Resenha o Filme Eles Vivem

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O FILME “ELES VIVEM”: LETRAMENTO CRÍTICO COMO

LENTES PARA ENTENDER A MÍDIA E O CONSUMISMO

Dener Martins de Oliveira1

Introdução

Viagem interplanetária, portal de teletransporte e dominação alienígena.


Parece ser mais um filme de ficção científica que busca direcionar nossa mente
a histórias irreais e fantasiosas. No entanto, estamos falando do filme Eles
Vivem (1988), de John Carpenter, baseado no conto 8 O’clock in the morning
(1963), de Ray Nelson. O filme aposta no exagero da ficção científica como
alegoria para criticar a influência dos meios de comunicação de massa e da
elite econômica na sociedade norte-americana.
John Nada é um homem em busca de moradia e emprego na cidade de Los
Angeles, na década de 80. Para sobreviver, ele aceita um trabalho braçal em
um canteiro de obras. Seu colega de trabalho, Frank, convida-o para morar em
uma área pobre, junto com outros desabrigados. Após ter sua moradia
destruída pela polícia, John encontra na rua uma caixa com vários óculos
escuros. Ao usá-los, John percebe que os óculos podem revelar a verdade
atordoante por trás das publicidades e dos outdoors ao longo da cidade:
“obedeça”, “não questione as autoridades”, “consuma”, “mantenha-se
adormecido”, “compre”, “conforme-se”, “assista TV”, “não pense”. Dessa forma,
a linguagem publicitária passa a ser encarada, conscientemente, de forma
autoritária, por meio do modo verbal imperativo. Ainda com os óculos, John

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Doutorando em Estudos da Linguagem na Universidade Estadual de Londrina (UEL),
e-mail: dener.martins@uel.br

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começa a enxergar alguns indivíduos com fisionomia alienígena. A trama
continua até que John descobre que esses seres alienígenas estão controlando
os humanos, disfarçando-se como pessoas, com o objetivo de explorá-las em
busca de lucro, o que só é possível perceber através dos óculos. A partir daí,
John e seu amigo Frank se integram a um movimento de resistência e iniciam
uma jornada contra a dominação dos alienígenas.

Figura 1 - Cena com publicidades do filme They Live (1988).

Fonte: They Live (1988)2

Na narrativa, os extraterrestres emergem como os principais antagonistas da


trama ao manipularem e explorarem os habitantes da Terra. Eles, ao
representarem na vida real a elite ou até mesmo o governo imperialista norte-
americano, conseguem cooptar a parcela mais rica da sociedade para ajudá-
los a explorar e a esgotar os recursos do planeta e a mão de obra dos seres
humanos em troca de mais lucros. Para tanto, a mídia desempenha um papel
crucial ao envolver os indivíduos em seu discurso, por meio de publicidade e
propagandas televisivas para manter as pessoas alienadas. Nesse cenário em
que as verdadeiras intenções das elites são desveladas, o dinheiro é visto
como um deus, tendo estampada na cédula a mensagem “este é seu deus”. O

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Disponível em: https://www.slantmagazine.com/film/they-live/. Acesso em 23 jan.
2024.

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grande desafio das personagens é, então, interromper o controle inconsciente
alienígena e despertar a sociedade para a realidade.

O filme “Eles Vivem” como crítica à mídia e à sociedade do consumo

Apesar de sua crítica nada sutil ao capitalismo desenfreado, ao consumismo


exagerado e à manipulação midiática, o filme se sai muito bem ao abordar um
assunto contra-hegemônico que ainda é atual. Ao criar uma atmosfera
distópica única e envolvente, o longa se baseia na metáfora dos óculos como
uma lente que revela as ideologias e os interesses econômicos ocultos em
nossa sociedade.
O capitalismo, enquanto sistema de produção que visa o acúmulo de riqueza e
a geração de lucros, produz efeitos diretos na forma como os sujeitos
consomem e se identificam com a mercadoria. Para o sociólogo polonês
Bauman, o consumismo desempenha um papel central na estruturação da
sociedade moderna. O homem, em tempos de modernidade, tende ao
consumismo instantâneo como forma de superar um vazio existencial, vazio
esse que nunca é preenchido, pois, a cada consumo realizado, outros desejam
são criados (BAUMAN, 2008).
O sociólogo observa que o discurso capitalista incentiva à individualização,
onde os laços sociais tradicionais, como comunidades e famílias, tornam-se
mais fluidos e frágeis. As escolhas de consumo passam a ser meios de
expressão da identidade pessoal, substituindo, em parte, as conexões sociais
duradouras. A participação na sociedade apenas se dá por meio do consumo,
de modo que as pessoas buscam constantemente novas experiências,
produtos e estilos de vida como uma maneira de se integrarem ao tecido social
e se afirmarem como indivíduos consumidores. Podemos observar esse
discurso quando um dos integrantes do movimento de resistência tenta alertar
a população: “Eles nos deixaram indiferentes a nós mesmos. Hoje só
pensamos nos lucros”.

