A Bíblia Como Literatura
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Resumo
Este artigo apresenta uma proposta de leitura das narrativas bblicas por
intermdio de elementos da teoria literria. O conceito de comunicao
retrica do texto bblico central para o artigo. Inicialmente, indica as
principais obras publicadas no Brasil na rea, discutindo, a seguir, a
relao entre Bblia e literatura. Na seqncia, define os termos que sero
empregados e, finalmente os aplica s narrativas bblicas.
Palavras-chave: Narrativas bblicas; literatura; teoria literria; comunicao; narrador; leitor.
1 Introduo
Desejo inicialmente agradecer o convite feito pelo dr. Etienne
Higuet para estar no Seminrio Paul Tillich. Esta universidade, e particularmente a ps-graduo em Cincias da Religio, so caros a mim.
Aqui cursei o mestrado com concentrao em Bblia, sob orientao
do dr. Paulo Nogueira. Devo dizer que foi nesse momento que me
senti introduzido ao mundo acadmico e sua reflexo, dentro de um
contexto de companheirismo e apoio.
Revista Eletrnica Correlatio n. 13 - Junho de 2008
2 Definindo termos
Posto isso, julgo ser necessrio definir termos. Ao pretender falar
sobre Bblia como literatura necessrio esclarecer os componentes
da proposio. Comeamos com a pergunta: o que Bblia? o
termo que o cristianismo utiliza para referir-se ao seu livro sagrado,
unindo as escrituras cannicas do judasmo e a literatura prpria do
movimento cristo nascente. Como sabemos, a palavra provm do grego
ta bblia, os livros. Acredita-se que ela foi usada pela primeira vez pelos
cristos como referncia ao Antigo Testamento na segunda Carta de
Clemente de Roma aos Corntios, por volta de 150 d.C. No sculo V
d.C. o sentido foi estendido para toda a Escritura. No sculo XIII d.C.
ta bblia, entendida como declinao neutra plural, foi substituda pela
forma feminina singular, passando a significar o livro, forma que se
generalizou pelo uso latino do termo. Nessa ltima acepo ela foi assimilada pelas lnguas modernas do Ocidente.
Portanto, a idia de um grupo de livros considerado como unidade
acarreta dificuldades para que se considere a Bblia como literatura,
visto que uma perspectiva teolgica passa a ocupar o foco central em
sua interpretao. Nessa tica, necessrio que toda a Bblia apresente
um nico discurso, o que suscita, principalmente em crculos conservadores de interpretao, discusses interminveis. Some-se a isso o
princpio generalizado: a Escritura interpreta a Escritura, que pode
trazer consigo uma disposio interpretativa anti-histrica. Portanto,
mesmo que na academia nos refiramos Bblia no plural, a leitura
massiva por parte de milhes de pessoas ainda a preponderante.
imperativo que se analise o outro componente do ttulo desta
palestra: literatura. Aqui estamos fundamentalmente no campo dos estudos terico-literrios. No que os biblistas o ignorem. Basta lembrar
as preciosas contribuies de Hermann Gunkel, no Antigo Testamento,
e de Rudolf Bultmann, no Novo, para mencionar apenas o desenvolvimento dos estudos exegticos no ltimo sculo. Eles so exemplos
de pesquisadores que em seu labor exegtico-teolgico fizeram uso de
elementos literrios. O foco, no entanto, estava colocado principalmente
na histria das formas bblicas, pressupondo que elas foram reunidas
em agrupamentos maiores sem grande cuidado esttico, uma vez que os
compiladores procuravam, segundo os proponentes dessa teoria, atender
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Por outro lado, tem havido a tendncia, cada vez maior, de derrubar barreiras divisrias, em uma perspectiva pragmtica, considerando
que o prprio cnon estabelecido acima de tudo pela sociedade. A
diluio cada vez maior dos gneros literrios clssicos igualmente
contribui para esse estado de coisas. Qualquer produo cultural: um
romance, um texto histrico, um dirio, sermes, ou mesmo a letra de
uma msica funk, considerada literatura.
Para chegar a um meio termo, pode-se dizer que a literatura: a)
caracterizada por uma determinada relao com a realidade e b) que
ela apresenta certas propriedades de linguagem. Os dois aspectos esto
interligados. No primeiro caso, so teis o conceito de esttica e
os de mimesis e de poiesis apresentados por Aristteles em seu livro
Potica. Mimesis e poiesis significam imitao/representao e criao,
respectivamente. Com eles quer-se afirmar que uma obra literria no
uma cpia ou descrio da realidade, mas que, em uma instncia
preliminar, por usar a linguagem que se constitui em signos grficos
e sonoros, ela uma reconstruo do mundo a partir da percepo
do artista, de modo a transmitir aos leitores uma viso particular da
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s vezes o narrador nos deixa livres para imaginarmos a continuao da histria (2001: 12).
A fim de persuadir o leitor, ao compor sua narrativa o escritor
utiliza a combinao dos elementos: narrador, tempo, cenrio, personagens e enredo [5] . Com exceo do ltimo [6] , abordarei cada um
desses tpicos para que percebamos como eles permitem uma melhor
compreenso do texto narrativo.
3.1 Narrador
Toda histria provm de uma voz que a conta. As narrativas so
construdas a partir das articulaes desenvolvidas pelo narrador.
ele quem determina como a histria chega a ns, leitores. Visto que o
narrador a figura central na construo narrativa, me deterei mais em
sua descrio do que nos demais tpicos.
Na misso de direcionar nossos caminhos dentro do bosque literrio
o narrador utiliza uma srie de estratgias. Uma das principais trabalhar com primeiros e segundos planos. Eles esto vinculados ao
maior ou menor nmero de dados fornecidos pelo narrador. Quando o
texto bastante detalhado, com inmeros pormenores, praticamente no
restando dvidas ao leitor, estamos no primeiro plano. Por outro lado,
em textos ambguos, com escassez de informaes, reconhecvel a
insero do segundo plano. A prtica de uma interpretao meramente
histrica d destaque ao primeiro plano, considerando o segundo como
debilidade textual. Em termos de anlise terico - literria d-se o con-
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Em primeira instncia a rapidez se d em virtude do ato comunicativo entre o autor/narrador e o primeiro leitor. Aquele leva em considerao uma srie de fatores que compem o conhecimento do segundo,
no sentindo necessidade de explicit-los no texto. o que se chama de
enciclopdia de conhecimento do leitor. por esse motivo que os demais leitores se vem obrigados, diante de um livro no contemporneo,
a estudar questes contextuais para entender alguns elementos do texto.
Mas no nesse aspecto que Eco coloca em evidncia a rapidez. O que
ele deseja enfatizar a estratgia narrativa de acelerao textual e
nesse caso ela colabora para a construo do segundo plano. O uso da
rapidez influencia desde o primeiro at o ltimo leitor, visto que no
est diretamente vinculado a questes extra-textuais.
A rapidez pode ser utilizada apenas para, em um uso muito bsico,
acelerar temporalmente a narrativa. o que acontece com as genealogias
e os sumrios bblicos. As genealogias apresentam um grande percurso
temporal em poucas linhas, ligando nomes a nomes, correndo do geral
para o especfico. Em lugar de contar a histria desses personagens,
o narrador apenas cita seus nomes a fim de chegar rapidamente aonde
deseja. Os sumrios, do mesmo modo, ao mencionarem o personagem,
a regio em que atua e o que faz, citando um dado temporal vago, no
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voto. Este nos dado a conhecer pelo narrador, mas a orao, feita com
amargura de alma e em meio ao choro, ocultada. Por qu? Talvez
para que ns, leitores, nos coloquemos no lugar de Ana e pensemos em
como oraramos nessa situao. comum ao narrador utilizar esse tipo
de tempo para revelar situaes aos leitores que os demais personagens
desconhecem, como pensamentos, sentimentos, planos, etc. Nesse caso,
o leitor passa a gozar de um conhecimento privilegiado.
Desse modo, o tempo psicolgico um exerccio do narrador em
sua oniscincia. Seu objetivo aprofundar a histria, dando a conhecer
mais intensamente os personagens, de modo a permitir que os leitores
possam se posicionar com mais clareza. a estratgia mais efetiva a
que o narrador recorre quando deseja que os leitores entendam determinados acontecimentos e ajuzem valores de modo adequado.
3.3 Cenrio
Quanto aos cenrios, preciso estabelecer que eles exercem duas
funes. Inicialmente situam a narrativa no espao. Com isso, trazem
para a histria aspectos da mimesis, uma vez que o cenrio em geral
aponta para um lugar real. Em fices de cunho mais livre, o cenrio
pode ser imaginado, no-existente. Mas no caso dos relatos bblicos
ele, em geral, ter uma referncia histrica. No podemos nos enganar
concluindo que essa sua funo principal. No . O papel primordial
do cenrio ser encontrado na economia narrativa. Em outras palavras,
ele ser percebido segundo o papel que desempenha na histria e na
relao com os demais elementos. Cito como exemplo o texto dos
magos que visitam o recm-nascido Jesus Cristo em Mateus 2.1-12.
Aqui se apresenta a tenso entre Jerusalm, como lugar onde esto
Herodes, os religiosos e toda a populao, os quais temem a chegada da
criana, e Belm, onde se encontra o nen com seus pais, e para onde
os magos so guiados pela estrela. Com isso, estabelece-se uma tenso
entre Jerusalm, o lugar da oposio, e Belm, o lugar da aceitao e
acolhimento. Convm perceber que essa funo extrapola em muito o
mero referencial histrico que tais cidades evocam.
Outro exemplo se encontra no texto de 1 Samuel, captulo 1, mencionado anteriormente. O texto gira em torno do templo em Sil. Mas
o santurio no apenas o local onde se desenrola a trama. para l
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que sobem todo ano Elcana e suas duas mulheres, Penina e Ana. ali
que Ana, estril, humilhada anualmente pela concorrente. O prprio
sacerdote Eli se une a esse ato ao concluir que Ana estava embriagada
ao v-la orando silenciosamente. Aps ser atendida em seu pedido com
o nascimento de Samuel, no ano seguinte Ana comunica ao esposo
que no subir a Sil. Por qu? Em razo da criana ainda no estar desmamada e no poder ser entregue a Eli, conforme a promessa.
Mas no apenas isso. Ela no aceita voltar ao templo sem seu filho,
porque o lugar simboliza sofrimento e humilhao. S voltar para
l quando todos puderem confirmar a transformao que ocorreu em
sua vida. Portanto, o santurio se tornar o lugar de adorao, que a
ltima ao de Ana na histria. vista disso, extrapolando a mimesis, o
cenrio coopera para a construo textual da poiesis, sendo ele mesmo
um elemento poitico.
3.4 Personagens
Os personagens so os agentes da ao. Sem eles o enredo no
se desenvolve. Eles podem ser classificados em protagonistas e viles,
segundo a funo que desempenham. O protagonista apresentado
como heri ou anti-heri. Somente o desenvolvimento da histria permitir identificar seu papel. Jesus Cristo, por exemplo, claramente
um heri. Mas e Sanso, Davi? Um caso interessante o de Saul. Ele
introduzido no livro de Samuel como um heri, profeta, o primeiro
rei. No entanto, no decorrer da narrativa ele abandona pouco a pouco
essa posio ao desobedecer s orientaes divinas, ao tornar-se inimigo de Davi, ao consultar a mdium e, finalmente, ao suicidar-se.
Jac, por outro lado, apresentado de modo contrrio. Ele o tpico
anti-heri. Malandro, rouba a primogenitura do irmo. Posteriormente
enganado pelo sogro, que lhe d a filha mais velha no lugar de Raquel.
Entretanto, mais frente reconcilia-se com Esa e busca a bno
divina, mesmo sob o preo de lutar com a divindade. Torna-se Israel
(Gnesis 25.27-32.32)
H na Bblia viles clssicos como Acabe e Jezabel no livro de
Reis, Satans, os fariseus no Novo Testamento, etc. Mas pode haver
surpresas. Entre aes hericas no segundo livro de Samuel, Davi
descrito por um instante como vilo na histria de Bate-Seba e seu
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A categoria inferior dessa escala aquela em que o personagem revelado por suas aes ou por sua aparncia nos conduz, em essncia, a um
mbito de inferncias. As categorias intermedirias, que giram em torno
do discurso direto do prprio personagem ou de outros a seu respeito,
levam-nos da inferncia avaliao das afirmaes. Embora as declaraes do prprio personagem possam parecer uma revelao honesta de
quem ele e do que faz com as coisas, na verdade os escritores bblicos
sabem to bem quanto Henry James ou Proust que a fala s vezes reflete
mais a circunstncia que o locutor, e pode ser antes uma cortina fechada
do que uma janela aberta. Com o monlogo narrado entramos na esfera da
certeza relativa sobre o personagem: h certeza, em todo caso, sobre as
intenes conscientes do personagem, mas ainda podemos nos perguntar
sobre seus motivos efetivos. Por fim, no topo da escala ascendente, temos
a afirmao explcita do narrador confivel sobre o que o personagem
sente, pretende, deseja; agora o texto nos concede certezas [...] (2007:
178, grifo nosso).
Isso significa que os personagens bblicos, longe de representarem mera transposio objetiva de aes ocorridas no passado, so
construdos esttica e literariamente com fins retricos. Ns, leitores,
somos o alvo.
4 Concluso
Seria interessante analisar como o enredo montado. Mas j tomei
tempo demais de vocs.
A ttulo de concluso, gostaria de observar que a leitura e o estudo
literrio da Bblia no tm a pretenso de negar os mtodos anteriores
ou de se opor a eles. O que ela sugere uma contribuio para o desenvolvimento e o aperfeioamento daquilo que j existe. Nesse sentido, o
que proponho aqui que olhemos para os textos bblicos a partir de sua
composio artstica. Isso implica em alterar alguns pressupostos que
trazemos conosco. Um deles que a Bblia um texto desinteressante.
Talvez possa ser para alguns. Mas se tivermos pacincia para l-la com
calma, permitindo que nos guie em seus caminhos, ela poder se tornar
uma leitura surpreendente.
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Uma outra proposta que, ao invs de mantermos um distanciamento cientfico das Escrituras para estud-las, conforme alguns
mtodos propem, ns nos aproximemos delas, atendendo ao convite
para que participemos de um dilogo. Dessa forma o processo de comunicao ser iniciado e nos envolveremos com os textos da mesma
forma como nos envolvemos com outros textos que nos empolgam e nos
cativam. Portanto, sugiro que coloquemos em segundo plano tanto uma
leitura crtica como uma abordagem fundamentalista. Leiamos a Bblia
sincronicamente, procurando entender como suas narrativas se constroem
a partir dos elementos apresentados, conscientes de que suas histrias
trazem consigo um forte teor retrico, buscando convencer os leitores
de seus valores. Somente depois procuremos comentrios, dicionrios,
etc., para elucidar questes histricas, filolgicas e sociolgicas.
Agindo assim, recuperaremos o frescor da leitura bblica. E olhando para aqueles que trabalham em comunidades religiosas, poder
haver um enorme ganho ao ensinar o povo a ler a Bblia sem que seja
necessrio o conhecimento de ferramentas exegticas e outras tecnicidades. Eles podero ser ensinados a identificar a organizao das
histrias que tanto amam e descobriro profundidade e alento para a
caminhada de f em que esto envolvidos.
Referncias
ABADA, Jos Pedro Tosaus. A Bblia como literatura. Traduo de Jaime A.
Clasen. Petrpolis: Vozes, 2000.
ALTER, Robert. A arte da narrativa bblica. Traduo de Vera Pereira. So
Paulo: Cia. das Letras, 2007. 285 p.
______. KERMODE, Frank (Eds.). Guia literrio da Bblia. Traduo de Raul
Fiker. So Paulo: Editora Unesp. 1998. 725 p.
AUERBACH, Erich. Mimesis: A representao da realidade na literatura ocidental. 4. ed. Traduo de George Bernard Sperber, So Paulo: Editora Perspectiva, 1998. 507 p.
BBLIA Sagrada. 2. ed. Revista e atualizada no Brasil. Traduo de Joo Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bblica do Brasil, 1993.
CALVINO, Italo. Por que ler os clssicos. Traduo de Nilson Moulin. So
Paulo: Cia. das Letras, 2001. 279 p.
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NOTAS
[1] Palestra proferida em 10 de maio de 2008 no 14. Seminrio em
dilogo com o pensamento de Paul Tillich: Religio, Teologia, Literatura, cujo texto sofreu ligeiras alteraes.
[2] Mestre em Cincias da Religio com concentrao em Bblia pela
UMESP e doutor em Teoria e Histria Literria pela Unicamp. Professor
no Seminrio Presbiteriano do Sul, Campinas, SP e no Centro de PsGraduao Andrew Jumper, Instituto Presbiteriano Mackenzie, SP.
[3] Sobre as limitaes e a anlise dos estudos crticos e fundamentalistas em relao com a abordagem literria da Bblia, cf. meu artigo:
Estudos literrios aplicados Bblia: dificuldades e contribuies para
a construo de uma relao. Disponvel em: http://www.revistatheos.
com.br/Artigos%20Anteriores/Artigo_03_03.pdf
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