YOUNG, I. M. Desafios Ativistas À Democracia Deliberativa
YOUNG, I. M. Desafios Ativistas À Democracia Deliberativa
YOUNG, I. M. Desafios Ativistas À Democracia Deliberativa
Revista Brasileira de Cincia Poltica, n13. Braslia, janeiro - abril de 2014, pp. 187-212.
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prtica democrtica que vise promover a justia. Estabelecer uma relao crtica
entre as abordagens dessa forma, no entanto, ajuda a fazer uma advertncia
sobre a tentativa de colocar em prtica os ideais da democracia deliberativa
em sociedades com desigualdades estruturais. Esse dilogo tambm revela
tenses que no podem ser completamente resolvidas entre as duas posies.
As personagens
No esforo para associar s personagens uma sensao corporificada, atribu pronomes de gnero especficos a cada uma delas. Essa deciso revela um
dilema perturbador: elas devem ser ambas do sexo masculino, ambas do sexo
feminino ou um homem e uma mulher? Decidir que uma deve ser homem e a
outra, mulher s aumenta o dilema: qual delas deve ser o qu? Ao experimentar
cada opo, descubro que minha atribuio evoca esteretipos indesejveis
de qualquer maneira. Se o democrata deliberativo for homem, essa posio
parece carregar o peso adicional da racionalidade e da calma, e a correspondente ativista feminina parece volvel e movida principalmente pela paixo.
Apesar do risco que permanece de estereotipar o ativista fazendo-o parecer
agressivo, decidi tornar a democrata deliberativa uma mulher e o ativista, um
homem, pois, pelo menos essa atribuio associa mais a mulher ao poder.
Para os propsitos deste ensaio, entendo a democracia deliberativa como
uma viso normativa das bases da legitimidade democrtica e uma receita de
como os cidados devem engajar-se politicamente. A melhor e mais adequada
maneira de conduzir a ao poltica, influenciar e tomar decises pblicas
a deliberao pblica. Na deliberao, as partes do conflito, da divergncia
e da tomada de decises propem solues para seus problemas coletivos e
oferecem razes para elas, criticam as propostas e as razes umas das outras
e esto abertas a ser criticadas. A democracia deliberativa difere de algumas
outras atitudes e prticas na poltica democrtica por exortar os participantes
no apenas a se preocuparem com seus prprios interesses, mas a ouvir e
levar em conta os interesses dos outros, desde que sejam compatveis com a
justia. Prticas da democracia deliberativa tambm tm o objetivo de suspender a influncia das diferenas de poder nos resultados polticos, pois o
acordo entre os deliberadores deve ser alcanado com base no argumento,
e no como resultado de ameaa ou fora.
A teoria da democracia deliberativa expressa, portanto, um conjunto de
ideais normativos, segundo o qual os processos polticos reais so avaliados
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e geralmente considerados insuficientes. As decises polticas devem ser tomadas por meio de processos que envolvam todas as partes potencialmente
afetadas ou seus representantes em um processo de deliberao pblica. Os
deliberadores devem apelar justia e apresentar as razes para suas propostas em termos que consideram que os outros devam aceitar. Fazer isso
exclui a afirmao do simples interesse parcial ou a tentativa de obrigar a
aceitao por meio de ameaas e sanes.
Porm, da forma como a construo, a personagem da democrata deliberativa no apenas encontra, nos ideais da democracia deliberativa, meios
para criticar processos polticos, mas tambm defende processos e aes
para implementar procedimentos deliberativos na democracia realmente
existente, com todo o seu conflito, divergncias e desigualdade econmica,
social e poltica. A democrata deliberativa considera que a melhor maneira
de limitar a dominao poltica e a pura imposio do interesse parcial, e
promover maior justia social por meio de polticas pblicas, fomentar a
criao de espaos e processos de deliberao entre elementos distintos e
discordantes na comunidade poltica. Sendo assim, ela atribui vrias disposies ao bom cidado. A cidad politicamente engajada que quer promover
a justia social procura criticar e debater com aqueles de quem discorda ou
com quem seus interesses inicialmente se chocam em situaes pblicas, em
que tenta convencer os outros de que algumas polticas ou interesses tm
consequncias ou aspectos injustos ou malficos. Mediante argumentao
crtica aberta ao ponto de vista dos outros, ela tem como objetivo chegar a
concluses polticas livremente aceitveis por todos os envolvidos.
