo se realmente viajou para a Europa –, o fato é que de
1921 até 1927 trabalhou no ramo de calçados. Curiosamente, em 1931, ele retomou o
armazém de secos e molhados no mesmo local. Mas Jacob di Lascio não foi o único
comerciante de calçados que diversificou seus negócios. José Pasqualucce, antes de
estabelecer a loja de calçados na rua Major Diogo n.118, comercializou bilhetes postais na
rua Santo Amarto n.130 (1921 a 1923) e manteve loja de calçados até 1931 na rua Maria
José n.33.
Outro fabricante de calçados estabelecido no loteamento original desde o início dos
anos 1920 foi a firma C. Pellegrino & Cia.(1921 a 1927), sempre na rua Manoel Dutra
n.68B. No mesmo local, consta em 1931 o nome Pelegrini & Cia. A associação do nome
Pellegrino ao ramo de calçados remete a uma marca bastante conhecida na segunda metade
do século XX, a Calçados Pellegrini. Localizei no ano de 1910 a primeira referência a
uma loja de calçados pertencente a um certo Vicente Pelligrini, na rua Major Diogo n.12.
Mais tarde, de acordo com O Estado de São Paulo, de 24 de junho de 1913, a Câmara
Municipal de Jundiaí recebeu uma solicitação em nome do mesmo Vicente Pellegrini no
sentido de obter “favores para montagem de uma fábrica de calçados nesta cidade”. No
mesmo dia, o jornal noticiou na coluna “Notícias Diversas”, a futura abertura de uma
fábrica de calçados pelo industrial Vicente Pellegrini, para o que ele havia solicitado “a
concessão de terreno para a construção do edifício de sua fábrica, dependências e casas
para operários, bem como isenção de impostos”168. Não localizei mais notícias que
confirmassem se Vicente conseguiu ou não os favores solicitados à Câmara Municipal de
Jundiaí, o que leva a crer que as coisas não deram certo. Menos de um ano após a tentativa
de implantar uma fábrica de calçados em Jundiaí, foi decretada a falência de Vicente
Pellegrini, “estabelecido com fábrica de calçados à rua de Santa Ifigenia n.66”169.
Essas breves notícias indicam que, de 1910 até 1914, Vicente Pellegrini passou por
percalços. Desde que teve a primeira loja, na rua Major Diogo, ele havia conseguido
montar uma fábrica de calçados na região central da “Cidade”, na rua Santa Ifigênia. No
entanto, esse foi um negócio que sobreviveu à passagem do tempo, assim como dos
costumes. A consulta a números de diferentes anos de O Estado de São Paulo demonstra a
presença da Pellegrini Calçados ainda ano de 1980 na rua Conselheiro Ramalho n.362.

168
O Estado de São Paulo, 24/06/1913.
169
O Estado de São Paulo, 15/01/1914.
Figura 85 – Anúncio publicado em O Estado de São Paulo, em 09/03/1980.

Conforme matéria publicada no blog de Romildo de Paula Leite, acerca da atual


produção artesanal de calçados,
(...) não muito longe do centro de São Paulo, na Barra Funda, o descendente de italianos
Renzo Nalon toca a Pellegrini Calçados. Fundada pelo seu tio Vicenzo Pellegrini em 1902,
a empresa atravessou altos e baixos, abriu e fechou lojas e quase faliu. Conseguiu, no
entanto, atingir a marca de mais de um século de existência (...) (grifo nosso)170.

Entretanto, Vicente parece não ter sido o único Pellegrini a trabalhar nesse ramo de
negócios. Além da fábrica de calçados de C. Pellegrino & Cia., localizei o fabricante de
pomadas para calçados Angelo Pellegrino, estabelecido na rua Santo Amaro n.74 (1917 a
1931). Infelizmente, não foi possível confirmar os laços entre os Pellegrini, se a Pellegrini
Calçados era a mesma firma gerida por C. Pellegrino & Cia., ou mesmo se tratava-se de
diferentes negócios geridos por pessoas da mesma família.
Os demais comerciantes, M. Vecchio & Cia, Angelo d’Arace, Orozimbo Oliveira
& Cia., Braz Marchesano, Miguel Abrahão Keiralla, assim como a Sapataria Santo
Antônio e a Casa Venere se mantiveram no loteamento original do Bexiga por poucos
anos, basicamente entre 1924 e 1927. Ainda assim, sua presença já indica uma tendência
que se confirmou em 1931 quando o bairro apresentou, além de 24 lojas de calçados e 4
fabricantes do produto, uma certa preferência por aquela área por parte de fabricantes e
comerciantes. Acrescente-se que embora o Almanaque Laemmert de 1927 não faça menção
à fábrica de calçados Scatamacchia, localizada à rua Major Diogo n.48, cuja construção
data de 1922171, em 1927 ela comprovadamente estava em pleno funcionamento. É o que
se depreende da notícia publicada em O Estado de São Paulo, por ocasião da visita que o
Cônsul Geral da Itália fez à “conhecida fábrica de calçados Scatamacchia, à rua Major
Diogo, no pitoresco bairro operário do Bexiga”. De acordo com a matéria, tratava-se de
uma das principais indústrias da América do Sul172, então instalada em nosso bairro.

170
Publicado em 21/02/2014. Disponível em: http://textileindustry.ning.com/profiles/blogs/veteranos-mant-
m-viva-a-tradi-o-dos-sapatos-feitos-sob-medida. Consulta em: 06/11/2014.
171
Conforme a Série Obras Particulares, em 20/02/1922 a Scatamacchia & Cia. encaminhou à Diretoria de
Obras uma solicitação de licença para a construção do prédio para uma fábrica de calçados à rua Major
Diogo n.48.
172
O Estado de São Paulo, 07/05/1927.
No caso da saúde, os médicos e os dentistas foram os responsáveis pelo relativo
crescimento do setor. Os primeiros totalizaram 8 anúncios, em contrapartida aos 4 casos
registrados no período anterior. Já os anúncios publicados pelos dentistas somaram 10
casos, contra os três existentes em 1922-23.
ENDEREÇOS ENDEREÇOS
N. NOMES PROFISSÕES
RESIDENCIAIS PROFISSIONAIS
CONSELHEIRO RAMALHO 12 MATHIAS LOBBATO MÉDICO -
CONSELHEIRO RAMALHO 164 NICANOR CAMPOS DENTISTA -
CONSELHEIRO RAMALHO 205 SOB. SALVATORE CONTE MÉDICO -
MAJOR DIOGO 74 ARMANDO ROSCO DENTISTA -
MANOEL DUTRA 13 JOAQUIM SERRA DENTISTA MANOEL DUTRA, 13 E
SÃO BENTO, 33
MANOEL DUTRA 22 E. CARVALHO DENTISTA -
MANOEL DUTRA 38 ERNESTO TRAMONTI MÉDICO PÇA.DA REPÚBLICA, 15
MANOEL DUTRA 50 A ARTHUR MARTINS DA COSTA PASSOS MÉDICO -
RUI BARBOSA 149 ODUVALDO MOREIRA MÉDICO -
SANTO ANTÔNIO 19 J. BARBOSA FILHO DENTISTA -
SANTO ANTÔNIO 75 HUMBERTO CARNEIRO DENTISTA -
SANTO ANTÔNIO 90 VICTOR F. SARAIVA DENTISTA -
SANTO ANTÔNIO 99 MARIA RENNOTTE MÉDICO SANTO ANTÔNIO, 99
SANTO ANTÔNIO 141 HEITOR QUILICI DENTISTA CELSO GARCIA, 103
SANTO ANTÔNIO 248 DOMINGOS D’AMBROSIO MÉDICO -
TREZE DE MAIO 44 VIRGILIO DE PAIVA DENTISTA -
TREZE DE MAIO 48 JOÃO LASCALA DENTISTA -
TREZE DE MAIO 154 ALUISIO FAGUNDES MÉDICO LGO.DO PALÁCIO, 7

Tabela 45 – Médicos e dentistas com residência e/ou consultório no loteamento original do Bexiga, Almanaque
Laemmert. Acervo Digital FBN.

Entre os médicos, exceptuando-se a médica suíça Maria Rennotte, que residia e


clinicava no Bexiga desde 1909, e Mathias Lobbato, morador na rua Conselheiro Ramalho
n.12 desde 1917, os demais profissionais possuíam residência recente no bairro, ali
chegando a partir de 1924. O mesmo se aplicava aos dentistas, salvo Joaquim Serra, com
residência e consultório na rua Manoel Dutra n.13 desde 1913. Nos demais casos, ao
investigar os anúncios publicados no jornal O Estado de São Paulo, observa-se que as
referências profissionais sempre se relacionam a outros locais, no Centro ou mesmo em
outros bairros.

Figura 87 – O Estado de São Paulo, 03/11/1925.


Figura 86 – O Estado de São Paulo, 21/02/1914.

Figura 88 – Heitor Quilici, com “gabinete dentário à Figura 89 – Aluísio Fagundes, com consultório no
Av. Celso Garcia, 103, no Brás. O Estado de São Lgo. do Palácio n.7, e residência na rua Cubatão. O
Paulo, 14/02/1925. Estado de São Paulo, 29/09/1925.
Figura 90 – Ernesto Tramonti, com consultório na Pça.
da República n.15. O Estado de São Paulo,
09/02/1927.

Os endereços fornecidos pelo Almanaque Laemmert indicam uma clara preferência


pelas ruas Santo Antônio, Manoel Dutra, Conselheiro Ramalho e Treze de Maio, o que
pode significar que se o bairro não fosse um bom local para esses profissionais exercerem
o seu ofício, o era para se viver.
Aqui cabem algumas considerações acerca da presença dos médicos e dentistas do
Bexiga. Enquanto foi em 1927 que o loteamento original registrou o número máximo
desses profissionais, ao analisar a “área nobre”, constata-se que no mesmo período se
iniciou uma espécie de êxodo dos profissionais ali estabelecidos. A presença daquelas
categorias na área de influência da Av. Brigadeiro Luís Antônio havia atingido seu auge
em 1918, quando foram registrados 16 casos, passando a decair a partir de então, chegando
a apenas 4 profissionais em 1931, o que talvez possa ser creditado a uma busca de
endereços mais valorizados socialmente. Quanto aos dentistas, somente em 1927 é que a
categoria alcançou o número máximo de registros, num total de 5 profissionais, caindo
para apenas 3 pessoas no final do período investigado, 1931.
A comparação do comportamento dessas categorias nas duas áreas do bairro
demonstra que independentemente desses profissionais terem permanecido por tempo
limitado no bairro do Bexiga, houve uma preferência pelo loteamento original. No entanto,
é difícil creditar essa preferência a algum motivo especial. Podia se tratar de uma busca por
aluguéis mais baratos por parte daqueles que estivessem em início de carreira, pelo anseio
de proximidade de pessoas com a mesma origem étnica quando fosse o caso de algum
descendente de estrangeiros ou, eventualmente, quando o profissional fosse proprietário do
imóvel onde morasse e/ou trabalhasse, caso da Dra. Maria Renotte. Tal hipótese parece se
confirmar quando se analisa outra categoria de profissionais liberais, os advogados.
Inseridos aqui no setor de serviços pessoais, a categoria se destacou particularmente pela
presença de 14 profissionais concentrados especialmente nas ruas Rui Barbosa, Santo
Antônio e Conselheiro Ramalho.
Se pensarmos que a conquista de um diploma de curso superior ainda era um
privilégio quase sempre restrito a pessoas com recursos financeiros, e que ali havia um
número razoável desses profissionais, essa hipótese pode ser vista como um indício de que
o Bexiga, naquele momento pelo menos, era um bairro de ocupação social heterogênea.
ENDEREÇOS ENDEREÇOS
N. ADVOGADOS
RESIDENCIAIS PROFISSIONAIS
ABOLIÇÃO 3 OPHILIO AGUIAR -
CONSELHEIRO RAMALHO 77 JOSÉ CUSTÓDIO SOARES -
CONSELHEIRO RAMALHO 133 FERNANDO MACHADO -
FORTALEZA 18 ANTÔNIO CODINHO FILHO -
MAJOR DIOGO 7 JOSÉ LUÍS DE ALMEIDA NOGUEIRA -
RUI BARBOSA 143 LEOPOLDO DE FREITAS -
RUI BARBOSA 149 FORTUNATO MOREIRA -
RUI BARBOSA 149 GASTÃO MOREIRA 173 -
RUI BARBOSA 153 TITO LEMOS SÃO BENTO, 59
RUI BARBOSA 156 ANTÔNIO CAMPOS -
SANTO ANTÔNIO 15 VICENTE SANTALUCIA -
SANTO ANTÔNIO 140 LUÍS AUGUSTO ARAÚJO -
SANTO ANTÔNIO 202 ANTÔNIO CABRAL -
SÃO DOMINGOS 75 PEDRO ARAUJO NETTO -
TREZE DE MAIO 61 SALVADOR NOCE -

Tabela 46 – Advogados com residência e/ou escritório no loteamento original do Bexiga. Fonte: Almanaque Laemmert.
Acervo Digital FBN.

Embora muitas das atividades produtivas abordadas neste trabalho tenham


envolvido o comércio de algum tipo de produto – como ocorreu, por exemplo, com os
setores de alimentação (casas de secos e molhados, açougues, quitandas, padarias, etc.), da
saúde (farmácias), vestuário (casas de roupas e calçados), móveis e utilidades domésticas,
etc. –, a diversidade de produtos oferecidos em pequenos estabelecimentos disseminados
pelo bairro e nem sempre passíveis de serem inseridos em alguma das categorias arroladas
nos levou a criar a categoria a qual chamamos comércio de produtos diversos, ou comércio
em geral (Anexo 2 – Atividades identificadas). Nesse grupo de atividades foi possível
identificar uma quase infinidade de produtos, voltados à satisfação de múltiplas
necessidades dos moradores do bairro e adjacências. Nas lojas de ferragens e
quinquilharias encontram-se produtos para a manutenção do cotidiano doméstico,
envolvendo desde pequenos consertos (caso das tintas e ferragens) até a louça e outros
utensílios de uso diário; nas casas de armarinhos, fazendas e modas e bazares, havia os
produtos para donas de casa e costureiras (artigos para bordar, linhas de costura, fazendas e
alguma roupa pronta); nas (raras) papelarias, artigos para escritório e estudantes. Além
desses estabelecimentos, de comércio marcadamente heterogêneo, haviam aqueles mais
específicos, onde se encontrava artigos voltados ao exercício de algumas atividades
profissionais, caso do comércio de couros e peles, para sapateiros e seleiros; artigos que
poderiam servir tanto a profissionais quanto aos moradores do bairro (cordoarias e
barbantes, sacarias e sacos de papel, tintas de escrever, lenha e carvão vegetal etc).

173
Embora Gastão Moreira esteja inscrito no Almanaque Laemmert como advogado, as matérias que fazem
referência à sua atuação profissional, na imprensa paulista, o identificam como engenheiro. O Estado de São
Paulo, 19/04/1925, p.8; e 30/01/1937, p.7.
Outros estabelecimentos comercializavam brinquedos, fumos e charutarias, flores naturais
e artificiais, coroas e artigos funerários, loterias, perfumarias e objetos de “toilette”, e
por fim um caso bastante interessante, aquele dos belchiores, locais onde se vendia roupas
e objetos usados174. Tratava-se da loja de João Curcio, localizada na rua Conselheiro
Carrão n.59, local onde ele também comercializava bilhetes postais desde 1921. A partir de
1924, Curcio introduziu o belchior, mantendo então os dois comércios até 1927,
modalidade esta certamente voltada aos moradores mais pobres do loteamento original.
Grünspun, em seu livro Anatomia de um bairro. O Bexiga, faz menção a um certo
vendedor ambulante que “gritava num tom ouvido por todo o bairro: ‘Rópa Velha’,
significando compra ou venda (do produto)”. Adiante, ele entra em detalhes:
O judeu da ‘Rópa Velha’ passava na segunda-feira e tinha carradas de razões para isto,
pois os moradores do Bexiga no domingo iam visitar os parentes e compadres bem
situados no Brás ou Barra Funda e aí ganhavam, como primos pobres, as roupas velhas e
casacos velhos, de tecido inglês e italiano, que estavam sendo trocados por roupas da
moda. Já na volta, no domingo mesmo, o povão do Bexiga calculava quanto o homem da
‘Rópa Velha’ podia lhe pagar (1979, p.85-86).

Assim, verificamos que se tratava de uma modalidade comercial de “duas mãos”,


onde se podia comprar roupas usadas, mas também era possível vender. Contudo, da
mesma maneira como foram raras as referências aos belchiores na imprensa da época,
também foram poucas as casas dedicadas a esse tipo de comércio, pelo menos aquelas
ostensivamente assumidas como tal.
Ainda que a diversidade fosse uma marca do comércio no bairro, naquele ano as
atividades que envolveram essas atividades foram pouco expressivas, destacando-se apenas
as 14 lojas de armarinhos, assim distribuídas: 1 casa na rua Conselheiro Carrão, 5 casas na

174
Localizei raríssimas referências a esse tipo de comércio. A primeira delas, uma notícia no jornal O Estado
de São Paulo, de 02/07/1929, dava contas de um certo Adolpho Schiller, cidadão “tcheco-esloveno”
estabelecido com uma loja de objetos usados no Largo do Paissandú que, envolvido com o comércio de
objetos roubados, havia sido expulso do país. Na matéria fica bem clara a associação que se fazia entre esse
tipo de comércio e a ilegalidade: “Para a polícia é desnecessario frisar neste relatorio que esses cavalheiros
de industria são os piores elementos que se possa imaginar. (...) Devemos, sim, é precaver-nos contra esses
pseudos commerciantes”. Três anos depois, encontramos no jornal A Batalha, do Rio de Janeiro, um artigo
denominado “Uma nova modalidade de enganar o próximo”, onde o articulista confirma essa situação:
“Procurando apurar essa modalidade de ‘chantage’, fizemos várias investigações em torno do assumpto (...)
E chegamos à conclusão que os ‘belchior’ de roupas usadas, estão ligados aos espertalhões, tirando ambos
optimos lucros no negocio” (27/01/1932). No mesmo jornal, encontramos, em 17/06/1939, essa categoria de
comércio, agora como anúncios de atividades, sob a rubrica SERVIÇOS DE PUBLICIDADE
ESPECIALISADA – POR TORRES PEREIRA. Conforme os serviços anunciados, havia nos números 10,
11, 12, 13, 14, 21, 23 e 25, da Rua Visconde do Rio Branco, diversas casas dedicadas ao comércio de roupas
e livros usados, ambos classificados como da “espécie: belchior”. A presença desses anúncios parece indicar
uma provável incorporação desse tipo de comércio ao cotidiano urbano, respondendo às necessidades da
população mais pobre, sem poder aquisitivo para a aquisição de produtos novos.
rua Conselheiro Ramalho, 1 na rua Dr. Luís Barreto, 1 na rua Rui Barbosa, 5 casas na rua
Santo Antônio, 1 na rua Treze de Maio e 1 na rua Jaceguai.
Acerca do comércio no bairro, Grünspun faz uma referência interessante a esses
estabelecimentos:
Algumas lojas de fazendas, que vendiam todas as quinquilharias que as costureiras
precisavam. Algumas destas lojas eram de judeus (...). As outras lojas eram de sírio-
libaneses ou libaneses só, que tinham parentes com grandes armazéns na rua 25 de Março
(1979, p.83).

Já me reportei à presença de sírio-libaneses no Bexiga exercendo exatamente esse


tipo de comércio. Mas a existência de casas de armarinhos no bairro traz mais do que a
simples confirmação da presença desses atores sociais – ela evidencia a difusão desse tipo
de comércio pelos bairros da capital paulista. Para os “pequenos compradores” valia a pena
talvez pagar um pouco mais pelo produto ao invés de se dirigir ao Centro para obter o que
se necessitava. Nesse sentido, se justifica a ocorrência de tantas lojas de armarinhos no
bairro.
Último dos setores a se destacar neste ano, a construção civil (com 20 registros)
ainda que tenha sofrido um decréscimo em relação ao período anterior (com 22 registros),
merece uma análise mais atenta, particularmente no que se refere ao exercício de ofícios
vinculados à edificação e/ou reforma de prédios (carpinteiros, marceneiros,
encanadores/bombeiros hidráulicos e pintores/decoradores) e aos profissionais vinculados
aos canteiros de obras (construtores e engenheiros).
NEGÓCIOS LOGRADOUROS N. PROFISSIONAIS
CARPINTARIAS CONSELHEIRO RAMALHO 61 BRAZ MARTINS
MARCENARIAS CONSELHEIRO RAMALHO 75 ACHILLES SANTORO
MARCENARIAS CONSELHEIRO RAMALHO 75 FELIPPO DINUCCI & CIA.
CARPINTARIAS CONSELHEIRO RAMALHO 75 FELIPPO DIRMECCI & CIA.
CARPINTARIAS CONSELHEIRO RAMALHO 221-223 MIGLIOLI & ROSETTI
MARCENARIAS CONSELHEIRO RAMALHO 221-223 NIGLIOLI & ROSETTI
CARPINTARIAS MANOEL DUTRA 63 A FALCHI & BUSCARMI
CARPINTARIAS SÃO DOMINGOS 47 ANTÔNIO MASTROROCO & FILHOS
MARCENARIAS TREZE DE MAIO 39 AUGUSTO JORGE SAVIALLI
MARCENARIAS TREZE DE MAIO 134 A LUÍS SANTORO
BOMBEIROS HIDRÁULICOS CONSELHEIRO RAMALHO 280 THOMAZ PICAZIO
PINTORES E DECORADORES MAJOR DIOGO 146 ARISTIDES VISCONDE

Tabela 47 – Profissionais vinculados ao setor da construção civil, no loteamento original do Bexiga. Fonte: Almanaque
Laemmert. Acervo Digital FBN.

Entre as 5 carpintarias e as 5 marcenarias relacionadas pelo Almanaque, chamam


a atenção os casos dos profissionais que anunciaram seus serviços ora como carpintaria,
ora como marcenaria. Foi o que ocorreu com Felippo Dirmeci & Cia., com oficina na rua
Conselheiro Ramalho n.75 e com Miglioli & Rosetti, com oficina na mesma rua, nos
números 221 e 223. Acresce que no caso da Dirmeci & Cia., o provável sócio, Achilles
Santoro também divulgou seus serviços num anúncio à parte175, onde especificou seu
ofício como marceneiro, demonstrando que se tratava de áreas de trabalho
complementares. Dessa maneira, ambos podiam assumir diferentes fases da construção e
assim garantir mais possibilidades de trabalho.
A oficina de Miglioli & Rosetti estava estabelecida no bairro há muito tempo. De
acordo com a Série Obras Particulares, em 11/03/1913, o construtor Pedro Amadesi
encaminhou projeto para o “acréscimo de uma oficina” em nome de Miglioli & Renzetti,
no mesmo endereço em que estaria em 1927 176.

Figura 91 – Projeto para aumento da oficina de Miglioli & Renzetti, à rua Conselheiro Ramalho n.221.

A partir dessa informação é possível pensar que a oficina, assim como a sociedade
entre os dois, fosse anterior ao aumento do prédio, o que não foi possível comprovar. Por
outro lado, localizei no Diário Oficial do Estado de São Paulo, de 29/09/1949, uma
Declaração à Praça, onde ambos declaram a venda do estabelecimento industrial
“denominado ‘SERRARIA E CARPINTARIA CONSELHEIRO RAMALHO’, situado a rua
Conselheiro Ramalho n.840, a Santopaolo, Pedrini & Cia. Ltda”. Desde a reforma do
imóvel, em 1913, haviam se passado trinta e seis anos. Independentemente dos motivos
que tenham levado os sócios a se desfazerem da serraria, esse foi um tempo longo o

175
Cabe esclarecer que as duas profissões se relacionam ao trabalho com a madeira, sendo que a carpintaria
está diretamente ligada aos componentes estruturais das edificações, enquanto a marcenaria se incumbe da
confecção de peças de acabamentos mais elaboradas. Conforme o Centro de Estudos Avançados da
Conservação Integrada (CECI), da Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco, “a importância da
madeira na arte da construção desde cedo resultou na separação de dois tipos de ofícios: os carpinteiros e
os marceneiros. Ao primeiro caberia a execução de componentes estruturais (como vigas, esteios, tesouras,
escadas, assoalhos e etc.). Ao segundo, a produção de objetos utilitários e artísticos (portas, janelas,
armários, cômodas, cadeiras, retábulos e etc)”. Disponível em: http://www.ct.ceci-
br.org/ceci/pesquisa/estudos/oficios-tradicionais/carpintaria-a-marcenaria.html.
176
Série Obras Particulares, OP/1913/001.652, AHSP.
suficiente para comprovar que o negócio tenha prosperado e garantido a sobrevivência dos
envolvidos.
Poder-se-ia creditar essa dualidade de atividades ao fato de que nos dois casos se
tratava de sociedades, onde cada uma das partes poderia desempenhar uma função
específica. Porém, no mesmo ano, identifiquei uma situação em que uma única pessoa
exerceu as duas funções, o que ocorreu com Luís Santoro que entre 1921 e 1923 figurava
como carpinteiro e, a partir de 1924, como marceneiro. Com Thomaz Picazio,
estabelecido na rua Treze de Maio n.134 A, a situação foi semelhante. Ao mesmo tempo
em que seu nome consta no Almanaque Laemmert como bombeiro hidráulico (entre 1921
e 1927), também consta como ferreiro e serralheiro (entre 1924 e 1927). Já em 1931,
Picazio era proprietário de uma casa de ferragens e quinquilharias.
Afinal, tudo redunda numa situação já tão conhecida no bairro, a diversificação de
atividades, mas não apenas isso. Na medida em que um ofício deixasse de apresentar uma
resposta positiva por parte do mercado consumidor – por crise econômica, pela
necessidade do profissional se destacar em meio a outros tantos concorrentes, ou mesmo
pela obsolescência do serviço ou produto final –, se tratava de a partir de uma determinada
especialidade desenvolver outra que não lhe fosse totalmente estranha e se adequar melhor
ao momento. É o que parece ter acontecido com Antônio Mastroroco, que junto aos filhos,
aparece em 1927 com uma carpintaria na rua São Domingos n.47. Ocorre que até um ano
antes (entre 1924 e 1926) seu negócio se definia como uma fábrica e oficina de
carruagens, sem vínculos aparentes com o setor da construção civil. Ora, a fabricação ou
conserto de carruagens envolvia o manejo da madeira... Se aquela atividade específica,
vinculada ao setor de transportes se assentava no manejo da madeira, ela também abria a
possibilidade do profissional desenvolver outros produtos a partir desse material, fosse
qual fosse sua utilização. O importante era sobreviver! Tanto era assim, que em 1931
encontrei um certo Diogo Antônio Mastroroco estabelecido no mesmo endereço e de volta
ao setor de transportes, agora com uma oficina de carroças. E mais, em 1935, enquanto o
mesmo Diogo se mantinha na rua São Domingos n.47, Antônio (provavelmente o pai)
estava estabelecido na rua Dr. Luís Barreto n.32 – ambos envolvidos agora com o negócio
de couros.
Parece evidente que a fluidez de atividades que envolviam a sobrevivência das
camadas médias e baixas da população nas primeiras décadas do século XX foi uma
realidade comum no bairro, e acreditamos que não se tratasse de um fenômeno restrito ao
Bexiga mas extensivo a outros bairros populares da capital paulista. No entanto, tal
afirmação carece de fundamentos baseados em outras investigações.
Resta falar dos profissionais cujas atividades estavam mais diretamente ligadas aos
canteiros de obras, os construtores e engenheiros.
PROFISSIONAIS LOGRADOUROS N. ATIVIDADES
ALFREDO ALVES TREZE DE MAIO 120 CONSTRUTORES
HUMBERTO BADOLATO MARIA JOSÉ 42 CONSTRUTORES
JOSÉ FUGULIN SÃO VICENTE 36 CONSTRUTORES
LEOVILDO TRINDADE RUI BARBOSA 151 ENGENHEIROS
PAULO ALVES PIMENTEL TREZE DE MAIO 152 ENGENHEIROS
THEODORO SAMPAIO CONSELHEIRO RAMALHO 63 ENGENHEIROS

Tabela 48 – Profissionais diretamente vinculados aos canteiros de obras. Fonte: Almanaque Laemmert. Acervo Digital
FBN.

De acordo com as informações fornecidas pelo Almanaque Laemmert, os


construtores Alfredo Alves, José Fugulin e Humberto Badolato teriam vivido no bairro do
Bexiga por pouco tempo, cerca de três ou quatro anos. Sobre Humberto Badolato há mais
informações177. Era um italiano, natural da Calábria e aqui chegou com a família por volta
de 1896 ou 1897. Conforme a documentação consultada, com exceção de um período
passado na cidade de Salvador, por volta de 1913, Badolato sempre morou no Bexiga, nas
ruas Maria José e Saracura Pequena (1921?). O primeiro projeto localizado em seu nome,
se refere à construção de uma casa na rua Fortaleza e data de 1908; o segundo, apresentado
em 1909, se destinava à construção de duas casas na rua Treze de Maio n.113 e 115. De
outro lado, em duas ocasiões, o jornal Correio Paulistano informava os leitores sobre o

177
Casualmente, alguns anos antes de iniciar minhas pesquisas sobre o bairro do Bexiga, descobri que
Humberto Badolato era meu tio-avô, pelo lado paterno. Desde menina, havia uma “lenda” familiar que dizia
que um irmão de minha avó havia sido arquiteto (ou engenheiro...), e que trabalhara na construção do
elevador Lacerda, em Salvador/Bahia. Posteriormente, ao ler o trabalho de Célia Toledo Lucena, Bixiga,
amore mio (1983), localizei Humberto e uma irmã, como moradores do bairro – ele trabalhou na construção
da igreja da Achiropita, e ela, Therezinha, doara uma imagem para um dos altares do templo. Mais tarde, por
ocasião de trabalho desenvolvido junto ao Arquivo Histórico Municipal Washington Luís (2008-1010),
reencontrei-o como um dos construtores que atuou na cidade de São Paulo. Outros pesquisadores a localizar
Badolato foram Lindener Pareto e Clara Correia d’Alambert. Em sua dissertação de mestrado, O cotidiano
em construção: os “práticos licenciados” em São Paulo (FAUUSP, 1911), Pareto identificou Badolato como
um prático licenciado, morador na rua Maria José n.50, no bairro do Bexiga (p.183); d’Alambert, em sua tese
de doutorado, Manifestações da arquitetura residencial paulistana entre as grandes guerras (FAUUSP,
2003), lista Badolato como um dos autores de projetos residenciais realizados em 1923 (p.231-232). Movida
pela curiosidade, procurei levantar mais informações. Entre essas, as mais relevantes para esta abordagem se
referem à sua atuação em outras áreas da cidade, que não apenas o bairro do Bexiga, o que inclui além de
projetos para residências, a participação na construção do prédio que atualmente abriga o Centro de Estudos
Musicais Tom Jobim, o antigo Hotel Flórida (ou Piratininga), no Largo General Osório n.147, bairro da Luz.
Infelizmente, essa matéria foi publicada na web há alguns anos, e agora não encontramos mais quaisquer
referências a ela. De todas as informações recolhidas, vale destacar um aspecto em especial, que é o papel
representado pelo construtor – sem formação acadêmica, mas portador de um ‘saber fazer’ de fato, que por
força da institucionalização do ensino da profissão, frequentemente se auto denominou ‘engenheiro-
arquiteto’ –, na construção da cidade, e como, pelo menos até a primeira década do século passado, esse
papel ainda era valorizado pelo cidadão comum que aqui vivia. É bom lembrar que nas famílias Badolato e
Schneck ele era reconhecido como o arquiteto (ou engenheiro...), o que lhe conferia um status especial sobre
os demais membros da família...
andamento de processos construtivos junto à Diretoria de Obras e Viação do Município:
um se refere à construção de duas casas à rua Conselheiro Brotero n.189 e 191, e outro à
construção de um muro, na rua Álvaro Ramos n.13178.

Figura 92 – Projeto de autoria de Humberto Badolato, para construção de duas casas na rua Treze de Maio n.113 e 115.
Note-se que as casas eram de propriedade do próprio construtor179.

Com relação a José Fugulin, de acordo com os registros dos profissionais inscritos
no Departamento de Obras e Serviços Municipais, em 1936 ele seguramente morava no
Bexiga, mais precisamente na rua São Vicente n.20. Naquela ocasião Fugulin obteve
licença para exercer o ofício de “arquiteto”, competência esta avalizada pelo Conselho
Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA)180.
Quanto aos engenheiros, as buscas por informações acerca desses profissionais
indicaram que nem sempre seus nomes estiveram vinculados aos canteiros de obras181.
Paulo Alves Pimentel em 1906 era aluno da Escola Politécnica e, seis anos depois, em
1912, ele foi nomeado como ‘ajudante de engenheiro’ na Repartição de Obras da Prefeitura
de Campinas; por fim, em 1914 saiu sua nomeação “para exercer o cargo de engenheiro
de districto da Directoria de Obras Públicas” do estado182.

178
Correio Paulistano, 01/07/1922, e 23/01/1929.
179
Obras Particulares, OP 1909-002.394/PR001. AHSP.
180
Essa informação me foi transmitida pelo pesquisador Lindener Pareto Junior, citado na nota anterior.
181
Esse parece ter sido o caso de Leovildo Trindade, cuja única referência localizada reporta à sua
designação como técnico especializado na ação movida pelas Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo
contra a Alfândega de Santos, sobre uma certa “classificação de mercadorias” despachadas pela Matarazzo
naquela alfândega. Tratava-se da elaboração de laudo identificatório do tipo de mercadoria – ao que parece,
se eram simples barras de aço, ou “eixos por acabar” como ficou definido pelo engenheiro. Infelizmente, as
informações não são precisas e não conseguimos identificar a especialidade de TrindadeDiário Oficial da
União (DOU), 09/02/1942, p.75. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2153072/pg-75-secao-
1-diario-oficial-da-uniao-dou-de-09-02-1942/pdfView. Consulta em: 27/11/2014.
182
Informações recolhidas, respectivamente em: O Estado de São Paulo, de 11/06/1906 e 05/01/1912; e
Diário Oficial do Estado de São Paulo, 20/03/1914.
Deixamos para o final do período um caso curioso, um tal Theodoro Sampaio,
(suposto) morador da rua Conselheiro Ramalho n.63. Seria o engenheiro baiano? A
resposta à pergunta decorreu da notícia publicada em O Estado de São Paulo sobre o
falecimento de Maria da Gloria Sampaio:
(...) exposa do sr. dr. Theodoro Sampaio, um dos nossos mais conceituados engenheiros e
illustre escriptor (...) Expirou aos 58 annos de edade, cercada de toda a sua familia,
inclusive o seu esposo, que chegou ha dias da Bahia, onde dirige e superintende o serviço
de abastecimento de águas e esgotos (...) O enterro da distincta senhora dar-se-ha hoje,
sahindo o feretro da rua Conselheiro Ramalho, n.63, às 17 horas, para o cemiterio da
Consolação 183 (grifo nosso).

 1931
Eis que em 1931 os anúncios dos profissionais estabelecidos no bairro do Bexiga e
registrados no Almanaque Laemmert atingiu seu patamar mais elevado desde o início das
investigações, em 1906. Naquele ano, o anuário registrou modestíssimas 9 atividades,
enquanto no período seguinte (1909) já dava conta de 101 atividades. Excluindo-se os
períodos que abrangeram os anos da Primeira Grande Guerra (1915 a 1918) caracterizados
pela crise econômica econômica resultante da queda nas exportações do café184, o cenário
produtivo do bairro marcou-se por um movimento quase sempre ascendente, ainda que
sujeito a oscilações.
NÚMERO DE
ANO %
ANÚNCIOS REGISTRADOS
1906 9 -
1909 100 1.011
1914 245 145
1915 10 (-) 95,91
1918 62 520
1922-23 292 370,96
1927 272 (- ) 6,85
1931 401 47,42

Tabela 49 – Percetuais positivos e negativos identificados nos períodos envolvidos pelas investigações. Fonte:
Almanaque Laemmert. Acervo Digital FBN.

183
Ainda de acordo com o jornal, Theodoro Sampaio teve três filhos com Maria da Glória: Cordélia
Sampaio, professora do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo (cujo nome, aliás, também consta
do Almanaque Laemmert), Maria da Glória Sampaio, aluna da Escola Normal Secundária, e Theodoro
Sampaio Filho, aluno da Faculdade de Direito. O Estado de São Paulo, 09/09/1920. Grifos nossos.
184
Ainda que aquele conflito tenha efetivamente influído no cenário econômico do país, a crise que se
estendeu por toda a década de 1920 é vista também como parte de um processo mais amplo da própria
economia brasileira. De acordo com Wilson Cano, tratava-se de um “processo de transição econômica e
social, a partir do chamado modelo primário exportador, rumo a novo padrão de acumulação – o do
crescimento para dentro –, que seria desencadeado a partir da Crise de 1929 e da Revolução de 1930”. In
CANO, Wilson – “Da década de 1920 à de 1930: transição rumo à crise e à industrialização no Brasil”.
Artigo da Sessão Especial 80 Anos da Revolução de 1930: seu significado para a economia brasileira. 38º
Encontro Anual da ANPEC. Set/dez. 2012. Disponível em:
http://www.anpec.org.br/revista/vol13/vol13n3bp897_916.pdf.
Sempre é bom lembrar que a ausência de anúncios não significava,
necessariamente, que o negócio deixasse de existir, o que o balanço geral de todos os anos
envolvidos na pesquisa comprovam. Nesse sentido, 1931 se mostrou um ano atípico, pois
foi quando, pela primeira vez, se constatam mudanças mais profundas no cenário produtivo
do loteamento original do Bexiga.
Embora o aumento no número de negócios realmente tivesse ocorrido sem que se
alterasse substancialmente o perfil das atividades desenvolvidas, observei mudanças na
composição do grupo de profissionais estabelecidos no bairro, a qual pode ter origem na
própria situação de instabilidade econômica e política que a cidade vivenciava e que
revelariam as dificuldades dessas pessoas em se adaptar aos novos tempos. Tendo em vista
a avaliação em profundidade dessa situação procurei organizar/agrupar, na tabela abaixo,
as alterações verificadas no panorama produtivo de 1931.
ALTERAÇÕES VERIFICADAS N. % %
NOVOS PROPRIETÁRIOS (NOVOS NEGÓCIOS) 290 72,69
79,70
NOVOS PROPRIETÁRIOS (ANTIGOS NEGÓCIOS) 28 7,01
PERMANÊNCIA DE NEGÓCIOS E PROPRIETÁRIOS ( MESMO RAMO E ENDEREÇO) 48 12,03
14,53
PERMANÊNCIA DE NEGÓCIOS E PROPRIETÁRIOS (COM MUDANÇA DE ENDEREÇO) 10 2,50
PERMANÊNCIA DE NEGOCIANTES/PROPRIETÁRIOS (COM MUDANÇA DE RAMO) 17 4,27
5,77
PERMANÊNCIA DE NEGOCIANTES/PROPRIETÁRIOS (COM MUDANÇA DE RAMO E ENDEREÇO) 6 1,50
TOTAL 401 100 % 100 %

Tabela 50 – Mudanças e permanências no panorama produtivo do loteamento original do bairro do Bexiga, em 1931.
Fonte: Almanaque Laemmert. Acervo Digital FBN.

A entrada de novos agentes comandando novos negócios, ou mesmo substituindo


profissionais já estabelecidos, é o primeiro dado a chamar a atenção – ambos responderam
por 79,70% dos anúncios publicados no anuário daquele ano. No último caso, tudo leva a
crer que se tratava da venda do negócio para uma outra pessoa. Em contrapartida, a
permanência de negociantes que se mantiveram no mesmo ramo e local de trabalho, assim
como aqueles que buscaram outros endereços, ficou restrita a 14,53% do total de anúncios.
Outra informação relevante (embora percentualmente diminuta) se refere às pessoas que
optaram pela mudança de ramo (5,77%), e nesse caso não há dúvida de que a busca por
outro tipo de negócio significava uma alternativa para enfrentar os revezes financeiros e,
por que não dizer, uma alternativa para a própria sobrevivência. Contudo, ainda que se leve
em consideração a saída de negócios (e negociantes) do bairro, esta se mostra bem menos
significativa que a inclusão dos 290 novos negócios e das 28 transferências para outros
nomes.
No mesmo período, já havia constatado situação semelhante na área de influência
da Av. Brigadeiro Luís Antônio e, mesmo não dispondo de dados sobre outros bairros da
cidade, acredito que tal fenômeno não se restringisse ao Bexiga. Mudanças pareciam
ocorrer na capital paulista e, ainda que uma análise fundamentada do ponto de vista das
transformações estruturais sofridas pela cidade não seja o objetivo deste trabalho, é
importante que se tenha em mente que esse é um aspecto subjacente à vida urbana. A
crescente perda de hegemonia da economia cafeeira ao longo dos anos 1920 e o avanço
gradativo de outros setores produtivos – crescimento industrial, diversificação do
comércio, ampliação dos serviços – em meio ao crescimento populacional (Cano, 2012,
p.7-8), fatalmente se refletiram no cenário urbano. No caso do Bexiga, a saída de cena de
uma parcela dos profissionais ali atuantes e o ingresso de um número notável de novos
personagens, sem que houvesse uma alteração do perfil de atividades, pode indicar o
amadurecimento do próprio papel desempenhado pelo bairro nesse cenário. Voltarei a falar
sobre isso adiante.
ATIVIDADES TOTAL
ALIMENTAÇÃO, ALOJAMENTOS E LAZER 175
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS 45
SERVIÇOS PESSOAIS 43
CONSTRUÇÃO CIVIL 39
COMÉRCIO EM GERAL 37
SAÚDE 21
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS 11
TRANSPORTE 10
ARTES E OFÍCIOS 9
OFICINAS E/OU MANUFATURAS 5
COM. APAR. ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIP. DOMÉSTICOS E PROFISSIONAIS 3
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO 2
EDUCAÇÃO 1
AGENTES COMERCIAIS -
TOTAL 401

Tabela 51 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert, 1931. Acervo Digital FBN.

Como já disse, o bairro manteve as mesmas atividades produtivas, prioritariamente


voltadas para a alimentação, o vestuário, os serviços pessoais, a construção civil, o
comércio de artigos diversos e a saúde, conforme se pode verificar na tabela abaixo.
SETOR 1906 1909 1914 1915 1918 1922/23 1927 1931
ALIMENTAÇÃO, ALOJAMENTOS E LAZER 2 53 128 2 19 129 104 175
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS - 11 12 - 6 12 21 45
SERVIÇOS PESSOAIS 1 14 29 2 6 55 31 43
CONSTRUÇÃO CIVIL 2 1 14 - 3 22 20 39
COMÉRCIO EM GERAL 1 7 24 - 3 23 28 37
SAÚDE 2 4 13 5 16 22 28 21
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS - 1 3 - 2 6 5 11
TRANSPORTE - 4 8 - - - 1 10
ARTES E OFÍCIOS 1 1 3 - 3 8 11 9
OFICINAS E/OU MANUFATURAS - 4 9 - 1 5 4 5
COM. APAR. ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIP. - - - - - 1 4 3
DOMÉSTICOS E PROFISSIONAIS
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO - - 2 - 1 2 3 2
EDUCAÇÃO - - - - - 2 4 1
AGENTES COMERCIAIS - - - 1 2 5 8 -
TOTAL 9 100 245 10 62 292 272 401

Tabela 52 – Comportamento das atividades produtivas no decorrer do período investigado (1906-1931). Fonte:
Almanaque Laemmert. Acervo Digital FBN.
O comércio de produtos destinados à alimentação registrou um aumento
substancial no número de novos estabelecimentos: 23 açougues, contra os 9 de 1927; 70
armazens de secos e molhados, contra os 62 de 1927; 30 casas de frutas, contra 2 em
1927185; 22 leiterias, contra 6 em 1927; e 9 padarias, contra 1 em 1927. Mas, além dos
estabelecimentos destinados à produção e comércio de alimentos, merecem destaque os
dois casos de pensões familiares.
Até então, com exceção de uma única pensão localizada na rua Conselheiro
Ramalho n.211, em 1927, o anuário não registrara nenhum estabelecimento dessa espécie.
O que não quer dizer que as habitações coletivas fossem novidade no Bexiga – os casos de
cortiços constantes na Série Obras Particulares são uma evidência disso. A diferença
agora estava na adjetivação desse tipo de moradia como “familiares”, demonstrando a
intenção de distinguir essas pensões dos mal afamados cortiços de forma a atrair uma
clientela mais exigente. Tanto podia se tratar de casas voltadas à locação parcial de
cômodos, como de imóveis totalmente destinados ao uso de pensões. O público-alvo era
variado, podiam se destinar a “familias de tratamento, que deseje asseio, conforto e
respeito”, “exclusivamente para senhoras e moças”, a “hóspedes do interior” ou, mais
frequentemente, a “casais de tratamento e rapazes do comércio”. No entanto, é necessário
destacar que o termo “pensão” não significava necessariamente um lugar de moradia, mas
também o fornecimento (ou não) de refeições. É o que demonstra o anúncio de uma casa
onde alugavam-se “bons quartos, com luz direta, com ou sem pensão”. Aliás, nos jornais
da época, encontra-se inúmeros anúncios que oferecem quartos “espaçosos e arejados”,
“finamente mobiliados”, “com móveis e pensão”, e até aqueles que chegavam ao requinte
de disponibilizar aos potenciais clientes “todas comodidades, com telefone, rádio, banhos
quente e frio, mesa farta com absoluta limpeza”.

Figura 93 – O Estado de São Paulo, 03/11/1928.

185
Levando em conta que as quitandas, tradicionais espaços de comercialização de frutas, legumes e
verduras, estão ausentes nesse ano, deduzimos que tenham sido incorporadas à categoria genérica frutas e aos
armazéns de secos e molhados.
Por parte dos clientes, além dos requisitos conforto, respeito e asseio, também era
desejável que estivessem próximos do centro ou “em lugar bem servido por linhas de
bonde”, o que justifica a referência a “rapazes do comércio” apontada acima. Sabemos
que o centro da cidade abrigou as atividades ligadas ao comércio e aos serviços mais
especializados, portanto, para quem trabalhasse ali a disponibilidade de meios de
transporte perto da moradia era um fator fundamental. Possivelmente esse fosse o caso das
duas pensões identificadas no Almanaque, ambas localizadas na rua Santo Antônio
números 78 e 91, por onde passavam os bondes das linhas 5 e 45 (respectivamente, Paraíso
e Rua Augusta).
Ao buscar, no jornal O Estado de São Paulo, casos que ilustrassem a presença de
pensões na região do Bexiga, localizei alguns anúncios particularmente interessantes. O
primeiro deles comprova que, na mesma rua Santo Antônio, em 1914, esse tipo de negócio
já era explorado, e os demais indicam a existência de algumas pensões na requintada Av.
Paulista. Embora esses últimos casos, pela sua localização, extrapolem a área de estudo,
são importantes na medida em que sinalizam uma até agora impensável diversidade de
usos nos imóveis da avenida.

Figura 94 – O Estado de São Paulo, 16/09/1934.

Figura 95 – Observe-se no último anúncio a referência


à proximidade “aos principais hospitais”. Pela
numeração do imóvel (n.138), o palacete estava bem
perto do Hospital Santa Catarina, e um pouco mais
distante do Hospital Alemão, na Praça Oswaldo Cruz
(bairro do Paraíso). É muito provável que nos dois
casos os anúncios se destinassem a parentes de pessoas
internadas nesses hospitais. O Estado de São Paulo,
14/08/1934.

No setor de vestuário e acessórios, verifica-se o incremento das lojas de calçados.


Esse segmento que em 1927 contava com 8 estabelecimentos, em 1931 chegou a 24 casas,
a maior parte delas concentradas nas ruas Santo Antônio, Conselheiro Ramalho e Major
Diogo. Dessas 24 casas, somente três são remanescentes de anos anteriores: Angelo
Daracel, C. Pellegrini & Cia. e José Pasqualucci. Daracel (ou d’Arace), desde 1927;
Pelegrini, desde 1921; e Pasqualucci, desde 1926, sendo que nesse caso houve mudança de
endereço do negócio. É importante observar que os três casos estão identificados no
Almanaque de 1927 como fabricantes de calçados, levando a crer que se tratasse de
pequenas manufaturas que também comercializavam seus produtos. Diante dos números
totais (3 antigos comerciantes, contra 21 recém-chegados), vemos que a presença de novos
negociantes no segmento era gritante. Acresce que entre os anúncios publicados nesse ano
ainda havia 3 casos explícitos de fabricantes de calçados: Domingos Memmo,
Schatamacchia & Cia. e Amadeu Irmão, os dois primeiros na rua Major Diogo e o último
na rua Conselheiro Carrão. Como o Almanaque Laemmert de 1931 não distinguiu os casos
de consertos de calçados, penso que muitos dos endereços arrolados nos segmentos lojas
de calçados e fábricas de calçados também implicassem nesse tipo de serviço.
O segmento de acessórios ainda seria representado pelas manufaturas de chapéus,
havendo 4 fabricantes de chapéus para homens e uma fabricante de chapéus para
senhoras e crianças, distribuídos pelas ruas Abolição, Conselheiro Ramalho, João
Passalacqua, Major Diogo e Santo Antônio. G. Nevola, Raphael L. Bertagni e Romeu
Moretti fabricavam chapéus masculinos e sua entrada no bairro era recente. Já Graciana
Mariano Mammana, apesar de constar nas páginas do anuário como comerciante de
chapéus, desde 1913 operava uma oficina de costura no mesmo endereço na rua Santo
Antônio n.106. Com relação a esse caso, a Série Obras Particulares contém um
requerimento, em nome de Lucio Mammano para a “substituição de duas portas de ferro
na frente do prédio por outras de madeira”, modificação esta que tinha “por fim uma sala
de costura”. O endereço fornecido à Diretoria de Obras era o mesmo que constava no
anuário186. Independentemente dos motivos que levaram Graciana a investir em outro
segmento do ramo de vestuário e acessórios, é possível que ao lado da nova atividade ela
tenha mantido sua oficina de costura. Afinal, essa era uma aptidão que sempre poderia
render algum trabalho, principalmente em fases mais difíceis.
Quanto a Rodolpho Chiaverini, outro negociante que se mantinha no mesmo local
há alguns anos, a Série Obras Particulares possui o requerimento referente à “substituição
de plantas para o projeto de construção de uma fábrica de chapéus” em nome da firma
Chiaverini, Magalhães & Cia., no mesmo local indicado no anuário, à rua Conselheiro
187
Ramalho n.229 . Nesse caso específico, o projeto encaminhado à Diretoria de Obras

186
Obras Particulares, 28/01/1920, AHSP.
187
Obras Particulares, 29/10/1920, AHSP.
chama a atenção pelas dimensões da construção, com faces voltadas para as ruas Fortaleza
e Maria José, indicando tratar-se de um empreendimento de grandes proporções188.

Figura 96 – Localização exata da fábrica de chapéus de Chiaverini, Magalhães & Cia, na rua Conselheiro Ramalho
n.229, com faces para as ruas Fortaleza e Maria José. Fonte: Planta SARA Brasil, 1930, AHSP.

Os 10 alfaiates presentes em 1931 representam uma profissão que viria a se


transformar em uma tradição do bairro, como já destacado na análise da “área nobre” do
Bexiga. Desses profissionais, apenas dois estavam no bairro há mais tempo – Giacomo
Lampoglia, com oficina na rua Manoel Dutra n.41, e Paschoal Tastaldi, com oficina na rua
Major Diogo n.68 –, os demais eram recém chegados. Tastaldi, embora só viesse a figurar
no anuário em 1927, já constava da relação de negociantes coletados para o pagamento do
Imposto do Comércio e Indústria para 1923, ocasião em que o imposto devido era de cento
e dez mil reis189. Lampoglia, também arrolado no citado imposto, só teria seu nome
inscrito no anuário em 1927.
As 34 barbearias se mostraram como as maiores responsáveis pelo crescimento do
setor de serviços pessoais, então com 43 atividades. Dos antigos barbeiros, 5 se
mantiveram no mesmo local, enquanto outros 3 haviam mudado de endereço. Assim, a
maioria absoluta desses profissionais (26) compunha-se de novos atores. Esse foi um dos
setores/segmentos que registrou o maior índice de crescimento (240%) em relação ao
período anterior, quando contava com 10 casos. Pensando que se tratava de um serviço
básico e de baixo custo e no adensamento populacional ocorrido na última década, esse
percentual não é tão surpreendente. Por outro lado, quando se observa a distribuição das
barbearias pelas ruas Santo Antônio (com 6 casos); Conselheiro Ramalho, Major Diogo e
Manoel Dutra (com 5 casos); Rui Barbosa e Treze de Maio (com 4 casos); Fortaleza (com
188
Infelizmente, o Almanaque Laemmert só confirma a presença da firma até 1931. Por outro lado, não
conseguimos localizar outras informações a seu respeito, o que inviabiliza a confirmação se realmente se
tratava de uma indústria, no sentido estrito do termo, contrariando as tendências verificadas no bairro. De
acordo com Grünspun, “a única indústria que se instalou no Bexiga foi a indústria de calçados de nome
Schatamacchia, que chegou a ficar famosa”. Grünspun, 1979, p.84.
189
Imposto do Comércio e Industria, Distrito da Bela Vista, 1923. Publicação do Diário Oficial do Estado de
São Paulo, em abril de 1923. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/.
2 casos); e Abolição, Conselheiro Carrão e Dr. Luís Barreto (cada uma com um caso),
constata-se que o bairro, de grandes dimensões, era todo beneficiado por esse tipo de
serviço.
O número de profissionais prestadores de serviços ligados à construção civil
(funileiros, bombeiros hidráulicos/encanadores, carpinteiros e marceneiros) foi
190
significativo . Juntos eles responderam por 23 das 38 atividades registradas no setor.
Mais significativa ainda é a constatação que 22 desses profissionais eram novatos no
bairro. Dos antigos negociantes, o único a se manter foi Manoel Lopes Ferreira. Manoel
anunciou, pela primeira vez, uma oficina de fundições de ferro e metal, localizada na rua
Major Diogo n.36 (1910); quatorze anos mais tarde, em 1924, sem nenhuma alusão ao
antigo negócio, o anuário registrava um negócio de garrafas em seu nome, possivelmente
um comércio de vasilhames, agora no número 55 da mesma rua. Finalmente, em 1931,
Manoel voltou a anunciar o ofício de funileiro, acrescido dos serviços de bombeiro
hidráulico e encanador, porém em outro endereço, à rua Dr. Luís Barreto n.42.
Na área da saúde, durante todo o período investigado, verifiquei um número
razoável de farmácias distribuídas pelo bairro do Bexiga. No loteamento original, elas se
destacam particularmente a partir de 1918 (com 6 farmácias), 1922-23 (com 10 farmácias),
1927 (com 8 farmácias) e 1931 (com 9 farmácias). Tendo em vista se tratar de uma região
densamente povoada, cuja população em sua maioria pertencia às camadas médias e
baixas, é de se supor que esse tenha se constituído como um serviço, se não fundamental,
de grande importância para os moradores do bairro. Ainda que houvesse um grande
hospital voltado ao atendimento desses segmentos nas proximidades do Bexiga, caso do

190
De acordo com a definição fornecida pelo “Catálogo Nacional de Programas de Aprendizagem-CONAP”,
modernamente, o funileiro industrial está entre os profissionais que “confeccionam, reparam e instalam
peças e elementos diversos em chapas de metal como aço, ferro galvanizado, cobre, estanho, latão, alumínio
e zinco; fabricam ou reparam caldeiras, tanques, reservatórios e outros recipientes de chapas de aço;
recortam, modelam e trabalham barras perfiladas de materiais ferrosos e não ferrosos para fabricar
esquadrias, portas, grades, vitrais e peças similares”. Disponível em:
http://portal.mte.gov.br/data/files/FF8080814295F16D0142A3A8A4B71184/anexo%20I%20-
%20portaria%20723%20atualizado%2028-11.pdf.
Já segundo o Dicionário Michaelis, funileiro pode ser: “1 Fabricante ou vendedor de funis. 2 Aquele que faz
ou repara objetos de folha de flandres ou folha de lata, tais como utensílios e vasilhames de cozinha;
latoeiro”. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-
portugues&palavra=funileiro.
Embora tenhamos associado os segmentos fundições e funileiros ao setor oficinas e/ou manufaturas, em
1931, os funileiros aparecem no Almanaque Laemmert inseridos numa única categoria: funileiros, bombeiros
hidráulicos e encanadores. Na medida em que esses serviços se prestam à manutenção predial, optamos por
respeitar a classificação atribuída pelo anuário, incorporando a atividade ao setor da construção civil, o que
não significa que funileiros não executassem outros serviços que envolvessem o manuseio de metais (folhas
de flandres ou lata).
Hospital Humberto I e da Casa de Saúde Francisco Matarazzo, anexa ao hospital191 -
localizados na Alameda Rio Claro –, as farmácias certamente eram a referência para
primeiros socorros.
Contudo, o que chama mais a atenção nesse caso é o fato de esses estabelecimentos
terem se mantido por muitos anos, quase sempre em mãos dos mesmos proprietários. Os
primeiros registros no anuário que apontam as mais antigas farmácias datam de 1918. Se
referem à Pharmacia Ribeiro, na rua Santo Antônio n.92, de propriedade de Olivia Godoy
– que também era “auxiliar microbiologista da Inspetoria de Alimentação Pública” 192, e a
Pharmácia Oswaldo Cruz, no n.113 da mesma rua, de propriedade de Alzira Rocha. Em
1921, a Pharmacia Aurea, na rua Conselheiro Ramalho n.122, tinha seu primeiro registro
no anuário. Já em 1924, localizei mais dois casos, a Pharmacia Ítalo-Americana e a
Pharmacia Ruoppoli. A primeira, de propriedade de Octaviano Homem de Mello,
localizava-se na rua Conselheiro Ramalho n.165, e a segunda de propriedade de Adolpho
Ruspolli, na rua Major Diogo n.41. Por fim, o estabelecimento de Paulo Pucca & Filho,
também localizada na rua Conselheiro Ramalho n.194.
Para o ano de 1931, identifiquei dois casos de abertura comprovadamente recente,
um na rua Manoel Dutra n.95, de José Victor Lauro e a farmácia Preferida, na rua Santo
Antônio n. 278 A, de Oliveira & Coffone. Além desses estabelecimentos, há um terceiro,
no número 142 da rua Santo Antônio, onde constam como proprietários José de Souza
Camargo e Moacyr Alves da Costa. Ocorre que a farmácia, naquela localização, existia
pelo menos desde 1913. Tratava-se de estabelecimento de propriedade de Luiz Thiers da
Fonseca Vaz, que de acordo com o Almanaque Laemmert, teria permanecido no local até o
biênio 1922-23. Entretanto, no lançamento do Imposto de Comércio e Indústria para o ano
193
de 1923, a farmácia encontrava-se em nome de Antônio Paulino Silveira . Tudo leva a
crer que desde o início de suas atividades, até o último levantamento realizado, em 1931, a
farmácia tenha passado pelas mãos de três proprietários diferentes, sendo os últimos
proprietários os já citados José de Souza Camargo e Moacyr Alves da Costa.

191
De acordo com SALLES & SANTOS, por iniciativa de grupos de imigrantes bem sucedidos e de alguns
médicos italianos, foram organizadas na cidade de São Paulo, sociedades italianas de socorro mútuo, caso
da Sociedade Italiana de Beneficência (1878), assim como foi criado o Hospital Umberto I (1904) e a
Casa de Saúde Francisco Matarazzo (1915), anexa àquele hospital. In SALLES, Maria do Rosário R. e
SANTOS, Luís A. de Castro. Imigração e médicos italianos em São Paulo na Primeira República. In
Estudos de Sociologia, v.6, n.10,PPG em Ciências Sociais, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara,
UNESP, 2001, p.83 a 85.
Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/estudos/article/view/181/178.
192
Diário Official do Estado de São Paulo, 04/02/1926.
Disponível em: Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/.
193
Imposto do Comércio e Industria, Distrito da Bela Vista, 1923. Publicação do Diário Oficial do Estado de
São Paulo, em abril de 1923. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/.
Esse não foi o único caso de mudança de proprietários. A Pharmacia Italo-
Americana, antes de pertencer a Octaviano Homem de Mello, pertencera a Raphael
Bertoletti, pelo menos entre 1916 e 1923194.
SUPOSTO
LOGRADOURO N. ESTABELECIMENTO PROPRIETÁRIO INÍCIO DE
ATIVIDADE
CONSELHEIRO RAMALHO 122 A PHARMACIA AUREA SETTIMIO LANZELLOTTI 1921
CONSELHEIRO RAMALHO 165 PHARMACIA ITALO-AMERICANA OCTAVIANO HOMEM DE MELLO 1924
CONSELHEIRO RAMALHO 194 - PAULO PUCCA & FILHO 1927
MAJOR DIOGO 41 PHARMACIA RUOPPOLI ADOLPHO RUSPOLLI 1924
MANOEL DUTRA 95 - JOSÉ VICTOR LAURO 1931
SANTO ANTÔNIO 98 (ANTIGO 92) PHARMÁCIA RIBEIRO IRMA GODOI/OLIVIA DE GODOY (?) 1918
SANTO ANTÔNIO 113 PHARMÁCIA OSWALDO CRUZ ALZIRA ROCHA 1918
SANTO ANTÔNIO 142 - JOSÉ DE SOUZA CAMARGO/MOACYR 1931
ALVES COSTA
SANTO ANTÔNIO 278 A PREFERIDA OLIVEIRA & COFFONE 1931

Tabela 53 – Farmácias localizadas no loteamento original do Bexiga, em 1931, e os supostos anos de início de
atividades. Fonte: Almanaque Laemmert. Acervo Digital FBN.

