Amor Coisificado
Amor Coisificado
Amor Coisificado
Resumo: Neste texto abordamos de que maneira a experincia do amor foi apropriada pelo
sistema capitalista como um produto de consumo e como as relaes humanas em suas
diversas expresses sociais se modificaram atravs dessa mudana de paradigmas
existenciais, inclusive amplificando o processo cultural de subjugao da condio feminina
aos ditames patriarcais.
Palavras-Chave: Relaes Humanas. Capitalismo. Amor. Sexualidade. Consumo.
Abstract: In this text we discussed how the experience of love was suitable for the capitalist
system as a consumer product and how human relationships in its various social
expressions if modified through
this change
of existential paradigms, including
amplifying the cultural process of subjugation of women to patriarchal dictates.
Keywords: Human Relations. Capitalism. Love. Sexuality. Consumption.
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algumas das motivaes existenciais para a configurao do amor lquido e sua inerente
dissoluo das relaes ticas submetidas aos paradigmas mercantis.
As questes apresentadas por Bauman em suas anlises da sociabilidade do homem
contemporneo so uma tomada de conscincia para a transformao do modo de agir
humano nessa realidade triste assolada pelo assombro da ansiedade de uma vida precria,
desprovida de sentido. Com efeito, para que se promova a transformao de uma situao de
degradao existencial, inevitvel que seus problemas inerentes sejam denunciados de
maneira crua. Urge o desenvolvimento de uma prtica tica que valorize a disposio da
alteridade, a afirmao plena da subjetividade do outro, a compreenso mtua dos indivduos
nas suas comunhes afetivas, afirmando-se assim o valor qualitativo do Ser contra o
sistema normativo do Ter, que impe a cada pessoa, submetida ao padro totalitrio de
consumo, a necessidade de gozar a todo custo, ainda que em detrimento da humanidade do
outro, violado sem clemncia. Para Jos Luiz Furtado,
A fantasia do outro ajuda a viver a iluso de que todos os meus vazios interiores
esto preenchidos pelo outro, seu exterior, por sua pessoa viva, ento a beleza do
amado toda tecida de projees, inevitveis, do meu prprio desejo interior, em
seu corpo exterior. Eu deposito nele, como um vu brumoso de beleza e bondade,
todas as fantasias do meu desejo (FURTADO, 2008, p. 43).
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O mundo est, com certeza, cheio de novidades, e o amor tambm deve ser
considerado dentro dessa inovao. necessrio reinventar o risco e a aventura, em
oposio segurana e ao conforto (BADIOU & TRUONG, 2013, p. 14).
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Eis assim a
O amor uma tentativa de penetrar em outro ser, mas s pode ser realizado sob a
condio de que a entrega seja mtua. Em todos os lugares difcil este abandono de
si mesmo; poucos coincidem na entrega e menos ainda conseguem transcender esta
etapa possessiva e gozar o amor como o que realmente : um descobrimento
perptuo, uma imerso nas guas da realidade e uma recriao constante (PAZ,
2006, p. 41).
Ao invs da terrfica represso sexual que tanto maculou a vivncia criadora do amor,
hoje vigora a tambm terrfica permissividade sexual no comrcio corporal e todo o que de
apelo sexual tem elevado valor comercial. Componentes libidinosas foram integradas
sistematicamente ao processo de produo e de circulao das mercadorias nas relaes
pblicas e laborais. O resultado dessa mobilizao e manipulao da energia sexual resultou
na submisso do sujeito, aparentemente satisfeito, ao sistema normativo como um todo e o
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Obviamente que todo ser humano possui pleno direito de experimentar exaustivamente
relaes afetivas em busca da autorrealizao amorosa, mas o elemento criticvel na
conjuntura capitalista inserida nessa sociabilidade fragmentada decorre da irresponsabilidade
tica para com a figura do Outro, imputada como desprovida de interioridade, sentimentos e
valores. Alm da manipulao da energia sexual mediante o uso de tecnologia, a sociedade de
consumo impe suas exigncias econmicas e polticas sobre o tempo do trabalho, do lazer e
sobre a cultura material e intelectual.
Apesar das desigualdades naturais, os indivduos so, agora, nivelados pela mesma
introjeo do universo de necessidades (e de ideias) que interessam s elites dominantes.
Carro, televiso, eletrodomsticos, celulares e outros apetrechos produzidos segundo as leis
mercantis do lucro, so impostos existncia cotidiana das pessoas de forma sub-reptcia,
inconsciente e autoritria. O sujeito narcisista sente um prazer extremo em satisfazer as
necessidades consumistas e essa satisfao serve para paralisar o desenvolvimento da
faculdade crtica, nascendo assim a obrigao fascista ao gozo. No capitalismo tardio o sujeito
obrigado a ser feliz, isto , gozar incondicionalmente, para que assim se submeta ao regime
poltico que legisla apenas em nome daqueles que so economicamente viveis, os bem
logrados profissionalmente. Com efeito, todos esses bens materiais, impostos pela propaganda
da mdia e do mercado, escapam ao controle do indivduo que, sem o saber, vem despojado de
sua personalidade.
Para afirmar sua autonomia e liberdade, no lhe resta outro meio do que a
agressividade ou conformar-se com a estupidez da rotina que lhe imposta: dirigir, manipular
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mquinas mecnicas, perder tempo com a programao banal da televiso que somente
oferece partculas espetaculares de sensacionalismo e entretenimento ruidoso, descansar,
divertir-se, consumir conforme as orientaes heternomas da publicidade, passear nos
grandes templos de consumo da modernidade, amar e odiar o que os outros amam ou odeiam.
Em outras palavras, a integrao do sujeito na sociedade de consumo facilitada pela
concesso de uma (falsa) liberdade dos instintos: A prtica do consumo e da publicidade
degradam o erotismo e o amor, ao dessacralizar os corpos e corromper a imaginao humana
(FREIRE COSTA, 1999, p. 146).
Atualmente o sexo no s utilizado para vender mercadorias marcadas pelos signos
da coisificao humana, mas se torna ele prprio a mercadoria por excelncia que sustenta o
cerne da economia libidinal. Como se chegou a esse estgio de exibicionismo e de consumo
do corpo e do sexo?
trabalhadores fossem reprimidos no corpo e na alma, tanto mais eles renderiam no trabalho,
criando-se assim os corpos dceis da sociedade disciplinar. Daqui derivava, por parte do
sistema capitalista, uma excessiva represso sobre a atividade sexual, ao mesmo tempo em
que ela estimula a satisfao mnima dessa potncia vital recalcada. Hoje, porm, na
sociedade de consumo o capitalismo mudou de ttica. A rigor, o sexo no mais reprimido,
mas, ao invs, ideologicamente manipulado para exaltar a liberdade do prazer que s
podemos ter se abrirmos mos de qualquer crena contrria aos modelos dominantes de
comportamento. Queremos gozar a vida plenamente mesmo que atravs da degradao do
Outro e sem que tambm corramos os riscos provenientes das incertezas provenientes de
toda relao interpessoal. Cerveja sem lcool, caf sem cafena, sexo sem amor. iek
argumenta criticamente que
Hoje tudo permitido ao ltimo homem hedonista: tirar proveito de todos os
prazeres, mas na condio de eles estarem privados da sua substncia, que os torna
perigosos (IEK, 2006, p. 132).
E por isso, segundo o autor, nunca fomos mais prdigos em sexualidade como agora,
mas, tambm, que nunca fomos (neuroticamente) mais insaciveis e insatisfeitos com o sexo
como agora. Esse modo imposto de viver de rotina, de busca de sensaes e prazeres
imediatos se torna a pauta da vida contempornea. A relao amorosa implica um vnculo
privilegiado e mpar com o outro que exclui a escolha de outros parceiros nos mesmos termos.
No se trata de um egosmo do amante para a pessoa amada, na qual eles so incapazes de
reconhecer as demandas do mundo externo; pelo contrrio, justamente a capacidade de amar
o mundo na prpria pessoa amada, dirigindo-lhe um potente afeto amoroso concentrado pela
mais pura expresso sentimental decorrente do mago humano. O amor para o desejo o que
so os sentimentos para as emoes. Conforme Octavio Paz,
O amor escolha; o erotismo, aceitao. Sem erotismo sem forma visvel que
entra pelos sentidos no h amor, mas este atravessa o corpo desejado e procura a
alma no corpo e, na alma, o corpo. A pessoa inteira (PAZ, 1994, p. 34).
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Tal projeto de vida ditado por uma concepo da existncia que depende de uma
perspectiva antropolgica, seja ela religiosa ou filosfica. Ora, essas bases, religiosas e
filosficas, vm em larga medida do Cristianismo em sua expresso originria, que tem como
mensagem o amor. Ns devemos ao Cristianismo a maior parte das caractersticas da pessoa
humana que se define em sua autonomia, sua liberdade, sua conscincia, sua interioridade,
seu sentido universal e seu vnculo social e formador de uma comunidade de pessoas e
destino. Contudo, o regime capitalista dissolve toda dignidade crist autntica e transforma o
prprio iderio cristo em um sistema comercial, no importa em qual vertente sectria.
A mdia hegemnica difunde de forma ampla os modelos da libertinagem e o do
erotismo pornogrfico que tem uma funo compensatria. Ao privilegiar a satisfao da
pulso por si mesma, a sociedade de consumo inventou uma nova norma, a obrigao do
orgasmo que se estende a todas as pocas da vida. Nesta perspectiva hedonista e consumista,
o orgasmo no se traduz na busca de uma comunho com o ser amado, mas em uma srie de
prticas entre dois estranhos que redunda em prazeres solitrios. Em outras palavras, o ato
sexual no envolve, nem contribui para enriquecer uma relao, na medida em que no h
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alteridade. Pessoas, homens e mulheres, se convertem ao nvel das coisas descartveis. Como
aponta Martin Buber,
O amor no principalmente uma relao com certa pessoa. Ele uma atitude, uma
orientao de carter que determina como algum se relaciona com o mundo como
um todo, e no com um objeto de amor. Se uma pessoa ama apenas outra pessoa e
indiferente ao resto dos homens, seu amor no amor, mas uma relao simbitica
ou um egosmo ampliado (FROMM, 2000, p. 57).
vez mais, do sexo. Na cultura contempornea, o sexo esgotou-se em todos os sentidos. Tratase de instaurar a necessidade de recuperar o senso dos valores que qualificam nossa relao
com o outro, pois o sexo que evita o amor, o amor que nega o sexo no pode ajudar um ser
humano a viver. Os jovens so solicitados a ter uma expresso afetiva imediata, como um
telefonema ou uma coligao ao Internet, sem dever respeitar os termos e o sentido da
construo da relao amorosa. Tambm as imagens sensacionais da mdia espetacular e das
fices dos filmes so atualmente marcadas por uma expresso sexual fcil e momentnea.
Enfim, so bastante influenciados pela exibio sexual difusa atravs da pornografia e da
banalizao em uma sexualidade impulsiva contrria aos relacionamentos consistentes, no
importa o quando durem sob o ponto de vista cronolgico.
Na medida em controlada pela publicidade e pelas organizaes comerciais visando
o consumismo, o sistema miditico exibe, como em uma vitrine, a mercadoria divinizada,
transformando-a, ao mesmo tempo, numa significao onde predomina contedos
conservadores: transmite pseudo/valores, pseudo/conhecimentos e acontecimentos em um
jogo de imagens e de iluses, reforando a dominao poltica e ideolgica sobre o poder
criador dos sujeitos imanentes. Difunde, sobretudo, valores (hedonismo,) ligados expanso
do consumo, estimulando o narcisismo visando gratificao imediata de desejos na iluso de
chegar ao pretenso estado de felicidade, recorrendo, para isso, tambm, a toda uma srie de
recursos hipnticos, entre os quais predomina a msica em escala massiva e a exacerbao
catica dos sentidos. Conforme apontam Thiago de Almeida e Graziela Vanni,
Quem seduz faz com que a pessoa seduzida se torne dependente de sua presena,
sinta desesperadamente sua falta a ponto de parar de viver e no pensar em outra
coisa. Todos querem amar e ser amados, somente queremos um consorte para
quebrar as nossas rotinas e sub-rotinas para nos fazer acreditar novamente em
relacionamentos amorosos. E, para manter o sedutor ao seu lado, o seduzido capaz
de fazer loucuras. E se sentir feliz por isso (ALMEIDA & MADEIRA, 2011, p.
26).
manifestao do esprito patriarcal nas relaes sociais capitalistas, pois a mulher se converte
em um mero joguete nas mos dos machos que exercem sobre ela seu poder inquestionvel.
Conforme argumenta Maria Rita Kehl
Nessa dimenso
reificada da vida materialista, os bens de consumo valem muito mais do que as pessoas. Jos
Luiz Furtado aponta que,
Condenada por ser absurda e mitolgica, por contrariar a lgica comercial dos
negcios e da produo capitalista, por ajustar-se mal instituio que deveria
realiza-la, a paixo parece, por toda parte, em nosso mundo, deslocada (FURTADO,
2008, p. 81).
argumentam que
Ter dinheiro aumenta a probabilidade de conseguir a ateno de um maior nmero
de pretendentes, dado referente, sobretudo s mulheres que visam segurana em seus
relacionamentos amorosos. Mas nesse caso a paixo pode estar dirigida para as
coisas que o dinheiro traz e no para a pessoa em si. Comea bem, acaba mal
(ALMEIDA & MADEIRA, 2011, p. 85).
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valesse mais que a minha, minha dedicao faria simplesmente justia verdade e
no diferiria em nada de uma constatao razovel sabiamente motivada
(JANKLVITCH, 1991, p. 48).
O amor uma tentativa de penetrar em outro ser, mas s pode ser realizado sob a
condio de que a entrega seja mtua. Em todos os lugares difcil este abandono de
si mesmo; poucos coincidem na entrega e menos ainda conseguem transcender esta
etapa possessiva e gozar o amor como o que realmente : um descobrimento
perptuo, uma imerso nas guas da realidade e uma recriao constante (PAZ,
2006, p. 41).
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