Assim como a democrata deliberativa, o ativista apresenta sua postura
como modelo de virtude cidad. Ele est comprometido com justia social
e valor normativo, e com a ideia de que pessoas politicamente responsveis
devem tomar medidas concretas para promov-los. Tambm acredita que o
funcionamento normal das instituies econmicas e polticas da sociedade
em que ele se situa gera ou reproduz problemas profundos algumas leis ou
polticas tm efeitos injustos, estruturas sociais e econmicas causam injustia, animais no humanos e coisas so impropriamente ameaados, e assim
por diante. Uma vez que as regras e as prticas comuns dessas instituies
tendem a perpetuar esses problemas, no podemos corrigi-los dentro dessas regras. O ativista se ope a aes ou polticas especficas de instituies
pblicas ou privadas, bem como a sistemas de polticas ou aes, e quer que
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de ouvir aqueles que se acredita estarem errados, para demandar suas razes
e apresentar argumentos para convenc-los a mudar seus pontos de vista.
Na maior parte do tempo, o ativista declina a interao com as pessoas de
quem discorda. Em vez de basear-se na razo, de acordo com essa democrata
deliberativa o ativista se baseia em apelos emocionais, palavras de ordem,
ironia e tticas de interrupo para protestar e fazer suas reivindicaes.
Portanto, na vida poltica de muitas democracias, comum rotular uma
postura ativista de irracional e at mesmo de extremista. Podem-se interpretar esses prprios rtulos generalizantes como uma jogada de poder cuja
funo descartar todas as afirmaes que questionarem algo bsico sobre
as instituies existentes e os termos em que elas apresentam alternativas
polticas. importante, portanto, considerar a resposta ativista acusao
que lhe fazem, de ser um extremista irracional: essa acusao se baseia em
uma viso muito mais estreita do que razovel.
Com razovel, refiro-me a ter um entendimento de uma gama de alternativas em termos de crena e ao e a julgar de maneira refletida para
decidir entre elas. A pessoa razovel, portanto, tambm capaz de justificar
suas afirmaes e aes aos outros e est disposta a isso. Da forma como
constru sua postura, o ativista uma pessoa de princpios e razovel nesse
sentido. Ele reflete sobre alguns dos problemas que acometem pessoas e
coisas no humanas e tem uma viso sobre algumas das causas sociais desses
problemas que acredita serem alterveis. Ele reflete sobre meios alternativos
para chamar a ateno a eles e conclama outros para que ajudem a corrigi-los,
e geralmente est bastante preparado para justificar o uso de meios especficos em ocasies especficas, tanto a seus companheiros quanto a outros,
por exemplo, reprteres de televiso. Embora seus princpios muitas vezes
o levem a protestar do lado de fora ou a interromper as reunies de pessoas
poderosas de quem discorda, uma de suas principais razes para esse protesto conscientizar um pblico mais amplo dos problemas institucionais
e convencer esse pblico a se juntar a ele para pressionar pela mudana
nas instituies. Apesar de no ser deliberativa, no sentido de participar da
apresentao ordenada de argumentos, a maioria dos engajamentos polticos ativistas pretende comunicar ideias especficas a um pblico amplo.
Usam palavras de ordem, humor e ironia para isso porque os argumentos
discursivos, apenas, no tm muita probabilidade de chamar ateno nem
de inspirar ao (ver Young, 2000, cap. 2).
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nem representao. Alm disso, os trabalhos dessas reunies no so abertos observao geral e no h registro pblico. Observadores e imprensa
s comparecem por convite. A deliberao essencialmente uma atividade
das elites polticas que se tratam com respeito cordial e tentam resolver suas
diferenas. Na medida em que a deliberao excludente nesse sentido e
as decises tomadas nesses rgos deliberativos sustentam e perpetuam a
desigualdade estrutural ou tm outras consequncias injustas e malficas,
diz o ativista, errado recomendar a deliberao a bons cidados comprometidos com o aprofundamento da justia social. Nessas circunstncias
de desigualdade estrutural e poder excludente, os bons cidados deveriam
estar protestando do lado de fora dessas reunies, chamando a ateno do
pblico para os pressupostos usados nelas, para o controle exercido e para
as limitaes ou problemas geradas por seus resultados. Eles deveriam usar
o poder de constranger e expor para pressionar os deliberadores a ampliar
sua agenda e incluir a ateno a mais interesses. Enquanto os procedimentos
de reunies exercerem poder excludente em nome dos interesses das elites
e contra os da maioria dos cidados, os cidados politicamente engajados
que se preocupam com a justia e a preservao ambiental tm razes at
mesmo para as aes destinadas a impedir ou interromper as deliberaes.