Em 1931, o número de médicos com residência e/ou consultório no loteamento


original do Bexiga decaiu dos 8 casos registrados em 1927 para apenas 4 casos e, desses,
somente José Guglielmo estava no bairro há mais tempo. Em 1926 e 1927, o endereço
fornecido pelo médico era à rua Jaceguai n.57, enquanto que em 1931 havia se mudado
para a rua Major Diogo n.12 A. Já as parteiras mantiveram-se constantes no bairro,
registrando-se naquele ano 6 casos; dessas, Amália da Rocha Monteiro era a mais antiga,
morando na rua Conselheiro Carrão n.95C desde 1927.
O comércio varejista, embora nesse ano estivesse à frente do setor da saúde, não
sofreu alterações significativas em relação ao período de 1927, tendo as casas de
armarinhos, fazendas e modas e aquelas de ferragens e quinquilharias sempre à frente,
respectivamente com 12 e 5 estabelecimentos. Dentro desse setor, vale destacar um
segmento que, ainda que de dimensões reduzidas, diz muito sobre a realidade do bairro (e
mesmo de parte da cidade) no início dos anos 1930. Trata-se do comércio de lenha e
carvão vegetal, com 8 casos inscritos no anuário de 1931.
Quando analisei a “área nobre” já me reportei a essa questão. Mas, em se tratando
do loteamento original, que envolveu um espaço muito mais amplo do que aquele,
concentrando uma maior quantidade de moradores com considerável diversidade social,
vale a pena voltar o olhar para esse cenário particular. As transformações vivenciadas no
espaço urbano da capital paulista desde as últimas décadas do século anterior tiveram sua
equivalência nos espaços destinados à habitação, onde os usos e funções domésticos

194
De acordo com o lançamento do Imposto de Comércio, referente a 1916, naquele ano o valor a ser pago
pelo proprietário da farmácia, um certo A. Bertoletti, seria de oitenta e oito mil réis. Diário Oficial do Estado
de São Paulo, 17/02/1916, p.614. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/.
modificaram-se de maneira a adequar-se às exigências de um novo tempo. As novas
moradias construídas a partir dos anos 1880 deveriam obedecer aos preceitos higienistas
impostos pelas posturas e códigos sanitários promulgados pelo poder público, de maneira a
atender as necessidades de saneamento e modernização da cidade em contínua expansão.
Nesse sentido é que o espaço doméstico se modificou, com a (pelo menos pretensa)
especialização dos cômodos e respectivos usos. Ali, a cozinha passou a desempenhar uma
função notadamente diferenciada – lugar de preparação de alimentos, onde a
(re)organização dos equipamentos a serem utilizados e a introdução de práticas higiênicas
se mostravam como o procedimento correto de controle de quaisquer desvios às normas
(morais e sanitárias) estabelecidas. De acordo com Luís Máximo da Silva, foi nesse
cenário privado que “as empresas de energia procuraram desenvolver o consumo
doméstico de gás e eletricidade e introduzir, sobretudo, o fogão a gás, procurando
substituir seu principal concorrente, o fogão a lenha (e também a carvão)” (2007, p.198).
Em minhas investigações sobre a formação do bairro do Bexiga (2010), os
levantamentos dos projetos arquitetônicos para construção de casas de uso residencial ou
misto, entre 1906 e 1914 demonstraram que 54,14% do universo pesquisado relacionava-se
a moradias que possuíam entre 3 e 4 cômodos195, certamente destinadas à locação para as
camadas mais pobres da população do bairro. A questão é que dificilmente esses usuários
teriam condições de instalar em suas cozinhas os modernos equipamentos (e respectivos
serviços) oferecidos pelas empresas fornecedoras de gás. Na melhor das hipóteses,
adotariam os fogões de ferro, com certeza abastecidos com o carvão vegetal
comercializado nos pequenos negócios locais, ou pelos ambulantes que percorriam as ruas
do bairro. Possivelmente, as casas com 6 ou mais cômodos e, talvez, algumas daquelas

195
O universo então analisado envolveu a construção de 615 unidades residenciais, onde as informações
disponíveis foram distribuídas segundo a tipologia adotada, o número de cômodos e os usos propostos. Ali
constatamos que as 188 casas que possuíam até 3 cômodos, assim como aquelas 145 casas com 4 cômodos,
eram bem simples, satisfazendo as necessidades básicas de seus moradores. As primeiras continham
geralmente, sala (que à noite podia se transformar em dormitório), quarto (dormitório) e cozinha; as de 4
cômodos, dois quartos (ou dormitórios), sala e cozinha, ou ainda duas salas, um quarto e cozinha; ambas com
a latrina localizada fora da edificação. As 121casas com 5 cômodos estavam a meio caminho, apresentando
tendência a uma maior especialização e uma eventual “sofisticação”. No geral, apresentavam duas salas (a
sala de visitas e a sala de jantar ou varanda), dois quartos (ou dormitórios) e cozinha. Ocasionalmente,
possuíam espaços mais valorizados socialmente, como o vestíbulo, o gabinete ou a sala de banho. Esta última
só aparece com o avançar dos anos, já que até 1906 os serviços de água e esgoto ainda não estavam
disponíveis para todo o bairro. As edificações com 6 cômodos (69 unidades) ou mais de 6 cômodos (92
unidades) pertenciam a moradores de um extrato social superior. As primeiras podiam apresentar – além dos
usuais (dois) quartos (ou dormitórios), duas salas e cozinha –, despensas, vestíbulos, gabinetes, salas de
banho, quartos para criada ou mesmo três quartos. As casas com mais de 6 cômodos, de uma maneira geral,
contavam com duas salas, três quartos (ou dormitórios), quarto para criada, quarto para engomar, despensa,
gabinete, etc. Não raramente, também podiam apresentar, além da sala de banho e/ou banheiro, uma latrina
externa à edificação. Schneck, 2010, p.215-216.
com 5 cômodos, dispusessem de equipamentos mais elaborados, mas esse certamente não
era o caso da maioria. Cumpre esclarecer ainda que, de acordo com Grünspun, “no Bexiga
havia gás de rua com relógio e tudo, mas somente era ligado na casa da frente ou no
primeiro quarto quando tinha fogão junto. Não havia extensões dos canos, portanto, para
as cozinhas do fundo se usava carvão” (1979, p.86, grifo nosso). Por outro lado, os dois
comércios de lenha, nas ruas Maria José e São Domingos, indicam a permanência dos
antigos fogões de alvenaria em 1931. Decididamente, o Bexiga era um bairro portador de
diversidades e contrastes!
Um setor a merecer destaque é aquele relacionado ao transporte. Enquanto um
ferrador e uma oficina de conserto de carroças são os únicos negócios a denunciar a
(teimosa) permanência de meios de transporte condenados a desaparecer, a introdução de 1
comércio de automóveis, de 3 oficinas mecânicas e 4 garagens é bastante significativa da
alteração de hábitos urbanos que se instaurava na cidade. Esse foi o caso da Auto Abestos
S.A, loja de automóveis localizada à rua Dr. Ricardo Baptista n. 8; das garagens Esperia,
na rua Conselheiro Carrão n.29, Florita e Santo Antonio, na rua Manoel Dutra,
respectivamente nos números 25 e 42 A e Major Diogo, na rua do mesmo nome, n.59; e
das 3 oficinas mecânicas (uma na rua Dr. Luís Barreto n. 32, de propriedade de José de
Camargo Prado, outra na rua Major Diogo n.47, de propriedade de Raphael Visconti e
uma última na rua Rui Barbosa n. 134, de propriedade de Santo Cosenza).
Haim Grünspun faz referência a esse tipo de atividade no bairro, nos anos 1930:
(...) o Bexiga tinha uma porção de oficinas. Oficinas de conserto de automóvel na rua São
Domingos e na rua Major Diogo, bem perto da Brigadeiro Luiz Antonio, onde o
movimento de automóveis era maior.
(...) A oficina resolvia a partida, a parte elétrica, a parte mecânica, a funilaria, o
estofamento, a pintura, os vidros e tudo de novidade que as fábricas americanas
começavam a inventar a cada ano que passava. (1979, p.87-88).

Ao mesmo tempo, o autor fornece indicações de uma certa capacidade de


adaptabilidade por parte dos profissionais atuantes no setor – homens nascidos, talvez no
final do século anterior, frente à necessidade de se adequar a uma realidade e a regras que
ainda não estavam profundamente estabelecidas:
Oficina mecânica não vendia nada usado para o ferro velho – todas as peças e tranqueiras
que ficavam amontoadas no fundo, um dia acabavam servindo para se dar um jeitinho num
carro encrencado. As peças improvisadas e o arranjo entre peças diferentes era comum e
funcionavam tão bem que mereceriam patente se as fábricas lá nos EUA soubessem.
Naquela época nenhum dos mecânicos do Bexiga conhecia qualquer coisa sobre patentes
registradas. (Grünspun, 1979, p.88).

O setor de artes e oficios perdeu algumas atividades em relação aos períodos


imediatamente anteriores (1922-23 e 1927), notadamente aquelas vinculadas a atividades
artísticas, caso dos maestros e professores de música. Por outro lado, o setor recebeu 2
novos profissionais (escultura e estatuária). Embora numericamente insignificante, dentro
do setor de artes e ofícios há um segmento digno de registro, relacionado ao comércio de
instrumentos musicais, de propriedade dos Irmãos Vitale, localizado na rua Conselheiro
Ramalho n.199. Trata-se da tradicional loja, existente ainda nos dias atuais196.
Curiosamente, o endereço identificado no anuário de 1931 coincide com aquele fornecido
por um certo sapateiro, Nicola Vitale, no biênio 1922-23. Não há dúvidas quanto a se tratar
de pessoa da mesma família, possivelmente o pai dos irmãos Vitale. Esse parece ser um
caso exemplar dos caminhos percorridos por imigrantes italianos na sua inserção no país.
Num terreno meramente especulativo, suponho que Nicola tenha escolhido o bairro do
Bexiga para viver talvez por se tratar de um espaço que lhe possibilitasse adquirir um
terreno (ou mesmo uma casa) a preços razoáveis, onde através do ofício de sapateiro
poderia criar seus cinco filhos. É o que parece ter ocorrido, pois em 1910 ele já estava
instalado com a família e uma loja de calçados no n.173 da rua Conselheiro Ramalho,
entre as ruas Conselheiro Carrão e Fortaleza 197. De 1910 a 1923, Nicola Vitale alternou os
anúncios de seu negócio, qualificando-o ora como sapataria, ora como casa de calçados,
ora como sapateiro, o que indica que uma atividade não excluía necessariamente a outra –
o fato é que o anuário de 1922-23 foi o último a registrar seus serviços. Em 1931, o
negócio liderado pelos Irmãos Vitale – que incluía, além do comércio de instrumentos
musicais, a edição de obras musicais – já estava estabelecido na rua Conselheiro Ramalho
n.199 (que conforme o Índice de Emplacamentos, correspondia ao antigo n.173). Nicola
Vitale conseguiu à custa de seu trabalho, talvez menos prestigiado socialmente, criar seus
filhos e legar-lhes um patrimônio, base para que esses iniciassem seu próprio negócio e dai
alçassem voos mais ousados 198.

196
De acordo com o site da Editora Irmãos Vitale, a loja foi inaugurada em 1923 pelos irmãos Emílio,
Vicente, Affonso, José e João Vitale. Disponível em: http://www.vitale.com.br/institucional/editora.asp.
197
Almanaque Laemmert, 1910; de acordo com o emplacamento realizado em 1912, a numeração do imóvel
foi alterada, do número 173, para o número 199. Índice de Emplacamentos, AHSP; a propriedade do imóvel
em nome de Nicolau Vitale é confirmada pelo Imposto Predial para 1915 e 1916, quando o valor a pagar foi
de 78540 mil réis. Publicações do Diário Oficial do Estado de São Paulo, em 21, 22 e 24/11/1914.
Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/
198
Atualmente, além de uma loja na rua França Pinto (Vila Mariana), a editora possui loja no Rio de Janeiro,
à rua Visconde de Pirajá n.82, bairro de Ipanema, sob a razão social Irmãos Vitale S.A. Indústria e Comércio.
De uma maneira geral, esses foram os setores e respectivos segmentos produtivos
que sobressaíram na área do loteamento original do Bexiga. Se pensarmos nas atividades
produtivas identificadas nesta área veremos que seu caráter pouco difere em relação
àquelas identificadas na área de influência da Av. Brigadeiro Luís Antônio. Ao término do
último período analisado, quando os negócios estabelecidos pelos primeiros
empreendedores já se mostravam amadurecidos, aqui, como ali, as tendências eram dadas
basicamente pelos mesmos setores produtivos, basicamente: alimentação, vestuário e
acessórios, serviços pessoais, o pequeno comércio de varejo, os serviços de saúde e os
serviços relacionados à construção civil.
A grande diferença da área do loteamento original em relação à “área nobre”
residiu no maior número de atividades de cada um desses setores. É o que verificamos ao
comparar os números apresentados na Tabela 54.
Entre os casos mais significativos, chamam a atenção os números apresentados pela
alimentação. Enquanto a “área nobre” concentrava 9 açougues, 16 armazéns de secos e
molhados, 7 comércios de frutas, 3 leiterias e 1 padaria, o loteamento original concentrou
23 açougues, 70 armazéns de secos e molhados, 30 comércios de frutas, 22 leiterias e 9
padarias. O mesmo ocorreu com o setor de vestuário e acessórios, no qual dos 5 casos de
fábricas e casas de calçados localizados na “área nobre”, passamos a 28 casos no
loteamento original; e com os serviços pessoais, no qual das 10 barbearias presentes na
“área nobre” passamos a 34 no loteamento original. A única situação em que a área de
influência da Av. Brigadeiro Luís Antônio superou o loteamento original ficou por conta
dos 10 profissionais do segmento modistas, modas, confecções e oficinas de costuras em
geral, contra 1 único profissional no loteamento original.
SETORES ÁREA LOTEAMENTO
ATIVIDADES PRODUTIVAS / SEGMENTOS
PRODUTIVOS NOBRE ORIGINAL
AÇOUGUES 9 23
COMÉRCIO DE SECOS E MOLHADOS/PRODUTOS ALIMENTÍCIOS 16 70
ALIMENTAÇÃO FRUTAS 7 30
LEITERIAS 3 22
PADARIAS 1 9
FARMÁCIAS, COMÉRCIO DE DROGAS E HERVANÁRIOS 4 9
SAÚDE
PARTEIRAS 3 6
ALFAIATES 8 10
CASAS DE CALÇADOS/SAPATEIROS /FÁBRICA DE CALÇADOS 5 28
VESTUÁRIO E
FERRAGENS E QUINQUILHARIAS (FERRAGENS, LOUÇAS, TINTAS, ETC.) 3 5
ACESSÓRIOS
LOTERIAS 1 5
MODISTAS, MODAS, CONFECÇÕES E OFICINAS DE COSTURAS EM GERAL 10 1
CARPINTARIAS - 5
CONSTRUÇÃO CIVIL FUNILEIROS, BOMBEIROS HIDRÁULICOS E ENCANADORES 5 11
MARCENARIAS 1 8
BARBEARIAS/SALÕES DE BARBEIROS E CABELEIREIROS 10 34
SERVIÇOS PESSOAIS
TINTURARIAS E LAVANDERIAS 2 6
COMÉRCIO EM ARMARINHOS (FAZENDAS E MODAS) 6 12
GERAL LENHA 1 8

Tabela 54 – Área nobre X Loteamento original – setores produtivos que se destacaram ao final da investigação (1931).
Fonte: Almanaque Laemmert. Acervo Digital FBN.
Assim, a análise das atividades produtivas desenvolvidas nas ruas do loteamento
original só vem confirmar a tendência/vocação do bairro do Bexiga – suprir necessidades
básicas da população, talvez menos importantes do ponto de vista de circulação monetária,
mas essenciais para o dia a dia.

2.5.3 O vale da Saracura

Como era de se esperar, entre 1906 e 1908, o anuário não registrou a presença de
um profissional sequer para a área do vale da Saracura, o que aconteceu somente em 1909.
Observa-se novo hiato entre 1909 e o biênio 1922-23, quando os anúncios no Almanaque
Laemmert para o Saracura se tornam-se mais regulares.
ATIVIDADES 1909 1922-23 1927 1931
ALIMENTAÇÃO, ALOJAMENTOS E LAZER 2 5 7 9
AGENTES COMERCIAIS - - - -
ARTES E OFÍCIOS - - - -
COM. APAR. ELÉTRICOS, MÁQUINAS E EQUIP. DOMÉSTICOS E PROFISSIONAIS - - - -
COMÉRCIO EM GERAL - - - 1
CONSTRUÇÃO CIVIL - - 1 -
EDUCAÇÃO - - - -
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO - - - -
MÓVEIS, UTILIDADES E SERVIÇOS DOMÉSTICOS - - - -
OFICINAS E/OU MANUFATURAS - - - -
SAÚDE - - - -
SERVIÇOS PESSOAIS - - 1 1
TRANSPORTE - - - -
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS PESSOAIS - - - -
TOTAL 2 5 9 11

Tabela 55 – Segmentos identificados no Almanaque Laemmert nos anos 1909, 1922-23, 1927 e 1931. Acervo Digital
FBN.

Adiante, abordarei os casos elencados no anuário. Antes disso, como se trata de


uma região de limites imprecisos e sobre a qual há poucas informações concretas que
remetam àquele momento, julgo que o reconhecimento daquele espaço, tal como registrado
pela cartografia elaborada entre a última década do século XIX e as primeiras do século
XX, seja um instrumento útil para a compreensão da evolução da área. Para tanto, utilizei a
Planta da Cidade de São Paulo, editada por Hugo Bonvicini (1895), e da Planta da
Cidade de São Paulo, organizada por Alexandre Mariano Cococi e Luiz Fructuoso F.
Costa (1913).
Figura 97 – Planta da Cidade de São Paulo, Editor Hugo Bonvicini, 1895. Fonte: Informativo Arquivo Histórico
Municipal, 4 (20): set/out.2008<http://www.arquivohistorico.sp.gov.br. Consulta em 22/05/2009.

A planta de Bonvicini é a primeira a demonstrar mais detalhadamente os aspectos


geográficos que determinaram a ocupação tardia e os caminhos que originaram parte das
vias da região. Ali, se destaca o Ribeirão Anhangabaú, entre a rua Dr. Falcão e a rua Dr.
Martinho Prado (apenas tracejada), onde ainda é possível ver o Tanque Reúno; e daí, até a
rua Paim, a partir de onde se divide em pequenos córregos sem qualquer nomeação. Em
todo o percurso seguido pelo rio, à direita e à esquerda, o desenhista simulou a vegetação
de modo a demonstrar que se tratava de espaços vazios e de várzea. Também indicou a
presença de logradouros, provavelmente, ainda não oficializados pela municipalidade, mas
certamente familiares à população: os caminhos da Fonte, Monte Alegre e da Saracura,
todos eles localizados abaixo da rua Paim. Não consegui identificar exatamente que ruas se
originaram dos dois primeiros caminhos, mas o caminho do Saracura seguramente
corresponde à atual rua Almirante Marques Leão.

Figura 98 – Planta da Cidade de São Paulo. Levantada e organizada pelo Eng. Civil Alexandre M. Cococi e L.
Fructuoso F. Costa, 1913. Fonte: Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (20):
set/out.2008<http://www.arquivohistorico.sp.gov.br. Consulta em 22/05/2009.

A Planta da Cidade de São Paulo, elaborada dezoito anos depois, fornece


informações mais detalhadas acerca da área estudada, contendo a referência explícita ao
Saracura. Algumas vias estão bem definidas, caso da rua Rocha e do caminho da Saracura
Grande. A rua Manoel Dutra, em sua extensão, recebe o nome de Barata Ribeiro, a qual,
quase no encontro com a rua Peixoto Gomide, daria origem ao outro caminho da Saracura,
certamente a futura rua da Saracura Pequena (atual Dr. Plínio Barreto). De outro lado, o
trecho do córrego entre a rua Martinho Prado e a rua Paim não apresenta um caminho
equivalente. Isso só viria a ocorrer na Planta SARA Brasil (1930), onde aquele curso
199
d’água foi envolvido no projeto de uma futura Avenida Anhangabaú . Como é possível
observar nessa planta, embora nas primeiras décadas do século XX o distrito da Bela Vista,
assim como os bairros da Bela Cintra e Bexiga, já estivessem configurados, em todo o
percurso do córrego da Saracura praticamente inexistiam vias regulares, o que de certa
forma justifica a ausência de atividades produtivas. Entretanto, a investigação da série
documental Obras Particulares demonstrou que desde o último ano do século XIX já era
possível encontrar indícios de alguma atividade produtiva na área formada basicamente
pelas ruas Saracura Grande, Saracura Pequena e Rocha.
RUA N. PROPRIETÁRIO/REQUENTE HISTÓRICO ANO
1T JOÃO BICIARE PROJETO DE CASA COM ARMAZÉM. 1913
81 PASCHOAL APELLI PROJETO DE FORNO E LABORATÓRIO. 1915
- FRANCISCO RODRIGUES SECKLER PROJETO DE COCHEIRA PARA UM ANIMAL. 1916
36 FRANCISCO RODRIGUES SECKLER PROJETO DE CASA COM LOJA E ARMAZÉM. 1919
ROCHA
31 GRIMALDO DE ALMEIDA PROJETO DE BARRACÃO PARA “DEPÓSITO DE 1922
MATERIAIS”.
47 SALVADOR MILANESE PROJETO DE BARRACÃO PARA “DEPÓSITO DE 1922
MATERIAIS”.
8D BRAZ JORNO (*) PROJETO DE COCHEIRA. 1900
- JOSÉ SIMONE MULTA POR NÃO DEMOLIÇÃO DE COCHEIRA. 1901
32 JOSÉ DE SOUZA OLIVEIRA (*) PROJETO DE QUARTO PARA DEPÓSITO DE MADEIRA. 1905
8T CLAUDINO PONTES PROJETO DE OFICINA DE MARCENARIA E DEPÓSITO DE 1910
MÓVEIS.
16 DOMINGOS ANTÔNIO MARTINS ACRÉSCIMO EM OFICINA DE ESCULTURA E DEPÓSITO DE 1910
“TRABALHOS”.
- DOMINGOS ANTÔNIO NASCIMENTO PROJETO DE CONSTRUÇÃO DE SALA DE NEGÓCIO. 1913
- MATEO MAGNO PROJETO DE ACRÉSCIMO DE ARMAZÉM. 1913
16 FELIPPE LOLEGIO PROJETO DE REFORMA EM SOBRADO COM ARMAZÉM NO 1913
TÉRREO.
- ANNIBAL DOS REIS PROJETO DE CASA COM ARMAZÉM. 1913
10 (CRISTORO) DE BENEDETTO PROJETO DE CASA E COCHEIRA (2 BAIAS). 1913
SARACURA GRANDE
(ATUAL ALMIRANTE 23 T VICENTE FERRARA E VICENTE PROJETO DE DUAS CASAS COM ARMAZÉNS. 1913
MARQUES LEÃO) GENTIL
89 JOSÉ CAVALIERE REFORMA DE PRÉDIO COM ARMAZÉM (ESQUINA COM 1916
EUGENIO DE LIMA).
52 VICENTE FERRARI CONSTRUÇÃO DE CÔMODOS PARA FORNO, 1917
LABORATÓRIO E ROUPARIA, NOS FUNDOS DO TERRENO.
98-100- PAULO RODRIGUES ACRÉSCIMO DE COZINHAS E WCS EM TRÊS CASAS 1917
102 EXISTENTES, UMA COM ARMAZÉM.
32 CARMELO PANZICA PROJETO DE BARRACÃO PARA GUARDAR MATERIAIS, JÁ 1917
CONSTRUÍDO.
20 ANDRÉA SIMONE PROJETO DE FORNO PARA “FABRICAÇÃO DE OBJETOS DE 1917
BARRO”.
50-50A VICENTE FERRARI PROJETO PARA FINALIZAÇÃO DE DUAS CASAS COM 1917
ARMAZÉM.
160 MANOEL ÁLVARO MARTINS PROJETO DE UMA CASA COM ARMAZÉM. 1918
ALMIRANTE 14 ACCACIO RODRIGUES REFORMA DE COCHEIRA COM 5 BAIAS. 1921
MARQUES LEÃO 130 FELIPPE DEL NERO PROJETO DE “BARRACÃO PARA GUARDAR 1922
(ANTIGA SARACURA FERRAMENTAS AGRÍCOLAS”.
GRANDE)
SARACURA PEQUENA 64 CARMELO NATULLA (*) PROJETO DE COCHEIRA COM 3 BAIAS, DEPÓSITO DE 1900

199
Nos referimos ao “Plano de Avenidas” elaborado pelo engenheiro Francisco Prestes Maia, em seu Estudo
de um plano de avenidas para a cidade de São Paulo (1930), como forma de adaptar o sistema viário da
capital paulista ao crescimento urbano acelerado. De acordo com Flávio Eduardo di Monaco, “o sistema
viário proposto (pelo engenheiro) é composto basicamente por dois sistemas: o perimetral e o radial. (...) A
partir do ‘perímetro de irradiação’ em torno do centro, Prestes Maia projetou uma série de avenidas
radiais, em todas as direções da cidade”. A abertura da Av. Anhangabaú (posterior Av. 9 de Julho)
correspondia exatamente às intenções de conexão do centro com a região Sul da cidade. In MONACO,
Flávio Eduardo de – O Banquete do Leviatã: direito urbanístico e transformações da zona central de São
Paulo (1886-1945) . Tese de doutorado apresentada à FAU/USP, 2007. p.295-296.
(ATUAL DR. PLÍNIO ALFAFA E MILHO E TANQUE.
BARRETO) 72 ANTÔNIO ESPÓSITO (*) PROJETO DE COCHEIRA COM 5 BAIAS E TANQUE. 1900
48 FRANCISCO DE MEDEIROS (*) PROJETO DE COCHEIRA COM 4 BAIAS. 1900
60 (**) PASQUAL CASTELLO PROJETO DE ACRÉSCIMO DE SALA DE NEGÓCIOS EM 1907
CASA EXISTENTE (JUNTO AO N.60)
- JULIO PEREIRA DOS SANTOS PROJETO DE CASA E COCHEIRA (8 BAIAS). 1913
45 CARLOS NATRIELLI PROJETO DE COCHEIRA COM TRÊS BAIAS (CONFINA COM 1916
NESTOR & CIA. MEIRELLES E COM SERAFIM
FERNANDES.

Tabela 56 – Solicitações de licença para construção e/ou reforma de prédios localizados na área da Saracura, entre 1900
e 1922. Fonte: Série Obras Particulares, AHSP.
(*) Na ausência do nome dos proprietários, mantivemos o nome dos requerentes. (**) Nesse caso, o proprietário utilizou
como referência a numeração do imóvel contíguo.

Entre os 32 casos listados na tabela acima, há algumas situações em que não há


como se ter certeza do destino dado à edificação em face ao projeto proposto, mas as
indicações dos desenhos encaminhados à Diretoria de Obras apontam para um provável
uso comercial do imóvel, razão pela qual optei pela sua inclusão. Se relacionarmos a
totalidade desses casos ao tempo envolvido pelo levantamento (vinte e dois anos), parece
claro que eles não representam o conjunto de atividades desenvolvidas na área do vale da
Saracura. De todo modo, são importantes na medida em que sinalizam para a presença
efetiva de negócios na área antes dos primeiros registros no Almanaque Laemmert, em
1909.
Datam do período compreendido entre 1900 e 1907, os casos a seguir relacionados.
Em 1900, localizei solicitações de licença para a construção de uma cocheira no n.8D da
rua da Saracura Grande, cujo suposto proprietário seria Brás Jorno (ou Giorno). No mesmo
ano, três proprietários da rua da Saracura Pequena encaminharam pedidos à Diretoria de
Obras com o mesmo objetivo, a construção de cocheiras: uma com 4 baias, no n.48; uma,
com 3 baias, no n.64; e outra com 5 baias, no n.72 200. Em outubro de 1905, José de Souza
Oliveira solicitou licença para a “construção de quarto para depósito de madeira nos
fundos do quintal”, localizado à rua da Saracura Grande n.32. E em 1907, localizei um
“projeto de acréscimo de sala de negócios à uma casa existente”, de propriedade de
Pasqual Castello, também na rua da Saracura Pequena, “junto ao n.60”.

200
Obras Particulares, 15/05/1900, v.284, p.28; 15/01/1900, v.284, p.34; 30/01/1900, v.284, p.31; e
06/08/1900, v.284, p.42, AHSP.
Figura 99 – Projeto de reforma para acréscimo de uma sala de negócios na frente da casa existente, para Pasqual
Castello, à rua da Saracura Pequena, “junto ao n.60”. Fonte: Obras Particulares, 10/01/1907, OP1907/001.493, AHSP.

Já no Almanaque Laemmert, os primeiros anúncios de algum tipo de negócio


menos grosseiro no Saracura datam de 1908 e 1909: a fábrica de massas alimentícias de
Manuel Richner e David Muzel, na rua da Saracura Pequena n.32; e o botequim e bilhar de
Genearo Pambello, na mesma rua, n.36. Nos dois casos, as atividades foram anunciadas
nos dois anos e em 1910 já não constam mais do anuário. Os próximos anunciantes só
voltariam a publicar seus negócios, timidamente, em 1921 e no biênio 1922-23; e mais
frequentemente após 1924.
Porém, antes que isso ocorresse, a documentação da Série Obras Particulares
fornece evidências da presença de atividades produtivas na área. Em 1910, dois projetos
mais específicos indicam claramente a intenção de instalação de um negócio: o primeiro,
encaminhado por Claudino Pontes, solicita licença para a construção de uma “officina de
marcenaria e depósito de móveis, nos fundos do terreno”, na rua da Saracura Grande n.8T;
e o segundo, encaminhado por Domingos Antônio Martins, solicita licença para
“acréscimo de oficina para escultura e depósito de ‘trabalhos’”, no número 16 da mesma
rua.
Figura 100 – Projeto para construção de oficina de
marcenaria e de cômodo para depósito de móveis,
certamente uma pequena manufatura de móveis, para
Claudino Pontes, na rua da Saracura Grande n.8 tinta.
Observe-se a presença de uma casa na frente do terreno
de grandes dimensões. Fonte: Obras Particulares,
10/01/1910, OP1910/002.440, AHSP.

Figura 101 – Projeto para acréscimo de oficina para


escultura e depósito de “trabalhos”, na sequência da
casa existente, para Domingos Antônio Martins, na rua
da Saracura Grande n.16. Fonte: Obras Particulares,
10/01/1910, OP1910/002.442, AHSP.

A partir de 1913, as solicitações de licença que envolviam o exercício de algum


tipo de negócio se tornam mais constantes. Ainda nesse ano, duas cocheiras, uma com 2
baias, na rua da Saracura Grande n.10; e outra, com 8 baias, na Saracura Pequena, sem
número 201. A construção de uma “sala de negócios” para Domingos Antônio Nascimento,
na rua da Saracura Grande, sem número; o acréscimo de um cômodo para armazém em
casa existente, para Mateo Magno, na mesma rua, sem número; a reforma de um sobrado,
para “instalação de um armazém” na sala do pavimento térreo, para Felippe Lolegio,

201
Obras Particulares, 09/12/1913, OP1913/004.696; e 17/07/1913, OP1913/004.715, AHSP.
202
também na rua da Saracura Grande n.16 ; a construção de 4 casas, cujos projetos
previam o uso misto (casa com armazém: a primeira, na rua da Saracura Grande sem
número, para Annibal dos Reis; duas casas para Vicente Ferrara e Vicente Gentil, na
mesma rua, n.23T; e por fim, outra casa com armazém para João Biciare, na rua Rocha
n.1T 203).

Figura 102 – Projeto para reforma de sobrado, com transformação da sala instalada no térreo em um armazém, de
propriedade de Felippe Lollegio, à rua da Saracura Grande n.16 Tinta. Fonte: Obras Particulares, 25/07/1913/
OP1913/004.700, AHSP.

Localizei, entre 1915 e 1916, um “projeto para a construção de forno e


204
laboratório”, na rua Rocha n.81, para Paschoal Apelli ; e um projeto para “reforma de
prédio com armazém no alinhamento”, na rua da Saracura Grande n.89, para José
205
Cavalieri . Além desses dois casos em que os usos estavam implícitos, há dois projetos
para a construção de cocheiras: o primeiro, para a construção de uma cocheira, com uma
baia, na rua Rocha, sem número, para Francisco Rodrigues Seckler; e o segundo, para a
construção de cocheira com 3 baias, para Carlos Natrielli, à rua da Saracura Pequena
n.45206. No ano seguinte, 1917, se destacaram quatro casos, todos na rua da Saracura
Grande: um projeto em nome de Vicente Ferrari, para “construção de cômodos para forno,
laboratório e rouparia, nos fundos do terreno”, no número 52; um projeto para

202
Obras Particulares, 14/04/1913; e OP1913/004.402, AHSP.
203
Obras Particulares, 23/08/1913, OP1913/004.699; 30/12/1913, OP/1913/004.703; e 17/04/1913,
OP1913/004.360, AHSP.
204
Naquele momento, a existência de um ‘forno’ em uma edificação não indicava necessariamente a
presença de uma padaria, o que não ocorria com os ‘laboratórios’. Estes, designavam uma espécie de
‘cozinha’ destinada ao preparo do pão para venda ao consumidor.
205
Obras Particulares, 24/04/1915, OP1915/003.269, Cx.411; e 21/12/1916, Doc.46-Cx.S5, AHSP.
206
Obras Particulares, 29/04/1916, Doc.2-CxR3; e 23/03/1916, Doc.51-Cx.5, AHSP.
“acréscimo de cozinhas e WC em três casas existentes, uma delas com armazém na
frente”, para Paulo Rodrigues, nos números 98, 100 e 102; o projeto de construção de um
“forno para fabricação de objetos de barro”, em nome de Andrea Simone, no número 10;
e outro projeto que previa a retomada da construção de duas casas com armazém, cuja
licença original datava de 20/08/1914207. Em 1918, apenas uma solicitação de licença para
construção foi encaminhada à Diretoria de Obras. Tratava-se de projeto que previa a
construção de uma casa com armazém, na rua da Saracura Grande n.160, para Manoel
Álvaro Martins. No ano seguinte (1919), um pedido no mesmo sentido foi feito por
Francisco Rodrigues Seckler, para o número 36 da rua Rocha, possivelmente no mesmo
terreno onde ele havia construído uma cocheira em 1915208.
A partir de 1921, o Almanaque Laemmert voltou a registrar atividades nas ruas do
vale da Saracura. Nesse ano, a rua Saracura Grande já havia sido transformada na rua
Almirante Marques Leão, uma via de percurso longo, que estendia-se do final da rua
Conselheiro Carrão, até o cruzamento da Alameda Joaquim Eugênio de Lima com a rua
Ribeirão Preto, nas proximidades do Morro dos Ingleses e da Av. Paulista. A rua Rocha, de
trajeto mais curto, com início na Praça São Manoel (atual Praça 14 Bis), após atravessar
parte do grotão, termina na própria Almirante Marques Leão. Já a rua da Saracura Grande,
localizada entre o leito do córrego da Saracura e a rua Itapeva, está identificada na planta
SARA Brasil como parte da Avenida Anhangabaú; começando também na Praça São
Manoel e terminando nas proximidades do antigo Trianon.

207
Obras Particulares, 10/05/1917, Doc.54-Cx.S4; 21/05/1917, Doc.57-Cx.S4; 22/08/1917, Doc.55-Cx.S4;
10/12/1917, Doc.56-Cx.S4, AHSP.
208
Obras Particulares, 20/12/1918, Doc.15-Cx.S4; e 01/03/1919, Doc.11-Cx.R3, AHSP.
Figura 103 – Como é possível ver no recorte do mapa
SARA Brasil, embora seu trajeto acompanhe toda a
extensão do loteamento do Morro dos Ingleses, a
imensa área representada pelo espaço vazio, entre a rua
Almirante Marques Leão e a rua dos Franceses, define
as diferenças sociais de seus moradores. Enquanto o
Morro dos Ingleses ocupa um espaço plano, a
Almirante Marques Leão ocupa exatamente a grota,
onde se localiza a nascente do córrego da Saracura,
circundada em azul. Fonte: SARA Brasil, Fl.51, 1930.
AHSP.

Figura 104 – Nessa imagem da Planta SARA Brasil, vemos a rua Rocha, cujo trajeto se inicia na Praça São Manoel
(atual Praça 14 Bis) e avança pelo grotão, terminando na própria Almirante Marques Leão. Fonte: SARA Brasil, Fl.50,
1930. Disponível em: https://www.mediafire.com/folder/7y159y3reja6x/Sara%20Brasil%201930.
Entre 1921 e o biênio 1922-23, o anuário registrou as seguintes atividades, assim
distribuídas: rua Almirante Marques Leão, com 2 padarias e um armazém de secos e
molhados; rua Rocha, com 1 padaria; e rua da Saracura Pequena, com 1 armazém de secos
e molhados. Curiosamente, a padaria da rua Rocha n.49 pertencia a Paschoal Apelle, o
mesmo que em 1915 havia solicitado licença para a construção de “um forno e um
laboratório” nos fundos da casa existente, no n. 81 daquela rua. Apesar de os imóveis
serem próximos, seguramente não se tratava da mesma edificação. Por outro lado, essa foi
a única ocasião em que o nome de Paschoal Apella (ou Apelli) figurou nas páginas do
anuário. Mas Paschoal não foi o único personagem reencontrado no anuário. Vicente
Ferreira (ou Ferrari), em sociedade com Vicente Gentil, havia solicitado licença em 1913,
para construir duas casas com armazém, uma delas exatamente no mesmo endereço onde
viria a funcionar sua padaria, no número 50 da Almirante Marques Leão.

Figura 105 – Projeto original, encaminhado à Diretoria


de Obras em 30/12/1913, para a construção das casas
de Vicente Ferrara e Vicente Gentil, com espaço para
armazém no alinhamento do prédio. Em 10/12/1917, os
proprietários renovariam a solicitação, agora para
finalização das obras. Fonte: Obras Particulares,
OP1913/004.703; e Doc.56 -Cx.S4, AHSP.

Paulo Rodrigues foi o terceiro caso identificado nas Obras Particulares, no ano de
1917. Em 21 de maio daquele ano, Paulo solicitava licença para acrescentar cozinha e
banheiro nas três casas de sua propriedade, nos números 98, 100 e 102, sendo que a casa de
secos e molhados localizava-se no número 98.
Em 1924, todos os negociantes dos anos anteriores desapareceram, dando lugar a
novos nomes. O anuário daquele ano contou com 4 negócios: dois armazéns de secos e
molhados e 1 pintor e decorador na rua Almirante Marques Leão; e 1 armazém de secos e
molhados na rua Rocha.
Nos anos de 1925, 1926 e 1927, percebi uma certa estabilização dos negócios
empreendidos no vale da Saracura, voltados prioritariamente para o setor da alimentação:
rua Almirante Marques Leão, com 1 padaria e 4 casas de secos e molhados, e ruas Rocha e
Saracura Pequena, com 1 casa de secos e molhados, cada uma. O diferencial ficou por
conta da introdução de uma atividade do setor de serviços pessoais (1 barbearia), e de
outra voltada para o setor da construção civil (1 pintor e decorador), ambos na rua
Almirante Marques Leão.
Por fim, em 1931, a área do Saracura alcançaria 11 registros no Almanaque
Laemmert: 1 comércio de frutas, 1 padaria e 4 casas de secos e molhados na rua Almirante
Marques Leão, rua que também abrigou 1 comércio de carvão vegetal para uso doméstico;
na rua Rocha havia 1 barbearia, e mais um comércio de secos e molhados; e na rua da
Saracura Pequena, 2 comercios de secos e molhados.
Se voltarmos novamente nosso olhar para toda a área ocupada pelo vale da
Saracura – denominada por mim de “face pobre” do Bexiga –, é possível perceber melhor
o quanto eram restritas as atividades produtivas naquela área, principalmente quando
comparadas com o loteamento original e a área de influência da Av. Brigadeiro Luís
Antônio. Porém, ainda que restritos, os pequenos negócios podem dizer bastante acerca do
que significava viver no Saracura.
No que toca aos dados coletados no Almanaque Laemmert, entre 1909 e 1931,
quatro aspectos se destacam nesse cenário: a) a concentração de negócios nas ruas da
Saracura Grande e Pequena; b) o reduzido número de anunciantes (27); c) a inquestionável
predominância de atividades mais grosseiras; d) a diminuta presença de atividades do setor
da alimentação predominantes nas outras áreas do bairro (poucos armazéns de secos e
molhados e padarias) e a “insignificante” presença de um barbeiro, um pintor de paredes e
um comerciante de carvão vegetal.
Já as informações obtidas junto à Série Obras Particulares, entre 1900 e 1922,
remetem a uma maior diversificação no tipo de negócios ali desenvolvidos. Nos projetos
encaminhados à Diretoria de Obras identifiquei 2 projetos para a provável instalação de
padarias, 12 armazéns que poderiam servir ao comércio de secos e molhados, 3
manufaturas (1 oficina para fabricação de móveis, 1 oficina de escultura e 1 fabriqueta de
objetos de barro), 9 cocheiras, as quais também poderiam funcionar como estacionamento
de veículos para transporte de pessoas e mercadorias. Por fim, localizei 5 barracões “para
guarda de materiais”, os quais, eventualmente, podiam servir a algum tipo de negócio.
A consulta ao acervo do jornal O Estado de São Paulo revelou a existência de
outros negócios no Saracura. Em 05/06/1915, o jornal divulgava a venda de “um pequeno
negócio de seccos e molhados, casa de grande futuro”, na rua da Saracura Pequena n.60
A, no final da rua Manoel Dutra. Dois anos mais tarde, Manoel de Sá declarava a venda do
“negócio de secos e molhados, à rua da Saracura Grande n.88, ao senhor Casemiro José.
Em grande medida são negócios destinados às camadas baixas e médias da população – o
que justifica a ausência de anúncios no Almanaque Laemmert. Seguramente, quem vivia
nas imediações desses negócios sabia de sua existência, portanto, sua divulgação seria
supostamente desnecessária.
Figura 106 – O Estado de São Paulo, 05/06/1915.

Figura 107 – O Estado de São Paulo, 12/09/1917.

Tendo em vista as pequenas dimensões dos negócios identificados nas duas fontes
principais (o Almanaque Laemmert e a Série Obras Particulares) , tudo leva a crer que se
tratasse de atividades voltadas ao abastecimento da população local. Porém, a consulta ao
jornal O Estado de São Paulo de 12/06/1912, nos levou a um tipo de empreendimento que
talvez servisse a outros bairros da cidade. Tratava-se de uma olaria de propriedade de
Vasco Teixeira & Pretis, localizada na rua da Saracura Grande, na ocasião, alvo de litígio
entre os proprietários. A nota veiculada pelo jornal levou ao aprofundamento das
investigações e, por fim, à declaração publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo,
de 15 de novembro de 1907. Segundo o jornal, no mês de outubro daquele ano, Vasco
Teixeira e Salvador Presti declaravam a abertura da “indústria de tijolos, telhas e demais
objetos de barro, nesta praça, com o capital de 23:000$000, sob a firma de Vasco Teixeira
& Presti”. A matéria, além de precisar o ano de abertura da olaria, define o montante
investido, 23 contos de réis, o que leva a crer se tratar de um emprendimento de proporções
bem razoáveis para a época. De qualquer maneira, a inexistência de notícias posteriores
relacionadas ao negócio parece indicar que a olaria teve vida curta.
Por fim, cabe lembrar uma atividade que dificilmente teria alguma divulgação na
imprensa escrita, aquela exercida pelas lavadeiras e engomadeiras. A presença dessas
profissionais dos serviços domésticos na cidade é bastante conhecida, seja através de textos
de caráter memorialístico, de estudos específicos e mesmo da iconografia. Segundo
Grünspun:
Não havia cortiço onde não houvesse roupa no varal. Própria e dos outros. Em cada
casarão havia pelo menos uma lavadeira de roupa de fora.
Esta era uma das profissões mais comuns no Bexiga: lavar roupa para fora. Quando as
freguesas eram do próprio Bexiga ganhava-se uma miséria porque todos sabiam do preço.
Mas quando as freguesas eram de fora do bairro, como Morro dos Ingleses ou Paraíso,
dava para ganhar bem (1979, p.32-33, grifo nosso).

Não há como dimensionar o número de lavadeiras que atuaram no bairro, mas não
restam dúvidas que foram muitas.

As duas fotos abaixo revelam roupas estendidas nas várzeas para secagem em
alusão às lavadeiras de então que certamente prestavam serviços às casas do bairros
envoltórios, circulando com suas trouxas sobre a cabeça.

Figura 108 – Nesta imagem, localizada no Vale do Saracura Grande, as roupas nos varais e nos quaradores demonstram
a atividade das lavadeiras. c.1920. Foto: Geraldo Horácio de Paula Souza. Fonte: Centro de Memória da Saúde
Pública/Faculdade de Saúde Pública/USP.
Figura 109 – Nesta outra foto a cena se repete: roupas estendidas nos varais e postas a quarar na encosta do vale. c.1920.
Foto: Geraldo Horácio de Paula Souza. Fonte: Centro de Memória da Saúde Pública/Faculdade de Saúde Pública/USP.

Assim como elas, outros profissionais menos “especializados” viveram na área do


Saracura: pessoas ligadas à construção civil (pedreiros e serventes de pedreiros) e mesmo
aquelas responsáveis pelos serviços domésticos nas casas mais abastadas, tais como
jardineiros, costureiras, cozinheiras, copeiras, criadas etc. Essa situação perdurou, pelo
menos, até a consumação do “Plano de Avenidas”, de Prestes Maia, e a abertura da
Avenida Anhangabaú, nos anos 1930. Conforme as palavras do engenheiro Arthur
Saboya, com a execução desse plano “não só o saneamento do vale e das zonas vizinhas
ficou assegurado; desapareceu o perigo da transformação em novas ‘favelas’ das encostas
marginais e do próprio vale (do Saracura)” 209. Decididamente, esse seria um novo tempo,
não apenas para o bairro do Bexiga, mas para toda a cidade.

209
MAIA, Francisco Prestes – Estudo de um Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo, 1930, p.III.
Apud SILVA, Marcos Virgílio da – “Lembranças eu tenho da Saracura”: escavando histórias soterradas
por uma avenida. In Bixiga em artes e ofícios, Estudos CPC n.4, p.290, São Paulo: CPC USP/EDUSP, 2014.
CAPÍTULO 3 – ATIVIDADES PRODUTIVAS: ALGUNS CASOS EXEMPLARES E
SUAS RELAÇÕES COM A CIDADE

Trabalhar com os dados dos setores produtivos identificados exigiu a definição de


antemão dos critérios a serem adotados para a sua análise. Esse foi o caso, particularmente,
das informações coletadas nos Almanaques Laemmert, as quais ao mesmo tempo em que
permitiram o reconhecimento de instâncias produtivas que envolviam diferentes setores e
segmentos sociais e econômicos, demonstraram que se tratava de um universo complexo e
diversificado, dificultando a classificação das atividades em categorias fechadas e
possivelmente anacrônicas.
Como já mencionado no Capítulo 2, tendo em vista a necessidade de uma
abordagem mais objetiva para analisar os segmentos envolvidos nas atividades produtivas
do bairro levando em conta a superposição e diversidade de atividades desenvolvidas no
mesmo local, eventualmente vinculadas à produção e ao comércio de um mesmo produto,
ao invés de enquadrar esses segmentos nos termos adotados pelo IBGE na Classificação
Nacional de Atividades Econômicas-CNAE210 – setores primário/ agricultura, secundário/
indústria e terciário/ comércio e serviços – criei categorias abrangentes que envolvessem a
vida pública e privada da cidade, tais como alimentação, construção civil, saúde,
transportes, vestuário etc., conforme pode ser visto no Anexo 2, Atividades identificadas.
Embora essas categorias possam estar sujeitas a erros de avaliação, acredito que sejam
sufucientes para dar conta da realidade do bairro.

3.1 Atividades produtivas e o comércio de gêneros alimentícios de primeira necessidade:


armazéns, quitandas e casas de frutas

Antes de avançar na avaliação dessas tipologias comerciais, é importante destacar


uma dificuldade que permeou a análise dos registros do Almanaque Laemmert. Embora as
classificações encontradas nos diferentes anos do anuário para os armazéns de secos e
molhados indiquem predominantemente o comércio varejista de gêneros alimentícios
“sólidos e líquidos”, e aquelas relacionadas às quitandas indiquem o comércio de verduras,
legumes e frutas, frequentemente é possível encontrar nessas publicações uma certa

210
Fonte: IBGE – Classificação Nacional de A tividades Econômcas. Versão 2.0. Rio de Janeiro, 2007.
Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv36932.pdf.
“mistura” dos produtos comercializados. Assim como há casos de estabelecimentos que
aparentemente se dedicavam exclusivamente ao comércio de produtos específicos, tais
como “embutidos”, “molhados finos”, “mantimentos”, “laticínios”, “vinhos”, etc., os
armazéns de secos e molhados também podiam vender esses mesmos produtos. De outro
lado, as quitandas podiam vender “cereais, batatas e cebolas” e “frutas”, os quais,
eventualmente, também podiam ser encontrados nas casas de secos e molhados.
A indefinição sobre o tipo de produto comercializado nesses estabelecimentos se
estende às padarias, conforme pode ser verificado no inventário porst-mortem citado por
Maria Luiza Ferreira de Oliveira, de João Ferraz de Campos, onde estão relacionados os
itens vendidos pelo negociante Domingos Albange, proprietário de uma padaria na rua São
Domingos n.24: “pão, caninha, farinha, bacalhau, milho e sardinha” (Oliveira, 2005,
p.286). Além do pão e da farinha, produtos característicos de uma padaria, a caninha, o
milho, o bacalhau e a sardinha também eram vendidos nas casas de secos e molhados.
Armandinho do Bixiga confirmou essa possibilidade em suas memórias:
As padarias eram completamente diferentes de hoje. A padaria vendia arroz, feijão. A
Basilicata, fundada em 1914, ainda mantém isso um pouco, as outras não. Vendiam arroz,
feijão, milho, alho, tudo, era uma “venda”. Só que faziam o pão também. O forte era o
empório, mas faziam pão também. (Moreno, 1996, p.153, grifo nosso).

São esses alguns dos casos da diversidade e sobreposição de funções – aos olhos de
hoje incompatíveis – que dificulta a delimitação de fronteiras rígidas entre
estabelecimentos e os tipos de produtos ali comercializados.
Como analisado no Capítulo 2, as atividades vinculadas ao setor alimentação –
particularmente aquelas voltadas ao comércio de gêneros de primeira necessidade –
predominaram no Bexiga. Exceções foram observadas somente em 1906 e 1915.
Em 1906, os anúncios no Almanaque Laemmert referentes ao bairro nomearam
apenas 11 atividades, das quais apenas 1 armazém, sendo o setor alimentação superado de
longe pelo da construção civil. Em 1915, outro ano de poucos anúncios (39), o setor
alimentação correspondeu a 1 único armazém e desta vez o setor foi superado pelas
atividades vinculadas aos serviços de saúde.
Nos demais anos vê-se o recorrente predomínio de armazéns e quitandas.
Verificamos na Tabela 57, que os armazéns tiveram absoluta liderança em relação
às quitandas e casas de frutas. No entanto, aqui é importante levar em conta que, tanto no
caso dos armazéns quanto das quitandas e casas de frutas, os números destacados na tabela
se referem aos anúncios publicados, não correspondendo à totalidade dos estabelecimentos
existentes no bairro naquele período. O recorte por endereço divulgado pelos negociantes,
ano a ano, demonstrou uma redução drástica do número de estabelecimentos211. A partir
dos procedimentos adotados na análise comparativa desses dados, os 502 registros de
armazéns destacados na Tabela 57, reduziram-se a 355 casos. Surpreendentemente, após o
mesmo procedimento, as quitandas e casas de frutas mantiveram o mesmo cuoficiente, ou
seja, 62 estabelecimentos. Ressalte-se ai dois fatos relevantes: a interrupção do registro de
quitandas após a abertura da feira-livre na rua São Domingos em 1915, assunto ao qual
voltaremos adiante, e a reintrodução das casas de frutas em 1931. Contudo, apesar da
alteração nos números finais desses estabelecimentos, os armazéns permaneceram à frente,
assim representados:
QUITANDAS E/OU
ANOS ARMAZÉNS TOTAL
CASAS DE FRUTAS
1906 1 - 1
1909 36 5 41
1914 112 13 125
1915 1 - 1
1918 23 - 23
1922/23 115 - 115
1927 107 5 112
1931 107 39 145
502 62
TOTAL 564
(89%) (11%)

Tabela 57 – Ocorrência de armazéns e quitandas, nos anos 1906, 1909, 1914, 1915, 1918, 1922-23, 1927 e 1931.
Observe-se que esses números referem-se ao conjunto das áreas analisadas no bairro: a “área nobre”, o loteamento
original e a Saracura. Fonte: Almanaque Laemmert, Acervo Digital FBN.

ARMAZÉNS QUITANDAS E/OU CASAS DE FRUTAS TOTAL


355 62
417
(85,13%) (14,87%)
Tabela 58 – Percentual de armazéns e quitandas no bairro do Bexiga, entre 1906 e 1931. Fonte: Almanaque Laemmert,
Acervo Digital FBN.

No decorrer dos vinte e cinco anos investigados (1906-1931) os armazéns de secos


e molhados foram uma constante no bairro do Bexiga, como de resto em praticamente toda
a cidade de São Paulo, excetuando-se o Centro e os bairros exclusivamente residenciais.
Maria Luiza Ferreira de Oliveira, ao estudar como o intenso processo de urbanização da

211
É importante destacar que a adoção da soma total dos dados obtidos, ano a ano, deve ser trabalhada de
forma criteriosa, de maneira a não gerar falsos resultados. Alguns fatores, imperceptíveis à primeira vista,
podem alterar/mascarar o resultado final da soma dos números totais registrados em cada ano. Esse é o caso,
por exemplo, das empresas em sociedade, onde a publicação de anúncios por sócios, pode gerar dois ou mais
registros para o mesmo negócio; da publicação de diferentes anúncios para o mesmo estabelecimento, um em
nome do(s) proprietário(s), outro com o nome “fantasia” do negócio; a alteração da numeração do imóvel em
virtude dos emplacamentos realizados pela Prefeitura, gerando um aparente novo registro/negócio; a
transferência, por venda e/ou compra de um negócio (localizado no mesmo endereço) para o nome de outra
pessoa, sucitando a ideia de um novo estabelecimento. Assim, tendo em vista a obtenção de dados mais
coerentes, adotamos a análise comparativa dos bancos de dados gerados ano a ano pelos registros dos
almanaques. Após o cruzamento dos dados obtidos, agrupamos os negócios de acordo com os endereços
devidamente atualizados e os respectivos proprietários. Dessa maneira, conseguimos obter resultados – se
não totalmente corretos – bem mais próximos da realidade.
capital paulista, ocorrido entre 1874 e 1901, se refletiu nas estratégias de sobrevivência
adotadas pelas camadas médias da população, nas relações estabelecidas entre elas, assim
como em suas trajetórias de vida, abordou esses espaços comerciais sob o ponto de vista de
seu significado como espaço de apoio e sociabilidade, dando a dimensão da presença
desses estabelecimentos na cidade:
Os negócios de secos e molhados, as vendas, os armazéns: espaços de encontros, de
sociabilidade, de frequência diversa. Marcavam a paisagem paulistana nos mais diversos
endereços. No centro, nas proximidades das pontes, nas beiras de caminhos, nos bairros
mais distantes (Oliveira, 2005, p.270, grifo nosso).

A autora ainda mapeia, através dos registros no Almanaque da Província de São


Paulo de 1873, tanto as diversas categorias dessa modalidade de comércio e sua
localização nas ruas da cidade. A análise do Almanaque de 1873 revela a variedade de
tipologias de armazéns – Armazéns de louças e molhados, Armazém de secos, molhados,
couros, etc., Armazéns de conservas alimentares e molhados, Armazéns de molhados, etc.,
Armazéns de molhados e gêneros do país, Armazéns de secos e Armazéns de gêneros do
país – e sua localização em diversas áreas da cidade, por exemplo, na rua do Brás, na rua
da Glória (Liberdade), no aterrado de Santana, na (rua das) Palmeiras, na Água Branca, no
Lavapés (Cambucí), no Campo da Luz além, é claro, de no próprio Centro212. Ainda
conforme as palavras da autora, “’Armazéns de molhados e gêneros do País’, era a
(categoria) que congregava os mais simples e pobres, e as casas mais espalhadas pela
cidade” (Ferreira, 2005, p.277, grifo nosso). Por outro lado, o título de outras categorias
arroladas no anuário parecem indicar o grau de especialização e refinamento dos armazéns,
caso por exemplo, dos Armazens de vinhos estrangeiros e nacional, cujo único
estabelecimento relacionado localizava-se na Travessa do Colégio n.8, no centro da cidade.
Independentemente da localização e do grau de requinte, tratava-se de
estabelecimentos comerciais onde se podia adquirir toda sorte de produtos alimentícios,
desde os itens básicos para a alimentação diária (arroz, feijão, massas, cereais, carne seca,
etc.), até produtos mais refinados (conservas, vinhos importados, embutidos, etc.). Para
termos uma ideia dos tipos de produtos consumidos pela população paulistana na última
década do século XIX, um inventário analisado por Maria Luiza Oiveira revela o perfil de
um típico armazém de secos e molhados que envolvia inclusive o empréstimo de dinheiro:

212
Almanak Administrativo da Província de São Paulo para 1873, p.119 a 123.
D. Margarida comprava manteiga, querosene, anisete, feijão, banha, arroz, polvilho,
sabão, batata, cebola, café, sardinha, capilé, vela, chá, por vezes carne de porco, outras
toucinho, outras cognac, e todos os meses vinho branco e pinga (Oliveira, 2005, p.295).

Apesar da rapidez com que a cidade se transformava, alterando continuamente os


hábitos dos seus habitantes, a variedade de itens da lista dos produtos adquiridos por D.
Margarida por volta de 1898 não devia diferir muito daqueles oferecidos pelos
comerciantes do Bexiga identificados na Série Alvará e Licença e no Almanaque
Laemmert. Em suma, aqueles eram estabelecimentos essenciais para a vida das pessoas,
fosse qual fosse o seu estrato social.

Figura 110 – Nesta imagem temos um típico armazém


de secos e molhados no bairro do Brás (1921). Ainda
que localizado em um bairro distante do Bexiga, ele
possui as características comuns a esse tipo de
comércio. Além dos cereais expostos em sacos de juta,
temos artigos diversos pindurados em pregos nas
portas, tais como vassouras, calçados e até um pedaço
de bacalhau. 1921. Fonte: Fundação Energia e
Saneamento.

Definido atualmente como um “lugar onde se vendem frutas, verduras, ovos


etc”213, o termo “quitanda” remonta aos tempos da colônia e ao comércio ambulante de
alimentos praticado pelas “quitandeiras” – mulheres pobres, brancas ou negras, livres,
forras ou escravas – que buscavam através dessas práticas garantir a sobrevivência em uma
cidade de oportunidades restritas. Tratava-se então de um comércio “miúdo” de gêneros de
primeira necessidade, como “o sal, o fumo, o azeite para iluminação e a aguardente (...), o
toucinho, azeite de peixe, mamona (...), cera, mel... sabão, panos de algodão caseiro, ovos,
frangos” (Dias, 1995, p.76), frequentemente identificado com formas clandestinas de
burlar a fiscalização e a cobrança de impostos municipais e, por vezes envolvendo práticas

213
De acordo com o Dicionário Michaelis. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/ portugues/
index.php?lingua=portugues- ortugues&palavra=quitanda
e comportamentos sociais condenáveis. No século XIX, as quitandeiras analisadas por
Maria Odila Leite da Silva Dias estavam associadas não apenas a práticas ilegais de
comércio, mas também a comportamentos sociais indesejados, tais como brigas de rua e
uso de palavreado grosseiro. Até os primeiros anos do século XX o termo “quintandeiras”
ainda carregava essa conotação negativa: “linguagem de quitandeira”, “politicagem de
quitandeira” são exemplos de expressões pejorativas encontradas nos jornais da época
214
quando se queria desqualificar os atos ou as palavras de alguém . Talvez em função
disso também é que nos almanaques publicados nos anos que antecederam a República, as
quitandas parecem ter desaparecido, dando lugar a categorias mais vagas, mas talvez mais
bem vistas socialmente, caso de “frutas, molhados e gêneros da terra”, ou “frutas,
molhados e gêneros finos”215. Mas, independentemente de heranças culturais
desabonadoras, as quitandas situadas nos bairros das primeiras décadas do século XX eram
espaços onde a população adquiria produtos perecíveis essenciais à alimentação, como
frutas, legumes e verduras.
Responsáveis por modestos 14,87% (conforme a Tabela 58) dos anúncios de
comércio de alimentos publicados no Almanaque Laemmert, as quitandas se mostraram
numericamente inferiores àquelas encontradas na Série Alvará e Licença, onde, entre 1906
e 1914, sua presença foi uma constante. Levando em conta que o levantamento da série
privilegiou os anos de 1906, 1907, 1910, 1911 e 1914, localizei ali um total de 70 casos de
quitandas, eventualmente indicadas como casas ou quitandas de frutas. Já no
levantamento dos exemplares do anuário até 1914 (1906, 1909, 1910, 1911, 1913 e 1914) –
praticamente o mesmo período –, o total de quitandas identificadas resumiu-se a 18
estabelecimentos, conforme a Tabela 57 acima. Isso significa que muitas existiam, mas não
se divulgavam nos almanaques, talvez em função do seu pequeno porte ou por restringir-se
ao bairro.
A partir do cruzamento dos dados da Série Alvará e Licença com aqueles
fornecidos pelo Almanaque Laemmert é possível constatar que das 70 pessoas que
encaminharam requerimentos para abertura e/ou renovação de licença para seus negócios,
27 em algum momento haviam se utilizado do anuário, mesmo que para divulgar um outro
tipo de estabelecimento.

214
DIAS, Maria Odila Leite da Silva – Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1995, p.68-87.
215
Almanach do Estado de São Paulo para 1890, editado por Jorge Seckler.
PROPRIETÁRIO ESTABELECIMENTO LOGRADOURO N. ANOS FONTE
ANGELO DI COSTA (*) QUITANDA RUI BARBOSA 30 1910/11 ALVARÁ
1 ANGELO DA COSTA SECOS E MOLHADOS RUI BARBOSA 7 1913/14 AL
ANGELO DA COSTA SECOS E MOLHADOS MANOEL DUTRA 44 1921-27 AL
ANTÔNIO CAMAROSANO QUITANDA SANTO ANTÔNIO 14 1911 ALVARÁ
2 (**)
ANTÔNIO CAMAROZZANO SAPATEIRO SANTO ANTÔNIO 14 1913/14 AL
ANTÔNIO MONSENHOR (?) QUITANDA FORTALEZA 24 1914 ALVARÁ
3 ANTÔNIO BOMSIGNORI SECOS E MOLHADOS FORTALEZA 24 1913/14 AL
ANTÔNIO MUSTO (**) QUITANDA SANTO ANTÔNIO 171 1911 ALVARÁ
4 ANTÔNIO MUSTO BARBEARIA ABOLIÇÃO 24 A-26 1909/14 AL
CARMELA PETRONI QUITANDA/DEPÓSITO BANANAS CONSELHEIRO RAMALHO 194 1906/11 ALVARÁ
5 CARMELA PETRONE QUITANDA CONSELHEIRO RAMALHO 226 1910 AL
CLARA MARIA DA LUZ QUITANDA CONSELHEIRO RAMALHO 230 1910/11 ALVARÁ
6 CLARA MARIA DA LUZ QUITANDA CONSELHEIRO RAMALHO 230 1910 AL
DOMINGOS ABBADE (*) QUITANDA RUI BARBOSA 90 1911 ALVARÁ
7 DOMINGOS ABBADE SECOS E MOLHADOS CONSELHEIRO RAMALHO 114 1921/27 AL
DOMINGOS FORTE QUITANDA SÃO DOMINGOS 92 1910/11 ALVARÁ
8 DOMENICO FORTI QUITANDAS DOMINGOS 92 1910 AL
FRANCISCO AMADEO QUITANDA SANTO ANTÔNIO 4 1914 ALVARÁ
9 MARIA SPOSA QUITANDA SANTO ANTÔNIO 4 1913/14 AL
FRANCISCO MICHELI VENDA PEQUENA R. RUY BARBOSA 90 1906 ALVARÁ
10 FRANCISCO MICHELI GENEROS ALIMENTÍCIOS RUI BARBOSA 90 1909/14 AL
GENEROSO RUBINO QUITANDA MAJOR DIOGO 47 1907/11 ALVARÁ
11 GENEROSO RUBINO QUITANDA CONSELHEIRO RAMALHO 50 1910 AL
GENOVEVA BRUNETE QUITANDA CONSELHEIRO RAMALHO 83 1910/11 ALVARÁ
12 GENOVEVA BRUNETTO QUITANDA CONSELHEIRO RAMALHO 83 1910 AL
JOSÉ GUOGLIELMELLI QUITANDA SÃO DOMINGOS 30 1911 ALVARÁ
13 JOSÉ GUGLIELMELLO CASAS DE FRUTAS SÃO DOMINGOS 22 1909 AL
JOSÉ GUGLIELMELLO FÁBRICA DE DOCES SÃO DOMINGOS 22 1909 AL
JOSÉ NISE QUITANDA SÃO DOMINGOS 21 1910/11 ALVARÁ
14 JOSÉ NISI QUITANDAS SÃO DOMINGOS 21-28 1913/14 AL
JOSÉ ORLANDO (*) QUITANDA TREZE DE MAIO 41 1911 ALVARÁ
15 JOSÉ HOLANDA SECOS E MOLHADOS/QUITANDAS TREZE DE MAIO 41 1913/14 AL
MANOEL PALADINO QUITANDA MANOEL DUTRA 15 1911 ALVARÁ
16 MANOEL PALLARINO QUITANDAS MANOEL DUTRA 15 1913/14 AL
NICOLAU CASTILHO QUITANDA (DE FRUTAS) SÃO DOMINGOS 62 1910/11 ALVARÁ
17 NICOLA CARTIGLIA QUITANDAS SÃO DOMINGOS 62 1910 AL
NICOLA CASTILHA QUITANDA SÃO DOMINGOS 45 1914 ALVARÁ
PASCHOAL FARDINETTE (?) QUITANDA CONSELHEIRO RAMALHO 129 1910 ALVARÁ
18 PASCHOAL FURCIMETI CASAS DE FRUTAS CONSELHEIRO RAMALHO 127 1909 AL
PAULO FRANCIULLO (*) QUITANDA CONSELHEIRO CARRÃO 30 1911 ALVARÁ
19 PAULO FRANGULLI SECOS E MOLHADOS CONSELHEIRO CARRÃO 30 1918/27 AL
PHILOMENA PERRUTTI (?) QUITANDA SANTO ANTÔNIO 22 1910/14 ALVARÁ
20 PHILOMENA TENUTTI QUITANDAS SANTO ANTÔNIO 22 1913/14 AL
RAPHAEL CARCIOLLI QUITANDA CONSELHEIRO CARRÃO 32 1910 ALVARÁ
21 CAVAIOLE RAFFAELE QUITANDA CONSELHEIRO CARRÃO 32 1910 AL
RAPHAELA FABIANO QUITANDA MAJOR DIOGO 92 A 1906/14 ALVARÁ
22 RAPHAELA FABIANI QUITANDAS MAJOR DIOGO 166 1913/14 AL
VALÉRIO CAETANO QUITANDA CONSELHEIRO RAMALHO 192 1906 ALVARÁ
23 CAETANO VALLERIO CASAS DE FRUTAS CONSELHEIRO RAMALHO 192 1909 AL
VICENTE ANTÔNIO (OU QUITANDA MANOEL DUTRA 36 1911 ALVARÁ
VERDI) (*)
24 VICENTE VERGI GENEROS ALIMENTÍCIOS CONSELHEIRO RAMALHO 52 A 1909 AL
VICENZIO VERZI GÊNEROS ALIMENTÍCIOS CONSELHEIRO RAMALHO 166 1910 AL
VICENTE VERGI SECOS E MOLHADOS CONSELHEIRO RAMALHO 205 1913/14 AL
VICENTE FERRARI QUITANDA CONSELHEIRO RAMALHO 158 1914 ALVARÁ
25 VICENTE FERRARI QUITANDAS GENEBRA 88 1913/14 AL
VICENTE MAGULLI (*) QUITANDA ABOLIÇÃO 12 1906 ALVARÁ
26 VICENTE MAGGIULLI SECOS E MOLHADOS MARIA JOSÉ 75 1921/27 AL
VINCENZO PRATICÓ QUITANDA SANTO ANTÔNIO 167 1914 ALVARÁ
27 VICENTE PRATICON QUITANDAS SANTO ANTÔNIO 167 1913/23 AL

Tabela 59 – Cruzamento dados da Série Alvará e Licença (1906-1914) e do Almanaque Laemmert (1906-1931).
(*) Comerciantes que alteraram o tipo de negócio no anuário.
(**) Comerciantes com ramos de negocios diferentes daqueles indicados na Prefeitura.
Conforme é possível verificar na Tabela 59, desses casos, em 7 ocasiões os
anúncios estavam enquadrados nas categorias secos e molhados ou gêneros alimentícios e
não quitandas; e mais, em duas outras situações a atividade divulgada diferia totalmente do
negócio registrado na Prefeitura. Nesses últimos casos, um deles, Antônio Camarozzano
(entre 1913 e 1914) se manteve no mesmo endereço, agora como sapateiro; o outro,
Antônio Musto, mais ou menos no mesmo período (1909-1914), de acordo com o registro
no Almanaque Laemmert exerceu o ofício de barbeiro em outro endereço. Essas duas
ocorrências parecem indicar, mais do que uma mudança radical de ramo, a opção por
formas alternativas de sobrevivência216. Quanto aos negociantes que substituíram suas
quitandas pelo comércio de secos e molhados, o reduzido número de casos não permite que
especulemos muito acerca dos motivos que levaram ás mudanças. Talvez tenha sido o caso
de opções por tipos de comércio que garantissem um maior retorno financeiro...
A partir de 1915, curiosamente, a categoria “quitanda” desaparece das páginas do
anuário, para retornar somente em 1924, 1925, 1926 e 1927, mas como meros 5 registros
em cada ano.
Se o raciocínio acerca do “estigma” cultural legado pelas quitandeiras do século
XIX estiver correto, parece ser compreensível que os proprietários das quitandas, ao
anunciarem seus negócios em publicações especializadas como os almanaques,
procurassem enquadrá-los em categorias mais qualificadas. Por outro lado, ainda que para
os pequenos negociantes os anúncios no Almanaque Laemmert fossem gratuitos e
permitissem a ampliação das possibilidades de negócios, para os editores o anuário era o
negócio a ser valorizado. Assim, é possível que partisse dos próprios editores a iniciativa
de eliminar da publicação categorias depreciativas, substituindo-as por outras mais de
acordo com o status da publicação. Esse poderia ser o caso do comércio de frutas, legumes,
verduras e congêneres... No entanto, deve-se considerar o perfil modesto desses
estabelecimentos, provavelmente mais afeito à abastecer os moradores do próprio bairro, o
que não exigia divulgação para público mais amplo.
Um outro fato pode explicar melhor o desaparecimento das quitandas das páginas
dos anuários e das ruas do bairro é que em 1914, através do Ato n. 710, foram oficialmente

216
Essa hipótese pode ser plausível. Por exemplo: em 1914, o nome de Antônio Musto aparece na Série
Obras Particulares como sendo o proprietário de uma casa com armazém na rua Santo Antônio n. 209,
endereço que difere daqueles identificados na Série Alvará e Licença e no Almanaque Laemmert. Se o
armazém deste imóvel não era dirigido por Musto, tratava-se de um imóvel alugado a terceiros,
caracterizando-se assim uma outra forma de renda.
criadas as feiras-livres (ou mercados livres), “destinados à venda de gêneros alimentícios,
uma ou mais vezes por semana” 217.

Figura 111 – Feira-livre na rua São Domingos, c. 1915. Fonte: Eli M. de Moraes218.

No ano seguinte, em 1915, o Bexiga foi um dos primeiros bairros paulistanos a


sediar uma feira-livre, na rua São Domingos. Diante da concorrência representada por um
tipo de comércio que envolvia os mesmos produtos comercializados nas quitandas,
possivelmente a preços mais baixos, cremos que não seja mera coincidência que seu
desaparecimento tenha ocorrido exatamente a partir do ano da implantação da feira.

3.2 Cocheiras

Além da análise da atividade em si – a cocheira –, neste tópico procurei meios de


responder à pergunta que fundamenta a hipótese central desta tese: até que ponto o

217
De acordo com a Supervisão Geral de Abastecimento da Prefeitura de São Paulo, tratava-se da
oficialização, pelo então prefeito Washington Luís, de uma prática comercial antiga. Após a implantação da
primeirafeira no Largo General Osório, no bairro da Luz , “em 1915 elas somavam um total de 7 feiras,
sendo duas no Arouche, duas no Largo General Osório e as demais no Largo Morais de Barros, Largo São
Paulo e na Rua São Domingos”, esta última justamente no bairro do Bexiga. Disponível em:
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/trabalho/abastecimento/feiras_livres/historico/index.php?p
=6637; Acto n.710, de 25 de agosto de 1914. Disponível em: http://camaramunicipalsp.qaplaweb.
com.br/iah/fulltext/actos/A0710-1914.pdf
Consultas em: 29/03/2015.
218
A imagem, “gentilmente cedida pelo visitante Sr.Basílio”, foi publicada em 26/04/2008, por Eli M.de
Moraes. Disponível em: http://saudadesampa.nafoto.net/photo20080426201817.html. Consulta em:
03/02/2015.
comércio varejista de alimentos se dirigia exclusivamente à demanda dos moradores do
bairro ou destinava-se sobretudo à satisfação das necessidades dos moradores dos bairros
vizinhos ou mesmo de outras áreas da cidade. Acredito que o número elevado de
estabelecimentos comerciais de gêneros de primeira necessidade no Bexiga responda mais
às demandas externas que externas, tese que as “cocheiras” ajudam a fundamentar.
Jorge Americano, em suas memórias de infância no bairro dos Campos Elíseos
dedicou um capítulo inteiro aos vendedores ambulantes (2ª Ed., 2004, p.103 a 112). Entre
os inúmeros personagens listados por ele, alguns bem que poderiam, hipoteticamente, ser
originários do Bexiga: o leiteiro, a carroça de verduras, a carroça do padeiro, o homem que
vendia frangos, o fruteiro, o caixeiro do armazém, o baleiro, o sorveteiro etc. Não se trata
aqui de afirmar que os produtos comercializados por esses homens se originassem do
Bexiga, mas, num momento em que a cidade especializava seus espaços, expulsando as
atividades “menos nobres” do Triângulo para os bairros suburbanos este comércio
ambulante destinava-se certamente a abastecer as áreas exclusivamente residenciais.
Conforme as indicações do autor, esses comerciantes ambulantes frequentemente se
utilizavam de carroças para o transporte das suas mercadorias, meio de transporte que
implicava em dois quesitos fundamentais: a presença dos animais condutores e a
disponibilidade de locais para o estacionamento de veículos e abrigo dos animais – as
cocheiras. A Série Obras Particulares é rica de exemplos de cocheiras. São inúmeros os
pedidos de licença para construir ou mesmo para reformar e construir novas baias para as
cocheiras existentes. No caso do Bexiga, entre 1905 e 1923, contabilizei nada menos que
113 pedidos de licença que envolviam cocheiras!
Antes de qualquer afirmação categórica acerca da função das cocheiras
estabelecidas no bairro do Bexiga, a proposta deste trabalho é explorar as possibilidades
dadas pelas fontes primárias. Às informações contidas na Série Obras Particulares, foram
acrescentadas outras fornecidas pelos almanaques, pela legislação municipal e pelos
jornais da época. Assim, creio que a análise mais pormenorizada desse universo auxilie na
fundamentação da presente tese no que tange ao papel desempenhado pelo Bexiga no
abastecimento alimentar dos bairros residenciais.
A instalação de cocheiras nem sempre era feita em função de um negócio particular
de seus proprietários. A instalação também podia responder à demanda de outros
negociantes do bairro por baias para abrigo de carroças e animais, enfim, como espaço
alugado. Dessa maneira, a construção ou o acréscimo no número de baias nas cocheiras
existentes poderia ser uma resposta à demanda por esse tipo de espaço e, nesse caso, o
negócio era a própria cocheira.
Outra possibilidade nesse mesmo sentido era o negócio não se restringir às
cocheiras, mas também aos veículos e animais. Nesse caso, tratava-se de um serviço
específico de transporte de mercadorias prestado aos comerciantes locais que não
dispusessem de espaço físico para a própria cocheira ou de meios financeiros para arcar
com todas as despesas acarretadas pela manutenção de veículos e animais. Essas despesas
envolviam, no mínimo, a instalação em locais apropriados de animais sob as condições
impostas pela legislação, envolvendo a alimentação de cavalos, mulas e vacas, os cuidados
com eventuais doenças e os serviços de ferradores de animais. Infelizmente os almanaques
não possuem qualquer registro sobre esse tipo de negócio e muito menos pistas que
indicassem como era o enquadramento legal de tais estabelecimentos, além daqueles
mencionados nos Códigos Sanitários do período219.
Assim, diante das interrogações acerca do funcionamento das cocheiras e,
consequentemente, do envolvimento dos veículos e animais ali estacionados com o
comércio e distribuição de produtos pelo espaço urbano mais amplo, busquei respostas na
legislação que, direta ou indiretamente, incidisse sobre essas atividades.

3.2.1 As cocheiras e a lei

Pelo menos desde meados do século XIX, o poder público procurava controlar as
condições de funcionamento desses espaços, através de leis, decretos e fiscalização direta.
O Código Sanitário de 1894 foi um dos primeiros a estabelecer regras mais rígidas sobre a
localização de cocheiras e estábulos, assim como sobre as suas condições de higiene. Entre
os pontos abordados pelo Código, chamo a atenção para aqueles que dizem respeito à
localização das cocheiras:
Artigo 335 – Devem ser prohibidas cocheiras e estabulos, nos pontos da cidade e
povoações em que a população fôr densa, salvo os casos dos arts. 70 e 71 do capitulo 2.°
com relação a cocheiras e estabulos particulares.
Artigo 336 – As municipalidades devem determinar em cada cidade a área onde taes
installações devem ser prohibidas.
219
O Código Sanitário de 1894 se atém às condições físicas necessárias para a construção/instalação das
cocheiras. Capítulo XVI, “Cocheiras e estábulos”, p. 97-98. A legislação imediatamente posterior ao código,
o Decreto n. 2141, de 14/11/1911, ao estabelecer as incumbências dos inspetores sanitários, se limita a
arrolar entre as mesmas as visitas às “estações dos vehiculos de tracção animal, os estabulos e cocheiras e os
logares publicos ou particulares onde fôr necessaria a vigilancia para se evitar a formação de focos de
infecção (...)”. Disponível em: www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao. Consulta em 05/03/2014.
Artigo 337 – Os estabulos e cocheiras devem ficar sempre isolados e afastados das
habitações.
Artigo 338 – Deverão ser collocadas a distancia de 8 metros pelo menos das ruas e praças
publicas (grifos nossos).

Já na segunda década do século XX, em 1911, o Capítulo 15, do Decreto 2.141


dispunha que:
Artigo 380 – São proibidos os estábulos e cavalariças nos pontos das cidades e povoações
em que a população for densa.
Artigo 381 – As cavalariças e estábulos devem ficar a distâncias mínimas de dez metros
das ruas, praças públicas e habitações (grifos nossos).

Nos dois documentos, destacam-se os Artigos 335 e 380, respectivamente, que


dizem respeito à proibição desses alojamentos em pontos da cidade em que a população
fosse densa. A disposição da lei confirma-se pelos pareceres técnicos elaborados por
fiscais e engenheiros da Diretoria de Obras e Viação da Prefeitura contidos nas solicitações
das Obras Particulares, evidenciando a obrigatoriedade dessas edificações ficarem
distantes de ruas, praças e habitações, conforme disposto nos Artigos n.338 e n.381 do
Código Sanitário do Decreto 2.141.

Figura 112 – Neste projeto, anterior ao Decreto 2141, de 1911, temos a localização da cocheira de propriedade de
Joaquim Antunes dos Santos. Com entrada pela rua Fortaleza, temos a cocheira instalada no centro do terreno, distante 30
metros da rua Conselheiro Ramalho (à esquerda), e mais de 8m da casa existente na esquina com a rua Rui Barbosa (à
direita). Fonte: Obras Particulares, OP/1906/000642. AHSP.

Acima, a Tabela 115 reproduz um projeto onde encontra-se representada a distância


exigida entre a cocheira a cocheira, a rua e às edificações vizinhas.
Poucos anos após o Decreto n.2141, em 09 de fevereiro de 1918, foi promulgada a
Lei n.2117, regulamentando “o lançamento e a arrecadação do imposto sobre cocheiras”.
O teor dessa lei colocou alguns aspectos importantes para conhecermos mais
profundamente o papel desempenhado por esses estabelecimentos.
Lei n. 2117, de 9 de fevereiro de 1918

Regula o lançamento e a arrecadação do imposto sobre cocheiras

Washington Luís Pereira de Souza, Prefeito do Município de S. Paulo:


Faço saber que a Camara, em sessão de 2 de fevereiro do corrente ano, decretou e eu promulgo a seguinte lei:
Art. 1º - O imposto de indústrias e profissões, sobre cocheiras, será lançado e arrecadado de acordo
com a tabela seguinte, independente de qualquer outro imposto ou modalidade de imposto a que o
contribuinte esteja sujeito:

Perímetro Central:
1ª Ordem – com lotação para mais de 10 animais 250$000 e 10%
2ª Ordem – com lotação para mais de 6 a 10 animais 150$000 e 10%
3ª Ordem – com lotação até 5 animais 100$000 e 5%

Perímetro Urbano:
1ª Ordem – com lotação para mais de 30 animais 200$000 e 10%
2ª Ordem – com lotação para, de 21 a 30 animais 150$000 a 10%
3ª Ordem – com lotação para, de 11 a 20 animais 100$000 e 5%
4ª Ordem – com lotação para, de 6 a 10 animais 50$000 e 5%
5ª Ordem – com lotação até 5 animais 50$000

Perímetro Suburbano:
1ª Ordem – com lotação para mais de 30 animais 150$000 e 5%
2ª Ordem – com lotação para, de 21 a 30 animais 100$000 e 5%
3ª Ordem – com lotação para, de 11 a 20 animais 50$000 e 5%
4ª Ordem – com lotação para, de 6 a 10 animais 50$000
5ª Ordem – com lotação até5 animais 20$000

Art. 2º - O exercício dessa indústria continua a depender de alvará de licença, ficando revogadas as
disposições das leis n.493, de 26 de outubro de 1900, art. 35, ns. 21 e 22, últimas alíneas, e n.790, de 17 de
novembro de 1904, art. 21, parágrafo 1º, n.1.220
Art. 3º - São isentos de quaisquer impostos ou licenças as cocheiras ou estábulos situados no
perímetro rural.
Art. 4º - Revogam-se as disposições em contrário.
O Diretor Geral da Prefeitura a faça publicar.

Prefeitura do Município de São Paulo, 9 de fevereiro de 1918, 365º da fundação de S. Paulo.

O Prefeito
Washington Luís P. de Sousa,

O Diretor Geral
Arnaldo Cintra
Figura 113 – Texto da Lei n. 2117, de 09/02/1918. Fonte: Câmara Municipal de São Paulo.

O primeiro deles se relaciona ao fato de as cocheiras serem reconhecidas pela


municipalidade como um tipo de negócio e assim estarem sujeitas ao pagamento de taxas.
Conforme o Art. 1º, “O imposto de indústrias e profissões, sobre cocheiras, será lançado
e arrecadado (...) independente de qualquer outro imposto ou modalidade de imposto a
que o contribuinte esteja sujeito” (grifo nosso).

220
Ver Lei n.493, Art.35, n. 21 e 22, página 40 (Tabela do Imposto de Licenças, Estacionamentos e
Localizações); e Lei n.790, Art.21, Parágrafo 1, n. 1, página 18 (Imposto de Licença). Disponível em:
http://www.camara.sp.gov.br/biblioteca/legislacao.
Independentemente da taxação que incidia sobre a cocheira, o proprietário também
era taxado sobre as demais atividades a que a tal “indústria” estivesse relacionada. Por
exemplo, se a cocheira estivesse a serviço de uma padaria, seu proprietário pagaria um
imposto pela cocheira e outro pela padaria. Tudo indica que esse exemplo também pode
ser estendido aos vendedores ambulantes de quitandas e armazéns, nos quais os
negociantes em questão também pagariam duas taxas diferentes, uma pela cocheira, outra
pela licença para a comercialização do produto em questão. Outro aspecto está contido no
Art. 2º da lei que especifica “O exercício dessa indústria (a cocheira) continua a depender
de alvará de licença”. Nesse caso, independente do uso dado à cocheira – pessoal ou
vinculado a um negócio –, seu proprietário deveria ter o alvará e, consequentemente,
deveria pagar o respectivo imposto, independente “de qualquer outro imposto ou
modalidade de imposto a que” ele estivesse sujeito.
Ainda de acordo com o artigo 2º da Lei n.2117, ficavam “revogadas as disposições
das leis n.493, de 26 de outubro de 1900, art. 35, ns. 21 e 22, últimas alíneas, e n.790, de
17 de novembro de 1904, art. 21, § 1º, n.1”. Nos dois casos, tratava-se da formalização das
despesas e orçamentos municipais previstos para o ano seguinte à sua publicação, desde o
valor total a ser gasto, até a estimativa da receita prevista.
Por outro lado, entre as inúmeras fontes de receita figurava o imposto de licença,
estacionamento e localização de cocheiras para cavalos, muares e vacas, ordenados
conforme sua localização nos perímetros da cidade.
As disposições revogadas pela Lei n.2117, vinculadas à Lei n.493 de 26/10/1900,
dizem respeito aos artigos 35 e 36 respectivamente: “Tabela do imposto de licenças,
estacionamentos e localizações” e “Perímetro para a cobrança de imposto de cocheiras”.
Já o § 1º, do artigo 21 da Lei 790, de 17/11/1904, estabelecia o valor a ser pago pelas
“Cocheiras de cavalares, muares ou vacas, dentro do perímetro, para mais de dez
animais”, além de definir que as cocheiras fora do perímetro nada pagavam.
Para aferir os “perímetros” indicados na legislação de 1900 e 1904 – equivalente ao
início do período enfocado nesta tese –, retomei os Atos n.671 e 972 que permitem
acompanhar a inserção do bairro do Bexiga na lógica da cidade em seu conjunto. Para
espacialização das informações correspondentes aos limites do “perímetro urbano” no qual
se enquadrava o Bexiga, utilizei a Planta Geral da Cidade de São Paulo (1905), cuja área
delineada em vermelho envolve a Ponte Grande sobre o rio Tietê (a norte), o encontro da
rua Itatiaia (atual Av. Angélica) com a Av. Paulista (a oeste), a Av. Intendência (atual Av.
Celso Garcia) (a leste) e o encontro da Av. Paulista com a rua Vergueiro (a sul).
Figura 114 – Planta Geral da Cidade de São Paulo, 1905. Alexandre Mariano Cococi e Luiz Fructuoso F. Costa. Fonte:
Histórico Demográfico do Município de São Paulo. AHSP.

Já o Ato n.671, de 14/03/1914, que “dispõe sobre o reconhecimento de ruas” da


cidade, estabelece a Planta da Cidade de São Paulo (1913) como parâmetro para o
reconhecimento das ruas consideradas públicas. Dois anos mais tarde, o Ato n.972, de
24/08/1916, transferiu essa responsabilidade à Planta da Cidade de São Paulo (1916),
justamente o mapa sobre o qual se assentou a definição dos perímetros “central”, “urbano”,
“suburbano” e “rural” indicados na Lei n.2117.
Na planta de 1916 encontram-se assim definidos os quatro perímetros da cidade: o
perímetro central, demarcado em verde; o perímetro urbano, demarcado em rosa; o
perímetro suburbano, demarcado em amarelo; e, a partir deste, o perímetro rural. Em 1916
inseria-se o bairro do Bexita (delimitado aqui com uma linha branca) no perímetro urbano
e, dessa maneira, de acordo com o espaço delimitado pela Lei n.2117, as taxas que
incidiam sobre as cocheiras localizadas no bairro variavam de cinquenta mil réis (para
aquelas que abrigavam até 5 animais ou 5 baias), cinquenta mil réis mais 5% do total (para
aquelas com lotação entre 6 e 10 baias), cem mil réis mais 5% (para aquelas com lotação
entre 11 e 20 baias), cento e cinquenta mil réis mais 10% (para aquelas com lotação entre
21 e 30 baias), e duzentos mil réis mais 10% (para aquelas com lotação para mais de 30
animais). Cabe destacar ainda que a Lei n.2117 só foi revogada pela Lei n.14.106, de 12 de
dezembro de 2005 quando há muito tempo as cocheiras haviam desaparecido do espaço
urbano da capital paulista.
Figura 115 – Planta da Cidade de São Paulo, 1916. Divisão Cadastral da Directoria de Obras e Viação da Prefeitura
Municipal. Fonte: Histórico Demográfico do Município de São Paulo. AHSP.

Outro aspecto envolvendo, ainda que indiretamente, a presença das cocheiras


referia-se à necessidade de normatização e controle da circulação de veículos pela São
Paulo em constante processo de expansão. Os antigos veículos movidos à tração animal
operavam com uma lógica de tempos mais “lentos”, entrecruzando nas ruas da cidade com
os modernos automóveis movidos a motor de combustão e representando o nítido símbolo
do “atraso” e da “não civilidade” de uma cidade que cada vez mais se pretendia
“cosmopolita” e “moderna. Por outro lado, além da fiscalização sobre a circulação
(velocidade, locais de circulação e estacionamento, etc.) também era necessário controlar
as condições de funcionamento dos veículos (se motorizados ou movidos à tração animal);
a competência profissional de seus condutores (através da concessão de carteiras de
motorista mediante exames práticos específicos); o destino dos veículo (se de condução
pessoal ou de carga); etc. Três normas em especial abordaram essas questões: a Lei n.
2264, de 13/02/1920, “sobre a inspeção e fiscalização do trânsito de veículos”; o Ato n.
1426, de 26/04/1920, regulamentando alguns aspectos da Lei 2264; e por fim, a Lei n.
2318, de 11/09/1920, que veio detalhar os aspectos da Lei n.2264 relacionados aos
veículos destinados ao transporte de passageiros. Dessas normas interessa o Ato n.1426,
particularmente os Artigos 34, 35, 36, 90 e 91:
Art. 34 – Os veículos ficam divididos em duas espécies, a saber: de condução pessoal e de
carga, e serão numerados de acordo com o art. 1º e seus parágrafos.
Art. 35 – Os veículos destinados ao transporte de passageiros serão de três categorias, a
saber: de aluguel, particulares e oficiais.
a) Os primeiros são destinados a servir o público, mediante retribuição, e serão de duas
espécies:
1) Os que estacionam nos pontos permitidos, trazendo na placa da frente a letra A;
2) Os que permanecem em cocheiras ou garages, trazendo na placa a letra G;
b) Os segundos são os de uso particular e terão na placa a letra P;
c) Os terceiros são os de propriedade da União, do Estado ou do Município e terão os
emblemas respectivos (...).
Parágrafo único – Os veículos de tração animada, quer particulares, quer de aluguel, não
ficam sujeitos ao uso das placas com letras acima referidas.
Art.36 – O veículos destinados ao transporte de carga serão de três categorias, a saber: de
aluguel, particulares e oficiais.
a) Os primeiros são os destinados a servir o público, mediante remuneração ou frete,
estacionando ou não nos pontos referidos neste Ato e terão na placa, a letra A;
b) Os segundos são os destinados ao serviço exclusivo de seus proprietários e terão na
placa a letra P;
c) Os terceiros são de propriedade da União, do Estado ou do Município e terão os
emblemas respectivos (grifos nossos).

Os artigos mencionados acima esclarecem especialmente a questão relativa ao


controle sobre a utilização dos veículos, se de transporte pessoal ou de carga. No caso do
transporte pessoal, enquanto os veículos “de tração animada” ficavam dispensados do uso
de placas indicativas, nota-se a obrigatoriedade do uso dessas placas nos automóveis
movidos à motor de combustão o que evidencia uma fiscalização mais rígida sobre os
mesmos. Já no caso do transporte de cargas, as placas indicativas seriam sempre
obrigatórias.
Por fim, o Capítulo IX, “Das empresas de transporte” estabelece:
Art. 90 – Os donos, diretores ou gerentes das empresas de transporte de carga ou
passageiros, deverão velar constantemente para que os condutores andem decentemente
vestidos, os seus carros ofereçam a necessária limpeza, segurança e conforto, os animais
estejam ferrados e bem tratados e as cocheiras mantidas com asseio.
Art. 91 – As empresas de transportes são obrigadas a ter livros abertos e rubricados pela
Inspetoria Geral de Fiscalização, dos quais constem a numeração e qualidade de cada um
de seus veículos, nomes e residências de seus condutores e as faltas cometidas por estes,
com especificação de sua natureza e gravidade.
§ 1º - Nas garages haverá um livro especial, igualmente aberto e rubricado pela Inspetoria
Geral de Fiscalização, onde se registrarão as horas de saída e a entrada de cada um dos
veículos (grifos nossos).

O Capítulo IX, ao se referir às obrigações dos proprietários e dirigentes das


empresas de transporte de carga ou passageiros, remete aos espaços destinados ao abrigo
dos veículos que nos interessam mais de perto – as cocheiras – e dá a medida de sua
recorrência em certas áreas da cidade. Tratava-se de um tipo de “negócio” que envolvia
“empresários” específicos. Mas a Lei n.1426 não se limitava às cocheiras, já que estendia
essas obrigações às “garages” (nome francês referente aos lugares de estacionamento dos
veículos automotivos) que também fazem parte da realidade do bairro, tal como observado
na “área nobre” do Bexiga no Capítulo 2. Em ambos os casos, a fiscalização sobre as
condições de segurança, conforto e higiene desses estabelecimentos buscava também,
através dos registros nos livros fiscais, controlar as condições de uso dos veículos, assim
como o comportamento dos respectivos condutores.
Expostas as obrigações a que estavam submetidas as empresas de transporte,
espera-se ter completado o quadro legal que cercava a presença das cocheiras no espaço
urbano. Ainda que nem todas as questões que envolvessem as cocheiras e a suposta
distribuição de produtos e serviços tenham sido respondidas, o conjunto de ações (e
intenções) do poder público no sentido de controlar a circulação e estacionamento de
veículos forneceram pistas das possíveis funções desses estabelecimentos.

3.2.2 Localização e espacialização das cocheiras

O Bexiga envolve uma área de grandes proporções e as cocheiras estiveram


presentes em praticamente todo o bairro, com exceção das ruas próximas ao centro, o que
deve ser atribuído à proibição desse tipo de atividade em locais “em que a população for
densa” como estabelecido pelo Código Sanitário de 1894. Para ter uma ideia de como
essas construções se distribuíram pelo bairro, procurei espacializá-las na Planta SARA
Brasil.
Tendo em vista a impossibilidade de uma localização fiel dos imóveis, essa
espacialização foi realizada de forma aproximada. Para essa tarefa, me apoiei nos indícios
fornecidos pelos projetos arquitetônicos que continham a planta de situação do imóvel,
quando este se localizava no cruzamento de duas ruas; num segundo momento, essas
informações foram cruzadas com os Índices de Emplacamento que contêm as alterações na
numeração dos imóveis realizadas até 1930.
Como muitas das cocheiras se mantiveram por todo o período investigado, a
espacialização foi feita numa única planta, independentemente do ano de sua ocorrência,
conforme a Figura 116 – Espacialização conjectural. Entretanto, o reconhecimento das
cocheiras identificadas, assim como dos seus respectivos proprietários, também pode ser
feito através da Tabela 60 que contém as ocorrências organizadas por logradouro.

Figura 116 – Espacialização conjectural das cocheiras no bairro do Bexiga, entre 1906 e 1923. Planta SARA Brasil,
1930. Fonte: AHSP.
OCORRÊNCIAS
LOGRADOURO N. PROPRIETÁRIO ANO
OBRAS PARTICULARES
- JOÃO BERNARDO DA SILVA PROJETO DE COCHEIRA COM SEIS BAIAS, E QUARTOS 1909
PARA FORRAGENS E ARREIOS.
BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO
151 HONESTO CINQUINI REFORMA DE COCHEIRA, DEPENDÊNCIA DA 1915
PADARIA E CONFEITARIA “NOVA SUISSA”.
10 IGNÁCIO MAMMANA QUERENDO CONSTRUIR DOIS QUARTOS NO FUNDO 1905
DA CASA, PARA DEPOSITAR UMA “ARANHA”,
ARREIOS E ALFAFAS, CONFORME A PLANTA JUNTA,
SOLICITA A LICENÇA.
26 FRANCESCO DE MARCO PROJETO DE ACRÉSCIMO DE CÔMODOS (ENTRE ELES 1910
UM FORNO) EM CASA EXISTENTE, COM COCHEIRA
NOS FUNDOS DO TERRENO E ARMAZÉM NO
ALINHAMENTO.
49 SABINO BORELLI RECONSTRUÇÃO DE COCHEIRA COM TRÊS BAIAS E 1918
CONSELHEIRO CARRÃO BAIA DE ISOLAMENTO, NOS FUNDOS DO TERRENO.
FRANCISCO LOSITO REFORMA DE COCHEIRA EXISTENTE, COM DUAS 1915
BAIAS. CONSTRUÇÃO RESIDENCIAL EXISTENTE NO
67 ALINHAMENTO.
FRANCISCO LOSITO REFORMA DE COCHEIRA COM DUAS BAIAS E BAIA 1918
DE ISOLAMENTO, NOS FUNDOS DO TERRENO.
BIANCA DE LUCCA RECONSTRUÇÃO DE COCHEIRA, NOS FUNDOS DO 1915
TERRENO. CASA EXISTENTE NO ALINHAMENTO.
118
LUCCA BIANCO REFORMA DE COCHEIRA, NOS FUNDOS DO 1918
TERRENO.
213 GIACOMO DI LASCIO REFORMA DE COCHEIRA COM SEIS BAIAS, NOS 1918
FUNDOS DO TERRENO.
CONSELHEIRO RAMALHO 222 JOAQUIM ANTUNES DOS PROJETO DE ACRÉSCIMO EM CASA EXISTENTE, 1907
SANTOS INCLUSIVE COM COCHEIRA COM TRÊS BAIAS NOS
FUNDOS DO TERRENO.
- VICENTE SCARRO PROJETO DE CASA NO ALINHAMENTO E COCHEIRA 1911
COM QUATRO BAIAS NOS FUNDOS DO TERRENO.
57 C VINCENZO STAMBAUTO (?) PROJETO DE CASA COM COCHEIRA DE TRÊS BAIAS, 1911
NOS FUNDOS DO TERRENO.
58 ANTÔNIO GARCINLLO PROJETO DE CASA NO ALINHAMENTO E COCHEIRA 1912
DO SOL
COM TRÊS BAIAS NOS FUNDOS DO TERRENO.
(ATUAL DR. LUÍS BARRETO)
PASCHOAL GRAZIANO PROJETO DE COCHEIRA COM TRÊS BAIAS NOS 1912
63
FUNDOS DO TERRENO.
65 T PASCHOAL GRAZIANO PROJETO DE COCHEIRA COM TRÊS BAIAS, NOS 1913
FUNDOS DO TERRENO. CASA EXISTENTE NA FRENTE
DO TERRENO.
- JOAQUIM ANTUNES DOS - PROJETO DE COCHEIRA COM 4 BAIAS E QUARTO 1906
SANTOS PARA FORRAGEM, PRÓXIMO DE COCHEIRA
FORTALEZA
EXISTENTE.
- PROJETO DE 6 CASAS, UMA DELAS COM ARMAZÉM.
31 DAVID DIAS FERREIRA PROJETO DE “QUARTO” PARA FORRAGENS NOS 1909
JACEGUAI (CONSTRUTOR) FUNDOS DO TERRENO, NA SEQUÊNCIA DE UMA
COCHEIRA EXISTENTE.
24 FRANCISCO VASCIAVEO REFORMA DE COCHEIRA COM QUATRO BAIAS, NOS 1918
FUNDOS DO TERRENO.
LUÍS MANTACELLI CONSTRUIR UMA COCHEIRA. 1912
JOÃO PASSALACQUA
LUÍS MONTICELLI REFORMA DE COCHEIRA COM QUATRO BAIAS, BAIA 1915
(ANTIGA MONTE DE OURO)
26 DE ISOLAMENTO E QUARTO DE FORRAGENS.
LUIZ MONTICELLI REFORMA DE COCHEIRA COM TRÊS BAIAS, NOS 1919
FUNDOS DO TERRENO.
NUNCIO MAMANO PROJETO PARA CONSTRUÇÃO DE CASA NA FRENTE E 1910
83-93 COCHEIRA COM TRÊS BAIAS NOS FUNDOS.
NÚNCIO MAMMANA REFORMA DE COCHEIRA COM TRÊS BAIAS. 1919
83 PEDRO AMARO PROJETO DE CASAS, NO CENTRO DO TERRENO, E 1913
COCHEIRA COM 14 BAIAS, NOS FUNDOS.
83 ANTONIETA DE SIMONE CONSTRUÇÃO DE 1 COCHEIRA FECHADA PARA 6 1914
CAVALOS.
MAJOR DIOGO
DOMINGOS LONGO PROJETO DE CASA COM ARMAZÉM NO 1911
ALINHAMENTO E COCHEIRA NOS FUNDOS DO
83-91 TERRENO, COM SETE BAIAS.
DOMINGOS LONGO REFORMA DE COCHEIRA, COM REDUÇÃO DE 27 1919
PARA 16 BAIAS.
111 DOMINGOS BRUNO REFORMA DE COCHEIRA COM SEIS BAIAS, BAIA DE 1915
ISOLAMENTO E DEPÓSITO DE FORRAGEM.
96 C ANTÔNIO RICCIUTO REFORMA DE COCHEIRA COM UMA BAIA. 1920
(CONSTRUTOR?)
MANOEL DUTRA DOMINGOS COZZI REFORMA DE COCHEIRA NOS FUNDOS DO TERRENO. 1915
101 PRÉDIO EXISTENTE NA FRENTE.
DOMINGOS COZZI REFORMA DE UMA COCHEIRA COM DUAS BAIAS. 1919
MARIA JOSÉ 13 VITO DI PRIMO PROJETO DE COCHEIRA C/ 6 BAIAS, MAIS LATRINA, 1908
NOS FUNDOS DO TERRENO. CASA EXISTENTE NA
FRENTE.
VICTOR DE PRIMO RECONSTRUÇÃO DE COCHEIRA COM SEIS BAIAS, 1915
BAIA DE ISOLAMENTO E DEPÓSITO DE FORRAGEM.
15 VITO DE PRIMA CONSTRUÇÃO DE COCHEIRA PARA UM ANIMAL, NOS 1920
FUNDOS DO TERRENO.
IGNÁCIO MAMMANA MODIFICAÇÃO DE COCHEIRA 6 BAIAS. 1914
45
IGNACIO MAMMANA ALTERAÇÃO DE PLANTA PARA CONSTRUÇÃO DE 1919
MANOEL DUTRA UMA COCHEIRA COM 9 BAIAS.
LAVIERO MASULLO REFORMA DE COCHEIRA COM UMA BAIA. 1918
63 LAVIERO MASULLO REFORMA DE COCHEIRA COM UMA BAIA. PRÉDIO 1919
EXISTENTE NA FRENTE DO TERRENO.
FRANCISCO GAJULIO (?) PROJETO DE CASA COM COCHEIRA COM TRÊS BAIAS, 1909
NOS FUNDOS DO TERRENO.
QUATORZE DE JULHO 17
FRANCISCO GARGIULLO REFORMA DE COCHEIRA COM TRÊS BAIAS, MAIS 1919
BAIA DE ISOLAMENTO.
- FRANCISCO RODRIGUES CONSTRUÇÃO DE COCHEIRA PARA UM ANIMAL. 1916
ROCHA
SECKLER
24 THOMAZ LUPPO DESEJANDO CONSTRUIR UMA CASA NO INTERIOR 1905
DO TERRENO, MURO COM PORTÃO E COCHEIRA,
CONFORME PLANTA ANEXA, SOLICITA O
ALINHAMENTO.
38 MIGUEL MASI COCHEIRA PARA 2 ANIMAIS, NOS FUNDOS DO 1906
(CONSTRUTOR?) TERRENO.
VICTOR MAMMANA PROJETO DE COCHEIRA COM NOVE BAIAS NOS 1912
FUNDOS DO TERRENO. ENTRADA PARA CARROÇAS E
CASA EXISTENTE NA FRENTE.
VICTOR MAMMANO REFORMA DE COCHEIRA COM 6 BAIAS, BAIA DE 1915
ISOLAMENTO E DEPÓSITO DE FORRAGEM. CASA
39
EXISTENTE NA FRENTE DO TERRENO.
VITO MAMMANA REFORMA DE COCHEIRA COM SETE BAIAS. 1919
VITO MAMMANO REFORMA DA COCHEIRA COM SEIS BAIAS NOS 1918
FUNDOS DO TERRENO, EM CUJA FRENTE HÁ UM
PRÉDIO DE “HABITAÇÃO”.
46 VICENTE LUPO REFORMA DE UMA COCHEIRA DE UMA BAIA, NOS 1918
FUNDOS DO TERRENO, EM CUJA FRENTE HÁ UM
PRÉDIO DE “HABITAÇÃO”.
50 CAETANO CONTE REFORMA DE COCHEIRA COM 5 BAIAS, NOS FUNDOS 1920
DO TERRENO.
OLINTHO VENTORINI REFORMA DE COCHEIRA COM DUAS BAIAS E 1915
QUARTO DE FORRAGEM, NOS FUNDOS DO TERRENO.
52
PRÉDIO EXISTENTE NA FRENTE.
OLYNTHO VENTURINO REFORMA DE COCHEIRA COM DUAS BAIAS. 1919
53 THOMAZ ORSI PROLONGAMENTO DA COCHEIRA E MODIFICAÇÃO 1906
DA EXISTENTE.
ALEXANDRE LOTITTO DEMOLIÇÃO E RECONSTRUÇÃO DE COCHEIRA COM 1914
RUI BARBOSA
TRÊS BAIAS.
60
ALEXANDRE LOTITTO REFORMA DE COCHEIRA COM TRÊS BAIAS, 1915
ISOLAMENTO E QUARTO DE FORRAGEM.
66 - 68 LUIZ TADDEI REFORMA DE COCHEIRA COM 5 BAIAS, 1915
ISOLAMENTO E QUARTO DE FORRAGEM. DUAS
CASAS EXISTENTES NA FRENTE DO TERRENO, ALÉM
DE UM DEPÓSITO DE VINHO PRÓXIMO À COCHEIRA.
THOMAZ URSO RECONSTRUÇÃO DE COCHEIRA COM SEIS BAIAS, 1915
ISOLAMENTO, E QUARTOS DE FORRAGEM E OUTRO
75 PARA ZELADOR.
TOMMASO URSO REFORMA DE COCHEIRA COM DEZ OU ONZE (...) 1919
BAIAS.
FRANCISCO VOLPE PROJETO DE COCHEIRA COM CINCO BAIAS E 1910
QUARTO DE FORRAGEM, NOS FUNDOS DO TERRENO.
CASA EXISTENTE NA FRENTE.
FRANCISCO VOLPE RECONSTRUÇÃO DE COCHEIRA COM SEIS BAIAS, 1915
78 ISOLAMENTO, E QUARTO DE FORRAGEM.
FRANCISCO VOLPE REFORMA DE UMA COCHEIRA COM 4 BAIAS, NOS 1918
FUNDOS DO TERRENO, EM CUJA FRENTE HÁ UM
PRÉDIO DE “HABITAÇÃO”.
FRANCISCO VOLPE REFORMA DE COCHEIRA COM SEIS BAIAS. 1919
81 JOÃO AMMIRABILE REFORMA DE COCHEIRA COM 6 BAIAS, NOS FUNDOS 1920
DO TERRENO.
123 JOÃO COFONE PROJETO DE COCHEIRA COM DUAS BAIAS NOS 1908
FUNDOS DO TERRENO.
JOSÉ COFFONE REFORMA DE COCHEIRA COM UMA BAIA E 1915
124-126 ISOLAMENTO NOS FUNDOS DOS PRÉDIOS.
JOSÉ COFONE REFORMA DE COCHEIRA COM CINCO BAIAS. 1919
146 BIAGIO MILITO REFORMA DE COCHEIRA COM SEIS BAIAS, NOS 1918
FUNDOS DO TERRENO. PRESENÇA DE CONSTRUÇÃO
NA FRENTE.
SANTO AMARO 106 BERNARDINO ERVEDAL REFORMA DE UMA COCHEIRA COM 3 BAIAS. 1918
94 T AGOSTINHO PEREIRA DE ESBOÇO DE BARRACÃO PARA DEPÓSITO DE 1908
ARAÚJO CARROÇAS.
SANTO ANTÔNIO
253 CARLOS BIAGINI REFORMA DA COCHEIRA EXISTENTE (COM DUAS 1915
BAIAS).
JOSÉ ANTÔNIO CARUSO CONSTRUÇÃO DE UMA COCHEIRA. 1915
13-15
JOSÉ CARUSO REFORMA DE COCHEIRA, COM SEIS BAIAS. 1915
41 PAULA CHIARELLA REFORMA DE COCHEIRA COM DOZE BAIAS, NOS 1915
FUNDOS DO TERRENO.
41 ANTÔNIO PANZARDI PROJETO DE ACRÉSCIMO E REFORMA DE UMA 1918
COCHEIRA COM 9 BAIAS, NOS FUNDOS DO TERRENO.
SÃO DOMINGOS
DOMINGOS ALBANEZ CONSTRUÇÃO DE COCHEIRA. 1914
DOMINGOS ALBANEZ “RESIDENTE COM PADARIA” NESTE ENDEREÇO, 1914
SEGUNDO O QUAL O PROJETO DA COCHEIRA FOI
82-84
TRANSFERIDO PARA OS FUNDOS DO TERRENO.
DOMINGOS ALBANEZE REFORMA DE COCHEIRA E CONSTRUÇÃO DE BAIA 1918
DE ISOLAMENTO.
49-51 RICCI & FRANCESCONI CONSTRUÇÃO DE UMA COCHEIRA PARA DOIS 1915
SÃO VICENTE
ANIMAIS.
10 (CRISTORO) DE PROJETO DE CASA NA FRENTE E COCHEIRA NO 1913
SARACURA GRANDE (ATUAL
BENEDETTO CENTRO DO TERRENO, COM DUAS BAIAS.
ALM. MARQUES LEÃO)
14 ACCACIO RODRIGUES REFORMA DE COCHEIRA COM 5 BAIAS. 1921
- JULIO PEREIRA DOS PROJETO DE CASA NA FRENTE DO TERRENO; E 1913
SANTOS COCHEIRA COM OITO BAIAS, COM CÔMODO AO
LADO, NOS FUNDOS DO TERRENO.
SARACURA PEQUENA 32 NICOLA NATRIELLO CONSTRUÇÃO DE COCHEIRA COM UMA BAIA. 1923
45 CARLOS NATRIELLI CONSTRUÇÃO DE COCHEIRA COM TRÊS BAIAS, 1916
DEPÓSITO DE FORRAGEM E BAIA DE ISOLAMENTO,
NO CENTRO DO TERRENO (MUITO GRANDE!)
- LEONARDO SPINOSO PROJETO DE COCHEIRA PARA UM ANIMAL (?). 1908
(CONSTRUTOR?)
9 JOSÉ ANTÔNIO COZZA REFORMA DE UMA COCHEIRA COM UMA BAIA. 1919
PRESENÇA DE HABITAÇÃO NO ALINHAMENTO.
13 JOSÉ CONTE PROJETO DE REFORMA DE COCHEIRA COM UMA 1918
BAIA. CASA EXISTENTE NO ALINHAMENTO E
GALINHEIRO NOS FUNDOS DO TERRENO.
23 JOSÉ TOCCI CONSTRUÇÃO DE UMA COCHEIRA COM QUATRO 1919
BAIAS.
PRESENÇA DE HABITAÇÃO NA FRENTE DO TERRENO;
TELHEIRO E FORNO NOS FUNDOS.
THOMAZ PERUGINE PROJETO DE CASA COM COCHEIRA NOS FUNDOS DO 1906
TERRENO.
THOMAZ PERUGINE PROJETO DE ACRÉSCIMO EM CASA, ENVOLVENDO 1909
TAMBÉM O AUMENTO DE DUAS BAIAS NA COCHEIRA
23-25
EXISTENTE.
THOMAZO PIROGINO CONSTRUÇÃO DE FORNO NOS FUNDOS DO TERRENO, 1914
ONDE JÁ HÁ UMA COCHEIRA.
THOMAZ PEROGINI REFORMA DE COCHEIRA COM DUAS BAIAS. 1919
25 ANTÔNIO AMIRABILE PROJETO DE CASA E COCHEIRA NOS FUNDOS DO 1908
TERRENO.
TREZE DE MAIO 63 GENARO AMIRABOLO (?) PROJETO DE COCHEIRA COM QUATRO BAIAS, 1909
QUARTO PARA DEPÓSITO (?) E ALPENDRE PARA
ABRIGO DOS CARROÇÕES (?).
67 JOSÉ COSENTINO PROJETO DE ACRÉSCIMO EM CASA EXISTENTE. 1906
COCHEIRA EXISTENTE NOS FUNDOS DO TERRENO.
85 CAETANO VALENTE PROJETO DE CASA E COCHEIRA, COM TRÊS BAIAS, 1911
NOS FUNDOS DO TERRENO.
ANDREA LADOGANA PROJETO DE CASA E COCHEIRA COM TRÊS BAIAS, 1911
NOS FUNDOS DO TERRENO.
85-87
ANDRÉ LADOGANA REFORMA DE COCHEIRA COM DUAS BAIAS. CASA 1918
EXISTENTE NO CENTRO DO TERRENO.
91 ANTÔNIO AMMIRABILE CONSTRUÇÃO DE UMA COCHEIRA COM UMA BAIA, 1919
NOS FUNDOS DO TERRENO.
CAETANO CONTE CONSTRUÇÃO DE COCHEIRA COM 12 BAIAS, ALÉM 1917
93 DE QUARTO DE ISOLAMENTO E FORRAGEM.
CAETANO CONTE RECONSTRUÇÃO DE COCHEIRA COM 5 BAIAS. 1920
93 T VICTOR CAVERNA DEPÓSITO DE (?) E COCHEIRA COM SEIS BAIAS NOS 1907
FUNDOS DO TERRENO.
95 ALFEU SCANDURRA PROJETO DE CASA E, NOS FUNDOS DO TERRENO, 1908
COCHEIRA COM SEIS BAIAS.
95 BENEDITO BETTOI PROJETO DE ACRÉSCIMO NA COCHEIRA, CONTENDO 1913
(CONSTRUTOR) DUAS BAIAS, NOS FUNDOS DO TERRENO. CASA
EXISTENTE NA FRENTE.
99 SALVADOR ARNONE CONSTRUÇÃO DE SOBRADO EM TERRENO QUE 1922
POSSUI CONSTRUÇÃO EXISTENTE NOS FUNDOS,
ALÉM DE COCHEIRA.
SALVADOR SANFELIPPO PROJETO DE CASA CONTENDO, NA SEQUÊNCIA DA 1913
MORADIA: DEPÓSITO, PADARIA E FORNO. NOS
102
FUNDOS DO TERRENO, COCHEIRA COM TRÊS BAIAS.
SALVADOR SANFELIPPO REFORMA DE COCHEIRA. 1914
119 ROCCO TURSI REFORMA DE COCHEIRA COM UMA BAIA. 1919
121 MIGUEL SICILLO REFORMA DE COCHEIRA COM QUATRO BAIAS. 1919
123 VICENTE SIRULLO REFORMA DE COCHEIRA COM TRÊS BAIAS. 1919
127 JOSÉ COSENTINO CONSTRUÇÃO DE COCHEIRA COM 4 BAIAS. 1914
148 LUÍS NESSE CONSTRUÇÃO DE SOBRADO PARA PADARIA, COM 1914
LABORATÓRIO, FORNO E COCHEIRA NOS FUNDOS.
151 CAMILLA MARCHESE CONSTRUÇÃO DE UMA COCHEIRA COM TRÊS BAIAS. 1915

Tabela 60 – Listagem cocheiras (1905-1923). Fonte: Série Obras Particulares, AHSP.


* Os casos destacados se referem às diferentes intervenções realizadas no imóvel pelo mesmo proprietário.

NÚMERO DE PROCESSOS NÚMERO REAL


LOGRADOUROS
ENVOLVENDO COCHEIRAS DE COCHEIRAS
BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 2 2
CONSELHEIRO CARRÃO 7 5
CONSELHEIRO RAMALHO 2 2
DR. LUÍS BARRETO (ANTIGA RUA DO SOL) 5 5
FORTALEZA 1 1
JACEGUAI 1 1
JOÃO PASSALACQUA (ANTIGA MONTE DE OURO) 4 2
MAJOR DIOGO 7 5
MANOEL DUTRA 3 2
MARIA JOSÉ 7 4
QUATORZE DE JULHO 2 1
ROCHA 1 1
RUI BARBOSA 25 14
SANTO AMARO 1 1
SANTO ANTÔNIO 2 2
SÃO DOMINGOS 7 3
SÃO VICENTE 1 1
SARACURA GRANDE (ATUAL ALM. MARQUES LEÃO) 2 2
SARACURA PEQUENA (ATUAL DR. PLÍNIO BARRETO) 3 3
TREZE DE MAIO 30 23
TOTAL 113 80

Tabela 61 – Ocorrência de cocheiras por logradouros, entre 1905 e 1923. Fonte: Série Obras Particulares,
AHSP.

Embora o maior número de cocheiras estivesse concentrado nas ruas Treze de Maio
e Rui Barbosa, elas se disseminaram por praticamente todas as demais vias do bairro. Com
exceção das ruas mais curtas – as transversais São Domingos, Quatorze de Julho, Manoel
Dutra, São Vicente, Conselheiro Carrão e Fortaleza – quase todas eram vias que
desembocavam na Av. Brigadeiro Luís Antônio, principal eixo de articulação com o
Centro e a Av. Paulista. Esta era uma artéria de extrema importância tendo em vista o ligar
o Centro aos bairros localizados ao sul da cidade – Morro dos Ingleses, Av. Paulista e
Paraíso221 –, e ao então município de Santo Amaro. No caso do Morro dos Ingleses e da
Av. Paulista, tratava-se de bairros exclusivamente residenciais, cujos moradores

221
Isso, para não falar no loteamento da Vila América, empreendimento lançado pela Companhia
Edificadora de Villa América em 1915. Seguindo-se a Av. Brigadeiro Luís Antônio, e ultrapassada a Av.
Paulista, o loteamento envolvia os terrenos localizados exatamente abaixo dessa avenida, dando origem ao
bairro atualmente conhecido como Jardim Paulista.
constituíam uma clientela potencial para os comerciantes e prestadores de serviços
estabelecidos nas ruas do Bexiga.
Tendo em vista o cenário acima descrito, ainda que não haja como confirmar
concretamente a tese de que o produto do comércio e dos serviços oferecidos por
negociantes do Bexiga se destinassem a abastecer outros bairros, as informações recolhidas
na Série Obras Particulares fornecem fortes indícios nessa direção.

3.2.3 As cocheiras identificadas

Além da construção de novas cocheiras, as solicitações também podiam envolver a


reconstrução, reforma, redução ou acréscimo de baias às construções mais antigas, razão
pela qual os 113 processos originais reduziram-se a 80 casos, conforme se observa na
Tabela 60, na qual foram agrupados os endereços coincidentes. Desses casos, em dez
ocasiões foi possível identificar os proprietários que alteraram suas cocheiras de maneira a
aumentar ou reduzir o número de baias.
Interessante notar que uma parcela das reformas visando à redução do número de
baias em cocheiras existentes ocorreu em fase de crise econômica, durante o período da I
Guerra Mundial. Alguns dos proprietários já haviam, inclusive, acrescido espaço para mais
animais, contudo, em tempos de crise é provável que naquele momento optassem por
diminuir as despesas. Um caso exemplar nesse sentido foi aquele de Francisco Volpe. Em
1910, ele construiu uma cocheira que continha cinco baias na rua Rui Barbosa n.78; em
1915, ele as reconstruiu, acrescentando mais uma baia; em 1918, ele novamente reformou
a cocheira, agora eliminando duas baias; no ano seguinte, 1919, ele voltou a acrescentar
mais uma baia à sua cocheira.
Na outra ponta dos proprietários de cocheiras, há aqueles que parecem ter tido mais
sorte no negócio. Esse foi o caso, por exemplo, de Domingos Longo que em 1911
apresentou um “projeto de casa com armazém no alinhamento e cocheira nos fundos do
terreno, com sete baias”, na rua Major Diogo n.83. Oito anos depois, em 1919, ele pediu
licença para “reforma de cocheira, com redução de 27 para 16 baias”222. Em algum
momento entre os anos que se passaram desde a construção da cocheira, Longo
acrescentou vinte baias à cocheira existente. Agora, ele reduzia o número de baias e,
consequentemente, de animais. De toda maneira, mesmo levando em conta a eliminação de

222
Obras Particulares, OP/1911/002.238, 17/05/1911; OP/Doc.18-CX.M1, 10/02/1919, AHSP. Um ano depois do
encaminhamento do processo junto à Diretoria de Obras, o serviço de Emplacamento da Prefeitura alterou a
numeração do imóvel para o número 91.
onze animais, a sua posição privilegiada em relação aos demais proprietários de cocheiras
é indiscutível.
Parece lógico pensar que no caso das cocheiras com um alto número de baias
tratava-se de um negócio provavelmente voltado para o transporte de mercadorias (ou
como diríamos hoje, de frete). Do total das 80 cocheiras localizadas na Série Obras
Particulares, 16 solicitações estavam claramente associadas a algum tipo de negócio, mas
em apenas nove ocasiões foi possível identificar o solicitante ou o endereço fornecido no
Almanaque Laemmert. A partir dos dados fornecidos pelas solicitações desses
proprietários, elaborei a Tabela 62, na qual organizei um histórico de seus negócios, por
meio do cruzamento das informações dos Almanaques e da Série Alvará e Licença. Nos
casos restantes, me apoiei nos históricos das solicitações sempre que houvesse alguma
indicação que configurasse um potencial negócio. Afinal, nunca é demais lembrar que nem
todo o negociante anunciava nos Almanaques Laemmert.
PROPRIETÁRIO/
N. LOGRADOURO N. HISTÓRICO FONTE ANO
NEGOCIANTE
CARLOS BIAGNI SANTO ANTÔNIO 101 FÁBRICA DE CERVEJA ALMANAQUE 1909/1910
CARLOS VIAGINI SANTO ANTÔNIO 149 SECOS E MOLHADOS ALMANAQUE 1913/1914
CARLOS BIAGINI SANTO ANTÔNIO 153 REFORMA DA COCHEIRA EXISTENTE O.P. 1915
1
(COM DUAS BAIAS). PRESENÇA DE
OFICINA
CARLOS BIAGGINI SANTO ANTÔNIO 156 A SECOS E MOLHADOS ALMANAQUE 1921/1927
DAVID DIAS FERREIRA JACEGUAI 31 PROJETO DE “QUARTO” PARA O.P. 1909
(CONSTRUTOR) FORRAGENS NOS FUNDOS DO
2 TERRENO, NA SEQUÊNCIA DE UMA
COCHEIRA EXISTENTE.
GONÇALVES & CUNHA JACEGUAI 31 PADARIA JAVA ALMANAQUE 1915
DOMINGOS ALBANEZ SÃO DOMINGOS 82 CONSTRUÇÃO DE COCHEIRA. O.P. 1914
DOMINGOS ALBANEZ SÃO DOMINGOS 84 “RESIDENTE COM PADARIA” NESTE O.P. 1914
ENDEREÇO, SEGUNDO O QUAL O
PROJETO DA COCHEIRA FOI
TRANSFERIDO PARA OS FUNDOS DO
TERRENO.
3
DOMINGOS ALBANEZE SÃO DOMINGOS 82 REFORMA DE COCHEIRA E O.P. 1918
CONSTRUÇÃO DE BAIA DE
ISOLAMENTO.
DOMINGOS SÃO DOMINGOS 82 AÇOUGUE ALMANAQUE 1921/1923
ALBONERY
DOMINGOS ALBONEY SÃO DOMINGOS 80 SECOS E MOLHADOS ALMANAQUE 1921/1927
DOMINGOS LONGO MAJOR DIOGO 83 PROJETO DE CASA COM ARMAZÉM O.P. 1911
NO ALINHAMENTO E COCHEIRA NOS
FUNDOS DO TERRENO, COM SETE
4 BAIAS.
DOMINGOS LONGO MAJOR DIOGO 91 SECOS E MOLHADOS ALMANAQUE 1913/1923
DOMINGOS LONGO MAJOR DIOGO 91 REFORMA DE COCHEIRA, COM O.P. 1919
REDUÇÃO DE 27 PARA 16 BAIAS.
FRANCESCO DE CONSELHEIRO CARRÃO 26 PROJETO DE ACRÉSCIMO DE O.P. 1910
MARCO CÔMODOS (ENTRE ELES UM FORNO)
EM CASA EXISTENTE, COM
5
COCHEIRA NOS FUNDOS DO
TERRENO E ARMAZÉM NO
ALINHAMENTO.
HONESTO CINQUINI BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 149 PROJETO DE BARRACÃO PARA O.P. 23/09/1913
DEPÓSITO DE CEREAIS, NOS FUNDOS
DO TERRENO.
ONESTO CINQUINI BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 151 PADARIA E CONFEITARIA ALMANAQUE 1910/1923
6
HONESTO CINQUINI BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 151 REFORMA DE COCHEIRA, O.P. 28/01/1915
DEPENDÊNCIA DA PADARIA E
CONFEITARIA “NOVA SUISSA”.
ONESTO CINQUINI BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 151 REFORMA E AUMENTO DE O.P. 17/02/1919
ARMAZÉM.
MANANI IGNÁCIO CONSELHEIRO CARRÃO 2 PLANTA DE COCHEIRA. O.P. 1896
IGNÁCIO MAMMANA CONSELHEIRO CARRÃO 10 QUERENDO CONSTRUIR DOIS O.P. 1905
QUARTOS NO FUNDO DA CASA, PARA
DEPOSITAR UMA “ARANHA”,
ARREIOS E ALFAFAS, CONFORME A
PLANTA JUNTA, SOLICITA A
LICENÇA.
PLANTA APRESENTA ACRÉSCIMO DE
2 CÔMODOS SEPARADOS E
7 DESTINADOS A DEPÓSITOS.
IGNACIO MAMANO CONSELHEIRO CARRÃO 10 GENEROS ALIMENTÍCIOS ALMANAQUE 1909
IGNÁCIO MAMANNA MARIA JOSÉ JUNTO DESEJANDO CONSTRUIR COCHEIRA, O.P. 1899
AO SOLICITA APROVAÇÃO DA PLANTA.
N.25
IGNÁCIO MAMMANA MARIA JOSÉ 45 MODIFICAÇÃO DE COCHEIRA 6 O.P. 1914
BAIAS.
IGNACIO MAMMANA MARIA JOSÉ 45 ALTERAÇÃO DE PLANTA PARA O.P. 1919
CONSTRUÇÃO DE UMA COCHEIRA
COM 9 BAIAS.
JOAQUIM ANTUNES FORTALEZA - - PROJETO DE COCHEIRA COM 4 O.P. 1906
DOS SANTOS BAIAS E QUARTO PARA FORRAGEM,
PRÓXIMO DE COCHEIRA EXISTENTE.
- PROJETO DE 6 CASAS, UMA DELAS
COM ARMAZÉM.
JOAQUIM ANTUNES FORTALEZA 7 E 10 VEM DIZER QUE NÃO SE A.L. 1911
DOS SANTOS RESPONSABILIZA POR NENHUMA
(ERA PROPRIETÁRIO INDÚSTRIA COLOCADA EM SUAS
DO IMÓVEL E NÃO DO PROPRIEDADES, COMO SEJAM
NEGÓCIO) COCHEIRAS, FORNOS P/COZINHA (...)
8
BEM COMO CURTUME E ‘SALGA’ DE
COUROS. VEM FAZER ESTE AVISO A
FIM DE ‘COLECTAR’ OS INQUILINOS
QUE EXERCEM QUALQUER DESSAS
PROFISSÕES EM SUA PROPRIEDADE.
INDEFERIDO EM 21/02: "DE ACORDO
COM A LEI É O PROPRIETÁRIO
RESPONSÁVEL PELO IMPOSTO SOBRE
COCHEIRAS, EMBORA ESTEJAM ELAS
ALUGADAS A TERCEIROS (...)”.
JOSÉ TOCCI TREZE DE MAIO 23 CONSTRUÇÃO DE UMA COCHEIRA O.P. 1919
COM QUATRO BAIAS.
9 PRESENÇA DE HABITAÇÃO NA
FRENTE DO TERRENO; TELHEIRO E
FORNO NOS FUNDOS. PADARIA?
LUÍS NESSE TREZE DE MAIO 148 CONSTRUÇÃO DE SOBRADO PARA O.P. 1914
10 PADARIA, COM LABORATÓRIO,
FORNO E COCHEIRA NOS FUNDOS.
JOSÉ SCASSIOTA RUI BARBOSA 68 GÊNEROS ALIMENTÍCIOS ALMANAQUE 1909
LUIZ TADDEI RUI BARBOSA 66 - 68 REFORMA DE COCHEIRA COM 5 O.P. 1915
BAIAS, ISOLAMENTO E QUARTO DE
11 FORRAGEM. DUAS CASAS
EXISTENTES NA FRENTE DO
TERRENO, ALÉM DE UM DEPÓSITO
DE VINHO PRÓXIMO À COCHEIRA.
NUNCIO MAMANO MAJOR DIOGO 83 PROJETO PARA CONSTRUÇÃO DE O.P. 1910
CASA NA FRENTE E COCHEIRA COM
TRÊS BAIAS NOS FUNDOS.
NUNZIO MAMMANO SANTO ANTÔNIO 159 COMUNICAÇÃO DA TRANSFERÊNCIA A.L. 1911
12 DO NEGÓCIO PARA O N.106, NA
MESMA RUA E SOLICITAÇÃO DE
LICENÇA PARA TRANSFERÊNCIA.
NÚNCIO MAMMANA MAJOR DIOGO 93 REFORMA DE COCHEIRA COM TRÊS O.P. 1919
BAIAS.
SALVADOR TREZE DE MAIO 102 PROJETO DE CASA CONTENDO, NA O.P. 1913
SANFELIPPO SEQUÊNCIA DA MORADIA:
DEPÓSITO, PADARIA E FORNO. NOS
13 FUNDOS DO TERRENO, COCHEIRA
COM TRÊS BAIAS.
SALVADOR TREZE DE MAIO 102 REFORMA DE COCHEIRA. O.P. 1914
SANFELIPPO
THOMAZ LUPPO RUI BARBOSA 24 DESEJANDO CONSTRUIR UMA CASA O.P. 1905
NO INTERIOR DO TERRENO, MURO
14 COM PORTÃO E COCHEIRA,
CONFORME PLANTA ANEXA,
SOLICITA O ALINHAMENTO.
NOS FUNDOS DO TERRENO, TANQUE
E COCHEIRA PARA 3 ANIMAIS.
ENTRADA LATERAL À DIREITA DO
CORREDOR, PARA CARROÇAS.
THOMAZ LUPOLI RUI BARBOSA 24 GENEROS ALIMENTÍCIOS ALMANAQUE 1909
THOMAZO LUPO RUI BARBOSA 38 TRANSFERÊNCIA DO NEGÓCIO A.L. 1911
DESTE ENDEREÇO PARA O NÚMERO
37 NA MESMA RUA.
THOMAS LUPPI RUI BARBOSA 50 SECOS E MOLHADOS ALMANAQUE 1913/1923
THOMAZ PERUGINE TREZE DE MAIO 23 PROJETO DE CASA COM COCHEIRA O.P. 1906
NOS FUNDOS DO TERRENO.
THOMAZ PERUGINE TREZE DE MAIO 23 PROJETO DE ACRÉSCIMO EM CASA, O.P. 1909
ENVOLVENDO TAMBÉM O AUMENTO
DE DUAS BAIAS NA COCHEIRA
15 EXISTENTE.
THOMAZO PIROGINO TREZE DE MAIO 25 CONSTRUÇÃO DE FORNO NOS O.P. 1914
FUNDOS DO TERRENO, ONDE JÁ HÁ
UMA COCHEIRA. PADARIA?
THOMAZ PEROGINI TREZE DE MAIO 25 REFORMA DE COCHEIRA COM DUAS O.P. 1919
BAIAS. PADARIA?
VICENTE LUPOLLI RUI BARBOSA 32 GÊNEROS ALIMENTÍCIOS ALMANAQUE 1909
VICENTE LUPO RUI BARBOSA 46 REFORMA DE UMA COCHEIRA DE O.P. 1918
UMA BAIA, NOS FUNDOS DO
16 TERRENO, EM CUJA FRENTE HÁ UM
PRÉDIO DE “HABITAÇÃO”.
PADARIA? PRESENÇA DE UM FORNO
EM FRENTE DA COCHEIRA.

Tabela 62 – Histórico dos negociantes proprietários de cocheiras. Fonte: Séries Obras Particulares e Alvará e Licença,
AHSP; Almanaque Laemmert, Acervo Digital FBN.
* As siglas O.P. e A.L. referem-se, respectivamente, aos documentos gerados pelas séries Obras Particulares e Alvará e
Licença.

Como é possível verificar na Tabela 63, a tendência predominante eram cocheiras


com duas, três e seis baias. Aqui é importante destacar que vários desses casos podem se
referir a uma única cocheira ou a um único proprietário, sempre que esse tivesse decidido
aumentar ou reduzir as instalações para animais e veículos, o que ocorreu diversas vezes.
Daí o número de casos superar o número total de cocheiras identificadas. A questão é que
essa situação podia se alterar no decorrer dos anos e na medida de suas conveniências.
1 2 3 4 5 6 7 OU SEM
ANO TOTAL
BAIA BAIAS BAIAS BAIAS BAIAS BAIAS + BAIAS INDICAÇÃO
1905 - - 3 - - - - 1 4
1906 - 2 - 4 - - - 3 9
1907 - - 1 - - 1 - - 2
1908 1 1 - - - 2 - 2 6
1909 - - 1 1 - 1 - 2 5
1910 - - 1 - 1 - - 1 3
1911 - - 3 1 - - 1 - 5
1912 - - 2 - - - 1 1 4
1913 - 2 2 - - - 2 - 6
1914 - - 1 1 - 2 - 5 9
1915 1 5 2 1 1 6 1 2 19
1916 1 - 1 - - - - - 2
1917 - - - - - - 1 - 1
1918 3 2 2 2 - 3 1 2 15
1919 4 3 4 2 1 1 4 - 19
1920 2 - - - 2 1 - - 5
1921 - - - - 1 - - - 1
1922 - - - - - - - 1 1
1923 1 - - - - - - - 1
TOTAL 13 15 23 12 6 17 11 20 117

Tabela 63 – Cocheiras, por número de baias (1905-1923). Fonte: Série Obras Particulares, AHSP.
Em relação às cocheiras de maiores dimensões, foram identificados sete casos,
distribuídos pelas ruas Major Diogo, Maria José, Rui Barbosa, São Domingos e Saracura
Pequena. Foi possível verificar a tendência para aumento da construção ou reforma das
cocheiras em determinados períodos, o que ocorreu principalmente nos anos de 1915, 1918
e 1919. Em 1915, mais proprietários encaminharam pedidos de licença para construção
e/ou reforma de cocheiras, num total de 19 casos, sendo que ali se destacaram as cocheiras
com duas baias (5) e as cocheiras com seis baias (6). Na sequência, em 1918, foram
identificados 15 casos. Ali, a única categoria ausente é aquela das cocheiras com 5 baias,
visto que as demais categorias foram todas contempladas. Já em 1919 ocorreram 19
processos, nos quais se percebe a prevalência de cocheiras com uma baia (4), cocheiras
com três baias (4) e cocheiras com sete ou mais baias (4).
RUA N. PROPRIETÁRIOS HISTÓRICO N. BAIAS ANO
CONSTRUÇÃO 7 1911
MAJOR DIOGO 83-91* DOMINGOS LONGO
REFORMA C/REDUÇÃO 16 1919
MAJOR DIOGO 83 PEDRO AMARO CONSTRUÇÃO 14 1913
MARIA JOSÉ 45 IGNACIO MAMMANA CONSTRUÇÃO 9 1919
VICTOR MAMMANA CONSTRUÇÃO 9 1912
RUI BARBOSA 39
VICTOR MAMMANA REFORMA 7 1919
RUI BARBOSA 75 TOMMASO URSO REFORMA 11 1919
PAULA CHIARELLA ** REFORMA 12 1915
SÃO DOMINGOS 41
ANTÔNIO PANZARDI ** ACRÉSCIMO 9 1918
SARACURA PEQUENA - JULIO PEREIRA DOS SANTOS CONSTRUÇÃO 8 1913

Tabela 64 – Cocheiras com 7 ou mais baias. Fonte: Série Obras Particulares, AHSP.
* Numeração do imóvel alterada a partir do Emplacamento de 1912, passando de 83 para 91.
** Aparentemente, trata-se do mesmo imóvel com proprietários diferentes.

Nesse momento, cabe retomar algumas informações fornecidas pela Lei n. 2117,
especialmente o artigo primeiro, no qual estão discriminados os valores dos impostos sobre
as cocheiras. Do total de solicitações encaminhadas à Diretoria de Obras entre 1905 e
1923, envolvendo a construção e/ou reforma de cocheiras, encontrei referências a 11 casos
com mais de 7 baias, sendo que apenas 4 superavam a lotação para 11 ou mais
animais/baias e, nesses casos, o imposto a pagar era de cem mil réis, mais 5% do total. Nos
casos restantes, onde o número de animais abrigados era inferior a 10, o imposto a pagar
anualmente restringia-se a cinquenta mil réis ou cinquenta mil réis mais 5%. Diante desses
dados, verifica-se que a maioria absoluta das cocheiras pertencia a pessoas de pequenas e
médias posses, o que provavelmente também se aplica aos supostos negócios envolvidos
com essas cocheiras.
Na tentativa de ampliar o leque de dados sobre as cocheiras identificadas na Série
Obras Particulares, assim como preencher lacunas deixadas por aquela documentação,
busquei eventuais informações no lançamento do Imposto sobre Comércio e Indústria (ICI)
efetuado nos anos de 1923 e 1933223. Nesses documentos, o levantamento de todas as vias
do bairro do Bexiga, distrito da Bela Vista, possibilitou a identificação inquestionável dos
casos de cocheiras e garages. E, embora o número desses estabelecimentos tenha se
mostrado bastante reduzido em relação aos exemplares encontrados nas Obras
Particulares, eles confirmaram se tratar de uma atividade produtiva específica que, como
qualquer outra “indústria”, estava sujeita à tributação. Após a seleção dos casos
envolvendo cocheiras de aluguel, cocheiras de animais, empresas de transporte e garages
de aluguel, essas informações foram cruzadas com aquelas disponibilizadas pelas Obras
Particulares. Finalmente, a partir desses dados, organizei a Tabela 65, na qual constam:
nome do proprietário e/ou da empresa; endereços atualizados segundo o ano do
documento; o ramo e histórico da empresa; a fonte consultada; e, quando houvesse a
referência, informação sobre a transformação da cocheira em outro tipo de negócio.
RAMO
NOME RUA N. ANO FONTE
HISTÓRICO
ALFIO SCANDURA TREZE DE MAIO 95 CONSTRUÇÃO COCHEIRA 6 BAIAS 1908 OP
(BENEDITO BETTOI) TREZE DE MAIO 95 ACRÉSCIMO DE 2 BAIAS 1913 OP
ALFIO SCANDURA TREZE DE MAIO 143 REFORMA COCHEIRA 4 BAIAS 1920 OP
ALFIO SCANDURA TREZE DE MAIO 181 COCHEIRA, ALUGUEL 1933 ICI
(ANTIGOS 95 E 143)
ANTÔNIO PANSARDI SÃO DOMINGOS 41 ACRÉSCIMO COCHEIRA 9 BAIAS 1918 OP
ANTÔNIO PANSARDI SÃO DOMINGOS 41 COCHEIRA , ANIMAIS 1923 ICI
ANTÔNIO PANSARDI SÃO DOMINGOS 41 COCHEIRA, ALUGUEL 1933 ICI
AUTO PAULISTA LTDA. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 76 GARAGE E OFICINA (*) 1933 ICI
BIAGIO MILITO RUI BARBOSA 146 REFORMA COCHEIRA 6 BAIAS 1918 OP
BIAGIO MELITO (?) RUI BARBOSA 140 COCHEIRA, ALUGUEL 1933 ICI
(ANTIGO 146)
CAMILLA MARCHESE TREZE DE MAIO 151 CONSTRUÇÃO COCHEIRA 6 BAIAS 1915 OP
CAMILA MARCHEZA TREZE DE MAIO 191 COCHEIRA, ALUGUEL 1933 ICI
(ANTIGO 151)
DOMINGOS BRUNO MAJOR DIOGO 111 REFORMA COCHEIRA 6 BAIAS 1915 OP
TRANSFORMAÇÃO EM EMPRESA DE ?
TRANSPORTE
DOMENICO BRUNO MAJOR DIOGO 153 TRANSPORTE (EMPRESA DE) 1933 ICI
(ANTIGO 111)
FRANCISCO VOLPE RUI BARBOSA 78 CONSTRUÇÃO COCHEIRA 5 BAIAS 1910 OP
FRANCISCO VOLPE RUI BARBOSA 78 RECONSTRUÇÃO COCHEIRA 6 BAIAS 1915 OP
FRANCISCO VOLPE RUI BARBOSA 78 REFORMA COCHEIRA 4 BAIAS 1918 OP
FRANCISCO VOLPE RUI BARBOSA 78 REFORMA COCHEIRA 6 BAIAS 1919 OP
FRANCISCO VOLPI RUI BARBOSA 72 COCHEIRA, ALUGUEL 1933 ICI
(AO LADO DO 74,
ANT. 78)
GIACOMO DI LASCIO CONSELHEIRO RAMALHO 213 REFORMA COCHEIRA 6 BAIAS 1918 OP
GIACOMO DE LASCIO CONSELHEIRO RAMALHO 201 COCHEIRA, ALUGUEL 1933 ICI
(ANTIGO 213)
JOSÉ (CAPULLO) QUATORZE DE JULHO 47 COCHEIRA, ANIMAIS (*) 1923 ICI
LUÍS MANTACELLI JOÃO PASSALACQUA 26 CONSTRUÇÃO COCHEIRA 1912 OP
LUÍS MONTICELLI JOÃO PASSALACQUA 26 REFORMA COCHEIRA 4 BAIAS 1915 OP
LUÍS MONTICELLI JOÃO PASSALACQUA 26 REFORMACOCHEIRA 3 BAIAS 1919 OP

223
É importante deixar claro que muitas das informações complementares que obtivemos no decorrer deste
trabalho, embora tenham sido resultado de intensa pesquisa, também foram fruto do acaso. Em muitas
ocasiões, a busca por uma determinada informação terminava por indicar uma nova fonte, abrindo novas
perspectivas. Esse foi o caso dos impostos relacionados: Recebedoria de Rendas da Capital, exercício de
1923, Imposto de Commercio e Industria, Suplemento do Diario Official do Estado de São Paulo, de abril de
1923; Relação dos lançamentos efetuados pela Recebedoria de Rendas de São Paulo – Imposto de Comércio
e Indústria, Jornal do Estado, 10/06/1933. Localizamos também os editais de Lançamento do Imposto de
Commercio, de 17/02/1916, que indicam somente o valor a pagar, mas não a área de atuação do contribuinte.
Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/. Consultas em 09/12/2013, 20/08/2014 e 15/01/2015.
TRANSFORMAÇÃO EM GARAGE ?
LUIZ MONTICELLI JOÃO PASSALACQUA 26 GARAGE, ALUGUEL 1933 ICI
MASIONE FORTUNATO MAJOR DIOGO 43 A GARAGE, ESTADIA (*) 1933 ICI
PASCHOAL GRAZIANO SOL 63 T CONSTRUÇÃO COCHEIRA 3 BAIAS 1912 OP
PASCHOAL GRAZIANO SOL 63 T CONSTRUÇÃO COCHEIRA 3 BAIAS 1913 OP
PASCHOAL GRACIANO DR. LUIS BARRETO 91 COCHEIRA, ANIMAIS 1923 ICI
(ANTIGA RUA DO SOL)
Tabela 65 – Cocheiras, garages e empresas de transporte identificadas na cobrança do Imposto de Comércio e Indústria,
nos anos de 1923 e 1933. Fontes: Obras Particulares (AHSP) e Diário Oficial do Estado de São Paulo (DOSP).

(*) Casos sem referências nas Obras Particulares.

A primeira informação que ressalta aos olhos é a distinção entre as cocheiras de


animais e as cocheiras de aluguel – as primeiras, supostamente voltadas ao abrigo de
animais, e as segundas, mais especificamente ao aluguel de vagas para animais e
provavelmente veículos. Contudo, essa distinção talvez não fosse tão rígida, pois no caso
de Antônio Pansardi, proprietário de uma cocheira com 9 baias à rua São Domingos n.41,
único a figurar nas relações de contribuintes de 1923 e 1933, em um ano a cocheira é de
animais e no outro, de aluguel.
A transformação do serviço de cocheiras em outros negócios relacionados ao
transporte ocorreu em duas ocasiões. A primeira foi aquela em que Domingos Bruno, que
em 1915 era proprietário de uma cocheira com 6 baias na rua Major Diogo e que consta no
lançamento do imposto de 1933 como proprietário de uma empresa de transportes.
Possivelmente, a antiga cocheira de Bruno também se destinasse ao transporte de objetos,
móveis, mercadorias etc., servindo aos comerciantes locais necessitados de de veículos
para entrega dos seus produtos. A segunda ocasião em que foi identificada uma mudança
de “ramo” se refere a Luís Monticelli. Este possuía uma cocheira à rua João Passalacqua
n.26 desde 1912, ano em que pediu autorização para a construção da mesma sem definir o
número de baias. Monticelli voltou a procurar a Diretoria de Obras para fazer alterações no
imóvel em 1915 e 1919, ora indicando 3, ora 4 baias. Em 1933, ele aparece como
proprietário de uma garage de aluguel, do que se infere que o espaço não servia mais ao
abrigo de animais e carroças, mas sim de automóveis. Não foi possível saber em que
momento ele optou por essa mudança, mas a identificação de negócios sujeitos à
contribuição do Imposto sobre Comércio e Indústria naquele ano, deixa claro que àquela
altura o automóvel movido à motor de combustão era uma realidade inquestionável. Entre
as 38 atividades ligadas ao transporte de pessoas e veículos, há 20 casos que de alguma
maneira se vinculavam a esse tipo de veículo: garages, oficinas mecânicas, postos de
gasolina, vulcanização de veículos, comércio de automóveis, peças, pneus e óleos. Assim,
é possível deduzir que Monticelli tenha procurado se aproveitar da nova moda para
incrementar seu negócio...
Infelizmente, entre os 38 contribuintes citados pela Recebedoria de Rendas de São
Paulo em 1933, só foi possível identificar 9 proprietários presentes na Série Obras
Particulares. Creio que a ausência desses negociantes pode ser atribuída basicamente a
dois motivos: o amplo espaço de tempo investigado e negócios que eventualmente tenham
sido encerrados sem que seja possível saber os motivos, bem como – por que não –
imaginar a possibilidade de parte desses serviços ter funcionado na informalidade.
Se nos anos apontados houve um aumento efetivo de processos envolvendo as
cocheiras do bairro, a partir de 1920 houve um decréscimo radical. A Série Obras
Particulares cobre apenas o período até 1923, inviabilizando constatações posteriores a
esse ano. No entanto, há a possibilidade de a ausência de processos envolvendo cocheiras a
partir desse ano também se relacionar a uma tendência de desaparecimento dessas
tipologias. Embora alguns testemunhos iconográficos indiquem a presença das carroças
nas ruas da cidade, pelo menos até os anos 1940, cremos que a partir dos anos 1920, o
crescente processo de metropolização da cidade implicou a tendência de as cocheiras
serem “expulsas” para “novos” arrabaldes. Por outro lado, a cobrança do Imposto de
Comércio e Indústria de 1933 indica que na década de 1930 já se iniciava uma gradual
substituição dos veículos à tração animal utilizados no transporte de cargas, por aqueles
motorizados.

Figura 117 – Entregador de bebidas. Hildegard Rosenthal, c.1940. Fonte: Instituto Moreira Salles224.

224
As Figuras 120 e 121 disponíveis em:
http://fotografia.ims.uol.com.br/Sites/pincollection.jspx?collectionName=%7B0b8f9208-8ce6-46e7-a43a-
349d35f863f2%7D#1401138460446_2. Consulta em: maio de 2014.
Figura 118 – Carroças para entrega e/ou venda de verduras nas proximidades do Mercado central. Hildegard Rosenthal,
c.1940. Fonte: Instituto Moreira Salles.

Figura 119 – Carroceiro. Hildegard Rosenthal, c.1940. Fonte: Instituto Moreira Salles225.

3.2.4 Alguns casos exemplares

A seguir, abordarei alguns casos que podem ajudar a refletir sobre a natureza dessa
tipologia e, quem sabe, deixem entrever respostas.

225
Disponível em: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1482361. Consulta em maio de 2014.
Ignacio Mammana possuía cocheiras em duas ruas diferentes: na Conselheiro
Carrão n.10 e na Maria José n.45. Nas solicitações de licença da Serie Obras
Particulares226 há um documento de 1896 referente à construção de uma cocheira no n.2
da rua Conselheiro Carrão, em nome de um certo Manani Ignacio. Em 19/10/1905 ele era
proprietário de uma casa à rua Conselheiro Carrão n.10, mesmo endereço fornecido no
almanaque de 1909 e, possivelmente, o mesmo imóvel alvo do processo de 1896. Naquele
momento ele solicitou à Diretoria de Obras uma licença para “construir dois quartos no
fundo da casa, para depositar uma ‘aranha’, arreios e alfafas, conforme a planta junta”.
Conforme a definição fornecida pelo dicionário Michaellis, a “aranha” a que se referia
Mammana era um “carro pequeno de duas rodas, puxado por um só cavalo”227. Não foi
possível obter uma imagem do veículo para saber das suas dimensões, se servia para o
transporte de mercadorias ou se era apenas um transporte para poucos passageiros. De
qualquer forma, a construção dos ‘quartos’ devia servir, além de depósito para a ‘aranha’,
como abrigo ao animal de tração (burro ou cavalo) e para isso os “arreios e alfafas”.
Quanto à cocheira da rua Maria José n.45, pode ter sido construída em 1899, pelo que se
deduz do requerimento encaminhado por Mammana naquele ano: “desejando construir
cocheira, solicita aprovação da planta, para a rua Maria José, junto ao 25”228.
Mais significativo do que os cômodos construídos na rua Conselheiro Carrão, foi a
cocheira “modificada” em 1914 na rua Maria José n.45, uma instalação de dimensões
razoáveis, contando na ocasião com seis baias. Porém, no mesmo endereço há, na data de
14/01/1919, um pedido de “alteração de planta para construção de uma cocheira com 9
baias”. O projeto original havia sido aprovado em 31/08/1915 e contava com o carimbo da
Diretoria de Obras de 1918229. Por algum motivo, provavelmente por algum desacordo
com a legislação, a solicitação de Ignácio Mammano só foi aprovada quatro anos mais
tarde. Nesse momento, ele já havia decidido ampliar a cocheira e o número de nove baias
certamente previa um tráfego intenso, fosse de pessoas ou de mercadorias. Naquele ano, a
cocheira localizava-se no último terreno ocupado da rua Maria José n.45, antes do
cruzamento com a rua Conselheiro Carrão. O acesso dali para a Av. Brigadeiro Luís
Antônio era muito fácil. Bastava entrar à esquerda na rua Conselheiro Carrão e, em
seguida, entrar novamente à esquerda na rua Humaitá, percorrer aproximadamente 100

226
Na Série Obras Particulares, os processos envolvendo anos anteriores a 1906 encontram-se encadernados
em volumes. O requerimento em questão faz parte do volume 3.
227
Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-
portugues&palavra=aranha.
228
Obras Particulares, OP/Vol.244, p.44, 14/04/1899, AHSP, levantamento em 2007-2008.
229
Obras Particulares, OP/Cx.M2, 27/12/1914, OP/ DOC.43 – CX.M2,14/01/1919, AHSP.
metros, e já se chegava à avenida. A partir da avenida, as possibilidades variavam entre o
centro da cidade, à esquerda, e a Av. Paulista e bairros adjacentes, à direita. Essa,
decididamente era uma posição privilegiada.

Figura 120 – Localização das cocheiras de Ignácio Mammana, nas ruas Conselheiro Carrão n.10 e Maria José n.45.
Fonte: Planta SARA Brasil, 1930. AHSP.

Em 1911, Domingos Longo construiu uma casa contendo um armazém na frente do


prédio e uma cocheira com sete baias nos fundos do terreno na rua Major Diogo n.83. Oito
anos mais tarde ele reformou a cocheira, estranhamente, reduzindo o número de baias “de
27 para 16 baias”! Ainda que não haja nesse intervalo de tempo outro processo em seu
nome, tratava-se do mesmo imóvel.
Em 1913, Longo anunciou pela primeira vez no Almanaque Laemmert seu
armazém de secos e molhados instalado naquela casa. Conforme notícia divulgada no
jornal O Estado de São Paulo, em 28/09/1920, sobre um incêndio ali ocorrido, aquele
também era o endereço da sua residência. No mesmo jornal constam dois imóveis em seu
nome, ambos na Av. Brigadeiro Luís Antônio, acima da Av. Paulista. Em 06/09/1924, ele
comprou de Rodolpho Barbosa & Cia. o armazém de secos e molhados situado na rua
Lourenço Prado n.94230. Por essas notícias é possível deduzir que, ou o negócio prosperou,
ou Longo já possuía mais posses do que podíamos imaginar. Não foi possível confirmar se
ele realmente prestava serviços para outros comerciantes, mas é fato que ele diversificou
seus investimentos.
Conforme verificado na Figura 122 abaixo, a cocheira de Longo localizava-se
próximo à rua Conselheiro Carrão e os fundos do terreno davam acesso à rua Humaitá

230
Obras Particulares, OP/1911/002.238; e OP/Doc.18-Cx.M1, 10/12/1919. AHSP; O Estado de São Paulo,
respectivamente 13/06/1916, p.6; 03/07/1919, p.5; 20/01/1924, p.7; 06/09/1924, p.8.
que, em 1930, ainda não tinha sido arruada. Assim os veículos da cocheira dispunham de
duas opções de acesso à Av. Brigadeiro Luís Antônio, pela rua Major Diogo ou (mais fácil
ainda) pela Humaitá. Se seguisse a rua Humaitá, logo estaria no bairro da Liberdade ou no
Paraíso; já a Av. Brigadeiro Luís Antônio, além de abrir caminho para o centro e a Av.
Paulista, lhe permitia acessar os outros imóveis de sua propriedade naquela mesma via.

Figuras 121 a e b – Projeto apresentado por Domingos Longo, em 17/05/1911, para a construção de “casa com armazém
no alinhamento e cocheira nos fundos do terreno, com sete baias”, na rua Major Diogo n.83. Na Figura 7, a fachada do
armazém; na Figura 8 vemos a cocheira instalada no fundo do terreno, com a indicação de estar a 30 metros de distância
da construção principal. Essas edificações dariam origem ao processo de 10/02/1919, quando Longo solicitou licença
para a “reforma de cocheira, com redução de 27 para 16 baias”. Fonte: Série Obras Particulares, AHSP.

Figura 122 – Localização da cocheira de Domingos Longo, à rua Major Diogo. Fonte: Planta SARA Brasil, 1930.
AHSP.

Embora os casos de Domingos Longo e Ignácio Mammana não autorizem


afirmações categóricas acerca de uma prestação de serviços para outros comerciantes, é
possível duvidar que cocheiras com número elevado de baias se restringissem ao negócio
pessoal desses comerciantes. Até porque, no caso de Ignácio Mammana, seu armazém de
secos e molhados na rua Conselheiro Carrão parece não ter se mantido após 1909, a partir
de quando não se tem mais notícias de quaisquer outros imóveis em seu nome naquele
local. Já a outra cocheira, construída na rua Maria José em 1899, vinte anos depois, ainda
era alvo de novos acréscimos.
Victor Mammana possivelmente fosse parente de Ignácio. Até pelo fato de seu
nome não constar nos anúncios do Almanaque, as dimensões de sua cocheira localizada à
rua Rui Barbosa n.39 autorizam a pensar que se tratava de um negócio de transporte de
pessoas ou mercadorias. Tudo começou com o requerimento encaminhado à Diretoria de
Obras e Viação, em 1912, no qual Victor apresentou “projeto de cocheira com nove baias
nos fundos do terreno, contendo entrada para carroças e uma casa existente na frente”.

Figura 123 – Projeto da cocheira construída por Victor Mammana em 1912, na rua Rui Barbosa n.39. Fonte: Série Obras
Particulares, AHSP.

Em 1915, ele pediu licença para efetuar ”reforma de cocheira com seis baias, baia
de isolamento e depósito de forragem”, mas teve dificuldades para aprovar o projeto. De
acordo com a Lei n.1.550, as cocheiras deviam ficar, pelo menos, a 300 metros de distância
dos Grupos Escolares e os proprietários das existentes deveriam providenciar sua
transferência para outro local. A cocheira de Victor Mammana localizava-se nas
proximidades do Grupo Escolar Maria José (Figura 124), mas parece que não o suficiente,
pois em 05 de agosto desse ano seu pedido foi deferido231. Ele voltou a reformar a cocheira
em 1918 e 1919, sendo que desta última vez a licença foi para “reforma de uma cocheira
com sete baias”232.

231
De acordo com a Lei n. 1.550, as cocheiras deveriam ficar a, pelo menos, 300 metros de distância dos
grupos escolares “ou de qualquer estabelecimento escolar internato”, 11/06/1912. Disponível em:
http://camaramunicipalsp.qaplaweb.com.br/iah/fulltext/leis/L1550.pdf.
232
Obras Particulares, OP/1912/003.731, 27/08/1912; OP/1915.003.317-Cx 412, 05/08/15; OP/Doc.37 –
Cx.R2, 15/07/1918; e OP/Doc.48-Cx.R3, 23/03/1919, AHSP.
Figura 124 – Localização da cocheira de Victor Mammana, à rua Rui Barbosa n.39. Observar no lote destacado em
laranja, à esquerda da planta, o Grupo Escolar Maria José. Fonte: Planta SARA Brasil, 1930. AHSP.

Carlos Biagini fazia parte do grupo de proprietários de pequenas cocheiras. Ele


possuía, pelo menos desde 1913, um armazém de secos e molhados sito à rua Santo
Antônio n.149. Em 1915, Biagini solicitou à Diretoria de Obras licença para a “reforma da
cocheira existente” na rua Santo Antônio n.153233. De acordo com o projeto encaminhado,
o acesso ao terreno e à cocheira (com duas baias) se dava através da rua São Domingos,
onde também havia um prédio para “oficina”.

Figura 125 – Projeto arquitetônico para a construção do sobrado de Carlos Biagini, onde funcionou seu armazém de
secos e molhados, à rua Santo Antônio n.156. Fonte: Série Obras Particulares, AHSP.

233
Obras Particulares, OP/1915.003.456-Cx414, 06/09/1915, AHSP.
A cocheira localizava-se numa área muito próxima à rua Martinho Prado, no lado
oposto da rua Santo Antônio, em cuja esquina Biagini possuía o sobrado n.156, este
também com espaço comercial instalado no piso térreo. Em 1914, esse espaço era ocupado
por um bar, de propriedade de Alves & Azevedo, mas a partir de 1921 a casa comercial de
Biagini passou a funcionar no local. O que importa nessas informações é justamente a
localização das propriedades de Carlos Biagini, nas proximidades da rua Martinho Prado
(Figura 126), via de ligação entre os bairros do Bexiga e Consolação, o que remete à
possibilidade de um intercâmbio comercial entre esses bairros. Quem sabe, os produtos
disponíveis no armazém do comerciante podiam ser entregues nos domicílios dos clientes
através das carroças estacionadas na cocheira da rua Santo Antônio?

Figura 126 – Localização das propriedades de Carlos Biagini: o sobrado, no n. 156; a cocheira, no número 153; e a casa
no n.149. Fonte: Planta SARA Brasil, 1930. AHSP.

Outro caso da mesma época foi o de Domingos Albanez. Em 19/06/1913, consta na


Série Obras Particulares, um pedido de licença em seu nome para a construção de um
sobrado com armazém no n.80 da rua São Domingos234. Em 21 de janeiro do próximo ano,
Albanez pediu autorização para a construção de uma cocheira no n.82 da mesma rua. O
pedido foi alterado pelo comerciante em 05 de dezembro do mesmo ano, quando Albanez
informou que era ali “residente com padaria” e que o projeto da cocheira havia sido
transferido para os fundos do terreno de n.84. Apesar das discrepâncias em torno da
numeração do imóvel, em 12/10/1915 o jornal O Estado de São Paulo divulgava, entre as

234
Obras Particulares, OP/1913/004.609, 19/06/1913, AHSP.
plantas aprovadas pela Delegacia Fiscal do município, a planta encaminhada por
Domingos Albanez. Tratava-se da tradicional Padaria São Domingos, um dos raros
exemplos de comércio e prédio remanescente no bairro do Bexiga, cujo projeto original
reproduzimos abaixo.

Figura 127 – Projeto arquitetônico de 19/06/1913 (contendo planta baixa, fachada e elevação), proposto por Domingos
Albanez para o prédio a ser construído na rua São Domingos n.80. Fonte: Série Obras Particulares, AHSP.

Entretanto, Domingos Albanez só iria divulgar seu negócio em 1921, quando o


Almanaque Laemmert registra a presença de uma casa de secos e molhados no n.80 da rua
São Domingos, e de um açougue no n.82, ambos em nome de um certo Domingos
Alboney, certamente a mesma pessoa. Tudo indica que o começo não foi muito fácil e que
o comerciante testou diferentes possibilidades antes de consolidar o nome da casa. Essa
possibilidade é corroborada pelo site oficial da padaria: “no inicio (do empreendimento),
Domenico teve que se dedicar muito e, com uma carrocinha puxada a burro fazia a
entrega dos pães pelas ruas do bairro e acabou aprendendo a profissão de padeiro”235
(grifo nosso).
A informação confirma a entrega domiciliar de pães, justificando assim a presença
da cocheira construída por volta de 1915. Em relação à localização, naquele momento a
padaria de Albanez se encontrava nas proximidades da rua Santo Antônio236, portanto, com
acesso relativamente fácil para o bairro da Consolação, via rua Major Quedinho. A
localização também era estratégica para acesso à rua Augusta, via rua Martinho Prado e

235
Informação disponível no site http://www.paoitalianosaodomingos.com.br/historia.html.
236
Entre 1968 e 1971, a rua São Domingos, além de outras vias do bairro da Bela Vista, foi “cortada” pela
construção do Viaduto Júlio Mesquita, parte da Ligação Leste-Oeste, o que impede a travessia à pé em
direção às ruas Rui Barbosa, Treze de Maio e Santo Antônio.
ainda para o grande distrito da Bela Vista, via a rua Paim. Para o Centro, o caminho era a
rua Santo Antônio (Figura 128).

Figura 128 – Localização da cocheira e da padaria de Domingos Albanez, à rua São Domingos números 82 e 84. Fonte:
Planta SARA Brasil, 1930. AHSP.

João Ammirabile, proprietário de um açougue na rua da Abolição n.4 apareceu


poucas vezes no Almanaque Laemmert. Seu nome figurou apenas nos volumes de 1921 e
no biênio 1922/23. Porém, a referência mais significativa a seu nome consta nos
documentos da Série Obras Particulares, em 01/10/1920, quando Ammirabile pediu
licença para fazer a “reforma de cocheira com seis baias, nos fundos do terreno”
localizado à rua Rui Barbosa n.81237. Tendo em vista a grande distância entre a localização
do açougue, na rua Abolição, e da cocheira, na rua Rui Barbosa, é possível que esses
empreendimentos fossem independentes um do outro. A cocheira com instalações para seis
animais sugere um número correspondente de carroças ou de carroças maiores tracionadas
por mais de um animal. Ambas as situações levam a pensar em um grande volume de
mercadorias a serem transportadas. Todavia, a localização da cocheira em relação às vias
de acesso a outros bairros não era das mais favoráveis. Para atingir a rua Santo Antônio ele
teria que pegar à direita da rua Rui Barbosa, seguir até a rua Manoel Dutra, entrar à
esquerda, e logo em seguida entrar na rua Treze de Maio à direita, seguindo até atingir a
rua Santo Antônio. Já o acesso à Av. Brigadeiro Luís Antônio era um pouco mais fácil,
bastava seguir a Rui Barbosa até o encontro desta com a avenida. A partir dali se abriam

237
Obras Particulares, sem referências, 14/08/1920. AHSP.
outras possibilidades: o Centro, a Av. Paulista e os bairros da Liberdade e Paraíso (Figura
129).

Figura 129 – Localização da cocheira de João Ammirabile, à rua Rui Barbosa n.81. Fonte: Planta SARA Brasil, 1930.
AHSP.

Embora a Av. Brigadeiro Luís Antônio tenha sido ocupada preferencialmente pelos
segmentos mais abastados e por atividades produtivas mais especializadas, ali também
havia uma cocheira. Era o caso da Padaria e Confeitaria Nova Suissa, de propriedade de
Honesto Cinquini, localizada no n.151238 (Figura 130). Em 1913, Cinquini construiu nos
fundos do terreno, ao lado do estabelecimento, um depósito de cereais para sua padaria.
Somente em 1915 ficamos sabendo que anexo à padaria havia uma cocheira, ocasião em
que ele solicitou licença para a reforma da mesma, sem mensionar suas dimensões. Alguns
anos mais tarde, em 1919, Cinquini encaminhou à Diretoria de Obras um pedido de licença
para fazer uma “reforma e aumento de armazém”239. Os três casos se relacionam
diretamente ao negócio que, de acordo com o Almanaque Laemmert, funcionou naquele
endereço entre 1910 e 1923. Os negócios pareciam prosperar, contudo, um comunicado

238
Posteriormente, em 05/05/1919, o imóvel seria alvo dos serviços de Emplacamento da Prefeitura, quando
sua numeração foi alterada, passando do n.151 para o n.157.
239
Obras Particulares, OP/1913/000.939, 23/09/1913; OP/Cx.363, 28/01/1915; OP/Doc.30-Cx.B7,
17/02/1919, AHSP.
publicado em O Estado de São Paulo no mesmo ano indica que a padaria foi comprada
pela firma Quintas & Pedrosa.

Figura 130 – Localização da Padaria e Confeitaria Nova Suissa, de Honesto Cinquini, na Av.Brigadeiro Luís Antônio,
151. Fonte: Planta SARA Brasil, 1930. AHSP.

Figura 131 – O Estado de São Paulo, 26/09/1919.

Não há como saber os motivos que levaram à venda do estabelecimento. Nos


exemplares do Almanaque de 1924 a 1927 já consta a referência a uma Padaria Nova Suissa
justamente em nome de Quintas & Pedrosa, sita à Av. Brigadeiro Luís Antônio, 157.
Um caso especial de relação cocheira-negócios parece referir-se a membros de uma
única família – os Lupo – e envolve um processo mais complexo que os demais analisados.
O ponto de partida é a solicitação encaminhada por Vicente Lupo à Diretoria de Obras em
1918. Porém, antes de entrar nos detalhes desse documento é necessário retroagir no tempo.
Entre 1905 e 1907, a Série Obras Particulares apresenta três processos envolvendo
membros da família cujos endereços situam-se nos números 24 e 50 da rua Rui Barbosa. Em
25/02/1905, Thomaz Luppo, “desejando construir uma casa (térrea) no interior do terreno,
muro com portão e cocheira, conforme planta anexa, solicita o alinhamento”240. De acordo
com a planta, nos fundos do terreno localizado à rua Rui Barbosa n.24 havia um tanque e
cocheira para três animais. A licença foi concedida, mas para isso Lupo teve que assinar um
termo de compromisso “se compromentendo a não permittir (...) a creação de cortiço ou
habitação collectiva” no imóvel241. Dois anos depois, em 27/04/1907, Thomaz Luppo,
“desejando aumentar mais um quarto nos fundos de seu prédio, solicita licença e
aprovação”. Agora, embora tivesse assinado o termo de compromisso por ocasião da
construção da casa, Lupo foi acusado de “ter criado cortiço no imóvel” e multado em
100$000 réis. Tratava-se do mesmo prédio construído três anos antes que, a partir do
emplacamento de 1908, passou a n. 36242. Os endereços até então fornecidos por Lupo se
referem exclusivamente ao imóvel alvo de construção e reforma e a leitura da planta indica
apenas a presença da cocheira, além de demonstrar que o prédio era de uso residencial.
Assim, a inexistência de outros processos que envolvam posteriores alterações de usos no
imóvel leva a crer que a única atividade de caráter comercial seria aquela representada pela
cocheira.

Figura 132 – Projeto arquitetônico para a construção da casa de Thomaz Luppo, à rua Rui Barbosa n.24, onde podemos
observar a “entrada de carroças” na frente do terreno e a cocheira com três baias nos fundos. Fonte: Série Obras
Particulares, AHSP.

Entretanto, localizei um aviso em nome de Lupo na Série Alvará e Licença, datado


de 22/05/1911, participando a “transferência do negócio (não identificado) para o número
37 da mesma rua”. O endereço de referência fornecido por Lupo era no n.38 da rua Rui
Barbosa, local de sua residência pelo menos até 1914. Aqui, abro parênteses para um fato

240
Obras Particulares, v.421, 25/02/1905, AHSP, levantamento em 2007-2008. Grifo nosso.
241
Informação disponível em: PARETO JR., Lindener – O cotidiano em construção: os “práticos licenciados”
em São Paulo (1893-1933). Dissertação de mestrado apresentada ao PPG-FAUUSP, 2011, p.153.
242
Índice de Emplacamentos do município, emplacamento realizado em 25/07/1908. AHSP.
particular da vida dos Lupo que esclarece algumas questões e confirma outras. Ao buscar
mais informações sobre esse personagem descobri uma notícia interessante no jornal O
Estado de São Paulo. A matéria se intitula “Por questões de honra” e relata a tentativa de
homicídio sofrida pelo carroceiro Thommazo Lupo em razão de seu filho Vicente ter
mantido “relações illicitas com uma mocinha de nome Ripalta Vigliotti”. Por conta da
“perda da honra” da moça, Vicente foi processado pela família dela e condenado a um ano
e poucos meses de prisão. Ocorre que os irmãos de Ripalta, Savério e Domingos Vigliotti,
não satisfeitos com a prisão de Vicente, resolveram fazer justiça com as próprias mãos, e
como o autor da desonra estivesse preso, resolveram que seu pai Thommazo deveria pagar
pelos atos do filho. Sabendo que Thommazo devia transitar pela rua Santa Rosa com destino
à estação do Pari, no dia 3 de janeiro, um sábado, foram até lá e aguardaram sua chegada e,
quando ele passou com sua carroça, Saverio alvejou-o com três tiros243. Embora a notícia
relatasse que Thommazo havia ficado “mortalmente ferido”, é evidente que ele sobreviveu à
tragédia. Vicente, após cumprir a pena saiu da prisão e mais tarde tornou-se proprietário de
uma cocheira... Essa notícia, além de confirmar a ocupação de Thomaz Lupo, esclarece
outros pontos obscuros – os vínculos familiares dele com Vicente, seu endereço de moradia
na rua Rui Barbosa n.38 e ainda a profissão e o endereço de Saverio Vigliotti: ele também
um carroceiro, residente na rua Conselheiro Carrão n. 49. De fato, em 1918 ali havia uma
cocheira que pertencia a Sabino Borelli.
Por outro lado, o fato de Thomaz transitar pelo bairro do Pari conduzindo a sua
carroça sugere que ele estava a trabalho, ou seja, o ofício de carroceiro o levava a regiões
distantes de sua residência e de sua cocheira. Não se sabe o que ele fazia na estação do Pari,
talvez fosse ali entregar ou pegar alguma carga...
Alguns anos mais tarde, em 20/05/1921, Thomaz Lupo encaminhou solicitação à
Diretoria de Obras, agora para a “transformação de duas portas em janelas” no prédio sito
à rua Rui Barbosa n.37244. Tudo parecia indicar que se tratava da transformação de um
espaço comercial em residencial – as portas da frente do prédio, originalmente destinadas ao
acesso da freguesia do estabelecimento, foram substituídas por janelas, passando a conferir
ao imóvel um caráter exclusivamente residencial245. Contudo, como veremos adiante, Lupo

243
O Estado de São Paulo, 04/01/1914, p.7.
244
Obras Particulares, OP/Doc.24-Cx.R6, AHSP.
245
Provavelmente em função do reflexo das crises econômicas que se abateram sobre a cidade desde o conflito
mundial de 1914-17, esse foi um tipo de solicitação recorrente nos anos 1920. Podia se tratar de negócio do
próprio dono do imóvel ou ainda de casa para locação. Nas duas circunstâncias, se o negócio não estivesse
dando certo, alterar o imóvel para uso exclusivamente residencial poderia ser uma opção para o proprietário
garantir sua renda mensal.
não estava desistindo do negócio, mas provavelmente adaptando o prédio para uma possível
locação com fins residenciais.
Em 1913 e 1914, ele anunciou, pela primeira vez no Almanaque Laemmert um
negócio de secos e molhados em outro endereço, na rua Rui Barbosa n. 41, o mesmo imóvel
que, em 05/05/1922 merecera reforma “da fachada de prédio com armazém na frente”.
Ocorre que, conforme notícia veiculada no jornal O Estado de São Paulo, em 04/06/1929,
tratava-se do endereço residencial de Thomaz Lupo246. Porém, já não era mais seu endereço
comercial, pois de acordo com os números do Almanaque Laemmert para 1921 e 1922-23,
nesses anos o armazém já funcionava na rua Rui Barbosa n.50.
REQUERENTE/ HISTÓRICO/
DATA RUA N. FONTE
PROPRIETÁRIO ATIVIDADE
25/02/1905 RUI BARBOSA 24 THOMAZ LUPPO DESEJANDO CONSTRUIR UMA CASA NO OBRAS PARTICULARES
INTERIOR DO TERRENO, MURO COM
PORTÃO E COCHEIRA CONFORME A
PLANTA ANEXA SOLICITA O
ALINHAMENTO.
EM ANEXO, TERMO DE COMPROMISSO,
DATADO DE 23/03/1905.
27/04/1907 RUI BARBOSA 24 THOMAZO LUPPO DESEJANDO AUMENTAR MAIS UM OBRAS PARTICULARES
QUARTO NOS FUNDOS DE SEU PRÉDIO,
SOLICITA LICENÇA E APROVAÇÃO.
EM 11/06/1907, O PROPRIETÁRIO FOI
MULTADO EM 100$000 “POR TER
CRIADO CORTIÇO NO IMÓVEL”.
22/05/1911 RUI BARBOSA 38 THOMAZO LUPO TRANSFERÊNCIA DO NEGÓCIO (NÃO ALVARÁ E LICENÇA
IDENTIFICADO) PARA O N. 37 DA
MESMA RUA.
1913/1921 RUI BARBOSA 41 THOMAS LUPPI COMÉRCIO DE SECOS E MOLHADOS ALMANAQUE LAEMMERT
20/05/1921 RUI BARBOSA 37 THOMAZ LUPPO TRANSFORMAÇÃO DE DUAS PORTAS OBRAS PARTICULARES
EM DUAS JANELAS
05/05/1922 RUI BARBOSA 41 THOMAZ LUPPO REFORMA DA FACHADO DE PRÉDIO OBRAS PARTICULARES
COM ARMAZÉM NO ALINHAMENTO.
1922/23 RUI BARBOSA 50 THOMAZ LUPPO COMÉRCIO DE SECOS E MOLHADOS ALMANAQUE LAEMMERT

03/08/1906 RUI BARBOSA 32 VICENTE LUPO DESEJANDO “ABRIR” UMA JANELA OBRAS PARTICULARES
PARA PORTA, SOLICITA A NECESSÁRIA
LICENÇA.
1909 RUI BARBOSA 32 * VICENTE LUPOLLI COMÉRCIO DE GÊNEROS ALMANAQUE LAEMMERT
ALIMENTÍCIOS
18/10/1918 RUI BARBOSA 46 VICENTE LUPO REFORMA DE UMA COCHEIRA DE UMA OBRAS PARTICULARES
BAIA, NOS FUNDOS DO TERRENO, EM
CUJA FRENTE HÁ UM PRÉDIO DE
“HABITAÇÃO”. PRESENÇA DE FORNO
EM FRENTE À COCHEIRA.

Tabela 66 – Histórico dos imóveis e negócios de membros da família Lupo, entre 1905 e 1923. Fontes: Série Obras
Particulares, AHSP; Almanaque Laemmert, Acervo Digital FBN.

* A numeração do imóvel passaria a ser 46, após o Emplacamento de 25/07/1908.

Em 03/08/1906, Vicente Lupo pediu licença para transformar uma janela em porta no
prédio n.32 da rua Rui Barbosa – com certeza um caso de adaptação de prédio existente para
o exercício de algum tipo de atividade produtiva247. De acordo com o emplacamento

246
O Estado de São Paulo, 04/06/1929.
247
Obras Particulares, OP/Cx.Q1/R1, 03/08/1906, AHSP, levantamento em 2007-2008.
realizado pela Prefeitura em 1908, o prédio n. 32 da rua Rui Barbosa passou a n.46248,
correspondendo ao endereço do comércio de gêneros alimentícios anunciado no Almanaque
Laemmert por Vicente Lupolli em 1909. Muitos anos mais tarde, em 1918, ainda no mesmo
local, Vicente voltou a contatar a Diretoria de Obras, agora visando à “reforma de uma
cocheira de uma baia, nos fundos do terreno, em cuja frente há um prédio de ‘habitação’”.
Vale acrescentar que o projeto arquitetônico correspondente ao pedido demonstra a
existência de um forno na frente da cocheira, indicando a possível presença de uma padaria
no local249. A aprovação da planta apresentada por Vicente seria publicada no jornal O
Estado de São Paulo, em 26 de outubro do mesmo ano.
O caminho percorrido por Thomaz demonstra que este foi um homem disposto a
explorar todas as possibilidades dadas pelo momento histórico em que a cidade, ao se
expandir, vivia. São Paulo ampliava o rol das suas necessidades e carecia de gente
empreendedora que se submetesse aos percalços de uma vida incerta, ramo no qual os
imigrantes funcionaram como os atores ideais. Ao longo de mais de vinte anos foi
proprietário de uma cocheira – onde também desempenhava a função de carroceiro –, de
um comércio de secos e molhados, de uma casa de aluguel e, não se pode esquecer, de um
cortiço. Vicente, embora tenha tido alguns percalços em sua vida pessoal, parece ter tido um
percurso profissional mais tranquilo: foi proprietário de um comércio de gêneros
alimentícios no mesmo local em que tinha uma pequena cocheira, e é possível que tenha
residido no mesmo imóvel.

Figura 133 – Localização das cocheiras e negócios de Thomaz e Vicente Lupo, na rua Rui Barbosa. Fonte: Planta SARA
Brasil, 1930. AHSP.

248
Emplacamento de 25/07/1908. Índice de Emplacamento, AHSP.
249
Obras Particulares, OP/Doc.37 – Cx.R2. 18/10/1918, AHSP.
De acordo com o Índice de Emplacamentos do município, os imóveis citados por pai
e filho situavam-se todos entre as ruas Manoel Dutra e Conselheiro Carrão. A identificação
de Thomaz e Vicente Lupo no Almanaque Laemmert, em diferentes anos, confirma o fato de
que ambos exerceram atividades comerciais relacionadas ao abastecimento alimentar de
parte da população da cidade. Junto de seus estabelecimentos encontramos duas cocheiras
que certamente destinavam-se à distribuição dos produtos comercializados.
Coincidentemente, desde que se tivesse um veículo de transporte, a localização das
cocheiras de Thomaz e Vicente, do mesmo modo como ocorreu com Ignácio Mammana e
João Ammirabile, também propiciava o acesso à Av. Brigadeiro Luís Antônio e dali para
outros bairros.
A análise desses casos obedeceu a um esforço de pensar o comércio varejista do
Bexiga – a partir das possibilidades de circulação dadas pela localização das cocheiras do
bairro em relação às vias de acesso a outras regiões da cidade, em resposta a demandas dos
bairros adjacentes.
De acordo com Luís Soares de Camargo, desde 1868 o aumento no número de
veículos em circulação pela cidade preocupava as autoridades municipais, levando o chefe
de polícia a solicitar à câmara “a confecção de posturas determinando quais devam ser as
ruas para subidas e descidas dos veículos, e marcando em outras a maneira por que deva
ser feito o trânsito dos mesmos, por meio de sinais, como se pratica na Corte e em outras
províncias do Império”. As providências nesse sentido foram tomadas em 1871, com a
colocação dos “primeiros sinais de mãos de direção e triângulos nos cantos das ruas de São
Paulo” (Camargo, 2007). Já em 1897, o Ato n.21 indicava “a direcção das ruas por onde
devem transictar os vehiculos”250, restringindo-se, contudo, às localizadas na região central
da cidade, alcançando no máximo a rua “Aurora da do Bom Retiro à Bento Freitas”, na
Consolação. Em 1902, esse documento foi revogado pelo Ato n.130 e apenas poucas vias do
Triângulo tiveram restrição parcial quanto às mãos de direção, caso das ruas XV de
Novembro, Quintino Bocaiúva, José Bonifácio, Quitanda e travessa do Grande Hotel251.
Quase vinte anos depois foi criado o Ato n.1426, de 26/04/1920252, cujo detalhamento

250
Acto n. 21, de 11/10/1897. Legislação: Leis, Decretos, Decretos Legislativos, Emendas à Lei Orgânica,
Resoluções, Atos e Decretos-Lei a partir de 1892. Disponível em:
http://camaramunicipalsp.qaplaweb.com.br/iah/pt/index.htm.
251
Acto n.130, de 17/02/1902. Revoga o Acto n.21(...) que prohibe o transito de vehiculos em qualquer
direcção. Disponível em: http://camaramunicipalsp.qaplaweb.com.br/iah/pt/index.htm.
252
Acto n.1426, de 26/04/1920. Regulamenta a Lei n. 2264, de 13 de fevereiro de 1920, que dispõe sobre a
inspeção e fiscalização do transito de veículos no Município. Disponível em:
http://camaramunicipalsp.qaplaweb.com.br/iah/fulltext/actos/A1426-1920.pdf; e
http://camaramunicipalsp.qaplaweb.com.br/iah/fulltext/leis/L2264.pdf.
embora se mostre mais próximo àquele das atuais leis de trânsito, nada esclarece a respeito
da circulação de veículos pelas ruas do distrito da Bela Vista. De acordo com o documento,
as vias mais próximas do Bexiga sujeitas às direções de trânsito pré-estabelecidas
restringiam-se às ruas do Parque do Anhangabaú, onde o trânsito seria “nas duas direções”.

Figura 134 – Artigo 32, do Ato n.1426, de 26 de abril de 1920. Fonte: Biblioteca da Câmara Municipal de São Paulo 253.

Assim, até 1935 não ocorreram alterações significativas na legislação e,


consequentemente, na fiscalização das condições de circulação viária na cidade. A ausência
de intervenções municipais explícitas nos bairros além do perímetro central poderia levar a
crer que a circulação de veículos pela cidade transcorresse sem maiores maiores problemas,
no entanto, a cidade já vivenciava congestionamentos pelo menos desde 1925254.

253
Disponível em: http://www.camara.sp.gov.br/biblioteca/legislacao/. Consulta em: maio de 2014.
254
A seriedade do problema é atestada pela seção “Notícias Diversas” do jornal O Estado de São Paulo, de
15/05/1925, de sub-título “Um apanhado geral do problema que hoje, mais uma vez será estudado na
Prefeitura”, noticiava que naquele dia realizara-se uma “reunião da comissão encarregada de estudar o
problema do trânsito urbano”, com a presença do engenheiro da Prefeitura, Dr. Domicio Pacheco. Em
dezembro de 1934 foi aprovado, pelo interventor Armando de Salles Oliveira, o Regulamento Geral do
Trânsito, que passaria a vigorar a partir de 1º de Abril de 1935. O Estado de São Paulo, 16/12/1934, p.8.
Diante desse cenário sucinto, é possível que a rotina dos responsáveis pelo transporte
de mercadorias (cocheiros, carroceiros e, mais tarde, motoristas) originários do bairro,
enfrentando os problemas inerentes à cidade em constante crescimento, deve ter seguido um
curso normal ou mais difícil, na medida das circunstâncias. Guardadas as devidas
proporções, talvez nada muito diferente do que ocorre atualmente nas principais vias da
cidade, ainda tão sujeitas aos percalços do dia a dia.
Independentemente dos resultados limitados da análise da legislação e dos casos
exemplares (limitações essas impostas pela exiguidade de informações), esse não foi um
trabalho inútil. Na medida em que lançou o olhar do historiador sobre atividades exercidas
num determinado espaço, num determinado momento, em determinadas condições e
cumpriu a função de nos aproximar do objeto de estudo – nos “transportando” para a capital
paulista das primeiras décadas do século passado.
Por outro lado, mais do que fornecer respostas conclusivas, a intenção desse item do
Capítulo 3 é explorar e levantar possibilidades referentes à hipótese central da tese de
doutorado. E os estudos de caso sobre alguns atores sociais que desempenharam pequenos
papéis na cidade em processo de expansão mostram que, dentro de sua aparente
inexpressividade, foram fundamentais para o funcionamento do conjunto.

3.4 Serviços

Até as últimas décadas do século XIX, o setor de serviços na cidade de São Paulo
esteve circunscrito às ruas da colina central. Embora a economia urbana paulista já sofresse
uma certa influência da expansão “do sistema capitalista de produção”, desde o final dos
anos 1850 (Barbuy, 2006, p.77), as atividades relacionadas ao comércio de produtos de
naturezas diversas (alimentos, artigos de vestuário, armarinhos, ferragens, louças, móveis,
instrumentos musicais, livros, bilhetes de loteria, etc.), produzidos em território nacional ou
importados ali se concentravam. Também as atividades voltadas à prestação de serviços
como cafés, botequins, restaurantes, hospedarias e hotéis, bem como os serviços
particularmente vinculados ao comércio de importação e exportação e à circulação
financeira (casas de importação, casas comissárias e casas bancárias) além dos serviços
oferecidos por profissionais liberais (advogados, médicos e dentistas). Enfim, uma
infinidade de atividades dedicadas às prestação de serviços a terceiros localizava-se
prioritariamente nas principais ruas do Centro da cidade. Porém, desde a implantação da
estrada de ferro, em 1867, o crescente processo de expansão do espaço urbano anunciava a
tendência de espraiamento de parte dessas atividades em direção aos novos territórios
conquistados, tendo como principais eixos norteadores o tipo de uso dado a esses espaços –
se residenciais, industriais ou mistos –, e a que classes e segmentos sociais se destinava.
Nesse movimento, o bairro do Bexiga, de usos de caráter acentuadamente mistos, foi
ocupado por diferentes classes sociais, mas prioritariamente pelas camadas médias e baixas
da população. Assim, a grande massa de serviços instalados na área respondeu às
necessidades dessa população.
Apesar da diversidade de serviços identificados nos almanaques, ali se destacaram
os serviços pessoais prestados por barbeiros e cabeleireiros, sapatarias, lavanderias e
tinturarias; os serviços de saúde prestados pelas farmácias; assim como os serviços
prestados por profissionais liberais tais como advogados, engenheiros, médicos, parteiras e
dentistas que, para efeito didático, inserem-se os dois primeiros na categoria serviços
pessoais e os últimos na categoria serviços.
PROFISSIONAIS E/OU
TIPO DE SERVIÇO N.
ATIVIDADES
ADVOGADOS 51
ENGENHEIROS 19
SERVIÇOS PESSOAIS BARBEIROS E CABELEIREIROS 88
LAVANDERIAS E TINTURARIAS 19
SAPATARIAS E LOJAS DE CALÇADOS 66
DENTISTAS 26
FARMÁCIAS E FARMACÊUTICOS 25
SERVIÇOS DE SAÚDE
MÉDICOS 56
PARTEIRAS 15

Tabela 67 – Serviços pessoais e de saúde presentes no bairro do Bexiga, entre 1906 e 1931. Fonte: Almanaque Laemmert,
Acervo Digital FBN.

Embora os números apontados na tabela acima indiquem uma quantidade expressiva


de profissionais liberais (51 advogados, 19 engenheiros, 56 médicos e 26 dentistas), é
necessário destacar que sua presença nos almanaques não significava necessariamente que o
atendimento ao público se realizasse nos endereços fornecidos. Eventualmente, o próprio
anúncio fazia menção ao enderêço profissional do anunciante, quase sempre em alguma rua
do Centro. Tudo indica que a maioria desses homens apenas residia no Bexiga e que, na
realidade, o que importava era a divulgação do nome do profissinal. Especialmente no caso
dos médicos, com exceção de alguns poucos profissionais que comprovadamente atuaram
no bairro, sua presença possivelmente nem sempre significava um serviço de saúde à
disposição da vizinhança. A resposta efetiva à demanda desse tipo de serviço
frequentemente seria dada pelas farmácias, parteiras e, em casos extremos, pelo posto
médico instalado na delegacia de polícia do bairro e pela Santa Casa de Misericórdia.
Ainda que no decorrer deste trabalho os engenheiros (ou engenheiros-arquitetos
como eram costumeiramente conhecidos) tenham sido prioritariamente destacados como
profissionais vinculados à construção civil, também é possível entender essas atividades
como prestação de serviços, razão pela qual foram arrolados, neste tópico, na categoria
serviços pessoais. Por outro lado, é importante lembrar que o exercício da profissão nem
sempre esteve atrelado à indústria da construção civil, fosse na forma de projetos, fosse na
condução dos canteiros de obras. Eventualmente, havia engenheiros exercendo cargos em
órgãos públicos ou empresas privadas. Esse foi o caso, por exemplo, de José de Sá Rocha e
Paulo Alves Pimentel, engenheiros da Diretoria de Obras, de Luiz Marinho de Azevedo,
sócio da Companhia Ytuana Força e Luz, e de Carlos Gomes de Souza Shalders,
superintendente da São Paulo Light e diretor da Escola Politécnica entre 1931 e 1933. De
qualquer maneira, se pensarmos em todo o período analisado, o número desses profissionais
mostrou-se relativamente reduzido, se comparado ao número de advogados, médicos e
dentistas. Assim, é necessário relativizar a importância da sua presença no bairro do Bexiga.
Diante do quadro exposto, é possível concluir que os serviços realmente
significativos para os moradores do bairro concentraram-se nos negócios “menores”:
barbearias, sapatarias, farmácias e lavanderias. Com exceção das últimas (lavanderias e
tinturarias), em número relativamente reduzido, as demais atividades apresentaram uma
quantidade de profissionais e/ou estabelecimentos bastante expressiva.
Infelizmente, ainda que se trate de práticas fundamentais para o funcionamento da
vida urbana, talvez até pelo seu caráter aparentemente “menor”, são raros os textos,
acadêmicos e de memorialistas a fazer referências a esses ofícios. Por essa razão, na
tentativa de melhor compreender o alcance de sua presença na cidade de São Paulo, busquei
na imprensa da época eventuais informações sobre pessoas e estabelecimentos que
pudessem fornecer dados passíveis de interpretação, de maneira a esboçar um quadro
analítico mínimo dessas atividades.
No caso das lavanderias e tinturarias, as poucas ocorrências nos vinte e cinco anos
investigados podem ser atribuídas ao antigo hábito de se usar o serviço das lavadeiras, sobre
as quais falarei adiante. Dos 19 estabelecimentos identificados em todo o período, apenas 5
profissionais anunciaram-se nos almanaques entre os anos 1909 e 1918. Sua presença só se
torna mais frequente a partir do biênio 1922-23, talvez em virtude de uma mudança de
hábitos...
Em seu trabalho Comércio e vida urbana na cidade de São Paulo (2002), Marisa
Midori Deacto elaborou duas listagens contendo dados sobre os profissionais atuantes na
capital paulista. A primeira, o Indicador Profissional da Cidade de São Paulo (a partir das
listas telefônicas de 1920 e 1923), contendo um total de 202 atividades; a segunda, a Tabela
de arrecadação do imposto de profissões e indústrias contendo, para cada atividade, o
número de contribuintes e a respectiva arrecadação, nos anos 1905, 1910, 1915, 1920 e
1925. Em nenhuma dessas listagens constam atividades que se relacionem ao serviço de
lavagem e/ou higienização de roupas. No entanto, a existência desse tipo de atividade é
confirmada pelo Decreto n.2.141 de 14/11/1911 que reorganizou o Serviço Sanitário do
Estado de São Paulo, no qual o Capítulo IV é totalmente dedicado aos cuidados que as
“lavanderias públicas” deveriam ter para o desempenho satisfatório de suas funções dentro
de estritas normas de higiene. Diversos artigos e notas nos jornais da época abordaram a
necessidade de solucionar os problemas de saúde pública e de adaptação dos
estabelecimentos comerciais às normas previstas pela legislação. Em 1914, preocupado com
a disseminação da tuberculose entre as classes populares, o Dr. Clemente Ferreira publicou
uma série de artigos no jornal O Estado de São Paulo, intitulados “A prophylaxia da
tuberculose no meio proletário”, propondo uma série de medidas a serem tomadas pelas
municipalidades para a erradicação da doença255, entre essas, “a instalação de lavanderias
públicas, onde se faça a lavagem e a desinfecção das roupas do proletariado”. Assim como
nesse caso, em quase todas as matérias publicadas, a menção às “lavanderias públicas” se
restringe à questão sanitária, o que leva a crer que seu uso ainda fosse pouco difundido nas
primeiras décadas do século passado. No mais, são mencionados poucos anúncios de
produtos destinados a esses estabelecimentos, tais como máquinas, turbinas centrífugas,
sabão e anil.
Até o século XIX, a profissão de barbeiro esteve associada à prática médica da
sangria, método terapêutico utilizado no tratamento de várias doenças. Conforme Betânia
Figueiredo, “a distinção entre o barbeiro e o cirurgião processou-se ao longo do século
XIX, marcada pela formação acadêmica do cirurgião, em contraponto com a informalidade
das atividades do barbeiro”256 (grifo nosso). É provável que em 1900 os serviços dos
barbeiros já se limitassem exclusivamente à barba e ao corte de cabelo. No exemplar do
Almanaque Laemmert daquele ano, constam 17 profissionais dedicados a tais práticas, sendo
que apenas um deles se localizava no Bexiga. Já na publicação de 1908, sob o título
barbeiros e cabeleireiros, a categoria possuía cerca de 380 profissionais distribuídos por

255
O Estado de São Paulo, 27/07/1914, p.5.
256
FIGUEIREDO, B. G.: ‘Barbeiros e cirurgiões: atuação dos práticos ao longo do século XIX’. História,
Ciências, Saúde — Manguinhos, VI(2): 277-91, jul.-out. 1999. Disponível em: Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-59701999000300003&script=sci_arttext. Consulta em:
04/05/2015.
toda a cidade de São Paulo, 14 deles radicados no bairro do Bexiga. Diferentemente do que
ocorreu com as lavanderias, as barbearias compõem uma categoria profissional com um
número razoavelmente expressivo de contribuintes na Tabela de arrecadação do imposto de
profissões e indústrias, elaborada por Deacto – em 1915 foram registrados 630 barbeiros,
cuja arrecadação do respectivo imposto significou a entrada de 50:336$950 para os cofres
públicos.
Nas três primeiras décadas do século XX, as referências às barbearias nos periódicos
frequentemente se relacionam a reclamações dos proprietários contra os horários de
funcionamento impostos pelo poder público e a apelos da classe por horários mais flexíveis.
Em 1911, uma nota divulgada no jornal, destacava a importância do trabalho aos domingos:
“no Bras, aos domingos, os salões tem grande freguezia das pessoas dos sítios e localidades
distantes, que se aproveitam desse dia de descanso, para vir a cidade, e o barbeiros que não
trabalham soffrem não pequeno prejuizo”257. Contudo, apesar das constantes reivindicações,
cada vez mais as barbearias, assim como as lavanderias, estavam sujeitas às normas
municipais e estaduais, as quais legislavam sobre condições higiênicas de funcionamento em
horários pré-estabelecidos. Finalmente, em 1926 foi promulgada a Lei n.2.954
estabelecendo, entre outras coisas, que as barbearias deveriam funcionar das 7,30 às 19
horas nos dias úteis, e que nas sábados e segundas feiras que caíssem em feriados poderiam
funcionar até as 12 horas258. Assim, ainda que as reclamações persistissem nos anos
posteriores, pelo menos até meados dos anos 1930, aquela parece ter sido uma batalha
perdida, para os barbeiros do Brás e, certamente, para aqueles estabelecidos no bairro do
Bexiga.
Ao analisar as atividades identificadas na “área nobre” do bairro, no biênio 1922-23
(Capítulo 2), comentei sobre a dificuldade em definir com precisão os limites entre a
fabricação, o conserto e o comércio de calçados. Nas listagens das atividades produtivas
elaboradas a partir dos levantamentos dos anuários, entre 1906 e 1931, frequentemente
encontramos o mesmo agente divulgando seu negócio ora como sapateiro, ora como
sapataria ou ainda como casa de calçados. Ainda hoje, de acordo com o Dicionário
Michaelis, o termo “sapateiro” pode designar diferentes áreas de atuação: “aquele que faz
sapatos ou trabalha na fabricação de calçados”, “aquele que conserta calçados”,
“vendedor de calçados” ou “dono de sapataria” 259 (grifo nosso). Um trabalho interessante

257
O Estado de São Paulo, 14/02/1911.
258
O Estado de São Paulo, 08/04/1926.
259
Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-
portugues&palavra=sapateiro. Consulta em: 05/05/2015.
que abordou a construção de uma identidade coletiva por sapateiros e curtumeiros foi o
260
desenvolvido por Teresa Maria Malatian, na Revista Brasileira de História . Através de
depoimentos colhidos juntos dos operários da indústria de calçados na cidade de Franca, a
autora traz informações importantes que ajudam a resgatar o significado do trabalho
desenvolvido por esses trabalhadores:
As lembranças registradas sobre a fabricação de calçados recuam à década de 1920 e
referem-se à forma artesanal de produção, na qual a concentração de capitais era ainda
incipiente e o fator trabalho, determinante. A produção era feita em pequenas unidades
familiares, situadas nas residências dos proprietários dos negócios, com emprego reduzido
de assalariados. Era em torno do ofício que se construía a identidade do sapateiro, ainda
não definido como operário, em momentos anteriores à instalação do processo produtivo
industrial. [...] O processo produtivo baseava-se na habilidade do artesão em trabalhar o
couro utilizando instrumentos como faca, martelo, torquês, alicate e lamparina a álcool [...]
(1996, grifo nosso).

A referência no texto à “produção em pequenas unidades familiares, situadas nas


residências dos proprietários dos negócios” remete a uma realidade comum ao Bexiga
independentemente do tipo de negócio explorado – a coexistência, num mesmo espaço, de
trabalho e moradia (Schneck, 2010, p.260). Tratando-se de um bairro onde, com raríssimas
exceções, inexistiam estabelecimentos fabris é compreensível que o mesmo profissional que
dominasse um determinado ofício desenvolvesse, a par dessa atividade específica, outras
correlatas. Caso houvesse uma clientela disponível, o produto final de seu trabalho poderia
ser comercializado, caso contrário, o conserto de calçados sempre garantiria um ganho
básico para a sobrevivência familiar. A implantação de uma manufatura requeria
investimentos razoavelmente altos em insumos – maquinaria, matéria-prima e,
eventualmente, uma mão-de-obra auxiliar. Dessa maneira, é compreensível que se buscasse
explorar todas as possibilidades oferecidas pelo domínio de uma determinada atividade, de
preferência na mesma edificação da moradia, sem que houvesse necessidade de gastar mais
com o aluguel de um outro espaço. Sempre é bom lembrar que o Bexiga, embora também
ocupado por pessoas das camadas médias e altas, era um bairro de caráter marcadamente
popular, onde brasileiros e imigrantes necessitavam garantir o “ganha pão” da forma mais
eficaz possível. Nesse sentido, a coexistência de diferentes atividades desenvolvidas por
“sapateiros” num mesmo espaço é plenamente justificável. De qualquer forma, dos 66

260
MALATIAN, Teresa Maria - “Memória e identidade entre sapateiros e curtumeiros”, Revista Brasileira de
História, v.16, n.31 e 32, São Paulo, 1996, pp;193-206. Disponível em:
www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3804. Consulta em 05/05/2015.
profissionais identificados no bairro em todo o período analisado, entre sapateiros,
sapatarias e lojas de calçados, somente 8 diversificaram seus anúncios no Almanaque
Laemmert.
O único registro de memorialistas relacionado ao ofício de sapateiro foi feito por
Haim Grünspun. Tratava-se de Paulino, o sapateiro espanhol que “tinha vindo de Barcelona
com uma profissão já aprendida” (1979, p.77-78). No entanto, ao que se depreende da fala
do autor, a sapataria de Paulino se localizava fora da residência – “O Paulino vinha para
casa na hora do almoço para comer feijão com arroz [...]” –, provavelmente numa sala de
frente, com portas para a rua, diferentemente dos demais sapateiros cujas oficinas se
posicionavam nos porões:
De todos os sapateiros que existiam no Bexiga, o Paulino, apesar de sentar numa banca bem
baixinha tinha a sapataria com teto mais alto. Era uma porta com duas folhas de madeira
grossa e descascada que ele escancarava e trabalhava cantando [...] Os outros sapateiros
tinham suas bancas em buracos os mais estranhos, às vezes abaixo do nível da rua e a gente
tinha que se abaixar para entregar ou receber sapato.(Grünspun, 1979, p.77-78, grifos
nossos).

Quanto à prática profissional de Paulino, a fala do memorialista não esclarece se


Paulino apenas consertava sapatos ou se também os fabricava. Revendo os anúncios que
envolveram algum tipo de atividade relacionada a calçados no Almanaque Laemmert nos
anos de 1906 e 1927, verifica-se que no primeiro ano as ruas do Triângulo contavam com 17
lojas de calçados; já no final dos anos 1920, a região central da capital paulista, incluído ai o
Centro novo, contava com aproximadamente 54 lojas especializadas no comércio de
calçados – isso sem contar a disseminação desse tipo de atividade por todos os bairros da
cidade. Infelizmente, afora os casos de fabricação discriminados numa categoria à parte, os
anúncios investigados não distinguem quando se tratava de comércio ou simples conserto de
calçados. De qualquer maneira, possivelmente com o passar dos anos e o aumento de
estabelecimentos dedicados ao comércio, tenha havido uma tendência à especialização em
cada uma dessas áreas.
Em relação às farmácias, ainda que o número total de 25 casas identificadas no
Bexiga ao longo do período investigado tenha sido relativamente restrito, elas certamente
tiveram uma função significativa na vida dos moradores do bairro. Entretanto, antes de
aprofundar a análise dessa modalidade de atendimento à saúde é importante atentar para as
transformações pelas quais passaram os profissionais envolvidos e o comércio de
medicamentos na cidade de São Paulo, o que implica nas transformações das próprias
práticas farmacêuticas e sanitárias, ao longo do tempo. Ainda no Brasil colonia, em razão da
falta generalizada de médicos em território “brasileiro”, os cirurgiões-barbeiros – uma
categoria que unia na mesma pessoa diferentes fazeres (barbeiros, dentistas e cirurgiões) –
parecem ter sido os principais responsáveis pela saúde dos moradores da colonia portuguesa
na América. Já os boticários, ao menos em teoria, seriam os responsáveis pela produção de
remédios a partir de fórmulas prescritas por médicos e cirurgiões. No entanto, o trabalho
desenvolvido por esses profissionais coexistiu com os conhecimentos adquiridos dos
indígenas sobre o poder das ervas medicinais, e com as práticas desenvolvidas por
curandeiros africanos (Edler, 2006, p.26 a 28). Entrado já o Império, pouca coisa mudou
neste cenário e as práticas de cura populares, a partir da utilização de remédios caseiros à
base de ervas medicinais, mantiveram-se amplamente utilizadas pela população. Assim, até
as últimas décadas do século XIX, cirurgiões-barbeiros, boticários, práticos em farmácia e
curandeiros alternaram-se no atendimento à população.
É difícil, senão impossível, falar sobre a atuação de farmacêuticos em São Paulo sem
levar em conta as políticas sanitárias empreendidas pelo poder público naquele momento.
Em São Paulo, o aumento da população com a entrada maciça de imigrantes a partir dos
anos 1880 e a consequente carência de moradias em condições de salubridade para dar
abrigo aos novos habitantes, foram fatores decisivos para a eclosão de surtos epidêmicos,
tais como a febre amarela, a varíola e a febre tifóide. A inexistência de políticas públicas que
dessem conta dos problemas causados pela propagação de doenças entre imigrantes e
nacionais colocava em risco a política imigrantista do Estado e, por extensão, a própria
economia cafeeira. De outro lado, a população que no seu dia a dia devia lidar com as
mazelas da expansão urbana descontrolada e sem uma assistência social correspondente,
buscava soluções dentro da sua própria “lógica”, recorrendo ao atendimento possível de
práticos e curandeiros.
Diante do agravamento das condições sanitárias e da persistência de práticas
consideradas atrasadas, medidas foram tomadas pelo poder público no sentido de
regulamentar e fiscalizar os serviços farmacêuticos. Ainda na última década do século XIX,
um capítulo inteiro do Decreto n.394, foi dedicado à regulamentação do funcionamento de
farmácias e da prática farmacêutica261. Deste documento, destaco particularmente os
seguintes artigos:

261
Decreto n.394, de 07/10/1896, aprovando o regulamento do Serviço Sanitário. Capítulo II, artigos 54 a 92.
Disponível em: http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1896/decreto-394-07.10.1896.html.
Art.54 – Só é permettido o exercício da pharmacia ás pessoas que se mostrarem habilitadas
por titulo conferido ou reconhecido por alguma das Faculdades do Medecina ou Escholas
de Pharmacia do Brazil [...].
Art.64 – Exceptuados os remedios de uso ordinario e inoffensivo consignados na tabella
approvada pelo governo, nenhum outro medicamento ou preparado poderá ser vendido pelo
pharmaceutico, ou fornecido a quem quer que seja sem receita de medicos de
competentemente habilitados [...].
Art.77 – Nas localidades em que não houver pharmacia dirigida por pharmaceutico, o
director do serviço sanitario poderá conceder licença a praticos para abrirem pharmacia
[...].
Art.86 – Só aos pharmaceuticos diplomados e aos licenciados compete direito de requerer,
preparar e expor á venda especialidades pharmaceuticas de invenção propria ou alheia [...]
(grifos nossos).

Mais tarde, a Lei n.1.596, de 29 de dezembro de 1917262, especificou como seria a


fiscalização desses estabelecimentos:
Art.48 – O serviço de inspecção das pharmacias, drogarias, laboratórios, fabricas de
productos chimicos e pharmaceuticos [...] será feito pelos inpectores sanitarios nos
respectivos districtos e nas localidades onde se acharem em commissão e por tres
inspectores especiaes (medicos ou pharmaceuticos), em todo o territorio do Estado.
Art.63 – Os officiaes de pharmacias deverão prestar exames praticos perante uma banca
nomeada pela Directoria Geral, e, no caso de approvação, receberão o titulo de “official
de pharmacia” (grifos nossos).

Entretanto, a falta de habilitação profissional prevista pela legislação parece não ter
incomodado a população, para quem farmacêuticos práticos ou curandeiros se mantiveram
como uma solução para os problemas de saúde. Em dezembro de 1938, uma nota publicada
em O Estado de São Paulo, intitulada “Pharmaceuticos Curandeiros”, acerca da
proximidade do verão e do aumento de certas doenças, atribuía a maioria das intoxicações
ao “mal hábito” da população “de consultar, para resolver os pequenos distúrbios
intestinais das crianças, os pharmaceuticos, as parteiras ou mesmo os vizinhos. Ora, tanto
os pharmaceuticos como as parteiras, não estão habilitados para receitar [...]”263 (grifos
nossos).

262
Disponível em: http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1917/lei-1596-29.12.1917.html.
263
O Estado de São Paulo, 01/12/1938.
Essa “desconsideração” popular em relação aos profissionais qualificados,
possivelmente tenha raizes no caráter restrito das práticas sanitárias pós republicanas. De
acordo com Telarolli Jr.,
No início do período republicano, a legislação estadual previa apenas o atendimento aos
acidentados e indigentes, e exclusivamente na capital, cabendo aos médicos da polícia
acudir os feridos e abandonados nas ruas de São Paulo, nas situações de emergência (São
Paulo, 1913). A assistência médica e a cura individual não faziam parte do arsenal de
práticas sanitárias do modelo campanhista-policial [...]. A assistência aos doentes foi um
assunto secundário na organização sanitária durante a Primeira República,
situação atenuada na década de 1920, mas que só mudou realmente de perfil com o
desenvolvimento da medicina previdenciária, na década seguinte (1996, p.273, grifos
nossos).

Enquanto essa situação não se efetivou, a importância do atendimento dado pelos


farmacêuticos, habilitados ou não, foi inconteste. Sempre que houvesse necessidade de
atendimento de urgência, a farmácia mais próxima seria uma opção viável.
Por outro lado, em momentos de crises epidêmicas as farmácias eram chamadas a
contribuir com a profilaxia das doenças. Um bom exemplo é o caso do Edital publicado pela
Diretoria do Serviço Sanitário, em 1912, informando o público sobre as farmácias da cidade
que aplicavam vacinas contra a varíola, gratuitamente. Entre os estabelecimentos
relacionados, quatro se localizavam no Bexiga: as Farmácia Ítalo-Brasileira e Nossa
Senhora do Rosário, na rua Conselheiro Ramalho, a Farmácia do Sol, na rua São Domingos
e a Farmácia Vaz, na rua Santo Antônio264.
O atendimento nas farmácias também passava pelo dia a dia, fato eventualmente
documentado pelos jornais. Poderia ser o caso de contendas que resultassem em feridos,
que quando não fossem encaminhados ao posto de assistência policial, o seriam para a
farmácia mais próxima, como ocorreu com Paulo dos Santos, morador na rua Rui Barbosa
n.96, ferido pelo italiano Carmenucci. De acordo com a nota publicada, “o offendido foi
conduzido à Pharmacia Ítalo-Americana, de propriedade do Sr. Raphael Bertoloti, onde
recebeu os primeiros curativos”.

Propositalmente, deixamos para o final deste tópico a apreciação dos serviços


prestados pelos inúmeros personagens anônimos que talvez ignorando as supostas vantagens
de visibilidade oferecidas pelos anuários, colaboraram com o seu trabalho para que a vida na

264
O Estado de São Paulo, 24/10/1912.
cidade seguisse seu curso. Não há como ignorar a importância dos serviços prestados pelas
lavadeiras, empregadas domésticas, e até pelas parteiras “práticas”, sem formação formal.
Ainda que ausentes das páginas de almanaques, estatísticas oficiais e quaisquer outras
formas passíveis de quantificação, seus serviços foram fundamentais para o “bom
andamento” da vida urbana no Bexiga, assim como na cidade de São Paulo. Prova disso, são
os anúncios nos jornais solicitando prestadores de serviços domésticos, tais como lavadeiras,
engomadeiras, cozinheiras e criadas.
São frequentes também os anúncios oferecendo os préstimos profissionais de criadas
e lavadeiras em geral. Contudo, talvez sejam mais frequentes as notícias divulgadas nas
páginas policiais dos jornais da época, geralmente associando a presença dessas
profissionais a comportamentos “desviantes”.

Figura 136 – O Estado de São Paulo, 12/03/1913.


Figura 135 – O Estado de São Paulo, 16/01/1912.

Figura 137 – O Estado de São Paulo, 09/08/1906.

Figura 138 – O Estado de São Paulo, 19/12/1914.

Figura 140 – O Estado de São Paulo, 23/07/1913.

Figura 139 – O Estado de São Paulo, 22/12/1902.

Figura 141 – O Estado de São Paulo, 29/10/1929.


De todo o rol de profissionais que desempenharam atividades produtivas de
maneira informal na cidade, as lavadeiras parecem ter sido aquelas que mais visibilidade
tiveram. São bem conhecidas as imagens deixadas por fotógrafos como Marc Ferrez,
Guilherme Gaensly e Militão, que documentaram a cidade em fins do século XIX e
primeiras décadas do XX.

Figura 142 – Algumas lavadeiras em atracadouro do rio Tamanduateí, c.1890, Marc Ferrez. Fonte: Instituto Moreira
Salles265.

Figura 143 – Lavadeiras à beira do rio Tamanduateí, fotografadas por Guilherme Gaensly, c.1900. Fonte:
sampahistorica.files.wordpress.com266.

No entanto, ao lado das imagens um tanto idílicas desses fotógrafos, as observações


feitas por memorialistas, como Geraldo Sesso Júnior, não deixam dúvidas quanto à ideia

265
Imagem disponível em: https://br.pinterest.com/pin/547117054705513086/. Consulta em: 24/02/2016.
266
Imagem disponível em: https://br.pinterest.com/pin/268667933994613703/. Consulta em: 24/02/2016.
que se fazia dessas profissionais, associando-as muitas vezes a comportamentos desviantes
(desordem, alcoolismo, roubo e prostituição) e a práticas que contrariavam a ideologia
higienista da época:
Acontecia que muito antes de se acomodarem, cada qual em seus lugares, já se iniciava a
discussão que era acompanhada de impropérios e palavrões e terminava em brigas – tudo
isso para a disputa de melhores lugares. Raro o dia em que a polícia não era chamada a
intervir, havendo, às vezes, até necessidade de as autoridades realizarem alguma prisão,
principalmente quando se tratava de lavadeiras mais exaltadas, que brigavam como
homem (Sesso Jr., 1983, p.79. In Santos, 1998, p.99-100).

Os fatos citados nas pequenas notas do jornal O Estado de São Paulo, onde o
alcoolismo, a histeria e as intrigas são vistos como causas geradoras de ocorrências
médico-policiais, aconteceram em momentos diferentes e locais distantes das várzeas dos
rios, entretanto só confirmam a permanência do estereótipo.
Haim Grünspun demonstra que o trabalho das lavadeiras se mantém nos anos 1930,
não por acaso, em um bairro predominantemente ocupado pelas camadas médias e baixas
da população:
Esta era uma das profissões mais comuns no Bexiga: lavar roupa para fora. Quando as
freguezas era do próprio Bexiga ganhava-se uma miséria porque todos sabiam do preço.
Mas quando as freguezas eram de fora do bairro, como Morro dos Ingleses ou Paraíso,
dava para ganhar bem (1979, p.32, grifo nosso).

O memorialista esclarece que o trabalho dessas profissionais também era utilizado


pelos moradores mais ricos de bairros vizinhos, Morro dos Ingleses e Paraíso. Em um tom
menos ácido do que as notas jornalísticas de O Estado e do texto de Geraldo Sesso,
Grünspun não se furta a falar sobre o convívio entre as lavadeiras do bairro:
Quando num mesmo cortiço havia mais de uma lavadeira para fora, os dias de lavagem
eram diferentes [...] Tudo isto na santa paz do senhor? Nada disso. Tudo com briga e
muita discussão e xingamento como rotina (1979, p.33).

A fotografia de autor desconhecido (Figura 144), elaborada provavelmente em


função da abertura da avenida Anhangabaú (atual Nove de Julho), confirma a presença das
lavadeiras no Bexiga. No centro da imagem, à direita do córrego da Saracura, as roupas nos
varais e nos quaradouros permitem a visualização do trabalho dessas profissionais. A mesma
realidade se repete nas fotos de Geraldo Horácio de Paula Souza (Capítulo 2, Figuras 108 e 109),
realizadas quando foi diretor do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo 267.

Figura 144 – Neste recorte de uma fotografia do Vale da Saracura, provavelmente por ocasião dos preparativos para a
abertura da avenida Anhangabaú (atual Nove de Julho) que iria ligar o centro ao sul da cidade, as roupas nos varais e nos
quaradouros permitem a visualização do trabalho das lavadeiras à beira do córrego do mesmo nome. Autoria
desconhecida, 1926. Fonte: Acervo Fotográfico do Museu da Cidade de São Paulo/SMC/SP.

Aparentemente menos estigmatizadas que as lavadeiras, as criadas, copeiras e


cozinheiras também fazem parte desse universo do trabalho doméstico informal. Não é
demais lembrar que desde o período colonial o trabalho braçal, doméstico ou não, era visto
pelas classes dominantes como uma ocupação “menor” que cabia a escravos ou
assalariados (por sua vez, também tão invisíveis que as fontes documentais raramente se
reportam à sua presença). Com a abolição da escravidão, a dependência do trabalho
doméstico transferiu-se para os trabalhadores assalariados, sendo preferível que fossem
estrangeiros (Reis Filho, 2004, p.44), como sugerido pelo anúncio da Figura 135, onde
preferia-se que a lavadeira fosse “estrangeira”.
Entrado o século XX, a escravidão havia sido extinta e o sistema político brasileiro
transformado em República. Porém, as práticas sociais costumeiras (assim como as
mentalidades) se mantinham muito próximas daquelas dos tempos coloniais e imperiais. Se
até então o trabalho braçal era visto como algo depreciativo – função que cabia a escravos
ou libertos, negros ou mulatos – agora, de fato, pouca coisa havia mudado em termos de
como se pensava o trabalho. A diferença, talvez a única, era a intenção das classes
dominantes de “europeização” dos costumes e branqueamento da população, o que incluía

267
CAMPOS, Cristina de – O sanitarista, a cidade e o território. A trajetória de Geraldo Horácio de Paula
Souza em São Paulo. 1922-1927. In Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
da FAU-USP, v.11, 2002. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/posfau/article/view/47530.
a classe trabalhadora, quaisquer que fossem as áreas de atuação, inclusive o trabalho
doméstico. Os anúncios, ora oferecendo serviços profissionais, ora solicitando
empregados, são bastante claros a esse respeito.
Embora as parteiras estejam entre os profissionais da saúde que divulgaram seus
serviços no Almanaque Laemmert, há boas razões para incluí-las também entre os
chamados trabalhadores invisíveis. A profissão de parteira foi, desde tempos remotos,
praticada por mulheres leigas que faziam o atendimento, domiciliar ou em suas próprias
residências, a parturientes268. Porém, de acordo com Maria Lúcia Mott, desde o final do
século XIX, as tentativas oficiais de controle da prática foram constantes. Assim, a
inserção dessa categoria profissional entre os profissionais liberais identificados no bairro
do Bexiga deve-se à exigência, por parte do poder público, da necessidade de formação
formal específica para o exercício da profissão. Já em 1866, o Decreto n.9.554 determinava
que essas profissionais possuíssem “diploma conferido ou validado pelas duas faculdades
de Medicina existentes no Império, a do Rio de Janeiro e da Bahia”. Posteriormente,
novas leis e decretos foram sendo elaborados, mas para o período enfocado neste trabalho,
destaco a Lei n.665, de 06/09/1899, onde o Art.4º prescrevia que “Emquanto (sic) não
existirem no Estado cursos especiaes de arte dentaria e partos, poderão exercer
livremente a sua profissão os dentistas e parteiras não diplomadas, que prestarem exame
de habilitação perante uma commissão de profissionaes diplomados”; e a Lei n.1.596, de
29/12/1917 que permitia o exercício da profissão “ás pessoas diplomadas pela Escola de
Parteiras do Estado de S. Paulo, ou que se mostrarem habilitadas por titulo conferido
pelas Faculdades de Medicina ou escolas nacionaes, reconhecidas pelo Ministerio do
Interior” 269.
Porém, a preocupação com a formação de profissionais qualificadas para o
enfrentamento das questões de saúde pública face ao aumento da população urbana e à
inexistência de condições sanitárias adequadas à elevada taxa de mortalidade que
acompanhava o crescimento populacional, representava apenas o lado oficial da questão.
Do ponto de vista da população, as parteiras eram, tradicionalmente, figuras fundamentais

268
De acordo com Rodolpho Telarolli Jr. em sua tese de doutorado, entre 1901 e 1909, o percentual de
nascimentos em domicílio na capital paulista variou entre 97,4 e 96,4%. Tabela 6 – Local de Nascimento no
Estado de São Paulo (%), 1901, 1906 e 1909. In TELAROLLI JR., Rodolpho. Poder e saúde: a República,
a febre amarela e a formação dos serviços sanitários no Estado de São Paulo. Tese de Doutorado
apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, 1993, p.88.
269
Informações disponíveis em: MOTT, Maria Lúcia. “Fiscalização e formação das parteiras em
São Paulo (1880-1920)”. Revista da Escola de Enfermagem/USP, v.35, n, 1, p. 46-53,
mar. 2001; http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1899/lei-665-06.09.1899.html; e
http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1911/decreto-2141-14.11.1911.html. Consulta em
28/04/2015.
na assistência ao parto, independentemente da classe social a que pertencesse a parturiente.
Acresce que a posição social das parturientes definia de antemão o tipo de profissional que
iria fazer o atendimento. Parteiras em posse de diplomas reconhecidos oficialmente,
certamente destinavam-se às camadas sociais que dispunham de meios para pagar os
serviços cuja qualificação provavelmente significava o encarecimento dos custos. Nos
bairros populares, certamente a realidade era outra. Conforme testemunhado por Jacob
Penteado, no Belenzinho, “naquele tempo, não havia parteiras diplomadas, apenas
práticas, ‘curiosas’, mulheres que entendiam algo sobre o divino mistério da reprodução
da espécie e ajudavam crianças a virem ao mundo” (2003, p.215-219). À exemplo do
Belenzinho onde, por volta de 1910, um parto assistido por uma parteira prática custava
dez mil réis, a realidade do Bexiga não devia ser muito diferente. Ali,
[...]ninguém se importava com a superpopulação. Tanto não se importava que o número
de crianças aumentava a olhos vistos e não havia casa, maloca ou cortiço onde não
existisse pelo menos uma mulher barriguda. [...] O parto era feito, na maioria das vezes,
em casa por parteira e outras vezes já na Santa Casa. (Grünspun, 1979, p.109-110).

Mesmo correndo o risco de não ter abordado todas as formas de serviços informais
existentes no bairro, os quais certamente envolveram outras categorias, espero ter
fornecido um cenário contendo as atividades mais significativas, aquelas que
representaram papel determinante no cotidiano dos moradores do Bexiga e dos bairros
vizinhos. Reafirmo a importância de se lançar luzes sobre uma realidade que até aqui se
manteve obscura. Nesse sentido é que, acima de tudo, procurei dar visibilidade aos papéis
representados pelos pequenos coadjuvantes da cena paulistana que, embora menores,
foram fundamentais.

3.5 Oficinas e manufaturas

De certa maneira, ao abordar algumas das principais formas de prestação de


serviços existentes no bairro, caso específico das sapatarias, já me referi parcialmente às
oficinas e manufaturas. Porém, é necessário conceituar o significado desses espaços de
trabalho, ainda que de forma sucinta. Originalmente, a produção de qualquer tipo de artigo
realizava-se em oficinas, onde o artesão era independente e proprietário de suas ferramentas –
meios de produção. Posteriormente, o aumento da demanda (ou a intenção de ampliar o
negócio) terminaria por levar ao surgimento da produção em maior escala – as
manufaturas. Já nas oficinas manufatureiras, onde os envolvidos na produção não eram
necessariamente proprietários dos meios de produção, o trabalho realizava-se com horários
fixos e supervisão de terceiros270. Um exemplo desse processo foi dado pelo texto de
Teresa Maria Malatian, sobre os sapateiros de Franca. Conforme a autora:
A indústria de calçados, bem como a têxtil de algodão e a fabricação de chapéus,
implantou-se no Brasil pioneiramente, sendo acompanhada pela instalação de curtumes.
Em seu estágio inicial caracterizou-se pela forma artesanal, operada principalmente por
um oficial que congregava em pequenas oficinas três ou quatro auxiliares (1996, p.195,
grifo nosso).

Independentemente da especificidade da categoria abordada pela autora, ela ajuda a


esclarecer como e onde se realizavam aqueles processos produtivos. Assim, o exemplo
fornecido por Malatian ajuda a compreender o alcance e o caráter de sua presença no
bairro do Bexiga.
No decorrer deste trabalho, ao me reportar aos setores produtivos identificados nas
três áreas do Bexiga, procurei conceituar as atividades ali desenvolvidas de acordo com as
categorias identificadas – alimentação, vestuário, saúde, transportes etc. –, e expostas no
Anexo 2, Atividades Identificadas (1906-1931). Segmentos produtivos que deveriam estar
vinculados aos setores secundários (comércio e serviços) e terciário (indústria e
manufaturas), foram reunidos em classificações mais abrangentes, de acordo com as
necessidades e interesses do mercado consumidor do bairro e arredores. Dessa maneira,
busquei contornar as dificuldades impostas pela diversidade de atividades encontradas num
mesmo estabelecimento sem, contudo, ignorar sua existência e importância dentro da
realidade investigada. Agora, ao traçar o perfil dos principais setores produtivos
identificados no bairro do Bexiga, sempre que possível, procurei respeitar aquela
classificação, no que toca à produção de artigos a serem comercializados (alimentos e
bebidas, artigos de vestuário e acessórios, materiais para a construção civil, mobiliário,
jóias, caixas de papelão, cestos, louças de barro, velas, cera, sabão, cigarros, brinquedos,
etc.), como também àquelas voltadas a algum tipo de prestação de serviços (conserto de
veículos, máquinas e calçados; carpintarias e marcenarias; ferrarias, serralherias, funilarias,
etc.). Nos dois casos, trata-se de atividades que, eventualmente, envolvem a necessidade de
instalações físicas específicas para o exercício da atividade: barracões, galpões e depósitos.
Enquanto o Almanaque Laemmert forneceu as indicações acerca dos negócios do
bairro, os projetos arquitetônicos contidos nas solicitações de licença para construir e/ou
270
Disponível em: http://oficinadohistoriador.blogspot.com.br/2013/08/evolucao-das-oficinas-
artesanais.html.
reformar prédios da Série Obras Particulares indicaram a intenção de instalação de
estabelecimentos voltados à fabricação de algum tipo de produto, ou à prestação de algum
tipo de serviço. Nas duas situações – fabricação e prestação de serviços – essas solicitações
possibilitam uma aproximação mais “real” do caráter de tais negócios.
Em se tratando das Obras Particulares, embora o número de casos seja bastante
restrito em relação às demais fontes, localizei 6 processos interessantes, nos quais o
solicitante indica o número de operários que trabalhavam na oficina.
HISTÓRICO DA N.
LOGRADOURO N. PROPRIETÁRIO DATA
SOLICITAÇÃO OPERÁRIOS
ABOLIÇÃO 31 A JANUARIO NOROLA, OU LICENÇA PARA FUNCIONAMENTO 4 06\04/1922
(G. NEVOLA & CIA.) DE MOTOR EM FÁBRICA DE
CHAPÉUS PARA HOMENS
BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 57 IRMÃOS HASHISH LICENÇA PARA FUNCIONAMENTO 25 17/05/1923
DE FÁBRICA DE CAIXAS DE
PAPELÃO
BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 170 HENRIQUE DE LEO PAGAMENTO DE IMPOSTO DE 4 21/10/1920
FÁBRICA DE CEROULAS, MOVIDA
A ELETRICIDADE
GENEBRA 90 PROTS & CIA. PAGAMENTO IMPOSTO DE 3 30/04/1919
INDÚSTRIA E PROFISSÕES DE
OFICINA DE ESTAMPARIA SOBRE
MADEIRA
MAJOR DIOGO 34 F. NICOLA INFANTE INSTALAÇÃO DE MOTOR EM 7 17/04/1923
DOCES BELLA VISTA FÁBRICA DE DOCES
MAJOR DIOGO 68 NAIM DIAB MALUF LICENÇA PARA FUNCIONAMENTO 10 05/01/1921
DE FÁBRICA DE MEIAS

Tabela 68 – Solicitações à Diretoria de Obras com informações quanto ao número de operários empregados. Fonte:
Série Obras Particulares, AHSP.

Informações como essas poderiam indicar, se não as dimensões das oficinas, as


intenções dos peticionários em relação ao seu negócio. De qualquer maneira, dos seis
processos, localizei notícias de que apenas duas empresas se mantiveram nos anos
posteriores: a fábrica de chapéus de Januário Norola (ou G. Nevola), ativa até 1930271, e a
Fábrica de Doces Bela Vista, de Nicola Infante.
O alcance da Série Obras Particulares, assim como do Almanaque Laemmert, é
relativamente limitado, já que as informações dadas pelos requerentes não esclarecem as
dimensões dos negócios. A solução parcial desse problema foi encontrada no Imposto de
Comércio e Indústria lançado nos anos de 1923 e 1933. Ali estão arrolados, de acordo com
os distritos da cidade: a) os nomes dos contribuintes e respectivos endereços; b) as
atividades; c) e os valores a serem pagos nos anos em questão. Foram justamente essas
informações que viabilizaram uma avaliação mais precisa do “poder de fogo” dos
proprietários de oficinas e manufaturas. A relação dos proprietários indicava – além do
nome, endereço e imposto a pagar –, também uma classificação do negócio, de acordo com

271
De acordo com o Diário Oficial do Estado de São Paulo, de 10/12/1930, naquela data foi publicada a
“Prestação de contas” referente à falência da firma G. Nevola & Comp. Disponível em:
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/3917909/pg-10336-diario-oficial-diario-oficial-do-estado-de-sao-paulo-
dosp-de-10-12-1930/pdfView.
o tamanho do mesmo. Assim, temos que diferentes estabelecimentos dedicados às vezes ao
mesmo tipo de negócio, a depender do porte, pagavam diferentes valores. Por outro lado, o
lançamento dos impostos realizado em 1933 permitiu uma identificação mais detalhada do
tipo de negócio exercido pelos contribuintes. Essas informações foram particularmente
úteis no caso dos sapateiros, onde a coluna “ramo de negócio” fornece uma distinção mais
exata entre a fabricação e o conserto de calçados.
As solicitações contidas nas Obras Particulares costumam indicar a intenção de
estabelecer um novo negócio, o aumento, ou ainda o incremento de negócios existentes
através da implantação de motores elétricos; os almanaques indicam os negócios
efetivamente divulgados por seus proprietários; já os impostos, além de dimensionar o
porte dos negócios – através dos valores a serem pagos é possível ter uma idéia se tratava-
se de simples manufaturas, ou indústrias, na acepção própria da palavra –, também podem
confirmar sua permanência através do período investigado.
Tendo em mãos diferentes documentos (Obras Particulares, Almanaque Laemmert
e os Impostos de Comércio e Indústria), busquei, na medida do possível, cruzar as
informações fornecidas pelas fontes primárias. Dessa maneira, foi possível elaborar um
quadro mais completo das oficinas e manufaturas (Tabela 69), o que talvez confira aos
setores de produção e serviços existentes no bairro uma função/papel mais importante do
que o imaginado no início deste trabalho.
TOTAL INÍCIO
ÁREA DE ATIVIDADE RAMO DE NEGÓCIO ATIVIDADES ATIVIDADES %
(1906-1933) 1931-1933
ALFAIATES 47 16 34,04
OFICINAS DE COSTURA/MODISTAS 29 13 44,82
FÁBRICAS DE ROUPAS EM GERAL (MEIAS, CEROULAS, 11 - -
CAMISAS, ETC.)
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS
FABRICAS DE CALÇADOS (SAPATOS E CHINELOS) 21 5 23,80
CONSERTO E MANIPULAÇÃO DE CALÇADOS 46 42 91,30
FABRICAÇÃO E CONSERTOS DE ACESSÓRIOS (CHAPÉUS, 22 6 27,27
BONÉS, BOLSAS E MALAS)
SUBTOTAL 176 82 46,59
FABRICAÇÃO DE CAIXAS E CAIXÕES (PAPELÃO, MADEIRA) 19 5 26,31
FABRICAÇÃO DE LOUÇAS DE BARRO 5 - -
FABRICAÇÃO DE TECIDOS 4 - -
FABRICAÇÃO DE PRODUTOS DIVERSOS (ABAJOURS, ANIL, 21 5 23,80
BALANÇAS, BILHARES, BOTÕES, BRINQUEDOS, CAMAS E
FABRICAÇÃO DE PRODUTOS
MÓVEIS DE FERRO, CERA, CESTOS DE VIME, CUTELARIA,
E SERVIÇOS DIVERSOS
FITAS P/CINEMA, GRAXA P/CALÇADOS, TAPEÇARIAS E
VELAS, ETC.) E ESTOFADORES
JOALHERIAS, RELOJOARIAS E OURIVESARIA 11 4 36,36
PINTORES, DECORADORES, ESCULTORES, ESTATUÁRIOS E 12 4 33,33
272
FABRICAÇÃO DE LADRILHOS, AZULEJOS E MOSAICOS

272
Tendo em vista se tratar de atividades afins, reunimos na mesma categoria os fabricantes de produtos
destinados ao setor da construção civil (ladrilhos, azulejos e mosaicos), assim como os profissionais
envolvidos numa fase posterior do mesmo setor (pintores, decoradores, escultores e estatuários). Há,
inclusive, um caso específico em que o mesmo negócio envolve tanto a fabricação desses produtos, quanto
fornece alguns desses profissionais (estucadores e escultores). Trata-se da firma de propriedade de Ulysses
Pelliciotti, localizada na Av. Brigadeiro Luís Antônio, 86 (antigo n.50).
OFICINAS MECÂNICAS PARA CONSERTO DE AUTOMÓVEIS 17 13 76,47
OFICINAS PARA FABRICAÇÃO E CONSERTO DE CARROÇAS 2 - -
ELETRICISTAS E CONSERTO DE APARELHOS ELÉTRICOS 4 4 100
SUBTOTAL 96 35 36,45
CARPINTARIAS 26 12 46,15
CARPINTARIAS, MARCENARIAS E FÁBRICAS DE MÓVEIS 32 9 28,12
MARCENARIAS E OUTROS CARPINTARIAS E MARCENARIAS 16 - -
TRABALHOS EM MADEIRA OUTROS (ENTALHADOR, LUSTRADOR DE MÓVEIS, ESTAMPA 3 - -
SOBRE MADEIRA, ETC.)
SUBTOTAL 77 21 27,27
FERREIROS E SERRALHEIROS 16 4 25
FUNILEIROS E LATOEIROS 13 4 30,76
FUNILEIROS, BOMBEIROS HIDRÁULICOS E ENCANADORES 22 15 68,18
FUNILEIROS, LATOEIROS, BOMBEIROS HIDRÁULICOS E 5 1 20
FERREIROS, SERRALHERIAS ENCANADORES
E TRABALHOS EM METAL GALVANIZAÇÃO, NIQUELAÇÃO, DOURAÇÃO E PRATEAÇÃO 4 3 75
CUNHAGEM DE EM MEDALHAS, CARIMBOS E SINETES E 2 1 50
GRAVAÇÃO EM METAL
CALDEIREIROS 1 - -
FUNILEIROS, BOMBEIROS HIDRÁULICOS E SERRALHEIROS 1 - -
SUBTOTAL 64 28 43,75
TIPOGRAFIAS 14 6 42,85
ENCADERNAÇÃO 2 1 50
ARTES GRÁFICAS TIPOGRAFIAS E ENCADERNAÇÃO 1 - -
LITOGRAFIAS E TIPOGRAFIAS 1 - -
LITOGRAFIAS 3 1 33,33
SUBTOTAL 21 8 38,09
FÁBRICAS DE DOCES 5 - -
FÁBRICAS DE BEBIDAS (CEVERJA, VINHO E AGUARDENTE) 3 1 33,33
ALIMENTAÇÃO
FÁBRICAS DE MASSAS ALIMENTÍCIAS 5 - -
FÁBRICAS DE EMBUTIDOS (LINGUIÇAS, SALSICHAS, ETC.) 4 1 25
SUBTOTAL 17 2 11,76
TOTAL 451 157 34,81

Tabela 69 – Ocorrência das atividades manufatureiras identificadas entre 1906 e 1933, e os segmentos que apresentaram
acréscimos mais significativos em relação ao período, de acordo com a Série Obras Particulares, o Almanaque
Laemmert e o Imposto do Comércio e Indústria. Fontes: Obras Particulares (1906-1923), Almanaque Laemmert (1906-
1931), e Imposto do Comércio e Indústria (1923 e 1933).

A multiplicidade e o elevado número de atividades/estabelecimentos, ambos já


percebidos por ocasião do levantamento de dados dos almanaques, são aspectos que
ressaltam da tabela. Entre os 451 casos identificados, constata-se a liderança do setor de
vestuário e acessórios (176 casos); seguido pela produção de artigos e prestação de
serviços diversos (96 casos); pelos ofícios associados ao trabalho com a madeira (77
casos); pelos ofícios associados ao trabalho com metal (64) e; por fim, em números bem
inferiores, as artes gráficas (21) e a produção de alimentos (17). Entretanto, o número total
de negócios deve ser visto com reservas. Em praticamente todas as atividades produtivas
designadas como oficinas e manufaturas, inúmeros profissionais concentravam num
mesmo espaço diferentes fazeres, geralmente relacionados entre si, sob a mesma razão
social. Carpinteiros também podiam se anunciar como marceneiros, se associando à
fabricação e comércio de móveis; ferreiros e serralheiros frequentemente atuavam como
funileiros, latoeiros e bombeiros hidráulicos (encanadores); oficinas de costura e modistas,
além de produzir roupas e acessórios também comercializavam seus produtos; chapeleiros
e sapateiros acumulavam as atividades de fabricação, conserto e venda de chapéus e
calçados; o mesmo ocorrendo com os fabricantes de alimentos.
Embora no cômputo total os números se mostrem bastante expressivos, é
necessário levar em conta que o anuário de 1931, assim como a cobrança do Imposto de
Comércio e Indústria relativa a 1933, demonstraram um aumento consistente da presença
de certos profissionais no início dos anos 1930. Na coluna indicativa das atividades que,
supostamente, iniciaram suas atividades entre 1931 e 1933, destacam-se os segmentos
manufatureiros que apresentaram um acréscimo de profissionais mais significativo em
relação ao período compreendido entre 1906 e 1930:
- Vestuário e acessórios – conserto de calçados e oficinas de costuras, respectivamente,
com um acréscimo de 91,30% e 44,82%, em relação ao total de estabelecimentos no
período.
- Fabricação de produtos e serviços diversos – oficinas mecânicas para conserto de
automóveis e eletricistas e conserto de aparelhos elétricos, respectivamente, com 76,47%
e 100%, em relação ao total de estabelecimentos no período.
- Ferreiros, serralheiros e outros trabalhos em metal – funileiros, bombeiros hidráulicos e
encanadores e galvanização, niquelação, douração e prateação, respectivamente, com
68,18% e 75%, em relação ao total de estabelecimentos no período.
- Carpintarias, marcenarias e outros trabalhos em madeira – carpintarias, com 46,15%, em
relação ao total de estabelecimentos no período.
- Artes gráficas – as tipografias, com 42,85%, em relação ao total de estabelecimentos no
período.
O crescimento em quase todas essas áreas não chega a surpreender, dado sua
presença no bairro desde os primeiros anos investigados. Porém, o surgimento de alguns
segmentos dá o tom das transformações ocorridas no modo de vida urbano, caso
principalmente das oficinas mecânicas e das oficinas de eletricistas e voltadas ao conserto
de aparelhos elétricos. Ainda que naquele momento fossem artigos restritos a poucos, o
automóvel e os aparelhos elétricos sinalizam para práticas modernas de vida, assim como
para a tendência de metropolização da cidade. Por outro lado, a presença de oficinas
mecânicas num bairro em que provavelmente poucos dispusessem de meios financeiros
para possuir automóveis, indica que o Bexiga desempenhava uma função bem
especializada no espaço urbano paulistano.
Sintomáticamente, das dezessete oficinas mecânicas listadas, onze situavam-se na
Brigadeiro Luís Antônio, avenida de localização privilegiada entre o centro e bairros
nobres como o Morro dos Ingleses, Av. Paulista e a Vila América, e o restante se distribuía
pelo interior do bairro.
NOME LOGRADOURO N. RAMO DE NEGÓCIO FONTE ANOS
BYIGTON & CIA./ BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 35 CONSERTO DE AUTOMÓVEIS AL/ICI 1923/27
LUTHOLD & BENQUET
J.S. PELLIGGIOTTI BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 59 OFICINAS MECÂNICAS AL 1911
OFICINA ELETRO MECÂNICA/ BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 63-65 OFICINAS MECÂNICAS AL/ICI 1911/33
O. SEVERINO & CIA.
JERONYMO PINTO BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 71 OFICINAS MECÂNICAS AL 1924/27
AUTO PAULISTA LTDA. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 76 OFICINA E GARAGE ICI 1933
OCTÁVIO MIGLIORINI BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 78 VULCANIZAÇÃO ICI 1933
ANTÔNIO SIGLIANO BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 141 CONSERTO DE AUTOMÓVEIS ICI 1933
ARMANDO A. SOCCI BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 143 CONSERTO DE AUTOMÓVEIS ICI 1933
JOAQUIM VICENTE CARDOSO BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 156-160 OFICINAS DE AUTOMÓVEIS ICI 1933
BRAGA & GUEDES BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 176 VULCANIZAÇÃO AUTOMÓVEIS ICI 1933
BENJAMIN CASSEF BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 223 OFICINAS MECÂNICAS AL 1931
BRUNO VON ELLERN (?) CONSELHEIRO RAMALHO 33 OFICINA MECÂNICA ICI 1933
JOSÉ DE CAMARGO PRADO DR. LUÍS BARRETO 32 OFICINAS MECÂNICAS AL 1931
RAPHAEL VISCONTI MAJOR DIOGO 47 OFICINAS MECÂNICAS AL 1931
ALEXANDRE ANSELMI MANOEL DUTRA 59B CONSERTO DE AUTOMÓVEIS ICI 1933
DIOGO DOS SANTOS RICARDO BAPTISTA 14 OFICINA DE AUTOMÓVEIS ICI 1933
SANTO COSENZA RUI BARBOSA 134 OFICINAS MECÂNICAS AL 1931

Tabela 70 – Oficinas mecânicas localizadas em ruas do Bexiga. Fonte: Almanaque Laemmert (1911-1931) e Imposto do
Comércio e Indústria (1923 e 1933).

De um modo geral, mesmo pensando que se trata de um período relativamente


extenso (27 anos desde o início destas investigações, e pouco mais de 40 desde o início do
loteamento), é possível perceber que então o bairro já possuía maturidade no que tocava ao
papel dos “pequenos” negócios representados pelas oficinas e manufaturas. Embora já
sabendo que se tratava de um bairro misto, onde as moradias conviviam com os negócios,
aqui constata-se que a essa altura, ao lado dos segmentos representados pelo comércio de
alimentos, as oficinas e manufaturas conferiam ao bairro um caráter especialmente voltado
à prestação de serviços, fosse em função da sobrevivência do próprio bairro, fosse em
função dos bairros circundantes.
PROPRIETÁRIO/
LOGRADOURO N. RAMO DE NEGÓCIO IMPOSTO ANO
EMPRESA
1 AUTO PAULISTA LTDA. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 76 OFICINA E GARAGE 1:125$00 1933
BYIGTON & CIA. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 35 CONSERTO DE AUTOMÓVEIS 2:475$000 1923
2
LUTHOLD & BENQUET BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 35 OFICINAS MECÂNICAS - 1927
3 INDEPENDENCIA FILM SANTO AMARO 78 FÁBRICA DE FITAS PARA CINEMA 1:100$000 1923
JOSÉ PASCHOALUCCI MARIA JOSÉ 39 FÁBRICA DE CALÇADOS 660$000 1923
4
JOSÉ PASQUALUCCI MARIA JOSÉ 33 FÁBRICA DE CALÇADOS 1:250$000 1933
5 LEONILDO TORRE BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 16 ALFAIATARIA 1:000$000 1933
NICOLA INFANTE MAJOR DIOGO 36 FABRICA DE DOCES E CIGARROS 165$000 1923
6 NICOLA INFANTE/ MAJOR DIOGO 34-36 FÁBRICA DE DOCES 1:250$000 1933
FÁBR. DE DOCES BELLA VISTA
PATERNOSTRO IRMÃO & CIA. SANTO ANTÔNIO 9 TIPOGRAFIA 1:100$000 1923
7
DUPRAT & FILHOS LTDA. SANTO ANTÔNIO 9 TIPOGRAFIA 2:500$000 1933
RODOLPHO CHIAVERINNI CONSELHEIRO RAMALHO 229 FÁBRICA DE CHAPÉUS 1:000$000 1923
8 CHIAVERINI, MAGALHÃES & CONSELHEIRO RAMALHO 229 FÁBRICA DE CHAPÉUS - 1931
CIA.
SCHATAMACHIA & CIA. MAJOR DIOGO 52 FÁBRICA DE CALÇADOS 2:200$000 1923
9
SCATAMACHIA & CIA. MAJOR DIOGO 52 FÁBRICA DE CALÇADOS 3:750$000 1933
ULLYSES PELICIOTI & CIA. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 86 LADRILHOS, ESCULTURAS 825$000 1923
10
ULYSSES PELICIOTTI & CIA. BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 52 ESCULTURA E LADRILHOS 1:875$000 1933

Tabela 71 – Oficinas e manufaturas de maior porte. Fonte: Imposto do Comércio e Indústria, 1923 e 1933; Almanaque
Laemmert, 1927 e 1931.
Por fim, destaco alguns dos negócios que, em relação ao conjunto de casos
identificados, lograram alcançar maiores dimensões, quem sabe podendo ser classificados
como indústrias de médio ou grande porte, afastando-se assim da classificação oficinas e
manufaturas.
A firma Byington & Co., estabelecida na Av. Brigadeiro Luís Antônio n.35, fazia
parte dos investimentos do americano Alberto Byington. De acordo com Rafael de Luna
Freire, “Entre outros itens vendidos pela empresa, podem ser citados fornos elétricos e
ventiladores, automóveis e pneus, máquinas calculadoras, de escrever e registradoras
enfim, tudo o que havia de mais moderno para atender aos comerciantes e particulares, às
lojas e residências” (grifos nossos) 273. Ainda conforme o autor, nos anos 1920 a Byington
& Co., em franca expansão, abriu filiais em diversas capitais brasileiras, inclusive em São
Paulo. É a essa empresa que se refere o Imposto de Comércio e Indústria para o ano de
1923, quando a oficina mecânica deveria pagar o valor nada desprezível de dois mil,
quatrocentos e setenta e cinco contos de réis (2:475$000). Porém, esse não era o negócio
mais importante da Byington & Co., que ao que indicam alguns anúncios nos jornais da
época, comercializava automóveis e acessórios para autos importados. De qualquer modo,
em 1925 a empresa já havia mudado de endereço, deixando a loja na Av. Brigadeiro Luís
Antônio em mãos da Cia. Autoamericano.

Figura 145 – Anúncio de 14/07/1923, para venda de carros importados da marca Buick, pela Byington & Co. Fonte: O
Estado de São Paulo.

273
FREIRE, Rafael de Luna – “Da geração de eletricidade aos divertimentos elétricos: a trajetória
empresariasl de Alberto Byington Jr. antes da produção de filmes”. In Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
v.26, n.51, jan-jun 2013, p. 119.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-21862013000100007.
Consulta em: 22/06/2015.
O primeiro registro localizado para a firma Luthold & Benquet é anterior à
instalação da Byington & Co., datando de 29/10/1922. Tratava-se de uma garagem para
automóveis, a Taxi Bloc, onde também funcionava uma oficina mecânica. Estranhamente,
a presença da Luthold & Benquet no anuário é contemporânea às duas firmas, Byington e
Autoamericano – ali constam anúncios entre 1922 e 1927.

Figura 146 – Anúncio da oficina mecânica Luthold &


Benquet, associada à Garage Taxi Bloc, na Av.
Brigadeiro Luís Antônio, 35, publicado no jornal O
Estado de São Paulo, em 29/10/1922. Para se ter uma
ideia do porte da empresa, e consequentemente, do
poder aquisitivo de sua clientela, o imposto a ser pago
pela Luthold & Benquet em 1923 era de dois mil,
quatrocentos e setenta e cinco contos de réis
(2:475$000), muito acima da média geral dos valores
pagos pelos contribuintes do bairro.

Infelizmente, não foi possível espacializar a empresa na planta SARA Brasil, já que
o trecho (à esquerda da avenida), em que esta se localizaria se identifica apenas por um
grande espaço vazio, entre as ruas do Riachuelo e Asdrúbal do Nascimento (Anexo 3.6).
Resta acreditar que houvesse algum tipo de acordo entre as empresas, que tornaria possível
o funcionamento de mais de um negócio no mesmo local.
A Independencia Film, empresa fundada em 1922 pelos irmãos José e Menotti Del
Picchia e por Armando Pamplona, embora de acordo com o Imposto do Comércio e
Indústria de 1923, se destinasse à fabricação de “fitas para cinema”, era na verdade uma
produtora cinematográfica. Criada em função das comemorações dos 100 anos da
independência brasileira, na Exposição Internacional da Independência do Brasil, realizada
no Rio de Janeiro, entre setembro de 1922 e julho de 1923, a empresa foi escolhida pela
comissão organizadora do evento para a realização de documentários que enaltecessem a
“economia, história e vida social” brasileiros274. Em março de 1923, a sociedade entre
Armando Pamplona e os irmãos Del Picchia foi desfeita, ficando o primeiro como o
“exclusivo proprietário da Empresa Cinematográfica Independencia Film [...],
continuando a explorar o mesmo ramo de indústria e comércio, tendo o seu escritório e

274
Conforme Eduardo Morettin, a empresa Independencia Film foi “criada em 1922 para aproveitar a
chance de obter os largos recursos para filmagem provenientes dos órgãos públicos”, cujas intenções eram
“fornecer em conjunto, a visão integral do progresso do Estado de São Paulo”. In MORETTIN, Eduardo V.
– “Um apóstolo do modernismo na Exposição Internacional do Centenário: Armando Pamplona e a
Independencia Film”. In Revista USP, ano 39, n.37, 2012, p.75-92. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/significacao/article/viewFile/71264/74264. Consulta em: 23/06/2015.
oficinas, nesta capital, à rua de Santo Amaro, 78” 275. Não localizei mais referências sobre
a empresa e, em 1933 ela já não consta mais no lançamento do Imposto do Comércio e
Indústria. Levando-se em conta os objetivos oficiais do evento, o mais provável é que,
passadas as comemorações, os recursos públicos cessassem, prejudicando a continuidade
da empresa. Dessa maneira, os valores do imposto, que em 1923 somavam mais de um
conto de réis (1:100$000), em 1933 alcançariam um patamar difícil de ser suportado por
um tipo de negóco que ainda dava seus primeiros passos.
A Fábrica de Doces Bella Vista é o exemplo mais longevo dos casos de
manufaturas no bairro do Bexiga. Criada em 1915 por Nicola Infante, o primeiro anúncio
da fábrica no Almanaque Laemmert data de 1917. Porém, em 1916 a firma já era alvo do
lançamento do Imposto de Comércio, pelo qual deveria pagar sessenta e seis mil réis
(66$000) à Recebedoria de Rendas da Capital. Em 1923, Nicola solicitou à Diretoria de
Obras do município licença para a instalação de um “motor de 2 cavalos” e para o
“acréscimo em barracão descoberto” a ser utilizado como depósito da fábrica que então
dispunha de 7 operários. No mesmo ano o valor do imposto a pagar pelo funcionamento de
uma “fábrica de doces e cigarros” era de cento e sessenta e cinco mil réis (160$000).
Passados dez anos, esse valor subiria para um mil, duzentos e cincoenta contos de réis
(1:250$000), o que dá bem a medida do crescimento da empresa.

Figura 147 – Peça publicitária da fábrica de Nicola Infante, discriminando os produtos produzidos pela mesma, s/data.
Fonte: São Paulo antiga. História, arquitetura e fotografia 276.

275
Diário Oficial do Estado de São Paulo, 11/03/1923. Disponível em:
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/3752059/pg-1922-diario-oficial-diario-oficial-do-estado-de-sao-paulo-
dosp-de-11-03-1923. Consulta em: 23/06/2015.
276
Disponível em: http://www.saopauloantiga.com.br/biscoitos-bela-vista/. Consulta em:
Figura 148 – Fachada da Fábrica de Doces Bella Vista, na rua Major Diogo, 1940. Fonte: São Paulo antiga. História,
arquitetura e fotografia 277.

Quando abordei as atividades produtivas desenvolvidas na área do loteamento


original do Bexiga, já mencionei a Scatamacchia & Cia., fábrica de calçados localizada na
rua Major Diogo (Capítulo 2). A fábrica deve ter sido instalada naquele local por volta de
1922, ano em que consta o pedido de licença para a construção do prédio. Contudo, a
notícia publicada em O Estado de São Paulo, em 07/05/1927, acerca da visita que o
Cônsul Geral da Itália fez às instalações da empresa, situa sua fundação em 1895, por
Donaldo Scatamacchia e seus filhos Antônio e Salvador278. Não foi possível saber ao certo
quando e onde foi fundada a fábrica, mas um comunicado à clientela, em 03 de maio de
1914, esclarece “que sua fábrica está funcionando com toda regularidade desde 1º do
corrente mês, após pequena interrupção”, na rua de São João n.230. A interrupção a que
se referia o comunicado provavelmente se devesse ao processo da concordata preventiva
da empresa, e apesar do empenho de Donato, até 07 de abril de 1916 o problema ainda não
havia sido solucionado279. Finalmente, após um intervalo de aproximadamente 6 anos, a
Scatamacchia & Cia. ressurge, agora na rua Major Diogo n.52. O Imposto do Comércio e
Indústria, lançado em 1923 e 1933, indica que a empresa ia bem – os impostos a serem
pagos foram de, respectivamente, dois mil e duzentos contos de réis (2:200$000) e três mil,

277
Disponível em: http://www.saopauloantiga.com.br/biscoitos-bela-vista/. Consulta em:
278
O Estado de Sâo Paulo, 07/05/1927.
279
O Estado de São Paulo, 10/04/1914; 13/03/1915; e Diário Oficial do Estado de São Paulo, 07/04/1916.
setecentos e cincoenta contos de réis (3:750$000)280, os valores mais altos pagos pelos
negociantes do Bexiga naqueles anos281.

Figura 149 – Fachada do prédio da antiga Scatamacchia & Cia., na rua Major Diogo, tal como se encontra nos dias
atuais. Fonte: Google Street View. Imagem captada em outubro de 2014282.

A tipografia Paternostro Irmão & Cia. estabelecida na rua Santo Antônio n.9
possui um longo histórico, cujo início se deu em 1º de fevereiro de 1912, quando o
engenheiro Julio Michele apresentou à Diretoria de Obras o projeto para construção de
uma oficina tipográfica no terreno de propriedade de Manoel Lopes Leal.

Figura 150 – Projeto contendo a fachada do prédio onde iria funcionar a tipografia da Casa Mayença, à rua Santo
Antônio, 9. Fonte: Série Obras Particulares, OP1911-003.158/PR001.

280
Diário Oficial do Estado de São Paulo, abril de 1923; e 10/06/1933.
Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/.
281
A marca “Scatamacchia” alcançou fama como sinônimo de calçados de qualidade refinada mas, apesar do
sucesso, voltaria a ter sérios problemas financeiros nos anos 1960, quando passou por novo processo de
concordata. Finalmente, a última notícia que obtivemos data de 31 de agosto de 1978, ocasião em que,
intitulada como Scatamacchia S.A. – Indústria de Calçados, era credora da massa falida de Treves S.A.
Comércio e Indústria.
282
Disponível em: https://www.google.com.br/maps/place/R.+Maj.+Diogo,+276+-+Bela+Vista,+São+Paulo.
Consulta em: 24/06/2015.
Figura 151 – Em primeiro plano, temos a rua João Adolfo; a Casa Mayença localizava-se exatamente no prédio
circundado em verde, à esquerda da foto, do outro lado da rua Santo Antônio, 1947. Dmitri Kessel. Fonte: Revista
LIFE283.

Entre o ano da construção e 1931, a tipografia passou pelas mãos da firma Cardoso
Filho & Cia. (de 1914 a 1918) e pela Paternostro Irmãos & Cia. Sob a razão social Casa
Mayença, entre 1924 e 1931, aparece nos registros do Almanaque Laemmert,
demonstrando ter se especializado na edição de livros e músicas. Data de 1927 o anúncio
de artigos de papelaria publicado em O Estado de São Paulo, documentando a fusão da
Mayença com a Casa Duprat, tradicional editora localizada na rua São Bento. No anúncio,
a firma representada por Duprat, Paternostro & Cia. passava a se chamar Casa Duprat e
Casa Mayença Reunidas, mas mantinha o endereço original da Duprat, à rua São Bento
n.21. Certamente este era o endereço comercial da casa, já que o lançamento do Imposto do
Comércio e Indústria de 1933, no valor de dois mil e quinhentos contos de réis
(2:500$000), se refere à tipografia da rua Santo Antônio n.9. Aliás, nesse momento o
mesmo imposto está em nome de Duprat & Filhos Ltda., e não mais de Paternostro Irmão
& Cia., como ocorreu em 1923.

283
De acordo com o site, esta imagem pertence ao acervo da extinta revista norte-americana LIFE
(http://images.google.com/hosted/life). Disponível em:
http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=754080 . Consulta em: 15/02/2014.
Entre os poucos casos de oficinas e manufaturas que alcançaram maior êxito em
sua trajetória, a fábrica de ladrilhos e esculturas de Ullysses Pelliciotti & Cia. se distingue
pela antiguidade da iniciativa dos proprietários. Em dezembro de 1906, Pelliciotti
apresentou, à Diretoria de Obras do município, pedido de licença para a construção de um
salão no centro de um terreno localizado na Av. Brigadeiro Luís Antônio, s/n.

Figura 152 – Projeto para a construção de salão para


Pelliciotti, na Av. Brigadeiro Luís Antônio, s/n. Fonte:
Série Obras Particulares, OP 1906-000.265/PR.01,
19/12/1906.

Aquele projeto não especificava os usos que seriam dados ao prédio, mas uma outra
solicitação, apresentada em maio de 1914, para a construção de “um sobrado com
armazém no térreo” deixa entrever que se tratava de um projeto ambicioso, onde o terreno
seria inteiramente ocupado pelo prédio de fachada em estilo eclético. Dois anos mais tarde
(em 21/08/1916), uma nova solicitação, mais esclarecedora, foi encaminhada, desta feita
para a “substituição das colunas do barracão ocupado pela oficina de escultura e fábrica
de ladrilhos” de Ullysses Pelliciotti. O primeiro anúncio publicado no Almanaque
Laemmert, em 1909, se restringia ao trabalho de “estucadores”, mas a partir de 1913 as
possibilidades de atendimento se ampliaram, estendendo-se ao trabalho de escultores,
estucadores, além do comércio de cimento, ladrilhos, mosaicos e telhas de vidro. Apenas
em 1916, após a última intervenção no prédio, é que a fabricação de ladrilhos e mosaicos é
definitivamente incorporada aos anúncios no Almanaque.
Figuras 153 a e b – Fachada e planta baixa do sobrado com armazém no térreo a ser construído na Av. Brigadeiro Luís
Antônio n.50. Fonte: Série Obras Particulares, OP1914-000.780/PR001 e 002, 30/05/1914.

Naquele momento, o bairro do Bexiga estava em pleno processo de ocupação, com


a multiplicação contínua de novas construções que eventualmente poderiam justificar a
ampliação das manufaturas de Pelliciotti. Entretanto, acredito que as dimensões alcançadas
pelo negócio no decorrer das décadas seguintes, perceptíveis nos valores do Imposto do
Comércio e Indústria a serem pagos em 1923 e 1933, respectivamente, oitocentos e vinte e
cinco mil réis (825$000) e hum mil, oitocentos e setenta e cinco contos de réis
(1:875$000), dificilmente seriam obtidas apenas com a clientela do bairro. Acresce que,
além da Pelliciotti & Cia., o bairro possuía outros estabelecimentos de menor porte que
poderiam fornecer materiais de construção para quem quisesse construir, talvez até a
preços mais em conta. Este é mais um caso em que a localização estratégica do negócio, na
Av. Brigadeiro Luís Antônio, deve ter sido decisiva para o seu sucesso. Anos mais tarde,
conforme o Diário Oficial do Estado, de 14/03/1934, a empresa ampliaria suas
possibilidades, passando a denominar-se:
Sociedade Anônima Decorações Edis Ullysses Pellicciotti, com o capital de cento e vinte
contos de réis (120:000$000) [...] tendo por fim a melhor exploração e desenvolvimento da
indústria de decorações de prédios e da fabricação de pedras artificiais, que vem sendo
explorada pela firma Ullysses Pellicciotti & Cia. Ltda 284.

Com o breve relato apresentado acima, espero ter ilustrado os poucos casos de
oficinas e manufaturas que obtiveram êxito em sua trajetória. Porém, ainda que esses

284
Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/4679097/pg-136-poder-executivo-diario-oficial-do-
estado-de-sao-paulo-dosp-de-27-10-1964/pdfView. Consulta em: 25/06/2015.
negócios tenham se destacado no cenário do bairro, não deixam de ser exceções à regra, a
qual constituiu-se fundamentalmente de pequenas iniciativas, fato comprovado pelos
valores pagos ao erário público, por ocasião dos lançamentos dos Impostos de Indústria e
Comércio, em 1923 e 1933. Aqui, cabe destacar novamente a importância do cruzamento
das informações disponibilizadas por esses documentos com aquelas fornecidas pela Série
Obras Particulares e pelo Almanaque Laemmert. Mais do que simplesmente enumerar as
451 atividades vinculadas às oficinas e manufaturas existentes no bairro, o resultado desse
cruzamento (Tabela 69) levantou questões mais abrangentes acerca do papel dessas
atividades no cenário urbano paulistano. Seria a população residente no bairro
suficientemente numerosa para consumir os produtos e serviços oferecidos por tais
negócios? A ampliação no número de negócios relacionandos à oficinas e manufaturas
seria uma tendência para as próximas décadas, ou apenas o reflexo momentâneo de uma
realidade que, longe de ser estática e definitiva, fazia parte de um processo de
transformação urbana em andamento?
Os anos 1930 foram palco de mudanças sociais e políticas que mal haviam se
esboçado no período limite para este estudo, 1931. Talvez os números apresentados na
Tabela 69 signifiquem apenas previsões/pretensões otimistas para um cenário futuro, que
não necessariamente se realizariam. Muita coisa mudaria na cidade a partir de então... Mais
uma vez, o depoimento de Haim Grünspun pode ajudar a perceber o que se passou naquele
território:
Todos contavam que antes dos anos trinta, alguns italianos precisavam a data como antes
da crise de 29, a vida era mais fácil e com o trabalho comum do Bexiga, as pessoas
conseguiam progredir e mesmo enriquecer. Como exemplo, davam os casos das lavadeiras
que ficaram muito ricas e hoje eram grandes proprietárias do Bexiga e fora do Bexiga.
Na década de trinta, o trabalho mal dava para a sobrevivência e muito pouca gente tinha
extras para economizar (1979, p.123-124, grifos nossos).

Assim, acredito que as respostas a essas perguntas dependam de outros estudos que
se proponham a estender as investigações ora realizadas.
CAPÍTULO 4 – DIVERSIDADE SOCIAL NOS BOLETINS DE OCORRÊNCIA

Até aqui desenvolvi este trabalho de maneira a: a) traçar o perfil material do


Bexiga, rua a rua, basicamente através das formas de moradia e trabalho dos moradores do
bairro; b) dar a conhecer as interfaces do bairro em relação à cidade e a heterogeneidade
das atividades produtivas ali desenvolvidas, envolvendo as três áreas identificadas (“área
nobre”, loteamento original e Saracura); e c) identificar e aprofundar as formas dominantes
de atividades produtivas características daqueles espaços. Dessa maneira, acredito ter
atingido o objetivo primeiro – apreender o papel representado pelo bairro do Bexiga no
processo de expansão urbana da cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX.
Contudo, embora o panorama traçado acima seja bastante elucidativo das funções
desempenhadas por aquele espaço no cenário mais amplo da cidade, resta uma questão
fundamental acerca desse espaço. Quem eram os seus moradores? Como transcorriam suas
vidas no dia a dia daquele cenário?
A ideia aqui é dar vida ao espaço material e produtivo delineado nos capítulos
precedentes, afinal de contas o bairro foi apropriado por pessoas de carne e osso cujas
histórias ajudaram a inscrever o Bexiga na própria cidade. Na linha de uma história mais
encarnada, pretendo por luz em determinadas faces e assim vislumbrar alguns perfis
sociais típicos da área.
Os Boletins de Ocorrência são fontes privilegiadas para se aferir relações sociais no
cotididano do bairro, permitindo inclusive perceber as tensões e conflitos entre os
diferentes grupos ali residentes. Nunca é demais lembrar que o convívio social entre
brasileiros e imigrantes foi marcado pela questão político-ideológica da intenção de
branqueamento da raça, fato já bastante analisado por diversos autores, sob diferentes
pontos de vista285. Acredito que o imigrante, consciente ou inconscientemente, tenha
incorporado esse ideário na medida em que ele próprio representava o instrumento
essencial para o suposto êxito daquela política deliberada imposta na chamada Primeira
República (1889-1930). No entanto, apesar da posição aparentemente privilegiada que o
imigrante ocupava, sua inserção na sociedade brasileira não foi assim tão fácil, sobretudo
em face ao recente passado escravista que mantinha uma série de preconceitos ainda muito
vivos e arraigados no imaginário coletivo. Se, de um lado, o imigrante era a força de

285
Entre esses autores destacamos especialmente: CHALHOUB, Sidney – Trabalho, lar e botequim. O
cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª Ed., Campinas: Editora da UNICAMP,
2001; PEREIRA, Paulo César Xavier – São Paulo. A construção da cidade 1872-1914, São Carlos:
RiMa/FAPESP, 2004; e SANTOS, Carlos José Ferreira dos – Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza
(1890-1915). São Paulo: Annablume/FAPESP, 1998;
trabalho necessária no momento de afirmação/inserção do país num processo econômico
mais amplo, inseria-se num universo no qual o trabalho pesado era um estigma atrelado a
imagem dos escravos. Por outro lado, qualquer movimento seu que contrariasse as
expectativas do Estado e dos patrões era fortemente reprimido, fato comprovado pela
reação às greves realizadas no decorrer dos anos 1910. Em momentos de crise econômica e
social, quando as possibilidades de sobrevivência escasseiam, as diferenças culturais entre
os grupos sociais (brasileiros brancos, afrodescendentes e imigrantes) tendem a se
manifestar sob a forma de conflitos e tensões. Dessa maneira, as relações sociais no Bexiga
e em outros bairros da cidade ocupados pelas camadas médias e baixas da população foram
marcadas por instabilidade constante: em tempos difíceis qualquer motivo seria suficiente
para desencadear tensões e conflitos. As investigações realizadas confirmaram tais
ocorrências que manifestavam-se de diversas formas: na relação entre inquilinos e
proprietários, na disputa por clientela, nas brigas e bebedeiras nos botequins e nas ruas.
Os Boletins de Ocorrência do Posto Médico da Assistência Policial integram o
Fundo da Secretaria da Segurança Pública do Arquivo Público do Estado de São Paulo
(APESP) e são fontes preciosas para se aferir aspectos referentes as formas de
sociabilidades. Este corpus documental é particularmente importante por fornecer uma
multiplicidade de dados e detalhes sobre a vida cotidiana dos moradores do bairro – nome,
cor, nacionalidade, idade, filiação (quando se tratava de menores de 18 anos), profissão,
endereço e motivação da ocorrência. Ao informar as nacionalidades, as profissões
desempenhadas pelos atores sociais, sua localização no espaço e as causas das ocorrências,
possibilita a remontagem de certos perfis típicos do bairro. Além disso, através dos
Boletins é possível aquilatar a presença dos afrodescendentes no bairro aparentemente
indistintos entre nomes e sobrenomes de raiz brasileira e portuguesa, bem como dar
espacialidade aos seus lugares de moradia e trabalho, acompanhando-os em seus
movimentos pela cidade, seja no exercício de uma atividade produtiva, seja no seu tempo
ocioso.
Os Boletins de Ocorrência não respondem tudo, mas fornecem indícios a serem
aprofundados. A partir das linhas e entrelinhas dos processos-crimes é possível reconstituir
a trajetória de certos indivíduos286 e, numa etapa posterior, construir o perfil de
determinado tipo de morador do Bexiga. De outra forma seria quase impossível imaginar a
vida cotidiana no bairro e suas formas de sociabilidade.

286
As informações contidas nos Boletins de Ocorrência foram enriquecidas e complementadas pelos acervos
dos jornais O Estado de São Paulo e Diário Oficial do Estado de São Paulo, disponibilizados nos sites:
http://acervo.estadao.com.br/ ; e http://www.jusbrasil.com.br/diarios/DOSP/.
Instalado junto às delegacias de polícia, o posto médico era responsável pelos
primeiros socorros às vítimas de todo tipo de problemas: “mal súbito”, doenças,
embriaguez, ferimentos decorrentes de acidentes no trânsito, desastres, agressões,
tentativas de suicídio, etc. Os atendimentos podiam ser feitos na residência do vitimado, na
rua ou ainda na delegacia mais próxima do local da ocorrência, o que parece ter sido mais
comum – inúmeras ocorrências relatam o atendimento após uma chamada telefônica à
delegacia. Nos casos de problemas no Bexiga, tudo leva a crer que a delegacia competente
era a 2ª. Circunscrição Policial da Liberdade, já que em grande parte das ocasiões os
registros foram para lá encaminhados287. Porém, também foram comuns os atendimentos
em outras delegacias, sempre onde houvesse a ocorrência. A partir do primeiro
atendimento, se o caso fosse simples, a pessoa retornava à residência, porém, quando se
tratava de algo mais grave, a pessoa era encaminhada à Santa Casa, e eventualmente, a um
hospital particular. Já nos casos em que o problema se originava do estado de embriaguez,
o encaminhamento da vítima era para o “xadrez” mais próximo.
A pesquisa abrangeu três períodos selecionados de forma mais ou menos aleatória a
título de constituição de uma amostragem. Num primeiro momento, elegi os atendimentos
médicos junto às Delegacias de Polícia de outubro de 1911 (quando do início do
procedimento de escrituração das ocorrências) a maio de 1912, totalizando oito meses. Em
seguida, abordei todo o ano de 1914, além do mês de janeiro de 1915, quando essa forma
de atendimento médico já parecia ter sido incorporada pela população e a instituição
policial já se mostrava mais organizada em relação aos diferentes tipos de ocorrência,
classificadas como: acidente no trabalho, desastre, atendimento em domicílio, atendimento
na via pública, e crime. Finalizei a pesquisa investigando o ano de 1925. Passados quase
quatorze anos desde que a Secretaria de Segurança Pública do Estado iniciou a escrituração
sistemática das ocorrências foi possível verificar alterações sutis na forma de registro dos
casos. Enquanto nos acidentes no trabalho, desastres e crimes os casos são detalhadamente
descritos, os atendimentos em domicílio e atendimentos na via pública geralmente
encaixavam-se em diagnósticos médicos superficiais de “doença” ou “moléstia”,
“epistaxis”, “epilepsia”, “ataque histérico”, etc. De outro lado, os atendimentos provocados
por estados de “embriaguez” da vítima praticamente desaparecem. Já a alteração mais
flagrante se refere às respectivas delegacias responsáveis pelos atendimentos, que desde

287
De acordo com o Almanaque Laemmert, de 1915, naquela data o Bexiga contava com a Subdelegacia da
Bela Vista, localizada na Rua Santa Cruz, 35 287, subordinada à 4ª. Circunscrição da Consolação, com sede
na Rua Ipiranga, 76. Esta rua corresponde, atualmente, à rua Matias Aires, travessa da rua Augusta, entre as
ruas Fernando Albuquerque e Antônio Carlos.
fevereiro de 1914 passou a ser mencionado no final do Boletim de Ocorrência e, a partir de
meados de março de 1925, desapareceu inexplicavelmente.
O quadro abaixo contém as modalidades de atendimento e as respectivas causas
identificadas.
MODALIDADES DE
CAUSAS
ATENDIMENTO
ACIDENTE NO TRABALHO FERIMENTOS PRODUZIDOS NO EXERCÍCIO DO TRABALHO
CRIME FERIMENTOS POR AGRESSÃO
ACIDENTES ENVOLVENDO MEIOS DE TRANSPORTE (QUEDA, ATROPELAMENTO POR
AUTOMÓVEL,BICICLETA, BONDE, CAMINHÃO, CARROÇA, CAVALO)
ACIDENTES POR EMBRIAGUEZ
ATENDIMENTOS ENVOLVENDO POSSÍVEL RISCO DE VIDA (ENVENENAMENTO, QUEIMADURAS,
TENTATIVAS DE SUICÍDIO E MORTE CONFIRMADA)
DESASTRE FERIMENTOS ACIDENTAIS (ACIDENTE DOMÉSTICO, COM VIDRO, MORDIDA DE CÃO, OU OUTRO
ANIMAL)
FERIMENTOS ACIDENTAIS ENVOLVENDO QUALQUER MATERIAL, LETAL OU NÃO (ARMA DE FOGO,
CANIVETE, FACA, PEDAÇO DE MADEIRA, PEDRA, ETC.)
FERIMENTOS POR QUEDA (ACIDENTAL OU POR MOLÉSTIA)
FERIMENTOS SEM CAUSA DEFINIDA
PARTURIENTES E VÍTIMAS DE MOLÉSTIAS EM GERAL (CRISE EPILÉTICA, CRISE HISTÉRICA, CRISE
SOCORRO EM DOMICÍLIO
NERVOSA, CURATIVOS, INDIGESTÃO, ETC.)
VÍTIMAS DE MALES DIVERSOS (EMBRIAGUEZ, CRISE EPILÉTICA, CRISE HISTÉRICA, CRISE
SOCORRO NA VIA PÚBLICA
NERVOSA, VERTIGEM E OUTRAS MOLÉSTIAS)

Tratando-se do atendimento realizado por um órgão de segurança pública, está


claro que mais do que a prestação de socorro médico à população, a intenção da instituição
era policiar o comportamento social no espaço urbano e, para tanto, o fichamento das
vítimas era essencial. Assim, concomitantemente ao atendimento, procurava-se obter
informações referentes ao nome da vítima (ou do responsável, pai ou mãe, no caso de
criança), à cor, à idade, ao estado civil, à nacionalidade, à profissão/ocupação, ao
endereço e ao motivo do incidente. Entre essas informações, procurei explorar aquelas que
pudessem esclarecer aspectos dos atores sociais que atuavam no Bexiga: a espacialização
das ocorrências dá a localização da moradia ou possíveis habitações coletivas; as
nacionalidades e etnias indicam o grupo de pertencimento; as ocupações profissionais
indicam aspectos do universo de trabalho e, claro, as causas das ocorrências o nível de
tensão e precariedade da existência nas diversas áreas do bairro. As informações cruzadas
entre si dão face aos diferentes tipos humanos que atuaram no Bexiga.

4.1 A espacialização das ocorrências

A localização das moradias além de permitir a espacialização e quantificação dos


moradores por domicílio, sugerindo inclusive a presença de habitações coletivas, permite
estimar a densidade populacional aproximada de quase todas as ruas. Há casos que em
praticamente toda a extensão da rua foram identificados os moradores.
ÁREA DE
LOGRADOURO 1911-12 1914-15 1925
REFERÊNCIA
AGUIAR DE BARROS - 4 4
ASDRÚBAL DO NASCIMENTO / ALBERGUE NOTURNO 1 28 26
BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 10 37 29
ÁREA “NOBRE”
FRANCISCA MIQUELINA - 1 9
GENEBRA - 4 3
MARIA PAULA - 10 8
ABOLIÇÃO 4 7 15
CONSELHEIRO CARRÃO 5 27 15
CONSELHEIRO RAMALHO 15 59 56
FORTALEZA 6 9 19
FORTALEZA / VILA JOAQUIM ANTUNES 2 7
HUMAITÁ - 7 4
JACAREI 2 6 13
TRAV. JACAREÍ (FUTURA RUA JAPURÁ) - 3 24
JACEGUAI 10 20
JOÃO PASSALACQUA 1 10 12
MAJOR DIOGO 24 58 55
MANOEL DUTRA 9 34 27
LOTEAMENTO ORIGINAL MARIA JOSÉ 5 12 25
TRAV. NOSCHESE - - 1
QUATORZE DE JULHO 3 6 13
RICARDO BATISTA - - 1
RUI BARBOSA 22 52 60
SANTO AMARO 9 29 24
SANTO AMARO / VILA BARROS - 2 12
SANTO ANTÔNIO 36 84 107
SÃO DOMINGOS 10 18 21
SÃO VICENTE - 5 7
SOL/DR. LUÍS BARRETO 4 15 18
TREZE DE MAIO 9 39 72
VICENTE PRADO - 1 -
LARGO SÃO MANOEL - 3 2
ROCHA - 5 8
SARACURA SARACURA GRANDE/ALMIRANTE MARQUES LEÃO - 21 34
SARACURA PEQUENA 2 11 14
SARACURA (?) - - 1
BELA VISTA BELA VISTA (?) 1 - -
CAGUASSÚ CAGUASSÚ (?) 2 - 1
TOTAL 180 619 767

Tabela 72 – Espacialização dos endereços fornecidos no ato da realização do Boletim de Ocorrência. Fonte: Boletins de
Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.

A primeira evidência empírica que salta à vista é a alta concentração de pessoas em


determinadas ruas, fato que se mantém em praticamente todos os períodos investigados. Na
“área nobre”, a rua Asdrúbal do Nascimento e a Av. Brigadeiro Luís Antônio parecem ser
as vias preferidas dos moradores, especialmente nos dois últimos períodos investigados
(1914-15 e 1925). No caso da avenida, se trata de uma via de percurso longo, enquanto o
trecho da rua Asdrúbal do Nascimento identificado como parte do Bexiga limita-se entre o
Largo do Riachuelo e a própria avenida.
Destaca-se em 1914-15 a alta incidência de moradores (8 pessoas) no Albergue
Noturno, instituição destinada a abrigar pessoas sozinhas e destituídas de moradia, fato que
não se repete em 1925, quando apenas um morador no Albergue solicitou atendimento
médico.
No loteamento original se destacaram as ruas Santo Antônio, Rui Barbosa,
Conselheiro Ramalho e Major Diogo. Embora essa constatação só confirme a tendência já
observada por ocasião da espacialização dos negócios, os Boletins de Ocorrência
demonstram que havia ocupação em praticamente toda a extensão da via. No caso da rua
Santo Antônio, que em 1925 totalizou 107 ocorrências, a numeração registrada abarca
quase a rua inteira, do número 2 até o número 320, com uma concentração maior de
moradores (aproximadamente 60 pessoas) entre o número 150 (na altura da rua Martinho
Prado e o final da via na rua São Vicente). Vale destacar ainda que do total de ocorrências,
apenas 34 se referem a endereços localizados no lado esquerdo da rua – a grande maioria
das residências registradas nos Boletins de Ocorrências situava-se no lado direito atrás da
área do Saracura. A mesma tendência se verifica nas ruas Rui Barbosa, Conselheiro
Ramalho e Major Diogo, que parecem ter disputado a preferência dos moradores do bairro,
certamente pela presença das linhas de bonde, então o único meio de transporte coletivo
disponível aos moradores. Porém, curiosamente, a rua Santo Antônio, apesar de ter
apresentado um grau de ocupação maior, era apenas parcialmente servida pelas linhas de
bonde “Paraíso” e “Augusta” que circulavam pelo bairro. E mais: os 60 indivíduos que
compunham 56% dos moradores da rua residiam fora da área beneficiada pelo bonde, entre
as ruas Martinho Prado e São Vicente. Embora não se possa fazer afirmações categóricas
nesse sentido, talvez a justificativa para essa discrepância esteja justamente em que este
trecho da rua estava numa situação desfavorável: a distância do centro da cidade e das
linhas do bonde possivelmente diminuísse o valor dos aluguéis dos imóveis ali localizados,
permitindo assim que pessoas de menor poder aquisitivo escolhessem essa área.
Se no loteamento original do Bexiga a densidade populacional supera quaisquer
expectativas, a presença de moradores do Saracura nos Boletins de Ocorrência nos anos
1920 mostra-se curiosamente escassa. Em 1925, o socorro aos moradores da área limitou-
se a 49 pessoas, representando modestíssimos 6,38% do total de 767 atendimentos, o que
não é de espantar se examinarmos a área abrangida pelo Saracura nas folhas 50 e 51 da
planta cadastral SARA Brasil (1930), sobretudo porque nela se verificam pouquíssimas
construções em relação à grande área vazia no entorno do córrego do mesmo nome.
Figura 154 – Vista parcial da planta SARA Brasil,
Fl.50. Fonte: SARA Brasil, Fl.50, 1930. Disponível em:
https://www.mediafire.com/folder/7y159y3reja6x/Sara
%20Brasil%201930.

Figura 155 – Vista parcial da planta SARA Brasil,


Fl.51. Fonte: Planta SARA Brasil, AHSP.
4.2 As possíveis habitações coletivas

Da espacialização das pessoas atendidas no posto médico segundo os endereços


fornecidos decorreu outra informação importante: a identificação das possíveis habitações
coletivas do bairro do Bexiga.
Sem entrar no mérito da classificação exata dessas moradias – se se tratava de
pensões, aluguel de cômodos ou cortiços (até porque na maioria dos casos essa tarefa é
impossível), num primeiro momento busquei agrupar as pessoas que possuíam o mesmo
endereço, procedimento que resultou para cada período investigado em 13, 65 e 82 casos,
respectivamente. Em seguida, selecionei os endereços em que estivesse claro que se tratava
de indivíduos da mesma família, conjunto imediatamente apartado dos agrupamentos
supostamente coletivos. Finalmente, separei os casos em que basicamente houvesse mais
de três pessoas portando nome, idade, nacionalidade ou raça diferentes.
ÁREA DE
LOGRADOURO 1911-12 1914-15 1925
REFERÊNCIA
ASDRÚBAL DO NASCIMENTO (ALBERGUE NOTURNO) - 1 -
ÁREA “NOBRE” BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO 1 2 1
MARIA PAULA - 1 2
ABOLIÇÃO 1 1 3
CONSELHEIRO CARRÃO - 3 -
CONSELHEIRO RAMALHO 1 6 5
FORTALEZA - 2 1
HUMAITÁ - 2 -
JACAREI - 1 2
TRAV. JACAREÍ (VILA BARROS) - - 2
JACEGUAI - 1 2
JOÃO PASSALACQUA - 1 -
MAJOR DIOGO 1 8 6
LOTEAMENTO ORIGINAL MANOEL DUTRA 2 5 3
MARIA JOSÉ - 1 3
QUATORZE DE JULHO - - 2
RUI BARBOSA 2 6 8
SANTO AMARO - 3 2
SANTO AMARO (VILA BARROS) - - 1
SANTO ANTÔNIO 4 8 17
SÃO DOMINGOS 1 1 1
SÃO VICENTE - - 2
SOL/DR. LUÍS BARRETO - 2 1
TREZE DE MAIO - 6 11
ROCHA - 1 1
SARACURA SARACURA GRANDE/ALMIRANTE MARQUES LEÃO - 2 4
SARACURA PEQUENA - 1 2
TOTAL 13 65 82

Tabela 73 – Distribuição dos possíveis casos de habitações coletivas, por logradouros, conforme a área de ocorrência.
Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.

Creio que o agrupamento de pessoas com características tão diversas deva ser
atribuído, antes de mais nada, à falta de recursos financeiros que garantissem a privacidade
individual ou familiar. Nesse quesito, cabe uma rápida digressão sobre as razões que levam
as pessoas a dividir o seu espaço com outros elementos de origens e valores culturais
diferentes. Partindo do exemplo dos italianos, é sabido que o Bexiga foi o destino de uma
quantidade relevante de italianos oriundos da Calábria, região pobre situada na Itália
Meridional, que vieram ao Brasil só ou em família (Alvim, 1986; Lanna, 2011).
Frequentemente sós, nestes casos a divisão de um teto com desconhecidos era uma
estratégia de sobrevivência e poupança de recursos financeiros. Mesmo em família, os
parcos recursos trazidos na viagem exigiam gastos mínimos até que pudessem se
estabilizar profissionalmente e financeiramente na cidade, para o que as pensões e os
cortiços mostraram-se a opção, ao menos temporariamente.
ÁREA DE
LOGRADOURO 1911-12 1914-15 1925
REFERÊNCIA
ASDRÚBAL DO NASCIMENTO (ALBERGUE NOTURNO) - 1 -
ÁREA “NOBRE” BRIGADEIRO LUÍS ANTÔNIO - 1 -
MARIA PAULA - 1 -
CONSELHEIRO RAMALHO - 2 2
HUMAITÁ - 1 -
TRAV. JACAREÍ (V. BARROS) - - 1
JACEGUAI - 1 -
MAJOR DIOGO - 2 2
LOTEAMENTO ORIGINAL RUI BARBOSA - 3 2
SANTO AMARO (VILA BARROS) - - 1
SANTO ANTÔNIO 1 2 3
SÃO DOMINGOS 1 - -
SOL/DR. LUÍS BARRETO - 1 -
TREZE DE MAIO - 3 4
SARACURA SARACURA GRANDE/ALMIRANTE MARQUES LEÃO - - 2
TOTAL 2 18 17

Tabela 74 – Casos de agrupamento de três ou mais pessoas de sexo, idade, nacionalidade e raças diferentes num mesmo
endereço, por período e área analisados. Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.

Retomando a análise das possíveis habitações coletivas nas ruas relacionadas na


Tabela 74, com exceção do Albergue Noturno localizado na rua Asdrúbal do Nascimento,
trata-se de endereços onde residiam mais de três pessoas de sobrenomes diferentes. Nesses
casos específicos, verifica-se que de uma maneira geral, conviviam brancos e negros,
brasileiros e imigrantes e, embora os italianos fossem os mais frequentes, também foram
identificadas pessoas originárias de outros países (portugueses, espanhóis, franceses,
alemães e iugoslavos). Porém, se pensarmos na extensão da área ocupada pelo bairro do
Bexiga, os números apresentados nessa tabela são insignificantes. Por outro lado, se
mantivermos a Tabela 74 como referência, é necessário reconsiderar a diversidade étnica e
racial. Dessa maneira, agrupei os casos de convivência entre brancos e negros
(independentemente da nacionalidade) e aqueles de convivência entre pessoas originárias
de diferentes países, relacionados na Tabela 75 abaixo.
HABITAÇÕES COLETIVAS CASOS DE CONVIVÊNCIA CASOS DE CONVIVÊNCIA ENTRE
PERÍODO
IDENTIFICADAS ENTRE BRANCOS E NEGROS DIFERENTES ORIGENS ÉTNICAS
1911-12 13 4 7
1914-15 65 19 37
1925 82 21 34

Tabela 75 – Número de casos de convivência inter-racial e ínter-étnica no mesmo endereço, em relação ao total de
possíveis habitações coletivas, por período analisado. Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.
Algumas questões acerca das informações nas Tabelas 74 e 75 merecem ser
destacadas. Primeiro, deve-se relativizar/questionar/historicizar o discurso/fala dos
pacientes e dos agentes médico-policiais. Em relação aos pacientes, em diversas ocasiões
percebe-se que ao fornecerem as informações solicitadas intencionalmente (ou não)
mentiam sobre sua condição. Isso fica claro nos casos de reincidência das ocorrências de
uma mesma pessoa, quando é possível cotejar as respostas dadas às mesmas perguntas. Ora
encontramos pessoas que se identificavam como brasileiras, ora como italianas; ora como
casadas, ora solteiras; outros alteravam seus sobrenomes e idades; os endereços se
alternam independentemente da ordem cronológica dos atendimentos; do mesmo modo
podia ocorrer a alternância de ocupações, e assim por diante. Verdade ou não, refletem a
instabilidade que reinava no bairro, exigindo que solteiros se casassem para criar laços de
solidariedade, que houvessem mudanças periódicas de endereço para acomodar a renda aos
alugueis, bem como mudanças frequentes de ocupação que indicam a sua lenta inserção
social numa cidade que não absorvia todos igualmente e de imediato.
Mentira ou verdade, entre os exemplos mais gritantes está o de Aristides, um jovem
negro de 15 anos, atendido em quatro ocasiões, em 1911 e 1912. Nas duas primeiras
ocorrências, em outrubro de 1911, quando não há registro da ocupação profissional nem do
tipo de ocorrência, ele declara, consecutivamente, o nome de Aristides Marcondes e
Aristides de Abreu (sendo que em ambas consta como sendo filho de Elpidio Marcondes).
No primeiro atendimento o endereço fornecido foi a rua Major Diogo n.95 e, no segundo,
na mesma rua, só que agora no número 85288. Menos de um mês depois, o atendimento a
Aristides foi assim descrito: “é um mensageiro que, por ter feito muito exercício em jejum,
teve uma síncope” quando passava pela Ladeira de São João. Na terceira ocorrência ele é
registrado como Aristides Ribeiro, filho de Elpidio Ribeiro, morador à rua Major Diogo
n.85. Por fim, em janeiro de 1912, o sujeito volta a se apresentar como Aristides
Marcondes, copeiro, morador à rua Major Diogo n.95, agora vítima de nova “vertigem” na
Ladeira João Alfredo289.
Outro caso digno de nota se refere ao hóspede do Albergue Noturno, o mecânico
Henrique Felix, um sujeito pardo, solteiro e contando com 32 anos. Em 10 de setembro de
1914, Felix, sofreu “queimaduras de primeiro e segundo graus nas duas mãos, por
explosão de água raz”, informando que possuía nacionalidade norte-americana. Quase

288
Documentos sem número de ocorrência, de 02 e 12/10/1911, v. E13955. Fonte: Boletins de Ocorrência,
Arquivo Público do Estado de São Paulo/APESP.
289
Respectivamente, ocorrências de 02/11/2011 e 06/01/1912, volumes E13955 e E13957. Fonte: Boletins de
Ocorrência, Arquivo Público do Estado de São Paulo/APESP.
dois meses depois, Felix passa por um novo atendimento, agora realizado no Largo do
Riachuelo, no qual revela ter sofrido um “ferimento contuso, por queda quando
alcoolizado”. Neste caso, se de um lado se mantém o nome, o lugar de moradia, no
Albergue Noturno e a profissão de mecânico, de outro seus dados pessoais indicam que ele
era branco, tinha 35 anos e era francês. Talvez Felix, ao dizer que era francês tenha tentado
impressionar os socorristas, mas tudo indica que ele não foi levado muito à sério, tendo
sobressaído a questão do alcoolismo. Francês ou norte-americano, seu destino foi o xadrez.
Quanto aos agentes médico-policiais, a “alteração” mais frequente se refere à
identificação racial, quando a depender do ponto de vista de quem fazia as anotações a
mesma pessoa podia ser classificada como negra, parda, ou mesmo branca. Nunca é
demais lembrar que a classificação implicava em um certo juízo fruto da subjetividade dos
atendentes, e tais juízos não estavam isentos de preconceitos em face ao caráter racial e
étnico dos envolvidos. É bem possível que a classificação das ocorrências oscilasse ao
sabor do sistema de valores culturais e ideológicos dos agentes. Por exemplo, há ocasiões
em que a descrição da ocorrência deixa claro que se trata de acidente no trabalho, mas
consta a palavra desastre, no prontuário. Isso ocorreu com Daniel Antônio, um servente de
pedreiro negro, de 27 anos, residente à Av. Brigadeiro Luís Antônio n.166. De acordo com
o relato do agente, Daniel havia sofrido “diversas escoriações pelo corpo, produzidas pelo
desabamento de uma parede do prédio em construção”, fato que ocorreu na rua Líbero
Badaró290. Tudo leva a crer Daniel estivesse trabalhando no tal “prédio em construção”,
entretanto, o caso foi classificado como “desastre” e não como “acidente no trabalho”. A
interpretação dos fatos não se vinculava necessariamente ao aspecto racial do envolvido,
mas provavelmente fosse uma estratégia para proteger o empregador Radames Pierrot,
branco, carpinteiro residente à rua Manoel Dutra n.35291. A descrição do acidente revela
que ele apresentava “feridas contusas na mão direita, produzidas acidentalmente por uma
plaina”. O caso foi classificado como “desastre”, embora o objeto causador do ferimento,
uma plaina, fosse justamente um instrumento de trabalho da carpintaria.
Em outras circunstâncias, foi possível observar algum tipo de ligação entre os
atores envolvidos no fato descrito com situações e pessoas influentes ou de notoriedade
pública. Vejamos o caso de José da Silveira, um empregado do serviço público, branco, de
35 anos, morador na Av. Brigadeiro Luís Antônio. A descrição do acidente ocorrido com

290
Ocorrência n.872, 09/02/1912, v. E13957. Fonte: Boletins de Ocorrência, Arquivo Público do Estado de
São Paulo/APESP.
291
Ocorrência n.17793, 20/06/1914, v.E13986. Fonte: Boletins de Ocorrência, Arquivo Público do Estado de
São Paulo/APESP.
José em 08 de abril de 1912 relata uma “ferida causada por acidente em uma vidraça”,
classificada como desastre. Sem mais pormenores, a ocorrência chama a atenção pela nota
abaixo do histórico: “O Sr. Dr. Sá Pinto pede que não seja dada publicidade a esta
ocorrência”. Aqui, cabe chamar a atenção para o fato de as ocorrências policiais serem
noticiadas diariamente pela imprensa – no caso do jornal O Estado de São Paulo, na
secção “Notícias Diversas” – através da qual, a população tinha acesso a quase tudo o que
acontecia na cidade. Curiosamente, o profissional citado, Raul de Sá Pinto, era médico da
Secretaria de Segurança Pública, portanto, um servidor público como José292; por outro
lado, conforme a escala de trabalho prevista para o dia 08 de abril, o Dr. Sá Pinto estaria
ausente nesse dia293. Dessa maneira, até por não ser possível saber as circunstâncias exatas
do acidente com a vidraça – se havia outras pessoas envolvidas, se foi no local de trabalho,
etc –, a orientação do médico causa estranheza, levando a supor que se tratava de uma
situação mais grave à qual a população não devia ter acesso.
Um outro caso é aquele do acidente com Zuleica Becker, uma garota de 8 anos,
moradora na rua Fortaleza n.12. Ao que indica o histórico do posto médico, a menor sofreu
“contusão produzida por choque entre dois automóveis”, na estação da Freguezia do Ó294.
O relatório não entra em detalhes quanto às causas do acidente, nem cita o número da placa
dos veículos envolvidos como era comum ocorrer e o caso é concluído com a palavra
reservado. Disso se depreende que as pessoas envolvidas possuíam alguma notoriedade
pública, por isso a necessidade de sigilo.
Embora em ocorrências como as relatadas acima a discrepância de informações se
mostre flagrante, elas foram bastante escassas em relação ao total dos casos analisados:
apenas 4 casos entre 180 ocorrências (1911-12); 12 casos entre 620 ocorrências (1914-15);
e 8 casos entre as 767 ocorrências de 1925. De toda maneira, creio que o questionamento
dessa fonte documental deve ser um procedimento constante afim de se evitar a
transmissão de visões estereotipadas acerca de uma determinada realidade, risco a que o
pesquisador está invariavelmente sujeito.

292
De acordo com as publicações do Diário Oficial do Estado, a participação dos profissionais (delegados e
médicos) nos atendimentos realizados pela Secretaria de Segurança Pública estava sujeita a escalas de
trabalho pré-estabelecidas pelo órgão. No caso dos médicos, as funções podiam se alternar entre plantão
noturno e plantão diurno e, para cada turno, entre médico interno (o profissional que atendia no próprio
posto médico), e médico externo (aquele que fazia o atendimento em domicílio ou na via pública).
293
No dia 08/04/1912, conforme com a escala de trabalho publicada no Diário Oficial, os médicos
responsáveis pelo plantão noturno eram J.L. Guimarães (médico da noite), França Filho (médico interno), e
A. de Castro (médico externo). Fonte: DOSP, 09/04/1912, p.1429.
294
Ocorrência n.2050, 29/04/1912, v. E13960. Fonte: Boletins de Ocorrência, Arquivo Público do Estado de
São Paulo/APESP.
Figura 156 – Localização do complexo de cortiços Vila Barros, entre as ruas Santo Amaro, Jacareí e Japurá (antiga
Travessa Jacareí. De acordo com a numeração na planta SARA Brasil, o número 1 corresponde ao prédio do Vaticano; o
número 2 aos dois prédios abrangidos pelo Geladeira; o número 3 às casas do Navio Parado, edificadas por Francisco
Lopes de Oliveira Barros, aproximadamente entre 1922 e 1923; e o número 4 ao Pombal. Tudo indica que, com exceção
do prédio do Vaticano, as casas voltadas para a rua Santo Amaro podem ter sido ocupadas por pessoas das camadas
médias, diferentemente do ocorrido nos demais, voltadas para o pátio interno, entre o Pombal, o Geladeira e o Navio
Parado. Fonte: Planta SARA Brasil, 1931. AHSP.

Uma contribuição relevante dos Boletins de Ocorrência se refere a moradores da


Vila Barros, localizada entre as ruas Santo Amaro, Jacareí e a Travessa Jacareí (atual rua
Japurá), conforme a Figura 156 acima. Trata-se de um complexo de cortiços popularmente
conhecidos como “Vaticano, Geladeira, Pombal e Navio Parado”, os quais julgamos que
sejam tão paradigmáticos do habitar coletivo quanto aqueles do Saracura. O mais antigo é
o Vaticano, instalado em uma antiga construção colonial com três pavimentos, na rua
Santo Amaro entre o Largo do Riachuelo e a rua Jaceguai. Não consegui obter notícias
acerca da data de construção dos prédios que configuravam o Geladeira e o Pombal, mas as
imagens disponíveis levam a crer que tenham sido edificadas nas duas primeiras décadas
do século XX.
Figura 157 – Fachada do casarão onde, no início século XX, se instalaria o cortiço Vaticano. Fonte:
http://blogpaulista.blogspot.com.br/2008/08/construes-que-no-existem-mais.html. Consulta em 21/02/2016.

Figura 158 – Este detalhe fornece uma vista parcial de um dos prédios que formavam o cortiço Geladeira. À esquerda,
parte do Navio Parado, onde se pode ver a área de circulação comum dos moradores. Em segundo plano, à direita, temos
os fundos do cortiço Vaticano. Data: 1942. Benedito J. Duarte e Antônio R. Muller. Fonte:
http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=fotos&pagfis=3931. Consulta em: 21/02/2016.
Figura 159 – Fachada de casas do cortiço Pombal, voltadas para a rua Japurá; entre os dois prédios observamos uma
passagem para o interior do pátio interno do complexo. Data: 1942. Benedito J. Duarte e Antônio R. Muller. Fonte:
http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=fotos&pagfis=3931. Consulta em: 21/02/2016.

Figura 160 – Vista dos fundos do Pombal, voltados para o pátio interno do complexo. Data: 1942. Benedito J.
Duarte e Antônio R. Muller. Fonte: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=fotos&pagfis=3931.
Consulta em: 21/02/2016.

Já sobre o Navio Parado obtive informações mais fundamentadas. Há na Série


Obras Particulares um projeto que remete à possível origem da Vila Barros. Em
17/01/1922, Francisco Lopes de Oliveira Barros encaminhou à Diretoria de Obras um
projeto para alteração de um edifício à rua Santo Amaro n.58. De acordo com a planta
apresentada, essa era uma construção de três pavimentos na qual se distribuíam sete
dormitórios, escritório, sala de bilhar, rouparia, cômodo para malas e duas latrinas
localizadas fora do corpo da casa (Obras Particulares, 17/01/1922, Cx.S4). Num primeiro
momento supus que em vista da Diretoria de Obras não ter questionado o projeto, se
tratasse de uma pensão ou um hotel, o que não se confirmou. Já para o ano de 1923,
localizei um pedido de licença para a construção de 30 casas no mesmo endereço, à rua
Santo Amaro n.58, com fundos voltados para as ruas Japurá (antiga Travessa Jacareí) e a
própria rua Jacareí (Obras Particulares, 1923, OP138-S4). Ao confrontar essas informações
com a Planta SARA Brasil, verifiquei a presença de dois conjuntos de casas, o primeiro
com acesso pela própria rua Santo Amaro, cuja numeração inicial seria na esquina com a
rua Jacareí, conforme apontado na planta SARA Brasil (Figura 156).

Figura 161 – Vista do cortiço Navio Parado, voltado para o pátio interno da Vila Barros. À direita da imagem, acima do
Navio Parado, casario da rua Santo Amaro. Data: 1942. Benedito J. Duarte e Antônio R. Muller. Fonte:
http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=fotos&pagfis=3931. Consulta em: 21/02/2016.

Figura 162 – Detalhe do corredor de circulação interna do Navio Parado. Data: 1942. Benedito J. Duarte e Antônio
R. Muller. Fonte: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=fotos&pagfis=3931. Consulta em:
21/02/2016295.

295
Com exceção da Figura 157, o conjunto de imagens do complexo de cortiços onde se localizava a Vila
Barros encontra-se disponível no ótimo site Rede Memória-Rede da memória virtual brasileira. Trata-se de
O segundo conjunto localizava-se exatamente atrás do primeiro, porém desta feita
não é possível identificar com exatidão por onde se entraria nas casas. É justamente este
conjunto de casas que configura o cortiço Navio Parado. De acordo com Nabil Bonduki:
Principal edifício do conjunto, o ‘Navio Parado’ ocupava o antigo vale do rio Bexiga. De
grandes dimensões, tinha dois pavimentos e era ladeado por varandas que serviam
simultaneamente de área de circulação, de sociabilidade e cozinha. Cada unidade do
cortiço, segundo relatos de antigos moradores, era constituída de dois cômodos com
dimensões razoáveis. Isolado no terreno, o ‘Navio Parado’ foi de certo modo o primeiro
bloco habitacional da cidade, rompendo com a lógica do lote (Bonduki, 1998, p.56).

No entanto, a configuração como um “bloco habitacional” nas condições em que


foi construído, ainda que permitisse a circulação e a sociabilidade dos moradores, aspectos
que sem dúvida são positivos, facilitaram sua transformação em cortiço, se é que essa não
era a intenção do proprietário, Francisco Lopes de Oliveira Barros. Sobre ele, as poucas
informações obtidas indicam que era um “empresário e capitalista”, que pelo menos entre
1915 e 1917 foi proprietário de terrenos e casas na rua Barata Ribeiro, localizada à margem
direita do vale da Saracura, no bairro da Bela Vista. Além disso, foi acionista da Cia.
União de Registro de Café, cujo primeiro objetivo era “operar como intermediária entre
as partes interessadas na compra e venda de café”296. Data de 10/07/1915, uma ação
reivindicatória por parte de Maria Isabel Paim (Vieira) e outros contra Francisco Lopes de
Oliveira Barros e outros297. Maria Isabel pertencia à família Paim, proprietária de terras na
região, e talvez a ação a que se refere a nota no jornal tenha a ver com a negociação de
terrenos na rua Barata Ribeiro. Essas informações confirmam que Francisco, acima de
tudo, investiu na construção e compra de casas para locação voltadas para as camadas
médias e baixas da população. Em outubro de 1915, ele obteve licença para a construção
de duas casas na rua Barata Ribeiro e, em dezembro de 1917, o jornal O Estado de São
Paulo notificou a compra “do prédio de n.100 da rua Barata Ribeiro, por 7:250$000
contos de réis” pelo mesmo. Já em 1922 Francisco investia na construção das 30 casinhas
da Vila Barros.

fotos de Benedito D. Duarte e Antônio R. Muller.


http://acervo.redememoria.bn.br/redeMemoria/handle/123456789/1/browse?value=Vale+do+Bexiga%3B+ru
a+Japur%C3%A1%3B+Corti%C3%A7o+Geladeira%3B+Corti%C3%A7o+Navio+Parado%3B+Corti%C3%
A7o+Vaticano.&type=subject.
296
O Estado de São Paulo, 01/12/1912.
297
O Estado de São Paulo, 10/07/1915, p.5.
Em 1925, ano em que a construção das casas possivelmente já estivesse concluída,
foram localizadas nos Boletins de Ocorrência, 11 pessoas no número 58 da rua Santo
Amaro, endereço de referência da Vila Barros. Se minhas suposições estiverem corretas,
tratava-se de moradores do cortiço Navio Parado.
ESTADO TIPO
NOME COR IDADE NACIONALIDADE OCUPAÇÃO
CIVIL OCORRÊNCIA
ARISMAR (FILHA DE ARISTIDES NEVES) BRANCA 10MESES - BRASILEIRA - DESASTRE
JOSÉ CARVALHO BRANCA 24 SOLTEIRO BRASILEIRO OPERÁRIO DESASTRE
ALBERTINA DE OLIVEIRA PRETA 28 SOLTEIRA BRASILEIRA DOMÉSTICA DESASTRE
JOSÉ DA SILVA BRANCO 21 SOLTEIRO PORTUGUÊS COMÉRCIO DESASTRE
GUEZA TEREK BRANCO 15 - IUGOSLAVO ESTUDANTE CRIME (DESASTRE?)
ADOLPHO ROSA PRETO 21 SOLTEIRO BRASILEIRO AJUDANTE DE CRIME
MOTORISTA
CHRISTIOSO JOSEPH BRANCO 12 - ALEMÃO OPERÁRIO CRIME
TIBURCIO DA COSTA PINA BRANCO 14 - PORTUGUÊS EMPREGADO NO DESASTRE
COMÉRCIO
MANOEL (FILHO DE DINIZ ARAUJO) BRANCO 13 - PORTUGUÊS VENDEDOR DE DESASTRE
JORNAIS
ODETTE (FILHA DE LUIZ DE GODOY) PARDA 1 - BRASILEIRA - DESASTRE
EDMUNDO DO NASCIMENTO PRETO 32 CASADO BRASILEIRO NEGOCIANTE CRIME

Tabela 76 – Relação dos supostos moradores do cortiço Navio Parado, à rua Santo Amaro n.58. Fonte: Boletins de
Ocorrência, 1925. APESP.

Se pensarmos um universo de 30 domicílios, os 11 casos descritos na tabela acima


configuram uma amostra bastante restrita que não permite maiores conclusões sobre seus
moradores, principalmente no que toca às relações estabelecidas entre eles. Contudo, as
seis crianças e adolescentes (2 brasileiras, 2 portuguesas, 1 alemã e 1 iugoslava) indicam a
presença de pais possivelmente de mesma nacionalidade, o que amplia a amostra. De todo
o modo, observa-se a convivência entre homens, mulheres e crianças de raças,
nacionalidades e ocupações diversas. Quanto à classificação das ocorrências, estas
dividem-se em 8 desastres, pequenos acidentes domésticos tais como quedas acidentais e
intoxicação por ingestão de produto tóxico (caso da criança de 10 meses) e ferimentos
devido à queda de veículos; além de 4 crimes por agressão “por pedra’, “ferro”, “pau” e,
estranhamente, um caso em que o histórico da ocorrência relata um “ferimento por ter sido
atropelado pelo automóvel n.5024”298, costumeiramente classificado como desastre. Por
fim, em apenas duas ocasiões esses fatos ocorreram nas proximidades das moradias, uma
na rua da Abolição e outra na rua Santo Amaro, o que parece insuficiente para que esse
cortiço seja identificado como um foco de violência, pelo menos em 1925. As
investigações que envolveram a Vila Barros contemplaram somente um ano, momento em
que aquele conjunto habitacional era recente e talvez ainda não tivesse sofrido a
deterioração constatada nos anos 1940.

298
Ocorrência n.012766, 05/08/1925, v. E14119. Fonte: Boletins de Ocorrência, Arquivo Público do Estado
de São Paulo/APESP.
Ainda que o número das possíveis habitações coletivas identicadas nos três
períodos analisados não pareça muito significativo, deve-se levar em conta um aspecto que
pode alterar esse quadro, para mais ou para menos. Da mesma maneira que o julgamento a
respeito da presença de moradores de habitações coletivas – baseado no convívio entre
pessoas de diferentes etnias e nacionalidades, sexo e idade, coabitando nos mesmos locais
–, está sujeito a erros de avaliação, não é impossível que em casos de endereços apontados
por uma única pessoa houvesse outros moradores que não pertencessem à mesma família.
PERÍODO DE N. TOTAL N. SUPOSTAS
%
REFERÊNCIA OCORRÊNCIAS HABITAÇÕES COLETIVAS
1911-1912 180 13 7,22
1914-1915 620 65 10,48
1925 767 82 10,69

Tabela 77 – Relação percentual entre o número de habitações coletivas sugeridas pelos Boletins de Ocorrência e o total
de atendimentos nos períodos investigados. Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.

Nas duas situações trabalhei com hipóteses de difícil comprovação. Difícil, mas
não impossível. Ao confrontar os endereços fornecidos pelos Boletins de Ocorrência com
aqueles contidos nos projetos para construção e/ou reforma de imóveis encaminhados à
Diretoria de Obras do município, localizei pelo menos dois casos em que os pareceres
técnicos dos engenheiros responsáveis confirmam essas impressões.
Em 07/05/1912, Vicente d’Andrea “tendo sido intimado a construir uma cozinha
nos baixos da casa existente, conforme a planta junta, solicita aprovação da mesma”. A
casa, à qual Vicente se referia, localizava-se a rua São Domingos n.7. Conforme o parecer
de 18/05/1912, “trata-se de prédio de habitação comum, que se acha com caráter de casa
coletiva”; alguns dias depois o parecer definitivo assim justificava a recusa em dar a
licença: “Deve ser indeferido para evitar a permanência e aumento (de) cortiço” (grifo
nosso).
Abaixo, visualizamos o projeto apresentado por Vicente no qual os cômodos sem
ligação entre si e com portas voltadas para um corredor comum comprovam os pareceres
dos engenheiros. Constata-se assim que era nessa casa que o operário Alcebíades Lucas, de
22 anos, residia em 12/02/1912, quando do seu envolvimento em um crime ocorrido na rua
Florêncio de Abreu, no centro da cidade.
Figura 163 – Ao lado, a planta baixa da propriedade de
Vicente d’Andrea, à rua São Domingos n.7. O projeto
indica um sobrado existente, composto no térreo de oito
cômodos sequenciais. Os três primeiros cômodos não
possuem circulação interna, somente portas para o
corredor descoberto. Com exceção do primeiro
cômodo, que não possui janela alguma, os demais
apresentam janelas e portas para o mesmo corredor. O
corredor também dá acesso ao quarto cômodo, uma
provável sala de jantar. A partir da sala, o corredor
alarga prolongando-se para a parte posterior do prédio
e, dando acesso a quatro pequenos “quartos”, também
independentes. Entre estes, apenas o terceiro possui
uma janela voltada para fora. Por fim, o último
cômodo, destinado à cozinha. O corte se relaciona aos
fundos da edificação, demonstrando se tratar de um
sobrado, ou da ocupação do porão. Fonte: Obras
Particulares. OP1912/003.902/PR001. AHSP.

José Maria Passalacqua, um dos proprietários que mais imóveis possuía no


bairro do Bexiga, solicitou em 11/07/1914 licença para a construção de uma cozinha,
latrina e dois tanques nos fundos do terreno à rua Rui Barbosa n.131. Conforme é possível
perceber no projeto encaminhado, o terreno já contava com quatro cômodos amplos, todos
sem aberturas para a rua. A introdução de cozinha, latrina e tanques talvez significasse para
o proprietário uma forma de não ter problemas com a Inspetoria de Higiene, já que assim
estaria cumprindo os princípios do artigo 115 do Código Sanitário que rezava que “Deverá
haver uma latrina para cada grupo de 20 moradores”. No entanto, o processo iniciado em
1914 ainda rendeu alguns anos de embate entre a Diretoria de Obras e José Maria, tendo
terminado aparentemente em 15/03/1917 quando o engenheiro Arthur Saboya deu seu
parecer: “(Trata-se) de aumento de cortiço existente, em desacordo com o Código de
Posturas, Artigo 20, não sendo pela Lei n.1788, Artigo 5, então vigente, tolerados novos
cortiços e, consequentemente, aumento dos existentes”.
Figura 164 – A planta demonstra uma série de quatro cômodos (de) “frente para Rua Rui Barbosa nº 131”. Ao lado da
edificação há um corredor de acesso ao pátio interno, bastante grande e, nos fundos, os cômodos propostos no projeto.
Nenhum dos cômodos existentes possui porta ou janela para a rua! São todos independentes entre si e, seus vãos estão
voltados para o pátio comum. Fonte: Obras Particulares, Processo de 11/07/1914, Cx. R-2. AHSP.

O projeto apresentado por José Maria Passalacqua é posterior à ocorrência com


Josepha Camargo, em 15 de janeiro de 1912, ocasião em que ela, uma viúva de 35 anos,
ocupada em “serviços domésticos”, foi vítima de agressão em sua residência à rua Rui
Barbosa n.131. Infelizmente, não é possível deduzir a partir do Boletim de Ocorrência, as
circunstâncias da agressão, mas o fato de ter acontecido na própria residência sugere que
podia se tratar de uma briga entre vizinhos ou mesmo entre familiares.

4.3 Nacionalidades e etnias

Convém lembrar que tratando-se de um órgão policial, cujas finalidades primeiras


eram a manutenção da ordem e o controle social em quaisquer circunstâncias e espaços da
cidade, o registro de informações acerca dos atores sociais envolvidos em algum tipo de
ocorrência era fundamental.
Em se tratando de sujeitos estigmatizados pela cor da pele – negros e mulatos –,
invariavelmente associados à vadiagem, e de nacionais e estrangeiros que eventualmente
apresentassem comportamentos que contrariassem as normas prescritas, o registro nos
Boletins de Ocorrência era uma primeira forma de triagem para ações policiais posteriores.
Sob uma outra perspectiva, para o pesquisador contemporâneo essas informações podem
auxiliar na montagem de um quebra-cabeças composto de indícios vagos e incertos acerca
de quem eram os moradores da cidade, como ocorre com os nomes e sobrenomes citados
em outras fontes primárias. Assim é que a possibilidade de identificação de etnias e
nacionalidades está entre uma das principais contribuições dos Boletins de Ocorrência.
Quando pensamos na entrada de pessoas oriundas de diferentes países, devemos
levar em conta que a adaptação e integração ao novo ambiente é um processo com duração
difícil de mensurar. Nesses casos, é plausível pensar que as pessoas se agrupem por laços
de solidariedade segundo bagagens sócio culturais comuns, lugares de procedência e
vínculos familiares pregressos (Lanna, 2011) o que pode implicar a reprodução de valores
originais do grupo por gerações. Diante dessa perspectiva, ao contabilizar os indivíduos
oriundos de países diversos, como Itália, Portugal, Espanha, etc., busquei ir além dos dados
fornecidos pelos Boletins. Num primeiro momento identifiquei o número exato de pessoas
de cada nacionalidade, sobretudo os italianos. Posteriormente, no caso dos italianos,
agrupei os indivíduos daquela nacionalidade àquelas que, supostamente, seriam as
primeiras gerações nascidas no Brasil. Um procedimento semelhante foi utilizado em
relação aos brasileiros brancos e aos afrodescendentes. Oficialmente, ambos são definidos
como brasileiros, mas as diferenças culturais, assim como as cargas emocionais ditadas
pela sua história particular os distingue dos habitualmente definidos como “nacionais”.
Dessa maneira, acredito ter obtido um panorama, ainda que aproximado, da ocupação do
bairro do Bexiga por italianos, brasileiros e outras nacionalidades.
ETNIAS E NACIONALIDADES 1911-12 1914-15 1925
ITALIANOS 57 179 133
73 292 325
ÍTALO-BRASILEIROS (SUPOSTOS) 16 113 192
BRASILEIROS/AFRO-DESCENDENTES 50 95 128
91 205 308
BRASILEIROS/NACIONAIS 41 110 180
PORTUGUESES 7 7 84 84 66 66
ESPANHÓIS 4 4 19 19 27 27
ALEMÃES - - 5 5 7 7
SÍRIOS - - 4 4 5 5
FRANCESES 1 1 2 2 2 2
JAPONESES - - 1 1 2 2
HÚNGAROS - - - - 2 2
ARGENTINOS 1 1 - - 1 1
AUSTRÍACOS - - - - 1 1
INGLESES 1 1 - - 1 1
IUGOSLAVOS - - - - 1 1
DESCENDENTES DE OUTRAS ETNIAS (SUPOSTOS) - - 7 7 17 17
NÃO CONSTA 2 2 - - 2 2
TOTAL 180 180 619 619 767 767

Tabela 78 – Distribuição das etnias e nacionalidades identificadas no bairro do Bexiga, nos três períodos investigados.
Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.

A Tabela 78, no que diz respeito a italianos/ítalo-brasileiros, afrodescendentes/


nacionais, foi organizada em duas colunas para cada período: a primeira contendo os dados
específicos das nacionalidades; e a segunda, o resultado da soma daqueles números que
representam o conjunto desses grupos étnicos. Com exceção dos anos 1911-12, quando o
número de nacionais e afrodescendentes superou o número de italianos, ali se confirma a
preponderância destes sobre os demais em 1914-15 e 1925. Contudo, quando se calcula a
relação percentual entre cada grupo étnico e o total de ocorrências de cada período,
verifica-se que as diferenças entre a presença de italianos e brasileiros no bairro são menos
expressivas: 40,56% de italianos e 50,56% de brasileiros em 1911-12; 47,18% de italianos
e 33,12% de brasileiros em 1914-15; e 42,38% de italianos e 40,16% de brasileiros em
1925. Já em relação à demais nacionalidades, destacam-se portugueses e espanhóis com
presença igualmente significativa no bairro, basicamente nos dois últimos períodos. Um
fato curioso se refere à entrada em cena de japoneses “desgarrados” da comunidade que se
instalou prioritariamente na Liberdade (um em 1914-15 e dois em 1925).
De acordo com dados fornecidos pela EMPLASA, três anos antes da Proclamação
da República, os italianos formavam o maior contingente de estrangeiros na cidade
(80,22%), seguidos dos portugueses e alemães (correspondendo a 11,98% dos habitantes
da capital paulista).
Já em 1920, em plena vigência da Primeira República, a população italiana se
manteve como a maior colônia estrangeira em São Paulo, perfazendo 15,84% da população
total. Na sequência, vinham os portugueses (11,19%), os espanhóis (4,31%) e os
germânicos (3,07%) – todos em meio a 372.376 brasileiros (64,46%) numa população total
de 577.621 habitantes (EMPLASA, 2001). Abaixo, a partir de tabela da EMPLASA,
contendo a “participação de brasileiros e estrangeiros na composição da população
paulistana”299 (1920), elaborei uma outra tabela com os dados de brasileiros e estrangeiros
moradores no Bexiga, de modo a obter um índice aproximado de sua participação na
composição da população paulistana.
ALEMÃES E
BRASILEIROS ITALIANOS PORTUGUESES ESPANHÓIS TURCOS JAPONESES OUTROS TOTAL
AUSTRÍACOS

372.376 91.544 64.687 24.902 6.237 5.983 966 10.836 577.621


64,46 % 15,84 % 11,19 % 4,31 % 1,07 % 3,07 % 100%

Tabela 79 – Participação de brasileiros e estrangeiros na composição da população paulistana,1920. Fonte: EMPLASA.

299
Tabela 49, ”Cidade de São Paulo e seus arredores. Participação de brasileiros e estrangeiros na
composição da população: 1920”, EMPLASA – Memória Urbana: a Grande São Paulo até 1940, v. 2,
São Paulo: Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2001, p.52. In Schneck, 2010. p.97 e 98.
BRASILEIROS ITALIANOS
PORTUGUESES ESPANHÓIS OUTRAS SÍRIOS JAPONESES DESCENDENTES
(NACIONAIS (NATOS E Ñ/ C TOTAL
(NATOS) (NATOS) NACION. (NATOS) (NATOS) OUTRAS NACION.
E AFRO.) DESCEND.)

308 325 66 27 15 5 2 17 2 767


40,16 42,38 8,60 3,52 1,95 3,13 0,26 100%

Tabela 80 – Dados comparativos da participação de brasileiros e estrangeiros moradores no bairro do Bexiga (1925) em
relação à composição da população paulistana em 1920. Fonte: Boletins de Ocorrência, APESP.

Em contraste com o ocorrido na cidade como um todo, nas duas primeiras posições
constata-se em 1925 o predomínio de italianos sobre brasileiros. Quanto às demais
nacionalidades, há um pequeno decréscimo em termos de ocupação do espaço urbano. No
entanto, é sempre bom levar em conta que os atendimentos contidos nos Boletins de
Ocorrência representam apenas com uma amostra da população do bairro que não deve
estar muito longe da realidade.
Outro aspecto a destacar nos dados que envolvem italianos e ítalo-brasileiros se
refere à sucessão de gerações entre o período de 1914-15 e o ano de 1925, quando diminui
sensivelmente o número de crianças de nacionalidade italiana – estas, agora são
substituídas por italianos em idade adulta, e as novas crianças são quase todas brasileiras.
Já os genuinamente italianos são bem mais raros, visto que muitos dos primeiros
imigrantes já morreram.
Interessante perceber o caráter heterogêneo da ocupação do bairro e uma certa
concentração de grupos em determinadas áreas. O loteamento original totalizava 22 ruas
(algumas delas percorrendo toda a extensão do bairro como a Santo Antônio, a Treze de
Maio, a Conselheiro Ramalho e a Major Diogo) e abrigava cerca de 80,01% dos moradores
do bairro que buscaram os serviços médicos das Delegacias de Polícia. Já a “área nobre”
(com seis vias, Brigadeiro Luís Antônio, Asdrúbal do Nascimento, Maria Paula, Aguiar de
Barros, Genebra e Francisca Miquelina) abrigava 12,35% dos residentes no bairro. Por fim,
no Saracura (com somente quatro logradouros, ruas Rocha, Saracura Grande, Saracura
Pequena e o Largo São Manoel) abrigava apenas 7,64% dos habitantes do Bexiga. Neste
último caso, embora se tratasse de ruas relativamente extensas, as condicionantes
topográficas da área, assim como a ausência de infra-estrutura nas primeiras décadas do
século XX, condicionaram uma ocupação tardia e precária, justificando a baixa densidade.
No entanto, ao longo do levantamento das ocorrências nos três períodos investigados foi
possível perceber uma certa concentração de determinados grupos em certas áreas – caso
de portugueses e afrodescendentes, justamente nas ruas da Saracura.
ÁREA LOTEAMENTO
ETNIAS/NACIONALIDADES SARACURA TOTAL
NOBRE ORIGINAL
NACIONAIS 51 257 22 330
ITALIANOS E ÍTALO-BRASILEIROS 67 592 17 676
AFRODESCENDENTES 26 214 33 273
PORTUGUESES 43 143 48 234
ESPANHÓIS 7 51 - 58
194 1257 120 1571
TOTAL
(12,35%) (80,01%) (7,64%) (100%)

Tabela 81 – Distribuição da soma total de 1571 ocorrências nas quais estiveram envolvidas diferentes etnias, pelas três
áreas do bairro do Bexiga. Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.

Já me referi no Capítulo 2 às condições precárias da área do Saracura que


permitiram sua ocupação pelos segmentos mais pobres da população, sobretudo os
afrodescendentes. Os Boletins de Ocorrência, além de corroborar as análises de autores
que versaram sobre a presença negra no Bexiga (Kogurama, 2001; Wissenbach, 2002),
permitem acrescentar à presença já sabida dos afrodescendentes no Saracura, a dos
portugueses, fato constatado por Armandinho do Bixiga, morador no bairro desde o
nascimento até a sua morte em 1994. De acordo com o memorialista, embora o Bexiga
possuísse uma maioria de italianos, na região do Saracura “se localizavam muitos negros e
portugueses”300 (grifo nosso).

4.4 Ocupações profissionais

Ao analisar as ocupações declaradas nos Boletins de Ocorrência encontrei uma


profusão de atividades relacionadas a diferentes setores da economia formal e informal:
produção e comércio de alimentos, vestuário e acessórios, comércio em geral, manufaturas,
construção civil e manutenção predial, transporte de pessoas e mercadorias, trabalhadores
do serviço público, trabalhadores de serviços urbanos, empregados domésticos, etc.
Abaixo, organizei na Tabela 82 os tipos de ocupação predominantes nos períodos
investigados, procurando na medida do possível obedecer as categorias produtivas
elaboradas no Capítulo 2.

300
MORENO, Júlio – Memórias de Armandinho do Bixiga, São Paulo: Editora SENAC, 1996, p.87-88.
ÁREA DE ATUAÇÃO OCUPAÇÕES 1911-1912 1914-1915 1925 TOTAL
AÇOUGUEIRO/CARNICEIRO 1 9 4 14
DOCEIRO 1 - - 1
TRABALHADORES EM SERVIÇOS E
ENSACADOR DE CAFÉ 1 - - 1
COMÉRCIO DE ALIMENTOS
GARÇOM - - 4 4
PADEIRO 1 6 1 8
SUB-TOTAL 4 15 9 28
ALFAIATE 1 14 6 21
BORDADEIRA - - 1 1
TRABALHADORES EM SERVIÇOS E
CHAPELEIRO (A) 1 2 1 4
PRODUÇÃO DE VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS
COSTUREIRA 2 6 2 10
SAPATEIRO 4 18 10 32
SUB-TOTAL 8 40 20 68
BARBEIRO 2 6 1 9
ENGRAXATE - 1 2 3
EMPREGADO DE ESCRITÓRIO - - 3 3
DATILÓGRAFO - - 1 1
CONTADOR - - 1 1
TRABALHADORES PRESTADORES DE GUARDA-LIVROS 1 3 2 6
SERVIÇOS DIVERSOS ADVOGADO - - 1 1
(SERVIÇOS PESSOAIS, PROFISSIONAIS ENGENHEIRO ELETRICISTA - 1 - 1
LIBERAIS E OUTROS) DENTISTA 1 - - 1
PRÁTICO DE FARMÁCIA - - 1 1
FOTÓGRAFO - - 1 1
JORNALISTA 1 - - 1
PRÁTICO DE FARMÁCIA - 1 1 2
PROFESSOR - 4 1 5
SUB-TOTAL 5 16 15 36
CARROCEIRO/COCHEIRO 5 28 11 44
FISCAL DE GARAGEM - - 1 1
TRABALHADORES EM SERVIÇOS DE
LAVADOR DE AUTOMÓVEIS - - 1 1
TRANSPORTE
MOTORISTA - 1 6 7
SELEIRO - 1 - 1
SUB-TOTAL 5 30 19 54
CAIXEIRO (A) - - 2 2
COBRADOR - 1 - 1
COMERCIANTE/COMÉRCIO - 1 36 37
CORRETOR - 1 - 1
EMPREGADO NO COMÉRCIO 8 24 25 57
TRABALHADORES NO COMÉRCIO EM NEGOCIANTE 5 6 11 22
GERAL VENDEDOR AMBULANTE 3 6 1 10
VENDEDOR DE BILHETES - 1 - 1
VENDEDOR DE FLORES - 1 - 1
VENDEDOR DE FRUTAS 1 - 1 2
VENDEDOR DE GALINHAS - 1 1 2
VENDEDOR DE JORNAIS/JORNALEIRO - 3 8 11
SUB-TOTAL 17 45 85 147
CARTEIRO/TELÉGRAFO - 1 3 4
CORPO DE BOMBEIRO - 2 - 2
LIMPEZA PÚBLICA - 1 1 2
TRABALHADORES NO SERVIÇO PÚBLICO MILITAR/SOLDADO GUARDA CÍVICA 2 22 9 33
OFICIAL DE JUSTIÇA - - 1 1
OPERÁRIO DA PREFEITURA - - 1 1
SERVIÇO PÚBLICO 2 3 2 7
SUB-TOTAL 4 29 17 50
EMPREGADO DA LIGHT 1 - 2 3
TRABALHADORES EM SERVIÇOS EMPREGADO DA CIA. TELEFÔNICA - - 2 2
URBANOS PRIVADOS FERROVIÁRIO 1 - 1 2
TELEFONISTA - - 1 1
SUB-TOTAL 2 - 6 8
CANTEIRO - 2 - 2
CARPINTEIRO 4 9 6 19
CONSTRUTORES E EMPREITEIROS DE - - 4 4
OBRAS
ELETRICISTA - 1 2 3
ENCANADOR 1 1 1 3
TRABALHADORES NA CONSTRUÇÃO
ENCERADOR - 1 1 2
CIVIL E MANUTENÇÃO PREDIAL
ESCULTOR 1 - - 1
ESTUCADOR - 1 - 1
GAZISTA - 1 - 1
LUSTRADOR - 1 - 1
MARCENEIRO 1 3 3 7
MARMORISTA - 1 - 1
MODELADOR 1 - - 1
PEDREIRO/SERVENTE DE PEDREIRO 14 43 21 78
PINTOR 1 6 9 16
SERRADOR - - 1 1
SERRALHEIRO 2 - - 2
VIDRACEIRO - 3 - 3
SUB-TOTAL 25 73 48 146
ARRUMADEIRA - - 1 1
CHOFER 1 6 14 21
COPEIRA(O) 3 6 5 14
TRABALHADORES NO SERVIÇO COZINHEIRA(O) 10 22 11 43
DOMÉSTICO CRIADA(O) 1 8 2 11
ENGOMADEIRA 1 2 - 3
JARDINEIRO 2 1 2 5
LAVADEIRA 2 2 1 5
SUB-TOTAL 20 47 36 103
FERREIRO 4 2 1 7
FOLHEIRO - 1 - 1
FUNILEIRO - 2 2 4
TRABALHADORES COM MANUFATURAS
GALVANIZADOR - - 1 1
EM METAL
GRAVADOR - - 1 1
MECÂNICO 1 10 4 15
OURIVES/RELOJOEIRO - 3 2 5
SUB-TOTAL 5 18 11 34
EMPREGADO 2 15 1 18
TRABALHADORES EM GERAL OPERÁRIO 12 30 110 152
TRABALHADOR 9 13 1 23
SUB-TOTAL 23 58 112 193
ARTISTA - 2 - 2
BRITADOR - 1 - 1
CALCETEIRO - - 3 3
CARREGADOR - 1 1 2
ENCADERNADOR - - 1 1
FOGUETEIRO - - 1 1
LAVRADOR 1 1 - 2
MAQUINISTA - - 1 1
OUTROS
MENSAGEIRO 1 - - 1
MERETRIZ - 2 - 2
MOLDUREIRO - 1 - 1
OLEIRO - 1 - 1
OPERADOR DE TEATRO - 1 - 1
REFINADOR - 1 - 1
TANOEIRO - 2 - 2
TIPÓGRAFO - - 1 1
SUB-TOTAL 2 13 8 23
CAPITALISTA - - 2 2
FAZENDEIRO - 1 - 1
CAPITALISTAS
INDUSTRIAL - - 2 2
PROPRIETÁRIO - 4 4 8
SUB-TOTAL - 5 8 13
COLEGIAL/ESCOLAR 2 25 49 76
SEM OCUPAÇÃO PRODUTIVA
SEM OCUPAÇÃO 25 112 117 254
(MENORES DE 18 ANOS E ESTUDANTES )
ESTUDANTE 1 3 7 11
SUB-TOTAL 28 140 173 341
DOMÉSTICA/SERVIÇO DOMÉSTICO 21 87 127 235
PRENDAS DOMÉSTICAS
NÃO CONSTA - - 67 67
SUB-TOTAL 21 87 194 302
NÃO CONSTAM INFORMAÇÕES - 11 3 6 20
TOTAL 180 619 767 1566

Tabela 82 – Ocupações dos moradores do Bexiga, identificadas nos Boletins de Ocorrência, em 1911-12, 1914-15 e
1925. Fonte: APESP.

O primeiro aspecto a destacar é a pulverização das diferentes ocupações, quaisquer


que fossem as atividades principais, em todos os períodos investigados. O segundo aspecto
se refere à população improdutiva, composta por crianças e estudantes e pelas mulheres
ocupadas nos serviços domésticos. As duas categorias juntas somam 643 indivíduos – ou
41,06% do total dos 1566 documentos analisados, contra os 58,94% restantes distribuídos
pelas demais áreas de atuação (923 documentos). Esta constatação, mais do que indicar um
contingente supostamente “ocioso” de moradores, demonstra duas coisas: uma alta taxa de
natalidade entre os moradores do bairro, bem como que a grande maioria das mulheres, se
não trabalhava fora o fazia dentro de casa, se ocupando dos afazeres domésticos, do
cuidado com os filhos ou ainda, quem sabe, “lavando roupa para fora”. No entanto, foi
comum encontrar crianças trabalhando – entre os 471 menores de 18 anos, 124
desempenhavam algum tipo de atividade produtiva – algumas delas com apenas 9, 10, 11
anos. As meninas geralmente como costureiras, bordadeiras, copeiras, criadas ou operárias;
os meninos como carroceiros, sapateiros, auxiliares de alfaiates, serventes de pedreiro,
operários, empregados no comércio, aprendizes, etc. Quanto às mulheres, quando não
trabalhavam fora, os memorialistas dão testemunhos de que seu trabalho não se restringia
ao ambito doméstico – frequentemente eram mulheres que em seu próprio domicílio
exerciam funções de lavadeiras, engomadeiras, costureiras.
Cabe lembrar que do ponto de vista da população, naquele momento os valores
atribuídos ao trabalho e ao trabalhador eram outros. Numa população carente de recursos,
os ganhos mesmo que parcos das crianças e mulheres significavam uma efetiva
colaboração para a sobrevivência das famílias. A cultura contrária ao trabalho infantil é
recente e o mesmo estava longe de ser visto como exploração, mas sim como forma de
“entrada para a idade adulta”. Tampouco o trabalho estava regulado por leis sociais
específicas que datam da Era Vargas os seus primórdios.
Por outro lado, é possível perceber que nos intervalos dos três períodos
investigados houve uma valorização da educação formal: em 1911-12 identifiquei dois
escolares de 11 anos e um estudante de 20 anos; em 1914-15 havia 22 escolares que
contavam entre 8 e 17 anos, mais 3 estudantes, com 17 e 21 anos; já em 1925, havia 49
escolares com idade entre 6 e 17 anos e 7 estudantes com mais de 15 anos, um deles era
estudante de Farmácia. Um fato importante para essa valorização da escola pode ser
atribuído à presença de instituições de ensino no bairro, particularmente aquelas criadas
por iniciativa da colonia italiana. Além das quatro escolas públicas301, localizei nas páginas
do Almanaque Laemmert onze instituições vinculadas à Federação das Escolas Italianas

301
Me refiro-me à Escola Modelo Maria José, na esquina das ruas Manoel Dutra e Treze de Maio; ao Grupo
Escolar da Bela Vista, na esquina das ruas Major Diogo e São Domingos; ao Grupo Escolar de Santo
Antonio, na rua do mesmo nome; e à Escola de Primeiras Letras, na esquina das ruas Santo Amaro e Aguiar
de Barros. Fonte: www.crmariocovas.sp.gov.br/. Consulta em: 21/10/2015.
em São Paulo302, distribuídas pelas ruas Conselheiro Carrão, Conselheiro Ramalho,
Fortaleza, Major Diogo e Rui Barbosa.
Com exceção das crianças, estudantes, e mulheres “do lar” somente os indivíduos
que se declararam (vagamente) como operários, trabalhadores e empregados tiveram uma
representação mais significativa, 12,32% da amostra total. No entanto, nas demais ramos
de atuação, apesar da quantidade restrita de trabalhadores registrada para cada caso,
algumas atividades apresentaram números relevantes, caso particular dos 78 pedreiros e
serventes de pedreiros, dos 57 que se se declararam como empregados no comércio, como
também dos 37 comerciantes (proprietários de negócios), dos 44 cocheiros e carroceiros,
das 43 cozinheiras e dos 33 soldados. Decididamente este era o perfil das camadas médias
e baixas ali residentes: comerciantes e empregados no comércio, ambulantes, carroceiros,
soldados e pedreiros.
Do ponto de vista da urbe, quando observamos as áreas de atuação profissional às
quais estas atividades estavam relacionadas, vemos que se tratava de ocupações que
correspondiam a um momento específico da cidade de São Paulo nas primeiras décadas do
século passado.
A expansão territorial imposta pela inserção e modernização da capital paulista no
panorama econômico e político mais amplo, associava-se à edificação de novos prédios
públicos e particulares, atribuição dos 146 trabalhadores da construção civil e manutenção
predial (9,32% da amostra). Para termos uma idéia do papel representado pelo setor,
conforme a divulgação de dados da Territorial Sant’Anna, em 1913 havia nos distritos
paulistanos 43.940 prédios construídos; em 1919, eles chegariam a 57.154 edifícios, ou
seja, em apenas seis anos houve um acréscimo de 30,07% de novas construções303.
Para a dinamização do comércio de produtos diversificados que atendessem as
necessidades (essenciais e supérfluas) de consumo da população em constante ritmo de
crescimento, 147 moradores do bairro contribuíram com 9,39% da amostra. Entre os
demais, 37 se declararam como comerciantes e 22 como negociantes, do que se deduz que
nos dois casos se tratasse de donos de seu próprio negócio. Cabe destacar ainda o lugar
ocupado pelas 27 pessoas responsáveis pelo comércio ambulante – embora em número
reduzido, esses trabalhadores demonstram a permanência de uma forma de comércio que

302
Conforme informado pelo jornal O Estado de São Paulo: “Sob esta denominação (Federação das Escolas
Italianas) ficou solidamente constituída em São Paulo, sendo reconhecida como personalidade jurídica, de
acordo com as nossas leis, uma associação de socorros mútuos e previdência entre sessenta escolas
preliminares italianas, as quais ensinam também a língua portuguesa, aos seus alunos, em obediência ao
próprio estatuto social e à legislação escolar vigente”. 23/07/1909, p. 4.
303
O Estado de São Paulo, 23/07/1922, p.13.
remonta aos tempos passados. Já os serviços que atendiam ao transporte de pessoas e
mercadorias pelo espaço urbano, num total de 54 pessoas, respondiam por 3,45% dos
trabalhadores do Bexiga. Neste caso, os condutores de veículos movidos à tração animal,
especialmente os carroceiros, desempenharam um papel fundamental para o próprio
comércio urbano, já que muitos deles foram intermediários entre as casas comerciais e a
entrega de produtos ao consumidor final.
Na manutenção de serviços públicos básicos, tais como o recolhimento do lixo e a
limpeza das ruas, o socorro a incêndios, enchentes etc, o serviço burocrático das
repartições públicas e o policiamento e controle do espaço público – realizado pela Guarda
Cívica da capital, vinculada diretamente à polícia local –, identifiquei um total de 50
pessoas, representando 3,20% dos trabalhadores do bairro. No entanto, a participação deste
ramo de atuação no cômputo geral das atividades exercidas por moradores do bairro do
Bexiga seria irrisória não fossem os casos dos 33 membros da Guarda Cívica e 2 do Corpo
de Bombeiros (2)304. Tal constatação nos coloca duas questões: de um lado, reafirma a
importância para o Estado na repressão de comportamentos sociais desviantes através do
controle do espaço público; de outro, parece demonstrar um interesse particular de homens
em idade produtiva, em sua maioria brasileiros e portugueses, em fazer parte das forças
policiais certamente por representar uma carreira com ascensão possível e garantir um
salário fixo...
Ao mesmo tempo em que algumas áreas de atuação profissional colocavam em
evidência o processo de transformação vivenciado pela cidade, no domínio privado se
mantinham práticas de trabalho doméstico herdadas do Império, agora exercidas por
trabalhadores assalariados. Ainda que em número relativamente reduzido no contexto mais
amplo, essas atividades são indicativas de permanências culturais relevantes. Ao lado das
cozinheiras apontadas acima, havia choferes, copeiras, criadas, arrumadeiras e jardineiros
que se ocupavam com a manutenção da boa ordem das casas, totalizando 103 trabalhadores
(6,58%). A historiadora Lorena Féres da S. Telles, ao abordar o trabalho doméstico
desempenhado por negras libertas nos anos que antecederam a Abolição até as primeiras
décadas do século XX, constatou que:

304
De acordo com o pesquisador André Rosemberg, “Em 1901, com a Lei n.776, de 26 de junho, alterou-se
substancialmente (...) a organização policial. Num mesmo ato, extinguiram-se a Brigada Policial e o Corpo
Policial do Interior, criando-se, no lugar, a Força Policial, composta de quatro batalhões de infantaria, um
corpo de cavalaria, um corpo de bombeiros e Corpo da Guarda Cívica (...) A centralização de comando das
corporações da força pública, inclusive da Guarda Cívica, mantém-se como tônica até 1926, quando da
criação de uma Guarda Cívica com comando autônomo”. In Estudos Sociológicos, v.17, n.33, p.13 a 16.
Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/estudos/article/viewFile/5420/4329. Consulta em: 22/10/2015.
Os contratos de trabalho e as inscrições de 1886 indicaram que a especialização dos
criados e a divisão do trabalho doméstico caracterizaram o pessoal a serviço das elites
europeizadas, que distribuíam as tarefas entre diversos empregados. Nas residências de
remediados e classes médias predominaram ‘cozinheiras’ e criadas encarregadas de toda
a faina da casa (2013, p.266, grifo nosso).

Os choferes e jardineiros identificados nos Boletins de Ocorrência são indicativos


da presença de dois símbolos de status social de casas paulistanas – automóveis e jardins –,
sobretudo aqueles cujos proprietários residiam em bairros estritamente residenciais,
confirmando a constatação feita pela autora para os anos 1880. No que toca às cozinheiras
e criadas, a situação certamente também não mudou e deve se aplicar a muitas das
profissionais citadas pelos Boletins de Ocorrência.

Nessa breve análise, abordei apenas as ocupações de maior expressividade nos


setores produtivos urbanos, basicamente, a construção civil (com 146 pessoas), o
transporte (com 54 pessoas) e o comércio (com 147 pessoas), mas também procurei lançar
alguma luz nos setores mais “invisíveis”. Este foi o caso do trabalho doméstico (com 103
pessoas) mas também do serviço público (50 pessoas) aqui basicamente constituído dos
soldados da Guarda Cívica. Porém, os trabalhadores dos demais ramos de ocupações, ainda
que sejam em número reduzido, devem ser levados em conta. Somados os trabalhadores de
todos os setores produtivos, inclusive aqueles menos representativos, vemos que a
população economicamente ativa do bairro compunha-se de 890 pessoas ou 56,83% dos
1566 casos de atendimentos médicos305.
Infelizmente, os Boletins de Ocorrência pouco esclarecem quanto aos locais de
trabalho dos moradores do bairro. Informações nesse sentido permitiriam uma avaliação
mais conclusiva do papel representado por esses atores no mercado de trabalho da capital
paulista como um todo. Saber se esses moradores se aproveitavam dos inúmeros pequenos
negócios existentes no bairro para ganhar a vida ou se o Bexiga era apenas uma opção mais
barata de moradia na medida em que as reais possibilidades de sobrevivência estavam em

305
Para termos uma ideia aproximada do significado desse número de pessoas em relação à população da
capital, tomamos o Censo Demográfico de 1920. De acordo com o recenseamento realizado naquele ano, a
cidade contava então com um total de 10.948 moradores (5.630 homens e 5.318 mulheres). Assim, temos que
os 1566 atendimentos realizados pelas Delegacias de Polícia aos moradores do Bexiga, representavam
aproximadamente – levando em conta que alguns casos se relacionavam à mesma pessoa, e que nem todos os
moradores do bairro se utilizaram desses serviços – 14,30% da população total. Em termos da população
economicamente ativa (890 pessoas), essa porcentagem baixa para 8,12% do total de moradores da cidade.
Recenseamento do Brasil, realizado em 1 de setemro de 1920. Min. da Agricultura, Indústria e Comércio.
Diretoria Geral de Estatísticas, v. IV, População, Tomo II, Rio de Janeiro, 1930.
Disponível em: https://archive.org/details/recenseamento1920predbras. Consulta em: 24/10/2015.
outras áreas da cidade. Com exceção dos 92 casos de acidentes no trabalho, quando as
informações sobre o local da ocorrência indicam claramente o local onde houve o
atendimento ou de onde partiu o chamado por socorro médico, é quase impossível fazer
afirmações categóricas nesse sentido. Em alguns ramos de atuação, o tipo de atividade
desempenhada permite supor que esses moradores podiam trabalhar fora do bairro, caso
dos cocheiros, carroceiros, motoristas, vendedores ambulantes e empregados do serviço
público, isso se estivessem a trabalho na ocasião da ocorrência, o que nem sempre é
possível afirmar com certeza. Outra possibilidade podia ser quando a ocorrência se dava
fora do bairro, mas nesse caso as suposições são de mais difícil comprovação ainda306.
CASOS DE POSSÍVEL OCORRÊNCIA FORA DO BAIRRO 1911-12 1914-15 1925 TOTAL
CASOS COMPROVADOS DE ACIDENTE NO TRABALHO 11 49 32 92
SERVIÇO PÚBLICO EM GERAL 4 25 17 46
TRANSPORTE DE CARGA E MERCADORIAS 6 22 30 58
COMÉRCIO AMBULANTE 4 10 11 25
TOTAL 94 86 111 291

Tabela 83 – Casos passíveis de serem interpretados como “trabalho fora do bairro”. Fonte: Boletins de
Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.

Supondo que o total de 291 casos listados na tabela acima se refira a pessoas que
realmente trabalhavam fora do Bexiga – aproximadamente 32,70% da população
economicamente ativa (890 pessoas) –, pode-se arriscar que a maioria prestava serviços a
terceiros ou trabalhava em negócios próprios ali mesmo. Por outro lado, no decorrer deste
trabalho foi possível constatar que as atividades produtivas desenvolvidas no interior do
bairro, ainda que tenham sido numerosas, eram de pequeno porte, comportando um
número reduzido de trabalhadores, o que torna essa afirmação de difícil sustentação. Já a
comparação entre os dados dos diferentes períodos, onde constatei a permanência de
poucas pessoas no intervalo de quatorze anos, indica uma população altamente flutuante, o
que leva a pensar que o Bexiga era apenas uma opção mais barata de moradia e que as
reais possibilidades de sobrevivência estariam em outras áreas da cidade. Esse bem que
poderia ser o caso dos trabalhadores classificados como da construção civil e manutenção

306
Na tentativa de obter informações mais esclarecedoras acerca dos sujeitos que passaram pelos postos
médicos das Delegacias de Polícia, buscamos cruzar os dados dos Boletins com outras fontes documentais: o
Almanaque Laemmert, com a localização e os nomes dos proprietários dos negócios, a série Alvará e
Licença, com os pedidos de licença para funcionamento e/ou renovação de licença junto à municipalidade, e
por fim, a série Obras Particulares, com os nomes dos proprietários de imóveis no bairro. O resultado dessa
busca demonstrou que poucas das pessoas atendidas nos postos médicos se identificavam ou possuíam
vínculos familiares comprovados com os atores verificados naquelas fontes. Mesmo levando em conta que a
presença de sobrenomes comuns pode ser indicativa de laços de parentesco entre famílias que viveram no
Bexiga, caso especial dos imigrantes, o número de coincidências é muito reduzido e não permite maiores
conclusões.
predial – hipótese endossada por Grünspun para os anos 1930307 –, bem como do comércio
e dos serviços urbanos prestados por empresas particulares. De toda maneira, essas são
questões que permanecem em aberto reivindicando mais investigações.
Por fim, um último aspecto das ocupações exercidas pelos moradores do bairro a
ser levado em consideração se refere ao fato de que a maioria absoluta dos atores sociais
indicados nos Boletins exercia funções/ocupações que exigiam pouca ou nenhuma
especialização e que podiam ser desempenhadas pelos setores médios e baixos da
sociedade. Tal constatação só vem confirmar o caráter popular do bairro do Bexiga. Talvez
um pouco menos na “área nobre”, mas certamente no loteamento original e no Saracura.

4.5 Causas das ocorrências

Ao longo das primeiras décadas do século XX, o bairro do Bexiga foi


frequentemente citado nas páginas dos jornais da cidade. Moradores indignados se
queixavam da ineficácia ou até mesmo inexistência de serviços urbanos básicos, tais como
iluminação, transporte, limpeza pública, falta de calçamento nas ruas, falta de
policiamento, etc. As páginas policiais relatam inúmeros casos de vítimas, ora de acidentes
domésticos com crianças, de atropelamentos, de agressões que eventualmente podiam
resultar em assassinatos, de tentativas de suicídio, de casos de embriaguez, de furtos etc.
Quase sempre, o que sobressai desses relatos é o aspecto depreciativo do lugar e a
associação a um modo de vida condenável – se não pela promiscuidade dos incontáveis
cortiços espalhados pelo bairro, pela índole “naturalmente” violenta de certos moradores.
Um caso exemplar dessa maneira de ver o bairro é a carta enviada por um queixoso ao
redator do jornal O Estado de São Paulo:
No lugar denominado Saracura-Grande, distrito do Bexiga, existe uma população já
densa, constituída de indivíduos de todas as nacionalidades. É, já se vê, um
bairro’policiável’. Dão se nele frequentemente fatos graves, cujo conhecimento escapa de
toda a nossa policia e que são de sua rigorosa alçada. As rixas, mais ou menos graves, que
ai tem lugar, repetem-se todos os dias, a todas as horas. Os moradores vêm-se
continuamento sujeitos a vexames por parte da garotada das ruas, que ai campeia

307
De acordo com o autor ,“os homens do Bexiga que eram convocados para ajudantes de alguma
construção nos novos bairros que começavam. Além dos bairros granfinos da Comopanhia City – o bairro
popular de Pinheiros[...] Os homens eram ajudantes por dia [...] ou os melhores abridores de buracos em
São Paulo: - os buracos da Repartição de Águas da Companhia de Gás, ou os melhores lascadores de
pedras”. (Grünspun, 1979, p.37).
infrenemente (sic), quebrando-lhes a pedradas as vidraças das casas, etc., etc. E tudo isto
porque? Porque na turbulenta Saracura-Grande não existem policiais.308 (grifo nosso).

Raramente se encontra um texto como aquele citado por Nicolau Sevcenko em


Orfeu Extático da Metrópole, onde o reporter e cronista “P.” inicia a matéria destacando o
caráter laborioso dos moradores do Bexiga:
O Bexiga [...] é, como o Brás e o Bom Retiro, dos bairros mais populosos da cidade. Por
aquelas ruas modestas vive uma grande população, humilde sim, mas ativa e laboriosa, e
tão merecedora da simpatia e dos zelos dos poderes municipais como qualquer outra. Ora,
quem se der ao trabalho de percorrer esse bairro, ficará impressionado com a maneira de
vida dos que o habitam. Há por ali, nas vias principais, muitas casas grandes, mas são
raras as que já se não transformaram em cortiços. E se a gente se embrenhar pelas ruas
menos movimentadas, há de ver casebres dando abrigo a duas e três famílias, cada uma
das quais morando num só quarto ou quando muito em dois, numa promiscuidade
deplorável. Tudo isto não está a demonstrar que os vereadores deveriam fazer alguma
coisa por melhorar, na medida do possível, a vida dos moradores do Bexiga? 309.

Contudo, ainda que “P.” tenha se mostrado simpático ao bairro, ele e o leitor
queixoso partilham uma opinião comum – a responsabilidade do poder público pelas
condições de vida dos moradores. Não consegui obter informações acerca de quando data a
obrigatoriedade do registro das ocorrências médico-policiais em “Boletins de Ocorrência”,
o que possivelmente se deve a esse tipo de reclamação/reivindicação. A necessidade de
controle dos citadinos cada vez mais numerosos certamente passava pela posse de
informações mais detalhadas sobre os indivíduos e sobre as circunstâncias que os levavam
a requisitar os serviços médico-policiais. Contudo, para o pesquisador a riqueza de detalhes
revelados pelos históricos das ocorrências fornece subsídios para uma elaboração mais
consistente do perfil dos atores sociais, permitindo assim uma análise mais fundamentada
do contexto onde se inseriam.
A primeira evidência na Tabela 84 abaixo se relaciona ao baixo número de
ocorrências verificadas – apenas 180 casos – no primeiro período investigado, entre
outubro de 1911 e maio de 1912, o que talvez possa ser creditado mais do que a qualquer
outra coisa às dificuldades iniciais do órgão de segurança pública de enquadrar os
atendimentos realizados.

308
O Estado de São Paulo, Seção “Queixas e Reclamações”, 25/04/1911.
309
Reportagem publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 15/08/1919. In SEVCENKO, Nicolau, Orfeu
Extático da Metrópole, 1992, p.131-132.
CLASSIFICAÇÃO CAUSAS OCORRÊNCIAS 1911-12 1914-15 1925 TOTAL %
SOCORRO EM DOMICÍLIO/SOCORRO A PARTURIENTES EDOENTES EM 24 120 265 409 26,12
GERAL (CRISE EPILÉTICA, CRISE HISTÉRICA, CRISE NERVOSA,
INSUFICIÊNCIA PULMONAR, VARIZES, ECLAMPSIA, CURATIVOS,
INDIGESTÃO E OUTRAS MOLÉSTIAS)
CRIME/FERIMENTO POR AGRESSÃO 45 91 101 237 15,13
DESASTRE/FERIMENTO POR QUEDA (ACIDENTAL OU POR MOLÉSTIA) 13 91 90 194 12,39
DESASTRE/ACIDENTE ENVOLVENDO MEIOS DE TRANSPORTE (QUEDA, 17 38 109 164 10,47
ATROPELAMENTO POR AUTOMÓVEL,BICICLETA, BONDE, CAMINHÃO,
CARROÇA, CAVALO)
DESASTRE/FERIMENTO ACIDENTAL POR ACIDENTE DOMÉSTICO, COM 10 67 74 151 9,64
VIDRO, MORDIDA DE CÃO, OU OUTRO ANIMAL
ACIDENTE NO TRABALHO 12 63 41 116 7,41
SOCORRO NA VIA PÚBLICA (EMBRIAGUEZ, CRISE EPILÉTICA, CRISE 4 60 36 100 6,39
HISTÉRICA, CRISE NERVOSA, VERTIGEM E OUTRAS MOLÉSTIAS)
DESASTRE/ATENDIMENTOS ENVOLVENDO POSSÍVEL RISCO DE VIDA 13 40 34 87 5,56
(ENVENENAMENTO, QUEIMADURAS, TENTATIVAS DE SUICÍDIO E MORTE
CONFIRMADA)
DESASTRE/FERIMENTO ACIDENTAL POR ARMA DE FOGO, CANIVETE, 3 28 14 45 2,87
FACA, PEDAÇO DE MADEIRA, PEDRA, ETC.
DESASTRE/ACIDENTE POR EMBRIAGUEZ 8 21 3 32 2,04
DESASTRE/FERIMENTO SEM CAUSA DEFINIDA 22 - - 22 1,40
NÃO CONSTA 9 - - 9 0,58
TOTAL 180 619 767 1566 100

Tabela 84 – Modalidades em que se inseriram as causas das ocorrências médico-policiais no Bairro do Bexiga, entre
1911 e 1925. Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.

O histórico dos casos evidencia uma certa dificuldade em descrever o fato de


forma objetiva, sempre ficando a dúvida sobre a natureza do atendimento. Por exemplo,
quando um caso classificado como “moléstia”, teve a seguinte descrição: “é um
mensageiro que, por ter feito muito exercício em jejum, teve uma síncope”; em outro caso
envolvendo um menino de 12 anos e classificado como “ferimento” o relator diz que se
tratava de “luta com um companheiro da mesma idade, ferindo-se com um pedaço de
prato”. Nos anos seguintes, a primeira ocorrência seria classificada como “mal súbito” e a
segunda como “agressão”. Em situação semelhante, um fato classificado como “crime” se
refere ao ferimento de uma criança de 6 anos “por agressão de um outro menor”. Além de
casos como esses, identifiquei 22 situações de “ferimentos” em que não há nenhuma
descrição do problema ocorrido. Já nos períodos posteriores, 1914-15 com 619 e 1925 com
767 casos, as ocorrências se enquadram em categorias mais delimitadas, se ajustando
melhor à proposta de controle da boa ordem pública.
MODALIDADES DE
CAUSAS
ATENDIMENTO
ACIDENTE NO TRABALHO FERIMENTOS EM DECORRÊNCIA DA PRÁTICA PROFISSIONAL
CRIME FERIMENTOS POR AGRESSÃO
ACIDENTES ENVOLVENDO MEIOS DE TRANSPORTE (QUEDA, ATROPELAMENTO POR
AUTOMÓVEL,BICICLETA, BONDE, CAMINHÃO, CARROÇA, CAVALO)
ACIDENTES POR EMBRIAGUEZ
ATENDIMENTOS ENVOLVENDO POSSÍVEL RISCO DE VIDA (ENVENENAMENTO, QUEIMADURAS,
TENTATIVAS DE SUICÍDIO E MORTE CONFIRMADA)
DESASTRE
FERIMENTOS ACIDENTAIS (ACIDENTE DOMÉSTICO, COM VIDRO, MORDIDA DE CÃO, OU OUTRO ANIMAL)
FERIMENTOS ACIDENTAIS ENVOLVENDO ARMA DE FOGO, CANIVETE, FACA, PEDAÇO DE MADEIRA,
PEDRA, ETC.
FERIMENTOS POR QUEDA (ACIDENTAL OU POR MOLÉSTIA)
FERIMENTOS SEM CAUSA DEFINIDA
SOCORRO EM DOMICÍLIO ATENDIMENTOS A PARTURIENTE E DOENTES EM GERAL
SOCORRO NA VIA PÚBLICA EMBRIAGUEZ, CRISE EPILÉTICA, CRISE HISTÉRICA, CRISE NERVOSA, VERTIGEM E OUTRAS MOLÉSTIAS
No quadro acima procurei agrupar as principais causas das ocorrências encontradas
de acordo com palavras utilizadas nos Boletins. Como é possível observar, há problemas
que se inserem em mais de uma modalidade, por exemplo os casos de “embriaguez”, os
quais podem ser classificados como desastre ou socorro na via pública, e os casos de
“moléstias” que podem ser classificados como desastre, socorro na via pública ou em
domicío. Tendo em vista essas eventuais discrepâncias, para a análise das causas das
ocorrências procurei, na medida do possível, obedecer a classificação dada pelos próprios
documentos.
O socorro a parturientes e vítimas de moléstias diversas, geralmente classificado
nos Boletins como socorro em domicílio, respondeu pela maior parte dos atendimentos
realizados: 409 casos, aproximadamente 26,12% da amostra analisada. A primeira coisa a
destacar nesse tipo de atendimento é que na grande maioria dos casos de moléstias o
histórico da ocorrência se resume à palavra “doente”, sem que haja um detalhamento do
problema. Outra coisa é o destaque dado pela instituição a males associados a
desequilíbrios mentais, como as crises nervosas ou de histeria, invariavelmente atribuídas a
mulheres em idade adulta, e aos inúmeros casos de crises epiléticas, quase sempre
atribuídas a homens adultos. Seria interessante saber de onde partiam os chamados de
ajuda, se do próprio paciente ou, mais provavelmente, de familiares e vizinhos a quem as
manifestações de desequilíbrio causavam desconforto. Neste caso, a atitude das pessoas
próximas coloca em evidência uma concepção de saúde mental característica daquele
momento histórico, quando comportamentos que fugissem ao padrão “normal” eram
classificados como doença. De qualquer forma, a constância desses casos indica, se não um
tratamento superficial dos problemas, um desconhecimento sobre possíveis formas de
tratamento.
Na sequência, vêm os casos de ferimentos por agressão e classificados como
crimes, computando 237 ocorrências (15,13%). As vítimas de agressão compõe-se
majoritariamente de homens com idade entre 16 anos e 73 anos (154), seguidos de 47
mulheres com idade entre 16 e 70 anos, e por fim pelos 36 meninos e meninas com menos
de 16 anos. Entre esses, foi possível verificar a presença majoritária de brasileiros brancos
(118), seguidos de 73 italianos, 33 portugueses e finalmente por 13 pessoas de outras
nacionalidades (5 espanhóis, 4 alemães, 2 argentinos, 1 francês e 1 iugoslavo).
Contrariamente ao que poderiam supor as autoridades policiais da época, somente
55 indivíduos, entre negros e pardos, se envolveram em conflitos que resultaram em
agressão. De outro lado, entre todos os envolvidos em crimes, com exceção das 24
mulheres ocupadas com os serviços domésticos, dos 17 menores de 18 anos que não
trabalhavam ou frequentavam a escola, e dos 3 estudantes maiores de 18 anos, apenas 21
pessoas não apresentaram indicação de algum tipo de ocupação; já os demais 172
indivíduos envolvidos exerciam algum tipo de atividade produtiva (72,57% do total de
pessoas). A partir desses números, constata-se que qualquer que seja o grau de violência
dos atores envolvidos nessas ocorrências, não se tratava de “vadios ou desocupados”, mas
de gente que tinha sua rotina de trabalho e moravam em casas unifamiliares ou em
habitações coletivas e/ou cortiços. Aliás, foram relativamente poucos os usuários das
supostas habitações coletivas, apenas 28,27% dos envolvidos em crimes (67 pessoas).
As informações contidas nos Boletins pouco revelam sobre as circunstâncias das
ocorrências, inclusive sobre os demais atores envolvidos, porém, em certas situações é
possível entrever algumas possibilidades. Por exemplo, a coincidência de datas, endereços
e locais da ocorrência pode indicar que se tratava de violência doméstica, entre marido e
mulher, entre adultos e crianças ou entre os diferentes moradores da casa. Em 07 de
dezembro de 1911, Prudência Agonilha, uma espanhola de 42 anos, casada, deu entrada no
posto médico, com “Extenso ferimento... do pescoço (por) agressão”. Junto com ela,
também foi atendido Pedro Camacho Agonilha, um “trabalhador” espanhol, com 40 anos,
também casado, por “tentativa de suicídio”. O endereço fornecido por ambos foi a Rua
Santo Amaro n.54, o que leva a deduzir que fossem parentes, provavelmente marido e
mulher, principalmente porque foi na própria residência que tudo ocorreu. O curioso deste
caso é que temos, de um lado, um “ferimento por agressão”, de outro, uma “tentativa de
suicídio”. Acreditando que Prudência e Pedro Agonilha realmente tenham entrado em
conflito, o que teria levado a essas atitudes desesperadas? A traição de uma das partes?...
De qualquer modo, esses foram casos que tiveram consequências mais graves, já que
ambos foram encaminhados a Santa Casa310. A ocorrência em que esteve envolvida
Thereza de Biassi, uma mulher italiana de 40 anos, casada, foi em 13 de janeiro de 1915, e
teria sido um caso “banal” se o menor Felício (filho de Baptista de Biassi) também não
estivesse envolvido, tudo indicando que fossem mãe e filho. Ambos deram entrada no
posto médico na mesma hora e dia, dando como motivação “ferimento por agressão”,
ocorrida na mesma Rua Manoel Dutra n.63. A pergunta que se coloca é – quem teria sido o
autor da agressão?... Talvez o marido e pai?... Conforme Haim Grünspun, “os homens do
Bexiga batiam muito nas mulheres, especialmente quando bebiam”. Não é possível
afirmar qualquer coisa neste sentido, mas, a depender do depoimento de Grünspun, esta é

310
Boletins de Ocorrência, 07/12/1911, APESP.
uma possibilidade311. Outro caso envolvendo pessoas da mesma família é aquele de
Domingos e Constantino Santo Pietro. Ambos eram homens adultos, italianos e casados, e
residiam à rua Santo Antônio n.232, sendo que Constantino, o mais velho, com 63 anos,
era pedreiro e Domingos, com 35 anos, era sapateiro. As descrições do caso relatam que
Domingos sofreu “ferimentos incisos, produzidos por agressão à faca”, e que Constantino
sofreu ”ferimentos incisos, por agressão à faca”. Pela diferença de idade deduzimos que
fossem pai e filho que por algum motivo entraram em conflito, hipótese que o destino dado
a Constatino parece comprovar. Enquanto Domingos foi encaminhado de volta para casa,
Constantino foi para o xadrez, o que o caracteriza como o agressor.
Nos casos de ocorrências entre pessoas sem indícios de parentesco mas que
habitavam a mesma casa, destacamos alguns que podem ser exemplares das dificuldades
de convivência que permeavam suas relações. Em 16/05/1912, Vicente Campana, um
italiano de 31 anos, casado e proprietário de uma casa de secos e molhados à rua
Conselheiro Ramalho n.163312 onde também residia, entrou em conflito com Angelo
Lichande, um rapaz italiano, com 17 anos, sapateiro e morador na mesma casa. A contenda
ocorreu em outro local, na rua Conselheiro Carrão, mas ambos foram encaminhados para a
Delegacia por “ferimentos por agressão” aparentemente sem maiores consequências. A
ocorrência envolvendo Maria Ferrari e João Tenarelli, moradores na rua Rui Barbosa n.30,
teve resultados mais graves313. Maria, uma italiana de 26 anos, casada e “dona de casa” e
João, também italiano, com 43 anos, casado e negociante, sofreram agressões que
aparentemente ocorreram na própria residência. Enquanto a descrição da agressão à João
revela que ele foi vítima de “ferimentos por projétil de arma de fogo” e, pela gravidade da
situação encaminhado para a Santa Casa, o relato sobre Maria não parece indicar o uso do
mesmo tipo de arma. Tendo sofrido “ferimento na região malar (sic) esquerda e
escoriação na região frontal” e recebido os cuidados necessários, Maria voltou para casa.
Nesse caso há poucos indícios que forneçam alguma pista acerca de quem foi o agressor e
quem foi o agredido – se o conflito ocorreu apenas entre os dois e então Maria foi quem
disparou a arma, ou se havia uma terceira pessoa envolvida. Já na ocorrência vivenciada
por Anna Risoleta de Oliveira e Joaquim Soares Ferreira de Mattos fica evidente que o
problema foi entre os dois314. Ambos eram brasileiros, ela uma costureira, casada, com 35
anos, e ele, um pintor de 20 anos, solteiro, ambos residentes na rua Major Diogo n.127,

311
Boletins de Ocorrência, 13/01/1915, APESP.
312
Almanaque Laemmert, 1913-1914. Acervo Digital FBN.
313
Boletins de Ocorrência, 07/06/1914, APESP.
314
Boletins de Ocorrência, 19/12/1914, APESP.
palco do conflito. De acordo com o histórico da ocorrência, Anna e Joquim sofreram
“escoriações e feridas por mútua agressão”, sendo que ao final do atendimento enquanto
ela foi enviada para casa, ele permaneceu nas dependências da Delegacia de Polícia. Neste
caso, a decisão de manter Joaquim na delegacia parece indicar sua possível
culpa/responsabilidade pelo ocorrido. Em 01/04/1925 Felix Santori um jovem italiano de
25 anos, empregado no comércio e Caetana Cassano, também italiana, de 34 anos, casada e
dedicada ao lar, foram alvo de uma agressão violenta que terminou tragicamente315. Os
endereços fornecidos no momento do registro do atendimento informavam que Felix
morava na rua Jaceguai n.1 e Caetana no número 6 da mesma rua, mas o crime ocorreu no
Theatro Olympia, localizado na Av. Rangel Pestana, no Brás. O relatório da ocorrência
informa que ambos sofreram um “ferimento perfuro-inciso, por agressão à faca” e que
Felix já foi encontrado morto no momento do atendimento, enquanto Caetana foi
encaminhada para o Hospital Alemão. Neste caso, fica bem clara a presença de uma
terceira pessoa responsável pelos crimes, mas o que ele não revela é se o marido de
Caetana era o assassino. Coincidentemente, localizamos uma reportagem anterior
envolvendo o nome de Caetana Cassano no jornal O Estado de São Paulo, relatando um
crime ocorrido doze anos antes, em 08/05/1913. Naquela ocasião o marido de Caetana,
Januário Cassano, estava sendo julgado por assassinato após ter flagrado o adultério
cometido pela mulher com um morador de um quarto anexo ao mesmo prédio em que
vivia, à rua Conselheiro Ramalho n.24. A defesa de Januário logrou convencer o júri da
culpa de Caetana pelo ato do marido e ele foi absolvido. Vale a pena transcrever um trecho
da arguição do advogado em defesa do réu:
É preciso, porém, observar que o desejo do marido, no momento em que vê periclitar a sua
dignidade não é, propriamente, a punição da esposa. O que o marido vê, naquele instante,
é a sua felicidade perdida para sempre, é a desgraça que cai sobre o seu lar e a nódoa que
vai dolorosamente macular a inocência de seus filhos. Nesse momento, o marido não
pensa na irrisória disposição da lei que lhe faculta a ação penal privada contra a mulher;
mas com o espírito inteiramente abalado pela realidade torturante que se lhe depara aos
olhos, cai efetivamente no reino dos instintos, e, na frase do Código, sinistramente
privado dos sentidos e de inteligência, arremete num ímpeto de justa ira, contra a pessoa
da esposa infiél ou a do torpe sedutor. Assim o fez Januário Cassano, quando desagravou
sua honra matando a Isidoro Cillo[...] A absolvição do acusado impunha-se, pois, à
316
consciência do Juri (grifos nossos).

315
Boletins de Ocorrência, 01/04/1925, APESP.
316
Grifos nossos. O Estado de São Paulo, 18/06/1913.
Não nos cabe tecer comentários acerca da culpa ou responsabilidade dos envolvidos
no crime, mas sim destacar que o argumento da defesa expõe de forma bem clara os
valores que embasavam o julgamento moral e criminal dos fatos: a traição e a posterior
retaliação. Para as pessoas do júri, assim como para a sociedade em geral, o desagravo da
honra pela traição praticada pela mulher não só era um ato aceitável, como também era
uma coisa prevista pela lei. E esses não eram valores que se restringiam apenas aos
moradores de um bairro popular como o Bexiga, mas a toda a sociedade contemporânea
aos fatos.
Ainda que exemplos como esses citados acima, em que alguns dados que permitem
uma avaliação um pouco menos rasa das ocorrências sejam raros, nos demais a simples
descrição dos casos envolvendo mulheres, crianças e adolescentes diz muito sobre o
cotidiano de bairros populares da cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século
passado. Crianças e adolescentes ocupados com atividades produtivas desde os 10, 11 anos
– o que aos olhos contemporâneos parece inaceitável – demonstram que essa era uma
prática habitual e que o trabalho infantil era legítimo para os padrões culturais daquele
tempo, tanto para as classes mais baixas para as quais qualquer ganho extra podia
significar um dia a mais de sobrevivência, como para as camadas mais ricas que se valiam
disso fechando os olhos para as implicações morais. Entretanto, ao que indicam os
números, esse não era um valor absoluto, que atingia a todos indistintamente.
Curiosamente, verifiquei que dos 21 meninos e rapazes que desempenhavam algum tipo de
ofício e estiveram envolvidos em agressões, 6 eram estrangeiros (4 italianos, 1 iugoslava e
1 alemão). Tal constatação acena para uma valorização do trabalho por parte dos
brasileiros, o que contraria a opinião corrente acerca da inaptidão do nacional para o
trabalho. De qualquer modo, não é possível atribuir tais valores a toda a população do
bairro e mesmo da cidade pois trata-se de uma amostra muito reduzida se vista em relação
ao número total de casos analisados.
Com relação às mulheres envolvidas em casos de violência física,
independentemente dos motivos que os agressores possam ter tido, as referências às
circunstâncias em que ocorreram as agressões são desnecessárias pois seu significado
remete a valores culturais em que o gênero feminino estava sujeito a pré-julgamentos
sexistas e excludentes, do tipo “se apanhou é porque mereceu”. Do total de 47 casos
envolvendo mulheres adultas vítimas de agressão, 25 se relacionavam a mulheres casadas,
8 a viúvas e 14 a solteiras. A superioridade do número de mulheres casadas remete às
palavras de Haim Grünspun: “os homens do Bexiga batiam muito nas mulheres,
especialmente quando bebiam, e estas batiam nos filhos” (Grünspun, 1979, p.47-48).
Adiante, ao falar sobre a “valorização” atribuída às mulheres grávidas ele acrescenta que:
Em outras ocasiões (quando a mulher não estivesse grávida), tocar na mulher de
alguém era algo grave que gerava desafetos e brigas entre marido e mulher, brigas
que acabavam em surras monumentais, na maioria absoluta das vezes a mulher
apanhando e não o homem. Mulher grávida raramente apanhava no Bexiga
(Grünspun, 1979, p.109).

Das citações do autor, destacamos um aspecto significativo que incidirá sobre todo
o cotidiano do bairro: a violência contra a mulher produzia um efeito reflexo na família,
obviamente na parte mais fraca, as crianças. Daí, as ocorrências de agressão sobre e entre
crianças e adolescentes não chegarem a surpreender, ainda que causem desconforto.
Sobressaem em primeiro lugar aqueles casos em que as ocorrências indicam que a agressão
se passou na residência das vítimas e possivelmente foram causadas por membros da
própria família: como aconteceu com José Rodrigues de Arruda, um garoto de 6 anos,
morador no número 44 da rua Fortaleza, em 26/12/1912; com a menina Maria Apparecida,
de 7 anos, moradora à rua Major Diogo n.170, em 18/01/1914; com Aida, também com 7
anos, filha de José Carolizzo, residente à rua João Passalacqua n.69, em 27/06/1914; com
Alfredo, um escolar de 12 anos, filho de Severo de Tal, morador na Av. Brigadeiro Luís
Antônio n.19, em 22/08/1925; com Francisco, um aprendiz de alfaiate de 12 anos, filho de
José Senna, residente à rua Treze de Maio n.41, em 31/10/1925; com Millo, escolar de 12
anos, filho de Francisco di Pati, morador na rua Asdrúbal do Nascimento n.62, em
18/11/1925. Enfim, esses são apenas alguns entre tantos outros casos. Em outras ocasiões,
o local das ocorrências demonstra que os menores estavam distantes de casa, alguns deles
possivelmente a trabalho: caso de Antônio Cachino, um carroceiro de 12 anos, morador na
rua Rui Barbosa n.66, vítima de “pequeno ferimento consequente de agressão” quando se
encontrava na ladeira General Carneiro, em 10/01/1912; do alfaiate Roque Mannaro, um
jovem de 16 anos, morador na rua Santo Antônio n.35, no bairro da Lapa, em 24/02/1912;
do servente de pedreiro, Albino Augusto, garoto de 14 anos, morador na rua Jaceguai n.88,
cuja agressão consta como tendo ocorrido na praça Princeza Isabel n.51, um possível local
de trabalho. Poderia citar ainda uma quase infinidade de casos, mas me atenho a uma
ocorrência particular. Em 13/09/1914 o posto médico da 2ª Delegacia de Polícia foi
chamado à rua São Domingos n.32 para dar atendimento ao empregado Antônio, filho de
Miguel Godoy, então com 9 anos de idade. O histórico da ocorrência relata que Antônio
sofreu “feridas contusas, por ter sido espancado por sua patroa”. Ocorre ainda que o
mesmo local do atendimento corresponde ao endereço residencial do garoto. Assim,
sabemos que Antônio, embora possuísse um pai, morava em seu local de trabalho,
possivelmente prestando serviços domésticos; e mais, que sua patroa se achava no direito
de punir o empregado, ainda que ele fosse uma criança. Situações como esta certamente
eram mais frequentes do que nossas consciências contemporâneas politicamente corretas
podem imaginar...
O efeito reflexo da violência citado acima termina por se propagar por toda a
comunidade envolvida, atingindo indistintamente homens, mulheres e crianças. Na
verdade, em todos esses casos trata-se de uma prática social que revela parte da essência
cultural da população moradora no Bexiga (mas não apenas), naquele determinado
momento histórico, fossem quais fossem as causas geradoras de conflito.
Os Boletins de Ocorrência fornecem assim subsídios importantes para a elaboração
do perfil dos moradores do Bexiga, mas foram raros os casos em que foi possível apurar os
motivos que levaram à deflagração dos conflitos. Felizmente, os noticiários policiais do
jornal O Estado de São Paulo permitem o aprofundamento de alguns como o que envolveu
Caetana Cassano e Felix Santori, em 1925. Em 08/03/1914, Salvador Bonacorso, um
italiano de 22 anos, de profissão gazista e “morador de um comodo no prédio n.72 da
317
ladeira de Santo Amaro, sublocado por Manoel Pereira” , passou por atendimento no
posto médico, por “ferimento no punho direito, por agressão à faca”. Através do
noticiário no jornal obtive informações interessantes que podem levantar outras questões,
como por exemplo, a de que Salvador residia em um cômodo sublocado por uma outra
pessoa que não o proprietário do imóvel, fato que talvez ocorresse com outros cômodos da
casa. Seria essa uma “casa de cômodos”, caracterizando-se assim uma habitação coletiva?
A questão aponta para um fato de difícil comprovação, mas que devia ocorrer com
frequência, a sublocação parcial de imóveis, independentemente de eles se configurarem
como cortiços. De acordo com a matéria, após meses de atraso no pagamento dos aluguéis,
por parte de Salvador, Manoel Pereira decidiu trancar o quarto do inquilino, impedindo-o
de entrar no mesmo. Salvador, ao chegar, arrombou a porta, ao que Manoel reagiu
desferindo-lhe um golpe de faca. Ora, em tais casos os ajustes entre as partes interessadas,
quer se tratasse do aluguel de cômodos ou de imóveis inteiros, baseava-se em acordos
orais, sem quaisquer garantias para ambos os lados. Naquele momento não havia uma
legislação que regulamentasse direitos e obrigações – a Lei do Inquilinato data de 1942 –,
assim a parte que se sentisse lesada buscava a sua forma particular de resolver o problema.

317
O Estado de São Paulo, 09/03/1914.
No caso, Manoel Pereira optou pela forma mais violenta. Em 16/05/1914, Angelo
Felamino, um rapaz italiano de 19 anos, morador no número 43 da rua Rui Barbosa, esteve
envolvido em uma briga no Largo do Ouvidor, na qual sofreu “feridas contusas no
supercílio e mão direitos, por agressão à pau”. Ocorre que os envolvidos na briga, Angelo
e Antônio Augusto Pomo, 26 anos, morador na região da Luz, exerciam a mesma
profissão, ambos eram carroceiros. O jornal dá destaque à notícia nomeando-a de “(Briga)
entre carroceiros”, onde os implicados, “por uma rivalidade de profissão agrediram-se
mutuamente”. A notícia termina relatando que “os briguentos foram presos em flagrante e
apresentados ao delegado de serviço na Central, que os mandou recolher ao xadrez
318
daquela repartição" . O destaque dado pelo jornal parece indicar que conflitos em
virtude do exercício de certas profissões eram comuns. “Briga de carroceiros” é uma
expressão conhecida e remete às “brigas de lavadeiras”, comumente citadas por
memorialistas e na própria imprensa (Sesso Jr., 1983, p.79. In Santos, 1998, p.99-100;
Grünspun, 1979, p.33). Se for isso mesmo, é possível que muitas das ocorrências
registradas nas Delegacias de Polícia, especialmente quando envolvem pessoas jovens,
tenham tido a mesma motivação. Por outro lado, o próprio fato de serem jovens, parece
predispor a conflitos cujas causas nem sempre são de fácil compreensão. É o que ocorreu
com Américo, garoto de 14 anos, filho de Antônio Argento. Américo, que trabalhava como
cobrador, foi levado pelo pai ao posto médico em 05/07/1914, quando foi constatada
“ferida perfuro-incisa, por agressão à faca”. De acordo com o jornal, “refere Américo
que, no dia 2 do corrente, brincando fora de casa com um outro menor, de nome Ozório,
319
residente no número 85 da mesma rua, foi por ele agredido com uma faca” . Não há
nada no relato de Américo que justifique ou aponte as motivações subjetivas da agressão,
mas o fato de serem jovens certamente contribuiu para a eclosão do conflito.
Apesar de identificados nos Boletins de Ocorrência como desastre, os acidentes
descritos como ferimentos acidentais (por arma de fogo, canivete, faca, pedaço de pau,
pedra, ferro ou outro objeto) deixam a impressão de que nem sempre correspondem à
realidade dos fatos, especialmente aqueles envolvendo armas de fogo. No jornal O Estado
de São Paulo localizei somente uma referência a esse tipo de desastre, onde o título da
matéria contém um tom de alerta: “O perigo das armas de fogo. Às 20 horas de ontem, em
sua residência, à rua de Santo Antonio, 112, Renato Ciugni, de 17 anos, entretinha-se em
manejar uma espingarda Flobert, que estava carregada. Tanto Renato fez nas suas

318
O Estado de São Paulo, 17/05/1914.
319
O Estado de São Paulo, 06/07/1914.
320
manobras que a arma disparou, indo o projétil ferí-lo na palma da mão esquerda” .O
caso, sem maiores consequências, foi registrado nos Boletins de Ocorrência e o jovem
encaminhado de volta à residência.Contudo, chama a atenção a frequência em que
acidentes desse tipo ocorriam, especialmente aqueles com armas de fogo – somente em
1914, foram 10 casos.
SUPOSTOS DESASTRES 1911-12 1914-15 1925 TOTAL
ACIDENTE COM ARMA DE FOGO 2 10 1 13
ACIDENTE COM CANIVETE - 2 1 3
ACIDENTE COM FACA - 4 8 12
ACIDENTE COM FORMÃO - - 1 1
ACIDENTE COM NAVALHA - - 2 2
ACIDENTE COM TESOURA 1 - 1 2
TOTAL 3 16 14 33

Tabela 85 – Incidência de desastres envolvendo objetos “letais”. Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925.
APESP.

Desses, destacam-se aqueles em que as circunstâncias indicam a possibilidade de


outras causas que não o simples manuseio da arma. Paulo Medicci, um chofer italiano de
25 anos de idade, foi vítima de um “ferimento na coxa esquerda, por tiro de revólver
disparado acidentalmente”. Naquela ocasião Renato encontrava-se fora da cidade, na vila
de São Bernardo, e o relato não esclarece o que ele fazia naquela vila e como é que ocorreu
o acidente. Por que Renato manuseava a arma? Haveriam outros envolvidos?... Outro caso
fora da área urbana foi aquele vivido por Benedicto do Nascimento, um carroceiro negro,
de 20 anos. De acordo com o histórico da ocorrência, Benedicto sofreu “ferimento por
projétil de arma de fogo na mão esquerda, produzido acidentalmente” quando se
encontrava na várzea de Santo Amaro. A profissão de Benedicto pode bem justificar sua
presença em Santo Amaro, e talvez indique uma possível “briga de carroceiros”, mas essa
é uma mera suposição... Mais grave foi o acontecido com o pequeno Francisco Sgambatto,
um aprendiz de sapateiro de 11 anos, encontrado agonizando na Alameda Santos. O
atendimento ao garoto foi feito pela 4ª Delegacia de Polícia e a ocorrência consta como um
“ferimento perfuro-contuso por projétil de arma de fogo, acidentalmente, na região
frontal”. Certamente o pedido de socorro partiu de alguém que estava nas imediações da
ocorrência, o que não fica esclarecido. Seria aquele o local de trabalho de Francisco? Se
não, o que ele fazia ali, longe de sua residência, se morava na rua Conselheiro Ramalho? E
principalmente, ele se feriu ou foi vítima de outra pessoa?... Já o ocorrido com Miguel
Salazans, um estudante de 21 anos, deixa claro que havia outro envolvido no acidente.
Segundo o relatório do Posto Médico, Miguel sofreu “escoriação produzida por revólver,
quando tentava tomá-lo de um indivíduo”, fato que ocorreu na rua Maria José. Teria

320
O Estado de São Paulo, 17/05/1914.
Miguel entrado em conflito com alguém, ou estaria apenas tentando apartar alguma
briga?... Infelizmente, em todas essas circunstâncias, os relatórios elaborados pelas
Delegacias de Polícia não fornecem mais pistas e essas hipóteses não passam de
suposições que somente uma pesquisa aprofundada sobre eventuais processos-crime
gerados pelas ocorrências poderiam confirmar ou não. De toda maneira, o fato de
envolverem objetos que não sejam de manipulação banal, mas que pela sua própria
natureza implicam em alguma forma de violência, predispõe a interpretações outras.
As ocorrências envolvendo os meios de transporte modernos, como os automóveis,
os bondes e até as bicicletas, demonstram as dificuldades da população em lidar com as
novidades introduzidas no período que significavam “progresso”. De um lado, condutores
entusiasmados pela possibilidade de acelerar e se deslocar num curto espaço de tempo, de
outro, pedestres para quem a memória do espaço público marcado pelo ritmo mais lento
não estava tão distante assim. A Tabela 86 demonstra, em números, o efeito desse
descompasso sobre os moradores do Bexiga.
DESASTRES ENVOLVENDO MEIOS DE TRANSPORTE 1911-12 1914-15 1925 TOTAL
ATROPELAMENTOS POR CARROÇAS 2 8 3 13
ATROPELAMENTOS POR AUTOMÓVEIS 3 13 62 78
ATROPELAMENTOS POR BONDES - - 4 4
ATROPELAMENTOS POR BICICLETAS 1 1 14 16
QUEDA DE VEÍCULOS (AUTOMÓVEIS, BONDES E CARROÇAS) - 7 19 26
OUTROS (ABALROAMENTOS, ETC.) 11 9 7 27
TOTAL 17 38 109 164

Tabela 86 – Incidência de desastres envolvendo meios de transporte. Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-12, 1914-15-
1925. APESP.