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É imprescindível destacar que são os meios de comunicação de massa que
detêm o poder de promover o consumismo desenfreado, sobretudo através da
publicidade, valendo-se não apenas da divulgação de produtos, mas também
do seu discurso hegemônico e da manutenção do status quo, a serviço de
grandes corporações e conglomerados privados. Portanto, “a cultura midiática
assume lugar privilegiado, sendo relevante para as relações de poder
instauradas nas nações imbricadas no sistema global e determinadas pela
ascensão do consumo” (AUCAR, 2012, p. 29).
Essa crítica é retratada explicitamente no longa-metragem, em que a mídia,
controlada pelas elites, tem como objetivo criar a ilusão inconsciente da
necessidade de se manter uma vida determinada pelo consumo e pela
submissão hegemônica, em que predominam “instintos materialistas e
hedonistas adormecidos” (BAUMAN, 2001, p. 95), como podemos observar na
fala do mesmo integrante do movimento de resistência: “A intenção deles de
nos dominar depende da aniquilação de nossas consciências”.

Potencialidades de letramento crítico na sala de aula

Entendemos, tal como qualquer linguagem, que o filme também pode exercer
um papel fundamental na formação crítica de jovens estudantes, uma vez que
tem potencial de inspirar análises e reflexões por uma perspectiva
sociohistórica dos fenômenos contemporâneos. É nesse sentido que o
letramento crítico, quando provocado pela prática pedagógica docente, atua
como um articulador dessa compreensão ativa e consciente da realidade
social, produzindo novas interpretações e produções de sentido.
Por letramento crítico, pensamos na formação do sujeito como cidadão,
promovendo a conscientização crítica que os impulsiona a agir, questionar,
problematizar e desafiar discursos que buscam manter estruturas de poder,
assim como formas de discriminação e de desigualdade social. Em outras
palavras, o “letramento crítico interroga as relações de poder, os discursos,
ideologias e identidades estabilizados, ou seja, tidos como seguros e

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inatacáveis. Proporciona meios para que o indivíduo questione sua própria
visão de mundo, seu lugar nas relações de poder estabelecidas e as
identidades que assume” (CARBONIERI, 2016, p. 133).
Portanto, o referido filme tem potencial de promover o letramento crítico na
medida em que propicia ao aluno a criticidade do modelo capitalista ao utilizar-
se da influência e do controle midiático para promover a alienação dos
indivíduos e, consequentemente, à sua submissão ao sistema hegemônico,
que coincide com os interesses da classe dominante econômica. Eles Vivem
ainda permite desvendar conceitos quase que naturalizados na nossa
sociedade, como individualismo, manipulação midiática, consumismo e o
imperialismo estadunidense.
Ao abordar o filme sob uma perspectiva dos letramentos críticos, o professor
torna os estudantes proficientes em sua capacidade de ler e escrever a
respeito desses conceitos de forma mais consciente, preparando-os para
interpretar, analisar e questionar de maneira crítica os discursos sobre
consumismo e sobre a influência dos meios de comunicação em massa na vida
dos indivíduos, vislumbrando um futuro em que a sociedade possa despertar.

Conclusão

Embora o filme carregue consigo uma estética pouco trabalhada, com efeitos
visuais datados e com mensagens exageradamente explícitas em tons
conspiratórios, ainda assim a crítica social presente, alinhada às cenas
distópicas, garante ao professor o trabalho em sala de aula por uma
perspectiva do letramento crítico na medida em é possível transcender da
ficção para o real, ao abordar situações da realidade material a fim de elucidar
a manipulação da mídia e a influência da propaganda nas nossas relações
sociais e de consumo. Nesse sentido, o professor poderá encarar o filme como
sendo as lentes pelas quais os alunos poderão enxergar a realidade tal como
ela é, submissa e adormecida enquanto eles vivem.

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Referências

AUCAR, B. S. Isto é... Fantástico: televisão, revista eletrônica e consumo no


Brasil. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Departamento de Comunicação Social, 2012. Disponível em <
https://www.maxwell.vrac.pucrio.br/Busca_etds.php?strSecao=resultado&nrSeq
=21174@1> . Acesso em 22 jan. 2024.

BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformação das pessoas em


mercadoria. Tradução Carlos Albertos Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:


Zahar, 2001.

CARBONIERI, D. Descolonizando o Ensino de Literaturas de Língua Inglesa.


In: JESUS, D. M. de; CARBONIERI, D. (org.). Práticas de Multiletramentos e
Letramento Crítico: outros sentidos para a sala de aula de línguas. Campinas,
SP: Pontes Editores, 2016, p. 121-142.

CARPENTER, J. They Live (Eles Vivem) [Ficção Científica]. EUA: Universal


Pictures, 1988.

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