Muitas dos milhares de pessoas que encheram as ruas de Seattle em dezembro de 1999, parece-me, tinham essa viso da relao entre deliberao
e protesto. Chefes de Estado ou outras autoridades importantes vieram do
mundo todo a uma reunio da Organizao Mundial do Comrcio (OMC)
para deliberar e tentar chegar a um acordo sobre uma nova rodada de regras comerciais globais. Os manifestantes criticaram a reunio, e muitos
pensavam que ela deveria simplesmente ser suspensa. Eles protestaram
contra os mtodos excludentes da OMC, contra o fato de os trabalhos de
sua comisso serem fechados e de que a prpria reunio de Seattle no fosse
pblica. Alegavam que a OMC uma ferramenta do poder das grandes empresas transnacionais e que suas deliberaes do pouca ateno aos efeitos
do regime de livre comrcio sobre os cidados comuns, principalmente as
pessoas mais pobres do mundo. As deliberaes da OMC no so legtimas
e a agenda da organizao moralmente errada. Enquanto escrevo isto,
alguns dos meus concidados se preparam para protestar contra deliberaes semelhantes no acordo de livre comrcio nas Amricas. No apenas
as reunies so excludentes, mas nem mesmo o documento que elas iro
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por mais uma razo que remete s desigualdades estruturais. Ele teme que a
maioria dos participantes em um ambiente deliberativo to reflexivo venha a
ser influenciada por um discurso comum que, em si, produto complexo da
desigualdade estrutural. Com discurso, quero dizer um sistema de histrias
e conhecimento especializado difundidos em toda a sociedade, que transmite
as generalizaes amplamente aceitas sobre como a sociedade funciona,
teorizadas nesses termos, bem como as normas sociais e valores culturais
a que a maioria das pessoas recorre ao discutir seus problemas sociais e
polticos e as solues propostas. Em uma sociedade com desigualdades
estruturais antigas e numerosas, alguns desses discursos so, nos termos
derivados de Gramsci, hegemnicos: a maioria das pessoas na sociedade
pensa sobre suas relaes sociais nesses termos, seja qual for sua posio
nas desigualdades estruturais. Quando esses sistemas discursivos embasam
um processo deliberativo, as pessoas podem chegar a um acordo que , no
entanto, pelo menos em parte, condicionado por relaes de poder injustas
e que, por essa razo, no deve ser considerado um consenso realmente livre.
Em alguns de seus trabalhos anteriores, Habermas teorizou sobre esse falso
consenso como comunicao sistematicamente distorcida (ver Habermas,
1970)7. Quando esse discurso hegemnico opera, as partes envolvidas na
deliberao podem concordar sobre as premissas, aceitar uma teoria sobre
sua situao e apresentar as razes para propostas que os outros aceitam,
mas, mesmo assim, as premissas e as condies dessa viso mascaram a
reproduo do poder e da injustia.
Os democratas deliberativos se concentram na necessidade de acordo
para dar legitimidade s polticas e teorizam sobre as condies para alcanar esse acordo, mas a ideia de acordo falso ou distorcido parece estar fora
dessa teorizao. Ao abrir a possibilidade de que algum consenso seja falso e
alguma comunicao seja sistematicamente distorcida pelo poder, no estou
me referindo a um consenso obtido por meio da excluso de algumas pessoas
afetadas ou que extorquido por meio de ameaa e coero. O fenmeno
da hegemonia ou da comunicao sistematicamente distorcida mais sutil
do que isso. Refere-se forma como a estrutura conceitual e normativa dos
luz do fato de que Habermas contribuiu muito para as teorias contemporneas da ideologia ou
comunicao distorcida, surpreendente e decepcionante que a sua prpria teoria da democracia
deliberativa, como expressa em Between facts and norms, quase no d espao teorizao da
comunicao distorcida e seus efeitos sobre a legitimidade dos resultados polticos (Habermas, 1996).
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Resumo
Neste artigo, Iris Young discute o papel dos protestos e da ao direta na democracia. Sua
estratgia para avaliar os argumentos a favor e contra a ao direta o dilogo hipottico
entre duas personagens, uma ativista e uma democrata deliberativa. Considerando como
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ambas lidam com os conflitos e desigualdades nas democracias e como definem a boa
cidadania, ela discute os limites e potenciais dessas abordagens tericas e prticas. Revelando conflitos que no podem ser ultrapassados e possveis continuidades entre elas,
a autora destaca que os protestos so to necessrios s democracias quanto o dilogo
e a persuaso. Faz, assim, a crtica ao potencial paralisante da democracia deliberativa,
em sua busca por consensos amplos.
Palavras-chave: ativismo, deliberacionismo, democracia, protestos, ao poltica direta.
Abstract
In this article, Iris Young discusses the role of protests and direct action in democracy. Her
strategy to evaluate arguments for and against direct action is a hypothetical dialogue
between two characters, an activist and a deliberative democrat. Considering how both
deal with conflicts and inequities in democracies and how they define good citizenship,
she discusses limits and potentials of those theoretical approaches and practices. Revealing
conflicts that cannot be bypassed and possible continuities between them, the author
underlines that protests are needed in democracies as much as dialogue and persuasion. She criticises the paralyzing potencial of deliberative democracy, as it attempts to
accomplish broad consensus.
Keywords: activism, deliberative democracy, consensus, protests, direct action.
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