Embora não tenha sido um “privilégio” dos moradores do bairro, nem possa ser
tomada como determinante para a elaboração do perfil daquelas pessoas, a constância
desses acidentes, particularmente aqueles causados pelos automóveis, obriga a pensar no
impacto desses veículos para a cidade que se pretendia moderna e cosmopolita mas cuja
população desigual ainda mostrava-se resistente ao progresso. A avaliação de Nicolau
Sevcenko acerca do valor simbólico do automóvel é reveladora de algo que ultrapassava as
reações de repúdio aos constantes desastres que afligiam a população:
[...] duplamente aureolado pelo prestígio da mais moderna tecnologia européia e do mais
vistoso objeto do consumo conspícuo, o automóvel passou a ser usado de forma a acentuar
a sua mística e se impor como uma moldura mecânica sofisticada do poder, mesmo na mão
de choferes e empregados de companhias. [...] Em qualquer circunstância, em qualquer
lugar, o tempo todo, o imperativo era a máxima aceleração e o uso incessante da buzina.
Os atropelamentos são diários e múltiplos, especialmente envolvendo anciãos e crianças.
(Sevcenko, 1992, p.74).
No entanto, ainda que em número mais reduzido se vistos em relação ao total de
ocorrências, os acidentes envolvendo os meios de transporte não se restringem aos
automóveis, dando a entender que a sensação de “poder” propiciada pela condução de um
veículo estendia-se a carroceiros, cocheiros, condutores de bondes e ciclistas. Cada um
desses atores sociais, à sua maneira, ao colocar a vida de outros em risco, exercia um
pequeno poder que podia terminar em desfechos trágicos.
Responsáveis por apenas 7,41% das ocorrências registradas nos Boletins de
Ocorrência, os acidentes no trabalho remetem a uma realidade mais ampla que extrapola
o bairro do Bexiga, comprovando as condições precárias de trabalho a que estavam sujeitos
os habitantes da capital. Apesar de serem numericamente pouco significativos, esses casos
revelam algumas particularidades sobre o perfil dos trabalhadores que viviam no bairro.
Esse foi o caso, particularmente, dos trabalhadores envolvidos na construção civil. Entre as
116 vítimas de acidentes no trabalho, pouco mais de 40% (47 pessoas) trabalhavam na
área: 28 pedreiros e serventes de pedreiros diretamente ocupados na edificação e/ou
reforma de prédios, e os 19 restantes em funções complementares às construções ou à
manutenção predial (carpinteiros, encanadores, eletricistas, etc.). Acresce que após uma
investigação mais aprofundada de cada caso, constatei que alguns dos trabalhadores
identificados como operários também trabalhavam na construção civil, o que acrescentou
mais três indivíduos à mostra321. Os Boletins de Ocorrência demonstram ainda que os
trabalhadores da construção civil deslocavam-se frequentemente em função do trabalho. A
localização dos endereços fornecidos pelos feridos, ao mesmo tempo que demonstra sua
presença nos quatro cantos da cidade (em bairros distantes como Vila Clementino, Vila
Mariana, Ipiranga, Santana, Belenzinho, Pinheiros) também indica os novos espaços que a
cidade conquistava nas primeiras décadas do século XX. Por outro lado, os documentos
comprovam a preferência de proprietários e construtores pela mão-de-obra italiana em
detrimento das demais nacionalidades: encontramos 29 pessoas, entre italianos e ítalo-
brasileiros, 8 brasileiros 7 portugueses e 6 de outras nacionalidades, inclusive 2 japoneses,
um carpinteiro e um operário.
Os desastres caracterizados como acidentes responderam pela quarta causa em
número de ocorrências e tratam de situações bem corriqueiras envolvendo adultos e
principalmente crianças. Quase sempre se referem a pequenos acidentes domésticos com
vidros, latas, pedaços de madeira, ferro e arames, pregos enferrujados, choques elétricos e

321
Esses casos, de mais fácil verificação, indicam que a probabilidade de mais gente estar inserida nesse
mercado de trabalho é grande e que essa hipótese sempre deve estar presente quando o pesquisador lida com
esse tipo de documento. De qualquer forma, aqui lidamos com casos passíveis de verificação.
objetos de uso comum, como agulhas e tesouras; há ocasiões em que a vítima podia estar
desfrutando de momentos de lazer longe de casa (pesca, jogos de futebol), ou quando,
andando pelas ruas da cidade se via sujeita a mordidas de cachorros, coices de algum
cavalo solto, picadas de insetos e animais peçonhentos; e outros imprevistos mais sérios
podiam ocorrer como quedas de escadas e desabamento de muros e paredes. Enfim, há
uma infinidade de casos que raramente envolvem situações dramáticas, mas que chamam a
atenção por alguns aspectos. O primeiro deles se refere ao número de menores vitimados:
62 casos entre menores de 1 e 12 anos, e 28 casos de adolescentes entre 13 e 18 anos,
ambos perfazendo aproximadamente 60% do total de atendimentos. Não há dúvida de que
essas situações podiam acontecer em qualquer parte da cidade, com qualquer grupo social,
mas a probabilidade de ocorrerem em um bairro popular, onde as crianças circulavam
livremente pelo espaço doméstico e pelas ruas, demonstra que ao mesmo tempo em que
desfrutavam de maior liberdade, estavam sujeitas a certos riscos. Contudo, aqui não temos
a intenção de apontar eventuais descuidos por parte das familias – puro anacronismo – que
habitavam o bairro, mas apenas constatar uma determinada realidade, onde o próprio ritmo
de vida da cidade permitia que as mães ocupadas com os afazeres domésticos deixassem
seus filhos aos cuidados “de Deus”. Até porque foram raríssimos os casos em que a
gravidade de tais acidentes resultava no redirecionamento da vítima para instituições
médicas especializadas, como ocorreu com Francisco, filho de José Orlando. Tendo
ingerido “substância cáustica ignorada”, o garoto de 2 anos foi encaminhado para a Santa
Casa após o primeiro atendimento no Posto Médico, em 20/12/1914. Fato semelhante
aconteceu com o pequeno Okumura, filho de Okumura Iezue, em 11/12/1914. Contando
com apenas 1 ano de idade, a criança sofreu “intoxicação pela creolina” e também foi
encaminhada para a Santa Casa. Ary Rodrigues, de 3 anos, em 06/05/1912, recebeu
atendimento pela presença de “corpo estranho no esôfato”, motivo pelo qual foi para a
Santa Casa. Já Rodolpho, filho de Ramon Giovera, com 10 anos, sofreu “queimadura no
rosto, produzida por álcool”, tendo sido imediatamente enviado à Santa Casa, o que
ocorreu em 20/10/1914. Menos grave foi o caso de Paschoal, de 10 anos e filho de
Domingos Simone, que em 09/08/1914 sofreu “ferida contusa na coxa esquerda produzida
por dentada de cão” e por isso foi encaminhado para o Instituto Pasteur afim de receber
vacina antirábica.
Os relatos acima colocam um outro aspecto significativo do cotidiano do Bexiga,
que pode se estender tanto a crianças quanto a adultos vítimas de acidente,
independentemente da gravidade da situação: a importância da Santa Casa e dos postos
médicos no atendimento à população. Na maioria absoluta das ocorrências analisadas, seja
em casos banais de acidentes domésticos, seja em casos mais sérios como doenças,
atropelamentos, acidentes do trabalho, crimes, etc., a busca de atendimento era feita nos
postos médicos. Constatada a gravidade dos casos, a próxima opção era a Santa Casa ou,
muito raramente, a depender das condições financeiras das vítimas, os hospitais
particulares. Com exceção dos atendimentos no Hospital Militar, específicos para soldados
e do Hospital Humberto I, destinado ao atendimento de imigrantes italianos, verificamos
apenas 10 atendimentos em hospitais particulares: 4 no Hospital Alemão e 6 no Hospital
Santa Catarina. Assim, para os moradores do bairro, o recurso ao Posto Médico significava
a opção possível de atendimento.
Por fim, chamamos a atenção para os desastres associados a ocorrências que
envolviam riscos de vida, tais como envenenamentos, queimaduras e, particularmente, as
tentativas de suicídio. No caso dos envenenamentos e queimaduras, as maiores vítimas
foram as crianças, mas também ocorreram com adultos. Já as tentativas de suicídio se
destacam por envolverem no mais das vezes homens e mulheres jovens, com idades entre
15 e 30 anos. Em poucos casos restritos ao período entre 1911 e 1912, o histórico da
ocorrência revela as motivações para esse ato de desespero. Em 18/11/1911, a cozinheira
Rita Marcondes dos Santos, uma mulher parda, solteira, com aproximados 30 anos,
moradora à Rua Conselheiro Ramalho n. 11, “Tendo questionado com o amante, na
ausencia deste, ingeriu creolina”. Rita tentou se matar na própria residência e,
aparentemente, as consequências de seu ato não foram graves, já que permaneceu em casa,
sem necessidade de maiores cuidados. O mesmo ocorreu com Benedicta Maria de Jesus,
negra, 20 anos, solteira e moradora à Rua 14 de Julho n. 36, que foi atendida em
26/12/1911, por ter sofrido “Envenenamento pela creolina, por motivos de amor mal
correspondido”. De acordo com a ocorrência, após o atendimento, Benedicta “ficou livre
do perigo”, tendo permanecido em sua casa. Nos dois casos, os relatos indicam que tais
atos podiam ocorrer em situações determinadas por “males de amor”, mais característicos
de jovens ou “balzaquianas”, porém nem sempre esse era o problema. É o que se constata
pela notícia dada pelo jornal O Estado de São Paulo, em 02/03/1914, sobre a tentativa de
suicídio de Hyppolito Alves, um pedreiro negro de 24 anos, casado e morador na rua
Manoel Dutra n.69-A. De acordo com o jornal, Hyppolito “comprou a prestações,
enquanto estava empregado, pelo preço de 500$000, uma mobília de quarto. Como agora
se desempregasse e não pudesse com esse compromisso, resolveu suicidar-se [...] ingeriu
forte dose de creolina misturada com água-raz”. Neste caso, a perda do emprego e a
impossibilidade de arcar com um compromisso financeiro foi o motor do ato desesperado.
TENTATIVAS DE SUICÍDIO 1911-12 1914-15 1925 TOTAL
HOMENS ENTRE 20 E 30 ANOS 2 2 6 10
HOMENS ENTRE 31 E 62 ANOS 1 6 - 7
MULHERES ENTRE 15 E 30 ANOS 5 7 5 17
MULHERES ENTRE 31 E 60 ANOS - 3 1 4
TENTATIVAS DE SUICÍDIO COM MORTE CONFIRMADA - 2 - 2
(1 HOMEM E 1 MULHER, RESPECTIVAMENTE COM 50 E 60 ANOS)
TOTAL 8 20 12 40

Tabela 87 – Ocorrência de tentativas de suicídio. Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-12, 1914-15-1925. APESP.

Nas situações em que as tentativas de suicídio ocorreram com pessoas mais velhas,
em algumas ocasiões é possível supor que se tratasse de conflitos entre casais, o que parece
ter acontecido com Pedro Camacho Agonilha e Prudência Agonilha. Falei acima sobre as
ocorrências envolvendo o casal, prováveis marido e mulher, em 07/12/1911, ocasião em
que o atendimento a Prudência se deveu a uma “agressão”, o de Pedro se deveu a uma
“tentativa de suicídio”. No entanto, outros problemas podiam levar a atitudes dramáticas.
Em 08/03/1914, Joaquim Alves Figueiredo, um fazendeiro de 38 anos, morador à rua
Asdrúbal do Nascimento n.96 tentou suicídio “disparando um tiro de revólver no ouvido
esquerdo”. Neste caso, o esclarecimento das circunstâncias do ocorrido foi dado pela
matéria detalhada de O Estado de São Paulo. Joaquim, fazendeiro em Minas Gerais, sofria
há 12 anos de uma doença incurável, e há dois anos viera com a família para São Paulo em
busca da cura prometida por um “charlatão”. Passado esse tempo, ao ver que havia sido
lubridiado, decidiu pôr fim na vida, tendo falecido no dia 09 de março. Outros casos, como
o de José Talarico, operário italiano de 50 anos, casado, parecem indicar um caso de
depressão com razões indeterminadas. De acordo com o jornal, Talarico foi encontrado já
morto, na rua do Sol, por um soldado e após os exames realizados pelo médico legista,
apurou-se que se tratava de um suicídio. Com a divulgação da notícia, apareceu uma
pessoa que reconheceu Talarico, informando que este chegara da Argentina há cerca de
uma semana, “hospedando-se no armazém da rua Manoel Dutra n.65”. E mais, ainda
conforme o jornal, “as pessoas que o conheciam afirmavam que José Talarico vinha de há
muito sofrendo de uma mania de perseguição, manifestando sempre desejos de por termo
322
à existência” . Nunca será possível saber das motivações subjetivas desses atores, mas
esse caso desesperado, assim como outros envolvendo pessoas com mais de 50 anos, talvez
traduza o sentimento de desalento de alguém que superado o entusiasmo da juventude se
viu diante de uma vida sem perspectivas...

322
O Estado de São Paulo, 18/08/1914.
As perguntas levantadas no início deste capítulo buscaram elucidar sobre os atores
sociais atuantes no Bexiga, se brasileiros – brancos e negros – ou imigrantes, se pobres ou
ricos... Neste sentido, creio que as informações obtidas junto aos Boletins de Ocorrência
foram fundamentais para dar vida à vida urbana de um bairro suburbano. Se por um lado,
confirmaram que o número de imigrantes italianos se sobrepunha àquele dos brasileiros,
por outro, deram visibilidade aos negros, permitindo que soubéssemos quem eram, em que
trabalhavam, assim como os pequenos dramas que experimentaram no decorrer de suas
vidas no bairro do Bexiga. Também permitiram a identificação de outras etnias, as quais se
mostraram mais diversificadas do que se poderia supor: portugueses, espanhóis, alemães,
sírios, franceses, japoneses, húngaros, argentinos, austríacos, ingleses e iugoslavos, embora
em menor número, dividiram espaço com os brasileiros e italianos.
Ainda que de difícil compravação, os inúmeros casos de agressão ocorridos no
período de 1914-15, no início da I Guerra Mundial, fazem pensar que em momentos de
crise econômica e social, quando as possibilidades de sobrevivência escasseiam, as
diferenças culturais entre os diferentes grupos sociais tendem a se manifestar sob a forma
de conflitos e tensões. Contudo, finda a guerra, no último período investigado (1925) o
número de agressões aumentou, sugerindo que nem sempre as crises econômicas justificam
tais conflitos. Ocorre no entanto, que apenas um ano antes o Estado de São Paulo, assim
como a cidade, foram palco do movimento revolucionário de 1924, o qual,
independentemente de quaisquer motivações ideológicas, legou aos habitantes da capital
uma situação de caos econômico e social, com crise de abastecimento, medo e insegurança
generalizados. Acredito que o mal estar gerado por essa situação, associado às dificuldades
próprias de uma população de baixo poder aquisitivo que em sua maioria exercia
profissões inconstantes, possa ter-se prolongado pelos anos seguintes. A identificação de
raros elementos entre as pessoas que comprovadamente possuíam negócios no bairro, nos
três períodos analisados, parece comprovar essa suposição acerca da posição social dos
moradores do bairro. Se de um lado havia negociantes portadores de uma situação estável
que lhes permitia sobreviver a partir de seus próprios negócios por anos a fio, de outro
havia um contingente considerável de moradores que desempenharam funções menores,
marcadas pela precariedade e sobretudo pela instabilidade. A instabilidade fica evidente
quando verificamos a flutuação constante da população atendida nos postos médicos da
cidade, seja no que se refere à constante mudança de endereços e empregos, seja entre
aqueles que permaneceram no bairro através dos anos. Dentre os 1566 casos analisados nos
três períodos, com exceção daquelas pessoas identificadas nos almanaques ou que com elas
possuíam laços familiares comprovados, somente 4 indivíduos conseguiram permanecer no
bairro por mais de um ano: 2 entre 1912 e 1914, e 2 entre 1914 e 1925.
ESTADO
NOME DATA ENDEREÇO N. COR IDADE NACION. OCUPAÇÃO
CIVIL
AGOSTINHO JARDIM 17/02/1912 RUI BARBOSA 2 BRANCA 12 - BRASILEIRO SERRALHEIRO
AGOSTINHO JARDIM 10/01/1914 RUI BARBOSA 75 BRANCA 15 SOLTEIRO BRASILEIRO OPERÁRIO
ANTÔNIO RAPOLLO 11/07/1914 RUI BARBOSA 39 BRANCA 21 SOLTEIRO ITALIANO CARROCEIRO
ANTÔNIO RAPOLLO 13/05/1925 CONSELHEIRO CARRÃO 52 BRANCA 30 CASADO ITALIANO MOTORISTA
JOSÉ LETIERE 13/02/1912 CONSELHEIRO RAMALHO 24 BRANCA 52 CASADO ITALIANO CARROCEIRO
JOSÉ LETIERO 09/06/1914 CONSELHEIRO RAMALHO 24 BRANCA 55 CASADO ITALIANO CARROCEIRO
RENATO CIUGNI 16/05/1914 SANTO ANTÔNIO 112 BRANCA 17 SOLTEIRO ITALIANO EMPREGADO NO
COMÉRCIO
RENATO GIUGNI 17/11/1925 SANTO ANTÔNIO 93 BRANCO 27 CASADO BRASILEIRO COMÉRCIO

Tabela 88 – Moradores do Bexiga que permaneceram no bairro por mais de 2 anos. Fonte: Boletins de Ocorrência, 1911-
12, 1914-15-1925. APESP.

Como é possível perceber na Tabela 88, nesse meio tempo mudaram alguns
endereços e mudaram algumas ocupações. Mas, principalmente o que a tabela não mostra e
a ausência explicita, desapareceram muitas pessoas!
Por fim, cabe dizer que os Boletins de Ocorrência têm o mérito extra de demonstrar
a relação do bairro com a cidade, seja nas situações mais favoráveis, quando as pessoas se
deslocavam em direção a outros bairros a trabalho, seja nas ruas da cidade que serviam de
palco para crimes, desastres e acidentes diversos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Malgrado no caso do Bexiga prédios tenham sido demolidos e parte do tecido


urbano original tenha dado lugar a viadutos e avenidas, dificultando a apreensão de como
teria sido aquele espaço há cem anos, a metodologia retrospectiva utilizada na presente tese
permitiu imaginar aspectos da realidade material e social de outros tempos. Exemplo de
transformação é a atual Praça das Bandeiras – confluência do Parque do Anhangabaú com
as Avenidas 9 de Julho e 23 de Maio – e a própria Avenida Brigadeiro Luís Antônio.
Originalmente, essa região envolvia, além do Parque, o Largo do Riachuelo, parte da Av.
Anhangabaú e das ruas Santo Antônio e Santo Amaro, a Ladeira Dr. Falcão, estendendo-se
(à direita), às ruas Riachuelo e Asdrúbal do Nascimento. Hoje, ao se tentar recontruir o
traçado dessas ruas a partir de seu desenho atual percebe-se que essa é uma tarefa
praticamente impossível!
Assim foi que ao elaborar hipóteses por meio da espacialização das atividades
produtivas no bairro do Bexiga, sobreveio a necessidade de “conhecer” mais de perto os
lugares referidos. As imagens legadas por Gaensly, Becherini, Pastore e Paula Souza são
em número reduzido e não contemplam a totalidade do bairro mas, felizmente, a internet é
hoje um instrumento bastante eficaz para a busca de informações textuais e visuais. Foi a
esse instrumento que, na medida do possível, recorri para localizar e identificar antigas
imagens que aproximassem o objeto de estudo. Aos poucos, esse procedimento se tornou
um hábito e, da mesma maneira que me vali constantemente dos jornais para
complementar informações adicionais acerca de pessoas e negócios, passando a pesquisar
as imagens que fundamentam o trabalho como fontes incontornáveis e não meras
ilustrações.
De uma maneira geral, avalio que a utilização das fontes primárias eleitas para as
investigações, seriadas e espacializadas por meio da metodologia desenvolvida nesta
proposta de trabalho, cumpriram plenamente o seu propósito e estão maduras para
fundamentar as hipóteses que orientam a presente tese.
No decorrer das investigações, procurei acompanhar nas plantas elaboradas entre
1881 e 1930 a evolução na malha viária, desde a alteração do caminho de Santo Amaro
(pré-existente ao loteamento, que culminou na transformação de parte do seu percurso na
Avenida Brigadeiro Luís Antônio), até o prolongamento das ruas originais para abertura de
novas vias em interação com os bairros envoltórios. A avenida herdou do antigo caminho a
vocação histórica de via de comunicação do centro com o sul da cidade, o que certamente
conferiu ao bairro uma posição privilegiada, funcionando como vetor de atração aos
possíveis usuários, rota de escoamento de produtos e articulação com outros bairros. A
introdução de linhas de bonde, já na última década do século XIX, foi outro fator decisivo
para a articulação do bairro com outras áreas da cidade. Não à toa, a Planta dos Terrenos
do Bexiga (1890) já previa a instalação desse meio de transporte que, em 1891, estava
efetivamente implantado. Em 1914, conforme a Planta Geral da Cidade de São Paulo, a
Linha 5 dos bondes da São Paulo Tramway Light & Power Co servia diversas ruas do
Bexiga, integrando o bairro ao restante da cidade323.
A presença ou ausência de serviços públicos num bairro em formação diz muito
acerca do quanto ele pode ser atrativo para a população, seja para morar, seja para exercer
alguma atividade. Infelizmente, nos depoimentos de memorialistas como Grünspun (1979)
e Armandinho do Bixiga (1996), ou em trabalhos de caráter acadêmico sobre o Bexiga essa
questão jamais foi contemplada, sequer levantada como problema324. Alguns autores que
focaram os embates entre as companhias prestadoras desses serviços, caso por exemplo de
Cristina de Campos e Alexandre Macchione Saes325, foram úteis no sentido de fornecer
algumas pistas sobre o andamento das discussões até os anos 1910.
Por outro lado, evidenciam o quanto a população, principal interessada nos
benefícios desses serviços, estava sujeita aos interesses das grandes companhias. Assim, a
grande contribuição para o esclarecimento dessa questão ficou por conta dos jornais
publicados na cidade, nas primeiras décadas do século XX, principalmente O Estado de

323
Cf. Planta Geral da Cidade de São Paulo (com indicações diversas), Comissão Geográfica e Geológica,
Eng. João Pedro Cardoso, 1914. In. Memória Urbana: a Grande São Paulo até 1940, v. 3, São Paulo:
Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2001.
324
São raros os trabalhos que abordam o bairro do Bexiga sob o ponto de vista acadêmico. Entre eles, destaco
dois projetos temáticos desenvolvidos em universidades, cujos objetivos de trabalho diferem daqueles aqui
enfocados. O primeiro, Santana e Bexiga: cotidiano e cultura de trabalhadores urbanos em São Paulo e Rio
de Janeiro (1850-1930), foi desenvolvido pelo Centro de Pesquisa em História Social da Cultura
(CECULT/IFCH/UNICAMP), com apoio da FAPESP, resultando no livro Trabalhadores na cidade:
cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX. AZEVEDO, Elciene et al. (organ.).
Campinas: Editora da Unicamp, 2009. O segundo se refere ao projeto São Paulo: os estrangeiros e a
construção das cidades, desenvolvido em conjunto com a FAUUSP/Museu Paulista/IAU-USP São Carlos,
com coordenação da Profa. Ana Lúcia Duarte Lanna. Este projeto resultou no livro O Bexiga e os italianos
em São Paulo, 1890/1920. São Paulo, os estrangeiros e a construção das cidades. LANNA, Ana Lúcia
Duarte et al. (organ.). São Paulo: Alameda, 2011. Neste livro, destaca-se o texto de Ana Lúcia D. Lanna
sobre O Bexiga e os italianos em São Paulo, 1890-1920. Ainda em decorrência desse projeto, foi publicado o
texto Bexiga. Recuperando a construção da base fundiária através da documentação seriada, por
TODOROV, Mariana e CRISTOFI, Renato B. Disponível em:
http://estrangeiros.fau.usp.br/page.php?name=artigo&op=visualizar_mais&id_artigo=36.
325
CAMPOS, Cristina de. A promoção e a produção das redes de águas e esgotos na cidade de São Paulo,
1875-1892. Anais do Museu Paulista, jul-dez, v.13, n.2, USP/SP, 2005; SAES, Alexandre Macchione. Luz,
leis e livre-concorrência: conflitos em torno das concessões de energia elétrica na cidade de São Paulo no
início do século XX. História, São Paulo, 28 (2): 2009; VITTE, Claudestre de C.S. e IMAEDA, Ricardo.
Transportes coletivos e urbanização na cidade de São Paulo na primeira metade do século XX: aspectos
político-institucionais, atores, alianças e interesses. GEOUSP, Espaço e Tempo, São Paulo, n.21, 2007.
São Paulo, que nos anúncios publicitários e matérias analíticas veicularam tensões dessa
natureza.
Desde 1912, pelo menos, a São Paulo Gas & Co respondia pelo fornecimento de
gás de uso doméstico para a cidade de São Paulo, o que não significava necessariamente
que todas as casas tivessem acesso a esses serviços326. Embora haja notícias da existência
de casas no Bexiga com fogões elétricos e à gás nesse ano, a presença de estabelecimentos
dedicados à venda de lenha e carvão vegetal já nos anos 1920 é um forte indicador de que
tudo dependia das posses dos usuários. Nesses casos, a própria companhia de gás oferecia
aos consumidores a possibilidade de compra desses equipamentos por 160$000 réis.
Convém lembrar que nas primeiras décadas do século XX os fogões eram artigos
importados, representando ainda um luxo restrito a poucos (Lemos, 1976, p.152-154; 1985,
p.87-88).
Com relação à iluminação pública e doméstica, conforme Haim Grünspun, “a luz
elétrica no bairro sempre existiu. Possivelmente foi um dos primeiros bairros que a Light
and Power iluminou, mas as lâmpadas nas ruas eram fracas e as de casa mais fracas
ainda” (1979, p.35-36). A reclamação de um leitor acerca dos serviços prestados e dos
preços cobrados pela empresa fornecedora de energia (então à gás), divulgada pelo jornal
O Estado de São Paulo ainda em 09/08/1918, confirma a precariedade do serviço: “a
grande verdade é que o consumidor vive hoje com a casa quase às escuras, pagando por
metro cúbico entre 297 e 313 réis, o que há quatro anos apenas lhe custava 235 réis”.
Acertadamente o reclamante atribui o problema à disputa pelo monopólio do fornecimento
de energia, disputa essa entre a São Paulo Gas & Co e a Light.327 Acontece que entre a
publicação do jornal e a situação encontrada por Grünspun na década de 1930, haviam se
passado quase vinte anos sem que o problema houvesse sido solucionado,
independentemente da fonte de energia utilizada – gás ou eletricidade.
Com relação ao abastecimento de água e à instalação da rede de esgotos, seja por
dificuldades da Superintendência de Obras Públicas em ampliar o serviço para todos os
bairros da cidade, seja pelo custo que isso representava para o morador e para o
proprietário, a ligação da rede às casas se fez lentamente. Ademais, os serviços básicos de
infraestrutura implicavam em procedimentos complexos, envolvendo, além da distribuição
de águas, a instalação da rede coletora de esgotos, a separação das redes de águas pluviais

326
SAES. Op.cit. p.184.
327
Essa questão foi detalhadamente analisada por Flávio Macchione Saes no artigo “Luz, leis e livre-
concorrência: conflitos em torno das concessões de energia elétrica na cidade de São Paulo no início do
século XX”. In História, São Paulo, 28 (2), 2009.
e servidas e o tratamento dos esgotos antes que fossem lançados nos rios. Por outro lado,
como já constatado no caso do fornecimento de energia, a implantação de serviços
públicos em geral esteve constantemente sujeita a interesses políticos e econômicos, que
não aqueles da maioria da população328.
De todo modo, conforme Sidney P. Bernardini:
Nos bairros cujos coletores principais (de esgoto) estavam sendo estabelecidos [...] já
teriam em 1894, suas casas ligadas à rede. Já os bairros da Liberdade e Bela Vista
tiveram, em 1893, apenas os alinhamentos e nivelamentos demarcados para a organização
dos projetos (de instalação de esgotos). Estes dependiam da construção de coletores
principais nos córregos Anhangabaú, Bexiga e Saracura, obra concluída em parte em
1895, no córrego Anhangabaú. (2009, p.354).

De acordo com as pesquisas realizadas, os primeiros pedidos de licença


encaminhados à Diretoria de Obras para “levantamento de calçada”, objetivando a ligação
à rede de águas e esgotos, datam de 1906. Desde então, os serviços de água e esgoto
tornaram-se disponíveis pelo menos para algumas ruas do bairro – do que se depreende que
a instalação da rede nas ruas já havia sido efetivada pela Repartição de Águas e Esgotos 329.
Contudo, em 1914 ainda havia muitas casas cujas instalações sanitárias se restringiam às
latrinas no fundo do terreno, portanto desprovidas de esgoto. Com a água e o esgoto
encanados vemos surgir no bairro a introdução dos banheiros nos programas das
residências, mediante reformas ou nos pedidos de novas obras. Da mesma forma, as
cozinhas passam a gozar de instalações hidráulicas. Daí em diante, as inúmeras
possibilidades propiciadas pela disponibilidade de água corrente no interior das casas
tenderia a ser incorporada ao cotidiano das pessoas do bairro.
Ao se alterar o perfil e a configuração do espaço doméstico, a casa urbana evoluiu
de modo a incorporar novos hábitos culturais, entre eles o uso dos modernos equipamentos
domésticos que demandavam serviços básicos como a eletricidade e a água corrente. As
alterações nos espaços domésticos (e portanto, no modo de vivenciá-los) foram pré-
determinadas pela legislação urbanística que expressava o desejo das classes dominantes
de adequar os hábitos da população a um ideal de cidade desenvolvida, moderna e
higienizada, mas tal processo não se fez de um jato e sem tensão e conflitos.

328
BERNARDINI, Sidney Piochi. Construindo infra-estruturas, planejando territórios: a Secretaria de
Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Governo Estadual Paulista (1892-1926). Tese FAUUSP, 2007.
p.283, 354 a 358.
329
SCHNECK. Op.cit, p.148.
Num momento de expansão urbana acelerada, a ocupação desordenada da cidade
colocava em risco as pretensões modernizadoras, tanto do ponto de vista do espaço público
quanto do espaço privado, e um dos riscos a ser considerado pelas autoridades municipais
e estaduais derivava da exploração, pela iniciativa privada, do mercado imobiliário rentista,
envolvendo principalmente a construção de casas baratas, destinadas às populações de
baixa renda. Nesse sentido, a atuação da legislação sanitária e urbanística foi decisiva.
Ainda que em todas as suas instâncias – municipal, estadual e federal – as políticas
públicas tenham envolvido a elaboração de leis tendo em vista diferentes instâncias da vida
pública, aqui interessa analisar as iniciativas que incidiram sobre o bairro do Bexiga.
Coube à municipalidade e à burocracia da Diretoria de Obras e Viação e ao Setor de
Polícia e Higiene, desde meados do século XIX, o papel de disciplinar o espaço construído,
seja através da elaboração de uma legislação urbanística e sanitária, seja por meio do
controle efetivo das ações da iniciativa privada. Até o Código de Posturas de 1886, as
normas municipais nem sempre foram cumpridas em razão do desinteresse e/ou ignorância
da população acerca de seus benefícios ou mesmo de uma fiscalização deficiente. Já a
partir do Código Sanitário de 1894, com o advento da República, essas normas não apenas
se tornaram mais detalhadas e exigentes, como também mais abrangentes330, o que garantiu
o sucesso da empreitada pelo menos até os anos 1910. Nicolau Sevcenko, ao analisar a
cidade de São Paulo dos anos de 1920, chamou a atenção para o fato de o crescimento da
cidade ter sido desproporcionalmente maior do que as possibilidades de controle por parte
do poder público. Apesar do empenho demonstrado pela municipalidade em controlar o
crescimento urbano desenfreado através da ação da Diretoria de Obras e da Inspetoria
Sanitária, fatores como os limites orçamentários e a estrutura administrativa enxuta da
municipalidade dificultaram e até impediram quaisquer reações contra a pressão exercida
pelas manobras especulativas e contra o descaso por parte daqueles que detinham o
controle político e econômico da cidade331. Assim, temos uma “cidade oficial”, realizada
em cumprimento às normas, cujos projetos arquitetônicos e pareceres constam na Série
Obras Particulares, e outra “cidade informal” feita à margem da lei. A zona do Saracura
certamente se insere nessa segunda categoria, pois envolveu predominantemente cortiços e
habitações com feições aquém da lei. Neste caso cabe pensar em que medida a legislação
orientou a formação de um Bexiga homogêneo, ao mesmo tempo em que permitiu a

330
CAMPOS JR., Eudes de Mello – Arquitetura paulistana sob o Império, tese de Doutorado, FAUUSP,
1996, v.3, pg.426-487.
331
SEVCENKO, Nicolau – Orfeu extático da Metrópole. São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos
20, São Paulo: Cia. das Letras, 1992. p. 129 a 132.
permanência de um espaço de exclusão, como o território negro do Saracura. Esta era uma
área, onde historicamente a presença do negro era um dado real332, porém, mais do que a
isso, atribuo a ausência de intervenções reguladoras do poder público nessa área, nas
primeiras décadas do século XX, à uma suposta ausência de interesses públicos ou
particulares na área. O que não significa que fosse ignorada. Na verdade, desde meados
dos anos 1910 havia planos para transformar o fundo do Vale do Saracura na Av.
Anhangabaú, os quais se concretizariam a partir da implantação do Plano de Avenidas, nos
anos 1930333, quando a “a solução representada pela avenida no vale da Saracura seria
capaz de conciliar interesses imobiliários do entorno e o ideal de um urbanismo regulador
na cidade” (Silva, 2014, p.290). É quando o Saracura começa efetivamente a perder seu
caráter de “território negro”.
O disciplinamento do espaço construído, tal como estabelecido pela legislação
municipal – casas construídas no alinhamento, com um mínimo de três cômodos,
iluminadas e ventiladas, porão, mais a exigência de pés direitos mínimos (Lemos, 1985,
p.65-68; 1999, p.29-30 ) – implicava em mais do que simplesmente estabelecer regras para
a construção de edifícios, dizendo como e onde eles deveriam ser construídos, mas tinha a
ver principalmente com a cidade que se pretendia ter. A cidade foi reordenada e as
atividades e a população tiveram seus espaços redefinidos a partir de sua importância na
escala social e produtiva. Assim ocorreu com os bairros loteados a partir dos anos 1870, e
o Bexiga não foi exceção à regra.
A ideia de ordenamento urbano não se limitou ao espaço construído, mas estendeu-
se ao disciplinamento das práticas urbanas, entre elas, as condições de funcionamento dos
estabelecimentos comerciais, fabris e de serviços. O poder público, através da Diretoria de
Polícia Administrativa e Higiene e do Serviço Sanitário do Estado, atuou amiúde no
sentido de regulamentar, fiscalizar e controlar as atividades relacionadas à produção e ao
manuseio de produtos, particularmente aqueles direcionados à alimentação da população
em geral. Embora a aplicação da lei tenha se dado a partir da instância municipal, via
Polícia Administrativa e Higiene, os princípios básicos que regeram a legislação foram
elaborados pelos governos federal e estadual. É o que demonstra o texto do Decreto n.
2141, editado em 14 de novembro de 1911, que propõe a reorganização do Serviço

332
ROLNIK, Raquel – Territórios negros nas cidades brasileiras (etnicidade e cidade em São Paulo e Rio de
Janeiro). In Revista de Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, setembro de
1989, p.6.
333
SILVA, Marcos Virgílio da – “Lembrança que eu tenho da Saracura”: escavando histórias soterradas
por uma avenida. In HIKIJI & SILVA (Org.) Estudos CPC. Bixiga em artes e ofícios. São Paulo: CPC/USP,
2014, p.281-297.
Sanitário do Estado. Nesse documento, as atribuições das duas instâncias de poder são
definidas logo no artigo primeiro, onde se lê:
Artigo 1.° - O serviço sanitario é geral e municipal; o primeiro a cargo do Estado e o
segundo a cargo dos municipios.
Artigo 2.° - O serviço sanitario a cargo do Estado comprehende:
1.° - O estudo scientifico de todas as questões relativas à saúde publica ;
2.° -O estudo da natureza, etiologia, tratamento ou prophylaxia das molestias
transmissíveis que apparecerem ou se desenvolverem em qualquer ponto do Estado, bem
como quaesquer pesquizas scientificas que interessem à saúde publica ;
3.° -O exame das condições mesológicas em geral e particularmente o seu interpretativo,
no sentido da hygiene geral.

Adiante, no artigo terceiro, o documento especifica:


Artigo 3.° - Compete aos municipios :
1.° -Realizar os melhoramentos hygienicos essenciaes ás localidades assim como - esgotos,
drenagem das aguas pluviaes, abastecimento de agua potavel, enxugo do solo, calçamento,
irrigação e asseio das Vias publicas praças, logares e logradouros publicos, remoção e
destino final do lixo;
2.° -Velar pela hygiene das habitações, fiscalisando convenientemente o serviço de
construcções, não as permittindo sem projecto approvado de accôrdo com as leis e
preceitos sanitarios;
3.° -Exercer a fiscalisação dos generos alimenticios, a policia sanitaria das habitações
privadas e collectivas, das fabricas, dos estabelecimeutos industriaes e commerciaes, dos
mercados, dos matadouros, dos cemiterios e de tudo quanto directa ou indirectamente
póssa influir na salubridade do municipio, resalvada a competencia do Estado estatuida
no capitulo anterior;
4.° -Organisar e dirigir o serviço de assistencia publica em seus diversos ramos334 (grifos
nossos).
Dessa maneira, temos de um lado, o Estado gestor pensando os parâmetros ideais
para o “bem viver” no espaço urbano, de acordo com o ideário higienista vigente e, de
outro, os fiscais da Diretoria de Polícia Administrativa e Higiene exercendo o poder
executivo no embate direto com a população. Foi no sentido de esclarecer as circunstâncias
em que se desenvolveram as atividades produtivas no bairro, assim como quaisquer outras
condicionantes externas que de algum modo influíram em seu exercício, que o conjunto de
Leis, Decretos e Atos Institucionais disponibilizados no Portal da Câmara Municipal de

334
Decreto n.2.141. São Paulo, Secretaria de Estado dos Negócios do Interior, Carlos Guimarães. Disponível
em: www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao.
São Paulo, envolvendo as publicações feitas pela Câmara a partir de 1892335, forneceu
informações valiosas para o desenvolvimento deste trabalho. O mesmo pode ser dito
acerca dos Diários Oficiais da União, do Estado e da cidade de São Paulo. Essa
documentação, disponibilizada para consulta online no site JUS Brasil, permitiu o acesso a
informações complementares sobre pessoas e empresas atuantes no período investigado,
envolvendo a abertura de firmas e as falências, como também decretos oficiais
estabelecendo normas de conduta ou regulamentando preços de gêneros alimentícios336.
Partindo do propósito de identificação dos projetos arquitetônicos que
demonstrassem a intenção de alguma prática profissional e avaliar as tendências de
conjugação entre moradia e trabalho, o levantamento documental e o banco de dados dele
originado indicou que a contribuição dessa fonte documental poderia ir mais longe. O
cruzamento das informações coletadas na Série Obras Particulares com os dados dos
almanaques forneceu informações úteis no sentido de esclarecer os caminhos percorridos
pelos atores sociais que de alguma forma atuaram no bairro: a) na construção de casas,
cujo projeto original já indicava, além de uma moradia, a presença de algum tipo de
negócio, geralmente no cômodo da frente; b) na realização de reformas e acréscimos em
casas existentes de maneira a permitir o exercício de alguma atividade produtiva, ou
mesmo em casos onde essa atividade já préexistisse; c) na construção de anexos que
pudessem servir à instalação de oficinas, manufaturas e depósitos de materiais de trabalho
ou mercadorias; d) na construção, reforma ou ampliação de cocheiras destinadas a abrigar
animais e veículos de transporte de mercadorias; e) na construção e ou reforma de edifícios
destinados a práticas culturais, religiosas ou de lazer; f) o contraponto a essas situações é
colocado pelos casos em que os proprietários decidem a transformação do imóvel de
comercial em residencial. Nessa última situação constatei que os pedidos envolviam
licenças para “substituir portas por janelas”, “transformar um armazém em casa de
morada”, ou “transformar um armazém em sala”, o que indica que alguma circunstância
levou o proprietário a decidir pela mudança. Embora esses casos ocorram em número
pouco expressivo, comumente coincidem com momentos de transformações conjunturais,
tais como mudanças de caráter econômico e político.

335
De acordo com o site, “As bases de dados abrangem livros e outros documentos bibliográficos do acervo
da Biblioteca, legislação municipal, proposituras (projetos de lei, etc.), dados referentes a vereadores e
requerimentos e relatórios das comissões temporárias da Câmara”. Na parte que toca à legislação, o portal
consta de Leis, Decretos, Decretos Legislativos, Emendas à Lei Orgânica, Resoluções, Atos e Decretos-Lei.
Disponível em: http://camaramunicipalsp.qaplaweb.com.br/iah/pt/index.htm.
336
As publicações disponibilizadas pelo site envolvem os Diários do Executivo, do Judiciário e Legislativo;
Tribunais Regionais Eleitorais, Tribunais Regionais Eleitorias; e Ministérios Públicos, a partir de 1891.
Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/.
Observei ainda um número significativo de pedidos de pessoas que construíram
com o único intuito de locação, o que sinaliza sua posição na hierarquia social.
Eventualmente, essas pessoas residiam junto ao imóvel locado (no sobrado, nos fundos do
prédio, na casa da frente ou ao lado), e/ou também exploravam algum tipo de negócio ali
ou próximo. Em alguns casos, trata-se de empresários e capitalistas que investiram no
Bexiga como em outros tantos bairros populares ou não. Outros exemplos se referem a
pessoas proprietárias de um único imóvel, onde geralmente residiam e trabalhavam por
toda a vida, e nesse caso, o histórico traçado pelo cruzamento de informações indica um
suceder de etapas: a construção da primeira casa recuada do alinhamento e geralmente de
pequenas dimensões; o posterior acréscimo de um cômodo na frente para um pequeno
comércio; mais adiante, o acréscimo de um outro cômodo na sequência da construção
original; a construção de um forno nos fundos do terreno para uso próprio ou do negócio; e
talvez, quando o negócio prosperava, a introdução de vitrines que destacavam os produtos
oferecidos. Também há casos de pessoas que, seja em razão do insucesso do negócio, ou
porque vislumbravam melhores oportunidades em outros lugares, passaram pouco tempo
no bairro sem terem estabelecido maiores vínculos com o espaço.
Sob a perspectiva dos próprios negócios, o cruzamento dos dados dessas fontes
documentais permite a apreensão da evolução das práticas produtivas no bairro, sua
fugacidade e sua permanência, pelo menos entre os anos de 1906 e 1931. De outro lado,
acompanhar a sequência de alterações em um mesmo imóvel sob o comando do
proprietário ou do inquilino também auxilia na avaliação do alcance do negócio ali
empreendido. Enfim, a identificação das tipologias edilícias abre uma gama de
possibilidades a serem exploradas. Entre elas, cabe destacar o caso das cocheiras. Embora
esta seja uma atividade que não consta nos almanaques, os processos das Obras
Particulares não deixam dúvidas quanto à sua presença significativa no bairro. Acredito
que tenham sido de valor essencial para os negócios que envolvessem o abastecimento
domiciliar ou mesmo a prestação de serviços por meio de transporte de mercadorias e/ou
pessoas. É claro que sempre havia aquelas destinadas ao abrigo de animais e veículos
particulares pertencentes aos proprietários ou locatários dos imóveis mas, em se tratando
de um bairro marcado pela presença das camadas médias e baixas, seu número devia ser
bem restrito em relação ao total de instalações identificadas. Se nos restringirmos ao
possível uso privado, é muito provável que se tratasse de cocheiras com um número
reduzido de acomodações para animais, entre uma e no máximo três baias. O fato é que
cerca de 60% das cocheiras identificadas entre 1906 e 1923 possuíam mais de três baias,
chegando a ocorrer casos de até 14 baias. Assim é que atribuo a grande maioria das
instalações identificadas ao exercício de alguma atividade produtiva como estacionamento
de animais e veículos envolvidos com a entrega de produtos.
Com o objetivo de dinamizar a análise dos documentos e esclarecer a realidade
investigada, optei por verticalizar as informações sobre casos exemplares ao longo do
texto, sempre que isso colaborasse para dar vida ao cenário e aos atores estudados. Para o
que, os nomes sugeridos pelas fontes primárias levou à busca nos jornais, particularmente
em O Estado de São Paulo, de informações que permitissem reconstituir o perfil dessas
pessoas, assim como dar sentido à sua presença no bairro. Notas sobre fatos aparentemente
superficiais, tais como participação em eventos esportivos, associações de classe e
obituários, contribuíram para a construção de “retratos” dos personagens anônimos que
vivenciaram o Bexiga das primeiras décadas do século passado.
Espero assim ter feito uma história mais encarnada mostrando a centralidade de um
bairro supostamente periférico nas dinâmicas de uma cidade em expansão, pondo luz em
atores em movimento e imaginando suas expectativas num cenário de incertezas.
Missão cumprida, espero ter revelado faces e facetas de uma São Paulo em
transformação e movimento.
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ATO N. 1.267. Manda observar a tabella de preços maximos porque podem ser vendidos
a varejo os generos de primeira necessidade [...], 23 de outubro de 1918.

ATO N. 1.426. Regulamenta a Lei 2.264, de 13 de fevereiro de 1920, 26 de abril de 1920.

DECRETO N. 233. Estabelece o Código Sanitário, 2 de março de 1894.

DECRETO N.394. Aprova o regulamento do Serviço Sanitário, 07 de outubro de 1896.

DECRETO N. 2.141. Reorganiza o Serviço Sanitário do Estado, 14 de novembro de


1911.

DECRETO-LEI N.4.598. Dispõe sobre aluguéis de residências e dá outras providências,


20 de agosto de 1942.
LEI N. 493. Regulamentação do imposto sobre cocheiras, entre outras providências, 26 de
outubro de 1900.

LEI N. 790. Regulamentação do imposto sobre cocheiras, entre outras providências, 17 de


novembro de 1904.

LEI N. 1.242. Crêa o districto de paz de Bella Vista, desmembrado do da Consolação,


municipio da Capital, 26 de dezembro de 1910.

LEI N. 1.550. Prohibe a construcção de cocheiras e estábulos, 300 metros em circulos dos
grupos escolares, e regula a mudança das existentes, 11 de junho de 1912.

LEI N. 1.788. Divide em tres perimetros o Municipio de S. Paulo, 28 de maio de 1914.

LEI N. 1.596. Reorganisa o Serviço Sanitario do Estado, 29 de dezembro de 1917.

LEI N. 1.874. Divide o Municipio em quatro perimetros e dá outras providencias, 12 de


maio de 1915.

LEI N. 2.117. Regula o lançamento e a arrecadação do imposto sobre cocheiras, 09 de


fevereiro de 1918.

LEI N. 2.264. Dispõe sobre a inspeção e fiscalização do transito de veículos no municipio,


13 de fevereiro de 1920.

LEI N. 3.427. Código de obras Arthur Saboya, 19 de novembro de 1929.

LEI N. 14.106. Revoga, em todos os seus termos, as leis que especifica, relativas ao
período de 1892 a 1947, e dá outras providências, 12 de dezembro de 2005.

O ESTADO DE SÃO PAULO. Exemplares envolvendo os anos 1900 a1931, 1936, 1938.
ANEXOS
ANEXOS 1
CARTOGRAFIA UTILIZADA

ANEXO 1.1 – “Planta da cidade de São Paulo” (1881)

ANEXO 1.2 – “Planta dos Terrenos do Bexiga” (1890)

ANEXO 1.3 – “Planta da Capital do Estado de São Paulo” (1890)

ANEXO 1.4 – “Planta da cidade de São Paulo” (1895)

ANEXO 1.5 – “Planta da Cidade de São Paulo” (1916)

ANEXO 1.6 – “Planta SARA Brasil” (1930)


ANEXO 1.1

PLANTA DA CIDADE DE SÃO PAULO (1881)

À esquerda da imagem, destacamos em verde o loteamento do Bexiga. Acima, à esquerda, destacamos o


loteamento dos Campos Elíseos; e à direita, o arruamento previsto para o Brás, ambos destacados em
vermelho.
No caso do Bexiga, as ruas projetadas ainda não possuíam nome, indicando que na época da elaboração da
planta o empreendimento era apenas uma promessa.
ANEXO 1.2

PLANTA DOS TERRENOS DO BEXIGA (1890)

O croqui de Fernando de Albuquerque apresenta um arruamento semelhante àquele encontrado nas futuras
plantas da cidade. Com exceção da rua Conselheiro Carrão, a nomeação das demais difere completamente da
toponímia atual. Por outro lado, a rua aqui identificada como Santo Amaro corresponde à rua Santo Antonio.
Atente-se ainda para a denominação “Bella Vista” localizada acima do Córrego da Saracura.
ANEXO 1.3

PLANTA DA CAPITAL DO ESTADO DE S.PAULO (1890)

Aqui, pela primeira vez, o bairro do Bexiga se apresenta conforme o projeto de Fernando Albuquerque.
Quase todas as ruas existentes possuem nomes, ainda que nem todos definitivos. As ruas Conselheiro
Antonio Prado e da Horta deram lugar às ruas Manoel Dutra e Fortaleza; perpendicular a elas, as ruas Pires
da Motta, dos Valinhos e da Misericórdia (que, por sua vez, deram lugar às ruas Treze de Maio, Major Diogo
e Abolição). No ponto de encontro entre as ruas Santo Antonio e São Domingos, vemos o caminho do
“aterrado da Bella Vista” em direção à rua da Consolação que, a partir da planta de 1895, seria identificado
como rua Martinho Prado.
ANEXO 1.4

PLANTA DA CIDADE DE SÃO PAULO (1895)

Como podemos observar no destaque à esquerda da planta, o bairro (descatacado em verde) recebe a
denominação “Bella Vista”. Ao lado do loteamento, descamos em laranja o arruamento realizado pela
Baronesa de Limeira em 1894. Ali, as ruas ainda nem ao menos estavam nomeadas, demonstrando que nessa
área o processo de ocupação foi mais tardio em relação àquele do Bexiga.
ANEXO 1.5

PLANTA DA CIDADE DE SÃO PAULO (1916)

Conforme esta planta, a Bela Vista envolvia além do próprio Bexiga (destacado em verde), as ruas
localizadas entre ele e as avenidas Paulista e Brigadeiro Luís Antonio. No processo de “ampliação” do bairro
para configurar o distrito, outras áreas também passaram a ser popularmente conhecidas como Bexiga.
Contudo, embora a denominação do distrito prevaleça, a planta mantém o nome original do loteamento, logo
acima do nome do distrito (Bela Vista), ambos circulados em verde.
ANEXO 1.6

PLANTA SARA BRASIL (1930)

Aqui destacamos as três áreas do Bexiga: a “área nobre” circundada em laranja, entre a Av. Brigadeiro Luís
Antonio e a rua Santo Amaro; o “loteamento original” circundado em verde, entre a rua Santo Amaro e a rua
Santo Antonio;e a área do Saracura, circundada em azul, entre a rua Santo Antonio e a Av. Anhangabaú.
ANEXO 2
ATIVIDADES IDENTIFICADAS
ANEXO 2

ATIVIDADES IDENTIFICADAS NO BAIRRO DO BEXIGA (1906-1931)


ATIVIDADES MODALIDADES PRODUTOS/SERVIÇOS

SERVIÇOS DESTINADOS AO COMÉRCIO AGENTES DE VAPORES/ AGENTES DIVERSOS/


ESPECIALIZADO COMISSÁRIOS DE CAFÉ E OUTROS /COMISSÕES,
CONSIGNAÇÕES POR CONTA PRÓPRIA/ CORRETORES/
AGENTES COMERCIAIS CORRETORES DE MERCADOS E NAVIOS/ IMPORTAÇÃO
E EXPORTAÇÃO/ IMPORTADORES E COMERCIANTES DE
JÓIAS/ REPRESENTANTES DE CASAS COMERCIAIS,
COMPANHIAS, EMPRESAS ETC.
COMÉRCIO DE GÊNEROS ALIMENTÍCIOS E CARNES/ PEIXES/ CEREAIS/ FRUTAS E VERDURAS/
BEBIDAS LATICÍNIOS/ SECOS E MOLHADOS/ CONFEITOS, BALAS
E DOCES/ MASSAS ALIMENTÍCIAS/ EMBUTIDOS E
CONSERVAS/ ÁGUAS MINERAIS E GAZOSAS/ CAFÉ
MOÍDO E TORRADO/ VINHOS
PRODUÇÃO, FABRICAÇÃO E/OU HORTICULTURAS/ PADARIAS/ FÁBRICAS DE MASSAS
ALIMENTAÇÃO, BENEFICIAMENTO DE PRODUTOS DESTINADOS ALIMENTÍCIAS/ FÁBRICAS DE DOCES/ TORREFAÇÃO E
ALOJAMENTOS E LAZER À ALIMENTAÇÃO MOAGEM DE CAFÉ/ ESTABELECIMENTOS PARA A
FABRICAÇÃO DE BEBIDAS ALCOÓLICAS
(AGUARDENTE, CERVEJA, VINHO)
SERVIÇOS DE ALOJAMENTOS PENSÕES
SERVIÇOS DE LAZER BILHARES
SERVIÇOS DE VENDA DE PRODUTOS CONFEITARIAS/ RESTAURANTES/ BARES E
ALIMENTÍCIOS PARA CONSUMO LOCAL BOTEQUINS/ CAFÉS/ LEITERIAS
ARTES CÊNICAS/COMÉRCIO E SERVIÇOS DE AGÊNCIAS TEATRAIS E TEATROS/ CINEMAS E
APOIO CINEMATÓGRAFOS/ MATERIAL DE EMPRESAS DE
CINEMATOGRAFIA
ARTES GRÁFICAS/COMÉRCIO E SERVIÇOS ENCADERNAÇÕES/ ESTAMPARIAS/ LITOGRAFIAS/
PROFISSIONAIS OFICINAS DE GRAVURAS/ OFICINAS GRÁFICAS/
TIPOGRAFIAS
ARTES E OFÍCIOS ARTES PLÁSTICAS /SERVIÇOS PROFISSIONAIS ESCULTORES E ESTATUÁRIOS/ PROFESSORES DE
PINTURA
FOTOGRAFIA/SERVIÇOS PROFISSIONAIS FOTÓGRAFOS/ FOTOGRAFIAS
MÚSICA/COMÉRCIO, SERVIÇOS E MAESTROS/ PROFESSORES DE MÚSICA, PIANO E
PROFISSIONAIS VIOLINO/
INSTRUMENTOS MUSICAIS, MÚSICAS/ AFINADORES DE
PIANOS E ÓRGÃOS
COMÉRCIO E FABRICAÇÃO DE APARELHOS E ACESSÓRIOS E APARELHOS DE ELETRICIDADE/
COMÉRCIO APARELHOS
MÁQUINÁRIO EM GERAL GRAMOFONES, FONÓGRAFOS, DISCOS E AGULHAS/
ELÉTRICOS, MÁQUINAS E
MÁQUINAS DE COSTURA/ MÁQUINAS E ACESSÓRIOS
EQUIPAMENTOS
PARA CALÇADOS/ MÁQUINAS PARA INDÚSTRIA,
DOMÉSTICOS E
LAVOURA E MARINHA/ MÁQUINAS PARA ARTES
PROFISSIONAIS
GRÁFICAS/ BALANÇAS, PESOS E MEDIDAS
ARTIGOS PARA PROFISSIONAIS DIVERSOS ANILINAS E ALIZARINAS/ ARTIGOS E ACESSÓRIOS
PARA SAPATEIROS E CELEIROS/ COUROS E PELES/
PLACAS DE METAL E ESMALTADAS/ INSTRUMENTOS
CIRÚRGICOS, ENGENHARIA ETC.
ARTIGOS PARA ESCRITÓRIO, COLÉGIOS, ETC. CARIMBOS E SINETES/ PAPELARIAS/ TINTAS PARA
ESCREVER E COPIAR
COMÉRCIO EM GERAL
ARTIGOS DIVERSOS ARMARINHOS/ ARMARINHOS, FAZENDAS E MODAS/
ARTIGOS PARA BORDAR/ ARTIGOS PARA ESCRITÓRIO,
COLÉGIOS, ETC./ BAZARES/ BELCHIORES/
BORDADOS/ BOTÕES/ BRINQUEDOS/ CHÁ, CERA E
SEMENTES/ CHARUTARIAS/ CORDOARIA E BARBANTE/
COROAS E ARTIGOS FUNERÁRIOS/ FERRAGENS E
QUINQUILHARIAS/ FERRAGENS, LOUÇAS, TINTAS,
ETC./ FLORES ARTIFICIAIS E NATURAIS/ FUMO/
GRAXA E POMADA PARA CALÇADOS/ LENHA E
CARVÃO VEGETAL/ LINHAS PARA COSER/ LOTERIAS/
PERFUMARIAS E OBJETOS DE TOILETE/ PIPAS/
SACARIAS/ SACOS DE PAPEL/ TECIDOS ELÁSTICOS
COMÉRCIO DE MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO CERÂMICAS/ CIMENTO/ GESSO/ LADRILHOS/
MÁRMORES/ MOSAICOS/ MADEIRAS
FABRICAÇÃO DE PRODUTOS DESTINADOS À LADRILHOS E MOSAICOS
CONSTRUÇÃO CIVIL
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ESSENCIAIS À BOMBEIROS HIDRÁULICOS E/OU ENCANADORES/
CONSTRUÇÃO CIVIL CONSTRUÇÃO CIVIL E/OU MANUTENÇÃO CARPINTEIROS/ ELETRICISTAS/ ESCULTORES/
PREDIAL ESTUCADORES/ FERREIROS/ MARCENEIROS/
PINTORES E DECORADORES/ SERRALHEIROS/
VIDRACEIROS
PROFISSIONAIS ESPECIALIZADOS DA CONSTRUTORES/ EMPREITEIROS/ ARQUITETOS/
CONSTRUÇÃO CIVIL ENGENHEIROS
PROFISSIONAIS DE ENSINO PROFESSORES DE LETRAS E LÍNGUAS
EDUCAÇÃO
ESTABELECIMENTOS DE ENSINO ESTABELECIMENTOS DE INSTRUÇÃO
FABRICAÇÃO DE PRODUTOS DIVERSOS CAIXOTEIROS/ CALDEIREIROS/ CUNHAGEM DE
MEDALHAS/ FABRICANTES DE BOTÕES/ FABRICANTES
DE BRINQUEDOS/ FABRICANTES DE CERA PARA
SOALHO/ FABRICANTES DE CIGARROS/ FABRICANTES
DE POMADAS PARA CALÇADOS/ FABRICANTES DE
SABÃO/ FABRICANTES DE VELAS/ FABRICANTES E
OFICINAS E MANUFATURAS
DEPÓSITOS DE CAIXAS DE PAPELÃO/ FABRICANTES E
DEPÓSITOS DE PAPEL E PAPELÃO/ FUNDIÇÕES/
FUNILEIROS/
GALVANIZADORES, DOURADORES, NIQUELADORES E
PRATEADORES/ GRAVADORES/ LATOEIROS/
JOALHERIAS, OURIVESARIAS E RELOJOARIAS
SERVIÇOS DESTINADOS À INFORMAÇÃO E EDITORAS DE LIVROS E MÚSICAS/ EMPRESAS DE
COMUNICAÇÃO ANÚNCIOS/ EMPRESAS DE ANÚNCIOS/ RÁDIO,
INFORMAÇÃO E
TELEFONIA E TELEGRAFIA
COMUNICAÇÃO
COMÉRCIO DE ARTIGOS DESTINADOS À JORNAIS E REVISTAS/ LIVRARIAS/ BILHETES E
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO CARTÕES POSTAIS
FABRICAÇÃO DE MOBILIÁRIO E PRODUTOS DE MÓVEIS/ CAMAS E MÓVEIS DE FERRO/ LOUÇAS DE
USO DOMÉSTICO BARRO/ ESTOJOS E CAIXAS DE JÓIAS
COMÉRCIO DE MOBILIÁRIO E PRODUTOS MÓVEIS/ CAMAS E MÓVEIS DE FERRO/ TAPEÇARIAS/
MÓVEIS, UTILIDADES E
DESTINADOS AO USO DOMÉSTICO ABAJOURS/ ESPELHOS/ QUADROS E MOLDURAS/
SERVIÇOS DOMÉSTICOS
LOUÇAS/ PORCELANAS/ VIDROS E CRISTAIS
SERVIÇOS DE APOIO À MANUTENÇÃO ENCERAMENTO DE ASSOALHOS/ EMPALHADORES/
DOMÉSTICA LUSTRADORES DE MÓVEIS/ ESTOFADORES
COMÉRCIO E SERVIÇOS DE APOIO À SAÚDE DROGARIAS/ FARMÁCIAS/ HERVANÁRIOS
FABRICAÇÃO DE PRODUTOS DESTINADOS AOS PREPARADOS FARMACÊUTICOS E QUÍMICOS
SERVIÇOS DE SAÚDE
SAÚDE
PROFISSIONAIS ESPECIALIZADOS DA SAÚDE DENTISTAS/ MÉDICOS/ FARMACÊUTICOS/ QUÍMICOS/
PARTEIRAS
SERVIÇOS ESPECIALIZADOS DA SAÚDE CASAS DE SAÚDE/ LABORATÓRIOS DE ANÁLISES
SERVIÇOS PESSOAIS BANHOS E MASSAGENS/ BARBEARIAS E
CABELEIREIROS/ LAVANDERIAS/ LAVADORES E
SERVIÇOS PESSOAIS ENFORMADORES DE CHAPÉUS/ SAPATARIAS/
TINTURARIAS
ASSESSORIA JURÍDICA E CONTÁBIL ADVOGADOS/ GUARDA-LIVROS
COMÉRCIO DE VEÍCULOS AUTOMÓVEIS
FABRICAÇÃO DE VEÍCULOS CARRUAGENS
TRANSPORTE
COMÉRCIO E SERVIÇOS DE APOIO AO ALFAFA E FORRAGENS/ CORREARIAS E SELARIAS/
TRANSPORTE ANIMAL FERRADORES/ OFICINAS DE CARROÇAS E
CARRUAGENS/ VETERINÁRIOS
SERVIÇOS DE APOIO AO TRANSPORTE GARAGENS/ OFICINAS MECÂNICAS
RODOVIÁRIO
SERVIÇOS DE TRANSPORTE DE CARGA FRETE DE CARROÇAS
COMÉRCIO DE ARTIGOS DE VESTUÁRIO E CALÇADOS/ CHAPÉUS PARA HOMENS, SENHORAS E
ACESSÓRIOS CRIANÇAS/ CHAPÉUS DE CHUVA (GUARDA-CHUVAS) E
SOMBRINHAS/ COLETES PARA SENHORAS/ ROUPA
BRANCA/ ROUPA FEITA/ MODAS
FABRICAÇÃO DE ARTIGOS DE VESTUÁRIO E ALFAIATARIAS/ COSTUREIRAS/ FABRICANTES DE
VESTUÁRIO E ACESSÓRIOS
ACESSÓRIOS CASEMIRAS/ FABRICANTES DE MEIAS/ FABRICANTES
PESSOAIS
DE ROUPAS BRANCAS/ MODAS E CONFECÇÕES/
MODISTAS/ OFICINAS DE COSTURA/ FABRICANTES DE
BONÉS/ FABRICANTES DE CHAPÉUS PARA HOMENS,
SENHORAS E CRIANÇAS/ FABRICANTES DE CALÇADOS
E CHINELOS
ANEXOS 3
ESPACIALIZAÇÃO ATIVIDADES PLANTA SARA BRASIL

ANEXO 3.1 – Espacialização atividades (1906)

ANEXO 3.2 – Espacialização atividades (1909)

ANEXO 3.3 – Espacialização atividades(1914 )

ANEXO 3.4 – Espacialização atividades (1915)

ANEXO 3.5 – Espacialização atividade0 (1918)

ANEXO 3.6 – Espacialização atividades (1922-23)

ANEXO 3.7 – Espacialização atividades (1927)

ANEXO 3.8 – Espacialização atividades (1931)


ANEXO 3.1

ESPACIALIZAÇÃO DE ATIVIDADES (1906)


ANEXO 3.2

ESPACIALIZAÇÃO DE ATIVIDADES (1909)


ANEXO 3.3

ESPACIALIZAÇÃO DE ATIVIDADES (1914)


ANEXO 3.4

ESPACIALIZAÇÃO DE ATIVIDADES (1915)


ANEXO 3.5

ESPACIALIZAÇÃO DE ATIVIDADES (1918)


ANEXO 3.6

ESPACIALIZAÇÃO DE ATIVIDADES (1922-23)


ANEXO 3.7

ESPACIALIZAÇÃO DE ATIVIDADES (1927)


ANEXO 3.8

ESPACIALIZAÇÃO DE ATIVIDADES (1931)

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