Anais - Viiieiem.vol1 PDF
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Organizao
Bento Silva Santos & Ricardo da Costa
Reviso
Os autores
Edio
Marcus Vincius Rangel & Renan Marques Birro
2011
Todos os direitos dessa edio reservados
ASSOCIAO BRASILEIRA DE ESTUDOS MEDIEVAIS
Avenida Braslia, 117. Cuiab - MT
Caixa Postal 3232
CEP 78060-970
www.abrem.org.br
ndice
ixA Idade Mdia na UFES
Ricardo da Costa (UFES)
1Traio e Crise no Condado de Flandres no Relato de Galbert de Bruges
Ademir Aparecido de Moraes Arias (UNESP)
9A Construo de Um Modelo Ideal de Monarca no Livro de Linhagens do Conde Pedro de Barcelos
Adriana Mocelim de Souza Lima (UFPR)
17As Mudanas nas Imagens do Mtico Artur: de Dux Bellorum a Rei Cristo nas Vises de Nennius e
Geoffrey de Monmouth
Adriana Zierer (UEMA)
27Philosophiae Portus & Arx Philosophiae: Algumas Consideraes Acerca das Imagens da Filosofia no
Jovem Agostinho
Adriano Csar Rodrigues Beraldi (UFES)
35Uma Imagem Oficial de Santidade Feminina: O Processo de Canonizao de Santa Clara de Assis (1255)
Alessandra dos Santos Ferreira (UFG)
Teresinha Maria Duarte (UFG)
41Saber Em Movimento: da Hispania Para Outras Regies Do Espao Medieval
Aline Dias da Silveira (Humboldt Universitt zu Berlin)
51A Realeza Sagrada na Castela do Sculo XIII
Almir Marques de Souza Junior (UFF)
57A Voz e o Gesto Frmulas Mgicas Como Prticas de Religiosidade Germano-Crists na Idade
Mdia
lvaro Alfredo Bragana Jnior (UFRJ)
67Santa Trifina e o rei Artur o Teatro Medieval Breto e a Coleta da Literatura Oral Cltica na
Bretanha do Sculo XIX
Ana Donnard (UFU)
75O cio Santo no Livro I do Tratado De Consideratione (1149-1152) de Bernardo de Claraval
Ana Glucia Oliveira Motta (UFES)
83A Consolidao do Poder Real Aps a Cruzada Albigense
Andr Arajo de Oliveira (UFES)
89Gnero e Vida Religiosa Feminina em La Rioja Medieval: Reflexes Sobre a Documentao Notarial
de Santa Maria Del Salvador de Caas
Andria Cristina Lopes Frazo da Silva (UFRJ)
97A Coita no Cancioneiro De Jograis Galegos: Tentativa de Anlise
Antonio Augusto Domnguez Carregal Universidade de Santiago de Compostela
105Sobre a Afeminao: Vaticnio Da Misoginia?
Arivaldo Sacramento de Souza (UFBA)
113O papel de D. Alfonso XI (1325-1350) como Rex Fidelissimus no Espelho dos Reis do Franciscano
Galego D. Frei lvaro Pais (1270-1349)
Armnia Maria de Souza (FH/UFG/PEM-GO)
123Tambm Filhos de Santa Maria: As Crianas Judias nas Cantigas Afonsinas
Augusto de Carvalho Mendes (PUC-Minas)
131A Sinonmia no Portugus Arcaico: Consideraes sobre as Unidades Lxicas Molher Pblica e Puta
Aurelina Ariadne Domingues Almeida (UFBA)
os dias 12, 13 e 14 de Agosto de 2009 aconteceu, pela primeira vez em Vitria, o VII Encontro
Internacional de Estudos Medievais (EIEM), evento bienal promovido pela ABREM (Associao
Brasileira de Estudos Medievais). A Idade Mdia invadiu a UFES. Duzentos e dezenove inscritos,
seis mini-cursos oferecidos, quatro conferncias, mais de cento e quarenta trabalhos apresentados por
pesquisadores de quarenta e sete universidades nacionais e sete instituies acadmicas do exterior.
Um assombro. No temos informaes mo dos congressos anteriores, mas imaginamos que o VII EIEM
deva ter sido, felizmente, um dos mais concorridos da histria de nossa associao.
A Universidade Federal do Esprito Santo (UFES) nunca havia recebido um evento sobre a medievalidade, muito menos desse porte. Confessamos que a empreitada envolvia uma srie de riscos. Houve
resistncias internas, rumores, suspeitas, dissimulaes. A Idade Mdia, por incrvel que parea, ainda
sofre o preconceito de muitos professores em nosso pas, alguns por considerarem-na mesmo aps Marc
Bloch (1886-1944), Georges Duby (1919-1996), Jacques Le Goff (1924- ) e toda a maravilhosa e revolucionria entourage da Escola dos Annales uma idade das trevas. Outros, por infelizmente entenderem a
universidade gramscianamente, isto , como um espao de disputa (acirrada) de poder, em que os grupos
de pesquisa organizados por professores so partidos polticos, e da pior espcie. Pena.
No entanto, a recepo do magnfico reitor, Rubens Rasseli, foi calorosa. Generosa. Exatamente como
a universitas deve ser um espao de discusso plural em que todas as multifacetadas pesquisa humanas devem (e podem) se manifestar. E assim foi. E que assim seja. Agradecemos publicamente por isso
reitoria da UFES.
Desse modo, com incontida satisfao que apresentamos comunidade acadmica os Anais daquele
encontro. Em dois volumes. Disponvel na Internet, como determina a melhor tradio, qual seja, aquela
que abre as portas a todos, indistintamente. Trata-se de uma preciosa fotografia da natureza das pesquisas
sobre a Idade Mdia levadas a cabo no Brasil nesse incio de sculo XXI. Como natural, a qualidade dos
trabalhos varivel, mas eles demonstram, acima de tudo, que a Idade Mdia nunca esteve to viva em
terras tupiniquins.
Agradecemos ABREM todo o apoio logstico prestado, UFES (e, naturalmente a todas as suas instncias administrativas, desde o Departamento de Filosofia at o CCHN e as pr-reitorias), ao Prof. Dr.
Paulo Sodr (Letras/UFES) pela indicao para organizarmos o evento, aos incansveis monitores, enfim
a todos que, direta ou indiretamente, contriburam para a consecuo de um encontro dessa magnitude
como o da ABREM. A Idade Mdia pulsa, e vigorosamente. Que continue a desbravar novas trilhas
agora em Cuiab. E que bons ventos nos levem sempre adiante.
Ricardo da Costa
Jorge Augusto da Silva Santos
Centro Universitrio Claretiano (SP), CESAT, CNEC, EEEFM, Escola Superior de Advocacia, Faculdade Joo Paulo II, Faculdade de Tecnologia FTC (EAD), Faculdade Saberes, Faculdade Salesiana de Vitria, Faculdade de Tecnologia (BA), Mosteiro de So
Bento (RJ), PUC-Minas, PUC-RJ, Secretaria Municipal de Educao de Guarapari, UCM, UEFS, UEM, UEMA, UERJ, UFBA, UFC,
UFES, UFF, UFG, UFJF, UFMG, UFMS, UFMT, UFP, UFPR, UFRGS, UFRN, UFRJ, UFTC, UFSJ, UFU, UFV, UGF, UnB, UNESP/
Araraquara, UNESP/Assis, UNICAMP, UNIFAI, UNIFRA, UNIMARCO, UNIRIO, USM, USP.
PUC-Chile, Humboldt Universitt zu Berlin, Instituci Catalana de Recerca i Estudis Avanats, Instituto Superior del Profesorado Joaqun V. Gonzlez (Buenos Aires), Universitat Autnoma de Barcelona, Universidad de Buenos Aires, Universidade de
Santiago de Compostela.
ix
Resumo
senta e como se relaciona com os membros da igreja de So Domiciano, o autor devia ser um clrigo
de Bruges, cidade a qual devotava uma fidelidade
superior at aos quadros e hierarquia eclesistica
da regio. Quando da morte de seu senhor, Galbert
j possua uma idade avanada, ao que se supe, e
seu bito talvez seja o motivo de sua obra no ter
sido concluda.
O relato de Galbert mostra, com freqncia,
uma tendncia hagiogrfica em relao ao conde
assassinado. A piedade, o senso de justia, o temor
a Deus, a defesa dos pobres e a crena no exerccio
de uma funo determinada pela Divindade, mostravam a vida virtuosa de seu heri. As circunstncias de sua morte colocaram-no na mesma posio
de um mrtir cristo, motivo pelo qual os cidados
de Bruges e os de Gand disputavam o privilgio de
guardar o seu cadver. Por vezes os fatos relatados
pelo escritor aparecem como decorrentes da vontade e da justia divinas, portanto de difcil compreenso pelos homens. possvel que a narrativa
tivesse sido escrita com a inteno de servir a uma
tentativa de canonizao de Carlos de Flandres e a
presena de um milagre, ocorrido quando de seu
sepultamento, refora essa viso. Entretanto, em
muitas oportunidades, Galbert desliza dos assuntos piedosos para falar de coisas mais mundanas,
como as aes dos cavaleiros e cidados quando
do assassinato e, depois, durante a perseguio
aos responsveis, as disputas entre as diversas cidades flamengas, a luta pelo poder envolvendo os
prncipes da regio e mesmo os reis da Frana e
da Inglaterra. Deixa entrever, em suas linhas, uma
insatisfao corrente no condado em relao ao seu
dirigente, mas cujas crticas explcitas a ele dirigidas acabaram silenciadas aps o seu martrio. Essas caractersticas fizeram desse relato uma fonte
muito apreciada pelos historiadores para estudar a
sociedade medieval do incio do sculo xii.
Com relao ao problema da traio na Idade
Mdia, o texto de uma grande importncia, pois
BIBLIOGRAFIA
Bloch, Marc. Les formes de la rupture de lhommage dans lancien droit fodal. In: ______ Mlanges
historiques. Paris: ditions de lEhess, Tome i, p. 189-209.
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Dhondt, j. Les solidarits medievales. Une socit en transition: la Flandre en 1127-1128. Annales E.S.C.,
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Doehaerd, Rene. Flandrenses dans la Passio Karoli de Galbert de Bruges (1127). Revue belge de philologie et dhistoire. Vol. 71, 1993, fasc. 4, p. 841-849.
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Ganshof, f.-l. Quest-ce que la fodalit? Paris: Tallandier, 1982.
Suger. Vie de Louis vi le Gros. dite et traduite par Henri Waquet. Paris: Les Belles Lettres, 2007.
Resumo
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dentro do reino.
O Rei conquistador. Ao apresentar o rei conquistador como o Rei da Reconquista, o Conde
pode estar estimulando o papel cruzadstico do rei
e consequentemente da nobreza, dentro do panorama da Pennsula Ibrica, s vsperas da Batalha
do Salado, 1340. Ao reavivar o ideal da Reconquista
peninsular na luta contra o infiel, ideal esse gerador da unidade em torno de um ideal comum, o
Conde ao mesmo tempo fortalece o rei e reala o
papel da nobreza, justificando sua funo social.
O Mau Rei. A imagem do Mau Rei pautada
numa Imagem Amoral (no crist e no virtuosa):
rei folom1, cruel, hertico, desleal, no sabe guardar seus amigos, no segue a f de Cristo, alm de
ser adorador de dolos e possuir maus conselheiros.
Tais valores e virtudes associam-se, diretamente, sociedade medieval portuguesa e nobreza, formadas no interior de uma sociedade organizada para a guerra. Guerra que se constituiu
enquanto fator dominante que estrutura a sociedade e sua economia na Pennsula Ibrica medieval (Rucquoi, 1995, p. 217).
Muitos desses valores so equiparados aos modelos transmitidos pelos romances de Cavalaria,
difundidos de forma escrita no sculo XIV. Antes
disso, transmitiam-se por via oral ou na forma de
estratos, fornecendo alimento literrio aos cavaleiros atravs da difuso das epopias: a realidade
histrica misturava-se intimamente com a fico
literria e esta, por sua vez, inspirava e motivava a
prpria realidade (Mattoso, 1987, p. 357).
Um exemplo do perfil do bom rei, apresentado pelo Conde, pode ser encontrado no relato do
que teria dito o Conde Henrique, a seu filho Afonso
Henriques, primeiro rei de Portugal
Filho, toda esta terra que te eu leixo ds Astorga ataa
Coimbra, nom percas ende u palmo, ca eu a gaanhei com
gram coita. E, filho, toma do meu coraom alga cousa,
que sejas esforado e sejas companheiro aos filhos dalgo,
e da-lhe sas soldadas todas. E aos concelhos, faze-lhes
honra, em guisa como hajam todos dereito, assi os grandes
come os pequenos. E faze sempre justia e aguarda em ela
piadade aguisada, ca se um dia leixares de fazer justia
u palmo, logo outro dia se arredar de ti a braa, e do
teu coraom. E porem, meu filho, tem sempre justia em
1. "Este vocablo perteneca al estilo arcaico de los libros de caballera, [...], es evidente que folln en el estilo caballeresco era lo mismo que
traidor o malandrn; [...], follona es anlogamente carcter traicionero; estes vocablos no slo son sumamente comunes en la Edad Media desde
los ms antiguos monumentos, sino que hoy siguen siendo usuales con el mismo significado (COROMINAS, 1954, p. 549-550).
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BIBLIOGRAFIA
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espejos de prncipes (1250-1350). In: Anais da xxi Semana de Estudios Medievales. Pamplona: Departamneto de Educacin y Cultura de Navarra, 1995.
Paredes Mirs, Maria del Pilar. Mentalidade nobiliria e nobreza galega, ideal e realidade na Baixa
Idade Media. Galiza: Toxosoutos, 2002.
Rucquoi, Adeline. Histria Medieval da Pennsula Ibrica. Lisboa, Estampa, 1995.
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Resumo
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m reino prspero. Um rei justo e perfeito. Uma era de felicidade e abundncia. Por que Artur ainda chama tanto a
nossa ateno? Porque no fundo o desejo de um
governante ideal capaz de resolver todos os nossos
problemas ainda seja uma realidade. Ou ainda, a
possibilidade de que, se ele um dia existiu, um dia
retornar, quando mais precisarmos dele.
Ser que houve uma nica imagem sobre este
grande rei e heri? O nosso objetivo provar que
no. Se nas narrativas de origem cltica Artur est
sempre associado figura do rei, nos primeiros escritos latinos sobre este indivduo houve uma modificao, uma passagem da idia de dux bellorum
(chefe guerreiro), nos escritos atribudos a Nennius,
a de rei cristo invencvel, simbologia tecida por
Geoffrey de Monmouth em uma importante obra,
a Historia Regum Britanniae.
Qual a origem de Artur? Se ele existiu algum
dia, era proveniente dos bretes, povo de origem
celta que habitava as Ilhas Britnicas. As populaes que l viviam sempre estiveram em conflito,
jamais havendo a unidade entre eles. A partir do
sculo I houve uma dominao superficial dos romanos no sudeste da ilha, quando estabeleceram
postos comerciais, realizaram a construo de estradas e estabeleceram o Muro de Adriano visando
separar os bretes como os romanos chamaram
os moradores da ilha de outros celtas inimigos,
como os escotos (irlandeses) e pictos (escoceses).
Com o esfacelamento do Imprio Romano do
Ocidente, os anglos e saxes ofereceram proteo
aos bretes contra os inimigos, recebendo terras no
territrio na condio de federados, mas logo deixaram a posio de protetores para a de dominadores, estabelecendo sete reinos independentes no
sculo vi. Toda a terra submetida ficou conhecida
como terra dos anglos ou Inglaterra. Estes reinos
saxes tambm eram competitivos entre si, com
a tendncia dos reinos mais fortes absorverem os
mais fracos. da que surge a lenda arturiana, pois
a existncia de Artur no comprovada pelas fontes. Artur surge assim, como um mito de resistncia
e ligado a um desejo de unificao que nunca existiu na Bretanha aps a sua dominao pelos saxes.
Por isso, de acordo com a lenda, um dia ele voltaria
para unir todos os bretes contra os invasores. Pelo
que sabemos atravs de Nennius, Artur teria sido
um dux bellorum (comandante militar) que venceu
vrias batalhas contra os inimigos, sendo a mais
importante a Batalha do Monte Badon, datada por
uma outra fonte, os Annale Cambriae (sculo x),
como tendo ocorrido no ano 516 (Brunel, 1997, p. 101).
Neste momento de dominao sax, a resistncia dos bretes foi realizada no Pas de Gales e
a figura de Artur se tornou um smbolo de resistncia aos invasores. Assim a sua figura se tornou
um mito. O mito uma explicao simblica da
realidade, ligada aos sentimentos e emoes, visando dar coeso a uma determinada coletividade
(Cassirer, 1972, p. 134). Agrega funes integradoras, mobilizadoras e esclarecedoras.
A imagem de Artur engloba provavelmente
vrios guerreiros em diferentes pocas que realizaram a resistncia contra os saxes. Mas importante salientar que a funo mobilizadora do mito
auxiliava os bretes a terem esperana no futuro ao
acreditar no retorno prximo de Artur para vencer os inimigos, auxiliando-os a serem unidos e se
acreditarem vencedores no campo das idias.
Com a dominao anglo-sax os bretes
fugiram para as montanhas no oeste e norte
(Cornualha, Pas de Gales e Esccia), foram para
o sul estabelecendo-se na Pequena Bretanha, na
Armrica (norte da Frana), fundiram-se com os
conquistadores ou foram mortos. Desta forma, as
narrativas se espalharam. Contribuiu para a popularizao das narrativas arturianas nos territrios
da Inglaterra e Frana a presena de bardos, como
o contador gals Bleheris ou Bleddri que transmitia
as histrias conhecidas pela tradio oral nas cortes (Loomis, 2000, p. 34).
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com quem gera um herdeiro. Estes elementos parecem justificar a posterior dominao dos bretes
pelos saxes. O mau exemplo dado pelo soberano
teria arrastado toda a populao ao paganismo na
viso dos copistas do relato.
curioso notar que os personagens referentes
realeza bret so todos inventados (Faral, 1929,
T. I, p. 95) enquanto que os referentes aos saxes
foram muitas vezes retirados de listas genealgicas
cuja existncia foi atestada, demonstrando o pouco
conhecimento dos cronistas sobre a histria bret
no perodo.
Em contraponto com o rei tirnico, So Germano a figura santa que tenta levar o monarca ao
bom caminho e mudar suas atitudes, sem sucesso.
O cristianismo na Bretanha foi introduzido entre
os sculos iii e iv por missionrios como Santo Albano, e mais tarde com o prprio So Germano.
So Germano (378-448) foi personagem histrico. Esteve duas vezes na Bretanha no sculo
V, tentando extirpar o pelagianismo, uma heresia
que afirmava no serem os humanos culpados pelo
pecado de Ado, o qual era considerado uma falta
individual.
Outros personagens positivos na narrativa de
Nennius so os lendrios Vortimer, filho de Vortigern que teria lutado decisivamente contra os inimigos, mas morrido depois em batalha (Nennius,
2001, cap. 43) e Aurelius Ambrosius, associado por
Gildas, que escreveu a De Excidio et Conquestu
Britanniae (sculo VI), a um soberano vencedor do
Monte Badon (Gildas, 2001, cap. 25 e 26).
Na Historia Brittonum, Ambrsio faz previses
certeiras a Vortigern avisando que seria derrotado
pelos saxes e que debaixo do solo estavam duas
serpentes, sendo que uma delas representava a sua
derrota. Mais tarde, na obra de Geoffrey de Monmouth, este mesmo Aurlio seria o mago Merlin
(Monmouth, 1993, 153-174) e substitui viso das
serpentes pela dos drages, significando igualmente o ocaso de Vortigern.
Voltemos agora para a importncia de Artur
na obra atribuda a Nennius. O guerreiro citado
em dois captulos da obra. O captulo 56 relata as
doze batalhas vencidas por Artur no Monte Badon.
Se ele consegue sair vencedor por seu sentido de
guerreiro cristo, ao contrrio do rei pago Vorti-
gern, pois na ltima batalha, na qual matou sozinho novecentos e sessenta saxes, carregava nos
ombros a imagem da Virgem Maria.
No captulo 73 descrito o tmulo do filho de
Artur, Anir, que teria sido morto pelo prprio pai.
Este captulo do texto est na parte referente s mirabilia da Bretanha e tambm se relaciona a fontes
clticas, pois menciona a marca do co de Artur
durante a caada ao porcus Troynt, acontecimento
que aparece num conto gals chamado Kulhwch e
Olwen. Esta obra embora produzida no sculo xii,
remonta ao sculo vii e fala da caada de Artur (na
obra cltica visto tambm como um rei) ao javali
Twrch Twryth, uma das provas para que o seu primo Kulhwch pudesse se casar com Olwen (Mabinogion, 2000, p. 180-181 e p. 203).
Uma das coisas admirveis que o tmulo de
Anir, o filho de Artur, nunca tinha uma dimenso
exata, mudando de tamanho cada vez que era medido, acontecimento maravilhoso que acaba por se
relacionar com o prprio Artur.
para sua filha Matilde, casada com o conde de Anjou, Godofredo Plantageneta, mas foi usurpado por
Estevo de Blois (1135-1153). A guerra foi deflagrada entre as duas partes, sem que o trono fosse recuperado, mas houve o acordo de que com a morte
de Estevo o descendente de Matilde, Henrique ii,
assumiria o trono, o que ocorreu em 1154. A utilizao da obra foi realizada com sucesso por Henrique, aps o fim da guerra civil, tanto que a mandou
traduzir para o vernculo no ano seguinte a que se
tornou rei, o Roman de Brut, de Wace.
Mas a Historia Regum j continha elementos
importantes baseados na figura de Artur que faziam frente a dinastia capetngia, governante na
Frana. O texto pretendia valorizar o glorioso passado dos bretes, identificando-os aos normandos,
os quais se apresentavam como continuadores da
linhagem bret atravs de seu mais nobre representante, Artur, que aparece no texto de Geoffrey
como um rei cristo invencvel, conquistador de
trinta reinos e do Imprio Romano. Sua ao est
associada ao esprito de Cruzada contra os infiis,
associados no texto com os pictos e escotos (embora de origem cltica, respectivamente escoceses e
irlandeses) e saxes (germanos).
O autor retraa a histria dos reis bretes desde
a sua origem, com Brutus, bisneto de Enias, que
aps vrias peripcias teria chegado atual Inglaterra, ento chamada Albion. De acordo com o
texto, o nome Bretanha proviria de seu fundador,
Brutus. Brutus tambm tinha um companheiro,
Corineus, lutador de gigantes, um modelo de guerreiro pico.
A narrativa se inicia no sculo xii a.c. e segue
at o ltimo rei breto Cadwallader no sculo vii,
passando pelo reinado de Artur, que ocupa um
quarto da obra. Tambm so citados outros reis
como Leir e suas filhas, narrativa inspirada, segundo Loomis (2000, p. 36) no conto oriental Barlaam
and Josaphat.
O autor cita como inspirao autores como Gildas, escritor de De Excidio et Conquestu Britanniae
(sculo vi) e Beda, autor da Historia Eclesistica
Gentis Anglorum (sculo vii), mas muito do que
relata foi inspirado principalmente na Historia
Brittonum (c. 800), texto atribudo a Nennius, que
sofreu vrias interpolaes at o sculo xiii, sendo
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aos quinze anos com o intuito de evitar uma invaso sax. As primeiras aes de Artur demonstram
largueza (isto , generosidade) e carisma pessoal.
Assim, sua coragem e bondade faziam com que todos o amassem.
Embora cite vrios reinados, o que a caracterizaria como uma crnica, a Historia Regum Britanniae no linear; por exemplo, o anncio do nascimento de Artur por Merlin uma antecipao.
Aps Utherpendragon ter assumido por meio da
mgica de Merlin as feies de Gorlois, esposo de
Igraine, o autor prenuncia o futuro glorioso de seu
descendente: nesta noite que ela concebeu Artur,
homem clebre entre todos, o qual foi reconhecido
em seguida por seu senso de honra. (Monmouth,
1993, p. 198)
O relato de Geoffrey aproxima-se das canes
de gesta porque Artur apresentado como um
guerreiro invencvel. O fato de ser um rei-guerreiro
em luta com os pagos e de empreender uma guerra santa contra eles era um motivo do gnero pico.
H tambm elementos da obra que a aproximam do romance, como discursos diretos por parte
do autor e vrias descries sobrenaturais associadas a Artur, como, por exemplo, o Lago Lomond,
causador de prodgios, como o das guias que se
reuniam anualmente para anunciar os eventos maravilhosos que ocorreriam no reino (Monmouth,
1993, p. 212). Tal lago inspirado nas descries de
Nennius sobre As Coisas Admirveis da Bretanha
(Nennius, 2003, p. 248-253).
O relato de Geoffrey tambm criou uma origem fantstica para as pedras de Stonehenge, que
seriam provenientes da frica e foram levadas para
a Irlanda durante a estadia dos gigantes ali. Merlin, por meio de magia, havia trazido essas pedras,
possuidoras de dons curativos, da Irlanda para a
Inglaterra (Monmouth, 1993, p. 185).
Alm valorizar o glorioso passado dos bretes,
identificando-os aos normandos, apresentados como
descendentes de Artur, o relato de Geoffrey tambm buscava fazer frente monarquia francesa e
ao seus principais heris, Rolando e Carlos Magno.
Assim, existe uma clara relao entre Artur e
Rolando, o heri da cano de gesta francesa. Os
anglo-normandos pretendiam dar uma resposta
literria ao rei da Frana, apresentando um heri
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BIBLIOGRAFIA
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et coment par Laurence Mathey-Maille). Paris: Les Belles Lettres, 1993.
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25
Resumo
27
objetivo da comunicao considerar alguns dos mais relevantes aspectos da teleologia da beatitude agostiniana, desde
a apreciao das imagens da filosofia, conforme
evocadas no De beata vita, um dos escritos do ciclo
inicial do pensador. Essa obra, composta por ocasio do 32 aniversrio de Agostinho, em um retiro
em Cassicaco, no norte da Itlia, no fim do outono
de 386 d C, possui a forma de um dilogo. Presentes
esto, alm de sua me, Mnica, seus amigos e
discpulos, Alpio, Licencio e Trigsio; seu irmo,
Navgio; e seu filho, Adeodato. Nela, Agostinho
desenvolve um debate filosfico sobre a questo
da felicidade, e o faz, justamente, atravs de um
aporte imagtico.
Como as entendo, tais imagens se apresentam na obra subsumidas em dois grandes grupos:
o que se reflete na representao do philosophiae
portus (porto da filosofia), onde se encontram de
modo mais prprio e diretamente as influncias do
pensamento pago antigo; e aquele referente arx
philosophiae (pice da filosofia), que representa o
aspecto profundamente cristo de Agostinho.
Longe de serem excludentes entre si, os elementos
presentes nestes dois plos revelam a mais original
relao entre f e razo no que tange noo de
beatitude de nosso pensador. E a sua concluso na
obra a saber, o conhecimento perfeito de Deus
demonstra de modo explcito o acordo estabelecido
entre tais elementos: por um lado, a interpretao
filosfica da Trindade; por outro, a confrontao
entre intelectualidade filosfica e piedosa f.
O prprio modelo utilizado para se pensar a beatitude demonstra-se pago, mais especificamente,
neoplatnico. Nesse sentido, G. Catapano, nos fala
de um dos princpios fundamentais sobre os quais
est erigida a metafilosofia do De beata vita e das
demais obras agostinianas que receberam tradicionalmente a denominao de dilogos filosficos ou,
mais simplesmente, de dilogos . Esse princpio se
revela no programa investigativo, claramente ex-
29
1. Acadmico-ecltico-estoicizante da segunda metade do sculo ii a.C., que, rompendo com posies cticas como as dos acadmicos Arcesilau
de Pitana (scs. iv-iii a.C.) e Carnades (scs. iii-ii a.C.), reelabora algumas das idias de seu ex-discpulo Antoco de Ascalona (sc. i a.C.), na
direo de um ecletismo que seria, grosso modo, aquele adotado por Ccero.
2. E no apenas com Plotino. interessante assinalar aqui a lembrana de G. Catapano, que em Epistolae, 7, i, 2, a doutrina platnica da
reminiscncia defendida como notria descoberta socrtica em termos bem aproximados daqueles presentes no Mnon e no Fdon. Entretanto,
como no se pode comprovar uma leitura direta destes dilogos platnicos por parte de Agostinho, considera-se, amide, que ele teria entrado
em contato tanto com a teoria da anamnese quanto com a maiutica socrtica, atravs de Ccero (cf. Tusculanae disputationes, i, xxiv, 57-58). J
para D. Doucet, citado ainda por Catapano, a fonte de Agostinho nos Soliloquia, quando este critica a opinio dos magni philosophi que no
seno a demonstrao socrtica da imortalidade da alma, desenvolvida no Fdon, fundada na lei dos contrrios seria o De regressu animae,
de Porfrio. Por fim, tambm nos informa Catapano, que para Franco De Capitani, as possveis influncias de Porfrio no excluem as de Plotino
(cf. Catapano, 2006, p.cxxxvii, e notas 368, 371 e 374).
30
Agostinho, diante de tal evidncia, de fato, apodctica, estabelece, ento, a imagem da arx philosophiae. importante notar que essa expresso,
arx philosophiae, cuja traduo imediata, j consolidada pela tradio e adotada aqui, pice da
filosofia, no obstante, pode e deve ser igualmente
entendida como indicando a solidez da f crist,
pois a palavra arcem (gen. arx), empregada por
Agostinho na composio da expresso, abriga
tambm em seu campo semntico a significao de
fortaleza. A relao entre os sentidos de pice
(ou cume) e fortaleza acentuada pelo fato de
que as fortificaes, no raro, so edificadas sobre
promontrios, dada sua bvia posio estratgica.
Assim, devemos entender na referida expresso
tanto o mais alto ponto do saber que, para Agostinho, foi-nos trazido pela revelao crist, quanto
a fora e determinao que devem possuir aqueles
que acolhem verdadeiramente sua mensagem. Assim, o pensador compara a sabedoria advinda da
fortaleza da f de sua me, haurida, segundo ele, de
fonte divina, com as seguintes palavras de Ccero
em seu protrptico, o Hortencius, compostas, como
assevera o prprio Agostinho que o cita, em louvor
e defesa da filosofia:
H certos homens -certamente no filsofos, pois sempre prontos a discordar- que pretendem ser felizes todos
aqueles que vivem a seu bel-prazer. Mas tal falso, de
todos os pontos de vista, porque no h desgraa pior que
querer o que no convm. s menos infeliz por no conseguires o que queres, do que por ambicionar obter algo
inconveniente. De fato, a malcia da vontade ocasiona ao
homem males maiores do que a fortuna pode lhe trazer
bens (Agostinho, 1998, 128).
Por sua vez, na metfora da vida como navegao logo na introduo do De beata vita, relativa
ao philosophiae portus, a primeira imagem da filosofia remete-nos diretamente viso neoplatnica
do retorno da alma ptria inteligvel. No prembulo da obra, Agostinho estabelece uma alegoria
na qual a beatitude identificada como aquilo que,
estando em terra firme, a regio beatitudinis, deve
ser alcanado pelos navegantes, ou seja, todos ns,
homens lanados ao mundo. Claro est que condio existencial do homem a busca do Bem. Ora,
aquele que empreende a busca do Bem assim o faz
porque no o detm, pois s se deseja aquilo que
no se possui. Ademais, recordemos, parte-se aqui
da premissa que todo homem tende naturalmente felicidade. Portanto, conclumos que a vida do
homem sem o Bem irremediavelmente infeliz.
Pode-se, ento, deduzir da, no somente o claro influxo plotiniano, mas tambm certa convergncia
sob Agostinho, mutatis mutandis, do Aristteles
da tica a Nicmaco e sua teleologia eudaimnica,
como tambm de Sneca na sntese estica que ressoa nas pginas do seu De vita beata, cujo ttulo j
indica a flagrante referncia.
Acontece que, apesar de desejada por todos
como um retorno ao verdadeiro lar, tal empresa
nem sempre direta e espontnea. Tendo essa regio um porto de acesso, a filosofia, uns poucos o
conseguem atingir, levados por alguma tempestade, o que poderia ser tomado pela vontade divina.
Porm a maioria, ou se perde na procela ocenica,
que nada mais que a representao das iluses
sensoriais e os sonhos de poder da vida, e nesse
engano orgulhoso, jamais atingiriam o porto, no
fossem os fortes reveses da decepo que os fazem,
ainda que sofrendo, tornar a ptria; ou constituise daqueles que, tendo chegado a idade da razo,
mesmo que se afastem do porto, no vo muito longe, e conseguem se fixar em algum lugar tranqilo
de onde podem orientar como faris alguns navegadores perdidos. H, contudo, uma terceira espcie de navegantes, um meio-termo entre a maioria
perdida e os que realizam obras orientadoras aos
demais. So os que, mesmo ao longo de toda uma
vida de navegao, no olvidam nem da ptria nem
da rota de volta, mas muitas vezes se deixam levar
pelas "douras do caminho ou se perdem em meio
a nevoeiros que impedem o rpido retorno. Porm,
sujeitos s intempries que esto, as vezes so sacudidos por alguma infelicidade e tornam a ptria,
a fim de recuperar o sossego.
Assim, so perceptveis os aportes imagticos
relativos ao retorno felicidade do Bem Uno plotiniano e o seu caminho inverso da processo do
mltiplo para o Uno. Mas deve-se atentar para a
crucial diferena: Como o Uno de Plotino est em
tudo, no necessita do auxlio da Graa; j a viso
da Beatitudo agostiniana eminentemente soteriolgica e, portanto, a felicidade na posse de Deus,
ou de sua sabedoria, , de fato, a nica salvao.
Plotino e a tradio filosfica so, ento, aliados
31
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33
Resumo
35
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Alessandra dos Santos Ferreira & Teresinha M Duarte (UFG / Campus Catalo)
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40
Resumo
41
42
1. Introduo
2. Saber em movimento
O trnsito de intelectuais e os trabalhos de tradues na Idade Mdia possui grande relevncia tanto na formao da cultura europia como na formao das culturas no Norte da frica e Oriente
Mdio. uma grande prova que o saber na Idade
Mdia permaneceu, em muitos casos, um espao de
43
44
3. Averris
A obra de Averris teve um importante papel na
filosofia rabe em funo da traduo e de seus comentrios feitos sobre a obra de Aristteles. Pois,
Averris foi um dos primeiros pensadores medievais a oferecer respostas questo entorno da
harmonia entre a f e a razo. De forma que, este
cordovs muulmano recebeu da escolstica crist
o epteto de o Comentador, dado que seus comentrios de Aristteles propiciaram os primeiros debates sobre a obra do estagirita no ocidente cristo.
Tambm no perodo prspero da escolstica, ou
seja sculo xiii, surgiu a famosa escola averrosta,
cujo representante fervoroso foi Siger de Brabant
(1240-1284) (Vianna, 1964, 35)
Averris (Abu al-Walid Muhammad Ibn Ahmad Ibn Ruschd) nasceu no ano de 1126 em Crdova e morreu em 1198 em Marrakech. Era de uma
famlia ilustre que viveu sob a dinastia dos Almorvidas. Seu av, por exemplo, fora juiz de toda
Andaluzia. Na juventude, Averris estudou direito
cornico, medicina e teologia em Crdova. Ainda
sob o governo dos Almorvidas, Averris teve a
proteo do soberano Yusuf i, contra os religiosos
extremistas. O sucessor de Yusuf i, Yaqub al-Mansur (1184-1199), o qual foi um patrono da cincia e
da arte, tambm apoiou os estudos de Averris, e
tomou esse como seu mdico pessoal. No entanto, o mesmo soberano foi forado a exilar Averris
para Lucena, pois teria sofrido presso de grupos
religiosos extremistas. Segundo orientalistas, esta
teria sido uma manobra poltica, dado que Yaqub
al-Mansur necessitava o apoio destes grupos (Vernet, 1978, p. 43-44). O acirramento da perseguio
aos intelectuais muulmano e no-muulmanos
ocasionou o exlio destes pensadores, sendo que
muitas obras foram queimadas. Neste contexto, decorridos trs anos de sua sada de Crdova,
Averris viaja para Marrakesch, onde morre com
72 anos.
Os comentrios da obra de Aristteles feitos
por Averris causaram drstica reao entre os
telogos muulmanos, alguns dos quais definiram Averris como hertico. No entanto, no h
dvidas entre os especialistas que Averris foi um
homem devoto. Ele respondeu s crticas de seu
tempo da seguinte forma: Aprofundar o estudo
de quanto exista , com efeito, a religio particular
do filsofo; pois no se poderia prestar culto mais
sublime a Deus que o de se tomar conhecimento
de suas obras, levando isto a se conhec-lo em sua
plena realidade (cit. por Vianna, 1964, p. 39).
Sculo mais tarde, em especial as interpretaes da teoria aristotlica sobre a relao da alma,
do corpo e do intelecto levariam os escolsticos a
grandes debates. De fato, Averris foi uma pessoa
de f, que buscou mostrar em seu trabalho o equilbrio entre a razo e a revelao. Algo que seus crticos cristo do sculo xiii, como Toms de Aquino
e Alberto Magno tambm buscaram, apesar de criticarem veemente o cordovs.
4. Maimonides
A comunidade judaica ibrica medieval influenciou e foi influenciada claramente pelo movimento
filosfico e intelectual andaluz. Um grande representante desta comunidade foi Mosche ben Maimon, em rabe Musa Ibn Maimon e na forma latinizada do grego Maimonides, nascido em 1135 em
Crdova. Sua obra uma evidncia do contato das
trs religies, num momento em que essas buscavam respostas para a mesma questo: a harmonia
entre revelao e razo.
Maiomonides, um mdico judeu, escreveu em
rabe para uma comunidade judaica, que no teria dificuldades de entender seus textos, sendo que
esta estava inserida num ambiente muulmano e
que em muitas obras foi preservado as letras hebraicas. Porm, este fato leva-nos tambm a cogitar que suas obras estivessem adereadas inclusive a um pblico no-judeu. Esta observao toma
maior relevncia quando se considera o contedo
de sua obra e o ambiente em que foram escritas,
pois como pensador que transitou por diversas re-
45
alidades sociais e culturais, Maimonides cita filsofos muulmanos como Ibn Baija (Avempace) e
mostra conhecimento dos escritos de al-Farabi e
Averris (Niewhner, 1988, p. 8; LexMa, Bd. 6, 127).
As viagens de Maiomonides e sua famlia pela
regio mediterrnica tiveram incio com a onda de
perseguies ocorridas sob a dinastia Almorvida
em Andaluzia. Depois de 12 anos de mudanas e
viagens pelo sul da Frana, a famlia de Maimonides instalou-se em 1160 em Fez. A partir de 1166
documentada sua estada no Cairo, onde a famlia
de Maimonides dedicou-se ao comrcio de pedras
religiosas. Com a morte do pai e do irmo de Maimonides, esse passa a dedicar-se prtica da medicina com o apoio e sob a proteo do Cadi al-Fadil
(1135-1200), diplomata e conselheiro de Saladim
(1138-1193), at o momento, no qual Maimonides
tornou-se mdico pessoal do filho de Saladim, alMalik (1171-1200). Ao mesmo tempo, Maimonides
exerceu o cargo de representante da comunidade
judaica (Naqid) no Cairo.
Em 1168, Maimonides inicia uma sistemtica interpretao das 248 positivas e 365 negativas
das Leis da religio mosaica e escreve o Livro dos
Mandamentos (Sefer Hamitzvot), no qual ele d
uma nova ordem s 613 leis. possvel que, paralelamente, Maimonides tenha elaborado seu tratado
de quatro volumes sobre a f judaica sob o ttulo
Mischneh Torah (Repetio das Leis), o qual terminado em 1180. Maimonides fundamenta sua preocupao com a lei e seu entendimento, com a convico de que apenas as leis religiosas seriam capaz
de orientar a vida das pessoas, e dentre todas, a lei
mosaica teria alcanado a perfeio (Niewhner,
1988, p. 10).
Apesar de toda a contribuio destas obras
para a comunidade judaica e o meio muulmano,
em que essa estava inserida, o trabalho de Maimonides que mais influenciou o ocidente cristo medieval foi o Moreh Nebukin (O Guia dos Perplexos).
Livro escrito em rabe em 1190, logo traduzido para
o hebraico More nevuchim. Entre 1242 e 1244 More
nevuchin foi traduzido para Latim sob o Ttulo Dux
Neutrorum. Esta obra teve sua disseminao e recepo no sculo xiii na Cristandade latina, tendo
influncia na obra de Toms de Aquino, Alberto
Magno, Mestre Eckhart (Flasch, 2006, p. 139-149) e
46
5. Gerbert de Aullearc
Gerbert de Aurillac, conhecido tambm como Papa
Silvestre II (999-1003), nasceu entorno de 950 na
Aquitnia e foi, antes de seu Pontificado, abade de
Bobbio, Arcebispo de Reims e Ravanna. Sua contribuio para o desenvolvimento da cincia experimental foi de grande importncia, principalmente,
por trazer para Cristandade latina muito do conhecimento e inovaes astronmicas e matemticas
dos tratados rabes, como os nmeros indo-arbicos e o zero. Ele tambm trouxe para o ocidente
cristo um complexo sistema de baco (Clot, 1994,
p. 225-226) e a construo do Astrolbio.
O contato de Gerbert com a Astronomia e a
Matemtica rabe na Catalunha foi descrito por
seu aluno, o cronista Richer de Reims. Richer conta
que Gerbert passou da infncia idade adulta no
Mosteiro de Saint-Graud de Aurillac, at o dia em
que o mosteiro recebeu a visita do Duque de Espanha, chamado Borel. O Abade do lugar pergunta ao
Duque, se na Pennsula haveria pessoas que poderiam ensinar a cincia da Astronomia. Como o Duque confirma tal existncia, o abade pede que esse
escolha algum do mosteiro para receber o ensinamento das cincias. Assim, o Duque leva Gerbert
para o bispo de Vic em Hatton. Sua estada na Catalunha dura de 967 a 970. Depois de sua passagem
por Roma, Gerbert chega Reims, onde o Bispo
Adalberto o nomeia diretor da escola da Catedral.
As aulas lecionadas por Gerbert logo tornaram-se
conhecidas e entre seus alunos encontravam-se Roberto, o piedoso, futuro rei da Frana.
Na histria da cincia, Gerbert considerado
um percursor da cincia experimental. Seu interesse pela cincia, o qual o levou s tradues dos
tratados rabes, foi ligado aplicao prtica do
conhecimento. Ele preparou o caminho para uma
quantidade considervel de intelectuais da Cristandade latina, que nos sculos seguintes, por causa
da busca pelo conhecimento, viajaram por diferentes regies e estabeleceram contatos interculturais
(Molins, 1994, 218).
Muito outros disseminadores do conhecimento
na Idade Mdia poderiam ser citados, como Gerardo de Cremona (1114-1187), Adelardo de Bath
(1080-1160), Daniel de Morley (1140-1210), o judeu Johannes Avendehut, Miguel Escoto, Hermanus Alemanus, Raimundo Llulio e Idrisi. Dos trs
exemplos apresentados, pretendeu-se apenas indicar o movimento do saber da Hispania para outras
regies do medievo e evidenciar a linha condutora de pensamento da maioria destes intelectuais, a
qual seja: provar a harmonia entre a F e a Razo.
6. Concluso
Estes trs exemplos da vida e da obra de intelectuais na Idade Mdia so evidncia e fruto da
riqueza das trocas culturais nas regies mediterrnicas. Tambm so evidncia de que pensadores
cristos, muulmanos e judeus buscavam respostas
para as mesmas questes filosficas e teolgicas:
eles confrontavam suas respectivas Escrituras Sagradas com a obra aristotlica e neoplatnica com o
objetivo de provar a harmonia entre a F e a Razo.
Parece que, na busca pelo conhecimento, as diferenas religiosas tornaram-se barreiras bem menores que no mbito poltico. A circulao de obras e
intelectuais nos mais diferentes espaos medievais,
seja cristo, judaico ou muulmano, uma prova
do quanto errneo explicar a Idade Mdia a partir
de modelos generalizantes, a exemplo do conceito
de Europeizao da Espanha (Ubieto, 1965, p.100113), o qual considera a Civilizao carolngia
como o gnese da Civilizao ocidental.
Quando o historiador alemo Klaus Herbers
critica o conceito de Europeizao, reconhece, no
entanto, que os reinos cristos do norte da Pennsula Ibrica necessitavam de reformas legislativas
de base, a considerar o contexto do repovoamento das regies conquistadas e da organizao de
novos governos. Para tanto, os reinos ibricos poderiam ter utilizado modelos legislativos do outro
lado dos Pireneus. O problema est em caracterizar
este processo e desenvolvimento com a problemtica denominao europeizao da Espanha (Europisierung Spaniens), ressalta o autor. Para alm
deste problema, ainda permanece a pergunta, em
qual pressuposto terico ou ideolgico poderiam
se basear os paradigmas de uma europeizao? Em
crtica a tal categorizao, Herbers coloca que o
47
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48
Resumo
49
51
2. Cruzada e Reconquista
Ao longo de boa parte da Idade Mdia, a Pennsula
Ibrica foi palco de inmeros conflitos e disputas
armadas. Mesmo que a luta entre cristos e muulmanos iniciada com a chegada dos ltimos na
regio em princpio do sculo viii no se caracterizasse na nica forma de conflito armado a permear aquelas terras, ela que mais nos interessa
nesse momento.
Desde fins do sculo xi, o ocidente passou a
encarar o embate com o mundo islmico de forma
distinta. Com a conclamao de Urbano ii Cruzada, a Cristandade Ocidental obteve o argumento
necessrio para canalizar a crescente massa de homens belicosos que se encontravam no seu interior
em direo a uma guerra justa travada em suas
longnquas fronteiras. Mais do que uma luta com
justificativas legtimas, a cruzada se configurou
como uma guerra santa contra aqueles que eram
considerados o inimigos da f catlica.
No tardou muito para que o processo de expanso dos reinos hispano-cristos, conhecido
como Reconquista, fosse prontamente tomado
como mais um episdio daquela Cruzada contra os
infiis.
Ainda que em seus momentos iniciais a Cruzada tivesse como principal palco aquela que era
considerada a Terra Santa Jerusalm a noo
de cruzada logo se alargou a outros territrios em
que a presena muulmana era combatida. Graas
bula do Papa Pascual ii, em 1102, a luta em territrio peninsular se converteu oficialmente em uma
guerra santa, e cada palmo de terra conquistado foi
considerado um engrandecimento da f de Cristo.
por todas estas tierras fuera, con el otorgamiento dell
apstoligo et de la corte de Roma, predicada e pregonada
cruzada por todas estas yentes; et por los grandes perdones que y eran dados, cruzaronse yentes sin cuenta destas
tierras, caualleros et peones, que uinieron a esta batalla
como en romeria a saluarse de sus peccados (Menndez
Pidal, 1955, p.692)
Historicamente enraizada nas mentalidades coletivas castelhanas do sculo xiii, a noo de uma
reconquista constitua-se mais como um mito habilmente utilizado pelas autoridades polticas his-
52
Alm de reparar um mal perpetrado contra a populao crist, a tomada dos territrios do sul peninsular tambm servia prpria f catlica na
medida em que propagava o cristianismo pelas
terras conquistadas. neste mbito que se localiza
a participao da monarquia como principal promovedora desta empreitada militar-religiosa.
Segundo o discurso veiculado pelo Estado, ao expandir a f crist pelas armas, os monarcas castelhanos mostravam-se como realizadores de uma
misso confiados a eles pelo prprio Deus. Esta
ao, alm de expandir a f catlica e proteger (em
carter preventivo) o reino, plantava no imaginrio
coletivo a idia de que o ofcio rgio possui uma
grandeza inigualvel.
Mais do que uma obrigao, esta ao militar
em terras inimigas era vista tambm como um ato
de f perpetrado pelos governantes. Nieto Soria
apontou que esta faceta da realeza guerreira em
Castela fortalecia a prpria instituio monrquica, na medida em que seus representantes eram
apresentados como um modelo de perante a sociedade (NIETO SORIA, 1988, p.80.).
Este rex christianinnimus, modelo de rei cristo, seria aquele que se expunha a toda a sorte de
Tanto a conquista de novas terras, como a defesa dos reinos cristos caracterizava-se como parte
deste pacto estabelecido entre realeza e o Criador.
Nestes episdios de conflito, os reis eram apresentados como figuras primordiais, verdadeiros cruzados perptuos na medida em que estes conflitos
se estendiam por geraes devotando suas vidas ao cumprimento da misso que lhe havia sido
outorgada.
Este ministrio dos reis no se resumia unicamente ao extermnio dos infiis muulmanos. Era
necessrio, em igual medida, repovoar e restabelecer a f de Cristo sobre as novas possesses territoriais. Neste sentido, o discurso rgio procurou enfatizar a transformao de antigos templos islmicos
em igrejas crists. O relato das incurses militares
adquire, neste momento, um tom de regenerao
religiosa das terras e templos conquistados.
Et ell auiendo muy grand sabor de seruir a Dios et de
onrrarle, puno de meter toda su femencia em poner obispos em aquellas cibdades que el ganara de moros. [...]
Despues refizo todas las eglesias que eran derribadas, et
ononrrolas muy bien de las cosas que les conuinien et les
era mester. (Menndez Pidal, 1955, p.333)
Alrededor de las vsperas, el canciller y obispo de Osma,
el maestre Lope y aquel que por primera vez introdujo
la ensea de la Cruz en la torre, entraron en la mezquita,
y, preparando lo que era necesario para que de mezquita se hiciera iglesia, expulsaron la supersticin o hereja
musulmana y santificaron el lugar por la aspersin del
agua bendita con sal, y lo que antes era cubil diablico fue
hecho Iglesia de Jesucristo, llamada con el nombre de su
gloriosa madre (Brea, 1999, p. 102.)
53
54
4. ltimas consideraes
Ao nos remetermos aos diversos aspectos sagrados da realeza, preciso termos em mente que a
prpria utilizao destes elementos, por parte das
instncias de poder, no se fazia de maneira despretensiosa. Faz-se necessrio considerar os prprios anseios e a necessidade da monarquia em se
associar a uma instancia de poder superior a sua.
A veiculao de um discurso que apresentava seus
governantes como pessoas guiadas e auxiliadas
pelo divino fazia parte de um amplo e ambicioso
projeto de propaganda poltica.
No mbito interno do reino, a imagem do rei
cruzado auxiliava ao prprio monarca no processo
de legitimao de seu poder. Castela, ao longo do
Sculo xiii, havia sido palco de sangrentos conflitos internos que opunham realeza e parte da elite
nobilirquica. Frente a uma conjuntura de perene
contestao da autoridade central, existia a necessidade de se buscar elementos que pudessem conceder uma maior credibilidade a autoridade rgia
perante seus pares.
manos. Dentro do movimento de Cruzada em terras hispnicas, estes governantes figurariam como
os principais lderes dos exrcitos da Cristandade.
Os prprios elementos que caracterizavam esta
sacralidade monrquica encontravam-se intrinsecamente vinculados aos aspectos cotidianos da
sociedade ibrica do sculo xiii. Em meio a uma
conjuntura de perenes conflitos religiosos e lutas
fratricidas, a apresentao de uma sacralidade
guerreira da monarquia respondia aos prprios
anseios por um poder que expressasse no s seu
carter legtimo de comunho com o divino, mas
1. Tanto Afonso vi (1072-1109) quanto Afonso vii (1135-1157) utilizaram o ttulo de Imperator totius Hispani.
55
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Nieto Soria, Jos Manuel. Fundamentos Ideolgicos del Poder Real en Castilla (siglos xiii xiv).
Madrid: eudema: 1988.
56
Resumo
57
A Voz e o Gesto Frmulas Mgicas Como Prticas de Religiosidade Germano-Crists na Idade Mdia
lvaro Alfredo Bragana Jnior (UFRJ)
1. Introduo
1. Para uma apreciao mais completa das concepes tericas acerca das leis ou aes que regem a magia e o pensamento mgico cf., dentre
outras obras, DEROLEZ, op. cit., LANGER, op. cit., MEYER, op. cit., PRIEGNITZ, Ines. Eine Betrachtung der Merseburger Zaubersprche mit
Vergleich des Zweiten Merseburger Zauberspruchs mit dem Trierer Pferdesegen, in: http://www.grin.com/e-book/112517/eine-betrachtung-dermerseburger-zaubersprueche-mit-vergleich-des-zweiten#, capturado em 05 de dezembro de 2008; RODRIGUES, op. cit., DUBOIS, op. cit.,
2. No entraremos aqui em consideraes acerca da distino magia privada X magia pblica.
3. No sentido etimolgico daquele que lida com o sagrado.
59
3. As Zaubersprche interfaces
entre paganismo e cristianismo
No mundo germnico, o termo Zaubersprche engloba os encantamentos, (charms, em ingls). Entretanto, uma outra categoria as Segen (bnos)
s vezes erroneamente incorporada como uma tipologia de encantamentos, o que j fora apontado
por Bacon (1952, p. 225). Evidentemente, a questo de um sincretismo de prticas pags germni-
Encantamentos em Antigo-Ingls
Encantamentos em Antigo-Alto-Alemo
Encantamento de defesa
Contra paralisia
Contra exostose
4. Devido ao espao limitado deste artigo no trataremos aqui das relaes entre as prticas de religiosidade germnicas e os elementos
mitolgicos presentes nos textos literrios, principalmente nas sagas.
5. Os corpora apresentados constam dos stios http://www.northvegr.org/lore/anglosaxon_met/index.php, acessado em 15 de junho de 2006 e
http://de.wikisource.org/wiki/Kategorie:Althochdeutsche_Zauberspr%C3%BCche, acessado em 10 de maro de 2005.
6. No sentido etimolgico de popular, do povo.
60
Os romanos, segundo Derolez (1974, p. 223), sumarizaram trs grandes tipos de artes mgicas para
61
8. De forma idntica nota 1, a bibliografia sobre magia, medicina popular e sua relao com a cincia extensa. Cf., por exemplo, como introduo a esses estudos BRONOWSKI, J. Magia, cincia e civilizao. Lisboa: Edies 70, 1986; MAGALHES, Jsa. Medicina folclrica. Fortaleza: Imprensa Universitria do Cear, 1966; OLIVEIRA, Elda Rizzo de. O que medicina popular? So Paulo: Abril Cultural; Brasiliense, 1985.
9. A edio do Herbarium, datada de 1481, encontra-se parcialmente digitalizada para consulta no stio
http://www.abocamuseum.it/bibliothecaantiqua/Book_View.asp?Id_Book=181&Display=P&From=S&Id_page=-1.
Os espaos mais largos entre as palavras procuram corresponder forma grfica encontrada no texto que nos serviu de base para esse artigo.
10. A edio do Leechbook of Bald pode ser encontrada em http://www.archive.org/details/leechdomswortcun02cock. Os espaos mais largos
entre as palavras procuram corresponder forma grfica encontrada no texto que nos serviu de base para esse artigo.
62
11. Os espaos mais largos entre as palavras procuram corresponder forma grfica encontrada no texto que nos serviu de base para esse artigo.
63
5. CONSIDERAES FINAIS
Os textos conservados das Zaubersprche revelam
a intrnseca relao entre palavra e gesto nas prticas ritualsticas germnicas e germano-crists.
Como bem asseverou Wimpf (1975, p. 69) difcil
estabelecer fronteiras rgidas entre aquelas, pois
magia, encantamento e religiosidade acabam se
fundindo em uma s tipologia textual. Interpolaes, simbioses, apropriaes sincrticas de elementos mitolgicos compem o pano de fundo, em
cuja superfcie se insere o texto inscrito, a palavra
pronunciada, a gestualizao requerida. Acreditava-se na eficcia daquelas, pois compartilhavam-se
das mesmas idias bsicas e imagens do mundo.
Cristo ou Wotan, Freia ou Maria, Phol ou um santo, no h diferena: so denominaes de portadores de poder, aos quais as pessoas se colocam
dispostas e das quais se teme esperana de auxlio.
Assim como Wipf, pensamos que o mundo germnico continental e insular at o sculo xi ligava o
64
homem de ento s divindades. quele, circundado por uma natureza plena de sortilgios, augrios
e manifestaes do mundo divino, cabia procurar
entender e desvendar o cdigo, o canal de comunicao com o plano superior. O sacerdote que intercedia, a voz que pedia, o gesto que clamava eram
as manifestaes visveis da crena invisvel no poder de deus(es). Conheciam-se e aplicavam-se pomadas e ungentos feitos a partir de plantas, contudo, a medicina popular tambm fazia parte do
plano divino, pois que a natureza o campo do(s)
deus(es). Desta forma, as frmulas mgicas em antigo-ingls e antigo-alto-alemo, mesmo presas ao
passado longnquo, evidenciam as transformaes
do pensamento e das prticas de religiosidade, em
que a oralidade, fixada posteriormente na escrita, e
o gesto por ela sugerido conduzem o homem, suas
inquietaes e dvidas at os dias de hoje.
BIBLIOGRAFIA
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Wipf, k.a. Die Zaubersprche im Althochdeutschen, in: Numen, vol. 22, Fasc. 1, 1975, pp. 42-69.
65
66
Resumo
tragdia Santa Trifina e o Rei Artur (Santez Tryphina hag ar Roue Arthur) se insere no repertrio da literatura oral bret
que fruto de uma tradio teatral atestada desde
o sculo xi. No meio rural da Bretanha, no sculo
dezenove, as encenaes de tragdias entre camponeses e artesos semi-letrados tornaram-se objeto
de atrao turstica para os franceses, que viam
naqueles espetculos o pitoresco de uma cultura
cltica, tida como rstica e atrasada aos olhos de
eruditos romanistas universitrios e da burguesia
parisiense. Revela-se ento a grande ironia entre
cultura letrada e cultura oral popular numa Bretanha distante do centro, na periferia de um mundo
que ainda no entendia a enorme contriuio das
tradies literrias celticas entre medievalismo,
folclorismo e coleta de literatura oral no final do
perodo romntico.
67
obra e a tradudora desta tragdia nos reporta ainda que, somente Henri Martin, historiador vindo
de Paris para o Congresso e que no comprendia
o breto, chorava de emooe ainda, segundo
Franoise Morvan, este teatro popular breto de
origem medieval, era visto como um produto de
brbaros aos olhos dos letrados da cincia erudita
romanista.
Anatole Le Braz defender anos mais tarde
sua tese sobre o teatro cltico na Universidade de
Rennes (1905) diante do juri composto por Georges
Dottin et Joseph Loth. Naquela poca, os estudos
literrios clticos se dividiam entre aqueles que
representavam o saber institucional universitrio
e que assim eram tidos como os celtisantes , e
aqueles que, fora dos muros das academias, clamavam por uma literatura bret singular e cltica,
detentora de uma memria entre saber letrado e
oralidade. Dentro deste contexto de euforia romntica que havia se espalhado pela Europa, estes folcloristas foram designados como celtomanacos
- estigma que lhes valeria muitos dissabores nos
anos que se seguiram.
Dentre os celtomanacos folcloristas e etnlogos estavam tambm os representantes de um
neo-druidismo romntico que, como as sociedades
de folcloristas, pregavam um retorno s fontes drudicas de uma Bretanha esquecida. O grupo dirigido por Hersart de la Villmarqu o BreuriezBreizh se dizia nao-drudico, mas estava ligado
de maneira consistente ao grupo neo-drudico da
Gorseed do Pas de Gales, fundado em 1838 pelo
archi-druida Cawrdaf. No contexto do Bretonismo
movimento breto pela recuperao da cultura
cltica da Bretanha e do regionalismo francs, foi
fundada a primeira sociedade drudica bret, logo
aps a exposio Universal de Paris, em junho de
1900, tendo como primeiro archi-druida Jean Le
Fustec e em seguida Yves Berthou, poeta, folclorista
e visionrio cuja obra no deve ser neglienciada.
Porm, a recuperao de mitos de um passado en-
69
1. Sobre o neo-druidismo enquanto movimento literrio ver Donnard, Ana As origens do neo-druidismo: entre Tradio Cltica e Ps-Modernidade So Paulo: Revista de Estudos da Religio n2/2006, pp. 88-108. Disponvel em: http://www.pucsp.br/rever/rv2_2006/p_donnard.pdf
2. Sobre as circunstncias ideolgicas e polticas do celtismo breto consultar: Le Stum, P. Les Origines Bardiques Du Mouvement Breton
(1900-1914), mmoire de matrise, dact. Brest, 1985. Guyomar, J-Y., Rgionalisme, fdralisme et minorits nationales en France entre 1919
et 1939 Le Mouvement social, n 70, pp. 89-108. Para uma nova etapa modernisante sobre os estudos clticos ver Brown, T. (Ed.) Celticism,
Studia Imagologica,-Amsterdan Studies on Cultural Identity, n8, Rodopi, 1996
3. Estes aspectos no cabem neste trabalho mas remetemos o leitor aos estudos publicados sobre a identidade bret no curso das novas teorias
em cincias sociais na Frana: Simon, P-J, La Bretonnit une ethnicit problmatique, pur/ Terre de Brume, 1999. Le Coadic, R., Lidentit
bretonne, pur/Terre de Brume, 1998. Carrer, P.L'envers du dcor - Ethnopsychiatrie en Bretagne et autres terres celtes, Essais, Coop Breizh, 1999. Morvan, F. Le Monde comme si. Nationalisme et drive identitaire en Bretagne, Actes Sud, 2002.
70
4. A sintese de Gwennol Le Menn est disponivel no mercado de livros e uma referncia obrigatria. Ver a bibliografia em fim de artigo.
5. O termo mdio-breto designa o estado da lngua entre 1100 e 1650.
6. Esta palavra se inscreveu na toponmia da Bretanha: Goariva na Cornualha e no Tregor, Goarivan na regiao do Leo e Houariva na regio de
Vanes.
7. Os manuscritos das peas escritas em versos so todos anteriores a 1650.
71
Resumo da tragdia
Trifina, princesa de Hibernia (Irlanda) a esposa
de Artur rei dos Bretes. Seu irmo Kervoura, ajudado pela parteira da rainha, sequestra seu filho
e consegue convencer o rei dos Bretes que Trifina
havia assassinado a criana. Na verdade, Kervoura
havia enviado o beb para a Inglaterra para salvar
o rei ingls que, no seu leito de morte, deveria comer a carne fresca de um recm-nascido bebendo o
72
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Resumo
tragdia Santa Trifina e o Rei Artur (Santez Tryphina hag ar Roue Arthur) se insere no repertrio da literatura oral bret
que fruto de uma tradio teatral atestada desde
o sculo xi. No meio rural da Bretanha, no sculo
dezenove, as encenaes de tragdias entre camponeses e artesos semi-letrados tornaram-se objeto de atrao turstica para os franceses, que viam
naqueles espetculos o pitoresco de uma cultura
cltica, tida como rstica e atrasada aos olhos de
eruditos romanistas universitrios e da burguesia
parisiense. Revela-se ento a grande ironia entre
cultura letrada e cultura oral popular numa Bretanha distante do centro, na periferia de um mundo
que ainda no entendia a enorme contriuio das
tradies literrias celticas entre medievalismo,
folclorismo e coleta de literatura oral no final do
perodo romntico.
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1.A Ordem de Cister foi fundada no comeo do sculo xii por Roberto, abade de Molesmes. Intencionados a viver de acordo com as Regras de
So Bento, seus integrantes eram divididos em dois tipos: os monges de coro, habitualmente padres, que possuam uma boa educao e os irmos leigos, que cultivavam os campos. Sendo assim, a Ordem possibilitava a muitos homens de famlia simples a oportunidade e ingressar para
a vida religiosa. Cister buscava sua prpria auto-suficincia, mantendo em suas terras o cultivo agrcola e rebanhos. Por volta de 1099, Roberto
retorna Molesmes, deixando a abadia sob a administrao de Alberico (1099-1100), perodo em que a Ordem Cisterciense foi reconhecida pelo
papa. Anos mais tarde sob a direo de So Bernardo de Claraval, Cister prosperou rapidamente, chegando em 1132 a possuir filiais na Frana,
Alemanha, Espanha, Itlia e Inglaterra. Ver mais informaes em: Loyn, Henry. Dicionrio da Idade Mdia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p 94.
2. Duby, George. So Bernardo e a Arte Cisterciense. 1. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 14-15.
3. Aristteles, em seu livro Metafsica, dedicou-se a investigar o que Deus e sua relao com o homem. Para ele a maior felicidade do ser
humano poder se aproximar de Deus e isto s possvel atravs da vivncia da metafsica como cincia. Apesar de esta obra ter sido traduzida
no Ocidente apenas no sculo xiii, suas idias influenciaram fortemente a filosofia medieval.
4. Vila-Ch, Joo J. Sapientia Dei Scientia Mundi: So Bernardo de Claraval e o pensamento do seu tempo. In: Revista Portuguesa de Filosofia. Braga: 2004. v. 60, p. 548.
77
5. Pier Bernardo Paganelli nasceu em Montemagno. Filho de famlia abastada e crist, ele ingressou na Ordem de Cister em 1135, onde se torna
discpulo de Bernardo de Claraval. Em 1145, foi eleito papa sob o nome de Eugnio iii. Dois anos mais tarde, encarregou seu antigo confrade e
mestre, Bernardo, de pregar durante a segunda Cruzada. Convenceu tambm alguns nobres, como Conrado iii (1093-1152), a fazer parte desta
peregrinao armada. Eugnio iii governou a Igreja por oito anos e cinco meses, vindo a falecer no ano de 1153. Foi beatificado em 1872.
6. As virtudes cardeais, ou seja, principais, so quatro: prudncia, fortaleza, justia e temperana; concebidas por Plato em Repblica e posteriormente assimiladas pela Igreja Crist. Ver mais em: Schler, Arnaldo. Dicionrio Enciclopdico de Teologia. Canoas: Ulbra, 2002. p. 479.
Em So Bernardo as virtudes possuem uma conexo harmnica.
7. Igreja est cheia de ambiciosos. Por isso, tu no podes nem mais horrorizar-te com as intrigas e os apetites dos ambiciosos, pois ests como
em uma espelunca de ladres, onde se contempla os esplios dos viajantes. Se s discpulo de Cristo, deveria consumir-te em zelo, e levantar-te
com toda a tua autoridade contra semelhante impudncia e peste geral. [...] Que enrubesam esses negociantes se for possvel; caso contrrio,
que te temam, pois tu tambm tens o flagelo. Que temam os numerrios, e que, ao invs de confiarem no dinheiro, que percam sua confiana;
que escondam seu dinheiro de tua vista, cientes que preferes tir-lo que receb-lo. Caso obres assim, com constncia e dedicao, ters muitos
lucros [100], conseguirs que vivam de ofcios mais honestos, e muitos no se atrevero a conceber negcios semelhantes. Claraval, So
Bernardo de. Da Considerao Livro i.
8. Costa, Ricardo da; Sepulcri, Nayhara. Querer o bem para ns prprio de Deus. Querer o mal s depende de nosso querer. No querer o
bem totalmente diablico: So Bernardo de Claraval (1090-1153) e o mal na Idade Mdia. In: Simpsio Internacional de Teologia e Cincias da Religio, 2., 2007, Belo Horizonte. Anais do ii Simpsio Internacional de Teologia e Cincias da Religio. Disponvel em: <http://
www.ricardocosta.com>. Acesso em: 22 mar. 2009.
9. Perguntais-me o que a piedade? Entregar-se considerao. Talvez repliques que aqui discordo de quem define a piedade como o culto
que se tributa a Deus. No rechao essa posio. Se considerares bem, meu sentido, em parte, coincide com essa expresso verbal. Porque o mais
pertinente ao culto de Deus aquilo que nos pede o Salmo: Cessai de trabalhar e vejais que eu sou Deus. E por acaso no nisso que precisamente consiste a considerao?
10 .Mas nem por isso elas carecem de diferenas: a justia tem afeto, a fortaleza eficcia, a temperana modera a posse. Resta demonstrar
como a prudncia no se exclui dessa comunho. Ela a primeira que descobre e reconhece esse justo meio, durante tanto tempo proposto por
negligncia da alma, recluso no mais recndito pela inveja dos vcios, e encoberto pelas trevas do esquecimento. Por isso, te advirto que so
pouqussimos os que descobrem a prudncia, pois poucos a possuem. Portanto, a justia busca o justo meio. A prudncia o encontra, a fortaleza
o defende, e a temperana o possui.
78
4. O cio santo.
E o que o cio tem haver com tudo isso?
O cio corresponde ao momento de descanso,
folga ou lazer e que possibilita a atividade intelectual. Na Bblia, ele surge em vrios momentos; horas com valor negativo, horas com valor positivo.
No Gnesis, por exemplo, o cio aparece positivamente aliado contemplao.
Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom. Sobreveio tarde e depois a manh: foi o sexto
dia. [...] Tendo Deus terminado no stimo dia a obra que
tinha feito, descansou do seu trabalho. Ele abenoou o stimo dia e o consagrou, porque nesse dia repousara de
toda a obra da Criao. Tal a histria da criao dos
cus e da terra.11
(Bblia. A.T. Gnesis. p.50 )
J, neste outro fragmento, o cio algo improdutivo, correspondendo a um terreno frtil para as
ms aes.
Jesus equilibra esses valores, e demonstra a im-
79
perguntes o que essa dureza de corao: se j no estremecestes, porque j chegastes nela. [...] Um dia passa
a outro seus pleitos e a noite traz noite sua maldade.
Assim te falta tempo para respirar a bondade ou mesclar
o trabalho com o descanso, e menos ainda um intervalo
de cio...
So Bernardo De Claraval. Da Considerao, Livro I.
5. Concluso
Para So Bernardo todo desconhecimento
reprovvel, principalmente o que compreende a
ignorncia de si mesmo e de Deus. Por isso ele defende com tanta veemncia a importncia da considerao. Por meio dela, possvel detectar e coagir as paixes lascivas, assim como rechaar tudo
que no serve para a prpria salvao. atravs
da considerao que o sem humano pode adquiri
autoconhecimento. Agir sem pensar leva ao erro!
Pois bem, a considerao requer tempo e
atravs do cio santo que a ela encontra este tempo. O cio possibilita momentos em que o homem
pode voltar-se para si mesmo e para a criao de
Deus; corrigir os equvocos, se aproximar das virtudes, enfim, aproximar-se de Cristo e do caminho
da salvao.
15. Grandes pensadores gregos e romanos como Aristteles e Ccero, por exemplo, propagavam a idia de que o trabalho manual era algo
indigno, caracterstico dos homens que no entendem, nem contm em si o ideal da contemplao. Apenas no sculo xii, esta concepo se
transformar com Hugo de So Vtor (c. 1096-1141). Ele prope uma reorganizao da educao onde as sete artes liberais (Gramtica, Retrica, Dialtica, Aritmtica, Geometria, Msica e Astronomia), do lugar s tcnicas cientficas e artesanais (Tecelaria, Arte Militar, Arquitetura,
Navegao, Agricultura, Caa e Pesca, Medicina e Teatro).
16. Criado por So Bento de Nrsia (c. 480-550), a Regra de So Bento pretendiam ditar como deveria ser organizada a vida dentro dos mosteiros. Esta obra constituda de um prlogo e 73 captulos. So Bento defende a pobreza pessoal e a obedincia como condio essencial para a
vida dos monges. Os mosteiros deveriam ser uma espcie de escola, onde se ensinaria aos homens a melhor forma de servir a Deus. Para tanto
o dia monstico necessitava organizado em meio a oraes comunitrias, trabalhos manuais e leituras. Loyn, Henry. Dicionrio da Idade
Mdia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p 45-46.
80
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81
Resumo
ois sculos de lutas armada entre as foras occitanas e as tropas aliadas da Igreja
se passaram at que, em primeiro de janeiro de 1229, na conferncia de Meaux um de paz
foi redigido e em 12 de abril do mesmo ano, Raimundo na presena do rei Luis ix, futuro So Lus,
e do cardeal-legado Romain de Saint-Ange prestou
o seu juramento e foi reintegrado comunho crist. O Tratado de Paris foi a pedra que consolidadora da dominao real sobre a Occitania, instalando
suas principais ferramentas: Os Senescais e a Inquisio. Os Senescais trabalhando na reintegrao
poltica e a Inquisio na perseguio dos hereges.
83
no sul.
Segundo uma viso oficial, ao adquirir os
direitos do Simo de Montfort1 devido a relaes
consangneas, Luis viii marcha em seguida para a
cruzada, para livrar a cristandade dos hereges, mas
na realidade entre o recebimento do legado de Simo e a sua sada em 30 de janeiro de 1229, ocorre
um lapso de aproximadamente dois anos.
Pelo perodo de dois anos, aps Luis viii receber o legado e bens de Simo at sua sada para a
cruzada, o rei capetngio trocou cartas com o papa,
negociando sua entrada na cruzada, requisitando
total direito de conquista sobre os vencidos. Inicialmente seu pedido foi negado pelo Papa Honrio iii,
pois a prioridade era a luta contra os muulmanos
no oriente, nas cruzadas para retomar a terra santa.
Enquanto isso Raimundo vii tentou se articular
com a Igreja, para provar sua inocncia perante os
legados papais e assegurar seus direitos de linhagem, que ele havia perdido devido ao seu pai ser
considerado um defensor dos hereges2, mas em 28
de janeiro de 1226 em um parlamento reunido em
Paris sua excomunho foi ratificada, e assim concedendo a Lus xviii o seu pedido.
A cruzada real foi limitada a s algumas operaes militares, pois a presso psicolgica do
exrcito real era tamanha, que muitos senhores se
renderam e partiram para o lado real antes mesmo da chegada dos exrcitos. Essa transferncia
de lados era muito tentadora, devido s promessas
do rei de repouso e calma ao seu lado. (Macedo,
2000, p. 212) Aps uma campanha vitoriosa sobre a
Occitania na volta para Paris, Luis xiii morre pouco antes de chegar.
No dia primeiro de janeiro de 1229 um acordo
de paz foi redigido, e em 12 de abril foi assinado
por Raimundo vii na presena do jovem Lus ix,
1 Simo de Montfort foi o principal lder da Cruzada Albigense na sua primeira fase, a cruzada baronial, devido ao sucesso ao combater
Beziers e Carcassone.
2. O pai de Raimundo vii, Raimundo vi, foi o Conde de Toulouse, sendo esta, principal cidade da Occitania, e principal foco de resistncia.
85
Junto com a cruzada real, ocorreu o inicio da reintegrao de algumas regies, o rei apontava um
funcionrio, chamado de Senescal, para servir de
intermedirio entre as autoridades locais e a coroa.
Os Senescais tinham a funo de defesa, guarda e
governo das terras, reunindo em suas mos atribuies militares, administrativas e judicirias. Com
o auxlio dos Senescais se tornaram possveis a
burocratizao e o lento processo de incorporao
regional.
3. Languedoc significa a terra de Oc, o mesmo que Occitania.
Apesar de fortemente combatida, a heresia albigense, perdurou at o sculo xiv com seus ltimos focos na regio norte da Itlia, aonde a perseguio chegou tardiamente. E assim a heresia
desaparece das fontes, e da viso dos governantes.
Com o fim da heresia, a Igreja se livrou de uma
das maiores ameaas que j presenciou, e com o
auxilio da Igreja o rei conseguiu justificativas religiosas para partir a uma anexao da regio ao
sul, ento se conclui que, a Igreja e o poder real se
consolidaro sobre a regio da Occitania um com
o apoio do outro, e sem tal auxlio ocorreria um
provvel fracasso.
87
BIBLIOGRAFIA
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88
Resumo
ossa comunicao apresenta as primeiras reflexes elaboradas a partir da anlise de 46 textos notariais relacionados
comunidade monstica feminina de Santa Maria
del Salvador de Caas no perodo de 1169 a 1295.
Fundado em 1169, na regio de La Rioja, rea ento pertencente ao Reino de Castela. Este cenbio
estava vinculado Ordem de Cister. Tais reflexes
vinculam-se ao projeto A Vida de Santa Oria e o
monacato feminino em La Rioja no sculo xiii: uma
anlise a partir da categoria gnero, desenvolvido
com o apoio financeiro do cnpq. Nessa investigao, partindo das propostas terico-metodolgicas
de Joan Scott e Jane Flax, discutimos como os saberes sobre a diferena sexual, ou seja, o gnero, atuaram nas diversas relaes de poder estabelecidas
pelas religiosas riojanas. Para tanto, analisamos
trs conjuntos de textos- hagiogrfico normativo e
notarial - compostos para e pelas monjas nos sculos xii e xiii.
89
1. Esta pesquisa vincula-se ao Projeto Coletivo Hagiografia e Histria: um estudo comparativo da Santidade, por mim coordenado, desenvolvida
no mbito do Programa de Estudos Medievais e do Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da Ufrj. O projeto encontra-se registrado no Sigma/Ufrj e no Diretrio de Grupos de Pesquisa do CNPq e recebe financiamento da Faperj, do Cnpq e da Ufrj.
2. Sublinhamos que ao adotarmos a perspectiva ps-modernista de gnero, no utilizamos a categoria como sinnimo de sexo ou como relao
entre os sexos.
3. Este documento uma adaptao da Regra de So Bento elaborada para as mulheres religiosas.
4. As concluses parciais da pesquisa geraram a produo e publicao de diversos textos. Para uma listagem destes materiais ver
www.pem.ifcs.ufrj.br/andreia.htm
91
5. Na documentao notarial o termo conuento significa uma comunidade de religiosos (as) ou clrigos que vivem juntos (Lama, 1979, v. 1, p.
189).
6. Exemplos desta tendncia so os trabalhos de Prez-Embid Wamba, 1986; Diago Hernando, 1996 e Coelho, 2006; Prez Carazo, 2008.
7. Desta foram, confrontamos estes diplomas a outros, contemporneos.
8. Os documentos notariais analisados foram publicados na Revista Berceo e na Coleccin Diplomtica Medieval de La Rioja, obra em vrios
volumes. Para citamos, vamos indicar o nome do editor, seguido do ano de publicao, volume e nmero da pgina, como em Lamas, 1954, v.
30, p. 101-2.
92
a esposa do conde, Aldonza, procedia da famlia galega de Traba, que foram os introdutores da
ordem cisterciense na Pennsula Ibrica (2007, p.
707). A autora defende que foi a partir da unio de
Aldonza e Diego que los Haro se convirtieron ...
en decididos protectores del Cster (2007, p. 672).
Segundo Abad Len, esta foi a quarta comunidade
feminina entregue a Cister na Peninsula ibrica e
a primeira cistercienese de La Rioja (1983, p. 230).
No ano seguinte, 1170, o conde doou comunidade as vilas de Caas e Canillas e um ncleo
prximo a Tironcillo (Lamas, 1954, v. 30, p. 103). Foi
neste momento que a comunidade mudou-se para
Caas. Esta transferncia teria ocorrido devido aos
problemas que as monjas enfrentavam com os moradores de Santo Domingo de la Calzada (Coelho,
2006, p. 46).
Segundo um diploma datado de 1171, aps a
morte de seu esposo, Aldonza, uniu-se a comunidade: trado namque me et commendo in Ecclessia Sancte Marie de Cannas, fazendo a doao de
diversos bens (Lamas, 1954, v. 30, p. 103-4). Como
possvel inferir pelas cartas datadas entre 1169 a
1205, seu papel foi fundamental para a consolidao do mosteiro d Caas nos seus primeiros 35
anos.
Mesmo aps tornar-se dei famula et humilis
Christi ancilla (Lamas, 1979, v. 3, p. 71-72), Aldonza continuou a figurar nos textos notariais com o
ttulo de condessa e, pelo o que indicado na documentao, manteve o controle sobre seus bens.
Desta forma, as cartas registram que ela fez novas
doaes de propriedades ao mosteiro em 1174, ocasio em que todos os que tinham direito aos bens,
por herana, na localidade de Zarratn, renunciaram a tais propriedades formalmente (Lamas, 1954,
v. 30, p. 105-6); em 1187, doou bens situados em
Nalda para D. Lucas, retribuindo servios que ele
prestara a seu marido (Lamas, 1979, v. 3, p. 71-72);
por volta de 1200 patrocinou a construo de um
hospital na strata beati Jacobi, em Navarrete (Lamas, 1979, v. 3, p. 176-7); em 1203 fez novas doaes
a Caas, propriedades na regio de Bauelos (Lamas, 1979, v. 4, p. 13); ainda em 1203 comprou uma
vinha em Adovas (Lamas, 1979, v. 4, p. 14), e em
1205 adquiriu propriedades em Hormilleja e Villamezquina (Lamas, 1979, v. 4, p. 29- 30).
93
condesa doa Urraca que es seora de este mismo monasterio (Lamas, 1979, v. 4, p. 211-2). Dados que permitem corroborar esta hiptese so: na
documentao notarial, Urraca mantm o ttulo de
condessa que, em alguns casos anteposto ao ttulo
de abadessa ou este ltimo sequer mencionado
(Lamas, 1979, v. 4, p. 152-3, 189, 211-2); durante o
seu governo foram realizadas diversas transaes,
sem que figurasse, nos documentos, a anuncia do
conuento (Lamas, v. 4, p. 97, 189, 214-5, 247, 253),
e por fim, estudos realizados nas dependncias do
mosteiro concluem que a maior parte da obra da
igreja, da sala capitular, dos muros que fecham o
claustro baixo e do antigo refeitrio ou dormitrio
foram realizadas a partir de 1236, ou seja, sob a direo de dona Urraca (Moya Valgan, 1973, p. 171).
Durante o sculo xiii, como destaca Diago Hernando (1996, p.89), o mosterio de Caas chegou a
acumular diversos patrimnios, o que inclua senhorios, atravs de um longo e complexo processo
que no possvel reconstruir em detalhes, j que a
documentao lacunar. Contudo, para o estudioso, o patrimnio de Caas era muy modesto y relativamente disperso, en el que se integraron lugares con estatuto jurisdicional mal definido (1996, p.
90). Ainda que contando com um patrimnio modesto, por volta de 1262 Urraca fundou um hospital
para atender aos pobres, com o apoio do convento.
Os privilgios reais tambm ocuparam um papel importante no cotidiano do convento e no s
por razes materiais. Eles expressam o constante
estado de negociao entre as diversas instncias
de poder em Castela: ao mesmo tempo que atestam
a proteo dada pelos monarcas ao mosterio e o reconhecimento de sua funo religiosa, apresentam
restries que so compreensveis luz dos conflitos com a nobreza e que apontam para o reconhecimento do papel exercido pela seora do mosteiro.
Assim, ao conceder, em 1256, o senhorio da vila de
Matute a Caas, Afonso x faz restries: ... que entre y el mio merino para fazer justicia e que non
fagan y mas fortaleza de la que y avie cuando este
mio privillejo fue fecho... la non vendan nin la den
nin la enajenen a dao de mi nin di mis reynos
(Lamas, 1979, v. 4, p. 211-2).
9. Sobre diferentes vises sobre este tema ver Coelho, 2006, p. 147ss, Alonso Alvarez, 2007, p. 702 ss.
10. Nos diplomas, o nome de Aldonza aparece com mltiplas grafias: Aldone, Aldonzia, Alduenza, Esloncie, Endolza e Endulcie.
94
Outro aspecto a salientar a quase total ausncia de referncias a Cister ou ao papado nas cartas
analisadas. S feita uma meno aos cisterciense,
no documento de 1169, que entregava o mosteiro de
Hayola a esta ordem. S outro diploma faz aluso
ao carter monstico da comunidade: o que marca
a entrada de Aldonza na vida religiosa, no qual a
regra de So Bento citada. Alm disso, entre os
testes que figuram nos documentos, h religiosos
de diferentes ordens e no figuram de forma particular face aos leigos. Esta ausncia de referncias
regra ou ordem monstica no pode ser creditada ao carter secular da documentao, j que
rica em topoi de natureza piedosa, como o pedido
de oraes em troca de doaes ou a ameaa de
sanes espirituais caso os acordos fossem constestados ou desfeitos. Talvez apontem mais para um
autonomia da comunidade, e por extenso, certa
resistncia no cumprimento das diretrizes da Ordem em funo dos arranjos familiares locais, das
relaes de poder estabelecidas com o clero local,
pelo papel econmico e jurisdicional exercido, etc.
Quero destacar ainda um ltimo aspecto que
me parece paradoxal. Dos 46 diplomas analisados,
s em oito figuram mulheres como testes. Creio
que este dado esteja relacionado aos saberes sobre
o gnero presentes naquela sociedade que, mesmo
sem serem determinantes, acabaram por restringir
a participao delas nos conselhos das cidades, nas
atividades notarias, etc. Por outro lado, na grande
maioria das transaes, as mulheres atuam como
outorgantes ou outorgadas sem a mediao de representantes masculinos, mesmo no caso de monjas. Na documentao analisada s h trs casos
em que homens atuam como mediadores. Em uma
venda realizada em 1286, Lope Prez, clrigo de
Caas e caseiro de uma propriedade em Hormilleja, a voz del convento (Lamas, 1979, v.4, p. 3834); um ano depois, em duas vendas realizadas por
Mayor Furtada, Juan Martinez, merino da ento
abadessa, Urraca Lpez ii, o intermedirio (Lamas, 1979, v.4, p. 386-8).
Estas informaes sugerem duas interpretaes. Em primeiro, podem apontar para mudanas
no cotidiano da vida religiosa feminina, em especial no tocante autonomia, j que a presena
destes intermedirios pode estar relacionada in-
95
passivas, inocentes, ingnuas ou fonte de perdio, as monjas de Caas so sujeitos de suas aes,
relacionando-se com os diferentes grupos sociais,
atentas aos problemas do sculo, preservando o seu
patrimnio, consolidando alianas e estabelecendo
negociaes.
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96
Resumo
97
1. Introduo
2) As cantigas de amor
Ao analisar este conjunto de textos tendo o nosso
foco de interesse voltado ao lxico do sofrimento
amoroso, seria natural ento centrar a nossa ateno nas cantigas de amor presentes. Aqui nos encontraremos com uma limitao numrica: das 273
cantigas do Cancioneiro de Jograis Galegos, s 51
so de amor (menos de 20%), e aqui onde esperaramos uma maior presena desse tipo de vocabulrio. Ainda contaremos com uma maior limitao,
pois destas composies somente 33 giram ao redor
da coita.
Uma vez tomado contato com os textos, podemos analis-los atravs de uma proposta de classificao temtica.
A presena da personificao do Amor como
culpado pelo estado no que se encontra o poeta
bastante visvel na obra de Bernal de Bonaval, um
dos mais antigos jograis aqui recolhidos, aparecendo mais esporadicamente na obra de Johan Baveca (64,27)2, Pero de Veer (123,7) e Pedramigo de
Sevilha (116,33). Como aponta Ana Esprito Santo
(2007, p. 513), este tema aparece j na lrica occitana, da que os compositores galegos provavelmente tomaro o modelo. O primeiro autor estabelece
uma viva argumentao na cantiga Amor, bem sey
o que mora faredes (22,6), que encerra com uma
splica:
E, poys mi ben e mal fazer podedes,
non mi faades quanto mal sabedes
fazer. Mays dereyt que mi mostredes
o muy gram ben que podedes fazer,
Amor, poys eu son en vosso poder.
Outra postura adotada pelos trovadores a queixa ante Amor pelo mal que agora sofrem. J que
deste a culpa do interesse despertado pela senhor
no poeta, a resposta negativa deve ser responsabilidade tambm de Amor:
Por quanta coyta me faz mha senhor
1. O presente trabalho foi realizado no contexto de atividades englobadas no programa de bolsa de fpi vinculada ao projeto hum 2005-01300,
El vocabulario de los trovadores gallego-portugueses en su contexto romnico do Ministerio de Educacin e Ciencia espanhol, financiado com
fundos feder.
2. As cantigas aqui exemplificadas seguem a numerao e o texto estabelecidos na MedDB, Base de datos da Lrica Profana Galego-Portuguesa,
<http://www.cirp.es> [18/03/09].
99
3. MedDB registra o seu uso nas cantigas de Johan Soarez Somesso (78,2), Roi Queimado (148,1), Vasco Rodriguez de Calvelo (155,8), Pero
dArmea (121,5), Dom Dinis (25,68; 25,14; 25,93), Afonso Sanchez (9,9), Johan Mendiz de Briteiros (73,3).
100
3. As cantigas de amigo
101
102
4. As cantigas de escrnio
Temos relativamente poucos exemplos de cantigas de escrnio no cancioneiro de jograis galegos,
j que dos 273 textos nele englobados, s 48 so
classificadas como tais, e destas s em 4 figura o
termo coita ou algum derivado. O seu uso comum em textos de conotao metapotica, como
a teno entre Loureno e Pero Garcia, Quero que
julguedes, Pero Garcia, na que o ltimo acusa o primeiro de mal trovar:
E pois vos assy travam en trobar,
de vos julgar, senhor, non me coitedes.
(88,13, ii, 6-7)
Outro motivo aparece na teno entre Pero
dAmbroa e Johan Baveca, Joham Baveca, fe que
vos devedes:
- Pero d Anbroa, vs non moredes
dizer cantar, esto creede ben,
se non ben feit e igual; e poren
non digu estes bos, que vs fazedes;
ante digo dos que faz trobador
que troba bem et coita d amor;
e vs por esto non me vos queixedes.
(126,5, ii)
5. Concluso
Podemos observar que o termo coita tem uma
forte presena no Cancioneiro de Jograis Galegos.
Dos onze poetas dos que conservamos cantigas de
amor, s dois deles (cada um com duas cantigas)
no o empregam neste gnero, mas sim o fazem
nas suas cantigas de amigo. Ainda que possa parecer minoritrio o seu uso no total das composies
de amigo (pouco mais de um quinto destas usa o
termo coita), o seu uso para expressar o sofrimento
dos diversos personagens presentes nesse tipo de
cantigas est bem articulado e presente nas cantigas dos principais autores (Bernal de Bonaval, Johan Baveca, Johan Servando, Juio Bolseiro, Pero
dArmea, PedrAmigo de Sevilha), o que demonstra o seu forte enraizamento tambm neste gnero,
com uma aplicao que toma elementos da poesia
culta (latina ou occitana), mas que tambm os reelabora atravs dos seus cdigos poticos prprios.
A coita de amor tece uma estreita relao com os
outros gneros, mas cada um capaz de construir
um modelo especial de uso do termo.
103
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104
Resumo
105
Seria legado cristo a ojeriza aos efeminados? Seria, pois, uma rechaa que toma como parmetro
os ideais cristos ou o modelo de masculinidade?
Ao considerar a masculinidade como resposta, a
partir de quando e quais as estratgias de validao dentro do Ocidente? Qual incmodo provoca a
figura de um homem que deveria ser viril por natureza, mas que perdeu ou nunca possuiu tais
modos e assemelha-se, por demais, s implicaes
femininas?
Todas estas questes precisam ser levantadas
para compreender o significado social, na cenografia trovadoresca galego-portuguesa, da sodomia, que, conforme Mattoso e George Duby (2004;
1989), deve ter sido bastante usual em se tratando
de uma sociedade muito estratificada, na qual havia excluses de jovens nobres do casamento para
no fragmentar o patrimnio familiar, fato que,
Mattoso (2004, p. 28) no hesita em concluir, criava condies propcias a tais prticas.
Essa assertiva de Mattoso perpassa por uma
concepo determinista, seno naturalista, pois
como se os acontecimentos sociais estivessem diretamente ligados a fenmenos da natureza por rgidas relaes de causalidade e leis universais que
excluiriam, por exemplo, o acaso e a indeterminao. Nesse caso, a sodomia no seria talante, mas
determinada pelas condies sociais de excluso da
possibilidade do casamento.
Excetuando tal carter determinista, preciso
compreender o cerne dos postulados do historiador
portugus: o sexo era constantemente problematizado, principalmente, nos exerccios intelectuais
validadores da nobreza e da masculinidade. No
de se estranhar que o que se tem naturalizado de
feminino (aes delicadas, elementos de vaidade,
beleza, fraqueza, entre outros) esteja sempre em
oposio direta ao masculino. De modo que um
discurso solicita o outro na discusso, muito embo-
107
ra tenha sido o homem o responsvel pelo paradigma sexista e, portanto, tenha interpretado o papel
submisso do feminino aplicado mulher.
Como se est discutindo questes relativas
construo social da sexualidade, preciso esclarecer que a masculinidade no implica necessariamente o sexo masculino, tampouco a feminilidade,
o sexo feminino. Esse o paradigma naturalizador de que se tem falado nesta pesquisa. preciso
romper com esse tipo de concepo, porque o fator
biolgico (sexo masculino e sexo feminino) no determina a construo social sobre os corpos (masculinidade e feminilidade), muito menos o natural
(concepo religiosa do corpo).
No medievo, claro, no havia conscincia da
automatizao da relao entre sexo e construo
social feita a partir dele. Por isso, qualquer homem que assimilasse signos que identificassem a
feminilidade provocava logo motivo para chufas
entre diversos trovadores, que viam incoerncia
na associao sexo masculino e construo social
feminina.
Tais relaes podem ser lidas na cantiga 340
(Lapa, 1970, p. 505) provavelmente composta por
Pero dAmbroa em resposta, como informa a rubrica, a Pero dArmea por estoutra [cantiga 373, em
Lapa (1970, p. 553)] de cima que fezera. Na cantiga de Pero dArmea (373), o eu-lrico zomba duma
Donzela que alardeava ser mui fremosa e compara, ironicamente, a beleza dela com a do prprio
cuu se fosse enfeitado com concela (cosmtico
feminino vermelho). Ao final, conclui que o seu
cuu [...] vencer-[la]-ia. Trata-se, portanto, da feira da Donzela cujas partes superiores seriam to
malfeitas que uma parte baixa do corpo, o cuu,
seria mais belo.
A apropriao de elementos femininos, mesmo
que para a stira duma Donzela, no passaria impune. Pero dAmbroa faz uma cantiga em resposta, apropriando-se da imagem do cuu construda
por dArmea. Essas duas cantigas so partcipes da
cena trovadoresca e podem servir de base para discutir a relao entre fico e realidade no perodo
medieval, pois o sujeito potico na cantiga de Pero
dAmbroa estabelece uma relao estreita com o
sujeito emprico Pero dArmea. No que seja essa
uma problemtica do perodo, mas sim dos leitores
108
modernos.
A cantiga-resposta iniciada com o chamamento daquele a quem a stira ser dirigida, Pero
dArmea. Em seguida, contextualiza-se o assunto
ao qual se est respondendo (. 1-5). Mas, dos dois
ltimos versos da primeira estrofe, configura-se,
tenazmente, a invectiva: tod est, amigo, soubestes perder/ plos narizes, que lhi non posestes. Ou
seja, de nada valeu compor o cuu com concela,
revol, a tal ponto que donzela de parescer vencesse, se deixou de colocar os narizes. Certamente, uma metfora para o pnis e, logo, para a violao cuu, que implicaria passividade e negao da
masculinidade.
Nas duas estrofes que se seguem, os versos so
todos traados enumerando ornamentos que ajudariam a Pero dArmea a vencer a disputa de beleza
com a Donzela, utilizando par perdizes . 10,
beios . 15, o que ficaria to bom que, de San Fagundo at San Felizes . 14, nenhum homem, ainda
que quisesse achar, no poderia encontrar. Recomenda, tambm, que sejam arrumados o [...] cuu,
que tan bem barvado [com plos], fazendo-lhe
o granhon [bigode] bem feito . 16-17, deixando
tudo muito bem arrufado . 18, ou seja, encrespado. Por fim, diverte, mandando que dArmea encubra rapidamente o cuu enquanto estiver arrumado e for solteiro, pois se acaso FernandEscalho
vir . 20, certamente deixar de ser solteiro e estar casado. Sugere-se, nos ltimos versos, a passividade de Pero dArmea e a clara vinculao ao feminino atravs de elementos de mulher. Por outro
lado, observa-se outro ataque a uma personagem
bastante satirizada, FernandEscalho, nesta cantiga
apontado pela obsesso por sexo.
A imagem do homossexual passivo atrelada
feminilidade documentada muito anteriormente
s cantigas galego-portuguesas. E o sentimento de
rechaa sobre esse homem que assimila clichs femininos tambm antiqssimo, sendo, posteriormente, apropriado pelos cristos. Conforme Foucault (1984), a inverso de papis sexuais sempre
esteve envolta numa rea repulsiva que j aparece,
com bastante nitidez, desde o sc. i d.C. Antes ainda, no discurso de Scrates, em Fedro, de Plato
(1954), por exemplo, condena-se o amor excessivo
aos rapazes flcidos, educados na natureza das
[...] uma construo arbitrria do biolgico, e particularmente do corpo, masculino e feminino, de seus usos e de
suas funes, sobretudo na reproduo biolgica, que d
um fundamento aparentemente natural viso androcntrica da diviso de trabalho sexual e da diviso sexual
do trabalho e, a partir da, de todo o cosmos. (Bourdieu,
2005, p. 33)
E esse trabalho no foi criado pelo Cristianismo, mas pela viso androcntrica pela qual o sexo
masculino, atravs da construo arbitrria do biolgico, tem oferecido uma leitura do mundo, ou,
pelas palavras de Bourdieu, de todo o cosmo.
A cantiga 194 de Joan Baveca (Lapa, 1970, p.
297) pode configurar, em termos galego-portugueses, os postulados de Pierre Bourdieu (2005) acerca
da construo social da masculinidade e do que lhe
cabe na diviso sexual. Em poucas palavras, a cantiga trata dum certo Don Bernaldo que tinha ido
para uma guerra usando mal aguadeire (capa de
chuva) e balandrao (capuz de chuva) em tempo
mao (chuvoso). Tudo isso Don Bernaldo fez por
desateno, fato que motivou o sujeito potico a
sugerir que procusse proteo para que, s el, vos
vs [...] non molhedes . 5-7, isto , a proteo que
Don Bernaldo deve procurar estar encoberto por
um homem, para que no se molhe.
A sintaxe espacial1 de estar sob algum no deixa dvida acerca do carter passivo depreciativo
de que Don Bernal vtima durante toda a cantiga.
Tambm corrobora tal leitura a roupa curta que a
personagem traz: E quen vos pois vir la saia molhada,/ bem lheu terra que com escasseza . 8-9,
numa parfrase teramos: quem te vir com saia
molhada facilmente pensar que por pobreza,
sendo que tiveste sempre gran largueza. Nesses
versos, sugere-se a opo pelo uso desse tipo de
saia, que molha.
O reconhecimento do feminino no homem,
atravs de deformaes, so invalidadoras do ideal
cavalheiresco, implicando a negao da masculinidade e, portanto, configurando o quadro duma
provvel preferncia da sodomia.
De outro lado, a assimilao do feminino pelo
homem pode no ser uma repulsa direta falta de
correspondncia natural entre sexo e sexualidade
1.Sintaxe espacial sexual a ordem construda socialmente para explicar as posies e divises sexuais a partir das informaes biolgicas
(homem versus mulher). Assim, observam-se, numa ordem espacial, privilgios masculinos ao ocupar lugares superiores, enquanto que a
mulher o correlato inferior, sustentculo da supremacia masculina.
109
(construo social a partir do natural). O que se rechaa, pois, so as implicaes de um homem que
abandona o uso natural de seu corpo para privilegiar o feminino. Isto no simples para a Idade dos
homens, fundada na misoginia.
Portanto, muito embora no se possa responder, de pronto, questo que intitula esta pesquisa, parece ser um norte a hiptese de considerar
o papel passivo como uma aproximao do feminino, sendo que de tal papel que se constri o
significado inferior. Assim, menospreza-se antes o
feminino para ento v-lo num homem e rechalo duplamente: por negar a virilidade natural pela
adoo da posio feminina. Numa sociedade em
que a preservao da masculinidade parece ser
tema permanente entre os homens com quem
esto os principais papis sociais, vale ressaltar ,
no difcil supor que a rivalidade esteja sempre
em evidncia.
Vale, por fim, ressaltar que, nas cantigas de
escrnio e maldizer, bastante perceptvel a existncia do motivo sodomtico como crtica s personagens. Entretanto, h de se considerar que nem
todas as stiras so invectivas dirigidas prtica
antinatural; mas, sim, por violar, conforme os trovadores, alguma norma social ou, at mesmo, por
questes predominantemente polticas. Poucas so
as cantigas que tratam hermeticamente de sodomia, mas tambm no so poucas as que a utilizam
por mote (cerca de vinte e nove, nem todas privilegiadas neste estudo).
Para Paulo Roberto Sodr (2007), em Ainda so-
bre a sodomia na stira galego-portuguesa: a propsito da cantiga do que eu qugi, per sabedoria,
de Estvo da Guarda,
[...] nas cantigas sobre sodomitas, em sua maioria, eles
esto ligados ao funcionalismo da corte (cerca de vinte
e uma cantigas) e so acusados de manterem relaes
com subordinados (62, 73, 116, 117, 127, 194, 372, 381), de
obstinarem-se sexualmente (372, 378, 380), de mudarem
os papis de passivo para ativo (81, 104, 342), de serem
cruis nas relaes (75), de agirem com hipocrisia (168,
365), de desejarem se casar com homem (80) ou de contrarem doenas (131, 404, 424). Cada um desses motivos
encerraria uma stira ao desempenho e no natureza,
por assim dizer, da sexualidade.2 (SODR, 2007, p. 7, grifo
do autor)
2. Os nmeros entre parntesis desta citao correspondem numerao das cantigas na edio de Lapa (1970).
110
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111
Resumo
113
Espelho dos reis est internamente estruturado em dois volumes e, como nos
outros dois ttulos da trilogia alvarina,
a saber Estado e pranto da Igreja e Colrio da
f contra as heresias , contou com o estabelecimento de texto e traduo de Miguel Pinto de Meneses, com edies sucessivas em 1954 e em 1963,
por iniciativa do Instituto de Alta Cultura Centro
de Estudos de Psicologia e de Histria da Filosofia,
ligado Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa (Costa, 1966, p.66). O Espelho dos reis, de
Frei lvaro Pais, de acordo com Miguel Pinto de
Meneses (1955), [...] tem o mrito de ser o primeiro
trabalho conhecido de filosofia poltica escrito em
Portugal [...]. Portanto, uma obra que trata de
temas de grande interesse para o estudo da Pennsula Ibrica. lvaro Pais iniciou a sua elaborao
no ano de 1341, na Galiza, concluindo-o na vila de
Tavira, no dia 10 de Julho de 1344, dedicando-o ao
monarca castelhano Alfonso xi.
O Espelho dos reis foi esquematizado em captulos consecutivos e tratou, inicialmente, no
primeiro volume, da vitria dos cristos sobre os
sarracenos e da exaltao do rei castelhano Alfonso xi, por ocasio dessa conquista. Procedia a uma
extensa reflexo acerca dos modelos e anti-modelos de governantes, primeiramente em relao aos
reis da Antiguidade Greco-romana e aos do Antigo
Testamento, abordando assuntos como a dignidade
rgia, suas atribuies, seus erros e pecados, para,
no restante desse volume e no seguinte, dispor do
corolrio das virtudes cardeais, como um recurso
pedaggico propondo, ao referido monarca, preceitos ticos visando o bom desempenho da funo
governativa.
O teor dos specula principis, gnero do qual
faz parte o Espelho dos reis alvarino, consistia na
fundamentao e proposio dum comportamento tico para os monarcas, pois se esperava que a
formao tica destinada, primeiramente, aos dignitrios temporais se tornasse igualmente til aos
demais cristos. O Espelho dos reis, de acordo com
Joo Morais Barbosa (1972, p.23), foi pensado como
um tratado de educao de prncipes significativo
para a histria da Pennsula Ibrica. O objetivo do
prelado galego nessa obra consistiu como era
prprio da literatura especular , em oferecer uma
boa formao ao governante para o desempenho
do encargo rgio.
Para Frei lvaro, o monarca devia ser exemplo
de uma vida virtuosa, pois s dessa maneira seria
digno de exercer o seu ofcio. Todavia, caso o monarca no respondesse ao apelo de levar uma vida
altura de sua dignidade e viesse a corromper-se
pelos vcios, seria condenado no s pelos seus pecados, mas, tambm, pelos erros daqueles a quem
no ajudara a educar. Notamos, aqui, a efetivao
da sacralidade ou da espiritualizao do poder rgio, pois ao governante no caberiam somente as
funes administrativas e de politia do seu reino
(Barbosa, 1988, p.25-26); ele era co-responsvel pela
salvao ou perdio dos seus sditos, devendo ele
prprio manter-se ilibado e governar com o Rei dos
Reis, Cristo.
A responsabilidade conferida por Frei lvaro aos reis ibricos ia alm das suas prerrogativas
como governantes temporais, pois o monarca representava tambm o elo de salvao para os sditos. O intuito de Frei lvaro, ao escrever Espelho dos reis, consistia na perspectiva de que, com
base em preceitos morais contidos nessa obra, o
monarca viesse a meditar sobre os seus pecados,
expiando-os por meio da prtica das virtudes. Para
Frei lvaro, D. Alfonso xi, o justiceiro, representava, naquele contexto de insegurana, a figura, a
imagem arquetpica do bom cavaleiro cristo.
Conforme a tradio bblica, alegoricamente, o
espelho seria um lugar de contemplao e, assim,
115
o meio pelo qual o soberano poderia adquirir o conhecimento e a sabedoria divinas. (Costa, 2007).
Por intermdio do espelho, os governantes poderiam exercer com discernimento o ofcio rgio da
justia, cujo modelo veterotestamentrio coincide
com o de Salomo. Ser um rei sbio implicava, sob
essa perspectiva, na prtica das virtudes da temperana, da prudncia, as quais, associadas justia
e fortaleza, elevariam o rei condio de sbio
governante.
Para o autor, o principado no poderia manterse sem a sabedoria e asseverava: Por isso, o rei dos
Romanos exortou o rei dos Francos a que procurasse instruir seus filhos nas disciplinas liberais,
afirmando que Rex illiteratus quase asinus coronatus (er, 1955, v.1, p.103). Essa frase de Joo de
Salisbury, na predita obra, marca um dos objetivos
do Espelho dos reis, um specula principis medieval, com o fim de admoestar D. Alfonso xi sobre
a questo de que um monarca, para bem reger o
seu povo, deveria instruir-se, especialmente nas
Sagradas escrituras. A esse respeito, Frei lvaro,
reportando-se a Sneca, afirmava: No me lembro
de os imperadores e generais romanos serem iletrados, enquanto a repblica floresceu [...] (er, 1955,
v. 1, p.101).
Ao mencionar, no Espelho dos reis, os exemplos
dos reis da antiguidade clssica, da tradio veterotestamentria, bem como dos padres da Igreja,
o frade franciscano tinha por objetivo reforar o
contedo pedaggico referente prtica das virtudes cardeais para o governante cristo. As obras do
gnero literrio de cunho teolgico-litrgico aparecem em vrios textos rgios, que serviam igualmente de espelhos de prncipes aos futuros herdeiros. Como por exemplo, o de Luis ix (1214-1270), da
Frana, o piedoso, que escreveu um speculum ao
filho Filipe iii (1245-1285). Em Castela, Sancho iv, o
bravo (2007, prlogo) redigiu um opsculo semelhante ao filho, D. Fernando iv, futuro rei de Castela.. Entretanto, Ccero (106 a. C. 43 a. C.) e, antes,
Plato (428/7 a. C. 347 a. C.), j haviam produzido
manuais de conduta semelhantes, tendo como objeto a proposta de um modelo de comportamento
para os governantes pautado pela tica: Ya tienes
delante, hijo mo Marco, la imagen y, por decirlo
as, el semblante de la virtud, que si pudiera verse
116
compreenso de um projeto de cristianizao efetivado pela Igreja para os fiis, que deviam se pautar
por uma mudana de comportamento de reis e altos dignitrios seculares e eclesisticos, com o fito
de atingir os demais membros da cristandade.
A respeito dessa narrativa, necessrio elucidar que essa viso acerca da batalha expressava
um sentimento de superioridade do vencedor sobre
o vencido, o que se faz sentir tambm nas crnicas rgias, castelhana e portuguesa. Importa saber
que, para lvaro Pais, Castela sobrepujava todos os
outros reinos inimigos; o seu rei, D. Alfonso xi, o
justiceiro, era defensor dos interesses da Igreja em
relao aos demais reis catlicos, aos quais ele acusava at mesmo de omisso e de no merecerem a
alcunha de reis cristos:
[...] porque tu, defensor dos outros reinos catlicos, verdadeiramente confessas o Criador das naes. Qual dos
outros fiis expe a vida pela f de Cristo? Tu rei fidelssimo, tens mais caridade, que os outros, tu que ainda h
pouco com o teu tio materno, o rei de Portugal, expuseste
a vida pela f catlica. Os outros reis habitam em casas de
tecto artesoado, e nadam em delcias; tu vives nas tendas
do arraial de Cristo, contente com alimento frugal. Esses
117
engrandecimento do reino e defesa da f catlica. A imagem rgia ideal veiculada por Frei lvaro
era, em sua essncia, moralizadora; buscava, a nosso ver, criar um modelo de rei cristo adequado a
seu projeto de cristandade.
As atividades militares contra os infiis, as
medidas de repovoamento com a instalao de
cristos nas terras recm conquistadas e a religiosidade pessoal do rei eram, antes de tudo, a de um
cristo, o que se encontra claramente definido, nos
textos rgios castelhanos como o das Siete Partidas, bem como no discurso alvarino.
[...] cinge a tua espada, rei poderosssimo (salmo, xliv).
Fere com o teu gldio, campio da Igreja, os brbaros
que a ocupam. Restitui essa terra, pelo direito ps-limnio
[...] Igreja tua Me, e a Cristo seu esposo, para que Ele
seja adorado nessa terra, que adquiriu com seu preciosssimo sangue [...], e da qual foi expulso (er, 1955, v. 1,
p. 15).
As implicaes de ordem poltico-religiosas decorrentes da imagem do rei castelhano como poderosssimo e campio da Igreja, ressaltadas por Frei
lvaro, trouxeram uma forte carga simblica, capaz de levar o fortalecimento do poder rgio quela
regio. Todavia, conquanto portador de uma autonomia em relao ao clero, o rex fidelissimus no
devia se esquecer de submeter-se aos intentos da
Igreja, como ressaltou lvaro Pais no artigo quarenta do Estado e pranto da Igreja: Visto que a policia crist uma s, e um s o prncipe que a rege,
agora cumpre mostrar que este primeiro e supremo
prncipe o sumo pontfice [...] (epi i, 1988, art.
40, v. 1, p. 511).
Devemos levar em conta, nessa temtica, que a
grande maioria dos conceitos teolgicos acerca do
poder real, contidos nas Sagradas Escrituras, contriburam, de acordo com Nieto Soria (1987), para
criar certa imagem sagrada da realeza no medievo.
O Antigo Testamento foi a fonte inspiradora
para a criao desses conceitos no pensamento poltico da Baixa Idade Mdia, sempre que a inteno era justificar a sacralizao do poder, no s
em Castela, mas tambm no restante dos pases do
Ocidente europeu, com suas devidas especificidades. Textos como Gnesis, xodo, Samuel, Livro dos
Reis i e ii, Salmos, Provrbios e Livro da Sabedoria
tiveram um destacado papel na fundamentao b-
118
blica das origens do poder real e das imagens sagradas da realeza (Soria, 1987).
preciso ressaltar que a sociedade medieval
ainda era vista mais como corpus ou uma cristandade universal do que propriamente como sistema
poltico e, mais que sditos, os diversos reinos peninsulares eram comunidades de crentes (Le Goff;
Truong, 2006) e assim deviam comportar-se, evitando prticas supersticiosas e heresias, que, segundo o frade galego, eram resultado da m administrao dos monarcas cristos.
Nesse contexto, no podemos olvidar que o
processo de reconquista ibrica ou de tomada da
Terra Santa pelos cristos criou uma mentalidade
de cruzada, na qual se percebe a dificuldade dos
eclesisticos em categorizar o islamismo, muitas
vezes concebido como uma religio diablica, expresso da infidelidade e do paganismo que era necessrio extirpar (Costa, 2001).
Conforme Joaquim Choro Lavajo (1988), a
dificuldade de categorizar o islamismo como uma
heresia ou simples seita afetou autores bem informados dos sculos xii e xiii. Pedro, o venervel,
por exemplo, via naquela religio a pior das heresias, sntese de todas as anteriores (Lavajo, 1988, p.
152-153, 160), lvaro Pais, no sculo seguinte, compartilhou esse discurso, afirmando ser Maom um
herege contumaz e que, por isso, seus ensinamentos deviam ser completamente rechaados. Desse
ponto de vista, possvel compreender a razo de
Frei lvaro sustentar a imagem do rei cristo ibrico como fidelssimo e exaltar a sua figura diante
dos outros reinos.
Conforme Frei lvaro, a guerra contra os sarracenos seria justa caso se pautasse nos seguintes
elementos: recuperao e defesa das coisas prprias, combate contra os sarracenos que ocupavam
as terras da f de Cristo, luta contra os herticos e
excomungados (er, 1955, v. 1, p. 250). Deste modo,
ensinava o autor: Agora, para se ter um conhecimento mais claro desta matria, note-se que h
mltiplas guerras. Uma a que se faz entre fiis e
infiis e esta justa para parte dos fiis [...] (epi i,
art. 46, v. 5, 1995, p. 505).
Esta concepo foi justificada historicamente
pelo autor, uma vez que os locais apossados pelos
muulmanos no norte da frica, como o Marrocos,
Por isso, Frei lvaro interpretou como triunfal a vitria dos reis cristos na batalha do Salado.
Para ele, a atuao dos reis de Portugal e Castela foi
coroada de xito por se tratar de uma guerra justa,
ao passo que a ao defensiva e ofensiva dos muulmanos era vista como um ato de extrema violncia. Nesse perodo, Frei lvaro conclamava D.
Alfonso xi a no confiar nas promessas de paz dos
sarracenos: No acredites, prudentssimo rei, nas
condies e promessas de paz, porque os inimigos
do teu Deus e Senhor no podem ser teus amigos
(er, 1955, v. 1, p. 11).
Francisco Gomes ressaltou que a sacralizao
da guerra na Pennsula Ibrica se acirrou porque
o inimigo a ser combatido era muulmano (Gomes, 2004). Em uma sociedade com fortes traos de mentalidade religiosa e dualista (Le Goff,
1994;1998), tudo o que no era cristo era pago.
Percebemos no discurso alvarino e no de outros canonistas medievais que os muulmanos, aos poucos
foram demonizados, sendo considerados hereges,
adversrios de Cristo e proslitos do Anticristo.
Essa representao do Islam nasceu entre os
cristos do Oriente, mas foi assimilada pelo Ocidente, majoritariamente por meio das crnicas
asturianas, nas quais ocorreu igualmente a sacralizao da reconquista ibrica. Na Idade Mdia, a
idia de guerra justa foi obtendo uma dimenso de
guerra sacralizada e esta idia impregnou as mentalidades dos homens, tanto cristos quanto muulmanos (Gomes, 2004).
A imagem de Ismael personagem bblico do
qual os sarracenos descenderiam de mo levantada contra todos os povos (Gn 16,12), representou
o conceito depreciativo e estereotipado da violncia dos muulmanos no tocante aos cristos. Deste
modo, lvaro Pais procurou justificar, do ponto de
vista teolgico e histrico, a inferioridade do povo
islmico em relao aos cristos, salientando que
estes foram libertos por Cristo e com ele participavam da superioridade dos valores espirituais sobre
os materiais (Lavajo, 1988, p. 107).
Desde a reconquista, de acordo com Rucquoi,
os reis ibricos passaram a ser chamados de cruzados permanentes, atributo que nem o imperador
alemo nem os reis da Frana e da Inglaterra detinham (Rucquoi, 1992, p. 69). Como cruzados per-
119
manentes, possuam as mesmas prerrogativas conferidas aos cruzados que lutaram na Terra Santa.
certo que essa caracterstica assumida pelos
reis ibricos, especialmente os de Castela e Portugal, trouxe-lhes prerrogativas, todavia, no podemos dizer que fossem independentes em relao ao
clero. No obstante o papado necessitar do rei e da
nobreza para recuperar os territrios reclamados
pelos cristos, essa autonomia no deixou de trazer
tenses, como o caso do conflito entre D. Afonso IV
e lvaro Pais na condio de bispo de Silves.
Assim, no transcurso da evoluo do poder
poltico no baixo medievo, possvel falar de uma
recorrente apelao legitimao do poder rgio e
de propaganda dos atributos do rei e no universo
laico, produzindo imagens rgias ligadas intrinsecamente religio, tais como rei ungido, cristianssimo, virtuosssimo, fidelssimo, dentre outras, e o discurso do frade galego comprobatrio
dessas imagens:
[...] ao ilustre e nclito Afonso, generosssimo e vitoriosssimo Senhor, prncipe e rei dos Visigodos, vigrio terrestre
de Cristo [...] reinante no ano do Senhor de 1341, e, mais
felizmente havendo de reinar Frei lvaro, Menor de
profisso, ministro e chefe da Igreja de Silves, doutor em
Degredos [envia saudaes] [...]. Neste livrinho por dedicatria te envio o colrio com que possas ungir teus olhos
reais interiores [...] (er, 1955, v. 1, p. 5).
Todavia, a idia acerca da origem divina do poder real, e sua autonomia, esbarrava na autoridade
pontifcia e no prprio poder do clero, assentado
em amplos domnios fundirios e a enorme influncia religiosa que exercia sobre o povo. A imagem
do monarca desejada por Frei lvaro ia ao encontro da idealizao corrente em Castela, a de um rei
virtuoso, cujo perfil, por analogia, era o de um vigrio de Deus (Soria, 2000, p.108). Rei fidelssimo,
o escolhido, santo, o ungido, o justo, dentre uma
srie de outros adjetivos, revelam o papel polticoreligioso do governante em uma regio repleta de
conflitos e contrastes culturais e religiosos.
Dentre os recursos buscados em Castela, como
em outros reinos europeus, cada qual com suas especificidades, as referncias ao divino eram usadas
nas estratgias de consolidao do poder. O contexto poltico da Baixa Idade Mdia castelhana,
ante o reforo da legitimidade da autoridade rgia,
120
associava amplamente a utilizao poltica de referenciais religiosos. Nas Siete partidas, por exemplo,
podemos entrever essa relao, pois se o rei possua
tal dignidade, s poderia s-lo pela graa de Deus,
como nos afirma Alfonso x, no prlogo primera
partida:
Porende Nos D. Alfonso, por la Gracia de Dios Rey de Castilla, e de Toledo, e de Leon, de Galizia , e de Seuilla , e
de Crdoua , e de Murcia , e de Jaen, del Algarue, entendiendolos grandes lugares que tienen de Dios los Reyes
en el mundo, e los bienes que del reciben en muchas maneras, sealadamente en la muy gran honrra que a ellos
faze, queriendo que ellos sean llamados Reyes, que es el
su nombre (Las Siete Partidas. Prologo..., op. cit., 1843, t.
1, partida 1, p. 7).
121
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122
Resumo
Histria da Infncia, mesmo tendo nascido no sculo xix, pelo menos, s agora
chega maturidade. Tento visto um grande desenvolvimento das pesquisas iniciado pelo
polmico livro de Phillipe Aris lanado em 1960
Lenfant et la vie familiale sous lancien rgime,
hoje j colhe frutos maduros. Na Europa e nos Estados Unidos a quantidade de pesquisa sobre o assunto cresce a cada dia. Aparecem estudos bastante
especficos sobre a infncia em determinada cidade ou regio, aparecem tambm amplas snteses,
apresentando a infncia medieval em um pas ou
mesmo em toda Europa.
No nosso pas mal escutamos seus vagidos, e
tais sons ecoam o que certo historiador falava em
1960. Pretendemos com esse breve estudo contribuir para a pesquisa brasileira sobre a Histria da
Infncia, esperando motivar nossos medievalistas a
olharem esse campo to importante e pouco estudado no Brasil.
Para tanto analisaremos um grupo de Cantigas
de Santa Maria, obra potica de Afonso x, o Sbio
rei de Castela e Leo. Nesse de conjunto de 427 poesias dedicadas Virgem Maria, composto nos fins
do sculo xiii, selecionamos aquelas que retratam
algo da infncia de um grupo muito particular, os
judeus.
Se os judeus foram um grupo retrato como perverso nas Cantigas de Santa Maria e se as crianas eram desprezadas na Idade, o que se diria das
crianas judias nessa obra?
Pretendemos responder essa questo com o trabalho que apresentamos agora.
123
1. Bolsista da FAPEMIG. Agradeo aos contribuintes involuntrios pelo dinheiro, Dona ngela pelo ensino e Santa Maria por tudo mais.
125
Sendo os mouros os inimigos materiais, militares, da Cristandade no plano religioso que temos
a origem de tal concepo sobre os judeus. So inimigos no porque representam uma ameaa fsica
existncia dos reinos cristos, mas porque foram
e ainda eram contra o fundamento religioso
desses reinos: o prprio Cristo. Afonso x coloca a
Virgem exclamando:
Ay Deus, ai Deus,
Com mui grand e provada a perfia dos judeus
Que meu Fillo mataron, seendo seus,
E aynda non queren conosco paz. (C. 12, v.16-19)
Assim, no tendo a verdadeira F e sendo culpados de Deicdio no lhes cabia um bom lugar,
como a Virgem Maria explicou para um judeu que
tinha salvo de alguns ladres:
Para-mi ben mentes,
Ca eu so a que tu e todos os teus parentes
avedes mui gran desamor en todas sazes,
e matastes-me meu Fillo come mui feles. (C. 85, v.32-35)
O destino dos judeus tomados como conjunto, a no ser que se tornem cristos, o fogo do
inferno:
Enton o pres pela mo e tir-o fora
Dali, e sobr um gran monte o pos essa ora
e mostrou-lhe un gran vale cheo de drages
e d outros diabos, negros mui mais que carves,
Que mais de en mil maneiras as almas peavan
Dos judeus, que as cozian e pois ar assavan
E as fazian arder assi como ties,
e queimando-lhe-las barvas e pois os grines.
(C. 85, v.40-50)
O menino, que talvez tenha ido Missa devido emulao to caracterstica nas crianas, aps
viso to agradvel, quis acompanhar seus amigos
catlicos e logo foi comungar:
Santa Maria enton/
a mo lle porregia,
e deu-lle tal comuyon/
que foi mais doce ca mel. (C. 4, v. 47-50)
2. No obstante essa viso negativa seria errneo dizer que as Cantigas apresentam uma viso anti-semita dos judeus. A possibilidade de converso e conseqente aceitao na comunidade crist sempre aberta. Alm disso, a prpria valorizao das crianas judias nas Cantigas indica
que Afonso x no se liga preconceitos raciais ou biolgicos.
3 Para algumas consideraes literrias e para a reproduo da iluminura correspondente Cantiga veja-se Leo, 2007.
4 As 25 primeiras Cantigas do manuscrito escurialense apresentam, sob a iluminura, uma prosificao em castelhano arcaico.
126
Com este milagre, a judia se converte e o menino logo recebe o batismo. Os outros judeus que
viram o milagre tambm se tornam cristos, como
se l na verso em prosa. Enquanto os judeus ganham vida nova pelas guas do batismo o pai tem
um final menos feliz sendo jogado no forno ardente
para receber o que deu a seu filho seguindo-se assim a pena de talio. (Leo, 2007, p.47)
Sabemos que a Cantiga baseada numa lenda medieval exposta dezenas de vezes por diversos
autores. (Le Goff, 1989, p.154). Mas, ao ser reescrita
por Afonso x e inserida no seu Cancioneiro no
representaria aspectos da realidade histrica da Pennsula Ibrica? possvel que sim. curioso imaginar como seria dramtica tal histria se ocorresse
realmente com uma famlia judia. Ocorre que entre
os judeus da Idade Mdia o cuidado das crianas
mais novas era confiado me, pois seu amor natural, como diziam os eruditos judeus. Disso decorriam certos direitos da me. Em caso de divorcio,
por exemplo, os filhos ficariam com ela at completarem seis anos, se fossem meninas poderiam ficar
a vida toda. (Baumgarten, 2007, p.159)
Por outro lado, a insero da criana, particularmente dos meninos, no mundo adulto, era
obrigao do pai. Uma das principais obrigaes
religiosas de um judeu era ensinar seu filho a Tor,
pela qual, em constante estudo, o menino se manteria na f judaica por toda a vida. A ira de Samuel
se explicaria por ter falhado numa de suas obrigaes religiosas, ter conservado o filho na f judaica.
127
imagens do Menino Jesus e de Sua Me. As mulheres de poses, pelo menos em Frana, mudavam a
decorao do quarto para que nada, nem imagens
e nem certas cores, atrapalhassem o parto. (Alexandre-Bidon; Closson, 1985, p.55).
Parece que as judias iam para o parto com mais
peso, se o sofrimento fsico era igual, as idias relacionadas a esse momento, entre os judeus, eram
mais graves. Era opinio comum que todas as
aes de uma judia eram julgadas na hora do parto, momento comparado ao Dia do Juzo. Caso o
parto no fosse bem sucedido, a culpa recaia sobre
a mulher, por isso havia bnos e oraes especiais para tal momento. (Baumgarten, 2007, p.40)
No caso narrado na Cantiga no foram as oraes
judaicas que permitiram um bom parto e sim a interveno da Virgem.
A ltima cantiga na qual uma criana judia
aparece a de n. 108. Conta a histria de um judeu
escocs muito estudado que duvidava ser possvel
Deus que fez o mundo encarnar numa mulher. Certa vez numa conversa com Merlin:
O judeu a perfiar
comeou e disse: Non
podo Deus nunca entrar
en tal logar per razon;
ca o que foi ensserrar
en ssi quantas cousas son,
como ss enserraria? (C. 108, v. 30-40.)
128
das crianas e dos que mamam (infantium et lactantium) tirastes um louvor? (Mateus 21 16).
Assim vemos mais um meio de valorizao das
crianas. Um valor religioso era atribudo a esses
pequenos seres que recebiam cuidados materiais,
emocionais e espirituais de toda sorte, que, mesmo sofrendo as durezas da vida e algumas vezes da
maldade humana, eram esperadas e amadas. Elas
no foram esquecidas na Idade Mdia e, mesmo
nascidas entre os maiores inimigos da Cristandade,
no foram esquecidas por Santa Maria.
129
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130
Resumo
131
1. Primeiras palavras
133
Havia, portanto, alguma tolerncia social no tocante prostituio, porque, como salienta Richards
(1993, p. 122-123), era interpretada como um meio
que possibilitava a afirmao da masculinidade juvenil, porque se acreditava que ajudava a evitar a
aproximao entre homens e mulheres consideradas decentes, a homossexualidade, os estupros em
gangues e, porque era entendida como algo que colaborava para manter estveis os padres sexuais e
sociais do restante da populao.
As prostitutas eram, pois, consideradas necessrias sociedade, mas nem por isso perdiam o
cariz infame da profisso que exerciam, de modo
que, assim como os judeus e como os muulmanos,
a partir do quarto Conclio de Latro 1215 , passaram a ter a marca da infmia, tendo, por conseguinte, a obrigao de trajarem vestes distintas e
de usarem sinais ou marcas que os distinguissem
dos outros indivduos. Relativamente s prostitutas, com as devidas variaes regionais, usavam
um cordo vermelho aiguillette (Richards, 1993,
p. 22; 124).
As mulheres pblicas eram segregadas da populao considerada respeitvel e, vrias vezes, foram colocadas para fora dos muros das cidades; banidas para a zona da luz vermelha. Elas eram, at
mesmo, proibidas de tocar nos alimentos, a no ser
que os comprassem (Richards, 1993, p. 32; 126-12).
O exerccio da prostituio era altamente vigiado, a exemplo do fechamento dos bordis durante a
Semana Santa, das punies aplicadas s prostitutas que eram pegas, burlando as normas prescritas
ou ainda das perseguies sofridas pelos bordis
desautorizados ao funcionamento.
A igreja tentava despojar as prostitutas de seus
direitos civis. Assim, a lei cannica impossibilitava que fizessem acusaes exceto em relao aos
casos de simonia e que comparecessem aos tribunais. Alm do mais, eram proibidas de herdar e os
casos de estupro contra elas no estavam sujeitos
sano penal. Com o passar dos tempos, a situao
social e jurdica delas melhorou, talvez, em funo
de uma maior demanda do mercado, decorrente
da baixa populacional conseqente da pandmica
Peste Negra (Richards, 1993, p. 134).
1. Para absorver as pulses sexuais dos vares, evitar os problemas sociais que a violao, o adultrio ou simplesmente o concubinato ocasionariam paz social. A prpria Igreja cobriu sob vu do bem comum as prticas e as praticantes do ofcio mais antigo do mundo, pois, com
efeito, um regulador indispensvel, nas cidades, sobretudo, dentro do mundo do trabalho (Traduo livre).
2. Foram consultadas as obras de Aulete (1881), de Cunha (1986), de Machado (1967), de Moraes Silva (1813) e de Vieira (1871).
134
Em um cantar de Pero dAmbroa, a personagem, meretriz, sustenta um jovem clrigo, podendo comprometer, desse modo, o seu destino, pois,
sendo velha e se tornando pobre, os homens no a
procurariam mais:
[...] Mais eu me matei, que fui comear/con dona atan
velha [e] sabedor;/pero conorto mei [e] gran sabor/de
que a veerei cedo pobrandar:/ca o que guaanhou en cas
del-Rei,/andandi pedinde o que lheu dei,/todo lho faz o
clrigo peitar/Mais que lhi cuida nunca ren a dar/- assi
sachendcomeu ou peior! - /e poi-la velha puta probe
for,/nona querr pois nulhome catar,/e ser dela como
vos direi:/Demo leva guar[i]da que lheu sei,/ergo se guarir per alcaiotar. [cem, n. 339, v. 17].
3. Em alguns contextos, a expresso puta liga-se ao campo indivduo de costumes negativos: Martin de Cornes vi queixar/de sa molher, a
gran poder:/que lhi faz i, a seu cuidar,/torto;mais eu foi-lhi dizer:/ - Falar quereu i, se vos praz:/Demo levo torto que faz/a gran puta desse
foder.[cem, n. 363, v. 7]. Tambm, na cantiga de Pero da Ponte, o significante puta parece se relacionar ao referido campo: Don Bernardo, pois
tragedes/Cn voscua tal molher,/E peior que vs sabedes,/Se o alguazil souber,/Aoutar-vo-la querr,/E a puta queixar-s,/E vs assanhar-vosedes/Mais vs, que todentendedes/quantentende bon segrel,/pera que demo queredes/puta que non mester?/Ca vedes que vos far:/en logar
vos meter/u vergonha prenderedes./Mais que conselho faredes, se alguen al-Rei disser/ca molher vosco teedes/e a justiar quiser?/Se non Deus
non lhi valr;/e vs, a que pesar,/valer non lhi poderedes./E vs mentes non metedes,/se ela filho fezer,/andando, como veedes,/com algun peon
qualquer,/ qual tempo vemos j,/alguns vos sospeitar/que no filho partavedes? [cem, n. 357, v.6; 11].
4. Como se sabe, pode-se definir dona, como: ttulo concedido s senhoras de famlias nobres e puta, como: mulher que ganha dinheiro com a
cobrana por atos sexuais. Da, a contraposio entre a senhora respeitvel e a mulher mundana/marafona.
135
Na definio de Vieira (1871), exceto pela insero
do sinnimo prostituta, no h maiores informaes, no tocante ao contedo da lexia pertencente
ao campo trabalhador5, de modo que teramos de
consultar o verbete do sinnimo apresentado, para
buscarmos pistas dos elementos constitutivos do
contedo da unidade puta.
A acepo oferecida pelo Moraes (1813), tambm, no clara, cabendo, inclusive, o questionamento a respeito do sentido descrito, se seria uma
parfrase eufemstica do contedo da unidade ora
analisada ou se seria uma acepo ligada ao campo
semntico indivduo de costumes negativos.
O texto definitrio do Bluteau (1712), por sua
vez, informa sobre questes sociais, mas no ilumina o contedo da unidade lxica puta.
No que concerne aos dicionrios atuais da
lngua portuguesa, verificamos que, no verbete
do Houaiss (2009) para o lema puta, no h qualquer meno molher pblica. Ainda sobre esse
verbete, constatamos que h nesse uma remisso
sinonmia de meretriz (Sinnimos ver sinonmia
de meretriz). J no verbete redigido para essa ltima unidade lxica, vemos mulher pblica e puta
5. A definio oferecida, nesse verbete, liga-se ao campo semntico indivduo de costumes negativos.
6. No Houaiss (2009), so sinnimos dados para meretriz: alcouceira, [...] puta, [...] mulher pblica, mulher vadia etc. (Grifo nosso).
7. necessrio ressaltarmos que pode existir sinonmia entre morfemas, entre expresses, entre oraes e no apenas entre as unidades lexicais.
8. H uma grande discusso entre os estudiosos a propsito da sinonmia absoluta e da parcial. Inclusive, considerando a idia de identidade de
significados, chega-se a negar a existncia dessa relao de sentido. Para outras informaes acerca da sinonmia, sugerimos uma consulta aos
trabalhos de Gutirrez Ordez (1992), de Uribeetxebarria (1992), de Vilela (1994), de Tamba-Mecz (2006), dentre outros.
136
turar que existe um trao opositivo de valor discursivo, diferenciando os seus respectivos contedos.
Assim, molher pblica, embora possua o contedo
mnimo igual ao de puta, apresentaria, tambm, o
trao discursivo opositivo uso polido, diversamente da outra unidade, que possuiria, talvez, o trao
discursivo uso chulo, de modo que surgiria, to
somente, em textos, como as cantigas satricas que
so criados longe de censuras verbais.
Podemos entrever, portanto, que, no portugus
arcaico, puta e molher pblica compartilhavam
o mesmo contedo e at o mesmo referente. Entretanto, do ponto de vista do uso, essas unidades
pussuiriam traos distintivos reponsveis por criar
oposies no discurso. Encontravam-se em relao
de sinonmia, diferenciando-se, to somente, em
relao aos gneros textuais, nos quais podiam ser
registradas, o que ocorria, provavelmente, devido
4. Consideraes finais
De incio, verificamos que o subcampo semntico
agentes da ao sexual, aqui representado pelas
unidades molher pblica e puta, relacionava-se ao
campo trabalhador. Afinal, duas de suas unidades
eram usadas para que se fizesse uma referncia
a trabalhadoras da sociedade medieval. Alm do
mais, constatamos que os contedos das unidades
daquele subcampo ligavam-se aos contedos das
lexias do subcampo comerciante do campo trabalhador. Por fim, ressaltamos que molher pblica e puta achavam-se em relao de sinonmia no
corpus examinado, opondo-se, no que tange aos
gneros textuais nos quais podiam ser usadas no
portugus arcaico.
137
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138
Resumo
139
1. Introduo
sculo xii foi um sculo de efervescncias em vrios mbitos sociais na Europa Medieval. O movimento cruzadista,
o renascimento do direito romano e o surgimento
das universidades so alguns dos fatores que contriburam para as grandes mudanas desse cenrio
(Costa, 2006). Das proeminentes figuras que surgiram, destaco a do monge cisterciense So Bernardo
de Claraval (1090-1154). Inserido num momento da
histria definido como Alta Escolstica (Abbagnano, 2007, p.401), So Bernardo tornou-se um expoente da teologia de seu tempo. Sua obra segue
a tradio mstica medieval, e Bernardo, por sua
vez, considerado um de seus fundadores (Gilson,
2007, p. 362).
Devido a embates travados com filsofos de
sua poca como Abelardo e Gilberto de la Porre,
foi atribudo a Bernardo por alguns historiadores o
ttulo de anti-filsofo (Verbaal, 2004). Sua obra, no
entanto, no isenta de filosofia. Encontra-se, ao
longo do texto, em questo, traos de toda uma tradio filosfica que remetem a autores consagrados
como Sneca (4 a.C- 65), Agostinho (354-430) e Bocio (470/480-524) (Verbaal, 2004).
O tratado sobre a considerao, redigido a
partir de 1149, endereado ao Papa Eugnio iii
(1145-1153). Uma de suas funes principais levar o pontfice a refletir sobre si mesmo, evitando,
com isso, ocupar-ser demasiadamente com o julgamento de litgios feudais, deixando estes competncia das autoridades seculares. Sendo assim,
possvel considerar a obra um verdadeiro espelho
papal; bastante peculiar, mas que segue a tendncia
dos espelhos de prncipes da Idade Mdia (Verbaal,
2004).
Apesar desse escrito ter influenciado posteriormente pensadores polticos como Guilherme de
Ockham (1285-1347/49) e Marslio de Pdua (12801342) no se pode afirmar que Bernardo tenha sido
2. O estilo bernardiano
O texto bernardiano claro e conciso; mas notase uma forma circular em sua escrita que, numa
leitura apressada, faz-nos pensar que Bernardo diz
sempre a mesma coisa. A verdade, porm, que os
temas so retomados e aprofundados de maneiras
diversas. Talvez, esse tipo de escrita seja uma aluso definio filosfica de Deus como um crculo;
o crculo a forma mais perfeita, no s por sua
simplicidade, mas tambm por sua beleza (Verbaal,
2004).
Bernardo escreve sempre fazendo uso de ricas metforas; o que deixa transparecer em suas
figuras, quase sempre embasadas no texto bblico.
O amor sempre foi um aspecto presente em seus
escritos. Fato que no seria diferente no tratado
sobre a considerao. O que o motiva a escrever
uma exortao que, como ele mesmo atesta, edificante, deleitosa e consoladora, justamente esse
sentimento.
Eugnio iii foi discpulo de Bernardo de Claraval. O cristianismo da muito valor ao aspecto evangelstico-educador; o cristo que ensina a f passa
a ter um papel de pai para quele que a recebe.
Bernardo, em sua obra, se situa exatamente nessa
condio em relao a seu ex-discpulo.
3. A alma e a considerao
Desde Gregrio vii (1073-1085), todos os assuntos
jurdicos passavam pela cria romana. Eugnio,
141
extremamente envolvido nesses pleitos, considerado por Bernardo escravo de suas ocupaes, precisando libertar-se imediatamente. E o
caminho proposto para ele justamente o ato da
considerao.
De origem latina, a palavra considerao significa agir com reflexo, ser prudente, atento, circunspecto, ter bom senso. A idia traada por Bernardo justamente essa. E assim, ele diz sobre a
considerao:
(...) ela rege os afetos, dirige os atos, corrige os excessos,
modera a conduta, ordena e torna honesta a vida, alm
de dar cincia do conhecimento humano e dos mistrios
divinos. a considerao quem pe ordem no que est
confuso, concilia o incompatvel, rene o disperso, penetra
no secreto, encontra a verdade, examina a similitude de
verdade e explora o fingimento dissimulado. A considerao prev o que deve ser feito, e reflete sobre o que foi feito
(...) (Considerao, Livro i, cap. vii.8).
As ocupaes de Eugnio so o alvo de suas crticas. Ocupaes que, segundo ele, no edificam o
homem espiritual e lhe tiram de seu maior bem que
a vida contemplativa. Bernardo diz:
Escuta minha repreenso e meus conselhos. Se tu dedicas
toda a tua vida e todo o teu saber s aes e no reservas
nada considerao, poderia eu felicitar-te? por isso
que no te felicito. E ningum que tenha escutado o que
Salomo disse Aquele que modera sua atividade se tornar sbio pode faz-lo, pois at as mesmas ocupaes
sairo ganhando se forem acompanhadas por um tempo
dedicado considerao (Da considerao, Livro i, cap. v, 6).
4. As Virtudes
Seguindo a tradio filosfica So Bernardo define
como sendo quatro as mximas virtudes, a saber:
a justia, a fortaleza, a temperana e a prudncia1.
Nesse caso, como vimos, ele segue o conceito platnico de virtude como a capacidade da alma em realizar uma tarefa (Abbagnano, 2007, p.1198). O guia
para se descobrir o caminho at elas to somente
1. Plato em A Repblica fala da existncia de quatro virtudes: prudncia, justia, temperana e fortaleza. Posteriormente, sero chamadas de
virtudes cardeais por Santo Ambrsio ( ? - ? ) (Abbaganano; 2007, p.135).
142
O voluptuoso o homem dado aos prazeres excessivos. A prudncia tende a separar o excesso da necessidade da o seu carter mediador. O nascimento
da temperana torna-se, com isso, algo inevitvel;
uma vez que sua caracterstica o justo uso dos
prazeres tal como definiu Aristteles (Abbagnano,
2007, p. 1111). Ainda, falando sobre a temperana
Bernardo a torna o meio termo entre o excesso e a
falta. Para tanto sem destoar das definies filosficas acrescenta a idia de que ser negligente com o
Sendo assim a prudncia proporcionar o aparecimento dessas duas virtudes, ou seja, a fortaleza e
a temperana. Mas em relao justia, Bernardo
destaca:
Passando para a virtude da justia, uma das quatro cardeais, sabemos que antes de a mente formar-se nela, a
considerao previamente a possuiu. Porque necessrio
que primeiro se rena em si para extrair de seu interior
essa norma da justia que consiste em no fazer ao outro
o que no se deseja para si, e no negar aos demais o que
um quer que lhe dem. Sobre estes dois plos gira toda a
virtude da justia. Mas ela nunca vai s (Da Considerao, Livro i, viii, 10).
2. O acaso ou fortuna foi um tema muito discutido ao longo da Idade Mdia; sobretudo, a partir de Bocio (?-?). filsofo do sexto sculo da era
crist, autor de A consolao da filosofia, uma das obras mais lidas em todo perodo medieval. Bocio, nesse livro, ao discorrer acerca do tema
da fortuna, utiliza a metfora da roda para indicar os movimentos que ela faz elevando e rebaixando os homens; ou seja, se hoje se estar por
cima, amanh pode se estar por baixo. Por isso, o homem virtuoso no se iludi com os caprichos da fortuna ( Costa, Ricardo e Zierer, Adriana;
Bocio e Ramon Llull, A Roda da Fortuna, princpio e fim dos homens. 2000).
143
144
H aqui um conflito no interior da alma, que consisti em sua negligncia em no aceitar a vontade
dos vcios. Esse conflito refere-se justamente ao poder racional, que Plato situa em oposio ao poder
concupiscvel. Este diz respeito ao vcio que definido por Aristteles como o oposto da virtude, ou
seja, uma disposio irracional.
5. Concluso
Para Bernardo de Claraval, o processo para se alcanar as virtudes est intimamente ligado com o
ato de considerar. Este ato no apenas parar e
refletir, mas um processo de busca interior, ou seja,
um voltar-se para dentro de si, pois no interior do
homem reside a verdade. A alma , por sua vez,
o agente mximo desse processo, quando seus poderes se encontram em conformidade. Ela quem
prope ao homem o justo meio que consiste, to
somente, no equilbrio. O papel das virtudes tornase essencial, pois atravs delas que se visa a esse
objetivo. Portanto, a justia busca o justo meio.
A prudncia o encontra, a fortaleza o defende, e
a temperana o possui (Da considerao, Livro i,
cap. viii, 11). E assim, o homem virtuoso torna-se
equilibrado em todos os sentidos.
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145
Resumo
147
1. Introduo
2. Contextualizao histrica
O ingresso na cultura medieval, em especial na literria, no se faz sem pagarmos um pesado tributo; a compreenso dos valores dessa poca exige do
estudioso uma pesquisa ecumnica, pois as grandes
criaes do esprito medieval na arte, na literatura, na filosofia so frutos de uma coletividade que
1. Glifos do Autor
149
1. Inicialmente, muralha construda pelos romanos, assim batizada em homenagem ao imperador Adriano, para proteger a Inglaterra Romanizada de ataques de saqueadores.
3. Celtas no romanizados nem cristianizados.
4. Gildas reconhecido pelo cognome Badonicus por ter, tal como ele apresenta em sua narrativa, nascido no mesmo ano da batalha do Monte
Badon, na qual os bretes derrotaram os saxes. (Costa, 2002, p.109)
5. Nomenclatura latina utilizada com relao a todos os povos que no eram romanos e no adotavam o modelo civilizacional de Roma.
6. A Cristandade Celta desenvolveu-se de forma diferente da Cristandade Romana (...) Os monges celtas eram ascticos, praticavam rduos
jejuns e meditao sobre severa privao. A confisso de pecados tornou-se to comum que, por conseguinte, monges irlandeses escreveram
manuais dedicados a executar rituais de penitncia especficos para vrios pecados. O isolamento permanente do continente evitou a corrupo
da lngua latina, o que ocorrera nos monastrios europeus.(Traduo nossa)
7. Este o nome da obra de Gildas em portugus, cuja traduo foi realizada por Bruno Oliveira, indexada na Bibliografia. Gildas escrevera sua
narrativa em latim e a ela denominara De excidio Britannae liber querulus, (Giles, J. A. Six Old English Chronicles. London: George Bells and
Sons, 1900.). Como trabalharemos com as duas tradues da obra, a saber, em ingls e em portugus, usaremos tambm o ttulo em ingls para
tal obra, Concerning the ruin of Britain.
150
8. As moralidades eram um tipo de drama que encorajava a absteno dos vcios e dedicao s virtudes atravs de um enredo performatizado
por personagens alegricas. Esta forma dramtica alcanou muita popularidade na Inglaterra entre os sculos xv e xvi.(Gassner, 1974, p.174)
9. Embora as idias humanistas se propagassem com mpeto pela Europa, a grande maioria dos letrados era oriunda da prpria Igreja.
10. Pea natalina de fins do sculo xii. (Auerbach, 2004, p.127)
151
acontecimentos que exigiriam maior conhecimento do leitor, e principalmente por apresentar temas
universais, que independem de tempo e lugar.
Se na narrativa de Gildas, o monge breto lamenta os amantes dos vcios que levaram destruio de tudo que era belo e, por outro lado, prope
uma possvel salvao atravs do arrependimento
e o resgate das virtudes, ou seja, a substituio de
um pelo outro, em Everyman, vcios e virtudes so
colocados frente a frente com o firme propsito de,
atravs de suas alegorias, simbolizar possveis conseqncias da escolha de um ou outro caminho.
Estabelecidas e examinadas as devidas caractersticas de ambos os textos, partimos para um primeiro exame acerca da forma como os diferentes
contextos histricos influenciaram na construo
desses textos em suas respectivas pocas e como o
comportamento ideal cristo construdo nos dois
casos, evidenciando as vises e tenses histricosociais presentes nos sculos vi e xv.
152
3.2 Da linguagem
A linguagem utilizada nos dois textos claramente
diferenciada. Gildas baseia-se nas Escrituras para
construir seu discurso. H vrias citaes bblicas
engendradas na construo textual do monge breto. Ao caracterizar o homem vicioso, Gildas utiliza, por exemplo, Mateus, captulo 16, versculo 18:
Mas vs assemelhastes-vos ao tolo homem que
construiu sua casa sobre a areia. (Gildas iii. 109)
pertinente, ademais, saber que o monge redigiu
seu texto em latim, lngua dominada pelo clero naquela poca.
Por outro lado, a fim de aproximar-se de seus
espectadores, o drama medieval transforma conceitos abstratos em personagens humanizadas. Com o
florescimento do renascimento e do antropocentrismo, a figura do humano comporia de forma
ideal a mensagem de Everyman, cujo objetivo era
atingir uma populao iletrada, que no tinha acesso s Sagradas Escrituras. (Stevens, 1988, p.13-15)
Ademais, inclusive a personagem principal
composta por uma alegoria. A traduo de Everyman para o portugus todo homem, todo mundo ou todos - completa, assim, a pintura de uma
viso da poca, permitindo a identificao entre
aqueles que a assistem e as alegorias humanizadas.
4. Consideraes finais
Ricardo da Costa (2002, p.15) pontua que
no se escreve Histria sem documentos. Conhecemos o
passado pelo que restou dele. Para o historiador, fundamental o contato com aquilo que chamamos fontes12 (documentos escritos, imagens, vestgios, materiais). Estas,
por mais fugidias e distorcidas que possam ser (e o so),
proporcionam aos homens a nica possibilidade de olhar
para trs, de tentar compreender nossos semelhantes
tanto os antepassados como os de hoje.
um sacerdote, que se admite temente a Deus e autopenitente, olhar sobre seu povo decadente e atribuir a destruio geral de tudo aquilo que bom
e o crescimento do mal por toda a terra aos feitos de uma raa indolente e preguiosa. (Gildas,
i.1) Gildas exorta a importncia da autopurificao
atravs de atividades virtuosas e retiros espirituais.
Ademais, ele ataca veementemente as fraquezas e
a dedicao dos reis bretes aos vcios, criticando
com a mesma rigidez os desvios de conduta por
parte do clero de seu tempo.
A onipresena da igreja na Inglaterra
medieval no se limitou ao incio da Idade Mdia
durante a fase de cristianizao bret. A instituio
europia mais poderosa, ainda em fins do sculo
xv, continuava impondo orientaes no comportamento do homem medieval. (Spina, 2007, p.13)
Atravs dos dramas litrgicos, milagres e moralidades, tal como Everyman, a Igreja Catlica alcanava seus objetivos pedaggicos, que consistiam
em educar os homens de acordo com a doutrina e
os valores propagados e defendidos pela ideologia
crist.
A moralidade dava nfase
(...) ao enredo e s figuras alegricas, representando os
vcios e as virtudes, que lutam pela posse da alma, no
de um santo, mas de um homem comum (Humanidade, Gnero Humano ou Todo Mundo) (...) Assim, de
maneira rudimentar, a moralidade exibe o conflito entre
foras contrrias, mas que coexistem no homem, e exigem
dele uma tomada de posio, uma escolha que constitui o
clmax da pea. Tal conflito bsico, que tem na moralidade
uma evidente funo didtica, uma constante (...) (In:
Stevens, 1988, p. 12)
153
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154
Resumo
m nosso trabalho, nos propomos a analisar a peregrinao portuguesa ao Mosteiro de Nossa Senhora de Guadalupe,
na Estremadura Castelhana, no sculo xv e sua
relao poltica dentro da Pennsula Ibrica que
encontrada nas rotas e que pode ser exemplificada
pelas diversas concesses rgias ao Mosteiro como,
por exemplo, iseno de tributos, autorizao para
os frades pedirem esmolas e autorizao para uso
do pasto. Nosso corpus documental encontra-se na
Chancelaria Rgia de D. Afonso v e nos livros de
milagres de Nossa Senhora de Guadalupe.
155
urante a Idade Mdia, as maiores peregrinaes eram So Tiago de Compostela, Roma e Jerusalm. Porm, haviam
outras de menor projeo e dentre estas, a nvel
ibrico, comea a destacar-se Nossa Senhora de
Guadalupe, cuja imagem encontra-se em um Mosteiro na regio da Estremadura Castelhana.
A proposta deste trabalho analisar a peregrinao portuguesa ao Mosteiro castelhano no sculo xv e sua relao poltica dentro da Pennsula
Ibrica. Para isto pretendemos analisar o perfil do
peregrino e as concesses dadas por D. Afonso v
ao mosteiro.
De acordo com Snchez- Albornoz, podemos
definir peregrinao como um movimento coletivo
no qual os indivduos se inserem e participam de
um fluxo impessoal e atemporal, diluindo assim a
personalidade na coletividade (Snchez- Albornoz,
1981, p. 79-81). Alm disto, devemos considerar que
peregrinar significa viajar ou andar por terras distantes, ou seja, o peregrino se fazia estrangeiro em
uma terra estranha para contemplar sua f. Michel
Sot acrescenta que o peregrino em todo lugar um
estrangeiro, desconhecido dos homens, desprezados pelos sedentrios, privado dos recursos de uma
coletividade determinada.(Sot, 2002, p.354) Para
Raymond Oursel, a peregrinao transformava
aquele que a fazia mais parecido com Jesus Cristo,
pois no percurso esta pessoa realizava a sua via sacra (Oursel, 1963, p.9).
Para Iria Gonalves, este conjunto de locais de
culto, espalhados pela Europa, levava a constantes
deslocaes de fieis que permitiu a transferncia
de valores e a escrita de itinerrios. A mobilidade
se explica devido ao culto religioso, uma vez que
as peregrinaes tinham como objetivo cumprir
votos, penitncias ou eram realizadas apenas por
devoo (Gonalves, 1980, p.119-121). Alem disso,
havia os aspectos econmicos, tais como as dificuldades que levavam muitos a procurarem lo-
157
158
vora que, alm de fazer grandes oferendas Virgem, levou os ferros com que tinha estado preso.
No cativeiro, prometeu visitar o santurio se obtivesse a libertao. Alm disso, afirma que depois de
fazer o voto, acordou ao amanhecer em Guadalupe
so e salvo(Archivo del Monastrio de Guadalupe.
Cdice 2. fol.62v). E por fim, temos o caso de Joo
Fernandes que, em 1486, fornece detalhes sobre sua
captura que fora vitima. Estando com o seu senhor,
Estevo Nunes, foram assaltados por treze mouros
a cavalo, a cerca de uma lgua de Tanger. Foi posteriormente vendido a um mouro que o levou para
as montanhas de Farrobo a doze lguas da praa
portuguesa. O voto que fez inclua o ato de servir
ao Mosteiro durante um ano, executando as tarefas que lhe mandassem(Archivo del Monastrio de
Guadalupe. Cdice 4. fol.128v)..
Porm, o peregrino mais ilustre foi D. Afonso
v que para l se deslocou trs vezes. A primeira
foi em 1458 e infelizmente rara foi a documentao que se conservou. A segunda est relacionada
sade. Foi realizada em 1463 e teve como objetivo
o agradecimento de uma cura. O monarca estava
enfermo de febre terciana e o estado era grave pois
os sditos realizavam procisses para rogar a Deus
pela vida de D. Afonso:
Comearom por toda la cibdad a fazer muchas pcessiones a andar los honbres descalos e fazer otros seales de
spera penitencia rogando a Nuestro Seor Dios que ouvese misericordial Del seor rey (Archivo del Monastrio
de Guadalupe. Cdice 1. fol.55v).
Alm de suas visitas, vrios so os privilgios concedidos por D. Afonso v ao Mosteiro de Guadalupe,
assim como medidas visando os interesses do santurio estremenho. Segundo Isabel M. R. Mendes,
os pedidos de esmolas com vistas construo dos
edifcios que fazem parte do conjunto arquitectonico e ao abastecimento dos hospitais so muito antigos.(Mendes, 1994, p. 35). Com isto, verificamos
que a autorizao da presena de procuradores no
Reino pedindo esmolas e o combate a falsos procuradores uma medida tomada pelo monarca.
Alm disso, em 1452, D. Afonso v escreve uma
carta endereada ao almoxarife de Silves, Joo do
Rego, para que este concedesse ao prior e frades do
Mosteiro de Nossa Senhora de Guadalupe a tena anual de quatro mil reais brancos (Chancelaria
de D. Afonso V, livro 36, fol 70v). Em 1459, aps o
falecimento de sua esposa D. Isabel, D. Afonso v
informa o almoxarife de Sintra que das rendas e
direitos que se recebiam para a rainha se desse esmola anual ao Santurio (Chancelaria de D. Afonso v, livro 36, fol 7) Verificamos igualmente que,
em 1481, no final de seu reinado, o monarca isenta
de pagamento de portagem, sal, pescado, azeite e
outros produtos com destino ao Mosteiro de Nossa
Senhora de Guadalupe.
Devemos observar que o Mosteiro de Nossa
Senhora de Guadalupe encontra-se situado em um
reino do qual Portugal manteve relaes diplomticas instveis. Com isto, podemos indagar qual seria a inteno das concesses promovidas por D.
Afonso v. Porque o estmulo dado aos portugueses
para esta peregrinao? Ao estimular esta peregrinao ao Mosteiro, Portugal contava com um ponto de apoio dentro de Castela para sua autonomia
na Pennsula Ibrica?
Dentro das relaes diplomticas dos dois reinos, durante o reinado de D. Afonso v, o momento
de maior instabilidade foi na sucesso de Castela.
A morte de Henrique iv, a 12 de dezembro de 1474,
e a relutncia da nobreza afecta a sua irm D. Isabel de aceitar a realeza da princesa D. Joana, filha
daquele monarca e de sua mulher D. Joana de Portugal, levaram D. Afonso v a intervir na sucesso
daquele reino (Serro, s/d, p.91).
O monarca portugus obteve apoio de parte da
nobreza castelhana que eram desafetos causa de
D. Isabel, na ocasio j casada com D. Fernando
de Arago. D. Afonso v ento, projetou casar com
sua sobrinha e assim realizar a integrao ibrica,
associando a coroa de Castela com a de Portugal.
Tal fato veio a ter como desfecho militar a Batalha
de Toro.
Apesar de todas as concesses dadas por D.
Afonso v ao Mosteiro de Nossa Senhora de Guadalupe, durante este conflito, o Mosteiro esteve ao
lado dos reis catlicos apesar de, geograficamente,
est rodeado de partidrios da causa portuguesa. O
apio do Mosteiro inclusive chegou a ser financeiro, pois forneceu ajuda econmica no valor cento e
cinqenta marcos a D. Isabel. Isabel M. R. Mendes
lembra que desde a Batalha de Toro, o santurio
festejava anualmente o triunfo castelhano (Mendes, 1984, p. 35)
Diante disto, podemos verificar que religiosidade e poder peregrinavam juntos ao Santurio de
Nossa Senhora de Guadalupe. Um caminho onde
no necessariamente concesses seriam sinais de
apio dentro das instveis relaes entre os dois
reinos.
159
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160
Resumo
161
163
164
165
7. Nenhuma pessoa secular ou eclesistica ouse exigir, por homem ou juramento, do mestre e dos irmos da mesma casa, as fidelidades ou as
seguranas restantes que so freqentes entre os seculares (Trad. Nossa).
8. odo Omne Datum Optimum.
166
A bula de Inocncio II foi, dessa forma, um posicionamento do Papa quanto s relaes e interdependncias comuns em seu tempo. Os cartulrios dos
Templrios das comunidades tanto de Richerenches
quanto de Rouai, localizadas no sudeste da Frana,
testemunham as teias de relaes e a complexidade
dos contatos entre a Ordem e os senhores locais,
sejam seculares ou eclesisticos. Jochen G. Schenk
(2008), tendo como fonte o cartulrio de Richerenches, analisou as formas de associao da nobreza
laica com a Ordem dos Templrios 9.
Por enquanto, importante destacar a permanncia de prticas como as descritas a partir da
nossa leitura das Gesta Episcoporum Cameracensium como algo que pode ser constatado pela historiografia e pelas palavras de Inocncio ii. Uma
permanncia que faz conceber o Novum Militiae
Genus e a leitura papal daquela representao enquanto um evento. Um evento na medida em que
trouxe, ou tentou trazer, novos referentes e possibilidades de novas relaes a partir de uma imagem ou das interpretaes dessa imagem. Ento,
buscamos realizar a considerao da articulao
entre permanncia e tentativa de ruptura a partir
do Novum Militiae Genus enquanto representao
relevante para a elaborao de condutas sociais e
polticas.
O Papado se apropriou do Novum Militiae Genus e buscou direcionar os milites vinculados ou
ligados a ele de acordo com seus interesses. Apenas
garantir a proteo ou a bno para os milites, tal
como rei de Jerusalm Balduino ii e So Bernardo solicitavam ao antecessor de Inocncio ii, no
deveria ser suficiente para a S. Tentar tir-los das
incertezas e da fluidez das alianas costumeiras parecia ser um passo necessrio. Evidentemente, Inocncio ii exigia aquilo apenas dos cavaleiros que
abraassem o Novum Militiae Genus. Uma exigncia que pode ser explicada pela eleio conturbada
do pontfice. De acordo com Hyden White (1970),
Inocncio ii foi eleito por uma minoria do colgio
cardinalcio, o que gerou a oposio da maioria, a
qual elegera um anti-papa chamado Anacleto ii. O
apoio de So Bernardo mostrou-se fundamental
9. Dedicaremos sobre este tema um estudo mais aprofundado durante o doutorado na medida em que essas associaes caracterizavam no
apenas os contatos sociais no seio da militia, mas tambm veiculava uma posio da nobreza secular quanto ao Novum Militiae Genus e a
poltica papal para ele.
167
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169
Resumo
eandro exerceu o bispado da cidade de Sevilha durante a segunda metade do sculo vi.
De sua vasta produo intelectual, somente
dois textos sobreviveram sendo um deles o De
instituione virginum et contemptu mundi libellum,
mais conhecido como Regula Leandri. Consistindo numa carta destinada sua irm Florentina, o
documento possui um prembulo, em que exalta
a castidade, e um conjunto de normas para a vida
numa comunidade monstica feminina. Nesta comunicao, analisarei a relao entre o discurso
acerca da virgindade presente nesta obra e o poder
episcopal ao qual as monjas se submetiam naquele
momento.
171
sta comunicao est relacionada pesquisa que desenvolvo no mbito do Programa de Estudos Medievais (pem) da
ufrj, sob a orientao da Prof. Dr. Leila Rodrigues da Silva desde o final de 2007 e com auxlio
financeiro de uma bolsa de iniciao cientfica. O
objeto de meu estudo a enfermidade nas regras
monsticas de Leandro e Isidoro de Sevilha, tendo em vista perceber sua relao com o disciplinamento corpreo e com as relaes de poder na instituio eclesistica catlica do regnum visigodo.
O enfoque de minha anlise, neste artigo, privilegiar uma das minhas fontes com que trabalho: a Regula Leandri. Proponho analisar a relao
entre o discurso presente no documento acerca da
virgindade e o poder exercido pela Igreja sobre as
monjas naquele contexto. Defenderei a hiptese de
que o episcopado catlico, buscando assegurar o
controle do movimento monstico, utiliza a necessidade de preservar a castidade como argumento
para submeter as ascetas.
O corpo no existe de forma apenas natural, atemporal e no problemtico. Pelo contrrio, expresso e experimentado por sistemas culturais que mudam com o tempo (Porter, 1993, p.258-259). Da a
possibilidade de uma investigao histrica que o
tome como objeto.
So poucos os estudos sobre o assunto na pennsula ibrica na poca visigoda. Geralmente oriunda da Espanha, a historiografia acerca do tema se
limita a apontamentos superficiais nas fontes de
pouco rigor terico. Diversos aspectos deste campo
da histria, como sua relao com a poltica, ainda
no foram explorados pelos espanhis. No Brasil,
algumas pesquisas realizadas no mbito do pem3
2. Corpo e virgindade
1. Sabe-se que outros foram redigidos devido a referncias s demais obras feitas por seu irmo Isidoro de Sevilha.
2 A partir deste momento, o documento ser indicado pela sigla rl.
3. Destaco a produo de Leila Rodrigues da Silva, na qual figura diversos artigos dedicados ao estudo do corpo em regras monsticas do perodo, tais como: Silva, L. R. Trabalho e corpo nas regras monsticas hispnicas do Sculo vii. Encontro Internacional de Estudos Medievais, 5,
2003, Salvador. In: Atas... . Salvador: Associao Brasileira de Estudos Medievais, 2005. p. 192-198; O sofrimento e a salvao do corpo: Trabalho
173
3. Vida asctica
A opo pelo ingresso no mosteiro compreendida
por Leandro como a forma ideal de evitar a corrupo do corpo pela sexualidade. Conforme anteriormente exposto, a rl afirma a necessidade do afastamento dos bens materiais e o apego aos preceitos
divinos. A virgem deve tambm evitar o contato
com leigas, vares e jovens para que no seja incitada ao mundo e a fornicao.19 Em contrapartida, no lhe recomendado o isolamento porque
tal encaminhamento resultaria em preocupaes
terrenas que a desviariam do servio de Deus.20A
rl demonstra as vantagens espirituais da vida em
comunidade. A principal de que as virgens proporcionam exemplos e oportunidades mtuas de se
e punio nas regras monsticas de Isidoro de Sevilha e Frutuoso de Braga. In: Theml, N, Bustamante, R. M. da C. et Lessa, F. de S. (Org.).
Olhares do Corpo. Rio de Janeiro: Faperj - Mauad, 2003. p. 99-106.
4. Neste artigo, Foucault analisa escritos de Cassiano do sculo v, concluindo que se tratem de textos representativos da mstica da virgindade
que se desenvolve a partir do sculo iii (1985, p. 37). Acredito que as idias de Leandro acerca da temtica estejam inseridas tambm neste
contexto histrico.
5. rl, Introduccion, p. 21-23.
13. rl, xvi, p. 54.
6. rl, Introduccion, p. 23.
14. rl, xix, p. 57.
7. rl, Introduccion, p. 26.
15. rl, xx, p. 59.
8. rl, Introduccion, p. 35.
16. rl, xxiv, p. 65.
9. rl, Introduccion, p. 34.
17. rl, vi, p. 43-44.
10. Conclio de Elvira, xiii. p. 4.
18. rl, xvii, p. 56-57.
11. rl, i-iii, p. 38-42.
19. rl, i-iii, p. 38-37.
12. rl, x, p. 47.
20. rl, xxvi, p.67.
174
era um bispo comprometido com o projeto de fortalecimento das instituies eclesisticas catlicas
por meio de sua aliana com o poder rgio sendo
ele, inclusive, o promotor da converso do monarca
Recaredo (Del Val, 1981, p.57; 67-69). Logo, o respeito s prescries comportamentais expressas na
RL desejado no apenas por Leandro, mas tambm por um grupo poltico do qual participa.
A rl afirma que a castidade como estgio mximo de perfeio e meio mais adequado de obedecer a Deus, mas sendo necessrio para preserv-la
o ingresso num mosteiro onde seguiria uma srie
de normas. Ento, o meio mais seguro de obter a
salvao e um lugar privilegiado no cu a participao num grupo controlado e que se segue princpios definidos pelos dirigentes da Igreja na regio.
Tais argumentos justificam a submisso a regras
definidas pelo episcopado e a insero dos ascetas
na hierarquia eclesistica.
5. Consideraes finais
Ao longo deste texto, analisei o conceito de virgindade presente na rl e sobre como este se relaciona com as tentativas de controle dos movimentos
ascticos. Demonstrei que Leandro, baseado na
tradio crist anterior, associa o ato sexual com a
corrupo do corpo e a virgindade, com o adiantamento de um estado que viria aps a morte e com a
certeza de obteno de um lugar privilegiado no cu.
O argumento de que a vida num mosteiro,
onde combateria o desejo sexual tanto no mbito
fsico quanto no espiritual, asseguraria a castidade
necessria privilegia a prtica de uma ascese submissa direo da elite da Igreja. Nesse sentido, as
idias expostas na rl esto relacionadas a conjunto
de tentativas de justificar a aceitao do controle
do movimento monstico pelo episcopado numa
poca em que este objetivava se fortalecer.
21. Tal idia est presente nos seguintes captulos: iv, viii, xiv, xxv e xxx.
22. Ambos praticavam uma forma de ascetismo que tendia ao isolamento.
23. O cenobitismo era uma modalidade de monacato baseado na vida em comunidade.
24. Alm da rl, h ainda outras trs: Monachorum, Communis e Isidori.
175
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176
Resumo
177
1. De acordo com a numerao atribuda por Lapa (Lapa, 1965), as cantigas mencionadas so as de nmero 23, 39, 40, 59, 63, 76, 106, 111, 135, 145,
146, 154, 175, 184, 185, 188, 210, 227, 248, 269, 296, 297, 302, 312, 321, 335, 353, 355, 361, 402 e 412.
2. Tratamos aqui das Sete Partidas, de Afonso x, do Livro das Leis e Posturas e das Ordenaes Afonsinas. As Ordenaes so a primeira coletnea oficial do direito portugus, vigente de 1446 a 1512, inspirada pelas Partidas. Embora este perodo seja posterior ao abarcado pelas cantigas
trovadorescas, cumpre ressaltar que as Ordenaes so o resultado de uma recolha e edio de grande parte das leis impostas por monarcas
anteriores, devidamente citados.
179
180
que no lhe tem simpatia insinuando que, enquanto este infano no identificado vive feliz com a
mulher, desconhece o fato de que os filhos que cria
so de Guilhade (Lapa, 1965, p. 321). Pero da Ponte
declara-se drudo, ou seja, amante carnal, da esposa
de um colega segrel, Pedro Agudo, dando-lhe um
herdeiro (Lapa, 1965, pp. 521-522), e tenta abrir os
olhos do amigo segrel Bernardo de Bonaval, que
tinha por companhia uma mulher de costumes
questionveis, que lhe traria problemas e causaria
embaraos. Alm disso, ela andava ligada a um
peo; havendo filhos, sua paternidade poderia ser
creditada a Bonaval (Lapa, 1965, p. 525).
Estevn da Guarda retrata Pero da Arruda
como um marido trado e conformado que, humildemente, enquanto sua mulher se prostitui e exibe
belas roupas, traz em seu colo filhos de outros homens (Lapa, 1965, p. 170). A esta cantiga, podemos
apresentar como contraponto o maldizer que Pedr
Amigo de Sevilha (Lapa, 1965, p. 462-463) faz a um
D. Estvan, que teve a cabea virada por uma mulher que no conhece, e pela qual j gasta muito dinheiro. A dona descrita como bem guardada, ou
seja, inacessvel, mas o autor deixa claro esse perigo: pode tratar-se de uma dona que no saiba rir
ou falar propriamente. Em outras palavras, os homens encontram-se virtualmente sem sada: mesmo quando a mulher apresenta recato, este pode
ser um artifcio para esconder eventuais defeitos.
A stira sobre infidelidade pode, tambm, ser
dirigida diretamente mulher: Afonso Eanes do
Coton, numa pardia cantiga de amor, comenta a gravidez da dona a quem servia, invejando o
homem, no identificado, que a teve. A poesia se
encerra com Coton relatando que h pouco chegara a Leo, ento ainda pouco conhecia os costumes
locais, mas que em sua terra, quando uma mulher
est grvida, sinal de que tem baron, ou seja,
macho o qual, lendo-se nas entrelinhas, o prprio autor da cantiga (Lapa, 1965, p. 72). Este tema
tambm explorado em cantiga de Gil Prez Conde, que afirma explicitamente que sua senhora teve
dele um filho, embora no cite o nome da dona em
questo (Lapa, 1965, p. 244). Martin Sorez satiriza
uma dona adltera que, mesmo persistindo no erro,
declara seu amor ao marido ainda que em pleno
ato sexual com outro homem (Lapa, 1965, p. 442).
que se prostitua com um peo, mas procurava resguardar-se da m fama para manter o renome de
seu pai intacto embora, note-se, se recuse a abandonar a atividade comprometedora (Lapa, 1965, p.
220).
Em resumo, para o bom progresso de uma linhagem, o recato da mulher alm de seu bom
sangue e de sua riqueza, no caso das donzelas e
damas nobres imprescindvel. Ela deve ser considerada honrada o suficiente para ser elevada ao
grau de esposa, e no permitir nenhuma mcula
em sua imagem. Os homens, por sua vez, procuraro garantir que tal coisa no ocorra; o adultrio,
como j mencionamos, um terror recorrente, pois
representa prejuzo considervel para o marido.
Em termos de herana, os filhos podem herdar
bens de suas mes (Afonso x, 1767, Sexta Partida,
p. 228-230)3, o que no representa problema porque no h dvida de sua ascendncia, mas que
no verdade em relao ao pai. Dessa forma, a
lei declara que as desonras no so iguais, sendo
o adultrio feminino muito mais grave, pois dar
ao filho de outro homem acesso ao patrimnio familiar. Neste ponto, a legislao rigorosa: uma
viva, por exemplo, deve esperar um ano para se
casar de novo, para resguardar sua reputao, pois
neste tempo possvel levar a termo uma possvel
gravidez e ter a certeza da paternidade da criana,
seja do antigo marido, seja do novo, aps o outro
casamento. Alm disso, evitar as suspeitas do noivo, que pode ficar intrigado com a pressa da viva em contrair novo matrimnio (Afonso x, 1767,
Sexta Partida, pp. 30-31)4. Tambm se a viva declara estar grvida de seu falecido marido e no h
outros filhos, a lei recomenda que ela seja muito
bem vigiada, mesmo para ir aos banhos, e que ms
a ms boas mulheres apalpem seu ventre para confirmar a gravidez em curso. A viva no dever
conviver com mulheres grvidas, nem deve haver
possibilidade de que consiga obter alguma criana
que apresente como sua, introduzindo no seio da
famlia a prole alheia e impedindo que os parentes mais prximos tomem o que seu por direito
(Afonso x, 1767, Sexta Partida, p. 98).
3. So exceo a esta regra os filhos de incesto, de religiosas, ou esprios; estes, filhos de mulher que se d a muitos.
4. Neste ponto, a legislao portuguesa mais branda, garantindo o direito do cnjuge vivo de se casar to logo queira, sem nenhuma punio
(Livro das Leis e Posturas, 1971, pp. 114-115; Ordenaes Afonsinas, 1999, Livro iv, pp. 86-87).
181
Portanto, uma das grandes preocupaes do homem medieval, em especial do nobre, no dividir
privilgios e/ou patrimnio com nefitos, sejam
eles quem forem, e, na medida no possvel, garantir uma linhagem com varonia que permita que seu
nome, seus ttulos e seus bens sejam perpetuados
e aumentados em valor e importncia. Quando a
esta tendncia se une o preceito da primogenitura, fecha-se o acesso linhagem e a suas benesses,
ponte esta que realizada pela mulher, por meio
do casamento e de uma prole legtima. Mas, como
afirmamos anteriormente, o nobre um guerreiro,
acostumado a tomar pela violncia o que deseja, o
que vai de encontro ao carter normatizador das
monarquias nacionais que comeam a se estabelecer na Pennsula Ibrica, de tal forma que se torna
necessrio educar e estimular esses jovens guerreiros a respeitar as regras de convivncia embora
tenhamos evidncias de que esta iniciativa no tenha, necessariamente, afastado esses cavaleiros de
forma definitiva do rapto e do adultrio com mulheres da corte.
Por fim, nas cantigas, a infidelidade feminina
tambm se manifesta por meio de seu relacionamento com clrigos, tentando-os a violar o celibato
e a castidade, num desrespeito no s parentela
da mulher, mas prpria religio. Bom exemplo
desta atitude a cantiga de Joan Airas de Santiago (Lapa, 1965, pp. 283-284), que escarnece de uma
dona pronta para assistir missa, mas que, vendo
um corvo, decide no sair de casa. Uma das interpretaes da figura do corvo seria que a dona
estaria dormindo com o prprio padre, cuja indumentria uma batina preta; ou seja: a fraqueza feminina no permite que a dona controle sua sensualidade, o que a faz desrespeitar seu compromisso
com Deus e a clericalizao de seu parceiro.
182
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184
Resumo
ncontrar a Sabedoria que permita compreender a vida. Talvez, esta seja uma das
aspiraes humanas mais longevas. De
formas distintas, esse desejo imiscuiu-se nas obras
de uma mirade de pensadores. O medievo no fugiu a essa regra. Entretanto, para muitos daqueles
que viveram nesse perodo, sobretudo entre os sculos xi-xiii, o verdadeiro saber no se encontrava apenas nos livros: ele se manifestava na busca
por Deus (logos encarnado) atravs de uma existncia austera e espiritualizada. Neste breve artigo,
analisaremos uma das manifestaes do conceito
de Sabedoria entre os medievais na obra Monodiae (c.1115) do abade Guiberto de Nogent (c.1055-c.1125), mais especificamente no que ele escreveu
sobre sua eleio abacial. Pelas palavras de Guiberto, julgamos possvel compreender a existncia de
um saber que no se limitava aos livros. Se Guiberto no portava a eloqncia de um So Bernardo
de Claraval (1090-1153), ou de um So Toms de
Aquino (1225-1274), seu testemunho nos apresenta um homem que caminhou entre a sabedoria
dos letrados e a sabedoria dos leigos a procura de
autoconhecimento.
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ncontrar a Sabedoria que permita compreender a vida. Talvez, esta seja uma das
aspiraes humanas mais longevas. De
formas distintas, esse desejo imiscuiu-se nas obras
de uma mirade de pensadores. O medievo no fugiu a essa regra. Entretanto, para muitos daqueles
que viveram nesse perodo, sobretudo entre os sculos xi-xiii, o verdadeiro saber no se encontrava
apenas nos livros: ele se manifestava na busca por
Deus (logos encarnado) atravs de uma existncia
austera e espiritualizada.
Neste breve artigo, analisaremos uma das manifestaes do conceito de Sabedoria entre os medievais na obra Monodiae (c.1115) do abade Guiberto de Nogent (c.1055-c.1125), mais especificamente
no que ele escreveu sobre sua eleio abacial. Pelas
palavras de Guiberto, julgamos possvel compreender a existncia de um saber que no se limitava
aos livros. Se Guiberto no portava a eloqncia de
um So Bernardo de Claraval (1090-1153), ou de um
So Toms de Aquino (1225-1274), seu testemunho
nos apresenta um homem que caminhou entre a
sabedoria dos letrados e a sabedoria dos leigos a
procura de autoconhecimento.
Entre o cu e a terra, existe uma escada pela
qual as pessoas sobem e descem, mas apenas os
bons ficam no alto. Presente em O sonho de Jac
(Gn 28, 10-22), essa diviso entre o secular (baixo) e
o celestial (alto) proporciona uma importante chave
de leitura sobre como a evoluo sapiencial de uma
pessoa era concebida no pensamento cristo medieval. Como Jac, aquele que tomava o caminho
do bem necessitava entender o significado da grandeza do que Deus fez pela humanidade. Contudo,
essa revelao s se mostrava a quem se entregava
sem hesitar aos chamados do Criador. Quem assim
Na abertura de seu tratado, So Bernardo de Claraval definiu que a humildade faz o homem entender
o quanto insignificante diante daquele que o fez.
Assim, quem humilde e obediente enxerga melhor. Ademais, humilde aquele que reconhece o
seu lugar e no se deixa seduzir pelo pecado. Referncia intelectual para os monges medievais, A
Regra de So Bento (c.545), por sua vez, definia que
a exaltao faz o homem descer, e a humildade o
faz subir aos cus.1
O anseio por elevao um dos pontos mais
conhecidos da doutrina crist. Em ambiente monstico, essa temtica adquiriu tons de austeridade.
Porm, a vontade humana de transcender o mera-
Se, portanto, irmos, queremos atingir o cume da suma humildade e se queremos chegar rapidamente quela exaltao celeste para a qual
se sobe pela humildade da vida presente, deve ser erguida aquela escada que apareceu em sonho a Jac, na qual lhe eram mostrados anjos que
subiam e desciam (Gn 28, 12). Essa descida e subida, sem dvida, outra coisa no significa, para ns, seno que pela exaltao se desce e pela
humildade se sobe. Essa escada ereta a nossa vida no mundo, a qual elevada ao cu pelo Senhor, se nosso corao se humilha. (A regra de
So Bento cap. 7)
187
mente mundano possua profundas razes pr-crists. Um dos principais cones dessa forma de pensar foi o filsofo grego Plato (c.429-347 a.C). Sobre
algumas das especulaes intelectuais de Plato, o
cristianismo construiu parte das bases que sustentam seu edifcio doutrinal.
Prestigiado ao longo de quase toda a Idade Mdia, Plato pensou o amor como uma entidade superior a ser buscada pelos humanos. Para Plato, o
caminho para se chegar ao amor verdadeiro passava pela promoo do bom saber e pelo desapego de
tudo que meramente satisfazia os sentidos corporais: [...] uma das coisas mais belas a sabedoria,
o Amor amor pelo belo, de modo que foroso
o Amor ser filsofo e, sendo filsofo, estar entre o
sbio e o ignorante (Plato, O banquete, 204 b).
Entre os monges dos sculos xi-xiii, o amor
foi tema recorrente. Para eles, o amor era a plenitude de Deus materializada em um sincero querer
bem ao prximo. Sem conotaes sexuais, o amor
tambm era seguir os exemplos deixados por Jesus
Cristo: Portanto, amars a Iahweh teu Deus com
todo o teu corao, com toda a tua alma e com toda
a tua fora (Dt 6, 5).
Santo Agostinho de Hipona (354-430) tambm
confiava na existncia de uma sabedoria superior
disposio dos ticos e abnegados (Brown, 2006,
p.49; Gilbert, 1999, p.45). Em suas Confisses, escritas entre 397 e 400 d.C, Agostinho afirmou que
o incio de seus estudos foi marcado pela vaidade.2 Com o tempo, ele percebeu que a simplicidade
do saber das Escrituras eternizavam seus detentores,3 porm, esta ddiva s se abria aos humildes e
maduros.4
Digresses parte, o fato que do fim da
Antigidade (sculos v-vi) Idade Mdia Central
(sculos xi-xiii), as percepes platnica e agostiniana de Sabedoria ganharam feies ascticas entre os monges, sobretudo entre os que viveram nos
sculos xi e xii. Desejosos por resgatar o que a re-
gra beneditina estabelecia, eles entendiam que viver sabiamente era pautar-se na bondade e obedincia de Cristo: nEle residia a sabedoria mister aos
desejosos de salvao (Colombs, 1993, p.23-35).
Todavia, alm dessa concepo tica de Sabedoria, existia entre os cristos, especialmente a
partir do sculo xii (Vauchez, 1995, p.70-90), outra
que se balizava no no universo especulativo dos
letrados, mas no cotidiano, dimenso na qual prevalecia um cristianismo vivido (Mulder-Bakker,
2005, p.185 e 188). Persuasiva, essa sabedoria era
portada por quem seguia os passos de Jesus sem
necessariamente se ligar a uma igreja ou mosteiro.
Portanto, essa gente descobriu na prtica uma existncia voltada para os ensinamentos cristos.
No intuito de concretizarem seus objetivos, essas pessoas no hesitaram em se desvencilhar de
bens pessoais e do convvio familiar. Despidas do
que consideravam pecaminoso, passavam a viver
em isolamento e simplicidade, atitudes que ofereciam um contato mstico com Deus. As anacoretas
eram exemplos desse saber: em florestas ou clausuras, pregavam e aconselhavam quem lhes procurasse (Mulder-Bakker, 2005).
Em nossa busca por entender algumas das manifestaes sobre o que era a Sabedoria no medievo,
encontramos o abade beneditino Guiberto de Nogent. Quase tudo o que sabemos sobre ele provem
de suas Monodiae (c.1115).5 Ainda criana, Guiberto
foi entregue por sua me aos cuidados de um tutor. De acordo com Guiberto, esse homem no era
sbio, mas uma pessoa que tinha pouco a oferecer
intelectualmente. Para compensar suas limitaes,
esse professor ofereceu ao seu aluno uma educao vigilante, baseada na moral e no rigor (Jaeger,
2000, p.226-229).
Na juventude, Guiberto entrou para a abadia
de Saint-Germer de Fly, local onde teve a oportunidade de estudar e desenvolver mais intensamente
sua capacidade intelectual (Garand, 1995, p.14-15).
2. (...) na idade da inexperincia, eu estudava retrica, esforando-me por ser o primeiro, com a inteno deplorvel e v de satisfazer vaidade
humana (Santo Agostinho, Confisses, livro iii, iv, 7).
3. Como eu ardia, meu Deus, em desejos de voar para ti, abandonando as coisas terrenas! No entanto, eu ainda no sabia o que pretendias
fazer de mim! (Santo Agostinho, Confisses, livro iii, iv, 8).
4. Resolvi por isso dedicar-me ao estudo das sagradas Escrituras, para conhec-las. E encontrei um livro que no se abre aos soberbos e, que
tambm no se revela s crianas; humilde no comeo, mas que nos leva aos pncaros e est envolto em mistrio, medida que se vai frente
(Santo Agostinho, Confisses, livro iii, v, 9).
5. Traduo utilizada: Labande (1981). (As tradues para o portugus de fragmentos de Monodiae aqui apresentados so nossas).
188
Ainda em Saint-Germer, Guiberto tornou-se discpulo de Anselmo de Bec (ou Canterbury) (10331109), um dos mestres mais respeitados no clero de
ento (Colombs, 1991, p.568-569).
Em Saint-Germer, Guiberto permaneceu cerca
de trs dcadas. Ele s deixou aquela abadia para
assumir seu abaciado em Nogent-sous-Coucy.
Como abade de Nogent, Guiberto atravessou as
duas primeiras dcadas do sculo xii. L, ele escreveu suas obras mais conhecidas, inclusive Monodiae. Contudo, a chegada de Guiberto quele lugar
no se deu de maneira simples e rpida. Para ele, o
fato de assumir um cargo na hierarquia eclesistica
assustava, pois colocava seus princpios prova.
No captulo 19 do primeiro dos trs livros que
compem Monodiae, Guiberto falou de dois episdios que marcaram sua trajetria monstica: no
primeiro, seus familiares tentaram obter um cargo
clerical para ele; o segundo se referia sua eleio
abacial. Dois momentos distintos, mas que nos permitem indagar em relao ao que era a Sabedoria
na Idade Mdia, ou, mais especificamente, como
este conceito era concebido por um monge que viveu e escreveu no alvorecer do sculo xii.
Quando Guiberto tinha pouco mais de vinte
anos, alguns de seus familiares lhe acenaram com
a possibilidade de assumir um cargo eclesistico.
Essas propostas mexeram com o monge: se por um
lado a chance de alcanar um posto importante na
hierarquia clerical o atraa, por outro, o receio de
ser condenado pelo pecado da simonia compra de
cargos eclesisticos trazia-lhe crises de conscincia. Para acalmar seu corao, Guiberto confessou
que recebeu ajuda da Providncia Divina:
Finalmente, estimulado e inspirado somente por Ti, meu
Criador, eu atingi o ponto onde meu temor de Ti me fez
desprezar os pedidos de favores de qualquer um. Decidi
transferir minha ateno e consentimento de qualquer
um que quisesse obter favores de mim, especialmente
honras eclesisticas, que vm somente de Ti. E Tu sabes,
Senhor, que especialmente nesses assuntos eu no desejo
nada, nem nunca desejarei, exceto o que recebo de Ti. O
que quero nisso, como em outras coisas, ser promovido
por Ti, no por ningum. (Guiberto de Nogent, Mono-
Com sentimento de culpa em mente, Guiberto utilizou passagens dos Evangelhos de So Mateus (Mt
21, 12-13) e de So Joo (Jo 2, 13-17) para reconhecer o erro cometido. Para ele, a sada era ser mais
forte que as tentaes. Com efeito, Guiberto negou
qualquer aspirao mundana que pudesse ter. Ao
6. 1. Seguindo os exemplos dos Padres e renovando um dever de nosso cargo, pela autoridade da S Apostlica, proibimos de qualquer forma
ordenar ou promover uma pessoa qualquer na Igreja de Deus por dinheiro. Se, pois, algum adquire desta maneira sua ordenao ou promoo,
que este seja privado totalmente da dignidade conseguida. [...] 2. Que nada confira a consagrao episcopal a no ser quem foi eleito canonicamente. Caso se ouse atuar de outra maneira, o que consagra e o consagrado sero depostos sem esperana de reposio. (FOREVILLE, 1972,
p.225) (A traduo para o portugus nossa)
189
190
Desde que assumiu o monacato, a vida de Guiberto foi dedicada leitura. Pela afirmao acima, fica
claro que leis que compunham a administrao de
um mosteiro eram temas que ele no dominava, sequer conhecia. Assim, a apreenso de sua me evidenciava o nervosismo que envolvia a situao: em
um curto espao de tempo, a inexperincia poderia
converter em desastre a honra recebida.
191
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192
Resumo
193
1. Identidade
Quando surge nos primeiros anos do sculo xiii, a
Ordem dos Frades Pregadores enfrenta, de imediato,
uma contrariedade: o cnon 13 do iv Conclio de Latro, que proibia o surgimento de novas ordens religiosas. A partir dessa, e at mesmo antes, uma srie
de contingncias gradualmente moldou a Ordem dos
Pregadores, tenham sido as caractersticas assumidas
pelos frades premeditadas ou resultado de adaptaes
s realidades encontradas ao longo do caminho.
Desde o sculo xviii, no entanto, quando os prprios frades passaram a mais uma vez voltar-se para
seu passado o que j havia ocorrido nos sculos xiii
e xiv com alguma regularidade tem-se insistido
bastante na Ordem que surge pronta e acabada da
mente de seu fundador. Embora, nas ltimas duas dcadas, alguns historiadores tenham se interessado em
reavaliar as venturas e desventuras dos frades negros
no seu sculo inicial, fica ainda por fazer uma anlise
calcada nos parmetros de uma historiografia que privilegie mtodos, fundamentao terica e imposio
de problemas. a tal que nos dispomos, entendendo
a adoo dos estudos como algo que serve a um fim
especfico - ou talvez a vrios e pautando-nos no
conceito de identidade que agora passamos a expor.
De forma geral, a identidade pode ser entendida
como uma resposta a algo exterior e diferente dela.
Segundo Foucault, a identidade socialmente construda. (Foucault, 1978, p. 425 et passim). Assim, a
identidade de grupo em dada sociedade depende da
construo do seu outro. (Edgar, 2003, p 169-172.). Tomaz Silva afirma que a identidade s se constri a
partir das diferenas. Katherine Woodward concorda,
mostrando que a identidade uma construo relacional, isto , depende de algo que lhe seja exterior, de
outra identidade diferente. Alm disso, toda a identidade uma construo histrica, no fixa nem
absoluta.
De acordo com Woodward, as identidades so
195
196
3. Os conflitos em Paris
Nos primeiros anos de sua existncia, os dominicanos eram geralmente bem recebidos pelo clero
secular Quando chegaram em Paris, em 1217, alugaram ali uma casa onde fundaram uma escola de
teologia. O domiclio, no entanto, no lhes era adequado, por isso Honrio III pediu Universidade
que ajudasse a nova ordem a se estabelecer. Assim,
em 1218, a universidade ofereceu aos frades um
hospcio, que se tornou sua propriedade em 1221.
Essa casa, o convento de Saint Jacques, tornaria-se
o mais renomado centro de ensino da Ordem em
poucos anos. Os primeiros telogos a ensinarem ali
(Jean de Saint Albans e Jean de Saint Giles) eram
seculares, e ali permaneceram por vrios anos. No
havia, portanto, animosidade inicial entre dominicanos e seculares.
A reviravolta que se seguiria pode ser expli-
1. A estrutura bsica dos estudos dominicanos foi formulada no primeiro Captulo Geral, em 1220, presidido por Domingos. O que ali se
discutiu ficou registrado nas Constituies Primitivas, o primeiro cdigo de uma Ordem religiosa a incluir prescries para o estudo. Estabelecese nesse documento que nenhum convento deveria ser fundado sem um telogo, o que aponta para a centralidade dos estudos na misso dos
pregadores. Estes deveriam prover meios de sustentar os telogos e, como resultado, um sistema tripartido de educao desenvolveu-se gradualmente, no qual cada priorado servia como escola. Esse sistema consistia em: studia conventuais, onde os frades receberiam uma formao
rudimentar em estudos bblicos e teologia, suficientes para seu ministrio; studia particularia, ou escolas provinciais, onde um grupo seleto
estudava um currculo mais aprofundado e se preparava para provvel treinamento nas casas gerais de estudo; e studia generalia, o pice do
sistema educacional dominicano, onde os melhores alunos eram preparados para se tornarem mestres em teologia. Poucos completavam todas
as etapas. CF. Mulchahey, Michele. First the bow is bent in study: dominican education before 1350. Toronto: pim, 1998.
2. Um novo adendo s leis dominicanas s era possvel caso fosse aceito por trs captulos gerais seguidos.
197
198
logia em Paris, era enviado para outra provncia, levando consigo seu prestgio e conhecimento, e estabelecendo uma reputao de intelectualizao para
sua Ordem. Era substitudo, no mais das vezes, por
um mestre menos experiente, o que causava dano ao
renome da corporao universitria como um todo,
e benefcio para as ordens mendicantes.
A importncia dada aos estudos pelos mendicantes parecia atrair para seus quadros os nomes
mais distintos entre os intelectuais do perodo. Clrigos seculares como Alexandre de Hales, Roger Bacon, Jean de Saint Giles, Robert Kilwardby, Rolando de Cremona e Hugo de Saint Cher deixaram de
s-lo para vestirem os hbitos dos frades. Os grandes nomes da filosofia e da teologia pertenciam os
mendicantes. Desta maneira, o desejo de fazer parte
da universidade com nveis de comprometimento
diferentes contribuiu sobremaneira para a crescente
controvrsia em Paris.
A relao cordial entre seculares e frades acabou
quando, em 29 de maio de 1229, a universidade reunida resolveu entrar em greve (Chartularium, 1889,
p. 118). Os pregadores de Saint Jacques, como seu
mestre secular Jean de Saint Giles, recusaram-se a
aderir. Aparentemente, instruir clrigos para o bem
geral da Igreja e da Cristandade era mais importante
do que os problemas enfrentados pela universidade.
Para tentar amenizar os rancores, os frades abriram
suas portas para todos os estudantes seculares que
quisessem continuar sua educao (Rashdall, 1936,
p. 372).
Durante a greve, Rolando de Cremona, j mestre em Artes, recebeu seu grau em teologia e tornouse o primeiro dominicano a ocupar uma ctedra na
faculdade. Antes do final da greve, em 1231, Jean de
Saint Giles vestiu o hbito negro. Os dominicanos
passam, ento, a ter dois mestres lecionando na faculdade de teologia de Paris. Aparentemente, quando a greve chegou ao fim, os dominicanos forma
aceitos sem muita comoo pelos membros da faculdade de teologia. Talvez porque ainda no parecesse
claro para os mestres seculares e, quem sabe, at
para os prprios frades a continuidade, e o gradual
fortalecimento, da ordem dos pregadores como algo
que careceria em separado dos seculares.
Por isso, embora no tenham se oposto radicalmente aos mendicantes nessa primeira greve,
certo que as reclamaes constantes dos seculares sobre os mendicantes no eram novidade para
o papado. Mas, at ento, todos os papas haviam
apoiado os mendicantes, inclusive o prprio Inocncio iv, por serem excelentes instrumentos para
a centralizao papal. Porque, ento, uma mudana
to radical da poltica romana? Queremos crer que
Guillaume de Saint Amour tenha ido muito bem
preparado para Roma, levando de baixo do brao
a obra Introductorius in evangelium aeternum,4 do
frade menor Gerard de Borgo San Domenico, inspirada no pensamento de Joaquim de Fiori e, portanto, considerada hertica.
Aqui cabe outra questo: mas se a obra fora
escrita por um franciscano, e os menores j haviam aderido greve em Paris, porque Inocncio
iv se convenceu dos malefcios dos pregadores?
A resposta encontra-se me dois fatos. Primeiro, a
hostilidade em relao aos mendicantes havia ultrapassado em muito os limites da Universidade
de Paris. Segundo fator fundamental para nossa
pesquisa no havia clareza, inclusive dentro da
prpria instituio eclesistica de quem eram e
o que faziam os mendicantes, por isso foi possvel
a sentena contra todos os frades, muito embora a
verdadeira pedra no sapato dos mestres de Paris
continuassem a ser os dominicanos.5
justamente por meio daquele elemento que
consideramos o mais preponderante em termos de
identidade o estudo que levou os pregadores
a um revs que deve ter parecido incontornvel.
Alm de terem que se submeter, por ordem papal,
aos decretos estabelecidos pelos mestres parisienses entre eles a ocupao de apenas uma ctedra
de teologia e, no limite, a imposio de cobrana
dos alunos, o que acabaria por descaracteriz-los
como mendicantes foram impedidos de levar sua
misso adiante sem permisso das autoridades locais, o que acabaria com sua centralizao e independncia. Tudo indicava que o ano dew 1254 seria
3. Mas, ainda em 1252, os mestres seculares tentam limitar o crescente poder mendicante lanando um estatuto que proibia a ocupao de mais
de uma ctedra em teologia por membros da mesma ordem religiosa. Tal decreto foi ignorado pelos pregadores, que alegaram no terem os
mestres poder para legislar sobre o caso. Inferimos tal posicionamento a partir de uma carta de Humberto de Romans escrita em 1256 (Humberto de Romanis, 1889, p. 351), afirmando que os mestres de Paris no tinham o direito de impor decretos e por assim proceder estariam indo
contra a igreja de Paris, j que apenas o bispo de Paris e seus delegados teriam jurisprudncia sobre a universidade (Chartularium, 1889, p. 310).
4. Esta obra no sobreviveu ao tempo, tendo sido abolida provavelmente ainda nesse periodo. Seu contedo, no entanto, conhecido pela refutao feita, provavelmente, por Guillaume de Saint Amour para ser apresentada ao papa nessa ocasio. (Chartularium, 1889, p. 272-276).
5. Matthew Paris, por exemplo, em sua Chronica majora, faz confuso entre as duas ordens. Cf. Matthew Paris. Chronica majora. Londres, 1993.
199
e que possibilitava a cura animarum.6 Mas a situao dos pregadores continuaria ainda incerta em
Paris, o que levaria por parte dos seculares, a ataques violentos como a obra cuja citao inicia este
comunicao. E, por parte dos pregadores, a uma
organizao ainda mais fechada e detalhada de
seus sistema educacional, garantindo assim o fortalecimento de sua identidade como ordem letrada.
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Zahar, 1995.
200
Resumo
201
1 Introduo
Esclarece ainda a sua funo, explicando, por exemplo, que o fato de serem indicadas nas receitas uma
quantidade de especiarias e de ingredientes fundamentais, sem qualquer indicao da quantidade ou
o modo correto de usar, sem falar no tempo de cozimento, [...] ci fa pensare che tali ricette fossero
memorie ad uso esclusivo di cuochi esperti ma di
un periodo pi tardo2 (Passarelli, 2000, p. 36). Por
outro lado, lembra ainda que [...]la cucina non si
1 Traduzindo: Algumas, por exemplo aquelas nas quais se faz referncia conservao dos alimentos (fruta, carnes), aquelas relativas preparao do vinho ou manipulao do mel, podem interessar mais a um agricultor do que a um cozinheiro. No nos esqueamos de que o famoso
garum romano (de que falaremos abundantemente mais adiante), era preparado segundo receitas usadas pelos Geoponicos, fragmentos de um
tratado grego sobre a agricultura.
2 Traduzindo: [...] nos faz pensar que tais receitas fossem memorias para uso exclusivo de cozinheiros especializados, mas de um perodo
mais tardio.
203
2. A expresso ditica no De re
coquinaria
Se o valor literrio do texto relativo, o fato de
representar o latim usado na Primeira Idade Mdia
(ainda que em cpia do sc. IX) fundamental para
o estudo da lngua dos textos em latim medieval
3. Traduzindo: [...] a cozinha no se inventa mas se transmite e o espelho da situao social e econmica de um perodo histrico, os alimentos da Roma imperial refletem o momento de mximo fulgor daquela civilizao, influenciada, tambm sob este aspecto, daquela oriental.
204
ilustrar o uso da segunda pessoa do singular, o alocutrio, oferece-se pelo menos um exemplo tirado
de cada um dos livros e dois dos excerpta. Os exemplos mostram o uso da forma verbal do presente do
indicativo, alternando com a do futuro do infectum ou a do presente do imperativo. Nos Excerpta,
documenta-se ainda o uso do futuro do perfectum.
ut mala et mala granata div dvrent: In calidam feruentem merge, et statim leua et suspende.
(Apicius, Liber i, xii, 2, 19)
para que as mas e as roms durem mais tempo: mergulha-as na gua fervente, retira-as repidamente e pendura-as4.
esicivm: Adicies in mortarium piper, ligusticum,
origanum, fricabis, suffundes liquamen, adicies
cerebella cocta, teres diligenter, ne astulas habeat. Adicies oua quinque et dissolues diligenter,
ut unum corpus efficias.]. Liquamine temperas et
in patella aenea exinanies, coques. Cum coctum
fuerit, uersas in tabula munda, tessellas concides.
Adicies in mortarium piper, ligusticum, origanum,
fricabis, in se commisces, <mittes> in caccabum, facies ut ferueat. Cum ferbuerit, tractum confringes,
obligas, coagitabis et exinanies in boletari. Piper
asperges et appones. (Apicius, Liber ii, i, 2, 46)
almndega: Colocars num almofariz pimenta,
ligstica, organo, triturars, molhars com garum,
acrescentars miolos cozidos, moers cuidadosamente, para que no tenha gros. Acrescentars
cinco ovos e dissolvers cuidadosamente para fazer
uma massa homognea. Temperas com garum, despejars no vaso de bronze, cozers. Quando estiver
cozido, despejas num tabuleiro limpo, fars em pedaos. Colocars num almofariz pimenta, ligstica, organo, triturars, misturas bem, <lanars>
numa panela, fars com que ferva. Quando estiver fervendo, esmigalhars a massa, ligas, baters e
despejars no prato. Salpicars pimenta e servirs.
gvstvm de cvcvrbitas: Cucurbitas coctas expressas in patinam conpones. Adicies in mortarium piper, cuminum, silfi modice [id est laseris radicem],
4. Para as tradues alm da edio da Belles Lettres, preparada por Jacques Andr (Apicius, 2002 [sc. IV d.C.] e do Novssimo dicionrio
latino portugus de F. R. dos Santos Saraiva (2000), foram usadas a edio espanhola de Brbara Pastor Artigues (Apicio, 1987 [sc. Iv d.C.]) e a
portuguesa de Ins de Ornellas e Castro (1997).
205
206
3. guisa de concluso
Verifica-se, desse modo, que a narrativa do mundo
comentado relativa aos textos dos receiturios de
cozinha escritos em latim dos sculos IV e VI d.C.
registram a mesma dixis pessoal que ainda vai ser
documentada no primeiro livro de receitas de cozinha em lngua portuguesa.
Mas essa expresso do alocutrio na segunda pes-
soa, tem um carter impessoal que se pode verificar nas receitas contemporneas. Quanto lngua
latina, Ernout e Thomas (1953, p. 144-145) afirmam
ainda que o sujeito indefinido pode tambm vir expresso pela passiva impessoal e pela terceira pessoa
do singular.
Dentre os fatos lingsticos apontados por Jacques
Andr (2002, p. xiv), encontram-se as receitas com
verbo na voz ativa ou na passiva, com verbo no
futuro ou no imperativo5. Note-se que um exame
inicial do tratado de Apcio mostra que alm das
construes com a segunda pessoa, podem ser encontrados os demais tipos de construo:
In sardis. Sardam farsilem sic facere oportet:
Sardam exossatur, et teritur puleium, cominum,
piperis grana, mentam, nuces, mel. Impletur et
consuitur, inuoluitur in carta et sic supra uaporem
ignis in operculo componitur. Conditur ex oleo, careno, allece. (Apicius, Liber ix, x, 1, 421)
para sardinhas. assim deve ser feita a sardinha recheada: Tirem-se as espinhas da sardinha,
moam-se poejo, cominho, pimenta em gro, hortel, nozes, mel. Recheie-se [a sardinha] e costurese, envolva-se na casca do papiro, ponha-se a cozer
em vapor numa vasilha tampada. Tempera-se com
leo, vinho doce e salmoura.
aliter cvcvmeres: Piper, puleium, mel uel passum, liquamen et acetum. Interdum et silfi accedit.
(Apicius, Liber iii, vi, 3, 84)
outra receita de pepino: Pimenta, poejo, mel ou
vinho de passa, garum e vinagre. Algumas vezes
adiciona-se benjoim.
boletos aliter: Caliculos eorum liquamine uel
sale aspersos inferunt. (Apicius, Liber vii, xv, 5,
315)
outra receita de cogumelos: Serviro as cabeas dos cogumelos [temperados] com garum ou
polvilhados com sal.
Dessa forma, resta prosseguir a anlise, partindo
da estrutura da coletnea, a fim de verificar at qua
ponto os diferentes empregos esto relacionados
207
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Wright. Roger. 1982. Latn tardo y romance temprano: en Espaa y la Francia carolingia. Vers. esp. de
Rosa Lalor. Madrid: Gredos.
208
Resumo
209
Introduo
o estudo da Literatura, independentemente do mtodo escolhido, exigem-se
certos resultados concretos e evidentes.
O que se espera de um estudo literrio , primeiramente, a compreenso da identidade humana e
social do autor cuja obra se investiga e que permita compreender melhor o ambiente que a obra
foi concebida. Acima de tudo, espera-se que a literatura na sua qualidade de fenmeno e, simultaneamente, transformao de outros fenmenos,
permita-nos apreender a dualidade manifestada no
fato de um homem se exprimir por meio da lngua
e de a lngua ser expressa atravs do homem. Essa
dualidade a confluncia de dois mundos distintos:
o mundo subjetivo (literatura) e o mundo objetivo
(lngua).
Os relatos histricos registram que o mundo
objetivo se tem transformado, mas o que sabemos
do mundo subjetivo? Os textos poticos dos sculos xv e xvi, por exemplo, registraram a associao
entre o amor e a guerra, rimando a serra (o local
onde habitavam as moas serranas) com a guerra
dos amores no correspondidos.
Que mudanas ocorreram hoje? Mudou o amor
ou o conceito de guerra? Ou ambos? Ou seria a
nossa relao com os smbolos que os representam
que se modificou?
Para responder tais indagaes, primeiramente, consideremos os temas universais e eternos,
presentes na arte e na literatura, vistos e analisados
como problemas existenciais e sociais, naturalmente estudados como um problema lingustico. Dentre eles, destaca-se o amor, manifestado de vrias
maneiras nas cantigas medievais do gnero lrico.
Nas cantigas de amor, por exemplo, os textos revelam um amor no-correspondido, reflexo de uma
questo social e existencial. O sentimento da coita
(sofrimento amorosos) e a morte como manifestaes da natureza humana foram adquirindo novas
211
taes ocorriam sofriam a influncia da igreja compostelana, as quais, transigindo com as revelaes
de carter religioso, ficaram gravadas na memria
do povo, transformando-as em cenas populares.
Na Idade Mdia, as mulheres reuniam-se nos
adros das igrejas, ou em lugares pblicos, organizavam bailes de roda, cantando versos amorosos
em coro. A Igreja, apesar de inmeros esforos, no
conseguiu acabar com as danas profanas, preferindo assimil-las nos cultos, permitindo que os
cantos em honra aos santos fossem entoados pelas mulheres, principalmente depois da descoberta
do corpo de Santiago, fato que tornou a cidade de
Compostela o maior centro de devoo de todo o
mundo. Deste modo, as mulheres passaram a desempenhar um importante papel como intrprete
no canto e na dana, em festividades religiosas ou
profanas.
Nunes (1928, p.125) registra que ... de se presumir que nesse cortejo feminino figurassem as
mais distintas pelo nascimento e, sobretudo, pela
habilidade em cantar e bailar. E j ento algumas
haveria de certo que, exmias nas duas artes, fizessem disto profisso, exercendo o seu ofcio em
pblico, cantando e bailando ao som do pandeiro.
Em Portugal, o gosto de cantar e danar das
moas estendeu-se aos monarcas como D. Afonso
vii e D. Fernando, alm das senhoras da corte que
presidiam as cerimnias. Entre os passatempos do
rei, a caa e a dana eram muito comuns por ocasio dos jogos e estas que ordenava por desenfadamento, de dia e de noite andava danando por
aqui mui grande espao, fato referido por Ferno
Lopes, na Crnica de D. Pedro i, rei que nutria verdadeira paixo pela coreografia. Quando D. Pedro
chegava de viagem, os que vinham receb-lo traziam os mestres de danas e o rei saa danando
com eles at o pao. Relata-nos assim a crnica:
Jazia el-rei em Lisboa ua noite na cama e nom lhe viinha
sono pra dormir e fez levantar os moos e quantos dormiam no paao e mandou chamar Joham Mateus e Loureno Pallos que trouxessem as trombas de prata e fez acender
tochas e meteo-se pella villa em dana com os outros; as
gentes que dormiam saam aas janelas veer que festa era
aquella ou porque se fazia e, quando virom daquella guisa
el-rei, tomarom prazer de o veer assi ledo e andou el-rei assi
gram parte da noite e tornou-se ao paao em dana. (Cap.
xiv da Crnica dE-Rei D. Pedro i, s/d, p. 48).
212
No Ocidente da Pennsula Ibrica j havia se desenvolvido uma poesia de inspirao folclrica ligada a terra e ao contato da vida campesina com
o mar. Na Provena, existia uma poesia mais culta
e elaborada de onde surgiram as cantigas de amor
que, segundo Lapa (1973, p.136) so poesias de visveis tons retricos. Em outras palavras, no que se
refere poesia medieval portuguesa, o que originariamente pertenceu as mais longnquas tradies
medievais, situam-se os cantares de amigo e sua
variedade temtica.
De carter autctone, essas cantigas sofreram,
ainda que em maior nmero, as variaes de forma e contedo, conforme o contato cultural com
os elementos provenais. Os elementos exteriores
foram facilmente assimilados, levando-se em considerao o fato de que a data estipulada para a
primeira cantiga galego-portuguesa, 1189, a Cantiga da Ribeirinha, aproxima-se da formao da
nacionalidade portuguesa reconhecida pelo Papa
Alexandre iii, em 1179, desvinculando o Condado
Portucalense (Mattoso, 1933, p.54) dos domnios do
reino de Castela. Esse acontecimento histrico representa a compreenso da proximidade cultural,
ou o acesso cultural entre os reinos do Ocidente
com a Provena.
De acordo com Nunes (1928), as bailias so originrias da Provena e vm acompanhadas de movimentos coreogrficos. So composies paralelsticas, de inspirao tradicional e folclrica, cuja
estrutura pressupe a existncia de um grupo de
moas em diferentes funes: uma delas, dotada de
melhor voz, a cantadeira, entoa as principais coplas
e as demais, em coro, modulam o refro. O nmero
de figurantes deveria corresponder ao de estrofes,
cada uma das meninas era encarregada de uma estrofe, e todas se reuniam para cantar o estribilho.
Os temas eram sempre alegres e festivos.
O contexto do qual se refere este estudo incorpora a tradio clssica greco-latina que havia
sido refundida na cultura que abrange os vrios
perodos da Idade Mdia. Essa transmisso cultural, plurivalente devido s reelaboraes que sofre,
recebeu significativa contribuio representada
pelos progressos do conhecimento patrstico e pelo
trabalho classificador dos enciclopedistas da tardia
poca medieval.
213
214
intimada pela me a danar para o amigo, contradizendo as leis morais ligadas ao matriarcado
medieval e surpreendendo a filha. Embora houvesse certa liberdade no relacionamento entre me e
filha, era comum a me impedir a filha de ver o
amigo, quanto mais danar para ele.
No dilogo em questo, h uma clara insistncia da me para que a moa demonstre a sua arte
coreogrfica ao namorado, repetindo-se na forma
de um paralelismo semntico, ao longo das quadras: - Bailadoj, ai filha, que prazer vejades,/- Rogo-vos, ai filha, por Deus, que bailedes/ - Por Deus,
ai mha filha, fazeda bailada/ - Bailade oj, ai filha,
por Sancta Maria. O clima j no de alegria como
na cantiga anterior, porque a me roga por Deus e
por Maria que a menina dance. O tom da resposta
de submisso, concordando desta vez (daquesta
vergada), porm, argumentando com a me que
pouco vos interessa que ele viva (de viver el pouco tomades perfia).
A natureza est representada na romzeira, na
terceira quadra da cantiga, segundo verso: anto
vossamigo de so a milgranada. A rom simboli-
215
BIBLIOGRAFIA
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Pimpo, lvaro Jlio da Costa. Histria da Literatura Portuguesa. Lisboa: Quadrantes, 1947.
216
Resumo
m seu estudo Letters and letter-collections, sobre o epistolrio medieval, Giles Constable definiu a correspondncia
de Pedro Damiano como pertencente a Idade de
ouro da produo do gnero na Idade Mdia. Tal
reconhecimento deveu-se tanto ao desenvolvimento formal de suas cartas em sua estreita aproximao com as regras da ars dictanti, quanto iniciativa de Damiano em utilizar todas as possibilidades
funcionais ofertadas pelo gnero de que se tinha
notcia no perodo. Justamente por isso, um dos desafios do estudo da correspondncia de Pedro Damiano, cuja produo compreende cerca de cento
e oitenta cartas e se estende de 1040 1069, est
em precisar os objetivos de Damiano em alternar o
uso entre as chamadas cartas curtas, as epstolas, e
as cartas longas, os opsculos. Tendo em vista essa
questo, a proposta dessa comunicao verificar
as relaes existentes entre a tipologia das cartas e
sua destinao, buscando estabelecer conexes entre a trajetria de produo epistolar de Damiano,
as intenes contidas nessa produo e o seu contexto de atuao como reformador.
217
pouco mais de um ano, desenvolvo minha pesquisa doutoral a respeito das bases
constitutivas da reforma da Igreja Romana
e a conseqente construo de um espao privilegiado para a interveno clerical na sociedade crist do sculo xi. Em especial, dedico-me ao estudo
do combate a simonia estabelecido pelas primeiras
iniciativas reformadoras e sua estreita relao com
o processo de sacralizao dos bens e dos ambientes eclesisticos. Dentre essas primeiras iniciativas
reformadoras, o foco de minha pesquisa est sobre
a atuao do eremita, bispo e cardeal Pedro Damiano (1007-1072) que, segundo a historiografia da
reforma eclesistica romana, desempenhou papel
significativo no combate a simonia e nas disputas
polticas entre o papado, o imprio e a aristocracia
laica romana1.
Autor de uma grande variedade de escritos,
dentre os quais se encontram textos hagiogrficos,
sermes e canes, foi composio de cartas que
Pedro Damiano se dedicou de maneira mais intensa e por mais tempo. Atualmente, sua autoria reconhecida em mais de duzentas obras, sendo que
destas cerca de cento e oitenta so cartas. Porm,
diferentemente do que se verifica em sua produo hagiogrfica e sermonstica, est presente em
suas cartas uma significativa diversidade tipolgica. Numa trajetria de escrita que mescla o uso
de cartas breves, como vemos na epstola ao Papa
Gregrio vi, e a produo de composies excessivamente longas, como o opscolo Dominus Vobiscum (O Senhor esteja convosco), Pedro Damiano
ultrapassou os limites formais estabelecidos pela
tradio epistolar prescedente e pelo uso comum
1. Entre eles, esto as obras clssicas de Fliche, Augustin. La Rforme grgorienne. 3 vol. 1924-1937 (Spicilegium sacrum Lovaniense. tudes et
documents 6, 9 e 16.). Idem; Martin, Victor (dir.). Histoire de lglise. 7 V. Paris: Bloud and Gay, 1953. A sntese de Morris, C. The Papal Monarchy: the western Church from 1050 to 1250. Oxford: Oxford University Press, 1989. Os estudos especficos sobre os movimentos monsticos de
Constable, G. Monks, hermits and crusader in Medieval Europe. Aldershot: Variorum Reprints, 1988; Idem. Three studies in medieval religious
and social thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1995; e Cowdrey, E. The cluniacs and the Gregorian Reform. Oxford: Oxford
University Press, 1970; Idem. Popes and Church reform in the 11th century. Asgate: Variorum, 2000. E os trabalhos mais atuais sobre o papel de
Damiano na Reforma de Fornasari, Giuseppe. Medioevo Riformato del secolo xi: Pier Damiani e Gregorio vii. Napoli: Liguori, 1996.
219
tas (LECLERQ, 1946). Os dictamen ou ars dictandi surgiram assim com uma estrutura disciplinar,
sendo responsveis tanto pelo registro das regras
formais de composio nos livros-texto (artes ou
summae dictaminis) e nas colees de modelos de
cartas, como pelo ensino dessas regras atravs dos
dictatores (professores). Ao longo do sculo xii,
o aumento e a divulgao desses livros-texto por
todo o Ocidente possibilitou o desenvolvimento de
vrios estilos, ao mesmo tempo, permitiu um progresso mais rgido no que diz respeito ao formato
de escrita das cartas.
Segundo a maioria dos manuais das artes dictaminis, a carta deveria ser composta em cinco
partes: a saudao, o exrdio, a narrao, a petio
e, finalmente, a subscrio (Constable, 1976; Leclerq, 1946). Mas na prtica a presena da saudao e da subscrio j demonstrava a inteno de
seguir um formato epistolar. Em relao ao estilo,
muitos dictatores seguiram a preferncia comum
a tradio epistolar da Antiguidade, enfatizando a
importncia da brevidade e da restrio da carta
a um tema especfico. Porm, quando se observa
aqueles que foram grandes autoridades de estilo e,
consequentemente se tornaram modelos a serem
seguidos, verifica-se que a brevidade na escrita das
cartas estava longe de ser uma prtica rigidamente
seguida.
Pedro Damiano, por exemplo, foi um dos autores que intercalaram mais livremente o uso das
cartas breves, as epstolas, e das cartas longas, nomeadas como liber e opusculum (Blum, 1956). Inmeras vezes em sua correspondncia ele anuncia
o conhecimento da norma estilstica, justificando
retoricamente seu descumprimento. Um exemplo
a carta enderea a Bonizone: Sim, padre amado,
provocado pela docilidade de teu afeto, querendo
escrever-te tanta coisa, excedi a medida da brevidade epistolar (Petrus Damianus, 1989, p. 167).
Do mesmo modo que Damiano, outro grande portavoz do gnero epistolar medieval, Pedro Venervel, ao comparar a brevidade de seus escritos com
a dos antigos salienta em sua carta aos Cartusianos:
at minhas cartas mais longas aparecero muito
breves (Constable, 1976, p. 20). Dessa maneira,
2. A datao das obras de Damiano, incluindo entre elas a correspondncia, deve muito aos primeiros estudos estabelecidos por Franz Neukirch
em 1875 e, posteriormente, s pesquisas de Giovani Luchesi (1972).
220
quais o avelanita se deparou. Em especial, possvel verificar a complexa teia de relaes que este
eremita de Fonte Avellana estabeleceu com as autoridades mais eminentes de seu tempo e o quanto
suas cartas desempenharam papel preponderante
na aproximao de pessoas, de comunidades religiosas e na ao conjunta em torno de ideais de
renovao moral estabelecidos, at ento, apenas
localmente. Em vista disso, questionar os objetivos que motivaram Damiano a empregar tipos to
distintos de cartas durante sua produo epistolar,
pode ajudar a identificar o quanto a renovao
formal e a adoo de uma flexibilidade tipolgica
do gnero estava atrelada ao aperfeioamento dos
mecanismos de comunicao, fundamentais para
efetivar a aproximao com grupos e pessoas envolvidos nas contendas reformistas.
Giles Constable (1976) afirma que a carta era
um documento consciente de carter quase pblico, frequentemente escrito com vistas a promover
um dilogo distncia entre o autor e seu destinatrio. Alm disso, ela objetivava tambm construir
uma espcie de presena virtual ao promover a circulao de seu contedo para um pblico mais amplo que o destinatrio particular. Atravs das cartas
era possvel prosseguir e aprofundar a distncia um
debate iniciado presencialmente. Como vemos na
carta que Damiano enviou ao conde Tegrimo iii:
Aquilo que naquela ocasio eu proferi em frente a voc,
eu considerei bem conserva-lo por escrito, porque o que
ouviu como uma palavra simples no pode passar facilmente, mas posto sobre seus olhos de forma fluente e organicamente argumentada se imprimir mais tenasmente
em sua memria (Petrus Damiani, 1983, p. 309).
volumen uitamus extensum, qui proposuimus epistolare compendium [para evitar o livro extenso, que propus este compendio epistolar].
221
teolgico sobre a onipotncia divina entre os monges de Monte Cassino; ou se nos detivemos sobre
o interesse testemunhado pelo prprio Damiano,
verificar-se- que o objeto consiste mais nos caminhos espirituais necessrios a luta contra o esprito mundano que assola os ambientes monsticos.
Essa liberdade em adaptar as disposies formais
a fim de potencializar o valor da mensagem ser
recorrente em boa parte da produo epistolar de
Damiano.
De maneira geral, a correspondncia de Damiano foi dividida e analisada a partir de uma tipologia
proposta por Constantino Gaetani, que remonta ao
sculo xvii, cuja base foi a separao das cartas em
epstolas e opsculos. No final do sculo xx, com a
insero de uma perspectiva diacrnica, proporcionada pela edio da correspondncia elaborada por
Kurt Reindel, foi possvel aprofundar as distines
tipolgicas e analisar as cartas a partir de uma evoluo temporal e temtica. Aproveitando-se dessa
nova perspectiva cronolgica e da tradio dos
estudos tipolgicos, DAcunto (2000, p. 63) distinguiu no interior da produo epistolar de Damiano
trs tipos de cartas: as cartas breves, as epistolas
de mdia extenso e os opsculos. Para o autor, as
cartas breves so os textos menores de trs pginas
que apresentam como caracterstica formal, a brevidade e a unidade temtica. Regularmente marcadas por problemticas circunscritas, elas tm um
interesse essencialmente prtico, visando a soluo
de questes bem localizadas. As epstolas de mdia
extenso tm at dez pginas e sua estrutura composta pela saudao, narrao e petio favorece a
abordagem de um nico argumento. Normalmente
tratam de questes doutrinais, sejam elas teolgicas ou disciplinares, vinculando-se a discusses
recentes sustentadas pelo autor ou a pedidos de es-
222
clarecimento feitos por parte dos destinatrios. Finalmente, os opsculos so so tratados de extenso
superior a dez pginas. Geralmente abordam um
s argumento de forma detalhada e apresentam ao
longo de sua extenso divises em forma de captulos, nos quais aprofundam a argumentao.
Essa distino em diferentes tipos de cartas
esteve por muito tempo atrelada dificuldade de
pontuar claramente uma sequncia na produo
das cartas. Porm, com os avanos na pesquisa sobre a datao das cartas foi possvel para alguns
autores empreender uma reflexo mais profunda
sobre as intenes que circundam o uso de um
determinado tipo e estrutura epistolar. O prprio
Reindel (1975, p. 208) foi um dos primeiros a indicar que o uso das cartas breves era alternado com
o emprego de cartas mais longas devido urgncia de uma questo prtica, de reivindicao ou
denncia, que usualmente requeria um texto mais
simples e direto. Ao tomar-se a referncia de diviso tipolgica de DAcunto, observa-se que em
nenhum momento, cartas breves ou epstolas de
mdia extenso foram extintas, cedendo lugar aos
opsculos. Ao contrrio, a produo dos trs tipos
de carta acompanha toda a trajetria da composio epistolar de Damiano. Acompanhando quantitativamente o volume de composio de cada tipo
de carta, foi possvel dividir a produo epistolar
de Damiano em trs fases temporais: a primeira,
de 1040 1056, que equivale ao incio de sua produo epistolar e sua atuao como eremita e prior
de Fonte Avellana; a segunda, de 1057 1064, que
corresponde a sua indicao ao episcopado de stia e a sua asceno ao cardinalato; a terceira, de
1065 1072, que compreende ao desligamento do
episcopado e retomada das prticas da vida solitria. Conforme a tabela a seguir:
Perodo
Cartas Breves
Epstolas Mdias
Opsculos
Total
1040-1056
23
13
11
47
1057-1064
15
16
42
61
1065-1072
19
32
11
72
223
224
episcopado de stia e ao cardinalato. O que acaba demonstrando o quanto a sua atuao reformadora a frente do priorado de Fonte Avellana
colaborou para estender sua esfera de interveno
para a alm da regio do Marche ou de Ravena.
A correspondncia de Damiano parece estruturada
a atender demandas especficas: ora ela atende a
esfera local, cujas solicitaes vinham das igrejas
e comunidades monsticas localizadas ao entorno
da comunidade avelanita; ora ela se torna o instrumento para a divulgao dos projetos de reforma
vindos da Cria Romana. Dessa forma, transformadas em modelo formal e tambm doutrinal, as
cartas de Damiano divulgaram e legitimaram os
ideais da comunidade avelanita dentro da unidade
crist, imprimindo os preceitos dessa clula local
no seio da Igreja Universal.
BIBLIOGRAFIA
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Reindel, K. Petrus Damiani und seine korrespondenten. Studi Gregoriani, 10, Roma, 1975, p. 203-219.
225
Resumo
227
229
Nesse perodo, o mundo presenciou o incio do embate entre a audcia e a sabedoria, pois os cavaleiros e os intelectuais representaram, por longa data,
a luta de dois perodos divergentes, onde cada qual
procurava resistir aos seus encantos e conhecimentos. Contudo, o desenvolvimento do comrcio e
das cidades fortaleceu ainda mais a necessidade de
pensar e refletir para poder comercializar.
Com isso, podemos dizer que o contexto do final do sculo xiii j apresentava maior desenvolvimento do comrcio e de proximidade das pessoas,
nas cidades. Portanto, as prioridades sociais se embasam com maior intensidade em conhecimentos
que favorecessem a compreenso de mundo e das
coisas que o compunham.
So Boaventura, nesse momento de transio,
final do sculo xiii, marcou expressivamente o seu
pensamento, pois questionou as mudanas que estavam acontecendo com a educao e asseverou
que os homens poderiam buscar novos conhecimentos, alm daqueles que j tinham. Deveriam
conhecer o mundo por meio da cincia, porm deveriam entender que a cincia s se tornava verdadeiramente compreensvel quando analisada sob
o entendimento da f, mas para isso, era preciso o
homem desenvolver a sua inteligncia. O uso da
inteligncia, segundo esse autor, levaria os indivduos a, tambm, compreenderem as trs formas
representadas pela Trindade em todas as cincias.
[...] Todas as cincias trazem em si a marca da Trindade,
mas, de todas, a que melhor a conserva a que se aprende
na Sagrada Escritura. Dela disse o sbio, que foi por trs
formas ensinadas, por causa dos trs sentidos espirituais
que encerra: o moral, o alegrico e o analgico (ou mstico), os quais correspondem aos trs atos hierrquicos da
vida espiritual: a purificao, a iluminao e a perfeio.
A purificao produz a paz, a iluminao conduz verdade e a perfeio realiza a caridade (Boaventura, prlogo,
p.235).
230
O incentivo da conscincia era o primeiro que deveria ser suscitado, aguado e retificado, porque
ao suscit-lo o indivduo estava recordando os pecados cometidos, ao agu-lo faria um exame da
conscincia sobre os pecados e ao retific-lo levaria
a considerar somente o bem.
A iluminao da inteligncia vinha depois da
purificao, pois para Boaventura Depois do exerccio da purificao, seguem-se os de iluminao
da alma, para que mister recorrer luz da inteligncia (Boaventura, cap. 1 2, p.238). Essa luz
recorreria aos pecados j perdoados e a luz da inteligncia cairia sobre os pecados que Deus havia
perdoado, porque, para Boaventura, se o Criador
no interviesse sobre as aes humanas, os pecados
seriam bem maiores.
Assim, aps essa compreenso haveria uma calo-
Desse modo, como forma de interveno a Deus, cumpriase a necessidade da orao, ao analisar que era por meio
da orao que a alma pedia misericrdia pelos atos do
corpo. Boaventura explicava a orao por trs partes que
ele tambm chamava de graduaes: [...] pela primeira
se deplora a prpria misria; pela segunda se implora a
misericrdia; e pela terceira se adora a Deus com o culto
de latria (Boaventura, cap. II, 1, p. 242).
231
se chegar a esses trs bens era preciso subir os degraus da vida espiritual que pregavam a expulso
dos pecados da alma, a imitao de Cristo e a unio
com Deus.
Da vida purgativa que se destinava a conduzir
a alma para uma tranqilidade, Boaventura dividia
em sete degraus. O primeiro era o rubor que o ser
humano sentia quando lembrava dos seus pecados,
como sinal de vergonha e que, com isso, j favorecia a um arrependimento dos seus maus comportamentos e aes.
O segundo degrau era o do temor que o indivduo sentia pela condenao da sua alma, quando
suas aes no correspondiam aos ensinamentos
de Deus. O terceiro era a confiana depositada por
Deus sua criao e trado pelos comportamentos
no correspondidos as suas Palavras.
O quarto era o pedido de socorro ao Senhor e
aos santos para proteo. O quinto era o rigor, pelo
qual se possibilitava domar a preguia, a malcia,
a sensualidade e o orgulho. O sexto degrau era o
fervor com que os homens tinham a inteno de
receber o perdo por suas atitudes e tentaes na
terra. O ltimo e stimo degrau era o sono da tranqilidade, ou seja, depois de conseguir subir todos
os degraus propostos por Boaventura, era o momento do descanso, da paz que Deus dava queles
que tinham desenvolvido a inteligncia e conseguido alcanar a vida eterna.
Todas as explicaes de Boaventura esto pautadas na Bblia e esse autor cita inmeras vezes,
no decorrer de suas discusses, nomes bblicos que
justificam e fundamentam as suas palavras. O stimo degrau, por exemplo, ele utilizou versculos
de dois Salmos, nos quais Deus colocado como o
caminho da salvao e proteo.
Guarda-me como a pupila dos olhos,
esconde-me sombra de tuas asas,
longe dos mpios que me oprimem,
dos inimigos mortais que me cercam (Salmo16, 8-9,
p.876-877).
[...]
Habitarei em tua tenda para sempre,
abrigar-me ao amparo de tuas asas,
pois tu, Deus, atendes aos meus votos,
e me ds a herana dos que temem o teu nome (Salmo 60,
5-6, p.925)
232
suma misericrdia entregou seu Filho para nos salvar (Boaventura, cap.iii, , p.249).
De acordo com Gilson, o pensamento de Boaventura era totalmente explicado pela Trindade, pois
se Deus criou o mundo e todas as coisas, logo tudo
se explicaria pelo prprio Criador. Assim, por meio
das Palavras Sagradas se chegaria a concluso das
dvidas que pairavam a respeito da criao do
prprio ser humano e das coisas que o cercavam.
Porm, para esse entendimento era necessrio que
o intelecto estivesse desenvolvido e soubesse interpretar e seguir os Divinos Mandamentos.
So Boaventura exemplifica a importncia
da sapincia asseverando que Cristo, como filho
de Deus, foi o mais sapiente dos homens, porque
soube demonstrar os seus sentimentos de amor,
piedade e misericrdia a todos os homens. Sofreu
por todos e voltou aos braos do Pai Criador. Desse
modo, segundo Boaventura, no existia nenhuma
melhor referncia do que a de Cristo na terra, pois
ele seguiu os ensinamentos do Pai, mostrou os caminhos que deveriam ser seguidos e conseguiu a
vida eterna.
Os questionamentos postos por Boaventura buscavam responder s questes vigentes no seu momento, ou seja, explicar o mundo pela criao divina, e ao mesmo tempo o autor tentava mostrar que
os homens, ainda que procurando outra explicao
para as suas aes e comportamentos, no deveriam, nunca, deixar de crer no Criador de tudo e de
todos. Para isso, era necessrio que os indivduos
desenvolvessem a inteligncia e aprendessem por
meio de interpretaes e ensinamentos, principalmente dentro das universidades, com os mestres, e
que as dvidas poderiam ser sanadas a partir das
palavras que Deus deixou na Bblia.
O autor tenta mostrar que as dvidas poderiam
ser respondidas se houvesse uma interpretao da
existncia humana e das dificuldades que a permeava fundamentada nos ensinamentos daquele que
tudo criou.
Nesse sentido, procuramos apresentar, por
meio deste estudo, que os ensinamentos fornecidos
por Boaventura, no final do sculo XIII, revelaram
a preocupao de explicar as dificuldades do seu
momento e que o seu pensamento procurou estabelecer um novo conhecimento. Com isso, acreditamos que os seus debates, dentro da Universidade Parisiense, tenham influenciado aos indivduos
buscarem um novo entendimento sobre o mundo
e, conseqentemente, tenham sofrido alteraes
de comportamentos e de pensamento, no processo
educacional da poca.
233
BIBLIOGRAFIA
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Boaventura de Bagnoregio. Os trs caminhos da vida espiritual, ou incndio do amor. Trad. de Frei
Saturnino Schneider. Porto Alegre: Edipucrs, 1999.
Boaventura de Bagnoregio. Brevilquio. Trad. Luis Alberto De Boni. Porto Alegre: Edipucrs, 1999.
Gilson, Etienne. Histria da Filosofia Crist: desde a origem at Nicolau de Cusa. Petrpolis: Vozes, 1970.
Le Goff, Jacques. Os intelectuais da Idade Mdia. Trad. Margarida Srvulo Correia. Santelmo Coop. De
Artes Grficas, 1984.
234
Resumo
235
Introduo
ensar em edio de textos antigos remete a uma problemtica inicial: que tipo
de edio ser a mais adequada para o
documento em questo? A dvida decorre do fato
de haver disponvel na tradio filolgica diferente tipos de edio edio em formato de bolso,
comentada, facsimilar, abreviada, interpretativa,
diplomtica, paleogrfica. Nota-se que h um continuum que se estende da mais inovadora mais
conservadora.
A escolha do tipo de edio aplicada ao estabelecimento de um texto exige especial reflexo
do editor. necessrio levar, principalmente, dois
aspectos em considerao: o pblico almejado e a
existncia de edies anteriores. A importncia de
se pensar no pblico-alvo gira em torno de que h
sempre em cada caso um interesse especfico subjacente. Veja-se o que dizem Castro e Ramos em
relao ao carter mais ou menos conservador que
devesse adotar uma edio:
No procuremos tomar partido contra modernizadores
nem contra conservadores, porque cremos que ambas as
posies tm lugar na publicao dos textos antigos. O
segredo est em saber escolher a mais adequada ocasio.
(Castro; Ramos 1986, pp.99-100)
cialmente, por uma edio de compromisso, notadamente, de natureza interpretativa, j que esse
tipo de edio como se sabe, preza pela preservao
dos fatos lingsticos patentes no texto, mas permite as interferncias necessrias por parte do editor
para o estabelecimento mais adequado dos vocbulos presentes no texto. Costuma-se dizer que nesse
tipo de edio ocorre o grau mximo de mediao
admissvel.
Nesse sentido, no presente trabalho, cujo objetivo final o de realizar um estudo lingstico e
um estudo lexicogrfico, que contribua para a elaborao de um Dicionrio Etimolgico do Portugus Arcaico, concentra-se, inicialmente, na edio
interpretativa a partir de um documento do sculo
xvi, intitulado Regra e Definies do Mestrado da
Ordem de Cristo. O perodo em que o documento se
insere tido como sendo um marco temporal importante para a observao da mudana lingstica
em lngua portuguesa, j que se situa na passagem
do portugus arcaico para o portugus moderno.
A obra em foco no possui autor, embora tenha sido produzida pela Casa Impressora de Valentim Fernandes, em 1503. Depositada na Biblioteca
Nacional de Lisboa, com cota de armazenamento
126 v, trata-se de um compsito de regras, como
possvel depreender a partir do ttulo, distribudo em duas partes, uma contendo vinte e quatro
captulos e outra contendo sessenta e cinco. Seu
teor histrico diz respeito a como os integrantes
das ordens religiosas, bispos, novios, clrigos e
cavaleiros, deveriam agir quanto aos rituais as
oraes e penitncias , administrao dos bens
inclusive como seriam repartidos os bens em caso
de morte de algum integrante , indumentria,
dentre outros procedimentos relativos Igreja e
vida social. Sobretudo durante o perodo medieval,
a Igreja passa a exercer cada vez mais poder, interferindo de forma enrgica nos hbitos e procedi-
237
238
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
3. Amostra da transcrio
Julgou-se necessrio apresentar uma amostra da
transcrio, contudo breve, s a ttulo de ilustrao,
uma vez que no seria pertinente expor toda a transcrio j feita at o momento. O flio a ser exposto
o flio 7 v. Nesse flio esto presente trs ensinamentos recorrentes da Igreja. Abaixo o flio 7 v:
[f.7 r]
por matinas e dez por vsperas e oito por cada huma das
outras horas: e rezem aas horas devidas se ho poderem
fazer. Da correiom dos que em elo errarem fique as seus
confessores. E se per algum caso de door ou doutro algum
trabalho ho que sabe leer non poder rezar has ditas horas:
possa rezar hos sobreditos pater nostro. E andando em
guerra: rezem como lhes seu mestre mandar.
Capitolo V: da profissam, confissam e comunham.
Item. Ordenamos que a profissom se faa como se sempre
fez scilicet que prometam beem e obediencia a os e a seu
meestre e a ordem atee ha morte: e os clerigos ao prior da
ordem. E que os cavaleiros e comendadores sejam cada
ano confessados e comunguem ao menos duas vezes no
ano scilicet per natal e paschoa florida.
Capitolo VI do jejum.
239
4 Consideraes Finais
O objetivo deste trabalho foi o de apresentar um
recorte do que vem sendo feito nesta pesquisa de
iniciao cientfica, iniciada em agosto de 2008,
com extenso at julho de 2009, na Universidade
Federal da Bahia, cujo propsito final ser o de,
BIBLIOGRAFIA
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Cambraia, Csar Nardelli. Introduo crtica textual. So Paulo: Martins Fontes. 2005
240
Resumo
ituar a figura da feiticeira no universo mstico das narrativas de cavalaria, evidenciando as diferentes descries e abordagens das
personagens consideradas bruxas, no intuito de revelar comportamentos que as colocam em posio
diversa da mulher medieval se torna o foco desta
pesquisa. Avalia-se a importncia histrica que o
perodo medieval possui no panorama da evoluo
humana, atravs da focalizao do papel das mulheres na criao e patrocnio das artes, as novelas de
cavalaria, retratando a realidade social dos sculos
medievais, bem como a figura mstica da feiticeira
e suas possveis interpretaes. Compem-se corpus
da pesquisa as obras Amadis de Gaula e A Demanda do Santo Graal. A investigao fundamenta-se
na leitura e resenha de textos tericos, crticos e histricos que propiciem suporte pesquisa. Na anlise
literria, so destacados os elementos estruturais da
narrativa, com enfoque no estudo da personagem,
distinguindo-se a figura histrica da mulher medieval da figura histrica e literria da feiticeira ou
bruxa. Segundo estudiosos, a certeza da malignidade
das mulheres foi conceito configurado na demonologia, que favoreceu a construo da imagem das
bruxas no inconsciente popular do medievo. Assim,
o reverso da figura feminina est representado na
Demanda do Santo Graal, cuja temtica religiosa
apresenta-se mais premente e a misoginia medieval mais aparente. Na obra Amadis de Gaula no
se pode atribuir essa mesma imagem s feiticeiras,
uma vez que o sobrenatural ocorre de forma espontnea, denotando um resgate pacfico dos valores
folclrico-pagos. A semelhana com a realidade
contribui para que a verossimilhana assuma o papel de credibilidade sobre as personagens. A maior
similaridade de uma personagem feiticeira com as
concepes reais da feiticeira medieval reveste a
obra de um singular e fictcio registro documental de
costumes.
241
Introduo
1.2 Personagem
Considerando-se a personagem um ser fictcio, o
problema da verossimilhana no romance acaba
por depender da possibilidade da personagem de
fico criar a impresso da mais pura realidade.
1.1 Romance
Segundo Aguiar e Silva (1973), o romance foi, muitas vezes, considerado como um herdeiro direto
243
244
2. A mulher no Medievo
O papel da mulher no esteve, ao longo da histria, necessariamente em crescente evoluo, como
muitas vezes se avalia. O que de conhecimento
geral, a partir da criao do Ocidente, principalmente a partir da Cristianizao instituda como
Igreja Catlica, o estigma fundamentado no domnio patriarcalista da sociedade medieval. Mas
h que se compreender que este fato, praticamente
oficializado durante o imprio de Carlos Magno,
no corresponde a uma progresso do que antes a
mulher vivia na Idade Antiga. As culturas de diferentes povos e tribos, que se situavam em localidades, muitas vezes, longnquas umas das outras,
permitiam o desenvolvimento social em direes
as mais variadas e em posies distintas, conforme
a herana tnica e as tradies cultuadas.
A literatura medieval est repleta da influncia
do Cristianismo e de seus disseminadores, os clrigos. Por conseguinte, o leitor cientifica-se de que
3. Identificando os reversos
Partindo da realidade histrica, em contraste constante com a realidade literria, chega-se aos sentidos para a palavra reverso: m ndole; infortnio
e contrrio, oposto apontados por dicionrios
brasileiros. Aplicando-os ao contexto do corpus
escolhido justifica-se a primeira proposio da
pesquisa, ao avaliar a figura da bruxa ou feiticeira
como a outra face da mulher medieval, historicamente estudada. Tomando como ponto de partida
os conceitos cristos de bem e mal, o bem se refere
mulher medieval e o mal bruxa e feiticeira.
No entanto, pode-se observar que a Igreja distorce
o papel feminino no meio social, indiferentemente do seu lado demonaco. As relaes de gnero
assomam-se ao mbito do divino, no tocante castidade praticada tanto para a mulher casada, digna
e virgindade defendida para a mulher solteira,
honrada que queria se manter pura e digna do Reino dos Cus.
245
246
4. Consideraes finais
Unindo o contexto scio-histrico em que as obras
foram escritas, o ambiente mstico que envolve as
narrativas arturianas e a teoria da personagem de
fico, procurou-se verificar a construo dessas
personagens femininas a partir da tica apontada
por Cndido e Rosenfeld (1985) que analisa a verossimilhana como principal fator de identificao
247
248
BIBLIOGRAFIA
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Rosenfeld, Anatol. Literatura e Personagem. In: Cndido, Antonio et al. A Personagem de fico. So
Paulo: Perspectiva, 1985.
249
Resumo
251
1. Este texto faz referncia a alguns dos resultados apresentados na monografia do Curso de Histria (ufpr), sob orientao da profa. Dra.
Ftima Regina Fernandes, com o ttulo: Escrita, poder e glria: cronistas tardo-medievais portugueses e a nobreza no primeiro movimento
expansionista no noroeste africano (c. 1385-1464). Curitiba: ufpr, 2007.
253
Note-se que nem todas as crnicas apresentam explicitamente, no incio do texto, a referncia de se
tratar de um prlogo, mas adotamos o critrio de
analisar o incio de cada obra, j que entendemos
que o contedo assemelha-se argumentao introdutria e explicativa, caractersticas de um prlogo. Iremos, portanto, centrar nossa investigao
sobre estes trechos, que nos do luz a alguns pontos
importantes sobre o ato cronstico.
No incio das crnicas de Gomes Eanes de
Zurara, podemos perceber que apenas na terceira
obra escrita por ele, ou seja, a Crnica do Conde D.
Pedro de Meneses, que o cronista procura explicar no incio de seu texto o que ele se prope a fazer enquanto ofcio de cronista. Nas anteriores, ele
cita mais o contedo e objetivo, mas na crnica do
primeiro governador de Ceuta que ele descreve
o que entende pelo ofcio de cronista rgio, o que
significa uma crnica, como observamos no trecho
abaixo:
O tempo e grandeza das obras nos constrangem fortemente que escrevamos, nos seguintes captulos, a gloriosa
fama da mui notvel empresa tomada por este virtuoso
e nunca vencido Prncipe, senhor Rei Dom Joo, que seu
propsito determinou forosamente por armas conquistar
uma to nobre e to grande cidade como Ceuta. No qual
feito considerando, podemos esguardar quatro cousas, s.
grande amor da F, grandeza de corao, maravilhosa or-
254
O rei cita que aps a leitura de uma crnica, provavelmente a Crnica da tomada de Ceuta, ele pde
recompensar os nobres e ou seus descendentes que
lutaram em nome da monarquia e do cristianismo,
enfatizando o tom prestativo e de referncia aos
acontecimentos passados que o documento servia.
Analisando a Crnica da tomada de Ceuta, encontrarmos um trecho onde Zurara afirma os motivos
do rei para qual foi encarregado, corroborando a
idia de referncia ao rei para os merecimentos dos
nobres portugueses:
255
256
Com a vitria de Dom Afonso v, vimos que o esprito de guerra contra os muulmanos, e o desejo de
percorrer a costa atlntica da frica, continuaram
vivos, e onde a produo de crnicas sobre esta temtica estaria reafirmando isto. Concordamos, enfim, com Luis Filipe Thomaz quando escreve:
certo que muitas transformaes irreversveis tinham
sobrevindo entretanto, das quais o incio da expanso
martima portuguesa no foi, de modo algum, a menor;
e sob as aparncias fictcias, de um regresso ao passado
incubam os germes de mutaes mais radicais ainda. Todavia, de momento, a atmosfera mental era antes propcia restaurao dos modelos da Idade Mdia. Eis o que
explica que as crnicas de Zurara, nomeado cronista-mor
do Reino em 1454, deixem transparecer uma ideologia nobilirquica, neomedieval, que contrasta vivamente com o
tom populista de aparncia mais moderna, do seu predecessor Ferno Lopes, que exerceu o cargo de 1434 a 1454.
(Thomaz, 1994: 128).
Com a afirmao da posio poltica de Dom Afonso v temos, portanto, um acrscimo do interesse
nos signos da nobreza, pautados na guerra e honra, onde merecimentos advinham de aproximaes
com a casa rgia. A derrota em Tnger em 1437 custou no apenas a vida de nobres e de Dom Fernando, mas o questionamento da imagem de Portugal
como reino abertamente inimigo dos muulmanos.
Aceitar esta derrota seria recuar frente ao inimigo
de f. O confronto, em suma, deveria continuar, e
nos parece que a poltica de Dom Afonso v ao requerer o relato dos acontecimentos passados, e a
disposio de Zurara em sugerir a ao, pois esta
estaria em crnica, aponta para o estmulo guerra
em frica, ao elogio destas prticas, que ao mesmo tempo em que sustentavam a monarquia, poderiam permitir a ascenso de nobres e burgueses
que quisessem investir numa aproximao rgia,
contando com benefcios.
O principal ponto observado foi que os solicitadores, principalmente Dom Duarte e Dom Afonso
v, tinham uma preocupao em trazer ao seu presente acontecimentos passados. No caso de Dom
Duarte, nos pareceu que ele procurava no apenas
documentar a dinastia de Avis, mas todos os monarcas de Portugal. Obteve, como conseqncia,
a elevao de Dom Joo i como Mexias, iniciador
da Stima Idade (Guimares, 2004). No momento
de escrita dos textos de Zurara, pensamos que elas
257
258
zar as aes em forma de crnicas, objetos que representariam uma distino social e hierarquizante
(Le Goff, 2005). Criava-se um ciclo entre as projees polticas, as aes e as intenes em registrar
no apenas em documentos identificados pelo presente; as crnicas criavam uma dimenso de passado importante para as relaes de poder no reino
portugus, dimenso esta que poderia potencializar
outras aes. As crnicas ao mesmo tempo em que
relatavam o passado, sugerem a manuteno destas
prticas, podendo ser exemplos de conduta.
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259
Resumo
261
trabalho literrio est alicerado em textos: a partir deles que crticos e historiadores literrios versam sobre a constituio das identidades culturais e estticas das
pocas e dos povos. No que diz respeito ao nascimento da literatura portuguesa, seus textos remontam ao sculo xii e xiii, e encontram-se em cdices
manuscritos que nem sempre so de fcil leitura.
De fato, tais cdices no so autgrafos, ou seja,
escritos pelos autores do texto de prprio punho; os
cdices mais antigos que testemunham o trovadorismo galego-portugus so cpias de cdices ainda
mais antigos, hoje perdidos.
Muitos foram os estudiosos que, desde a
descoberta dos trs grandes cdices que contm a
lrica galego-portuguesa (Cancioneiro da Ajuda,
Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa e
Cancioneiro da Vaticana), se dispuseram a estabelecer os textos das cantigas de amor, de amigo e de
escrnio e maldizer, primeiras manifestaes poticas da literatura portuguesa. O rigor e o mtodo
com que tais textos foram tratados variam muito,
e ainda hoje no se tem plenamente estabelecido o
corpus do trovadorismo galego-portugus. O estabelecimento ou apurao do texto literrio ponto
de partida para o trabalho de interpretao; da a
importncia que a Filologia e a Crtica Textual, em
sua busca incessante pelo texto fidedigno, tm para
a Literatura, fornecendo a esta fonte segura para o
desenvolvimento de seu trabalho.
Neste trabalho, aps breve apresentao do
principal cancioneiro medieval galego-portugus,
o Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa,
abordaremos algumas lies (e suas divergncias)
de trs editores das cantigas do jogral Pero Meogo: Jos Joaquim Nunes, Leodegrio A. de Azevedo
Filho e Stephen Reckert e Helder Macedo. Com a
anlise comparativa dessas trs lies pretendemos
ressaltar a importncia de se estabelecer um texto
o mais neutro possvel, o mais prximo possvel da
real inteno de seu autor. Longe de esgotar o assunto, o que pretendemos mostrar que a escolha
de uma variante, dentre outras possveis, pode levar o leitor a uma interpretao tendenciosa, condizente com a que o crtico pretende desenvolver
e afirmar.
263
264
do Conde D. Pedro, datvel de 1340-50). O Cancioneiro da Vaticana seria uma cpia destinada a
oferta ou troca, de onde vm uma maior preocupao com seu valor de livro, sendo obra de um
nico copista, mais atento ao aspecto esttico do
que fidelidade; j o Cancioneiro da Biblioteca Nacional teria sido mandado copiar para o uso pessoal
de Colocci, ficando evidenciado seu maior cuidado
filolgico.
O cdice foi descoberto em 1875 na biblioteca
do conde Paolo Brancuti di Cagli e, desde 1880, esteve nas mos do fillogo italiano Ernesto Monaci.
Em 1924, foi comprado pelo governo portugus e
desde ento se encontra na Biblioteca Nacional de
Lisboa, possuindo a cota COD 10991.
Como nos mostra o Dicionrio da Literatura
Medieval Galega e Portuguesa (1993), atualmente
o Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa
constitudo por 355 flios de papel de 280 210 mm
protegidos por flios de guarda iniciais e finais
modernos numerados por Molteni (seu primeiro
editor parcial). Os flios esto agrupados em 41 cadernos, desde bnios a heptnios, com predomnio
de qunios, havendo presena de reclamos e letras
de assinatura no final dos cadernos. H presena de
tales (resduos de flios cortados), flios rasgados
e flios em branco. Foram identificadas mos de
seis copistas; quanto ao tipo de letra, cinco copistas
utilizam variedades gticas bastardas e um, o copista principal, escreve em cursiva itlica chanceleresca. O manuscrito encontra-se em bom estado de
conservao e de fcil leitura. Observou-se a presena de cinco tipos diferentes de filigranas, todos
freqentes em documentos quinhentistas da Cria.
No incio do cdice encontra-se a fragmentria Arte de Trovar. O texto est disposto em duas
colunas e apresenta vrias lacunas. S utilizada
tinta preta, bem cida. As composies esto divididas por versos e foram numeradas por Colocci de
1 a 164 (h muitos erros de numerao). Esto presentes neste cancioneiro cerca de 1560 cantigas dos
trs gneros poticos medievais (cantigas de amor,
de amigo e satricas escrnio e maldizer) de autoria de 150 trovadores e jograis, que so atribudas
explicitamente, com a nomeao dos autores. Este
cdice testemunho nico para cerca de 250 composies trovadorescas. Nos espaos em branco h
265
266
A primeira leitura, de Reckert e Macedo (1996), apresenta o dilogo entre a filha enamorada e sua me
na forma de perguntas e respostas, explicitando as
perguntas da me com o uso do ponto de interrogao. Nas duas primeiras estrofes a me se dirige filha; o refro, que traz a resposta da moa, est entre
parntesis: com essa leitura, o leitor tem acesso ao
que a filha est pensando, mas sua me no. O dilogo prossegue com a tentativa da filha de esconder o
verdadeiro motivo de sua demora na fonte, na forma
de evasivas (sinalizadas pelas reticncias); na quinta
estrofe a me retoma o turno no dilogo, dessa vez
bradando e desmascarando a mentira da filha, o que
representado por pontos de exclamao. no ltimo verso da cantiga que o refro explode, com o uso
da exclamao: a filha tardou devido a seus amores.
S agora o refro, at ento velado pelo uso dos parnteses, ouvido pela me.
A leitura de Azevedo (1974) bastante diversa:
as interrogaes da me so indiretas, de forma a
no intimidar a filha. O refro, transcrito da mesma forma em todas as estrofes, no est discursivamente ligado ao dilogo, tendo a funo de sugerir
o verdadeiro motivo da demora da moa na fonte.
Outra cantiga que apresenta uma sria divergncia de leitura Fostes, filha, eno baylar. No
manuscrito da cantiga, l-se perfeitamente, no refro da primeira estrofe (na lio de Azevedo):
Nas trs outras estrofes da cantiga, o refro, no manuscrito, o seguinte (tambm seguindo a lio de
Azevedo):
Azevedo e Reckert e Macedo seguem corretamente o manuscrito, mantendo, no refro da primeira estrofe, namorado, e nos demais, cervo.
Nunes, porm, uniformiza os refres, adotando somente a palavra cervo:
267
BIBLIOGRAFIA
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268
Resumo
269
271
272
pelos nobres tambm ameaaram deixar a assemblia caso D. Joo insistisse em reduzir o seu nmero, advertindo ao regente que no havendo representantes da fidalguia nas cortes, nenhuma medida
poderia ser tomada a respeito desse grupo. Diante
da relutncia da nobreza em aceitar a imposio de
novas regras, D. Joo se viu frente a um impasse:
ou prescindir da nobreza nas decises da corte ou
aceitar todos os procuradores dos nobres na comisso de determinadores.
Na medida em que um dos problemas a ser resolvido na assemblia dizia respeito diretamente
nobreza, pois o regente pretendia a diminuio
das tenas e subsdios concedidos aos fidalgos a fim
de melhorar a situao do errio rgio, tornavase premente a presena de tal grupo nas decises
do parlamento. Era necessrio que prevalecesse a
defesa e o respeito aos privilgios nobilirquicos,
que no poderiam ser afetados sem a autorizao
sumria dos representantes dos grupos envolvidos.
Por fim, o regente cedeu e a assemblia iniciada em
10 de setembro prosseguiu como de costume, sem
a comisso interestamental. E desta forma, as pretenses do regente de resolver a situao calamitosa nas reas da administrao da justia, da defesa
e, sobretudo, das finanas do estado (Sousa, 1990,
p.410) teve que ser protelada at que D. Joo se tornasse efetivamente o rei de Portugal.
Neste episdio importante verificarmos que
desde o incio ainda como regente as medidas
de D. Joo colocaram contra ele parte da nobreza
e do clero, temerosos de suas aes. Tais conflitos
se fizeram presentes desde o momento em que ele
assumiu o poder, posto que os grandes do reino
acusaram D. Joo ii de no respeitar honras e privilgios destes grupos, intrometendo-se na administrao e nas justias locais. Enquanto regente,
D. Joo mostrou que no tinha a pretenso de dar
continuidade poltica de concesses de seu pai,
criando desde logo uma grande indisposio entre
a nobreza e o futuro monarca. No dizer de D. Joo,
seu pai lhe deixara to somente o senhorio das estradas de Portugal, tantas foram as terras e jurisdies concedidas aos fidalgos durante o reinado
de D. Afonso v. Assim, para reforar o poder e a
autoridade rgias, ao ser entronizado, ele teve que
enfrentar os nobres, obrigando-os, como sditos e
No cenrio, todos os elementos estavam distribudos de forma a exaltar o poder maior da sociedade,
figurado no rei, que congregava em torno de si todos os grupos sociais. Assim, no topo da sala havia um estrado e subindo mais trs degraus, todos
viam o monarca assentado no trono. No estrado, ou
seja, num plano inferior junto ao monarca estavam
os homens que o auxiliavam na administrao do
reino, a saber, o camareiro-mor, o mordomo-mor, o
guarda-mor, o meirinho-mor, o secretrio, dois vedores da fazenda, o porteiro-mor e os magistrados
supremos. No nvel do cho estavam os representantes dos trs estados: direita colocava-se o clero, esquerda ficava posicionada a nobreza e por
fim, no meio da sala, ficavam os representantes da
terceira ordem.
A posio superior que D. Joo ii ocupava na
cerimnia de entronizao no estava em dissonncia com o ideal de rei-suserano do perodo medieval, no qual o monarca era o primeiro entre os
senhores do reino, ocupando, portanto, o lugar de
primazia dentro das relaes de reciprocidade feudo-vasslicas. D. Joo ii, diante dos representantes do clero, da nobreza e do povo, se apresentava
como uma figura distinta e acima de todos os grupos sociais, capaz de exercer um poder concedido
apenas por Deus e ratificado pelos sditos.
Entre as homenagens rendidas ao monarca,
os sditos declararam que desejavam ser seu homem, beijando-lhe as mos em sinal d obediencia
e sogeio e senhorio como a nosso Rej e senhor
que direita e uerdadeiramente soes. (Chaves,
1983, p.121-122). Para beijar a mo do novo rei, os
sditos-vassalos deveriam ir ao encontro daquele
que ocupava o lugar cimeiro na cerimnia. Assim,
ficava evidente a superioridade do monarca e sua
inteno de submeter aqueles que tinham em suas
mos os privilgios das armas e da justia.
Neste ato, ajoelhados em sinal de obedincia
e humildade, todos deveriam reconhecer D. Joo
ii como sendo seu nico e natural senhor, jurando
como boons e leaes e uerdadeiros vassalos sbditos e seruidores e uos obedecemos seruirmos, faremos e compriremos todos os vossos mandados leal
e uerdadeiramente assj como leaes e uerdadeiros
uassallos sam tevdos e obriguados fazer a seu Rej
e senhor. (Chaves, 1983, p.121-122). Como podemos ver, os rituais de deferncia que constituam a
cerimnia de entronizao de D. Joo ii buscavam
demonstrar que todos deveriam obedecer aos mandados do rei para que a justia na terra fosse mantida. Essa era uma condio indispensvel, pois a
obedincia era tida como virtude annexa a justia, sem as quais a paz e o bem comum no seriam
alcanados. (Chaves, 1983, p.64).
D. Joo ii buscou legitimidade para seu poder e
obedincia de seus sditos atravs do juramento de
fidelidade, que j estava consolidado na sociedade
como o mais importante mecanismo de estabelecimento de relaes de reciprocidade entre os integrantes da nobreza, pois senhores e vassalos eram
obrigados a cumprir o dever de lealdade e proteo
mtuas. No entanto, D. Joo no respeitou todos os
elementos que compunham esse ritual feudo-vasslico. De acordo com o costume, considerava-se
que todalas cousas que nas menagens se prometem
do vassallo ao senhor todas aquellas deue o senhor
a seu vassallo, (Chaves, 1983, p.66) e cumprindo
com essa proposio, todos que estavam presentes na cerimnia de aclamao foram obrigados a
jurar fidelidade e submisso ao rei. Este, todavia,
se recusou a jurar fidelidade a seus vassalos, enfatizando mais uma vez a superioridade do rei em
relao aos sditos.
Ao jurar fidelidade e no cumprir o juramento,
273
274
Sem romper a necessria relao de reciprocidade entre o rei e os trs estados do reino, D. Joo ii
prometeu reger e governar com justia, respeitando
privilgios e coibindo abusos. Todavia, assumiu esta
obrigao sem prestar nenhum juramento a seus
sditos. O Prncipe Perfeito utilizou, portanto, os
elementos do contrato feudo-vasslico para impor a
autoridade rgia enquanto poder supremo da justia, da guerra e da concesso de mercs, subtraindo
nobreza parte significativa de seus privilgios. Desta
feita, D. Joo ii evidenciava que durante seu reinado,
o monarca no apenas um entre iguais, mas sim o
homem escolhido por Deus e aclamado pelo povo
para estar acima de todos os demais.
275
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276
Resumo
277
Introduo
1. A Infanta D. Maria
D. Maria de Portugal foi filha do Infante D. Duarte
duque de Guimares seu pai viveu de 1515 a 1540
, sobrinha de D. Joo iii e neta do Rei Venturoso.
Filha da alta nobreza portuguesa, a infanta D. Maria era letrada e culta, lida em grego e latim, casouse em 1565 com o 3 duque de Parma, Piacenza e
Guastalla: Alexandre Farnsio, tendo levado no
seu principesco enxoval um pequeno livro de receitas de cozinha (santos, 1997, p. 37).
Um tratado da cozinha portuguesa do sculo
1. Na apresentao do livro, edio de 1963, Cunha Seo da Enciclopdia e do Dicionrio Instituto Nacional do Livro se escreveu: Publicou
hoje o segundo volume da coleo Dicionrio da Lingua Portuguesa Textos e Vocabulrios, ao qual, falta de ttulo, pois o manuscrito
no o possui, denominamos Um Tratado da Cozinha Portuguesa do Sculo XV cf. p. 7.
279
uma nica pessoa, mas por autores annimos, entretanto, bom lembrar tambm que, poca no
havia uma gramtica da lngua portuguesa.
Ao todo, o livro se constitui de 61 receitas. As
mesmas foram divididas em cadernos ou partes,
das quais se destacam: os manjares de carne ou
magares de carnne; manjares de ovos ou mamgares de ovoos; manjares de leite ou mamgares de
leyte e conservas cousas de comseruas. O grupo
maior de alimentos so as carnes com 26 receitas,
em seguida, o grupo das conservas, que contm 24
receitas, os manjares de leite com 7 receitas e os
de ovos com 4 receitas. Entretanto, de acordo com
Celina Abbade (2008, p. 19) O Livro de Cozinha
da Infanta D. Maria de Portugal, cuja edio crtica
mais completa foi publicada em Coimbra, em 1967,
aos cuidados de Giacinto Manuppella e Salvador
Dias Arnaut tem mais seis receitas avulsas, perfazendo um total de 67 receitas.
Por consenso, pesquisadores e fillogos que
se embasaram em mtodos estritamente lingsticos afirmam que este livro de receitas surgiu
entre os sculos xiv e xv, pois no havia outras
receitas escritas que permitissem uma comparao. A maioria das receitas era escrita a partir da
oralidade dada pela tradio no se tinha livro
de receitas. Foi um processo de ver fazer e ouvir. Por isto, este documento retrata o quotidiano das pessoas. Na poca em que as ditas receitas,
provavelmente, foram escritas usava-se as iguarias
rabes como a laranja e o limo, como tambm o
azeite mediterrnico.
As receitas em conservas, contudo, foram invenes do final do sculo xv e xvi, quando, j
se havia algumas escritas. Entre os ingredientes,
se encontra o acar, produto caro e escasso, que
a Alta Idade Mdia no conheceu. Entretanto, a
culinria portuguesa, j em finais da Idade Mdia
ainda provou a falta de ingredientes alimentares,
mesmo para a nobreza, o que foi superado somente
com a descoberta da Amrica. Portugal, antes de
tudo, uma mescla de ingredientes e culturas: rabe, indiana, brasileira, etc.
2. As receitas so literaturas no sentido de serem inventadas como so os poemas, as crnicas. No no sentido ficcional, mgico ou incabvel
realidade social. Assim sendo, o escrito literrio ou o dito documental no pode nunca se desligar de sua existncia de texto, de sistema construindo, no qual a percepo e a apreciao tornam-se categorias e regras que remetem para as suas prprias condies de produo (Borges,
Valdeci Rezende, 1996, p. 210).
280
Outro fator que leva datao da escrita deste livro, no final da Idade Mdia, a presena de invenes e modernizaes que afetaram tambm a culinria portuguesa, como o caso do grande nmero
de utenslios usados. Como afirma Celina Abbade:
instrumentos de trabalho, para colocar alimentos,
para lquidos, que vo ao fogo, tapadores, para cortar, para perfurar (2008, p. 14). Os utenslios mais
usados so: colher, tacho, escudela, tigela, pcaro,
dedo, alguns dos quais poderiam ser usados como
medidores de ingredientes.
Como ainda no havia uma imprensa definida
em Portugal, tais receitas foram grafadas de forma manuscrita. O livro de receitas que possumos,
contm o fac-smile, do qual se originou a leitura diplomtica e conseqentemente a leitura moderna, alm do ndice de vocabulrios. Trata-se de
uma edio de 1963, com reedio de 1994
2.1. As Receitas e o Cotidiano das pessoas
Atravs dos ingredientes, que podemos agrupar os tipos de alimentos e descobrir o que mais
se comia, e para quem estas refeies se destinavam. Enquanto certos hbitos alimentares arcaicos
se esfarelaram no tempo, outros se agruparam, ao
redor de uma corte e mais adiante entre o povo,
como foi o caso das receitas da infanta D. Maria;
elas mostram que os hbitos alimentares portugueses foram se transformando em costumes. O Livro
de receitas da Infanta Dona Maria no teve a inteno de ser um documento, mas apenas facilitar
a produo de alimentos nas cozinhas; entretanto,
se tornou um testemunho involuntrio para a pesquisa histrica.
Conforme Celina Abbade, o Livro de receitas
da Infanta Dona Maria
Um cdice, que apesar dos problemas paleogrficos e cronolgicos que levanta, valioso, contribuindo no s para
o vocabulrio histrico da lngua portuguesa, como tambm mostrando um lado importante da vida social que
a arte de cozinhar e bem comer, numa poca da histria
portuguesa de que muito pouco se conhece e cujo mais
antigo documento impresso de receitas culinrias, no
anterior a 1680, que A Arte de Cozinha de Domingos
Rodrigues (Abbade, 2008, p. 3)
As receitas so um registro da vida social portuguesa, falam dos hbitos cotidianos, como a arte
de cozinhar e de comer. Estuda-las como um do-
281
em Portugal. Conforme Maria Helena da Cruz Coelho: Os homens de Coimbra (...) desde o sculo
xii consumiam uma vasta gama de carnes de
vaca, veado, gamo, carneiro, cordeiro, porco, coelho,
ou aves, como pombas, perdizes, galinhas, ansares,
anas domsticas e do monte, abetardas, grous e
trures (...) (1990, p. 11).
Se o povo j comia diversidades de carne desde
o sculo xii, quanto mais um nobre. A caa, que
em outros tempos e lugares era um esporte exercido apenas pela nobreza, de acordo com Coelho,
naquele momento, tambm os camponeses exerciam tal esporte; o problema, entretanto, conforme
a mesma autora, que boa parte da produo domstica e das caas feitas pelos camponeses escoava para as mesas senhoriais.
As carnes eram abundantes na mesa dos nobres ou do rei. Calcula-se que volta de quatrocentos a quatrocentos e trinta quilos no julgado de
Figueiredo, ali na Beira Litoral; trezentos, aproximadamente em Guimares (Gonalves, 2008, p.
21). Na mesa de um nobre nunca se poria menos de
quatro a cinco variedades de carne.
Alm disto, valorizavam-se mais a quantidade do que o aspecto qualitativo e nutricional, ou
seja, na poca medieval, e ainda nos nossos dias,
os homens muitas vezes, se alimentam mais em
quantidade do que em qualidade (Santos, 1997,
p. 2). A abundncia de carnes representava riqueza
e fartura. No Livro de receitas da infanta Maria,
o ingrediente que aparece mais vezes e em maior
quantidade a carne. As carnes mais consumidas
eram as de galinhas, porcos e carneiros, como provam as receitas.
Quanto ao azeite, mesmo aps a Reconquista,
Portugal se serviu de pouco azeite. Nas receitas
da Infanta o azeite notado apenas em cinco das
sessenta e uma receitas (Cf. Santos, 2005, p. 147).
As causas possveis para que o azeite fosse pouco
utilizado na produo de alimentos, seria o elevado
preo do mesmo3 e o seu uso no tempo sagrado e
no profano, bem como a tendncia dos ancestrais
em usar mais as gorduras animais.
Embora fizesse uso de alguma carne, o campons usualmente comia o pescado o peixe no
era considerado carne comiam-se sardinhas4,
lampreias5, entre outras Alm disso, os medievais
portugueses comiam frutas e legumes e na receitas, sobretudo nas conservas, menciona-se: cidras,
pssegos, limo, abbora, alface, diacidro, laranja,
marmelo, amndoas, erva-doce, etc.
Quanto forma de comer, os portugueses, mesmo os nobres comiam com as mos. A diferena
entre um nobre e um campons que o primeiro
sempre lavava as mos antes das refeies, representando a noo de higiene, enquanto o outro no.
Maria Jos Palla escreve que:
No meio da vinheta a mesa est coberta com uma toalha
branca bem posta (numa refeio existe sempre uma toalha) sobre a mesa, distinguimos os alimentos de consumo
corrente em Portugal, nesta poca, o po redondo chamado monda, o vinho numa taa e, decerto, a carne num
grande prato comum. esquerda vemos um guardanapo
envolvendo uma bacia, dois utenslios indispensveis, pois
nesta poca, comia-se com os dedos, como se sabe. [...] Os
pratos individuais estavam ainda ausentes. Os alimentos
em geral eram servidos em tachos de arame aonde cada
pessoa levava a mo. Comia-se com a mo, com a ajuda
3. Para a fabricao do azeite, havia processos que exigiam vrias etapas desde a plantao das oliveiras, a catao da azeitona por homens e
mulheres at a produo do lquido com o esmagamento nas azenhas.
4. No Livro de receitas da Infanta D. Maria no h meno sardinha.
5. A lampreia est em uma das receitas no Livro de receitas da infanta Maria no caderno de carnes, cf. p. 27
282
do polegar, do indicador e do dedo mdio. No final da refeio, lavavam-se as mos, por vezes, com guas de rosas.
Segundo alguns textos, os comensais serviam de recipientes (justas ou gomis), muitas vezes feitos de materiais precisos (Palla, 2008, p. 2-3)
Como a carne fosse um alimento que fizesse parte da alimentao, sobretudo da nobreza, comiase caas, como o veado, carne de porco e cabrito
assadas no espeto e, para facilitar a digesto, eram
picadas em pedaos midos. Para isto, usavam-se
facas e colheres, sendo que a presena do garfo ainda era desconhecida.
Outra questo relacionada s carnes eram os
temperos que os portugueses muito utilizavam em
suas receitas. Os temperos utilizados no livro de receitas eram: a cebola, a pimenta, o aafro, o gengibre e canela, alm de outros tipos de especiarias
como a acar, o vinagre e o limo. Tanto o limo
quanto a laranja e o azeite so ingredientes provindos do mediterrneo que os portugueses adaptaram a sua culinria.
Concluso:
Neste trabalho pde-se observar que as receitas medievais portuguesas continham um carter de ver e
ouvir. Aps o sculo xv, surge um o primeiro livro
de cozinha portuguesa. Nos seus quatro cadernos:
de carnes, de ovos, de leite e de coisas e conservas,
o grupo de destaque para aspectos quantitativos e
definiu-se o primeiro. Este grupo de receitas continha uma diversidade de carnes como a de galinha,
porco, coelho e cabrito. Os nobres adquiram este
hbito de comer carne com maior abundncia dada
s condies da caa por esporte e do fortalecimento econmico como as navegaes tambm acabaram por favorecer.
O Livro de receitas da Infanta D. Maria tambm indica os hbitos e costumes tpicos de Portugal: a escrita do portugus arcaico, os utenslios,
os ingredientes, etc. Enfim, a presena macia do
cotidiano, fez da culinria portuguesa mesclada
de hbitos nobres tradicionais e uma nova cultura
(Santos, 1997, p. 39).
283
BIBLIOGRAFIA:
Fonte
Um Tratado de Cozinha Portuguesa do sculo XV. Gomes Filho, Antnio. 2 ed. RJ: Fundao Biblioteca
Nacional. Dep. Nacional do Livro, 1994. (Coleo Celso Cunha: v.).
Referncias Bibliogrficas
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Disponvel em: http://www.filologia.org.br/ixcnlf/17/18.htm. Acesso em 2 de outubro de 2008.
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gustativa. Histria: Questes & Debates, Curitiba, n. 42, p. 11-31, 2005. Editora ufpr
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Coimbra: Tipografia Lousanense Lda, 1997.
Santos, Maria Jos Azevedo. O Azeite e a vida do homem medieval. Disponvel em: http://ler.letras.
up.pt/uploads/ficheiros/4432.pdf. Acessado em 21 de novembro de 2008.
284
Resumo
285
sdios fnebres que envolvem seus hericos personagens. Isso para compreender o significado desses
ritos, seus anseios e expectativas sobre o destino.
Pois, antes de uma anlise tcnica do texto, necessrio encontrar a compreenso por si e em si das
palavras escritas por nosso poeta desconhecido.4
Mergulho no interior de suas palavras para interpretar esta fascinante obra histrica e literria.
Valorizo seu contedo lendrio, justamente, pela
clareza de suas palavras, que remetem ao leitor fatos e situaes reais de uma poca longnqua.
Aps essas consideraes metodolgicas, passemos ao contedo. Exporei dois episdios contidos em Beowulf, os quais eu intitulo: A partida de
Scyld: lorde louvvel, ao mar levado, e A pira fnebre e o Monte de Beowulf: o mais suave, o mais
bondoso dos homens e o mais desejoso de elogio.5
1. E Aluna do Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Cientfica do Projeto de Pesquisa A Guerra no mundo Antigo e Medieval: de Vegcio (sc. iv) ao conde de Barcelos (sc. xiv). Prof. Dr. Ricardo da Costa (site: www.ricardocosta.com).
2. Beowulf um poema escrito em ingls antigo (scs. viii-x) de temtica herica, que apresenta as principais caractersticas das picas anglosaxs: linguagem tpica da narrativa dos feitos blicos e os valores especficos de conduta militar e social associada a elementos mitolgicos e
ritualsticos comuns aos povos germnicos antigos e princpios do cristianismo. Ver Eric Ramalho, Beowulf. BH: Tessitura. 2007.
Em seu Prefcio, Reale deixa claro sua escolha metodolgica: Reconstruir uma histria de idias implica mergulhar, de diferentes modos, no
interior delas, pr-se em sintonia com elas e, particularmente, alcanar uma maturidade hermenutica que possibilite entender aquela alteridade histrica em que se situam, e que, portanto, possibilite realizar a ampliao daquele raio do crculo hermenutico que nos permite compreender o sentido. Tal conceito extrado dos princpios axiolgicos e normativos que os Gregos propuseram, vale dizer, o da justa medida e do
nada em demasia. Ou seja, a clareza, a simplicidade e a sntese na forma e no trato das palavras que constituem o texto. Reale, Giovanni.
Advertncia. In: Aristteles. Metafsica (ensaio introdutrio, texto grego com traduo e comentrio de Giovanni Reale). So Paulo: Edies
Loyola, 2005, vol. iii, p. xii-xiii.
4. Beowulf fruto do trabalho de um poeta cristo desconhecido. Muitos estudiosos acreditam na participao de outros escritores na elaborao desse pico. Por exemplo, Borges defende a idia de estarmos diante de um experimento erudito, composto por um algum que teve
acesso aos textos e os estudava. O autor pegou uma antiga lenda germnica e fez com ela uma epopia, seguindo as normas sintticas latinas,
propondo-se a fazer uma Eneida germnica. Ver Borges, Jorge Luis. Curso de Literatura Inglesa. So Paulo: Martim Fontes, 2006. p. 14.
5. Fao uso desta diviso para facilitar a compreenso e o entendimento dos dois episdios que ocorrem em perodos e situaes diferentes ao
longo da trama.
287
Him a Scyld gewat to gescphwile
felahror feran on frean wre.
Hi hyne a tbron to brimes faroe,
swse gesias, swa he selfa bd,
enden wordum weold wine Scyldinga;
leof landfruma lange ahte.
r t hye stod hringedstefna,
isig ond utfus, elinges fr.
Aledon a leofne eoden,
beaga bryttan, on bearm scipes,
mrne be mste. r ws madma fela
of feorwegum, frtwa, gelded;
ne hyrde ic cymlicor ceol gegyrwan
hildewpnum ond heaowdum,
billum ond byrnum; him on bearme lg
madma mnigo (...)
e hine t frumsceafte for onsendon
nne ofer ye umborwesende.
a gyt hie him asetton segen geldenne
heah ofer heafod, leton holm beran,
geafon on garsecg; him ws geomor sefa
A descrio dos funerais dos guerreiros no poema interage com os novos conceitos religiosos a
crena no Deus salvador e protetor dos justos que,
ao deixarem a vida terrena vo ao encontro do Senhor, espera da glria eterna aos ritos e costumes germnicos.
A preparao do funeral de Scyld previamente instruda por ele aos seus guerreiros como o
arranjo da nau e a posio do corpo do rei junto
ao mastro rodeado de armas e de jias presentes
conquistados por sua conduta de um bom guerreiro glorificado e corajoso. E, no final, sua partida:
Scyld foi, lorde louvvel, ao mar levado.8
Essa nau que empurram para o mar um tpico
costume germnico. Esses povos acreditavam que
os territrios da morte ficavam alm-mar9 (Borges, 2006, p. 15). Luto logo ocupou o mago to
6. Edio bilnge em portugus. Ver Ramalho, Erick. Beowulf. Belo Horizonte: Tessitura. 2007. p. 3-5. Beowulf in Hypertext, Internet, http://
www.humanities.mcmaster.ca/~beowulf (Acesso: 26/03/2009).
7. Beowulf, v.v. 26-28.
8. Beowulf, v.v. 29 - 30.
9. Nas lendas celtas, pensava-se o Paraso situado no Ocidente.
288
tristemente de todos: o rei dano ao mar foi encomendado.10 Nesta passagem, o autor retrata a dor do
povo danes pela perda de um grande homem. Scyld
deixou a vida honrosamente. Ele foi um grande rei,
doador de anis, guerreiro destemido que fez tremer
seus inimigos nas batalhas e nas vitrias conquistadas. Essas virtudes eram apreciadas pelos germanos
hlw gewyrcean
beorhtne fter ble t brimes nosan;
se scel to gemyndum minum leodum
heah hlifian on Hronesnsse,
t hit sliend syan hatan
Biowulfes biorh, a e brentingas
ofer floda genipu feorran drifa.(,,,)
(,,,) Him a gegiredan Geata leode
ad on eoran unwaclicne,
helmum behongen, hildebordum,
beorhtum byrnum, swa he bena ws;
alegdon a tomiddes mrne eoden
hle hiofende, hlaford leofne.
Ongunnon a on beorge blfyra mst
wigend weccan; wudurec astah (,,,)
(,,,) song sorgcearig swie geneahhe
t hio hyre heofungdagas (,,,)
(,,,) Geworhton a Wedra leode
hleo on hoe, se ws heah ond brad,
wgliendum wide gesyne,
ond betimbredon on tyn dagum
beadurofes becn, bronda lafe
wealle beworhton (,,,)
(,,,) swylce on horde r
nihedige men genumen hfdon,
forleton eorla gestreon eoran healdan
(,,,) hildediore,
elinga bearn, ealra twelfe,
woldon ceare cwian ond kyning mnan,
wordgyd wrecan ond ymb wer sprecan;
eahtodan eorlscipe ond his ellenweorc
duguum demdon, swa hit gedefe bi
t mon his winedryhten wordum herge,
ferhum freoge, onne he for scile
289
Apesar da beleza do poema, necessrio interpret-lo. Contemplemos a profundidade potica e artstica de seu autor. As figuras encontradas nestes
pequenos versos a pira; o tmulo e os guerreiros
que cavalgam em torno cantando loas ao reis; os
presentes e ornatos de ouro postos no tmulo. V-
Sua alma
se que o poeta era um erudito e que, em seu poema, quis registrar os diversos ritos funerrios da
gente germnica (Borges, 2006, p. 18). As concepes crists e pags so tambm encontradas nestes
episdios: Da morte aos ritos funerais dedicados a
Beowulf (vv. 2857-2861)13:
r he bl cure,
hate heaowylmas;
him of hrere gewat
awol secean sofstra dom.
drago tem um objeto furtado de sua caverna. Ento, ele decide com flamas ter sua desforra16 e se
insurge violentamente sobre a gente Geta. Estas
notcias chegam ao velho Beowulf, que est com
mais de 50 anos. O destemido rei decide em defesa
e amor ao seu reino, lutar com o grande inimigo:
12. Edio bilnge em portugus. Ver in: Ramalho, Erick. Beowulf. Belo Horizonte: Tessitura. 2007. p.171; 191-195. Beowulf in Hypertext, Internet, http://www.humanities.mcmaster.ca/~beowulf (Acesso: 26/03/2009).
13. Ibidem, p. 175.
14. Neste trecho o autor refere-se Wiglaf, filho de Weohstan, nobre varo Geta e leal amigo de Beowulf.
15. Ramalho, Erick. Beowulf, op. cit., p. 173. Beowulf in Hypertext, Internet, http://www.humanities.mcmaster.ca/~beowulf (Acesso: 26/03/2009).
16. Serpe
290
17. Edio bilnge em portugus. Ver in: Ramalho, Erick. Beowulf. Belo Horizonte: Tessitura. 2007. p.143 Beowulf in Hypertext, Internet, http://
www.humanities.mcmaster.ca/~beowulf (Acesso: 26/03/2009).
18. Refiro-me as grandes levas de imigrao que insurgiram sobre a Bretanha a partir do sculo v aps a desagregao do imprio romano. Os
anglos-saxes (possveis descendentes dos povos germanos escandinavos citados em Beowulf) vivenciaram um longo perodo de destruio e
violncia na ilha. Tal ameaa ocorreu principalmente aps as invases Viquingues. Ver in: Trevelyan, G.M. Histria concisa da Inglaterra. So
Paulo: Europa-Amrica, 1992.
19. Beowulf, v.v. 3173 3177.
291
BIBLIOGRAFIA
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Trevelyan, G.M. Histria concisa da Inglaterra.v. i. So Paulo: Europa-Amrica, 1992.
292
Resumo
293
admero (1055-1124) era um jovem monge em Canturia quando conheceu Anselmo. Na ocasio, em 1078, Anselmo
assumira a abadia de Bec, devido a morte de seu
fundador Herluin. Eadmero foi discpulo, secretrio e amigo de Anselmo e, como viveu muitos
anos de sua vida ao lado do mestre, tornou-se apto
a escrever sua primeira biografia, trabalho este que
pode ser encontrado no primeiro volume das Obras
Completas de San Anselmo. Southern, reconhecido estudioso de Anselmo e de Eadmero, afirma em
Eadmers life of Anselm (1966) que esta biografia
a fonte mais rica de informaes a respeito da vida
de Anselmo que foi preservada.
Anselmo nasceu em Aosta (Itlia) e viveu entre
os anos de 1033 e 1109. Filho do nobre lombardo
Gondolfo e de Ermenberga, Anselmo preferiu a
vida religiosa poltica. Sobre sua infncia e juventude pouco se sabe, mas certo que recebeu uma
excelente educao e que estudou os clssicos com
afinco, tornando-se, como poucos do seu tempo,
conhecedor do latim. Seu presente foi marcado, essencialmente, pelo incio do embate entre os poderes temporal e espiritual, bem como pela desordem
na moral e nos costumes no seio da prpria Igreja.
Por meio dos relatos de Eadmero temos acesso
a vrios detalhes da vida de Anselmo. O discpulo
descreve a efervescncia de seu presente e, neste
contexto, caracteriza Anselmo como um esprito
inquieto, bastante envolvido com as questes de
seu tempo. Seu esforo racional, bem como a busca
da harmonia entre f e razo so marcas de sua
produo intelectual.
Para Eadmero o sculo xi:
[] foi o sculo das proclamaes, da luta entre o poder
civil e eclesistico, entre os reis e os papas, luta em que se
intentava negar a autoridade do papa, se no em teoria,
pelo menos na prtica. Precisamente a vida de Santo Anselmo foi um contnuo batalhar pela defesa dos interesses da
Igreja, de sua unidade, de sua supremacia, de seus direitos
(Eadmero, Vida de San Anselmo, iv, 1)1.
1. No original: [] el siglo XI fue el siglo de las investiduras, de la lucha entre el poder civil y el eclesistico, entre los reyes y los papas, lucha
en que se intent negar la autoridad del papa, si no en teora, por lo menos en la prctica. Precisamente la vida de San Anselmo fue un continuo
batallar por la defensa de los intereses de la Iglesia, de su unidad, de su supremacia, de sus derechos.
295
2. De acordo com os relatos de Eadmero, Lanfranco era conhecido como o religioso de maior renome do perodo. Foi atrado por esta fama e
respeito que Anselmo decidiu ficar em Bec. Ao elaborar seu pensamento, Anselmo submeteu-o ao crivo da sabedoria e autoridade do mestre
Lanfranco. Observamos que Anselmo tinha, em relao a seu mestre, no s submisso pelo cargo superior de Lanfranco, mas tambm uma
incontestvel amizade e confiana.
3. No original: Sin embargo, no siempre le era factible; venan a turbar esta paz una muchedumbre de causas, como la invasin de las posesiones de la iglesia, perpetrada por algunos malvados ante la indiferencia del rey; la exaccin de impuestos que oprima a todo su reino, y especialmente a sus gentes; la opresin de los mosteiros, que no poda evitar, y de los que continuamente tena noticia.
4. No original: Cuando el rey Enrique supo que el Papa continuaba en su decisin, se apresur a apoderarse de todos los bienes del arzobispado,
dejando sin nada a Anselmo.
5. No original: Cuando se imprime un sello sobre a cera, si la cera est demasiado blanda o demasiado endurecida, no recibe la impronta ms
que de una manera parcial; si, por el contrario, tiene el medio entre estos dos extremos, reproduce el sello enteramente y de una manera muy
clara. Lo mismo ocurre con las edades de la vida [].
296
interessante observar a postura do mestre na relao com um jovem inteligente, porm de costumes perversos, de carter indomvel, seguramente
incompatvel com as ordens do monastrio. Ao invs de lhe impor duros castigos7, como era costume na poca, Anselmo opta por colocar em prtica
dois pressupostos essenciais ao educador: moderao e afetividade.
Anselmo [...] lhe rodeia de um afeto particular, lhe admite em sua intimidade, lhe proporciona toda classe de
cuidados e sinais da mais viva ternura e lhe exorta de
mil maneiras a praticar o bem (Eadmero, Vida de San
Anselmo, i, 2, 13). Faz como um ourives que no usa a
fora para dar forma ao metal precioso, mas molda-o com
suavidade e delicadeza.
participar da vida do discpulo, como tambm o admite em sua intimidade. Isto faz com que Anselmo
o conhea e projete a melhor forma de proceder em
sua formao.
Pouco a pouco, Anselmo consegue se aproximar de Osbern e suavizar sua rudez. Somente
depois de ter-se aproximado, de ter-se tornado algum da confiana do jovem, que Anselmo passa
a lhe ministrar os contedos referentes formao
monstica.
Na Carta 37 (verso espanhola, v. 2 das Obras
Completas de San Anselmo), Anselmo recomenda
Osbern a Lanfranco: [...] lhe rogo que acolha a este
irmo com benignidade e lhe trate com bondade,
no s porque Osbern digno, mas porque vosso
fiel servidor deseja assim e lhe pede8. Chamandoo de discpulo confivel, dedicado e que j havia
realizado considerveis progressos na carreira eclesistica, Anselmo termina seu pedido expressando
seu desejo de poder terminar seus dias ao lado de
Osbern.
Se atentarmos para o que significava caridade, podemos entender o sentimento e o profundo
compromisso de Anselmo para com a formao de
Osbern. No encontramos nos relatos, nas obras ou
nas cartas um conceito definido e explcito de caridade, porm suas exortaes e comportamento expressam que ela um complemento do amor, uma
ao desencadeada por ele.
A caridade em Anselmo ultrapassa o simples
ato de dar esmolas, implica benevolncia com todos, compreenso com as imperfeies alheias, perdo. Enfim, uma responsabilidade que se assume
com os outros sem desejar nada em troca, como no
texto bblico de I Corntios 13:1-8:
Ainda que eu falasse as lnguas dos homens e dos anjos, e
no tivesse caridade, seria como o metal que soa, ou como
o sino que tine. Ainda que eu tivesse o dom de profecia,
6. No original: Entre los monjes de Bec se encontraba un joven llamado Osbern. De espritu penetrante y muy hbil en los trabajos manuales,
era sujeto de grandes esperanzas. Pero la perversidad de sus costumbres empaaba esas buenas cualidades. Lo que ms le perjudicaba era el
odio que mantena contra Anselmo. Por lo que a su persona se refera, se preocupaba muy poco de este odio encarnizado, pero deseaba vivamente que las costumbres del joven respondiesen a su fina inteligencia [].
7. Eadmero (Vida de San Anselmo, i, 4, 30) descreve uma situao em que Anselmo repreende um abade famoso por sua falta de moderao
e aplicao de castigos excessivos: Se estivesse em seu lugar, gostaria que o tratasse da mesma maneira? O relato evidencia que as correes
do abade sobre seus discpulos incluam empurres, golpes e ameaas. Anselmo ensina que o educador assemelha-se a um pai, sendo sua ao
permeada por amor fraternal e sua assistncia farta de suavidade.
8. No original: [...] le ruego que acoja a este hermano con benignidad y le trate con bondad, no solamente porque Osbern es digno, sino tambin porque vuestro fiel servidor lo desea y porque, desendolo, os lo pide.
297
As palavras do abade lembram situaes da educao atual. Para que gastar tanto com eles, se por
fim no aprendem? Anselmo explica que o crescimento acontece pelo alimento que proporcionamos
aos educandos. Se a educao permeada por dio
e irritao, o crescimento tambm ocorrer junto a
toda sorte de suspeitas e vcios.
Ao chamar a ateno de seus pares para a forma com que conduziam a educao no sculo XI,
Anselmo nos deixou uma grande lio: contedos
so essenciais, mas no podem, sozinhos, dar conta
da formao humana. preciso ensinar, sem tirar
do indivduo a sensibilidade que o torna homem,
possibilitar-lhe cada vez mais conhecimentos para
que possa discernir e optar pelo que melhor para
o todo social.
9. No original: [...] supongamos que plantis un rbol en vuestro jardn; si se le oprime de suerte que no pueda extender sus ramas y no se le
quitan estas trabas ms que despus de algunos aos, qu rbol saldr? Seguramente un rbol intil, de ramas torcidas y revueltas. Y de quin
ser la culpa sino del que le at? [].
10. Eclesiastes 3:1-2: Tudo tem um tempo determinado, e h tempo para todo o propsito debaixo do cu: h tempo de nascer, e h tempo de
morrer, tempo de plantar, e tempo de arrancar o que plantou [...] tempo de espalhar pedras, e tempo de ajunt-las; tempo de abraar e tempo de
afastar-se [...].
11. No original: [...] el pan, como todo otro alimento slido, es excelente para aquel que puede comerlo; pero ddselo a un nio que acaba de
dejar el pecho, y veris que le asfixiar en vez de fortificarle [].
12. No original: Indcame, te suplico le dice a Anselmo -, qu regla hay que observar con ellos, porque son perversos e incorregibles. Da
y noche los castigamos, y, sin embargo, cada vez son peores [] y cuando sean adultos, qu ser de ellos? Embrutecidos y salvajes. Pero
entoncespara qu gastar tanto con ellos, si terminan por hacerse unos brutos?
298
BIBLIOGRAFIA
Anselmo de Bec. Monolgio. In: Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1984.
_______. Obras Completas de San Anselmo. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1952, v. 1 e 2.
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Southern, J. Z. Eadmers life of Anselm. In: Saint Anselm and his biographer: a study of monastic life
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299
Resumo
sta comunicao vem noticiar o andamento de uma pesquisa de fontes acerca da mentalidade referente ao Mal no
mbito do imaginrio cristo da Idade Mdia. Tal
estudo foi iniciado a partir de textos escritos sobre a ocorrncia de metamorfoses em cordis do
Nordeste brasileiro. Durante os estudos para composio dos textos verificou-se, em torno das personagens metamorfosedas, uma mentalidade punitiva cujos personagens-alvo dos castigos podem
ser classificados nos mesmos grupos das minorias
perseguidas pelo poder inquisitorial no medievo.O
prximo passo foi tentar identificar os escritos da
Igreja sobre a origem do Mal e sobre o modo como
a Igreja compreendia e lidava com essas minorias
nas vrias fases da Idade Mdia. Dentre as fontes
investigadas, trataremos nesta comunicao de um
documento muito relevante, o Malleus Maleficarum, de autoria dos monges dominicanos alemes
Heinrich Kramer e James Sprenger. O livro foi escrito em 1484, por determinao do Papa Inocncio viii, e publicado em 1486 ou 1487. Trata-se de
uma bula papal convertida em verdadeiro manual
de aplicao contra a bruxaria. Suas determinaes
foram aplicadas pelos inquisidores do Santo Ofcio
por quase duzentos e cinqenta anos.
301
Transgresso
303
304
305
BIBLIOGRAFIA
Kramer, Heinrich; Sprenger, James. O Martelo das feiticeiras: Malleus Maleficarum. Rio de Janeiro:
Editora Rosa dos Tempos, 1991.
Muraro, Rose Marie. Introduo histrica. In: Kramer, Heinrich; Sprenger, James. O Martelo das feiticeiras: Malleus Maleficarum. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1991.
306
Resumo
307
este dia 14 de agosto, enquanto desenrolam-se os trabalhos desta oitava edio do Eiem em Vitria, completam-se seiscentos e vinte e quatro anos da Batalha de
Aljubarrota em Portugal quando nobres e pees
portugueses venceram uma maioria de opositores
liderados por Castela. As discusses acerca das razes polticas deste embate, assim como as estratgias que granjearam a vitria lusa atravessaro
nosso trabalho, mas nos deteremos na construo
do perfil de nobres portugueses que partilham desta conjuntura: o Condestvel Nuno lvares Pereira
e o Infante Dinis. O primeiro, representante de uma
nobreza de servio alada juntamente com Avis e o
segundo um Infante ilegtimo descartado por este
mesmo contexto. A batalha em si deu certo rumo
ao conflito que ainda perdurou por alguns anos, no
entanto, a ascenso da dinastia de Avis e as foras
limitadoras a esta proposta escondiam antagonismos de concepes polticas, blicas, de valores que
opunham representantes de faces da nobreza tradicional de sangue a elementos da nobreza de servio, mais que portugueses a castelhanos. Ambos
os personagens selecionados seriam criados junto
Corte rgia e participariam diretamente das aes
que se desenrolariam no reino portugus na segunda metade do sculo xiv, pelo que, servem-nos de
testemunhos da poca de transio em que viveram.
O Infante Dinis de Castro, filho bastardo do rei
Pedro I com Ins de Castro seria bastante incisivo
em suas opes polticas, possivelmente por encontrar-se numa remota posio de sucesso ao trono.
Seu pai deixara herdeiro legtimo, D. Fernando e as
expectativas de sucesso de seu meio-irmo seriam
igualmente limitadas diante do potencial de seu irmo mais velho, o Infante Joo de Castro. Tais condies adversas no seriam suficientes, no entanto,
para que desistisse de suas pretenses ao trono portugus apoiado por linhagens descontentes com os
309
310
pueril durante toda a sua vida, atirando-se destemidamente na ao. O sucesso da causa abraada
daria seus frutos e seria eternizada nos relatos da
crnica rgia de D. Joo i que abre imensos espaos narrativos para falar exclusivamente de Nuno
lvares, assim como em sua crnica particular
que daria aos Pereira uma dimenso de linhagem
co-fundadora da dinastia de Avis.
Nos relatos de Ferno Lopes observamos o
cuidado em associar a recepo do cargo de Condestvel em 1385 com a construo de um perfil
de sua identidade. Aqui, destacam-se as virtudes
pessoais do nobre exemplar, moda humanista,
dotado de temperantia, fortitudo, fidelitas, valores
clssicos aos quais se acrescenta uma tica crist,
afirmando que os homens de sua hoste representariam honesta religio de defensores, convertidos
pela firmeza de seu senhor. Um perfil com alguns
paralelos com o Mestre, o Mexias de Lisboa, mas
que ao longo de sua trajetria se acentua como
seu prprio, do Condestvel.
Sobre os condicionantes da opo de Nuno
lvares ao partido do Mestre, podemos dizer que
era justamente nestes momentos de incerteza que
jovens como Nuno lvares encontravam espao
de ascenso. Um jovem representante desta nobreza em renovao, singular, sob alguns aspectos, polmico, mas acima de tudo com um perfil
que corresponderia s necessidades do reino naquele momento.
A causa do Mestre, tbia em seus apoios e
iniciativas, apresentaria muitos indecisos frente
a to incerta demanda. lvaro Peres de Castro e
seu filho, confiantes na fora do Infante D. Joo
aprisionado em Castela seriam dos primeiros a
questionar o verdadeiro potencial do Mestre em
vencer o rei castelhano, pelo que seria chamado
ateno por Nuno lvares. No relato da Crnica
de D. Joo i, Ferno Lopes destacaria a ousadia
do jovem em confrontar abertamente um nobre
de to alta categoria. lvaro Peres considera os
capites do mestre de Avis demasiado jovens e
inexperientes para combater com os de Castela. Opinio que denota um conceito oligrquico
de guerra, fundado totalmente na cavalaria e no
poder senhorial, noo que justamente neste momento comeava a ser substituda pela de guerra
311
312
das partes, no entanto, para ns manifesta a mentalidade do nobre que ao ascender por seus mritos
de ao e servio imprime o mesmo pragmatismo
sua lgica de atuao.
O segundo episdio de atrito seria a distribuio de bens promovida pelo Condestvel entre seus
vassalos devido pacificao anunciada do reino.
Dar-lhes-ia rendas de lugares que ele tinha recebido em prstamo do rei e que repassava na mesma
condio a seus fiis, os quais em troca manteriam
escudeiros para servio do rei e do nobre Nuno lvares Pereira. Este, senhor de sua prpria sociedade
poltica, afrontaria o rei com esta iniciativa e aguaria a ambio dos outros nobres que passariam a
defender uma emergencial recaptao patrimonial
rgia dos bens doados ao Condestvel para fazer
frente s necessidades inerentes aos trs descendentes de D. Joo i j nascidos. O rei resolve-se por
um chamamento rgio que na verdade, atingiria
o Condestvel, mas tambm outros beneficiados,
obrigados a devolver ou vender as terras recebidas
do rei, protagonistas de nova vaga de exlios rumo
a Castela. J Nuno lvares, aps este episdio pensa tambm em abandonar o reino, desgostoso com
a postura de fora do rei portugus. Uma ameaa para D. Joo i preso necessidade de manter o
equilbrio na distribuio dos benefcios entre a sua
nobreza, mas ao mesmo tempo consciente de sua
dependncia em relao a Nuno lvares, reflexo
que resultaria no convencimento do Condestvel a
permanecer no reino.
Aps uma vida de servio dedicada ao seu
senhor o rei, Nuno lvares deixaria os assuntos
temporais, dividiria os seus bens e ingressaria na
Ordem dos Carmelitas no Convento do Carmo que
ele fundara, assumindo o nome de Irmo Nuno de
Santa Maria, onde permaneceria at sua morte em
1431. Enquanto o rei D. Joo i seguia sua demanda rgia, Nuno lvares seguia uma via de ascese
completando uma vida de perfeito cavaleiro dos
romances medievais arturianos.
Ferno Lopes, em sua Crnica de D. Joo i interrompe neste ponto o relato e insere uma Crnica
abreviada deste personagem. Aqui, sumariavam-se
313
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Santos, Frei Manoel dos, Monarquia Lusitana, Lisboa: incm, 1988, parte viii.
314
Resumo
315
317
Ao contrrio, na teoria da lei afirma-se e incentiva-se a prtica (como o fizeram os tratadistas medievais que estudamos). Ademais, j que o juego
de los proverbios (distrao cortes praticada por
poetas) do sculo xv espanhol descendiente de
los juegos de retraer del siglo xiii (OKane, 1959,
p. 33), entendemos que foi alto o grau de relevncia
do vervantigo para o jugar de palabra galego-portugus, cuja lei reguladora , no por acaso, selada
significativamente por um provrbio.
Comprovamos, com nossas anlises, sobretudo
as das cantigas de Joo Soares Coelho, a hiptese
de que o aproveitamento parmico d a esses textos maior verossimilhana e poder argumentativo
e colabora com a finalidade ldica e burlesca da
poesia galego-portuguesa. A stira, que pretende
convencer o pblico ouvinte/leitor da crtica que
se faz a um visado, muito ganha ao contar com um
provrbio, que traz em si prova de verdade e autoridade, por consistir numa mensagem referendada
atravs de geraes e que deve ser seguida (Bragana jr., 2006b, p. 9). Por ser uma modalidade
discursiva que tambm quer fazer rir (visto que,
inclusive, o ridiculum tem grande poder persuasivo), a stira ganha, mais uma vez, com os matizes
burlescos e pardicos que muitos provrbios possuem ou passam a possuir, ao serem recriados pelos trovadores e jograis. E nada to ldico, paremicamente falando, que criar novas expresses que
jogam (ou, numa nomenclatura mais moderna, intertextualizam) com as j conhecidas pelo pblico.
Pudemos perceber que os trovadores e jograis
muito se utilizaram da recorrncia parmica como
tcnica argumentativa, quando empregam um provrbio ou proverbializao e os complementam, na
mesma cantiga, com construes que lhe so semelhantes. Joo Garcia de Guilhade, por exemplo,
brinca com sinnimos e troca uma palavra do provrbio original e cria uma sutil proverbializao:
Dom Foan disse que partir queria
quanto lhi deron e o que avia.
E dxi-lh eu, que o ben conhocia:
Castanhas eixidas, e velhas per souto.
E disso-m el, quando falava migo:
Ajudar quero senhor e amigo.
318
dade ldico-burlesca do jugar de palabra galegoportugus. E segue mais risonho o nosso trovador,
brincando com os alvos fios de cabelo do seu visado, num texto (Martin Alvelo) em que at a proverbializao (Messa os cos / e fiquen os sos)
uma chufa. Por ltimo, travando uma teno com
o jogral Loureno, Joo Soares valida sua opinio
e sua crtica (mesmo que elas sejam fictcias) por
meio do provrbio que proclama o amor a Deus
e verdade ( Quen ama Deus, Louren, ama
verdade).
Percebe-se que, como o fazem seus colegas
de trovar, Coelho utiliza o elemento parmico em
todas as frentes satricas: desde os textos crticos
mais srios (ou que se vistam de uma fictcia seriedade), passando por aqueles que possuem dupla via de leitura, aos declaradamente burlescos e
obscenos.
Alm disso, todas as expresses proverbiais
empregadas por Joo Soares tm finalidade retrico-argumentativa, justificando e validando suas
crticas e chufas, condicionando, pois, a argumentatio e a conclusio de suas cantigas. O provrbio
e a proverbializao foram, portanto, excelentes
instrumentos poticos que o trovador utiliza conscientemente convico esta que, alis, se deve estender aos seus companheiros.
Como arremate, importante ressaltar que a
prtica dessa tcnica retrica no se restringiu a
determinado status social, j que nesse grupo temos de jograis a trovadores. E destaquemos: o provrbio no foi menos utilizado pelos trovadores
que pelos jograis. Dentre os mais profcuos, por
exemplo, encontram-se um cavaleiro da pequena
nobreza (Joo Soares Coelho, com nove expresses), um segrel (Pero da Ponte, com oito) e um
monarca (Afonso x, com oito). Isso porque, j o sabemos, o provrbio no exclusivamente popular.
Em verdade, poderamos dizer que determinadas
expresses pertencem a (ou so mais empregadas
por) uma dada comunidade lingstica, visto que o
provrbio circula ao longo dos sculos e entre todas
as classes: os nobres e clrigos usam suas parmias nos discursos para a massa, o povo usa seus
ditados nas conversas com os literatos, e todas es-
319
gosto (docere et delectare) em jugar com o elemento proverbial. Alm disso, dialogaram com os
personagens e fatos que compunham tanto a cultura cortes como a popular, com o objetivo de departir a realidade que os circundava, recriando-a,
parodiando-a, subvertendo-a, criticando-a ou apenas rindo-se dela. Alm disso, todo esse caldeiro
cultural mostra ter sido a Idade Mdia um tempo
ilustrado com arte uma arte temperada por vezes
com muito siso e, claro, muito riso.
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320
2
Luzia Snchez, jazedes en gran falha
comigo, que non fodo mais nemigalha
d a vez; e, pois fodo, se Deus mi valha,
fiqu end afrontado ben por tercer dia.
Par Deus, Luzia Snchez, Dona Luzia,
se eu foder-vos podesse, foder-vos-ia.
Vejo-vos jazer migo muit agravada,
Luzia Snchez, por que non fodo nada;
mais, se eu vos per i ouvesse pagada,
pois eu foder non posso, peer-vos-ia.
Par Deus, Luzia Snchez, Dona Luzia,
se eu foder-vos podesse, foder-vos-ia.
Deu-mi o Demo esta pissua cativa,
que j non pode sol cospir a sava
e, de pran, semelha mais morta ca viva,
e se lh ardess a casa, non s ergeria.
Par Deus, Luzia Snchez, Dona Luzia,
se eu foder-vos podesse, foder-vos-ia.
Deitaron-vos comigo os meus pecados;
cuidades de mi preitos tan desguisados,
cuidades dos colhes, que tragu inchados,
ca o son con foder e com maloutia.
Par Deus, Luzia Snchez, Dona Luzia,
se eu foder-vos podesse, foder-vos-ia.
(Lapa, 1995, p. 158-159)
321
3
Martin Alvelo,
desse teu cabelo
te falarei j:
cata capelo
que ponhas sobr elo,
ca mui mester ch ;
ca o topete
pois mete
cos mais de sete,
e mais, u mais ,
muitos che vejo
sobejo:
e que grand entejo
toda molher !
E das trincheiras
e das transmoleiras
ti quero dizer:
vejo-ch as veiras
e conas carreiras,
polas defender;
ca a velhece,
pois crece,
sol non quer sandece,
al de fazer:
ca essa tinta
mal pinta;
e que val a enfinta,
u non poder?
Messa os cos
e fiquen os sos,
e non ch mester
panos louos;
abride-las mos,
ca toda molher
a tempo cata
quen s ata
a esta barata
que t ora disser:
d encobrir anos
con panos;
aquestes enganos
per ren nonos quer.
(Lapa, 1995, p. 161-162)
322
4
Quen ama Deus, Louren, ama verdade,
e farei-ch entender por que o digo:
ome que entenon furt a seu amigo
semelha ramo de deslealdade;
e tu dizes que entenes faes
que, pois non riman e son desiguaes,
sei m eu que xas faz Joan de Guilhade.
Joan Sorez, ora m ascuitade:
eu uvi sempre lealdade migo;
e quen tan gran parte houvesse sigo
en trobar com eu ei, par caridade,
ben podia fazer tenes quaes
fossen ben feitas; e direi-vos mais:
l con Joan Garcia baratade.
Pero, Loureno, pero t eu oa
tenon desigual e que non rimava,
pero qu essa entenon de ti falava,
[o] Demo lev esso que teu criia:
ca non cuidei que entenon soubesses
tan desigual fazer, nena fezesses,
mas sei-m eu que xa fez Joan Garcia.
Joan Sorez, par Santa Maria,
fiz eu entenon, e bena iguava
con outro trobador que ben trobava,
e de ns ambos ben feita seria;
e non vo-lo posso eu mais jurar;
mais se [un] trobador migu entenar,
defender-mi-lh ei mui ben toda via.
(Lapa, 1995, p. 162)
Resumo
323
Introduo
ram as provas apresentadas por Agostinho devido solidez e ao rigor de sua construo dialtica
(Gilson, 2007: 294).
O mtodo do Proslogion, que pode ser resumido na frmula Fides quaerens intellectum, procura traduzir a experincia do homem que tende para Deus (na contemplao)
no ato de sua f. O resultado alcanado pelo homem de f,
mesmo que seja um aliquatenus, o que Anselmo denomina intellectus fidei (Martines, 1997: 88).
325
2. O unum argumentum
No segundo captulo do Proslogion, Anselmo iniciou o que mais tarde seria denominado por Kant
(1724-1804)13 como argumento ontolgico.14
Assim, pois, Senhor, tu que ds a inteligncia da f, dme, tanto quanto aches bem, que eu compreenda que tu
existes como ns [o] acreditamos e que tu s o que ns
acreditamos (Proslogion, ii).
Desta passagem do Proslogion merece ateno inicial a anlise de dois pontos, a saber, o adjetivo
maior (maius) e o ato de pensar (cogitare). Como
salientou Martines, gramaticalmente maius um
11. Gn 1:26
12. Isaas, 7:9.
13. Immanuel Kant (1724-1804) nascido em Konigsberg, um dos pensadores mais influentes da era moderna (Ferrater Mora, 1965: 1043)
14. Desde Kant (1724-1804), a partir de sua obra Crtica da Razo Pura (Kritik der reinen Vernunft), publicada inicialmente em 1781, a prova
anselmiana considerada uma demonstrao da existncia de Deus baseada em argumento considerado ontolgico (Libera, 1998: 303).
15. Martines, 1977: 57.
16. Davies ; Leftow 2004: 158.
17. Na afirmao tu s um ser do qual no possvel pensar nada maior (te esse aliquid quo nihil maius cogitari potest), Anselmo expressa a
noo de Deus. (Strefling, 2009: 271)
326
comparativo de superioridade, e no um superlativo.18 Logo, a idia de Deus no a idia mais elevada que o homem pode pensar, mas sim em um
movimento de negao - que no se pode afirmar
nada maior. Importante destacar neste momento
a referncia cogitatio, ponto significativo para
a compreenso do argumento, uma vez que nada
maior que Deus pensvel, instituindo a relao
da cogitatio do homem com Deus. Logo, aquilo do
qual nada maior pode ser pensado o limite do
pensamento, e estabelece, assim, a relao entre a
cogitatio do homem e a res.
Tambm importante salientar o uso da palavra intellectus (inteligncia) para o entendimento da argumentao de Anselmo. O significado
da palavra intellectus - assim como cogitatio - se
faz presente em todo Proslogion e a importncia
de abordar esse conceito provm da proeminncia
que a idia de reflexividade do esprito tece para
a compreenso do argumento anselmiano. Sobre a
reflexividade do esprito, Martines diz que
[...] a cogitatio do homem, quando voltada para aquilo
que a transcende, circunscreve-se dentro de limites bem
definidos, sendo impossibilitada, quando conduzida de
forma reta, a expressar positivamente algo sobre o objeto
de sua f, evitando assim o risco de fazer qualquer representao ou imagem inadequada dele. Esse movimento prprio da cogitatio, podemos defini-lo como reflexivo
(sem tomar emprstimo qualquer referncia da chamada
filosofia reflexiva (Martines, 1997: 87).
aponta para o limite do prprio pensamento [cogitatio] (Martines, 1997: 61). Anselmo no se referiu
diretamente a Deus quando pronunciou aliquid
quo nihil maius cogitari possit, sendo a f a nica
referncia possvel para tal afirmao.
O filsofo continuou o pensamento ainda no
segundo captulo da obra:
No entanto, esse mesmo insipiente, quando me ouve dizer
algo maior do qual nada pode ser cogitado, entende o que
ouve, e o que entende est em seu intelecto, embora no
entenda que isso exista. Pois uma coisa estar no intelecto, e outra, entender que a coisa existe [...] (Proslogion, II).
327
O argumento de Anselmo fundamenta-se da seguinte maneira: aquilo maior do qual nada pode
ser pensado no pode existir somente no pensamento, uma vez que abriria margem para algo
ainda maior, a saber, um ser (do qual nada maior
pode ser pensado) que exista na realidade. Noutras
palavras, como foi proposto por Davies e Leftow22,
o argumento pode ser articulado desta forma:
1.
2.
3.
No entanto, como salienta Barth24, o captulo terceiro se diferencia do segundo no tangente ao conceito de existncia. Tal conceito foi, no segundo
captulo, expressamente o conceito geral de existncia no intelecto e na realidade, sendo impossibilitada a negao da existncia de Deus na realidade
uma vez que se aceite no intelecto. Porm, levanta-se no terceiro captulo a questo da veracidade
da razo, que pode excluir a concepo hipottica
da no existncia de Deus, uma vez que impede
o pensamento de conceber no-existncia ao aliquid quo maius nihil cogitari potest. Desta forma,
o argumento que ocupou grande parte do segundo
captulo e parte do terceiro terminado com a afirmao de Tu s isto, Senhor nosso Deus [Et hoc
est tu deus noster] (Proslogion, iii).
Como mostra Martines (1997: 73), as duas ltimas frases interrogativas do captulo iii introduzem o problema a ser tratado no captulo iv, a saber, o motivo da atitude do insensato (cur).
Ento por que que o insensato disse no seu corao:
Deus no existe, quando to evidente para uma mente
racional que, entre todas as coisas, tu tens maximamente
o ser? Por que, seno porque estulto e insensato? (Proslogion, iv)
21. Audit (ouvir) no deve ser entendido como se Anselmo quisesse afirmar o papel preponderante da pregao da f. Este um ponto assinalado por K. Barth (em sua obra Fides Quaerens Intellectum) para justificar a interpretao teologizante do Proslogion (Martines, 1997: 64).
22. Davies ; Leftow, 2004: 160.
23. Barth, 2003: 81.
24. Barth, 2003: 143
328
como [quomodo] foi possvel a negao do insensato em relao ao id quo maius. O insensato diz em
seu corao [cor] que Deus no existe. No entanto,
para Anselmo, aquele que entende a idia de Deus
no pode, necessariamente, neg-lo.
Ningum pode, seguramente, compreendendo o que Deus
, pensar que ele no existe, ainda que possa dizer estas
palavras no corao sem nenhuma significao ou com
qualquer estranha significao. Com efeito, Deus aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado (Proslogion, iv).
Como adverte Strefling, a resposta de Anselmo estabelece uma distino em uma relao de significao que liga as palavras com as coisas (voces-res)
(Strefling, 1997: 54). Tal distino, posteriormente
mais fecunda no nominalismo25, pode ser entendida como vox/conceptio na linguagem de Anselmo.
A conceptio no se refere s prprias palavras, mas
s coisas (Martines, 1997: 76). Dessa forma, o pensamento que pretende ser verdadeiro depende da
relao entre palavra e coisa existente.
A distino que fizemos acima entre intellectus/cogitatio assemelha-se relao vox/conceptio. O pensamento,
quando orientado para a coisa (animado pelo intellectus),
verdadeiro; quando no, reduzido a palavras vazias de
sentido. O prximo passo do texto ratifica essas posies.
[...] As palavras pronunciadas no corao so aquelas que
esto em correlao com o pensamento verdadeiro, porm
a fala do insensato, ao distanciar-se disto, produz uma
significao nula ou estranha (Martines, 1997: 77).
quarto captulo o movimento dialtico do Proslogion conhecido como unum argumetum. Como
foi visto no decorrer do trabalho e salientado por
Strefling (1997: 102), a prova ontolgica demonstrada por Anselmo constituiu-se de uma estrutura
argumentativa vlida para a filosofia por causa do
contedo apresentado mesmo tendo a f como base
inicial da argumentao em prol do conhecimento
da realidade do transcendente.
3. Concluso
O Proslogion tem como ponto de partida a exortao do esprito propiciada pela f [fides] com o intuito de preparar a alma do homem para aquilo que
o transcende. A estrutura argumentativa levantada
nos captulos ii-iv na obra Proslogion foi defendida
com bastante rigor por Anselmo e nessa estrutura
que se encontra o dito unum argumentum anselmini. Tal argumento fundamentou-se na impossibilidade lgica de se pensar o aquilo do qual nada
maior pode ser pensado [aliquid quo maius nihil
cogitari possit] sem comprometer e/ou aceitar a
necessidade da concluso de que o mesmo seja
in re.
Nota-se que o que moveu o argumento foi o
enunciado aliquid quo nihil maius cogitari possit,
proclamado no segundo captulo da obra. Tornouse necessrio esclarecer os termos usados na alocuo principal para um entendimento mais fidedigno do proposto por Anselmo de Aosta no opsculo.
A referncia feita a cogitatio feita de modo importante na obra. Como visto anteriormente, Anselmo salientou que o pensamento [cogitatio] s
verdadeiro quando indica a coisa [res] da qual ele
retrata. A mediao entre cogitatio e res realizada
pelo intellectus. O intellectus , ainda, o responsvel pela restrio de negao dada cogitatio em
relao ao id quo maius.
Em suma, uma vez que se aceitam as premissas
propostas pelo Doutor Magnfico, o contra-argu-
25. Nominalismo. En la llamada "disputa de los universales" (vase Universales) durante la Edad Media, el nominalismo, posicin nominalista o "va nominal" consisti grosso modo en afirmar lo siguiente: las espcies y los gneros y, en general, los universales no son realidades
anteriores a las cosas, segn sostena el realismo (v.) o "platonismo", ni realidades en las cosas, segn mantuvieron los llamados oportunamente
"conceptualismo" (v.) y "realismo moderado", o "aristotelismo", sino que son solamente nombres (nomina) o trminos,vocablos (voces) por medio
de los cuales se designan colecciones de individuos. Segn el nominalismo, por tanto, solamente existen entidades individuales; los universales
no son entidades existentes, sino nicamente trminos en el lenguaje. (Ferrater Mora, 1965: 295)
329
mento torna-se reductio ad absurdum. