Ana C.: Tramas Da Consagração
Ana C.: Tramas Da Consagração
Ana C.: Tramas Da Consagração
Rio de Janeiro
2007
Rio de Janeiro
2007
CATALOGAO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
L583
Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta
dissertao desde que citada a fonte
__________________________
Assinatura
__________________
Data
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Prof. Dr. Italo Moriconi (Orientador)
Instituto de Letras da UERJ
_____________________________________________
Profa. Dra. Ana Cristina de Rezende Chiara
Instituto de Letras da UERJ
_____________________________________________
Prof. Dra. Clia de Moraes Rego Pedrosa
Universidade Federal Fluminense
Rio de Janeiro
2007
AGRADECIMENTOS
Vamos ento telefonar para Ana, antigo anjo, linda, azul. Mas no lugar da voz dela,
s vem algaravia de terceiros. Ou seus versos. Sua prosa. Nossa prosa, nosso pacto.
Italo Moriconi, Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta.
Escrevo para voc sim. Da cama do hospital. A lesma quando passa deixa um rastro
prateado. Leiam se foram capazes.
Ana Cristina Cesar.
RESUMO
LEONE, Luciana Maria di. Ana C.: as tramas da consagrao. 2007. 134 f. Dissertao
RESUMEN
El trabajo tiene por objetivo realizar un recorrido por las principales lneas de fuerza
discursivas que se articularon en el proceso de consagracin de la poeta Ana Cristina Cesar, y
que configuraron su imagen ms conocida en los medios culturales y el la academia. En la
Introduccin, se define el concepto de autor que opero en el desarrollo de la investigacin, y
la relacin que establece con la firma Ana C.. En el primer captulo, se analiza la colocacin
de Ana Cristina en el campo cultural y potico de la dcada del 70; su posicin doble de
convvio y diferenciacin respecto a los poetas de la llamada generacin marginal. Se
recorren las lecturas crticas que se realizaron sobre esa colocacin, analizando de qu forma
crtica y objeto de estudio se fueron conformando simultneamente. En el segundo captulo,
se definen las narrativas dominantes que se realizaron de los textos de Ana C. despus de su
muerte, contraponiendo la imagen oficial que se desprende de las ediciones pstumas, que
crea una imagen mtica de Ana C., a lecturas que fueron contradictorias. En el tercer captulo,
se recorre la fortuna crtica, generalmente ligada a la academia, y textos literarios que
tomaron la figura de Ana C. como problemtica o tema de escritura, intentando hacer una
apreciacin de los mismos, en relacin a un gesto de reafirmacin o movilizacin, que los
textos proponen, de la imagen consagrada.
Palabras clave: Consagracin. Autor. Campo cultural. Ana Cristina Cesar. Fortuna crtica.
ABREVIATURAS UTILIZADAS
ATP
A teus ps. So Paulo: tica / IMS, 1998.
ID
Inditos e dispersos. (Armando Freitas Filho org.) So Paulo: Brasiliense, 1985.
CT
Crtica e traduo. (Armando Freitas Filho org.). So Paulo: tica / IMS, 1999.
CI
Correspondncia incompleta. (Orgs. Armando Freitas Filho e Heloisa Buarque de Hollanda).
So Paulo: Aeroplano / IMS, 1999.
SUMRIO
Introduo
Aproximaes p. 11
Captulo I
No ter posio marcada. Ana C. no campo literrio da dcada de 70 p. 27
Captulo II
Leiam se foram capazes. As leituras oficiais e o arquivo indcil de Ana C. p. 53
Captulo III
Formas em formao. Leituras e escritas de Ana C. p. 81
Consideraes finais
Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. Recapitulao
e escritas possveis p. 119
Bibliografia p. 124
10
INTRODUO
Aproximaes a Ana C.
11
Uma ana, no muitas anas. Ana C. uma, embora heterognea, que contm tudo.
Ana C., esse objeto (sujeito) que tentamos estudar, um dispositivo, uma rede, um arquivo.
12
Como a maioria dos arquivos de escritores e artistas consagrados, o de Ana Cristina tambm
diversificado, sendo uma assinatura, um nome prprio, aquele trao que faz com que esses
documentos possam ser agrupados, classificados juntos (FOUCAULT, 2001). Nome de poeta.
Nome de autor.
No vamos percorrer em profundidade a discusso sobre a morte do autor e o seu
retorno. 1 No entanto, ser preciso dado que o ttulo do presente trabalho um nome
definir o modo em que entendemos a relao desse nome, Ana C., com seus textos e as lutas
discursivas em torno deles.
Sea lo que fuere que haya significado, la ampliamente pregonada muerte del autor
que hicieron famosa Foucault y Barthes no implic el fin de la legitimacin a travs de la cita
de nombres carismticos, diz Martin Jay em Citar los grandes nombres o prescindir de los
nombres? (2003, p. 314). Uma rpida olhada na maioria dos textos acadmicos que ainda se
escrevem nos faria concordar com a afirmao de Jay: sem dvida, no podemos prescindir
dos nomes na hora de alicerar os nossos raciocnios. Agora bem, se voltarmos para os textos
de Foucault e Barthes aos que Jay se refere O que um autor? (2001 [1969]) e A morte
do autor (2004 [1968]), respectivamente , veremos que, embora a interpretao mais
conhecida os coloque como bitos do autor, ambos os ensaios fazem questo de assinalar a
importncia e o funcionamento do nome de autor.
O ensaio de Michel Foucault, de fato, comea colocando a sua preocupao com o
aparente paradoxo que se desprende de seu livro As palavras e as coisas (1966): se o autor j
no uma instncia legitimadora, por que a proliferao de nomes e citaes? Foucault
responder dedicando todo o texto a descrever o funcionamento da funo-autor, dispositivo
que se cria no(s) discurso(s), que teria seu principal suporte no nome de autor, e que ocupa o
lugar deixado pelo autor o morto como instncia legitimadora anterior e exterior ao texto.
A funo-autor, portanto,
no se forma espontaneamente como a atribuio de um discurso a um
indivduo. o resultado de uma operao complexa que constri um certo ser de
razo que se chama autor (...) o que faz de um indivduo um autor apenas a projeo,
em termos mais ou menos psicologizantes, do tratamento que se d aos textos. (...)
Todas essas operaes variam de acordo com as pocas e os tipos de discurso
(FOUCAULT, 2001, p. 276).
Por sua parte, no comeo de A morte do autor (1966), Roland Barthes assinala que o
autor ainda funciona como parmetro explicativo dos textos: a cultura corrente est
1
Cf. Diana Klinger. Escritas de si, escritas do outro (2007), onde a autora faz um levantamento do percurso da
discusso.
13
tiranicamente centrada no autor, sua pessoa, sua histria, seus gostos (BARTHES, 2004, p.
58). No entanto, Barthes fala de uma nova tendncia por fora da cultura corrente que hoje
poderamos assimilar com o discurso miditico em que, a partir de Mallarm, os textos
seriam construdos numa concepo de escritura que implica a morte do autor como instncia
legitimadora, e onde qualquer tentativa do sujeito que produz o texto de se exprimir na
escritura no passaria de um auto-engano.
Diz Barthes: o escriptor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; no , de
forma alguma, dotado de um ser que excedesse ou precedesse a sua escritura. (BARTHES,
2004, p. 61). O nascimento do escriptor implica, como o nascimento da funo-autor, a morte
do Autor, concebido como prvio, pai do livro; assim, passa a ser o leitor o agente ativo da
significao, anulando as dicotomias escritura/ leitura, ativo/ passivo. Esta perspectiva, como
tentei demonstrar em Cuando las obras ya no son intocables (2007), foi muito cara a Ana
Cristina: em um mesmo movimento, escritora e leitora dos prprios textos e de textos de
outros autores que passam a formar parte do prprio corpo textual.
Mas a idia da construo do escriptor ou do autor na linguagem mostrou rapidamente
algumas limitaes. Com a apario de noes como a de prticas de si, articulada pelo
prprio Foucault, se fez necessrio perguntar: quem constri a funo-autor, quem o sujeito
nas prticas de si? Ou, como colocaria Judith Butler ao falar da abrangncia da idia de
gnero como performtico e construdo (BUTLER, 2005): se tudo construo, quem
constri?
Com essas preliminares que nos levam a no dar solues definitivas questo,
tentemos clarificar o que entendemos aqui por autor e por nome de autor, dado que a projeo
da funo no indivduo varia de acordo com pocas e os tipos de discurso, como j assinalara
Foucault. Parece impossvel separar a vida de Ana Cristina de seus textos, como se a vida
estivesse carregada da funo autor, dado que a prtica de si, a performance, no se daria
apenas nos escritos, mas numa forma de viver, nas escolhas do comportamento. Ento, podese ainda falar de uma pura textualidade? Pode-se falar de vida como alguma coisa por fora da
construo de si? Diz Psicografia (ID, p.79):
da palavra: no digo (no posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto
14
* * *
Figura 1
Para continuar ser necessrio voltar ao nome que nos interessa. Por que Ana C.,
ento? Por que a escolha desse nome/ pseudnimo como nome de autor? A no ser pela
edio pstuma da sua correspondncia, em que, na capa, o primeirssimo plano do rosto de
Ana Cristina vem acompanhado de um Ana C. smile-manuscrito, quase sussurrado pela
boca da intimista fotografia (BRIZUELA, 2007), Ana C. nunca foi seu nome autoral nos
textos publicados.
A primeira apario do significante Ana C. pode ser datada, com certa
confiabilidade, em outubro de 1979, em uma carta enviada da Inglaterra para Heloisa Buarque
de Hollanda, e ser a assinatura mais utilizada na correspondncia privada enviada desde
ento. Mas, a declarao de inteno na escolha do epteto chega num post scriptum de uma
outra carta, tambm para Heloisa, de 14 de fevereiro de 1980. Diz Ana: adotado de vez o
nome de Guerra (CI, p. 40). Sim, a expresso coloquial cresce, Guerra com maiscula.
Mas qual seria essa Guerra? Contra o qu? Ana C. parece ser o nome que nomeia a forma
sem norma, que contm tudo, necessrio para a defesa cotidiana. Defesa numa luta, talvez,
contra o estabelecimento de um nome prprio nico que correspondesse ao nome civil Ana
Cristina Cruz Cesar 2 , o qual enviaria sem mediaes para um eu puro, irrealizvel, para
Ana Cristina Cesar seria o nome prprio que, tal como analisa Pierre Bourdieu em Para una ciencia de las
obras, garantiza a los individuos designados, ms all de los cambios y de todas las fluctuaciones biolgicas y
sociales, la constancia nominal, la identidad (...) que requiere el orden social, seria o suporte do estado civil
(1997, p.78). Esse funcionamento bsico no contrrio aos postulados de Derrida ao analisar o nome prprio e
a assinatura, mas da conta da primeira funo do nome que em todo trabalho ou interveno intencional sobre ele
deformaes, heternimos, etc. estaria sendo referida e discutida.
15
uma autora que funcionaria como ncleo explicativo. Ana C. contm o eu mutvel, em
permanente deriva, que vai se delineando na potica e na escrita toda de Ana Cristina. Ana
C. contm todas as vozes.
No entanto, a escolha de Ana C. faz uma associao que provavelmente no
escapava poeta. A cifra joga com a semelhana sonora e grfica com Anna O.,
pseudnimo de Bertha Pappenheim utilizado por Freud nos seus escritos. Anna O.
considerada a primeira histrica diagnosticada do discurso psicanaltico. Mas seria importante
levantar um outro dado: seus sintomas mostraram alivio depois de falar livremente, fato no
que Joseph Breuer, seu mdico e colega de Freud, achou um mtodo de cura nesse discurso
catrtico, tratamento que seria a base de todo o mtodo psicanaltico. A mesma idia de fala
como cura, seria colocada e problematizada por Ana C. em seus textos de forma ostensiva,
fazendo a homofonia funcionar ainda mais significativamente: Preciso comear de novo o
caderno teraputico (...) Nele eu sou eu e voc voc mesmo. Todos ns. (ATP, p.83), ou
como diria em um depoimento: Falar, falar, falar, falar, falar... (...) Se no, a gente angustia
muito (CT, p.273).
conhecida, ser pblica e publicitada, por no ser um pseudnimo literrio em sentido estrito,
funciona como catalisadora dos diferentes autgrafos, as vrias assinaturas possveis que
formam o arquivo: desde o Tina com o que assinava os primeiros relatos ainda criana,
passando pelo clssico Ana Cristina Cesar da maioria dos poemas espalhados em cadernos,
ou Ana Cristina Cruz Cesar, Ana Cristina, ACCC, A.C.Cesar, ana cristina c na
capa de Luvas de pelica (1980), o mais declaradamente ficcional, Jlia, da carta de
Correspondncia Completa, o lmpido Ana, ou a pura dixis de um assinado eu.
Como explicara Derrida, em Assinatura acontecimento contexto (2001 [1972]), toda
assinatura implica a condio de iteratividade, de repetio, como o signo condensador da
condio de toda escrita; no entanto, tem suas particularidades. Diz Derrida:
Por definio, uma assinatura escrita implica a no-presena atual ou emprica do
signatrio. Mas, dir-se-ia, marca tambm e retm seu ter sido em um agora passado,
que permanecer um agora futuro, logo, um agora em geral, na forma transcendental
da permanncia (DERRIDA, 1991, p. 35).
Uma rubrica, por conservar uma singularidade de forma sempre evidente como
garantia de funcionamento , envia a um signatrio particular e no a um outro; original e,
portanto, susceptvel de ser falsificada. A rubrica visa ser, ento, a reproduo pura de um
acontecimento puro, de fato, impossvel.
Nesse sentido, numa das cartas para Ana Cndida Perez, Ana Cristina manda dois
autgrafos: um deles, uma rubrica cujo referente os leitores da edio desconhecemos; e o
outro, uma foto 3x4 da prpria Ana. Assim, um autgrafo pode ser tanto uma rubrica
quanto um retrato ambos, repetveis, constatam um momento irrepetvel: o
acontecimento, diria Derrida. Este recentssimo, deste ms. Os cabelos crescem (CI, p.
200).
Figura 2
17
Dois leitores equivocados para a proposta da Jlia que assina. Nesse mesmo sentido,
Peter Brguer, analisando um fragmento da autobiografia, Roland Barthes por Roland
Barthes (1975), diz que tanto autor quanto leitor caem numa armadilha na que se designa,
erroneamente, para o eu do texto um referente real. No fragmento extrado do texto de
Barthes, o eu conta uma experincia de infncia que o leitor rapidamente associa a infncia
do prprio Roland Barthes; no entanto, o trecho continua com a declarao explcita de ser
um eu inteiramente constitudo na linguagem, rejeitando a referncia biogrfica. E diz
Brguer:
El atractivo del fragmento consiste en que ninguna de las dos lecturas puede
considerarse acertada. Si el lector se decide por una de las variantes, lo hace sobre la
base de un saber previo (ya sea del concepto tradicional de sujeto, ya sea de la teora
negativa del mismo) (BRGUER, 2001, p. 300).
Como diz Heidegger em seu livro Nietzsche: Nunca vamos saber quem Nietzsche por um relato
historiogrfico da sua vida, nem pela exposio do contedo de seus escritos. Quem Nietzsche no queremos
nem devemos sab-lo enquanto nos refiramos apenas personalidade e figura histrica, ao objeto psicolgico e
s suas produes. (Martin Heidegger, Nietzsche - apud, Derrida, 1981 traduo minha para o portugus).
18
Ana C. nos permite referir essa tenso que perpassa toda a produo de Ana em
diferentes modulaes, pois estaria num entre a pessoa e o texto, pois Ana C. no seria
apenas o ndice que remete a uma biografia ou a uma psicologia individual, mas rede
conceitual, formada pelo acervo Moreira Salles, pelos textos assinados por Ana que no esto
ali, mas tambm por todo texto que a ela se referir, pelas fofocas e boatos que a tem no centro,
pelos retalhos de vivncias que se tecem nas memrias de quem viveu com ela, pelos retalhos
de interpretaes de seus leitores, e pelo punctum dessas representaes que estaria apontando
para a pessoa Ana Cristina Cesar, que morreu
19
Se perguntarmos onde est Ana C., a resposta seria a mesma. Nem nos documentos,
nem numa biografia exterior a eles. Ana C. est no umbral, no entre, nas aspas. Ana C.
o gesto, o que fica da vida real posta em jogo nos textos. Ana C. no pertence
integralmente nem a Ana Cristina Cesar, nem aos herdeiros, nem aos crticos, nem aos
leitores. Ningum a possui, forma sem norma; e, ao mesmo tempo, a nica forma de vida
possvel de ser lida.
Para Agamben, o autor seria esse gesto, insubstancial, atravs do qual uma pessoa
coloca a sua vida em jogo nos textos. O autor marca o ponto em que uma vida foi jogada na
obra. Jogada, no expressa; jogada, no realizada. Por isso, o autor nada pode fazer alm de
continuar, na obra, no realizado e no dito. (AGAMBEN, 2007, p.61). Seria uma forma de
insistir em que o autor no tem lugar prprio, mas acontece a um sujeito, e est nele como
um habitus ou modo de ser, assim como a imagem est no espelho (AGAMBEN, 2007, p.
52). Ana C., autora, est nas luvas de pelica que no so um lugar fixo, mas se
corresponderiam como a imagem sobre o espelho. As luvas tornam inseparveis a pele e o
texto, peli-ca, sendo algo que acontece na mo que escreve, e que apenas faz sentido se
enluvada. Essa imagem, precria, incompleta, enganadora, do autor a nica forma que ele
tem de aparecer. Antes de sair tiro as luvas, deixo aqui no espaldar desta cadeira (ATP,
p.149).
Ao dizer Ana C. significamos esse ponto, esse gesto que a obra atesta, ao mesmo
tempo lugar de origem e desapario. Ao dizer Ana C. dizemos o nome de uma autora em
tanto gesto; que coloca em jogo, na mesa dos textos, a vida. Ao dizer Ana C. nomeamos a
construo de uma subjetividade que no se basta na obra, nem nas leituras que se fizeram,
mas que tambm irredutvel pessoa que produz esses textos, nesse caso Ana Cristina Cruz
Cesar.
Assim, paradoxalmente, Ana C. o nome do arquivo que devemos transitar para
saber quem ou o que Ana C., quais jogadas a constituram. Mas so horas de tirar as
aspas, pois diferenciar com clareza o textual do extra-textual, atravs delas, parece j no ser
necessrio.
Ana C. e os cnones
20
No caso de Ana Cristina, os motivos para afirmar que ela uma poeta canonizada ou
consagrada so vrios. De um lado, dados objetivos e quantitativos que falam a respeito da
sua visibilidade no meio acadmico e na mdia cultural; de outro, um complexo de discursos
dominantes e emergentes, prprios da historiografia, da teoria literria ou da teoria cultural,
que ficaram em pauta na hora de ler a produo particular pela poca, pelas estratgias de
escrita, pela biografia individual e geracional de Ana Cristina, compondo a figura de Ana C.
em um processo que, enquanto aparecerem novos discursos em torno dela, no estar fechado.
Harold Bloom, no seu famoso livro O cnone ocidental (1994), define os textos
cannicos como aqueles obrigatrios em nossa cultura, obrigatoriedade dada por valores
como originalidade (p. 33), capacidade de gerar releituras (p. 37; p. 493), a fora esttica
como uma capacidade autnoma e auto-suficiente do texto. Porem, a definio me parece
ineficiente, no apenas para falar de qualquer tipo de arte que no seja ocidental, termo que
no livro parece se limitar a uma viso euro-centrista, mas para qualquer expresso da arte
contempornea que no resgate esses parmetros modernos. Resgate ainda mais significativo
se pensamos que o livro de Bloom de 1994, relativamente recente, ou seja, contextualizado
por um tipo de arte que muitas vezes se contrape de forma explcita a esses valores que ele
tenta reavaliar.
Muitos anos antes, na conferncia Da Leitura, de 1975, Roland Barthes j assinalava
que a derrocada dos valores humanistas ps fim a esses deveres de leitura universais
(BARTHES, 2004, p.34), dando lugar a deveres particulares, definidos por valores a serem
explicitados a cada vez, por quem faz as escolhas; cabe, agora, a afirmao de Bloom, para
quem o estabelecimento de um cnone ou a sua perpetuao um ato ideolgico em si
(BLOOM, 1994, p. 30).
Portanto, se j no existe um nico cnone, se todo cnone tem de ser adjetivado
(inclusive o ocidental de Bloom), deveramos perguntar a que cnone pertenceria Ana C..
Poderamos dizer, tentando responder, que a obra de Ana tem a particularidade de conseguir
pertencer a vrios cnones, isto , responde a parmetros de valor muito diferentes, como o
provam os diferentes mbitos de circulao e abrangncia das suas publicaes, o que
constitui um diferencial em relao aos textos da sua gerao.
Os textos de Ana apresentam um campo frtil tanto para pesquisas voltadas para os
estudos culturais, estudos de gnero, estudos mais sociolgicos do campo cultural ou sobre
vida literria, quanto para estudos interessados na complexidade esttica, sendo os poemas de
alta sofisticao construtiva. Mas a circulao no se restringe aos diferentes campos da
21
academia, pois os textos de Ana C., embora suportem sofisticadas leituras acadmicas,
tambm so acessveis ao grande pblico, como o demonstram as edies para pblico
adolescente ou a grande quantidade de edies dos seus livros de poemas em um mbito
scio-cultural onde o consumo de literatura em geral e ainda mais de poesia tem
circulao e venda restritas a um pequeno nmero de interessados.
Essa capacidade de participao mltipla, que no deixa de ser surpreendente para um
escritor to contemporneo quanto Ana Cristina, uma capacidade retrospectiva. Ela se faz
possvel de forma mais abrangente depois das edies organizadas por Armando Freitas Filho
e da visibilidade dada pelo suicdio, mas j se podia distinguir no comeo da dcada de 80
com a edio e reedio de A teus ps, e a profissionalizao da atividade.
Passemos aos dados objetivos. 4 Ana Cristina Cesar nasceu no Rio de Janeiro,
Copacabana, no dia 22 de junho de 1952, e morreu em 29 de outubro de 1983. Em vida, Ana
Cristina editou apenas alguns poucos livros de poesia, artigos avulsos em publicaes
peridicas e Literatura no documento (1980) um estudo sobre documentrios brasileiros
que tem por objeto a figura de escritores consagrados resultado do mestrado na rea de
Comunicao que ela realizara na UFRJ, sob orientao de Heloisa Buarque de Hollanda, em
1978.
Os livros de poemas, se assim podem ser nomeados sem cair em reducionismos,
foram: Cenas de abril (1979), Correspondncia Completa (1979) aquela nica carta, de
menos de dez pginas, de Jlia para um indefinido My dear , Luvas de pelica (1981),
editado primeiro na Inglaterra, que ela prpria define como poesia/prosa, e A teus ps (1982),
ltimo livro onde rene os trs anteriores, agregando uma nova srie de poemas, resultando
um volume de cerca de cem pginas.
No entanto, as publicaes pstumas, em sua maioria organizadas por Armando
Freitas Filho, acrescentaram muitos textos e papis sua bibliografia. Tentemos ser
minuciosos: um livro de Inditos e dispersos (1985), com poesias e pequenas prosas, e o
significativo agregado de fotografias de Ana e desenhos feitos por ela; outro, Escritos da
Inglaterra (1988), com ensaios sobre traduo e a dissertao do mestrado em traduo que
Ana realizou na Inglaterra, sobre o conto Bliss de Katherine Mansfield; Escritos no Rio
(1992) com alguns dos seus artigos na imprensa e ensaios avulsos; a reedio destes dois
Cf. em Bibliografia os dados completos de todas as publicaes aqui mencionadas. Cf. tambm o livro de
Maria Lucia de Barros Camargo (2003), um levantamento da fortuna crtica mais significativa feita at o ano
1990, sob o ttulo Repercusso imediata, pp.23-25.
22
coleo que inclua figuras miditicas do Rio de Janeiro como Chico Buarque de Hollanda,
Zeca Pagodinho, Vinicius de Moraes, ou escritores consagrados como Ferreira Gullar ou
Rubem Fonseca, e essa companhia fala de certa forma de uma fama comparvel incipiente.
A sua fortuna crtica se desenvolveu em inmeros artigos e ensaios dos mais
importantes crticos do Brasil e outros pases, e mais de vinte dissertaes e teses de
doutorado nmero que cresce, inclusive com esta dissertao. So cinco os livros publicados
que se dedicam a ela na ntegra: Flora Sssekind (1995), Maria Lucia de Barros Camargo
(2003), Ana Claudia Viegas (1998), Regina Helena Souza da Cunha Lima (1993), Annita
Costa Malufe (2006); quase todos eles produtos de pesquisas que comearam nos ltimos
anos da dcada de oitenta.
Seus poemas e a sua figura inspiraram msicas, peas de teatro, um audiovisual Ana C
(1986) de Claudia Maradei e um belo curta metragem, Poesia uma ou duas linhas e por
trs uma imensa paisagem, dirigido por Joo Moreira Salles em 1990. Ana tambm foi
personagem e musa de muitos poemas, alguns contos, uma novela, um romance e,
presumivelmente, alguns outros que no chegaram s nossas mos.
Finalmente, alguns de seus documentos formaram parte de uma exposio no Museu de
Arte Moderna de So Paulo, junto com outros de Paulo Leminski e Cacaso, tambm poetas
falecidos da gerao 70.
Todos esses dados, no entanto, no explicam o fato de Ana C. ter chegado a ser uma
poeta cannica, embora confirmem essa condio, ao mesmo tempo que a alimentam e a
modificam, escrevendo e reescrevendo a sua figura. Como dizamos, existe um processo,
historizvel, dos passos que a levaram consagrao. Porm, esse processo no se da numa
linha reta, nem tem um nico agente envolvido. Da que o meu percurso tenha decidido
24
abandonar uma evoluo cronolgica, que seria espervel sob a idia de processo de
consagrao, e tenha escolhido percorrer tramas em lugar de processos lineares.
Tal como fora assinalado no comeo, dado que esta leitura no pretende abarcar a
totalidade dos textos que tiveram um papel no processo de consagrao de Ana C., mas
apenas indicar as linhas de fora mais significativas, dou-me a liberdade de misturar as
diferentes textualidades, tentando respeitar as suas especificidades genricas poesia,
correspondncia, textos de homenagem, textos crticos, etc. mas sem fazer desse respeito
uma camisa de fora. Vontade de percorrer os materiais como se fossem um s texto: fotos,
cartas, poemas, artigos.
Os captulos da dissertao correspondem a algumas dessas linhas, que, embora
mantenham uma certa ordenao cronolgica, certamente se superpem, principalmente
porque tentamos abordar escrituras e leituras como um contnuo.
No primeiro captulo, tentarei definir o patamar inicial do processo de consagrao de
Ana C.: a sua colocao no campo intelectual e artstico dos anos 70 e 80. Para isso, ser
necessrio determinar os parmetros e valores que definiam o campo na poca e o papel da
crtica literria e cultural que configurava o objeto medida que o analisava,
simultaneamente. Para compreender a posio dada a Ana, ser preciso visitar textos escritos
e aparecidos em sua vida que, mormente, colocam na sua figura caractersticas diferenciais
em comparao com outros poetas. No entanto, no apenas nos interessam essas leituras
crticas do campo contemporneas ou posteriores a ele, mas tambm textos da prpria Ana.
Ela construiu a sua prpria visibilidade no campo, sua figura pblica, de forma particular,
principalmente nos primeiros escritos para imprensa, aparecidos em um contexto de poca de
luta estudantil e procura de novos rumos para um movimento de poesia marginal, que, nos
ltimos anos da dcada de 70, mostrava sinais de cristalizao e, portanto, esgotamento.
No segundo captulo, analisarei a(s) figura(s) de Ana C. que se desprendem dos
diferentes trabalhos realizados com o arquivo, prestando principal ateno s edies
posteriores a sua morte que se fizeram da obra. Em primeiro lugar, uma imagem oficial e
familiar que continua o mito da menina prodgio, surgido na infncia, e que a prpria Ana,
em um movimento duplo, recusara e utilizara. Deste modo, veremos principalmente atravs
do trabalho com as fotografias que os mesmos documentos que aliceram as leituras
tranqilizadoras e mitolgicas permitem o surgimento de leituras contrrias. O mito, tal como
analisara Barthes, mostra o seu potencial ambivalente, abrindo problematizao aquilo que
estaria instaurando. O prprio tratamento que Ana C. dava aos arquivos, alm das modulaes
s que submeteu a prpria figura nos permitiram ver o potencial de leituras abertas, frente a
25
leituras que tratam a imagem e os documentos de Ana C. como uma relquia intocvel e
inatingvel.
O ltimo captulo se destina a outra srie de leituras e escrituras de Ana C.: a fortuna
crtica e a fortuna literria. Como dissemos, os estudos crticos sobre a poesia de Ana
proliferaram desde a sua morte e foram crescendo em nmero. O fato que em tal quantidade
podemos ver diferentes posies. Simplificando, poderamos dizer que, de um lado, textos
com leituras atentas e originais, mas tambm outros textos que repetiram as mesmas
estratgias crticas e no colocaram em questo atravs de desafios ou perguntas nem o
objeto de estudo nem a prpria linguagem, reproduzindo uma imagem mtica que alimentava
sem censuras a figura canonizada, sem incomodar as expectativas do leitor. Colocaes
similares, levando em conta as especificidades das linguagens, poderiam se ver nos textos
literrios, seja narrativa ou poesia, que tem a Ana C. por tema, personagem ou musa: alguns
deles reproduzem a viso nostlgica, outros tentam fazer balanos da sua influncia,
enquanto outros, ousadamente, desfiguram a figura at, na sua total apario, faz-la
desaparecer. Profanar ou no: essa a questo a percorrer no conjunto de textos que fazem
parte do ltimo e interminvel captulo do processo de consagrao de Ana C..
26
CAPTULO I
27
Nesse sentido, tentaremos reconstruir o ponto de vista que Ana Cristina podia ter do
prprio contexto, ponto de vista este que configurou as suas escolhas estticas e ideolgicas,
em grande parte definidoras da primeira imagem pblica que ela, como poeta e intelectual,
assumiu. Repensar a tomada de posio artstica de Ana Cristina e repensar a configurao do
campo cultural dos 70 so condies necessrias para compreender o processo de
consagrao e a figura Ana C. construda nesse processo. Compreender no sentido colocado
por Bourdieu, ou seja, sem explicaes centralizadas na individualidade.
* * *
O campo cultural como todo campo no esttico, mas um sistema de relaes que
incluye a artistas, editores, marchantes, crticos, pblico, que determina las condiciones
especficas de produccin y circulacin de sus productos (GARCA CANCLINI, 1990,
p.18), relaes que podem ser definidas como lutas pela apropriao do capital simblico
herdado ou produzido pelo prprio campo. Entre os anos 75 e 83, durante os quais Ana
desenvolve a sua vida profissional, publicando poemas, artigos, tradues e dando aulas, o
campo cultural brasileiro experimentou um intenso e particular processo de procura de
posies diante de um contexto poltico que mudava da dura ditadura do AI-5 para uma
gradual abertura. No entanto, as relaes entre os participantes estavam sendo reconfiguradas
no apenas em relao a esse contexto poltico, mas tambm por uma srie de recolocaes
28
internas do grupo de jovens poetas cuja forma de expresso se opunha ao regime ditatorial
militar, principalmente, sob a perspectiva comportamental. A poesia marginal, que ainda
no tinha sido capturada pelo sistema artstico hegemnico, nem avaliada pela academia de
forma sistemtica, nem ingressado no mercado editorial, achou-se, na metade da dcada, nas
portas da institucionalizao e da absoro das prticas pelo mercado, passando a ser
hegemnicas. Como diz Chacal: com a abertura, a indstria cultural comeou a absorver a
nossa linguagem (Nuvem Cigana, 2007, p.136); ao mesmo tempo que, conforme Chacal,
Heloisa Buarque de Hollanda dava o aval acadmico outro plo da institucionalizao
(Idem, p.117).
Percorrendo a historiografia literria das ltimas dcadas, sabemos que a gerao de
poetas que comeara a produzir nos primeiros anos da dcada de 70 tem sido abundantemente
estudada sob diferentes nomes: gerao mimegrafo, gerao marginal, gerao 70, etc. So
paradigmticos dois estudos feitos de forma contempornea ao desenvolvimento da produo:
os belssimos livros de Heloisa Buarque de Hollanda, Impresses de Viagem (1978), e Carlos
Alberto Messeder Pereira, Retrato de poca (1979). A eles somam-se os muitos artigos de
Cacaso, de Silviano Santiago, de Luiz Costa Lima, entre outros, em revistas e jornais. Essa
profuso de textos, a maioria deles feitos numa mistura de calor da hora e intento de
caracterizao mais rigorosa por pessoas que de uma forma ou outra eram partcipes dessa
produo e tinham um alto grau de envolvimento como colegas ou professores dos poetas ,
configurou a forma de olhar criticamente a produo daqueles anos.
O primeiro artigo que aparece publicado em um meio reconhecido foi Os professores contra a parede
(Opinio em 12 de dezembro de 1975): um balano, seguido de entrevistas, dos debates sobre a pertinncia e a
forma do ensino de teoria, principalmente o estruturalismo, nas universidades brasileiras.
30
surpresa em um panorama cultural que se tinha por calmo e homogeneizado percorreu toda
a dcada.
Entre outros, formaram parte do surto os paradigmticos livros Me segura que eu vou
dar um troo (1971), de Wally Salomo; Preo da passagem (1972), de Chacal; Grupo
escolar (1973), de Cacaso. Eram livros que em geral participavam de maleveis colees
(PEREIRA, 1981, p.283), 7 ou eram editados por coletivos de autores, como entre os mais
importantes do Rio de Janeiro Frenesi, de 1973, formado por livros de Chico Alvim,
Cacaso, Roberto Schwarz, Joo Carlos Pdua; logo depois, o coletivo multimdia Nuvem
Cigana, com Chacal, Charles, Guilherme Mandaro, entre outros; a coleo Vida de artista,
a partir de 1974; ou Folha do rosto da mesma poca. Alm dos livros artesanais, o surto
potico teve lugar na mdia que viu florescer antologias em revistas, suplementos ou sees
dedicados a poesia , em leituras e intervenes pblicas, como as artimanhas da Nuvem
Cigana. Como explicara Carlos Alberto Messeder Pereira, o surto estava no ar e se tornava
visvel na sucesso de artigos que, por esta poca, foram publicados em jornais como
Movimento, Opinio, GAM, Jornal do Brasil, e em revistas como Malasartes, Anima, Jos,
Escrita, Veja, Isto e at mesmo Fatos e fotos (PEREIRA, 1981, p.15).
Tal profuso nos permite observar que, alm do surto na poesia, existia uma profuso na
crtica embora ainda no de cunho acadmico que Cacaso e Heloisa Buarque de Hollanda
assinalaram de forma muito precoce. Ambos professores universitrios no caso de Cacaso,
poeta ele mesmo , compartilhavam a vida cotidiana com os novos poetas, muitos deles seus
prprios alunos, e participavam dos empreendimentos.
Um pouco de histria: em outubro de 1973 realizou-se na PUC do Rio de Janeiro um
encontro chamado Expoesia I, que foi resenhado por Heloisa Buarque de Hollanda e
Cacaso, alguns meses depois, para a revista Argumento. Segundo eles, o evento pretendia ser
uma mostra de toda a produo potica dos ltimos tempos no Brasil: levantar o que existe
hoje (BRITO; HOLLANDA, 1997, p.55). 8 A exposio contava, entre os pilotis e o primeiro
andar do edifcio da Gvea, com conferncias, debates, mesas redondas e a exibio de
poemas-cartazes, poemas-evento, poemas mimeografados, poemas, poetas... de diferentes
linhagens: o concretismo, a gerao 45, a poesia prxis, poesia processo, etc. e uma boa parte
desse surto de poesia atual, que aparecera com o comeo da dcada.
A coleo Vida de Artista, por exemplo, era determinada simplesmente por um carimbo com essa legenda que
Cacaso colocava nos livros: No havia, assim, um limite nem do nmero de publicaes, nem de tempo de
durao da coleo (PEREIRA, 1981, p.283).
8
Publicado pela primeira vez na revista Argumento, n3, Rio de Janeiro, janeiro 1974.
31
Nosso interesse se volta mais para o artigo como acontecimento do que para o que ele
descreve, pois ali Heloisa e Cacaso assumem uma atitude sintomtica e outra seminal. Por um
lado, o artigo uma dentre as vrias tentativas, feitas no calor da hora, de encontrar
caractersticas comuns e bsicas para essa novssima poesia que conseguissem fazer desse
surto uma gerao ou, no mnimo, uma nova tendncia, como se a crtica estivesse, embora
negando-o de forma explcita, procurando um programa comum; mas, por outro lado, os
autores assumem um olhar distanciado ao chamar a ateno sobre um outro surto de que eles
mesmos estariam sendo parte:
Est acontecendo um surto de poesia hoje no Brasil? Tal indagao tem
ocupado ultimamente, e com tal insistncia, a reflexo de jornalistas, professores,
intelectuais, etc., que talvez j possamos at falar da existncia de um novo surto, o
surto da indagao. Tudo isso no momento muito sintomtico. (BRITO,
HOLLANDA, 1997, p.59).
O inconfundvel tom Cacaso assinala a existncia de tal poesia, mas sabe do sintomtico
e da impossibilidade de fazer balanos e, por isso mesmo, no arrisca uma interpretao sobre
esse surto da indagao. A simultaneidade dos processos, o de revitalizao da poesia e o de
reflexo sobre essa produo, revela que a instncia crtica de legitimao, por acontecer no
mesmo momento, contribuiu de forma essencial formao do objeto. Isto , a emergncia de
uma produo potica de forma, inicialmente, no sistemtica nem programtica o surto
recebia, porm, desde a primeira hora nomes aglutinadores, como ser do mimegrafo ou,
pouco tempo depois, o discutido marginal.
A legitimao simultnea pretendia dar uma resposta idia, surgida tambm nos
primeiros anos da dcada de 70, de que o Brasil estaria passando por um vazio cultural. A
idia de vazio cultural termo cunhado por Zuenir Ventura no ttulo de um conhecido artigo
seu publicado na revista Viso, em julho de 1971 9 tentava descrever certa crise da cultura
brasileira daqueles ltimos anos, caracterizada no tanto pela ausncia de produes mas pela
quantidade suplantando a qualidade, o desaparecimento da temtica polmica e a
controvrsia (...) a hegemonia de uma cultura de massa buscando apenas o consumo fcil
(VENTURA, 2000, p. 41), entre outros fatores.
Ento, voltando para Cacaso e Heloisa Buarque, poderamos ver que esse surto da
indagao sobre a revitalizao da poesia, que eles insistem em colocar de certa forma
avaliando a escolha do objeto , forma parte da procura de legitimao e de difuso de um
movimento que parecia poder se contrapor teoria de uma perspectiva sombria (Idem.)
decorrente da idia de vazio.
9
32
No deixam a gente cortar a carne com faca mas do gilete pra se fazer a barba, diz um poema de Torquato
Neto publicado em 26 poetas hoje, trazendo a sensibilidade da poca, p. 68.
33
Ana Cristina, que participava dos encontros, tambm descreve em depoimento para
Retrato de poca: as pessoas ficavam l fazendo seus livrinhos e ficavam discutindo (...) e
tinha assim toda uma roda de meninas em volta (apud PEREIRA, 1981, p. 285). O relato
com certa distncia irnica deixa claro, nesse mesmo tom, que o convvio deu frutos
materiais: seus livrinhos, colees, textos em parceria, antologias, etc. Fazendo com que esses
11
Diz Charles sobre a fazenda: Era um man, um pequeno Shangri-l. Pequeno no, imenso. Na verdade era do
av dele, um milionrio rei do cimento. E era uma figura curiosssima, que adorava animais. Ento ele
transformou a fazenda num tipo de zoolgico (Nuvem Cigana, 2007, p.41).
34
Os poemas do convvio achariam uma visibilidade maior no ano 1976. Pois, se existe
um texto que possa ser considerado o que define a gerao, sem dvida, a antologia 26
poetas hoje, compilao solicitada pela editora Labor Heloisa Buarque de Hollanda,
publicada naquele ano.
26 poetas hoje foi o acontecimento para a poesia dos 70. A publicao teve grande
importncia tanto naquele 1976, quanto para uma analise retrospectiva. A antologia
representava, ao mesmo tempo, a consagrao e o fracasso da estratgia marginal. O surto se
detinha para passar a ser avaliado por linguagens institucionalizadas, embora elas mesmas
estivessem tentando reformar-se.
De fato, depois da apario da antologia, rapidamente se levantaram intensos debates,
principalmente em revistas de cultura, em torno da plausibilidade de definir o grupo de poetas
que ali aparecia como uma gerao, ou no; e a discusso sobre a existncia ou no de
novidade na linguagem por eles colocada. A imprensa cultural fez-se eco com diferentes
posturas do aparecimento momentoso como o descrevera, no sem sarcasmo, Jorge
Wanderley na apresentao do debate aparecido no segundo nmero da revista Jos, do qual
participaram Heloisa Buarque, Geraldo Carneiro, Eudoro Augusto, Ana Cristina e os editores
da revista, o prprio Walderley, Luiz Costa Lima e Sebastio Uchoa Leite, representantes das
antpodas da poesia marginal em termos estticos. A publicao, que tem sido objeto de
resenhas favorveis, resenhas neutras e resenhas desfavorveis, assunto para muito debate e
muita discusso, pelo que o ter anda cheio de argumentos e poetas e leitores se atropelam
com as slabas dos versos desta talvez nova poesia Brasileira (Jos, 1976, p.3).
Apesar dos debates e discusses acirradas, certamente com 26 poetas hoje e,
principalmente, com a introduo da organizadora Heloisa Buarque se do por estabelecidas
as caractersticas bsicas dessa potica que funcionariam como ponto de partida para os
estudos posteriores. Conforme o prlogo, a poesia que ali aparecia estava marcada pela
desierarquizao do espao nobre da poesia, a subverso dos padres literrios
dominantes, as referncias ao momento poltico, a linguagem coloquial, e a tentativa de
unificar poesia e vida (HOLLANDA, 2001, p.10).
Em um olhar retrospectivo, a antologia parece funcionar como uma primeira verso da
historiografia literria. E Heloisa Buarque de Hollanda, pelo seu contato editorial e
35
acadmico, mas tambm por sua relao pessoal com muitos daqueles poetas com Ana
Cristina essa relao teria nuances particulares, como se l nas cartas que Ana lhe enviara
foi quem definiu os parmetros de leitura da poesia do grupo. Assim, paradoxalmente, 26
poetas hoje deu visibilidade e lanou as bases da construo da gerao, mas tambm foi
sintomtica de um estgio de institucionalizao daquilo que tinha na no institucionalizao
sua caracterstica mais preciosa. Trata-se de uma apario possvel dada a mudana do
contexto histrico: a gradual abertura poltica e a absoro, pelo mercado e pela academia,
dos comportamentos desbundados, combinadas com um esgotamento interno do projeto
marginal cujos integrantes, no final da dcada de 70, comeam a se dispersar,
principalmente o ncleo mais ativo da Nuvem Cigana, assim como os coletivos de edio. Ou
seja, a proposta da antologia chega para tornar visvel uma ciso incipiente, e uma
necessidade de recolocao, como explica Charles: Ficou aquela conversa, se participvamos
ou no, porque era uma coletnea oficial, com editora comercial e tudo. No fim, todo mundo
topou, menos o Ronaldo Santos (Nuvem Cigana, 2007, p.101). Em 1976, os poetas
marginais da primeira hora, os que tinham comeado a produzir no final da dcada anterior
insistimos em que Ana Cristina comea a produzir poucos, mas significativos, anos depois
achavam-se em um impasse. Necessidades pessoais e familiares casamentos, filhos eram
sinais muito claros do esgotamento de um modo de comportamento e de produo que j no
funcionava como oposio ao status quo. 12 Para continuar escrevendo era preciso re-signar,
mudar os signos da colocao no campo. O campo tinha mudado, j no havia viagens a
fazenda e os poetas tomariam naquele momento diferentes caminhos.
No sou personagem do seu livro e nem que voc queira no me recorta no horizonte
terico da dcada passada. Os militantes sensuais passam a bola: depresso legtima ou
charme diante das mulheres inquietas que s elas? Manifesto: segura a bola; eu de conviva
no digo nada e indiscretssima descalo as luvas (no mximo), direita de quem entra.
Ana Cristina Cesar, Inverno Europeu fragmento.
Diz Charles, se referindo aos anos da virada da dcada: Quando a gente caiu em si, j estvamos em outra
realidade, trabalhando em empregos convencionais (Nuvem Cigana, 2007, p.139)
36
Ou seja, os poemas apresentados em Retrato de poca no podem ser lidos apenas desde
a especificidade da linguagem potica, porque perderiam sua principal fonte de interesse, mas
37
tampouco podem ser lidos apenas como informantes do antroplogo. Deve-se levar em
conta tanto a especificidade potica quanto o valor comunicativo, para coloc-los em relao
circulao que esse discurso ter. No a linguagem potica o que conta, mas os modos de
circulao do bem simblico no campo, e as mediaes entre os produtores e o horizonte de
pblico.
No entanto, a resenha de Ana, Contatos imediatos do terceiro grau (1981), faz questo
de chamar a ateno para um problema especfico do olhar antropolgico, quanto forma de
ver o Outro, quanto a como esse Outro deve ser estudado. Como resenhadora, ela encena a
recuperao de um certo olhar distanciado, mas s para comprovar e explicar que esse modo
de olhar impossvel:
Por que ser que a antropologia urbana ainda me d um
desconforto esquisito? Ser apenas porque o antroplogo no
vai para selva, e sem sair da sua cidade continua a olhar em
volta procura do Outro irredutvel? (Idem, p.5).
Carlos Alberto faz parte da tribo e, para analis-la, diz Ana, ele tem que inventar
metodologicamente uma inocncia primordial (Idem, p.5), um Outro diferente, a ser
descoberto. Mas o Outro no se esconde, nem terminantemente diferente. O antroplogo
no vai selva, e sim ao sof da casa de um poeta amigo. Da que uma inocncia primria s
seja possvel se inventada.
Mas, ainda falta um dado. Na resenha, Ana no revela nem faz meno da sua
participao no livro. Se a resenha participa do interesse em estudar o seu prprio universo,
que tinha essa gerao auto-referenciada, como diz Heloisa Buarque numa outra resenha do
livro aparecida no Jornal do Brasil em agosto de 1981 (apud. SANTIAGO, 2004, p. 138), que
significado traz o ocultamento do prprio nome no texto de Ana? Talvez, seja mais uma
marca da tenso no resolvida entre ser ou no ser parte do grupo, entre o aparecer ou no.
Tenso que se encena no olhar crtico em relao a seus colegas e amigos, mas que, pelo
prprio fato de eles serem colegas e amigos, se faz sempre tingido de autocrtica, pela
incluso embora diferenciada no grupo. A estratgia potica para conseguir esse duplo
signo ser fazer da prpria uma escritura quase coletiva, em vozes, como diz Flora Sssekind.
No exemplar de Retrato de poca que pertencia a Ana e que se encontra, rabiscado, no
acervo do IMS pode-se ler uma outra modulao da postura da resenhadora em relao
pesquisa de Carlos Alberto. O volume abre com uma nota manuscrita na folha de rosto, que
reenvia tambm como marca geracional ao antropo-pop de Rita Lee: Baila, baila comigo,
como se baila na tribo. No contexto da ascenso dos estudos culturais, Ana no se deixa
38
levar por nenhum tipo de exotismo. Como poderia, se esse Outro so seus amigos, e ela
mesma? A frase rabiscada, pelo contrrio, revela certa ironia frente ao fato de apagar a relao
tribal dos poetas, da qual o prprio antroplogo se exclui sai da dana, na que estava , para
tingir a pesquisa de objetividade, isto , institucionaliz-la. Para estudar parecia preciso parar
de danar, tirar um retrato, e pedir algumas identidades para tomar as impresses da viagem.
sua opinio, significava colocar-se na postura de poeta (Idem, p.222). No entanto, pelo que
se pode desprender de alguns documentos e dos seus artigos, o motivo que subjaz parece ter
mais a ver com uma oscilao de Ana entre alcanar a figura pblica e o seu recolhimento,
entre fazer parte do grupo ou se apresentar como uma individualidade. Uma tenso ou
oscilao que, em parte tambm uma marca de poca, percorre toda a sua produo, como
veremos.
Apesar dessa negativa de participar oficialmente de um grupo Ana tinha contato
informal, mas bastante sistemtico, com todos os autores, sendo, alis, tal convvio com os
novos poetas e a vivncia desse surto potico, o meio onde ela comea a publicar: Como a
prpria autora salienta, animada por toda a movimentao em torno da poesia que ela tomou
a iniciativa de publicar seus trabalhos (Idem, p.222).
Lo que pienso y lo que imagino, no lo pens ni lo imagin solo. Escribo en una pequea casa fra de
una aldea de pescadores, un perro acaba de ladrar en la noche. Mi habitacin est cerca de la cocina donde
Andr Masson se mueve felizmente y canta.
Georges Bataille, em La conjuracin sagrada.
40
Florencia Garramuo, entre outros crticos, chama a ateno para a necessidade de uma
reavaliao no negao da colocao excepcional de Ana Cristina, analisando um
pequeno poema, A Lei do grupo (apud. SSSEKIND, 1995, p. 17):
Diz Garramuo:
Aunque es posible leer ese texto como una declaracin de la diferencia de Ana
C. con respecto a una poesa marginal con una economa del verso menos elavorada,
el texto es, como toda la escritura de Ana C., engaoso. Por un lado, claro, est su
diferencia frente a aquello que todos sus amigos estn haciendo. Pero esa distancia, en
todo caso si es que es tal, es relativa: quienes estn haciendo poemas minuto son,
precisamente, todos os meus amigos (...) lo cierto es que este mismo poema es un
poema-minuto o poema-bobagem (GARRAMUO, 2003, p.66).
mnimos exemplos. E ainda mais, ela se apropria da poesia dos seus contemporneos, assim
como da prpria, nas profusas releituras e reescrituras, tal como mostra Flora Sssekind
(1995, pp.37-40).
Voltando A Lei do grupo. Ela toma e revitaliza a frmula do poema-piada, por sua
vez uma apropriao da tradio oswaldiana. De qualquer forma, a construo em-vozes, com
as vozes dos contemporneos muitas delas tambm figurando no ndice... ser mais
evidente no trabalho com algumas frases ou a reescritura via discusso de outros poemas,
como acontece com Viglia II, desentranhado de Viglia do poeta, e namorado de Ana,
Luis Olavo Fontes. 13
Ana pertencia, porm, distanciava-se. E o poema Lei do grupo traz a mesma carga de
carinhosa ironia que lamos nos depoimentos sobre as idas fazenda. Mas essa posio dupla,
de pertencer e se distanciar, tambm ser revisitada por seu amigo e colega de faculdade, Italo
Moriconi, que, no seu livro Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta (1996), faz a
recolocao: Vamos ressitu-la como parte de uma gerao. Gerao intelectual, no apenas
potica. Pois Ana manteve sempre uma relao reflexiva com sua prpria poesia
(MORICONI, 1996, p.13). Mas tambm manteve relao reflexiva com a poesia alheia como
se fosse prpria ou para, atravs da reflexo dialtica, dela se apropriar.
Parecem ser dois os programas do livro de Moriconi em relao figura da amiga. Por
um lado, reconduzir a figura de Ana a uma leitura das relaes e da vida literria, fazendo
com que as suas opes comportamentais se encontrem dentro das opes da gerao, no que
seria uma biografia geracional. Por outro lado, tambm fazer uma biografia estimulante do
mito, que separa Ana C. de seus contemporneos marginais em matria esttica. Coloca, dessa
forma, certa distncia de Ana Cristina a partir de um ponto tambm assinalado por Carlos
Alberto Messeder Pereira, a presena de uma slida e permanente educao literria [que]
introduz elemento diferencial entre a linguagem de Ana e a dico mais espontanesta
marginal, no entanto, continua o autor sua identidade com a gerao 70 completa no
sentido daquilo que essa gerao, ao emergir, trouxe de prprio para o debate de idias
(Idem, p.13).
No entanto, com algum grau de diferena, no apenas Ana Cristina tinha uma slida
formao literria; de fato, a maioria desses poetas freqentava a universidade e pertencia a
13
O procedimento abrange toda a produo de Ana, tal como se v no intenso livro de Flora Sssekind (1995),
aqui levantamos apenas os exemplos mais claros. Em Rasurando paisagens ou sobre as formas de olhar em
algumas poesias dos setenta. (Indito), fiz uma anlise do trabalho de Ana C. sobre a poesia de Luis Olavo
Fontes.
42
famlias de uma classe mdia carioca intelectualizada, como esclarece Messeder Pereira ao
levantar dados biogrficos. Essa formao ia ser contestada com a procura de uma
despretenso literria, inclusive, do anti-literrio, anti-intelectual, anti-esttico em um sentido
clssico. Contudo, Ana Cristina tambm nesse sentido teria uma postura ambivalente: Se a
vontade do literrio era efetivamente muito forte em Ana Cristina, o fato que se defrontava
com a necessidade histrica do anti-literrio (MORICONI, 1996, p.8).
A diferena que ela mantm a respeito dos outros poetas no apenas no trabalho com o
poema. No entanto, o trabalho com o poema indica uma distncia na perspectiva crtica e no
posicionamento conscientemente procurado dentro do campo, pois, como explica Bourdieu,
as relaes entre os integrantes do campo esto determinadas pelo habitus, un producto de
los
condicionamientos,
que
tiende
reproducir
la
lgica
objetiva
de
dichos
Trazemos, ento, uma rede com alguns documentos no cannicos do arquivo de Ana,
que nos permitir ver a posio, sem ter posio marcada, que ela construa e queria para si,
nesse meio. Perguntemos, tambm, pela posio ideolgica e poltica de Ana Cristina na
poca, e sob que formas ela vai continu-la, mas tentando traar os contatos e as diferenas
dessa colocao com as diferentes posies dos integrantes do grupo.
43
Em julho de 1976, teve lugar o lanamento da antologia 26 poetas hoje, no Parque Lage,
uma festa com microfone e palco, comenta Ana Cristina em uma carta a sua amiga Ana
Cndida Perez:
At subi no palco e li um trechinho de um ensaio do Mrio que comea assim:
Ns modernistas de 22 no devemos servir de exemplo a ningum. Me
impressionou muito esse ensaio em que ele faz uma autoconfisso (que bobagem
autoconfisso no redundncia?) [...] O Mrio acaba por dizer que os modernistas
pecaram por omisso poltica, que toda a obra dele de um individualismo atroz (CI,
p. 259).
Vamos nos deter nesta carta. Qual o significado da leitura de Ana? Da eleio desse
texto de Mrio para ser lido no prprio lanamento da antologia que os entroniza como nova
gerao de poetas?
primeira vista, poderamos dizer que a poesia marginal tem vrios pontos de contato
com a tradio do modernismo de 22: a utilizao de temas do cotidiano, o humor, o poemapiada/minuto/bobagem, como colocvamos, consumvel de forma instantnea; sobretudo,
merece ateno a retomada da contribuio mais rica do modernismo brasileiro, ou seja, a
incorporao potica do coloquial como fator de inovao e ruptura com o discurso
acadmico, diz Heloisa Buarque (HOLLANDA, 2001, p.11). A ruptura com o discurso
hegemnico, no caso do modernismo, tinha sido proposta como a atualizao da inteligncia
artstica brasileira (ANDRADE, 1972, p. 250); no caso dos poetas marginais, essa ruptura se
exerceu principalmente, como j colocamos, atravs de uma nova forma de circulao da
poesia, por um circuito artesanal de produo e distribuio de seus livros.
Mas essa filiao nobre que, nas palavras autocrticas de Heloisa, foi um desvio
terico de avaliao com o que se perderam os melhores argumentos para valorizar a gerao
(HOLLANDA, 1997, p.345) no parece ser o motivo central da escolha de leitura de Ana.
Pois ela vai trazer justamente Mrio, e no o Oswald de Andrade dos poemas piada e Serafim
Ponte Grande. Mrio de Andrade definitivamente no fazia parte da pequena genealogia
literria dos marginais. Portanto, a escolha de Ana deriva numa forma de acentuar seu
distanciamento, de qualquer forma eloqente, se observamos as fotos do evento publicadas no
livro Nuvem Cigana (2007) organizado por Sergio Conh.
44
Figura 3
Da srie de oitos fotos, Ana Cristina a nica mulher dado no menor, embora no
vamos nos aprofundar nesse ponto , e, alis, a nica que tem um livro grande nas mos.
Significativamente, Bernardo Vilhena e Guilherme Mandaro empunham pequenos livrinhos,
Cacaso l do seu artesanal Grupo escolar, Charles, Ronaldo Santos e Roberto Piva apenas
seguram umas folhas, Chacal nem sequer l e se acompanha de um violonista. Ana, por sua
vez, segura o grande tomo de Mrio, sabemos pela carta, numa pose de leitura tpica do
aprendizado nas escolas. Ana diferente, l diferente e, carregando essa tenso, faz parte do
grupo.
Mas voltemos leitura de Mario. Ambos os movimentos, marginal e modernista, sero
objeto de uma crtica similar por alguns de seus representantes: a atitude literria de ruptura
implicou deixar de lado qualquer compromisso poltico. Essa a autocrtica de Mrio no
balano que realiza vinte anos depois da Semana, e essa parece ser a diferenciao que Ana
Cristina lana atravs dele nessa apresentao do livro e da prpria gerao. Mas, se em
Mrio a distncia temporal e o tom desencantado marcam um fechamento e uma
impossibilidade de mudana, o fato de Ana Cristina fazer, nesse lugar, nesse evento, essa
45
mesma crtica outorga uma possibilidade de projeo. De fato, o trecho escolhido por Ana
continua umas linhas depois: Se de algo pode valer meu desgosto, a insatisfao que me
causo, que seja para que os demais no se sentem como eu beira do caminho, a ver passar a
multido (ANDRADE, 1972, p. 254). Seguir o conselho de Mrio, isto , a tentativa de
evitar cair no descompromisso e no individualismo determinar a procura de posio de Ana
C. no campo. Como diz Bourdieu, um autor uma vez situado, no puede no situarse (1997,
p.64), mas isso no nega a possibilidade da procura permanente de no se posicionar de forma
definitiva: nem na corrente hegemnica, nem na fora emergente que se diz herege ou
marginal, seja desde um ponto de vista esttico ou poltico, se ainda cabe essa separao.
Nesse sentido, a procura de uma posio no marcada, sem definies panfletrias nem
demasiado explcitas, dar aos textos de Ana formas em constante formao.
A poltica em pauta
As cartas desse ano deixam aparecer certo conflito de Ana Cristina em relao a sua
posio como poeta, conflito alimentado por leituras de Adorno e Benjamin vide o
encantamento frente a O autor como produtor. Problemtica que estava em pauta no
campo cultural em geral, e que se traduz em buscas de posio. Nesse sentido, a crtica feita
no Parque Lage via Mrio de Andrade pode ser lida como parte dessa reflexo, No entanto, o
compromisso que ela estaria pedindo aos seus congneres no ingnuo, ela conhece bem as
armadilhas do engajamento poltico, desconfia do movimento estudantil e do choque frontal
contra as estruturas estabelecidas. Lucidamente, Ana Cristina sabe que o confronto
enganador: acho que existe uma certa ingenuidade de acreditar, por exemplo, que cuspir na
46
esttua um gesto de contestao a um regime mais amplo... (Jos, 1976, p. 12). E, mais
lucidamente ainda, comea a vislumbrar os prprios limites da dico marginal.
Como dizamos no comeo, 1976 encontra um Brasil onde no terminou a ditadura, mas
a abertura j real. As estruturas de poder, presentes sempre, adquirem novas formas, mais e
mais inapreensveis. Como analisa Roberto Schwarz (1978), desde 1964 o governo militar de
direita tinha permitido s esquerdas exercerem certa hegemonia cultural, j que bastou num
primeiro momento o corte dos laos com a massa; em 1968 esse movimento cultural sofre um
duro golpe com o AI-5 e a entrada dos censores nas redaes. Mas j em 1974, com o
governo do general Geisel, comea a chamada abertura democrtica. Surge de certa forma
uma nova possibilidade para uma hegemonia cultural de esquerda e/ou marginal, ainda que
muito modificada depois de quase dez anos sob censura. Surgem as perguntas: como ser
alternativo neste novo contexto? Quem ou o que seria a alternativa ao vazio?
Ento, trata-se de duas posies que naqueles anos esto em tenso. Por um lado, o que
se entendia como compromisso poltico; e, por outro, as relaes interpessoais, as
preocupaes sobre a sexualidade, o gnero, etc. Tal como esclarece Caetano Veloso numa
entrevista concedida aos editores de Patrulhas ideolgicas: Sempre tive um pouco de grilo
com o desprezo que se votava a coisas como sexo, religio, raa, relao homem-mulher (...)
47
No eram s menores no, elas eram inexistentes e s vezes at nocivas. Tudo era considerado
alienado, pequeno-burgus (apud. HOLLANDA; PEREIRA, 1980, p. 108).
E, na mesma carta, comenta que est sendo articulado um novo projeto de publicao
que tentaria se subtrair da camisa de fora da frente ampla. De tal forma, a procura de posio
de Ana Cristina, em 1977, estender um novo fio: o Jornal Beijo, que teve sete nmeros
publicados entre novembro de 1977 e junho de 1978. Inicialmente, o jornal contava com uns
quarenta editores, entre eles Cacaso, Silviano Santiago, Luiz Costa Lima, Julio Cesar
Montenegro, Italo Moriconi, e vrios membros do extinto Opinio, que tinha sido um dos
principais veculos do debate cultural durante essa dcada, no entanto, o nmero diminuiu a
quatro no ltimo exemplar. Ana Cristina Cesar s figura como diretora, junto a essas muitas
pessoas, nos trs primeiros nmeros, mas renuncia ao projeto antes de estar o primeiro
exemplar nas ruas.
No arquivo do Instituto Moreira Salles existe uma pasta com o nome Dossi Beijo,
que contm 13 folhas, algumas datilografadas e sem marcas de circulao. Uma das folhas
apresenta um manuscrito datilografado do que depois ser, com alguns acrscimos, o
Manifesto do jornal. Esse Manifesto, no entanto, no apareceu na publicao, embora
48
A nossa pergunta: qual o novo tipo de circulao dos discursos proposta por Beijo?
Uma circulao menos compromissada com a Poltica de maiscula, e ao mesmo tempo mais
14
No primeiro nmero de Beijo, Ana publica seu conhecido artigo: Malditos, marginais, hereges, onde faz
uma pungente crtica pose marginal.
50
Coda
Esse Beijo prope, ento, uma circulao lbrica dos discursos, e do saber. Beijo no
quer comunicar, nem opinar, nem ilustrar. Quer ser uma contnua travessia, estabelecer
continuidades com o leitor. Apagar as barreiras da excluso, anular toda proibio, tomar,
aceitar e atuar em conseqncia. Isto , tentar escapar, com uma nova proposta, de toda
estrutura de poder, no aplicar nenhuma das formas de excluso aplicadas pelo discurso: Dos
trs grandes sistemas de excluso que atingem o discurso, a palavra proibida, da segregao,
da loucura e a vontade de verdade (FOUCAULT, 2002, p.19).
51
Ana conseqente, como diz Italo Moriconi: tais contedos [a micro-poltica e uma
forma no autoritria de circulao dos discursos estaro] de uma forma ou outra subjacentes
a toda a produo intelectual e especificamente potica de Ana nos anos subseqentes
(MORICONI, 1996, p.47), e ali atingir sua mais delicada/acabada expresso (ID, p. 128):
discurso fluente como ato de amor
incompatvel com a tirania
do segredo
(...)
mas acontece que este tambm o meu sintoma, no
[conseguir falar=
no ter posio marcada, idias, opinies, fala
desvairada
Paradoxalmente, anos depois, a proposio se revelaria uma faca de dois gumes: pois
como veremos no terceiro captulo naquela idia de uma potica da circulao e da
mobilidade, a crtica acharia uma definio, a posio marcada, que Ana C.
programaticamente tentava evitar.
52
CAPITULO II
53
Rio de Janeiro, Gvea, Rua Marqus de So Vicente, jardins de Burle Marx, edifcio
do Instituto Moreira Salles. Ali, no meio da modernidade carioca da dcada de 50, no meio de
tanta e tamanha companhia, se abriga o arquivo oficial de Ana Cristina Cesar. Esse o
domiclio, desde 1998, de mais de mil documentos de ou sobre a poeta carioca, contando
manuscritos, fotografias, correspondncias, livros, artigos de jornais, tradues e teses,
inditos e publicados, bilhetes, cadernos da escola, rabiscos espalhados e etc., etc., etc. Eles
conformam o acervo e desenham uma rede com cujos fios o pesquisador/leitor tentar tramar
uma narrativa sobre Ana C..
Como sabemos, Ana Cristina Cesar era poeta, mas no apenas. Tambm foi tradutora,
editora, professora, pesquisadora, crtica de literatura, de cinema e de teatro, escritora
compulsiva de cartas, desenhista. Na visita ao arquivo, para quem ainda quiser procurar
delimitaes genricas claras nesse magma, pode ser problemtico estabelecer a que tipo
pertence cada escrito ou, at mesmo, quem o escreveu, sendo necessrio conhecer dados do
tipo tcnico para determinar datas e procedncias dos materiais. Inclusive, ali se misturam
documentos e livros que tanto pertenciam a Ana quanto a seu pai, Waldo Cesar. De tal forma,
no arquivo podemos encontrar revistas raras de cultura alternativa como a de humor grfico
Ovelha negra (n1, maio, 1976) , passando por nmeros da revista Religio e sociedade da
qual Waldo fora conselheiro editorial que no tm nenhuma referncia a Ana e so
posteriores sua morte, ou edies de livros de amigos de Ana que presentearam a famlia
tempo depois. No entanto no esto ali alguns originais de poemas publicados postumamente,
nem alguns dos cadernos de Ana por serem de ndole muito pessoal, sem interesse literrio,
nas palavras do pai, em entrevista. 15
Expliquemos mais um pouco. Em 1983, depois do suicdio de Ana Cristina, os
caderninhos foram todos para vitrine da exposio pstuma, relquias. Mas essa vitrine, no
comeo, no se domiciliava em instituio oficial nenhuma. Todos os papis que se
encontravam no apartamento dos pais de Ana Cristina 16 ficaram sob a custdia dos prprios
pais Waldo e Maria Luiza Cesar e Armando Freitas Filho, a quem ela deixara,
explicitamente, seu legado potico. Eles, com a colaborao de diferentes pessoas, assumiram
15
54
a tarefa de organizar uma publicao pstuma de inditos, que foi finalmente Inditos e
dispersos (1985), apenas dois anos depois da morte de Ana. O trabalho com os papis de Ana
realizado na primeira etapa, ento, mexeu nesse acervo que, no ordenado sob normas
classificatrias seno com o caos prprio do escritrio de escritor, perdeu ainda mais a sua
organizao.
Por exemplo, datilografaram-se em vrias vias, alguns manuscritos, mas tambm
textos j datilografados por Ana 17 , passados mquina dessa vez por Armando ou por Maria
Luiza, s vezes na mquina do primeiro, outras na mquina da prpria Ana, confundindo
ainda mais o trabalho arquivolgico. Dos poemas editados em Inditos e dispersos,
encontramos vrias verses escritas a mquina com marcas manuscritas da me que tm
uma verso em prosa e outra em verso, deixando transparecer a indeciso de quem levou a
cabo a tarefa de datilografar.
Outro dado: existem folhas com frases soltas cujos originais no esto no arquivo.
Assim descontextualizadas, as frases tanto poderiam ter sido pensadas como fragmentos para
futuros textos, ou como micro-poemas prontos, talvez ladroagens ou evocaes, ou simples
transcrio de frases alheias, de poesias ou msicas, sem inteno de se apropriar delas.
Soltas, as frases s desvendam sua genealogia por acaso. Por exemplo: aqui meus crimes no
seriam de amor (ID, p.125), editado como poema em 1985, ao certo corresponde a uma frase
de uma crnica de Clarice Lispector sobre a criao de Braslia (1992, p.314). Ana C. autora
de Clarice? Poderia ser, verdade que Ana em seus poemas no poupou citaes veladas,
mas no parece ser esse o caso.
Dessas edies pstumas, talvez o mais srio deslize seja a publicao em Escritos no
Rio (1993), sob o ttulo Literatura Marginal e o comportamento desviante, um texto que
corresponde a um dos captulos da tese de doutorado de Heloisa Buarque de Hollanda,
defendida em 1978 e que depois seria o livro Impresses de viagem (1992 [1981]). O texto,
diz a edio, foi apresentado por Ana como trabalho final em uma das disciplinas do mestrado
em comunicao pela UFRJ, em 1979. 18
As primeiras edies alm das estratgias de construo de uma imagem mtica de
Ana, como veremos neste captulo revelam srios problemas de organizao e trabalho com
os documentos, como a publicao desse tipo de frases soltas sendo que no arquivo ficaram
17
S pessoas que conviviam com Ana Cristina de forma muito prxima ou, s agora, a cuidadora do acervo do
Moreira Salles, podem distinguir folhas datilografadas sadas da mquina de escrever de Ana.
18
Um artigo de Elio Gaspari assinalou a questo: A aluna era brilhante, mas plagiou a professora (1999).
Segundo o material a que tivemos acesso, no houve resposta pblica perante a essa situao, nem por parte dos
editores nem de Heloisa Buarque, amiga de Ana Cristina.
55
muitas outras sem publicar suscitando a pergunta pelo critrio de seleo tanto desses
fragmentos quanto dos poemas de infncia, dado que, da mesma forma, nem todos foram
editados. Quando se comparam os textos editados e os que no entraram nessa primeira leva,
no parece suficiente a lacnica explicao de Armando, na Introduo a Inditos e dispersos,
sobre a sua tarefa de selecionar aquilo que me pareceu, literariamente falando, mais
conseguido e acabado (ID, p.7).
A construo do santurio consagrado ao deus moderno os arquivos de literatura
contempornea, como define Ral Antelo (2005), no caso do arquivo de Ana Cristina, teve
essa particularidade: foi uma atividade em que, num primeiro momento, a famlia assumiu o
papel de arquivista e no apenas de herdeira. Os frutos desse trabalho Inditos e dispersos
(1985) e as coletneas Escritos da Inglaterra (1988) e Escritos no Rio (1993) refletem um
trabalho dirigido pelo amor e pela imagem pstuma que os pais e os amigos procuraram
construir, beirando a homenagem, mas somando-se s dificuldades do trabalho anrquico do
arquivista. Edies que, alis, delinearam as primeiras verses pstumas de Ana C., verso
que, veremos, foi a dominante.
No entanto, segundo Waldo Cesar na entrevista, pelo fato de reconhecer as limitaes
da prpria capacidade como editor, e levando em conta o perigo de que os documentos
desaparecessem ou deteriorassem na sua casa, o acervo foi entregue para a custdia do
Instituto Moreira Salles.
No edifcio da Gvea, os documentos so organizados em pastas amarelas ou
envelopes e se localizam numa pequena sala refrigerada. Ali, as pastas so ordenadas
alfabeticamente, segundo o sobrenome do autor. Na entrada Cesar, Ana Cristina encontramse tanto manuscritos quanto cpias. Dentro de cada grupo as folhas tambm so ordenadas
alfabeticamente, segundo a primeira frase escrita no documento. A classificao explicita a
arbitrariedade da ordem, e o pesquisador pode encontrar, juntas, folhas de papel de diferentes
pocas e temas. Em separado acham-se os livros da biblioteca de Ana, que se misturam com
alguns da famlia.
Tudo vai parar no arquivo, diz Antelo. Assim, no Instituto, acumulam-se todos os
documentos que o pai entregara, inclusive, os que no pertenciam Ana. Os materiais
acumulam-se. Acumula-se a linguagem com a que se armam as fices axiolgicas, diz
Antelo. E, dessa acumulao, surge a transformao e a metamorfose do prprio arquivo, pois
entrega diferentes possibilidades de traar as narrativas do arquivo. Pelo fato de os arquivistas
e os arquivos acolherem tudo, Antelo reflexiona: a partir dos seus paradoxos (e no de suas
56
reveladores, mas pela leitura que se faz dos materiais j existentes. Tanto o relato oficial
construdo quanto os alternativos tm fissuras, se lidos a contrapelo: no so homogneos,
deixam transparecer pontos de contato entre eles e revelam tenses internas. Pois, como
continua Derrida, a economia do arquivo faz com que nele esteja contido aquilo que vai
desconstru-lo: o heterogneo, as partculas no lidas que esperam um olhar que as acorde,
que as faa sujeito novamente (1998, p. 23).
Desnaturalizar, mobilizar a imagem de Ana C.. Superar os perigos do arquivista que
Ral Antelo pontua seguindo Didi-Huberman: de um lado, a iluso tautolgica segundo a
qual o texto conservado diz o que diz e que nele vemos o que se v (ANTELO, 2005). Nela
o objeto um objeto passivo que no modifica a quem olha, dado que, como dizia Barthes,
la tautologa funda un mundo muerto, un mundo inmvil (BARTHES, 1999, p.135). De
outro lado, a iluso na crena, outra forma de preencher o vazio, fazendo o documento
significar sempre alm de si prprio. No entanto, existem outras formas de entrar no arquivo,
evitando esses fantasmas do arquivista, como prope Antelo: tratar-se-ia de entender o
arquivo como um canteiro de obras, que mantm a tenso, o medo de saber que o objeto
sujeito, e que o que vemos, nos olha.
58
pai tambm) foram crianas/jovens extremamente brilhantes (...) pensaram (pensam?): voc
vai continuar e conseguir o que eu tive vontade, mas no capacidade (CI, p.19).
Esse mito foi tanto aproveitado quanto contestado por Ana. Assim, em 1978, numa
entrevista com o antroplogo Carlos Alberto Messeder Pereira, Ana Cristina fala criticamente
dessa construo de criana excepcional. E, por sua vez, assume a pose antiliterria ostentada
por seus amigos poetas da chamada gerao marginal. Diz Ana:
Eu era assim tipo... eu fui uma menina prodgio. Esse gnero, assim, aos seis
anos de idade faz um poema e papai e mame acham timo (...) A literatura ficou
assim associada a tudo isso, quer dizer, a uma coisa excepcional, a uma coisa que te
d prestgio, a um artifcio para voc conquistar pessoas (...) um dos desbundes,
tambm, perder essa idia de que eu era uma escritora (apud PEREIRA, 1981,
p.191).
Mas, a morte deixa essa referncia da menina prodgio proliferar livremente, sem mais
contra-ordens. Como dissemos, do trabalho oficial com o arquivo, as marcas mais evidentes
so os volumes de escritos editados postumamente. Armando Freitas Filho, junto a Waldo e
Maria Luiza Cesar, e com a colaborao de diferentes pessoas, como Grazyna Drabik,
colocaram desde o primeiro livro de edies pstumas uma inteno de preencher o vazio
deixado. Como diz Armando na Introduo de Inditos e dispersos: A morte repentina de
AC fez com que tudo o que se relacionasse a ela ficasse em suspenso, indefinido (...) Este
volume pretende ser, contudo, um arremedo de resgate e consolo (ID, p.7).
Horror vacui. Os documentos saram luz, muito cedo, para preencher o vazio, mas
tambm, com isso, controlar a recepo da obra. As estratgias para alcanar esse objetivo
vo se tornar evidentes no trabalho editorial propriamente dito, isto , no projeto grfico, na
seleo de material, na ordem dada aos textos, nas ilustraes, na incluso de textos de
colaborao, etc.
Particularmente, teve muita importncia nos livros pstumos a incluso de fotografias,
podendo assinalar este fato como o alvo do projeto editorial pstumo. A imagem que se
desprende tanto de Inditos e dispersos quanto das reedies de A teus ps feitas pela editora
tica (1998) livros esteticamente nas antpodas do design discretssimo de Waltercio Caldas
para a edio original feita pela editora Brasiliense (1982) constri um relato biogrfico e
iconogrfico: uma menina cuja sina ser escritora, sina que vai se concretizando no percurso
pelas instituies famlia, escola, igreja, finalizando a seqncia no lanamento do livro que a
consagra e marca a sua profissionalizao como escritora. Nesse mesmo sentido, as
fotografias viriam acompanhadas por versos de alguns poemas que, por um lado, colam de
forma definitiva a enunciao dos textos a uma imagem, a um rosto, ilustrando-se
59
19
No volume de textos de Ana Cristina, lbum de retazos (2006) as notas filolgicas apontam todas as
modificaes introduzidas na edio de A teus ps (1982) a maioria, cortes de trechos de uma dico levemente
explicativa em relao s primeiras edies de Cenas de abril (1979), Correspondncia Completa (1979) e
Luvas de pelica (1980), assim como dos poemas aparecidos em 26 poetas hoje (1976) ou em publicaes
peridicas.
60
Figura 4
No entanto, para efeito da anlise da consagrao o fato mais importante, entendemos,
seria outro. No se trata simplesmente de ir contra a proposio que critica a possibilidade de
um sujeito acabado, qual os poemas se dedicam de forma programtica. Nem da construo
de uma idia de progresso e aprendizado, frente a um anacronismo e cruzamento temporal que
os textos encenam, como assinalara Clia Pedrosa (2007). Trata-se, principalmente, de que
essa leitura cronolgica e biogrfica uma leitura possvel apenas retrospectivamente.
Inditos e dispersos se abre, em verdade, no com o nascimento de Ana Cristina, mas com sua
morte repentina (FREITAS FILHO, in ID, p.7). Morte trgica, isca do interesse do leitor,
como no ttulo do artigo de Gonalves, se buscar explicar nesses textos por que a poeta
saltou para a morte, pois so os inditos e dispersos de algum que no conseguiu editar nem
ordenar a disperso, que no teve tempo de ocultar os segredos nem apagar a intimidade
desses papis avulsos. Textos que poderiam, para o imaginrio do leitor que no entende a
morte, encerrar alguma chave.
O vazio do final de tal forma o comeo da cronologia para os organizadores de volume
que, exatamente antes da primeira foto do ensaio, aparece um poema manuscrito por Carlos
Drummond, Ausncia, dedicado memria de Ana. Ali a ausncia um vazio constitutivo
do discurso. Que se preencher, sem fim, com novas escritas. 20
O final trgico que, como em uma novela, j conhecemos, faz ao leitor circular pelos
poemas procurando as pegadas premonitrias desse final. Que, de fato, vo-se fazendo mais
evidentes nos ltimos textos de cuja origem no temos certeza, sendo uma mistura entre
texto potico e dirio , minados de referncias idia da fuga, da partida, da distncia, de um
possvel retorno, assim como problemtica de deixar um testemunho. Textos que passam a
20
Observemos, tambm, que a publicao deste segundo apadrinhamento o primeiro, de Manuel Bandeira,
tinha sido para a menina de seis anos poderia ser uma prova da continuao do programa familiar de
estabelecimento de uma genealogia de nobreza e fama potica para a filha prodgio.
61
liberar cargas significativas que, de uma forma ou de outra, seriam anncios da morte trgica.
Ou seja, tudo parece surgir do fato que encerra as edies, o lugar onde as cronologias
fecham: o suicdio, segredo de polichinelo, final.
Pensemos que Al Alvarez, em La agona romntica de El Dios Salvaje (2003), vai
analisar como, a partir do Romantismo, a vida e principalmente a morte dos poetas passa a
ser um dado que tem mais fora e interesse para sua consagrao do que os prprios versos.
No se trata, destaquemos, de fazer uma analogia com os poetas romnticos, mas ao falar de
mito romntico referimos todo um paradigma estereotipado de comportamento potico que
comea a ter peso literrio a partir daquela poca. O esteretipo de poeta , como toda
tipologia, falaz mas funcional. E, se tomou seus traos bsicos do comportamento dos poetas
romnticos em verdade, de um dos personagens paradigmticos do movimento, o jovem
Werther criado por Goethe , de forma extremamente esquemtica, podemos dizer que essas
premissas continuaram, tambm de forma estereotpica, na boemia parisiense, na vida e na
morte dos surrealistas, dos malditos, dos dadastas, etc., enquanto poetas mulheres de
diferentes pocas tambm foram catalisadoras dessas caractersticas. 21
No entanto, esse tipo de vida e comportamento estereotipado o que estaria
funcionando em muitas das leituras crticas que recaem mais sobre a biografia do que nos
textos de um poeta. Como assinalara Flora Sssekind, se faz evidente a dominncia biogrfica
na bibliografia sobre Ana assim como nas de Leminski e Cacaso que comeara a circular
em textos de homenagem depois da sua morte e se multiplicara em diversos escritos
(SSSEKIND, 2007). Um suicdio, uma morte trgica ou inesperada, so mortes literrias,
porque suscitam a surpresa e o vazio significativo embora se possa dizer que o suicdio foi
mais uma performance de vida de Ana C., uma forma de escrever, de tomar posse da morte. O
que nos interessa mais agora que esse vazio abrupto cria a necessidade de ser preenchido
com uma narrativa de vida especfica, que , ao mesmo tempo, uma trama de leitura da
produo e uma chave crtica ou terica. Como diz Sssekind, o salto final
parece prefigurar o sentido de boa parte das leituras estritamente biogrficas
da obra de Ana Cristina Cesar, nas quais a morte prematura vira critrio valorativo e
se projeta sobre seus mais nfimos aspectos, quase pr-determinando uma linha
lutuosa de apreciao. (SSSEKIND, 2007, p.52).
21
Insisto, tomo o esteretipo de forma grossa e genrica. Mas porque esse o funcionamento que tento destacar,
como por exemplo, o faz Ricardo no romance Tanto Faz (1982), de Reinaldo Moraes. Ao chegar na casa de uma
amiga de madrugada, Ricardo se surpreende ao encontrar a poeta Lygia carioca, de olhos azuis, que est
morando na Inglaterra... dormindo: Uma poeta no pode estar dormindo a uma hora dessas. Trs da
madrugada, quase nada... E a vocao saturniana dos poetas malditos? O gosto pela solido das ruas desertas da
madrugada, a volpia dos vcios mal iluminados da alcova e do cabar? (p.37).
62
Do suicdio nasce o mito literrio Ana C.. Ou melhor, dois movimentos: de um lado, a
partir dele se retoma a narrativa da menina prodgio; do outro, se reconfigura de forma radical
a imagem de poeta por ela construda, passando a ser outro o prisma de leitura. Ou seja,
algumas narrativas nascem, outras re-surgem, outras se transformam com o suicdio. Mas s
com esse acontecimento possvel o nascimento do mito que conhecemos. Um mito que,
como diz Al lvarez ao se referir a Sylvia Plath:
Creo que a ella no le habra gustado mucho, ya que es un mito del poeta como
vctima propiciatoria que, arrastrado por las musas a travs de todas las desdichas, se
ofrenda en el altar ltimo por el bien del arte. En estos trminos, el suicidio pasa a
ser el eje de la historia, el acto que convalida los poemas, les da inters y prueba la
seriedad de la autora. As, la gente se ve atrada hacia la obra de Sylvia muy a la
manera en la que finalmente Time la present: no por la poesa sino por un inters
humano extraliterario, anecdtico y chismoso (ALVAREZ, 2003, p.54).
* * *
22
Em diferentes graus, algumas das resenhas feitas por ocasio da apario de Inditos e Dispersos refletem essa
viso de sina potica essencial e aprendizado, em um avano cronolgico, alm do contato com uma verdadeira
Ana C.: Caio Fernando Abreu. Poesia a flor de pele. Inditos e dispersos em Isto , e Rastros de uma
passagem luminosa em Leia livros (1985); Ana Maria Ciccacio, Os passos de uma trajetria potica em O
Estado de So Paulo, (1985); Mario Srgio Conti. Perigo de viver em Veja (1985); lvaro Alves de Faria,
Ana Cristina Cesar nos poemas, profunda emoo e humanismo em Jornal da tarde (1985).
23
A biografia de Italo Moriconi , de um lado, um texto homenagem a sua amiga Ana Cristina, mas tambm,
do outro, uma biografia da gerao, da qual ele mesmo fora parte; j no comeo declara as limitaes de um
63
Fernando Abreu no Estado de So Paulo, pelas muitas teses e dissertaes, e pelas tradues,
feitas na dcada de 90, alm do reconhecimento institucional da importncia da figura de Ana
C. com a criao do acervo no Moreira Salles.
Mas ainda cabe uma pergunta paradoxal: a proliferao de edies e estudos que
define o ingresso de Ana no cnone, ou essa consagrao literria a que estimula o
aparecimento forte no mercado? No seria possvel uma resposta unvoca. Tendemos a pensar
que se trata de uma troca entre o mercado e a potncia do texto, troca que se insere num
contexto cultural bem predisposto a receber um tipo de escrita na qual a primeira pessoa volta
a aparecer. Sem falar dos best-sellers de auto-ajuda, de histrias de vida, romance histrico e
biografia, podemos dizer que a mais valorada literatura dentro da academia tambm se volta
para textos que colocam como questo o retorno do sujeito, da primeira pessoa, dos relatos
ntimos, das chamadas narrativas do eu. As edies com fotografias fizeram com que os
poemas que j questionavam os problemas do sujeito e da intimidade, estou cansada de
falar de mim, trabalhando poeticamente sobre gneros ntimos como o dirio e as cartas
fossem associados a um rosto e a uma biografia, e se adequaram ainda mais questo
imperante.
Ou seja, a figura de Ana C. chega clivada, ento, em dois percursos da historiografia
literria, um de larga data, o esteretipo mtico de poeta, e um outro que revigora o primeiro e
que vai ganhando fora a partir da dcada de 60, mas cuja proliferao atinge at nossos dias:
o retorno do sujeito.
24
64
No todas as imagens deixadas por Ana Cristina foram to dceis e, embora o utilizem,
no se deixam capturar to facilmente por um relato linear de vida e morte. Vamos nos deter
na edio das cartas, para ver de que forma as fotografias e os textos que a se apresentam
desestabilizam o mito que estariam, ao mesmo tempo, sustentando.
Organizado
por
Armando
Freitas
Filho
Heloisa
Buarque
de
Hollanda,
Foucault. No entanto, a autora coloca que Ana Cristina participa tanto quanto discorda do projeto estruturalista,
justamente por se localizar nessas transies. Achamos que o projeto de Ana Cristina implica uma viso
distanciada do sujeito estruturalista, que entra nos textos sempre mediado por um olhar desconstrutivo.
65
pgina: moa socialmente bem comportada descrita por Waldo Cesar, segue uma foto de
Ana onde ela est nua.
Ceclia Leal, amiga de Ana e destinatria de algumas das cartas editadas, responsvel
pelo projeto grfico de Correspondncia Incompleta, que se diferencia claramente do roteiro
feito em Inditos e dispersos ou das reedies de A teus ps. Aqui, s uma fotografia de
infncia: Ana com fantasia de anjinho foto tirada pelo pai (CI, p.90) ; o resto, fotos todas
posadas,
teatralizadas.
deciso
no
ingnua:
Ana
fantasiada
de
anjinho,
Vilhena, Vera Pedrosa, Geraldo Carneiro, Eudoro Augusto olham para um ponto distante,
jogando a pose de no posar, medida exata entre o acaso e a estrutura.
Todas poses de outro tipo de poeta. Nessa srie de 26 poetas hoje, aparece a primeira
foto de Ana C. que d rosto sua escritura, acompanhando seus poemas. Na foto, que hoje
icnica para falar em Ana, ela se mostra de culos escuros, como acontecer na maioria das
fotografias posteriores que se relacionaram s suas aparies pblicas. Ana est de cara
cmera na atitude, mas esconde a direo do olhar que, no entanto, imaginamos
incomodamente na nossa direo.
Figura 5
Com o tempo e as edies ficaremos sabendo que a foto a menos teatral ou encenada
de uma srie tomada por Ceclia Leal, que aparece na edio de Correspondncia Incompleta,
na qual Ana encara a cmera em poses de sensualismo exagerado e inclusive pardico.
Figuras 6 e 7
67
Aparece nelas uma tenso entre o corpo se expondo ante a cmera e o ocultamento,
tenso catalisada na pose escancarada, um artifcio sensual para atrair os olhares, mas que
entrega s poses como mascaramentos da identidade. Essa possibilidade de encenar a tenso
no faz seno ir contra a procura de uma verdade ou correspondncia entre a imagem e a
biografia, correspondncia da qual subsidirio o relato de vida e de morte sem vazios.
Posar fazer uma performance. Construir um sujeito que assinala permanentemente para si
mesmo, mas na sua forma de se ocultar, fazer uma performance. Onde a forma est em
permanente formao. E, se essa idia se desprende das fotos, podemos ver que percorre
tambm toda a produo de Ana C.: apresenta-se de forma explcita nos textos crticos, e se
realiza, alm de nas fotos, nos poemas. 27
Figuras 8, 9 e 10
27
Cf. meu texto, Cuando las obras ya no son intocables, o sobre alguna resea de Ana C., in Garramuo et alii
(2007).
68
69
exibicionismo do corpo nu? Como colocar essas imagens na cronologia do anjinho familiar?
Como no ver mais uma performance na construo de si?
Antes da sua morte, na produo de Ana C. foi se construindo a prpria Ana C.. Como
analisa Judith Butler, la performatividad debe entenderse, no como un acto singular y
deliberado, sino, antes bien, como la prctica reiterativa y referencial mediante la cual el
discurso produce los efectos que nombra (2005, p.18). O que apareceria nos textos e imagens
feitas por Ana Cristina seria uma construo de si ou a prtica de uma arte da existncia,
segundo os termos que Foucault define na sua Historia da sexualidade (1984). Trata-se no
apenas de produzir e posar textos e imagens de poeta, mas tambm seguir certas regras de
conduta que formariam parte das prescries do grupo: procurar se transformar, modificar-se
em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estticos
e responda a certos critrios de estilo. Critrios que, por vezes, no entanto, contrariam o
comportamento tribal que regia a gerao (FOUCAULT, 2005, p.13).
Como assinala Flora Sssekind, ao pensar no funcionamento das fotografias de
Correspondncia Incompleta:
As fotos selecionadas apontam para um desejo de hiperfeminizao fsica da
Ana Cristina por parte dos editores dos livros, o carter posado, e to armado, de
algumas dessas fotos parece acabar funcionando em sentido contrrio, parece
desmontar isso tudo. (...) como se as fotos a rigor devessem atenuar o efeito
transgressor do texto dela (...) O interessante que a explicitao de tudo como pose
tira o tapete dessa infanto-feminizao. (SSSEKIND, 2007, p.163)
70
sob cansao e melancolia, mesmo que perpassado pela minudncia dos fortuitos
desfrutes e das midas delcias. No importa, a sua uma beleza trgica. Lunar e
saturnina, Ana C. nasceu com a vocao do mito e a ele e sua construo se
entregou com volpia. Mas nas 93 cartas de "Correspondncia Incompleta",
(magnfico o projeto grfico de Ceclia Leal) o que temos, ainda que com o mito
entranhado na garganta, o melhor de Ana C. (BUENO, 2007).
As fotos, como dissemos, desestabilizam a figura que aliceram, mas cabe ainda uma
colocao: no seria esse um problema de todo mito? Segundo Barthes, o mito seria uma
mensagem, uma forma e no um conceito, definido por uma determinada necessidade social:
un uso social que se agrega a la pura materia (BARTHES, 1999, p.108). O que garante seu
funcionamento uma reserva de histria, uma riqueza significativa por todos identificvel,
atravs de uma srie de referncias socialmente compartilhadas. Isto ser esquematicamente
explicado por Barthes, na linha saussuriana, dizendo que o mito seria um sistema semiolgico
segundo: um signo formado por um significado e um significante; porm, nessa segunda
cadeia, o significante do mito seria por sua vez o signo de uma cadeia anterior. El signo
mtico, que Barthes chama de significao tiene efectivamente una doble funcin: designa y
notifica, hace comprender e impone (BARTHES, 1999, p. 110). A repetio do conceito, sob
diferentes formas, o que permite decifrar o mito: a insistncia numa conduta o que permite
decifrar a sua inteno. Por isso tambm a nossa prpria insistncia, em ressaltar as constantes
nas leituras oficiais sobre Ana C..
Essas referncias compartilhadas garantem o funcionamento do mito, mas, ao mesmo
tempo, colocam em evidncia a intencionalidade que o motiva, colocando-o em uso. A
prpria imagem que se constri comea a ser suspeita e duvidosa. Como diz Barthes, entre o
sentido e a forma do mito produz-se um interessante jogo de esconder. O mito se oferece
como uma imagen rica, vvida, espontnea, inocente, indiscutible, mas ao mesmo tempo
permite pela sua obviedade, pela sua escancarada transparncia, revelar que cmplice de un
concepto que recibe ya armado (BARTHES, 1999, p.115). Ou seja, o mito se instala
comodamente no lugar comum, mas s a partir do seu reconhecimento poder ser discutido.
Daqui que Barthes chame a ateno para a ambivalncia de todo mito que nesse ponto
funciona tambm como os esteretipos:
O bien la intencin del mito es demasiado oscura para ser eficaz, o bien es
demasiado clara para ser creda. (...) El mito encuentra una tercera salida. Amenazado
de desaparecer si cede a una u otra de las dos primeras formas de situarse, escapa
mediante un compromiso; el mito es ese compromiso: encargado de "hacer pasar" un
concepto intencional, el mito encuentra en el lenguaje slo traicin, pues el lenguaje
no puede hacer otra cosa que borrar el concepto, si lo oculta; o desenmascararlo, si lo
enuncia. (BARTHES, 1999, p.120)
71
Poemas, fotos e cartas reafirmam a imagem da filha, irm, amiga e a imagem de uma
dedicao poesia at a morte, at a morte potica. Mas so os mesmos poemas, fotos e
cartas que despertam a desconfiana nessa construo. Daqui que coloquemos que o arquivo
encerra as narrativas cannicas que parecem no discutir a imagem mtica de Ana, no entanto,
ao mesmo tempo tem a capacidade de fazer surgir e at acolher aquelas que vo contradizlas. Ana se mostra mais verdadeira enquanto desconstri a idia de verdade. E essa
ambivalncia do mito percorre a imagem cristalizada de Ana, assim como percorria a imagem
viva.
Contudo, se as verses podem ser contraditrias, porque elas encerram tenses no
seu seio. No existe verso homognea ou sem fissuras, inclusive a do prprio pai. Waldo
Cesar, em um eco com os ensaios fotogrficos, faz a cronologia/hagiografia criando a imagem
angelical de Ana; no entanto, alguns anos depois, reinstala as tenses do prprio olhar e o
carrega de responsabilidades e suspeitas em um poema. O pai assinala, retrospectivamente e
no sem certa culpa, para sua necessidade de colocar desejos de redeno na figura da filha,
assinala para seu papel de hagigrafo (CESAR [Waldo], 2004).
Jantar, S
Na mesa ao lado
a menina desenha.
A cada rabisco
ri a famlia
s gargalhadas.
(...)
Um anjo.
Pode ser um anjo
- no sabem eles,
que a criana
- nem ela sabe redime as dores
do dia a dia.
* * *
Chego agora ao inefvel centro do meu relato: se vrias leituras so possveis elas vo
depender, como entende Barthes, do uso social. Los hombres no estn, respecto del mito, en
una relacin de verdad, sino de uso (BARTHES, 1999, p.130). O uso desprende-se, ento, da
inteno que se imprime determinada imagem, texto, ou objeto. Inteno que, porm, pode
ser destorcida ou desviada, aproveitando uma ambigidade constitutiva do mito.
72
Eis o mito, e tambm eis Ana C.. Reconhec-la como mito ambivalente faz com que
seja necessrio correr o foco dela e passar a coloc-lo no leitor. Leiam se forem capazes.
El propio lector de mitos es quien debe revelar su funcin esencial. Cmo
recibe, hoy, el mito? Si lo recibe de una manera inocente qu inters puede existir en
proponrselo? Y si lo lee de una manera reflexiva, como el mitlogo qu importa la
coartada presentada? (BARTHES, 1999, p.120)
Quem olha, quem l, quem transita o arquivo? Ou melhor, como se olha, como se l, como se
transita o arquivo? Com que intenes, declaradas ou recalcadas? O que dizer de Ana C., para
qu falar dela? Essas so as perguntas que ficam depois da leitura da obra pstuma. Se as
primeiras edies queriam preencher o vazio deixado, a edio das cartas quer
declaradamente mostrar a matriz literria, mas consegue questionar a tranqilidade fictcia do
mito.
Percorramos algumas das tematizaes explcitas que faz Ana C. sobre a problemtica
da canonizao literria, especificamente, no que tem a ver com o perigo que implica para
esses artistas o congelamento da museificao, o fato de virar relquia em exposio, tanto
do corpo quanto da produo.
Em primeiro lugar, assinalemos que essas tematizaes na produo de Ana se do
sempre com uma significao tensa. A possibilidade dos textos pstumos serem museificados
indicada como uma condio tanto intrnseca e inevitvel quanto indesejada e contrria ao
projeto de dissoluo. Essa tenso, e no necessariamente uma contradio, vai percorrer a
potica de Ana, comeando nos primeiros poemas de infncia publicados em Inditos e
Dispersos, como Quando chegar (ID, p. 27).
Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar
(...)
Para que eu no fique exposto
Em algum necrotrio branco
Para que no me cortem o ventre
Com propsitos autopsianos
Para que no jaza num caixo frio
Coberto de flores mornas
Para que no sinta mais os afagos
Desta gente to longe
74
Tentemos nos safar de qualquer leitura premonitria do poema de uma Ana de quinze
anos, para determos no modo pelo qual a questo do pstumo se coloca no poema. De um
lado, palavras do paradigma da desapario ou a dissoluo: desaparecer, sumir, evaporar,
se perder, ter; do outro, palavras mais duras no som e nos significados, que remetem s
cincias duras e museificao pelas cincias: exposto, necrotrio, cortar o ventre, autopsia,
caixo. Mas, poderia se dizer que aqui no existe tenso nenhuma, dado que um dos plos se
coloca como positivo e o outro negativo, e o sujeito potico tem uma clara preferncia
descanso calmo e doce, onde no se escutam as lamentaes repetitivas dos enlutados; no
entanto, embora no esteja colocada para o sujeito potico, a tenso entre aparecer e
desaparecer existe para ns, leitores. Encontra-se, justamente, na convivncia do pedido de
desapario, de apagamento de marcas e memrias, e o gesto de escrever esse pedido,
constitu-lo em marca e testemunho, em poema. O sujeito no pra de aparecer no pedido de
desapario. 28
Essa particular exposio da questo do pstumo ainda explcita em textos
posteriores, e v ganhando densidade. Por exemplo, Trs cartas a Navarro 29 um texto
que, como diz o ttulo, consiste em trs cartas de R. a Navarro; desconhece-se, no entanto, a
relao que os une. Diz a primeira das cartas:
Navarro,
Te deixo meus textos pstumos. S te peo isto: no permitas que digam que so
produtos de uma mente doentia! Posso tolerar tudo menos esse obscurantismo
bibliogrfico. Ratazanas esses psiclogos da literatura roem o que encontram com o
fio e o rano de suas analogias baratas. J basta o que fizeram ao Pessoa. preciso
mais uma vez uma nova gerao que saiba escutar o palrar os signos.
R.
28
Cf., para completar a anlise deste poema, o texto de Maria Lucia Camargo (2003, p.100-101), que levanta a
referncia a Consoada, de Manuel Bandeira, que tambm traz o tpico do corpo depois da morte.
29
Em Viviana Bosi (2004) e, em livro, em Album de retazos (2006, p. 262-264). Segundo Armando Freitas Filho
o texto seria da poca de Cenas de Abril, isto , 1979.
75
O texto, segundo Armando, datado entre 1982 e 1983, traz tona vrios elementos que
se relacionavam vida de Ana Cristina, mas avancemos, primeiro, na questo do pstumo. O
congelamento e a possibilidade de autopsia j no esto associados ao necrotrio, como em
Quando chegar, nem instituio psicanaltica ou psiquitrica que temia R.. Tambm no
so associados crtica literria. A autopsia o corpo di possvel quando o corpo e,
com ele, o nome so dessecados pela fama e a manchete de jornal, so abertos por um outro
tipo de exposio, no a da mesa dos crticos cirurgis.
O dado faz explcito que no se trata de uma preocupao apenas com o legado
potico. Comea a entrar em jogo a figura como um todo complexo. A questo da
museificao, no s continua a funcionar, mas tambm ficou abertamente junto idia de
assassinato, num complexo jogo de referncias: o Madame Tussaud, embora museu londrino,
30
Annita Costa Malufe, especificamente, inicia seu livro, Territrios dispersos, com essa epgrafe. Voltaremos
sobre o tpico no prximo captulo.
76
no domicilia grandes obras de arte, mas cpias em cera, de pessoas famosas, famosas pela
sua morte na guilhotina. O poema Fama e fortuna tambm copia a biografia da prpria
Ana. O dado tem uma referncia direta para quem conviveu com Ana, e para quem teve aceso
a depoimentos de amigos: no ano 1982, Ana se muda para uma casa na Gvea, e o seu
relacionamento com uma mulher provocou a indignao da vizinhana, que comeou a se
queixar e reclamar a sua sada da vila.
Agradeo a Laura Erber o chamado de ateno para a frase: A lesma quando passa deixa um rastro prateado,
como brilhante e sinttico exemplo das idias que tento articular.
77
S babas brilhantes, las babas del diablo, blow up. Leiam se forem capazes. Ler o
rastro prateado da lesma, que com sua fulgurao como resduo viscoso e significante assinala
para o corpo vivo, informe, que passou. Intil a tentativa de estabelecer algum tipo de
controle na escrita que, como analisara Derrida, trata-se de uma mquina produtora alm da
morte de quem a produz. Ela queria que no a mal-interpretassem. Mas nem declarando a
necessidade de deixar um testemunho, a escrita de Ana C. consegue abandonar aquilo que
determinou sua potica: o poema em travessia, des-autorizado, s possvel se conseguir
atravessar o destinatrio, chegar at ele para partir de novo, que Ana expor atravs da forma
do dirio e da carta, principalmente. As formas perigosas de tocar e ser tocado, sem vitrines
protetoras.
Ana escreveu e viveu a/na tenso do desaparecimento e a construo de um legado.
Tenso entre escrever para o outro para voc que escrevo, sim e o medo das
interpretaes do poema, da sua vida, da sua morte, medo do obscurantismo bibliogrfico.
Ela, como diz Italo Moriconi, numa explicao apaixonadamente literria, morreu nessa
tenso, realizando no suicdio a ltima performance da construo da sua vida literria, ltima
tentativa de se fazer inapreensvel e escrever no ar.
Sua escrita o roteiro seguro capaz de evidenciar a desconstruo paulatina
desse destino edificante [ser modelo de linguagem] que, no caso dela, configuraria
uma mentira to grande, mas to grande, que era melhor morrer. Ana Cristina sabia
que sua consagrao como poeta instauraria uma demanda do pblico por uma poesia
que trouxesse respostas e solues para os impasses lingsticos e comportamentais
que ela buscava encenar. [...] Ana Cristina se matou para no trair a audcia e a
verdade de sua linguagem no pedagogizvel (MORICONI, 2000, p.307).
***
78
vai sendo permanentemente contradita: autobiografia no, biografia, como cada movimento
do parangol deixa para traz, quase sem pegadas, o movimento anterior.
Se a obra se apresenta como um evento, em que o mais importante o trnsito e no o
resultado, o que arquivar? Ou melhor, que estatuto tero os elementos arquivados? Que
relao com o evento passado a que se referem?
Walter Benjamim diz, analisando a poesia de Baudelaire:
A lembrana a relquia secularizada. A lembrana o complemento da
vivncia, nela se sedimenta a crescente auto-alienao do ser humano que
inventariou seu passado como propriedade morta. () A relquia provm do cadver,
a lembrana da experincia morta, que, eufemisticamente, se intitula vivncia
(BENJAMIN, 1989, p.172).
79
80
CAPTULO III
Formas em formao
Leituras e escritas de Ana C.
81
La crtica es la condicin que combate sin cesar contra las condiciones dadas, es lo
posible que promete lo imposible, es el discurso que sostiene la verdad no discursiva de la
literatura. Georges Bataille dira que la crtica sera la teologa frente a la experiencia mstica
de la lectura. No un oscurecimiento de la lucidez, sino una aurora que destaca por contraste la
negra felicidad que tanta luz artificial nos niega. Cuanto ms se sometan las obras literarias a
un encadenamiento con lo que hay, tanto ms ser la crtica la nica escritura de la verdad, no
universal, sino para cada uno, prometida en la palabra y en el centelleo de una voz.
Silvio Mattoni, Idea de la crtica, em El cuenco de Plata.
32
Estes textos so consignados por separado na Bibliografa sob o subttulo: Corpus Literrio de Captulo III.
82
83
enriquecia o olhar sobre cada um dos textos, da mesma forma que se revelou mais produtivo
no respeitar de forma estrita uma disposio cronolgica da exposio.
84
33
Cf. Reinaldo Moraes. Deslumbramento com a poesia de Ana Cristina (1982). Sonia Regis. A teus ps
(1983). Heloisa Buarque de Hollanda. A imaginao feminina no poder e A hora e a voz de capricho
([1981] 2000).
34
Cf. Ana Cludia Viegas (1998). O captulo aprofunda a anlise da relao autor/texto, e a interposio da
imagem da autora nas primeiras abordagens do texto de Ana C..
85
Cristina, como nos relata Moriconi e como afirmara Ktia Muricy em depoimento a Ana
Cludia Viegas. 35
Depois do suicdio de Ana, os textos aprofundaram a tessitura afetiva e de
deslumbramento, e se concentraram, ainda mais, na autora do que na obra: 31 anos, loura,
bonita, so palavras que se repetem, sob diferentes modulaes, nos textos da poca. 36 O
livro, ainda, no lido.
Assinalemos que entre esses textos prenhes de saudades de Ana, no houve apenas
crnicas e resenhas de jornais. O suicdio da filha, amiga, colega, teve a capacidade de gerar
literatura. Com o passo do tempo e a apario de escritores que no mantiveram uma relao
pessoal prxima de Ana, os textos mostrariam inflexes interessantes, devires de Ana C.; mas
no comeo se tratou, principalmente, de poemas que a tinham por tema ou destinatria.
Parece impossvel, ento, no comear pelos poemas de Armando Freitas Filho, cuja
potica, como ele explicara em diferentes depoimentos e como se pode constatar nos escritos,
viu-se afetada tanto quanto a sua prpria vida com a morte da amiga amada: Um
acontecimento dessa ordem no afeta somente o que voc escreve, mas a sua vida inteira;
ainda mais quando acontece com algum de sua intimidade (FREITAS FILHO, 2004). Em
1988, Armando publica De cor (1983-1987), um livro que faz referncia constante a essa
morte. A primeira parte, densa, monotemtica, tem por epgrafe um verso de Ana, e, virando a
pgina, o primeiro poema traz o ttulo de Depois de A.C.. No entanto, os poemas no
parecem ser do depois. A temporalidade se instala num momento nico: o suicdio de Ana
presentifica-se em cada repetio da imagem e passa a ser contemporneo do poema e da
leitura. Voc no para de cair/ fugindo/ por entre os dedos de todos (p.22), l-se num
poema. Ana flagrada na queda, como dir Ana Cristina Chiara (2006), congelada em uma
imagem ltima e final, uma e outra vez.
Como diz Viviana Bosi, De Cor tem muitos poemas entranados com a memria do
suicdio de Ana Cristina que encenam a permanente sensao de queda ininterrupta e
vertigem (BOSI, 2003, p.15 itlico meu). Ana est morrendo ininterruptamente, detida,
congelada no seu estar indo: o choque batendo na mesma tecla, cachoeira fixa (p.23).
35
Ana Cristina sentiu enorme nusea diante do sucesso do livro e de como todas as atenes se focalizavam
sobre a sua pessoa e sobre sua beleza carismtica (MORICONI, 1996, p.142). Segundo Viegas, Ktia Muricy
tambm refere um profundo incmodo de Ana ante o sucesso, um sentimento de pnico (VIEGAS, 1998, p.
63).
36
Cf. Armando Freitas Filho (1987). Caio Fernando Abreu (1985). Mario Srgio Conti (1985). Mauro Gama
(1988). Marcos Augusto Gonalves (1983). Francisco Foot Hardman (1983). Reinaldo Moraes (1983).
86
Os livros posteriores foram diluindo o peso da morte de Ana. Mas ainda muito tempo
depois ele explica que um acontecimento desse tipo interfere, no s quando se d a tragdia,
mas acompanha, consciente ou inconscientemente, cada dia seu. Essa interferncia no boa,
m (FREITAS FILHO, 2004). Duas dcadas depois do salto, em Raro mar (2006, p.21) a
invaso se faz poema, e chega:
Emulao
Sua morte empurrou minha mo.
Sua mo pesa sobre a minha
e a faz escrever com ela
no como luva de outra pele
mas como enxerto de outra carne
emperrada, como a vida dela
que parou, e vai apodrecendo
dentro da minha, suando suor igual.
* * *
Duas visitas
Fui visit-la
com meu black book
(minha real Penlope era Drcula).
Mostrou-me o lay out do seu.
"Engraado" eu disse "os seus
em cima e os meus embaixo:
a simetria pela inverso".
Telefonou:
"Gostei muito
do seu lgubre livrinho preto".
Cinco anos depois
foi a vez de ela me visitar.
Enquanto fiz um caf
88
ficou de p
olhando o canal e o mar
em silncio.
Isso foi um ano antes do salto.
O poema de Sebastio Uchoa Leite traz, alis, outro dado que recupera algumas das
discusses do primeiro captulo: o convvio, as leituras mtuas; e se coloca no lugar da
lembrana de um encontro especfico. Leite, no mesmo movimento, vampiriza o
procedimento de Ana C.: introduz e explora fragmentos da realidade, da vivncia, no poema;
e, como ela, os tensiona, discutindo a intimidade que eles poderiam comunicar. O poema
construdo como uma lembrana consegue estabelecer um jogo de presena/ausncia,
oscilao que est em pauta tambm embora fazendo explodir toda verossimilhana , como
constataria Clia Pedrosa, em um poema de Cacaso (BRITO, 2002, p. 266):
89
Ana Cristina
Ana Cristina cad seus seios?
Tomei-os e lancei-os
Ana Cristina cad seu senso?
Meu senso ficou suspenso
Ana Cristina cad seu estro?
Meu estro eu no empresto
Ana Cristina cad sua alma?
Nos brancos de minha palma
Ana Cristina cad voc?
Estou aqui, voc no v?
Esse convvio entre amigos, entre vida e morte ratificado (...) construdo como
dilogo em presena/ausncia (PEDROSA, 2007, p. 241). Uma convivncia anacrnica e
espectral, como assinala Pedrosa, construda tambm era no poema de Sebastio. Cacaso
escancara a vontade dos poemas post-mortem de se dirigir a Ana C., encenando tanto essa
vontade quanto a sua armadilha, a sua impossibilidade. Ana Cristina s aparece na sua forma
de desaparecer, ela inapreensvel; enquanto, na voz construda pelo amigo/inimigo, ainda
quer ser: Estou aqui. O dilogo coloca a linguagem em circulao, e a voz ladroa de Ana
processada. Cacaso tambm com o estandarte do carinho, mas um carinho menos solene
parodia a voz de Ana, reatualiza a sua morte, sim, j no se pode no faz-lo, mas tambm
coloca em questo as formas que ela tem de participar da palavra potica.
Ana convocada para dialogar, elipticamente, sobre a sua prpria desapario, quando
j no possvel dialogar com ela cad voc?. A palavra de Ana C., que diz: estou aqui,
voc no v? , devia comear a circular por circuitos que no fossem a repetio e
constatao da morte. Pois de fato, no final de 1984, os escritos crticos no passavam de
um punhado de resenhas que pouco falavam da poesia e focavam na figura da escritora; alm
alguns textos nostlgicos sobre a notcia da sua morte, como dizamos.
A fortuna crtica tem um patamar mais slido em 1984, com o primeiro artigo crtico
de mais flego sobre a poesia de Ana, Singular e annimo, 37 de quem tinha sido seu
professor, Silviano Santiago. Ele toma um dos traos mais particulares e significativos da
poesia de Ana C., a preocupao com o leitor e a (im)possibilidade de comunicar segredos,
intimidades ou verdades no poema. No entanto, a principal inteno de Santiago parece ser
outra que apenas fazer uma leitura dessa poesia.
37
O artigo apareceu pela primeira vez no Folhetim da Folha de So Paulo, no dia 4 de novembro de 1984, no N
407, e foi reeditado em Nas malhas das letras, em 1989, onde aparece datado em 1985. Aqui utilizamos a edio
de 2002.
90
Santiago faz, no artigo, uma didtica da leitura de poesia, que se posiciona contra as
leituras que procuram uma interpretao do poema plausvel de se impor sobre outras por ser
mais verdadeira. Diz claramente: a morte de todo e qualquer poema se encontra na
esclerose otimista (...) da sua compreenso (SANTIAGO, 2002, p.64). Para alicerar esta
idia a poesia de Ana C. cai como uma luva, porque tanto prope quanto encena essa mesma
posio de leitura e escritura.
Percorramos brevemente os caminhos do raciocnio de Santiago. Ele explora a
apresentao de dois leitores equivocados que aparecem em Correspondncia Completa.
Ali, Jlia, que assina a carta, queixa-se porque os modos de ler dos seus interlocutores, Gil e
Mary, dificultam a sua escrita. Repitamos a citao feita na Introduo:
Fica difcil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele l para desvendar
mistrios e faz perguntas capciosas, pensando que cada verso oculta sintomas,
segredos biogrficos. No perdoa o hermetismo. No se confessa os prprios
sentimentos. J Mary me l toda como literatura pura, e no entende as referncias
diretas (ATP, p.120).
A impossibilidade de usar tem o seu lugar tpico no Museu, diz Agamben no ensaio; seria interessante
relacionar essa afirmao com a impossibilidade de museificar algumas obras dos 70. Uma pergunta parece se
delinear: quais dessas obras se apresentam como uma forma de resistncia museificao, e quais outras foram
simplesmente consumidas pelos espectadores e o mercado?
92
Tentemos avanar. Como analisa Maria Lcia de Barros Camargo em Atrs dos olhos
pardos (2003), depois de consignar os escritos feitos sobre a poesia de Ana C. at 1990:
Esse breve levantamento da fortuna crtica da obra de Ana Cristina Cesar na
dcada de 80 evidencia dois aspectos relevantes e contraditrios: de um lado, o
consenso quanto ao valor dessa obra, especialmente pelo destaque, pela diferena,
comparativamente obra produzida por sua gerao; de outro lado, a ausncia de um
trabalho crtico mais abrangente e aprofundado, que busque, pela anlise da obra em
seu conjunto, entender o lugar, a especificidade e o sentido dessa potica. nesta
lacuna que se insere este estudo (CAMARGO, 2003, p.25).
os herdeiros exercem uma autor-idade, embora no plena, nessa nova narrativa. De fato Flora
no incorrera em indiscries, nem faz no seu livro nenhum tipo de crtica negativa imagem
ou poesia de Ana. Pelo contrrio, At segunda ordem... ilumina a potncia e a sofisticao
potica dos textos, sem necessidade de desvendar dados biogrficos que contradissessem a
memria que a famlia construiu.
Voltemos ao livro. No comeo se definem as coordenadas:
No, no se trata de quebrar lanas mais uma vez por um biogrfico,
demasiado biogrfico ou por um literrio, apenas literrio, mas de lanar de cara os
dados Autobiografia. No, biografia. e fixar os pontos de partida desta tentativa
de aproximao crtica da escrita potica de Ana Cristina Cesar (SSSEKIND, 1995,
p.9).
A frase reduplica a advertncia feita por Silviano Santiago: no ler os poemas como
demasiado biogrficos, nem como apenas literrios. Mas Flora d um passo alm, traando
um fio entre a poesia e as duas leituras que, embora assinaladas como errneas, so
perigosamente estimuladas pela prpria poesia. A arte da conversao no faz seno encenar
uma espcie de tenso constante entre (...) dico aparentemente muito pessoal e postura
quase sempre em guarda entre, continua Flora, o ser fiel aos acontecimentos biogrficos e a
literatura como cl (SSSEKIND, 1995, p.10).
Ou seja, Flora no precisa entrar nos acontecimentos biogrficos nem em questoes
extra-literrias para que eles funcionem como um dois plos que provocam a tenso na
potica. E, alis, desde a potica, desde o conceito/dispositivo achado, se pode ler e resignificar o dado biogrfico final. O ensaio fecha com uma instigante frase: A dissoluo,
como se v, pode ser uma arte (SSSEKIND, 1995, p.66). A idia de dissoluo decorre da
imagem em abismo do sujeito potico, do sujeito permanentemente descentrado, aludido na
construo em-vozes, ou na vampiragem trabalhada por Maria Lcia Camargo. Mas, sem
dvida, permite ler desde a esttica, desde certa valorao do inacabado e fugidio uma nova
forma de consagrar tanto produes artsticas quanto vidas, tanto como princpio esttico
quanto tico. Enxerga-se o valor da dissoluo e da disperso que adquirir mais peso, muito
mais, na crtica posterior.
95
Mas retornemos ao ensaio de Maria Lcia Barros Camargo, para poder avanar sobre
os textos acadmicos surgidos depois dele. Retornemos ao seu comeo. Atrs dos olhos
pardos se abre, sob o ttulo As origens, com a seguinte frase: A notcia do suicdio da
poeta Ana Cristina Cesar tocou-me fundo naquele final de outubro de 1983. Maria Lcia
conta que naquele momento pensava dedicar a sua pesquisa a um estudo aprofundado da
poesia marginal. No entanto, o foco do trabalho mudou:
Atrao por essa instigante palavra de mulher e alguma perplexidade com
essa poesia que eu ainda no sabia definir: esses eram os sentimentos e as reflexes
que me ocupavam quando li a trgica notcia. O mergulho em sua obra foi inadivel e
inevitvel (CAMARGO, 2003, pp. 15-16).
O texto tambm fora apresentado originalmente como dissertao para PUC-RJ no ano
1991. Bliss & Blue. Segredos de Ana C. (1998) tem um ttulo, no mnimo, enganoso, pois o
livro no revela nenhum segredo, como os textos de Ana C.. Viegas, pelo contrrio, faz uma
pertinente pesquisa sobre os conceitos de autor, de autobiografia e do que hoje chamaramos
de auto-fico, fazendo a anlise cruzar a porosa fronteira poesia/vida, sem deixar de ler o
texto e os diferentes cruzamentos de discursos que o envolveram. Como diz Marlia Cardoso
sobre o estudo no prefcio: no mais um exerccio analtico, nem mais uma tentativa
biogrfica, empenhados na revelao de um poema enigmtico (in VIEGAS, 1998, p.14). Ir
alm do texto; nesse sentido, Ana Cludia anota no captulo dedicado s concluses:
A continuao ad infinitum da tentativa de decifrao, certamente, s
aumentaria a perplexidade, constatando cada vez mais a fluidez da persona, que se
nega a ser aprisionada numa forma definitiva (...) Se tinha por hiptese o
questionamento das fronteiras rgidas entre real e fico, vida e obra, o
desenvolvimento do projeto se valeu de seu prprio fracasso. A inexistncia daqueles
limites impediu a delimitao precisa da autora Ana C., mas essa impossibilidade
mesma trouxe ainda mais argumentos para defesa dos meus pressupostos (...)
medida que o quebra-cabea ia sendo montado, no entanto, surgia entre as peas um
fio condutor bastante peculiar: o indecidido. (VIEGAS, 1998, p.104).
A citao extensa porque nela se colocam tanto a hiptese quanto o resultado como
procuras e achados do poroso, o fluido, o indecidido, tudo aquilo que questiona as
delimitaes claras. E deixa ver como essas caractersticas tornam-se, ao mesmo tempo,
problema e confirmao da crtica.
Relendo o exposto at aqui, por contraste, esboa-se o mais grave pecado que,
segundo a crtica, ela prpria poderia cometer neste final de sculo: achar que o texto encerra
alguma verdade, um segredo. 39 Pecado porque remete ao autoritarismo do leitor assinalado
por Santiago, sendo o autoritarismo, de esquerda ou de direita, o grande inimigo dos artistas e
intelectuais a partir da dcada de sessenta. Principalmente para a crtica que analisa e gosta da
poesia de Ana C., a tica da leitura el imperativo de no decidir de manera definitiva cual es
la interpretacin correcta, el mandato de ahogar el deseo epistemolgico de captar bien el
39
Por isso, no deixa de chamar a ateno o ttulo escolhido por Viegas e, da mesma forma, o ttulo escolhido
para o artigo de Florencia Garramuo, Los secretos de la esfinge, 2001.
97
texto (JAY, 2003, p. 88). Jay coloca de forma clara a armadilha: no decidir a leitura um
imperativo, um mandato. Proibido proibir.
De qualquer forma, os preceitos de fluidez no so uma caracterstica imposta pelo
olhar crtico. De forma semelhante, o texto de Ana C. resiste a ser bem captado. A
esttica/tica da disperso e da dissoluo seria uma estratgia tanto encenada pelo texto
quanto procurada pela leitura num movimento duplo e cmplice. Porque se o gesto psestruturalista identifica a tica com a resistncia ordem social externa, essa tica basear-se-ia
em uma determinada viso do esttico que prefere a obra que no oculta as tenses e as lutas
com os materiais e com os signos que Jay identifica com a arte moderna , arte aberta a
intruses externas, mistura de representao e presena, arte alegrica em termos
benjaminianos (JAY, 2003, p.92) sobre obras acabadas, belas, concludas. 40
40
Diz Martin Jay sobre o tema: En lugar de elogiar la obra de arte como un todo bello y orgnico, una
estructura que lleva en s misma su propsito y proporciona una manifestacin sensorial de una idea, un objeto
delimitado que se atiene a sus propias leyes inmanentes, los postestructuralistas adhieren en cambio a la obra
modernista (o en ciertos casos, posmodernista) en crisis. Es decir, ven el arte ms como un mbito abierto a las
intrusiones exteriores que como completamente autosuficiente, ms como una mezcla complicada de
representacin y presencia que como puramente una cosa o la otra, ms como lo que Walter Benjamn habra
llamado alegrico antes que simblico (JAY, 2003, p. 92).
98
Cf. as referncias bibliogrficas dos textos de Ana Cludia Viegas, Carlos S, Florencia Garramuo, Natalia
Brizuela, etc.
99
preconcebidas, para dizer que, no caso da poesia de Ana, esse objetivo s seria possvel
fechando o texto a toda influncia do exterior. Assumir para essas idias a condio de
preconcebidas, revela-se como uma condio para, tal como queria Santiago, evitar leituras
autoritrias.
Mas voltemos a Malufe. Se a pergunta que ela coloca incita a um olhar complexo e
no preconceituoso sobre o objeto, a abordagem proposta parece ser contraditria. Diz
Annita: como evitar as leituras simplificadas e infrteis que se apegam a uma pretensa
psicologia do autor? Como fugir de tal obscurantismo bibliogrfico? (2006, p.19). E
responde: ler um poema enquanto poema, o texto enquanto um real em si (2006, p. 36).
O gesto radical de fechar o texto de Ana sobre si prprio parece surgir de alguns
equvocos. Conforme diz Heloisa Buarque de Hollanda na quarta capa, o livro
veio, em boa hora, conferir a recorrente identificao romntica que vem sendo feita,
desde o suicdio de Ana Cristina Cesar em 1983, entre a obra da poeta e sua trgica
biografia. Ao se desvencilhar dessa j quase histrica vinculao, que tanto vem
marcando a fortuna crtica e a divulgao da obra da poeta, a autora nos oferece uma
leitura original (apud. MALUFE, 2007 quarta capa).
100
O texto de Ana estaria pedindo esse tipo de leitura, para no ser menosprezado. Pede
uma leitura das pegadas no texto do que no texto; uma leitura do autor no texto, tambm
atravs das pegadas que, no totalizveis, no cessam de assinalar a presena e, ao mesmo
tempo, a desapario. Com seu apelo ao interlocutor, com a colocao da problemtica do
autor jogando com a sua prpria figura, com a introduo de dados referenciais, Ana C. na sua
potica no faz seno declarar a problemtica e a porosidade das fronteiras, a passagem
complexa entre escrita e vida (BOSI, apud. MALUFE, 2006, p.13).
O texto que a priori poderia se associar mais facilmente s leituras biogrficas, pelo
escancarado tom lgubre do seu ttulo tom que adquire novos acordes na identificao da
101
referncia ao filme de Jean Cocteau que, alis, traz o nome da poeta, e pelo levantamento de
dados biogrficos o que, paradoxalmente, vai trabalhar com a morte de Ana, e no apenas
narr-la, repeti-la ou represent-la.
Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta, de Italo Moriconi, aparece em 1996. Um
livro raro. Faz parte da coleo Perfis do Rio, e se apresenta ao pblico como uma
biografia. Certamente, os dados levantados sobre a vida e a trajetria de Ana so muitos, no
entanto, nenhum que satisfaa desejos de voyeur do leitor. O sangue de uma poeta leva ao
limite a proposta da prpria Ana: coloca a isca do biogrfico, que fica relampejando em traos
leves, sempre misturada a outros discursos, agora inseparveis deste. Em sucessivas apelaes
a uma futura biografa, Moriconi leva ao limite o desejo do leitor, sussurrando
provocativamente que ainda tem segredos.
A forma da escrita tambm quebra as expectativas de uma biografia clssica. Moriconi
circula entre vrios discursos: depoimento, testemunho, biografia, autobiografia, ensaio,
anlise de poesias. Valeria aqui uma longa citao do programa:
O propsito do presente livro ensastico e no factual. No entanto, o
trabalho de releituras, pesquisas, conversas (no foram propriamente entrevistas) e
sobretudo evocao (conjurao de fantasmas) e reflexo que levaram ao texto a sua
forma final foram pautados pela presena de uma ansiedade biogrfica (...) Vamos
ento telefonar para Ana, antigo anjo, linda, azul. Mas no lugar da voz dela, s vem
algaravia de terceiros. Ou seus versos. Sua prosa. Nossa prosa, nosso pacto. No sei se
eu teria disposio para ir alm da ascese preparatria e escrever uma biografia de
Ana no estilo daqueles calhamaos americanos (...) A estrutura de depoimento subjaz
ao texto todo. Meu guia foi a memria pessoal (...) marcada talvez mais ainda pelo
incessante ouvir histrias e lembranas dela, urdidas pelo trabalho coletivo da
memria geracional. (MORICONI, 1996, pp.20-23).
Quando nomeamos Ana C. a ela quem tentamos nomear, alm do seu nome. Mas
Ana inaccessvel ao chamado, ao nosso, ao do Moriconi. Ento, ele deve partir para ela nele,
ela nos amigos, ela em todos ns. As imagens que de Ana ficaram na comunidade sagrada, no
convvio. Moriconi, cruzando essas vozes e se salvaguardando na constatao da existncia de
mltiples verses, se permite abrir e mexer, embora reafirmando, o mito de Ana.
De um lado, ento, a partir de Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta vai se
mostrando uma possibilidade de falar, de tocar o corpo de Ana. E essa possibilidade se abre,
principalmente, para a crtica. No porque a crtica precisasse falar os no ditos ou revelar os
segredos de famlia, mas sim colocar a sua poesia e figura em circulao, no como um objeto
morto que no pra de morrer e no que s se procura, como numa mesa de morgue, as
causas da morte. O crtico se permite ver alguma coisa que modifica o prprio sujeito que
escreve:
Muy a menudo el crtico no quiere ver eso: eso que definira el lugar de una
abertura, de una brecha que se abre bajo sus pasos; eso que siempre lo obligara a
dialectizar por lo tanto a escindir, por lo tanto a inquietar su propio discurso
(DIDI-HUBERMAN, 2006, p.41).
A morte de Ana sublinhada, como diz Sssekind, pelo fato de no falar dela. Mas a
questo central do poema o valor do pstumo: a morte cria um padro de leitura para esses
escritores excepcionais: o coro que desafina, os raros, so homogeneizados, harmonizados no
coro da melhor prata da casa/ o melhor oro da mina. A morte possibilita a canonizao e
cobre de ouro essas figuras, com a condio de lhes colocar uma surdina: filtra o timbre, e
abafa o som, igualando as vozes.
Uma tenso similar aparece, colocando as suas contradies, em um poema de Italo
Moriconi, do livro Lu (1988):
ana cristina cesar
ela quis a fascinao do vo.
mas no h vo, no h ovo, nem galinha.
era possvel uma carta agora, assim,
levantaram-se os mortos? O salto
no h fascinao, nem mar
da tranqilidade no era despedaar
um anjo, para torn-lo antigo
revelia que se vive
104
Em primeiro lugar o poema j no tem a Ana por destinatria era possvel uma
carta agora? , mas reconhece o desejo. um poema das expectativas truncas: as de Ana,
no h fascinao, nem mar. As dos mitgrafos: no h tranqilidade. As dos amigos
escritores: no possvel a carta se os mortos no levantam. Aqui a prpria iluso rota de
quem escreve o poema, que coloca a interrogao. Despedaar um anjo, fazer a sua autopsia,
no traz tranqilidade. O poema traz a necessidade de no congelar a Ana, de no deter a sua
travessia de anjo. Salvar a Ana C. de ser um anjo despedaado, antigo como um poeta
canonizado. revelia que se vive/ pra melhor morte, ecoam os ltimos versos do poema
de Italo Moriconi, quem, em outro livro, lembraria e reverenciaria os nomes de vrios mortos
jovens da dcada de 70 (2002, p.119), cujas vidas, mortes e produes se desvinculavam
permanentemente de todas as formas j constitudas.
construo, mas sob um outro signo. Se nos primeiros casos se filia a Ana a uma trajetria de
sucesso pelas instituies famlia/escola/ igreja/ profisso, linha sem desvios sina potica;
no caso da crtica, a hagiografia seria marcada mais fortemente pela procura da dissoluo do
sujeito do princpio ao fim, na sua vida e na sua potica. O elogio do inapreensvel, do
inclassificvel. Para a crtica Ana vira uma santa ps-estruturalista. Nenhuma vitrine poderia
cont-la.
Portanto, como sugere Sssekind, desconfiemos; e recuperemos uma provocao que
ela lana:
Talvez valesse a pena verificar, nesse sentido, quantos dos artigos e das teses
sobre a sua poesia contm suicdio, salto, melancolia, paixo, morte ou expresses
semelhantes j no ttulo, indicando inequvoca preferncia por uma patologizao
temtica. (SSSEKIND, 2007, p.52).
Revisemos, levantando a luva do desafio, a maioria dos ttulos das dissertaes e teses:
O texto louco de Ana C.: a poesia que a mdia no leu, Luvas na marginlia, Teso do
talvez, A tenso entre o dizer e o no dizer, ncoras ao vento: ensaios da deconstruo
em Ana Cristina Cesar, A mscara como assinatura: figuraes do sujeito na poesia de Ana
Cristina Cesar, P na estrada: uma potica da viagem em Ana Cristina Cesar, Guerrilha e
prazer; trs transgressoras na ditadura militar: Leila Diniz, Rita Lee e Ana Cristina Cesar,
Sobre asas e abismos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar, Desvanecimento
potico: outra existncia possvel nos textos poticos de Paulo Leminski e Ana Cristina
Cesar, Ana Cristina Cesar e o devir de um corpo. Em verdade, poucos so os ttulos que
remetem de forma direta a uma patologizao ou ao suicdio, e as palavras assinaladas por
Flora s aparecem em O eclipse do sentido - poesia, melancolia e suicdio em Ana Cristina
Cesar, de Carla Nascimento. No entanto, podemos evidenciar outro paradigma semntico
recorrente nesses ttulos: a dissoluo, o desvanecimento, o devir, ou o paradigma da fuga, da
viagem, do vo. A reflexo de Flora ainda pertinente, s que a hagiografia feita pela crtica
no parece ter sido alicerada no suicdio e no biogrfico, mas no valor da fuga de Ana, da
dissoluo, da disperso, que so, sim, subsidirios da morte e percorrem os poemas e os
procedimentos de escrita.
106
107
crtica, caindo na prpria armadilha, foi devorada e fixada na imagem da jovem poeta
genial, abdicando da prpria condio crtica (idem, p.32).
42
O conto tambm faz referncia a El sur, de Jorge Luis Borges. Ali os planos do real e a alucinao tambm
so embaralhados no momento limiar da morte, e do trnsito do protagonista pelo hospital, mas aqui sim
impossvel, depois de determinado ponto do relato, definir qual dos relatos seria o grau zero da realidade
ficcional.
108
esteretipos, reafirmando-os. Ana C. est igual primeira vez que no vimos (idem) diz o
protagonista, como se fosse um comentrio ao prprio texto.
Las obras del pasado se pueden considerar formas para nuevos contenidos o materias primas
para nuevas formaciones. Pueden revisarse, reelaborarse, reinterpretarse, rehacerse (...) Las
obras del pasado pueden quedarse dormidas, dejar de ser obras de arte; pueden despertar y
adoptar nueva vida de diversas maneras. Componen, as, un continuo de formas
metamrficas.
Jacques Rancire, La revolucin esttica y sus resultados.
a lei da plis
ana cristina aflige: musa intil
os suicidas cansam com seus exeunt
eu, vinte e um, as letras to veredas
que precisava eleger fronteira
em outras frases, j despossudas
o fato que
ana c.
o tempo no coube voc
e antes que o nosso desejo
aportasse nos teus telegramas
vieram os calhordas solenes
de sovaco-dicionrio
e umas 3 divas mopes
com incenso e veleidades
namorar tua ausncia:
elegia para a quase! leila diniz da poesia nacional.
estou farta do lirismo comedido
to afeito geografia umbilical!
algum j disse: o verso livre requer ouvido infalvel
mas no aqui:
sombra dos coturnos floresceram uns cogumelos
e para ter a eternidade s
cair sem deixar testamento
ou a chance de te maltratarem o verso
salve, e adeus, mana cristina Cesar:
voc nos desistiu.
ns no te enterraremos.
109
O poema parece se dar como um divisor de guas na anlise que vem sendo feita.
Roquete-Pinto faz uma colocao clara do peso da tradio e das aporias na construo das
figuras de escritores.
Ana Cristina, no primeiro verso, rejeitada com o forte adjetivo: intil. Mas trata-se
de um oximron: musa intil. Como poderia uma ser intil se, por definio, s musa quem
protege a arte e fonte da inspirao? Ana C. se tornou intil por ser estril, musa, s inspirou
repeties; musa, sem querer ela, se tornou difcil escapar da sua influncia nociva. A
consagrao de Ana e o seu culto potico chegava a um ponto tal que a repetio das suas
qualidades, estimulada por acadmicos e poetas os calhordas solenes, 3 divas mopes ,
atravs de elegias que no falavam tanto da poesia nem de Ana quanto da sua ausncia, que
foi esterilizada.
Roquette-Pinto tambm coloca o interesse mrbido pelos mortos jovens como fonte
dessa inutilidade; o nome catalisador do movimento sardnico o de Leila Diniz, imagem
oposta de uma Ana pura e recatada, mas ao mesmo tempo, morta tragicamente na plenitude
da sua carreira. Avanando, o poema identifica duas armadilhas da consagrao relativas a
morte: cair sem deixar testamento, isto , sem deixar um testemunho abre a porta das verses
canonizadores, em qualquer sentido que elas estejam dirigidas. Mas tambm, uma leitura
equvoca da poesia, o verso mal interpretado e mal tratado, pois j no existe o guardio da
lei.
Voltemos at o ttulo: a lei da polis outra, outra agora. Como a lei do grupo de
Ana C., 43 que ainda no tinha sido editado quando Roquette-Pinto escreve o seu, pelo que
duvidamos se trate de uma referncia intertextual direta. Roquette-Pinto e Ana, ento,
compartilham a preocupao pelas formas de consagrao e de tratamento das figuras do
passado.
Camisa de fora. Musa intil. No entanto, no to intil porque aqui temos um poema
ainda sob o signo de Ana, que discute a tradio herdada, que tensiona a prpria linguagem,
que introduz problemticas novas. Ana mana, ainda: estabelece-se certa cumplicidade
reconhecendo, voc nos desistiu/ ns no te enterraremos. Em um movimento complexo de
participao e ironia, Roquette-Pinto se inclui entre os canonizadores e os reprodutores os
infludos, possessos de Ana C.; mas tambm, se faz irm de Ana, aprovando a desistncia
do futuro de Ana, no numa remisso ao momento do suicdio, mas interpretando essa sada
43
110
na relao que prope com o campo literrio, como um gesto de tomada de posio de Ana
em relao ao campo que viria, cruzado por olhares dirigidos aos eus, como se isso bastasse
para se posicionar, como se bastasse achar individualidades. Como diria Denlson Lopes, Ana
despediu-se do futuro povoado por reality shows (...) testimonios, crticas ntimas,
autoetnografias, autofices (LOPES, 2007, p.178).
a lei da polis seria um divisor de guas, ento, porque inaugura uma nova atitude
perante o mito Ana C.. Se Ana uma musa congelada intil, o melhor , com essa imagem,
fazer poemas: utilizar a intil Ana. Diz Agambem que profanar o improfanvel seria a tarefa
da gerao que vem, e o Roquette-Pinto encena o conflito: eu, vinte e um, as letras to
veredas. Roquette-Pinto faz de Ana C., das tramas da sua consagrao e fama, uma musa
til. A reintegra no uso. Como queria Silviano. Como diz Didi-Huberman, as obras j no
tienen que representar, sino ser, trabajar (2006 [2], p. 269). A noo de uso se trona, ao
mesmo tempo, conceito e programa. Como assinala Joseph Kosuth, em Arte depois da
filosofia, um conhecido ensaio sobre arte conceitual, depois de Duchamp a arte s existiria
conceitualmente, sendo que as obras partem de idias que necessariamente so um comentrio
lanado prpria arte, questionamento que seria a caracterstica principal da arte
contempornea:
Os artistas questionam a natureza da arte ao apresentar novas proposies
quanto sua natureza. [...] Uma obra de arte uma proposio, apresentada dentro do
contexto da arte como um comentrio da prpria arte (KOSUTH, 1976, p.11).
O valor da obra estaria dado, ento, por sua capacidade de interveno direta e de
desestabilizao do campo artstico, do campo discursivo, provocando a redefinio do
circuito e a reflexo crtica. Recolocando, alis, a dicotomia arte/crtica. Portanto, e segundo
continua Kosuth, o artista contemporneo carregaria uma dupla preocupao: a possibilidade
do desenvolvimento conceitual da arte e a realizao desse crescimento em proposies isto
, obras que sejam conseqentes com esse trabalho crtico. A necessidade crtica da obra
no responde a um af de negao da arte anterior, no se enquadraria simplesmente na
tradio de ruptura, mas trataria da sua recuperao vital.
A arte vive ao influenciar novos trabalhos e no por existir como resduo
fsico das idias de um artista. A razo por que diferentes artistas do passado so
revividos que algum aspecto de seu trabalho se torna utilizvel por artistas vivos
(KOSUTH, 1976, p.11).
articulao de uma nova produo. No entanto, o ingresso das outras vozes vivificadas no
produz formas acabadas, tal como acontece com a abertura dos significados na alegoria
benjaminiana. Didi-Huberman, em Lo que vemos, lo que nos mira, analisando as propostas de
Benjamin, diria que:
Existe de hecho una estructura en obra en las imgenes dialcticas, pero ella
no produce formas bien formadas, estables o regulares: produce formas en formacin,
transformaciones, por lo tanto efectos de perpetuas deformaciones (DIDIHUBERMAN, 2006 [2], p.114).
112
a trama simples
to simples que
adormeo
113
Os fs de Ana C.
A escritora Ana Cristina Cesar e a Ktia, aquela cantora cega que fez
sucesso no fim dos anos 70 e que supostamente era afilhada de Roberto Carlos, eram
a mesma pessoa. A concluso do historiador e crtico literrio Thomas J. Cuntprick,
que acaba de lanar o livro Como Ana C. se Tornou Ktia, a Cantora Cega, editado
pela Haak & Haak Press, 218 pginas, R$ 36,00. 44
Eduardo Haak, jovem autor, que tem a internet como suporte predileto, escreve a
resenha de um livro falso, que desvendaria dados ocultos do passado de Ana C. Para quem
topa com o texto num passeio virtual, inevitvel pular para procura do novo livro.
Rapidamente respiramos, sabendo que camos numa piada. A brincadeira no vai longe, no
pretende ir longe, mas efetiva, e demonstra um conhecimento claro, por parte do autor, das
44
Transcrevo o resto do pequeno texto de Haak: Fruto de trs anos de pesquisas, o livro se foca no perodo da
carreira da escritora que vai de 1978 e 1980, tempo em que Ana supostamente fez mestrado em traduo literria
na Essex University, Inglaterra, mas que na verdade, segundo o autor, foi ocupado de outra e insuspeitada forma.
Ana C., num dado momento de sua vida, sentiu-se fortemente tentada a escrever letras de canes romnticas.
Ela sabia que no havia espao para o romantismo desabrido em seu trabalho como Ana C., da ela inventou a
personagem da Ktia, uma cantora cega, afilhada do Roberto Carlos, e pde dar vazo a seu lado cafona, diz o
autor. Ana C., nesse perodo, escreveu coisas como, Todo dia ao amanhecer/ quanto mais tento te esquecer/ mais
me lembro/ no tem jeito, e se apresentou cantando em programas como Globo de Ouro e Buzina do Chacrinha.
Nenhum de seus conhecidos atentou para a bvia igualdade fsica entre Ana C. e Ktia. Antes de qualquer coisa,
no pegava bem para o pessoal da PUC naquela poca ver na TV programas de auditrio. O fato que ningum
entre seus conhecidos reconheceu Ana C. naquela nova personificao, explica o autor. Esse episdio at ento
ignorado da biografia de Ana C. foi revelado a Thomas J. Cuntprick por uma fonte que quer se manter annima.
Posso dizer apenas que ele era um professor de semitica da PUC que, na poca, participou incgnito do
concurso O cantor mascarado, no programa do Chacrinha. Foi numa dessas apresentaes que o professor viu
'Ktia' nos bastidores do auditrio e a reconheceu como Ana C., mas, por esprit du corps, resolveu guardar o
segredo por quase 30 anos.
114
problemticas centrais da obra de Ana C. e na construo do seu personagem por ela mesma e
pela crtica. Cada frase esconde um tema caro a Ana C., assim como o texto todo se d em
torno da problemtica do autor, e a construo de identidades paralelas para dar lugar a
diferentes personalidades de um mesmo sujeito.
Haak reafirma Ana C. como mito de grande poeta pelo fato de parodiar a sua figura,
de explorar as informaes compartilhadas. A toro nos significados dados chega atravs do
fato de que as brincadeiras apontam, desde todos os flancos e tipos de discursos
testemunhos de contemporneos, escritura potica, exerccio editorial e biogrfico
falseabilidade de toda fama e construo identitria, tanto do mito de poeta quanto dos
possveis contra-mitos.
Talvez o dado mais curioso seja que a anedota que motiva o texto, a descoberta de que
Ana C. e Ktia eram a mesma pessoa, leva a uma pergunta sobre a qualidade do texto de Ana.
Nem nas leituras feitas atendendo aos dados biogrficos, nem as leituras crticas, apareceu a
possibilidade de ler a potica de Ana C. em relao cultura popular. A colocao no fica
completamente fora de lugar se levarmos em conta alguns trechos de poemas, de cunho
propositalmente sentimentaloide, assim como a discusso pela poesia fcil levantada, alis,
por Silviano Santiago em Singular e annimo , ou os poemas ready-made, como Atrs
dos olhos das meninas srias, cpia de um trecho de Manuel Bandeira ou O homem Pblico
N1, fragmento de uma entrevista com Carlos Drummond que depois fora versificado. Todos
esses fatores, tpicos da cultura e a arte pop, mostram a possibilidade de pensar a obra de Ana
C. sob essa luz e, inclusive, a sua figura e o seu sucesso como uma pop star das letras, com
admiradores que escrevem sobre ela.
Ana C. estrela pop; Ana C. de duas caras. Essas proposies assinaladas por Haak
tambm tinham sido trabalhadas, embora em um formato muito diferenciado, por Bernardo
Carvalho em Teatro (1998).
Lembremos, muito rapidamente, a trama do romance Teatro. O texto est dividido em
duas partes: na primeira, Os sos, o protagonista e narrador, Daniel, relata seu envolvimento
numa trama de intrigas em torno a uma srie de atentados, onde se oculta um complexo jogo
de identidades, e de cruzamentos da capacidade da escrita de criar realidades nas quais a
sociedade acredita. Daniel decide escapar da sociedade dos sos, e retorna ao lugar da misria
e a insanidade da qual os pais tinham fugido. Nesta primeira parte, a personagem Ana C.
para quem usaremos as aspas uma atriz porn retirada, e o grande amor de Daniel, quem
repete de forma insistente a iluso truncada de ter formado com ela uma famlia, se no
115
tivesse que fugir. J na segunda parte, O meu nome, trata-se de outro thriller em torno da
descoberta de outro crime. Ana C. aqui um homossexual, estrela de filmes porn, quase
mtica. Ele esteve obscuramente envolvido no assassinato sobre o qual o protagonista,
chamado tambm Daniel, deve procurar informao. Entretanto, a principal caracterstica de
Ana C. ser personagem e musa de estrias imaginadas por seus fs, tratados por uma
psiquiatra que Daniel consulta. Nessa trama, Os sos a primeira parte de Teatro
revela-se como um desses textos feitos por um dos fanticos de Ana C..
Algumas propostas de Teatro parecem essenciais para compreender a sua colocao
em relao ao processo de consagrao de Ana C.
Primeiro, fica exposto o jogo com o nome Ana C., como uma cifra que remete
conflituosamente a uma referncia heterognea. Nem Ana C., nem nenhum outro nome,
servem para identificar sem equvocos uma identidade homognea, mas ainda arrastam a idia
de que alguma vez se acreditou nessa capacidade daqui, tambm, que todas as resenhas do
romance chamem a ateno sobre o fato de o nome no identificar, como se houvesse uma
nostalgia na confiabilidade do nome faz muito tempo perdida.
No entanto, em Teatro, essa nostalgia vira virtude: os nomes protegem da
possibilidade de identificar, so nomes de guerra no para os personagens, mas para o prprio
romance, que, fazendo uso da falibilidade dos nomes, tem mais um elemento para no se
deixar prender em significados prvios, e deixa o fantstico proliferar vontade.
Mas, para alm do nome, no que tange a Ana C. e a sua relao com o processo de
consagrao de Ana, poderamos dizer que Teatro pe em evidncia a importncia da
desapario no mito do Ana C. do romance. Para Ana C., a estrela porn pop, se
constata a construo de uma identidade mtica em que a ameaa do desaparecimento era a
caracterstica principal (CARVALHO, 1998, p. 112). Ana C. encena de forma permanente
uma instabilidade, no apenas na sua personalidade, no seu gnero, mas na sua presena no
texto; ela/ele aparece e desaparece. Essa caracterstica, entretanto, tambm descrita como
um dos principais motivos de seu sucesso, e leva boa parte de seus fs loucura e escritura.
Segundo explica a psiquiatra que trata os casos dos fs, Ana C., era um caso tpico de
dromomania [...] Impulso para a fuga, impulso mrbida para andar (CARVALHO, 1998,
p.125). Os fanticos escrevem histrias compensatrias, que tentam armar uma imagem
estvel para compensar esta condio fugitiva, por um lado, e impalpvel, por outro;
intocvel, sempre.
Pelo que descrevem os relatos mdicos sobre mais de um f de Ana C., o que
os despertava para a loucura era justamente essa impessoalidade, essa condio
116
117
118
CONSIDERAES FINAIS
119
As armadilhas da disperso
No podemos concluir, mas podemos indicar algumas questes que do uma viso geral
das tramas da consagrao de Ana. Se os anteriormente apontados foram os discursos mais
120
significativos no processo, entre eles parece haver um movimento recorrente e tenso entre a
disperso e a captura: vou saltar e me pegam pelo p. Movimento que se acha tanto no seio da
produo de Ana C. onde se d numa permanente tenso entre apario e desapario, entre
vontade de deixar um testemunho e tentativa de desarrumar as pistas , quanto nas leituras da
sua obra sejam aquelas feitas pela famlia, pela mdia, pelos editores ou pela crtica literria.
Como assinalara Martin Jay, o elogio da disperso ou da dissoluo parte da esttica
mais cara ao ps-estruturalismo. Esttica que alicera, por sua vez, uma tica. Tal como
descrevia Foucault: trata-se de uma moral de no permitir que as coisas se tomem como
naturais ou indiscutveis, no la tica de la transgresin, sino la tica del desvincularse de las
formas constitudas (apud. JAY, 2003, p. 83). A disperso proposta pela obra de Ana, e
tambm por muitas das leituras que a escolheram como objeto como tentamos mostrar no
ltimo captulo , inclusive, este meu texto.
Seria pretensioso tentar ler a colocao do meu escrito no meio de todos os outros na
trama das tomadas de posio. Mas tambm seria um grande descuido no faz-lo. O trabalho
rapidamente revelou as minhas filiaes tanto na esttica quanto na tica do desvincular-se.
Tentei, no decorrer do texto, realizar o programa que assinalvamos junto a Reinaldo
Marques: tornar mais transparentes os processos de canonizao ou consagrao literria, os
processos de arquivizao e de escolha, desnaturalizar o que se toma como natural, orgnico,
(...) desvelando seu carter de universo fragmentrio, de artifcio, de construo social, numa
atitude tpica da ps-modernidade, que desconfia do que se presume natural, da verdade
absoluta (MARQUES, 2000, p.35). Assim, o objetivo, inclusive desde antes de comear a
escrita, foi percorrer as leituras de forma crtica, analisando para movimentar certos
lugares comuns na crtica. Traos de Ana C. que se deram por naturais mas que foram, muitas
vezes, armadilhas colocadas pelos interesses de cada um dos discursos e dos leitores, sem
com isso significar que haveria um interesse mais vlido ou mais imparcial pairando sobre os
demais.
Nesse sentido querendo ou no , o presente trabalho encena a mesma pergunta
encenada pela obra de Ana Cristina: existe a possibilidade de evitar essa vinculao? Como
desvincular-se do desvinculado? Qual o limite da disperso ou a desapario? Como no
capturar essa fuga? O encanto do desvincular-se, opo esttica e tica, parece ter sido um
preo alto que pagaram alguns artistas, como Ana. Que radicalizou a desapario e a escrita
num nico movimento suicida.
121
Martin Jay avana sobre a tica do ps-estructuralismo, e diz que se do ponto de vista do
indivduo tal moral sugere um si prprio inestvel que se niega a quedar petrificado em um
personaje totalizador (JAY, 2003, p.93); do ponto de vista comunitrio, a sociedade possvel
seria muito mais difcil de se delinear. Jay traz, ento, propostas de comunidades como
aquelas imaginadas por Bataille a conjurao sagrada, dispendiosa e exttica -; ou Blanchot,
que falava da comunidade inconfessvel; ou a communaut desoeuvre proposta por JeanLuc Nancy.
Em todo caso, outras expresses de comunidades possveis apareceram no transcurso do
nosso analise: chame-se convvio, famlia, amizade, escolhas estticas, citao, escrita-emvozes. Chegamos, assim, a outro trao que percorre os diferentes captulos, as diferentes
narrativas sobre Ana e entendo que atravessa todo o meu texto. A trama afetiva: ela configura
a imparcialidade e a verdade particular, verdade singular e annima de cada uma das
verses sobre Ana.
Quando pensamos numa comunidade em obras, marcada pelas escolhas afetivas, a
ausncia de Ana C. cobra novos sentidos. Como diz Silvio Mattoni, no prlogo a La
conjuracin sagrada, de George Bataille: La amistad que parece una relacin social sin
peso especfico, casi relegada a la esfera del entretenimiento o la banalidad cuando roza el
objeto que la determina, y que es a la vez la muerte propia y la del otro, puede ser la promesa
de una fiesta comn, celebracin de un dios polcefalo (MATTONI, 2003, p.8).
O deus policfalo, que tem muitas cabeas com muitas bocas e vozes, transitoriamente,
adquire um corpo nico em cada texto. Algaravia de vozes, dizia Italo Moriconi. Biblioteca
emocional era o nome escolhido por Ana: Entendo quando Borges diz que imagina o paraso
como uma biblioteca infinita, mas como uma biblioteca emocional, e no como um blefe de
erudito. Queria eliminar todo rano de teoria. (CI, p. 282).
Na escrita de Ana C., nas escritas que tramaram a sua consagrao, figura-se esse deus
policfalo. Como ela dizia, como eu gostaria de dizer agora:
122
I
Enquanto leio meus seios esto a descoberto. difcil concentrar-me ao ver
seus bicos. Ento rabisco as folhas deste lbum. Potica quebrada pelo meio.
II
Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. difcil escond-los no
meio dessas letras. Ento me nutro das tetas dos poetas pensados no meu seio.
Voltemos nossa pergunta primeira: quem , hoje, para ns, Ana C.? A resposta
possvel seria: Ana C. uma srie de discursos e mais um pouco. Esse pouco foi descrito aqui
com diferentes nomes: as pegadas da sua desapario nos textos, as relquias a serem
vitalizadas, o rastro prateado da lesma... Mas, agora, quem Ana C. no podemos nem
queremos saber. O centro da pergunta se trasladou: j no est em Ana C., mas no ns. Que
leitores podemos e queremos ser?
Como diz Derrida, o chamado trabalho do luto, cheio de armadilhas, fica como o
problema a resolver, ativamente. Escrever. Chamar Ana, despert-la, traz-la para entre as
letras e as pginas, mais uma vez, para compreend-la, para ret-la. E quando Ana chegar,
misturada entre as vozes que a evocam, melhor brincar com ela, melhor toc-la, para lutar
contra sua petrificao.
123
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Figura 1, p. 15
Foto de Ceclia Leal - Capa de Correspondncia Incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano,
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Figura 2, p. 17
Cpia digital de Reproduo de fragmento de carta de Ana Cristina Cesar in
Correspondncia Incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999, p.200.
Figura 3, p. 45
Fotos de Zeca Guimares in Nuvem cigana Poesia e Delrio no Rio dos Anos 70 (org.
Sergio Cohn). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007, p.103.
Figura 4, p. 61
Foto Waldo Cesar (1954) in Inditos e dispersos. (Armando Freitas Filho org.) So Paulo:
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Figura 5, p. 67
Foto de Ceclia Leal in 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001, p. 267.
Figuras 6 e 7, p. 67
Fotos de Ceclia Leal in Correspondncia Incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999,
p.107 e pp.108-9, respectivamente.
Figura 8, p. 68
Foto de lbum familiar in Correspondncia Incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999,
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Figura 9, p. 68
Foto in lbum de retazos. Buenos Aires: Corregidor, 2006, p.285.
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Figura 10, p. 68
Foto in Correspondncia Incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999, p.313.
134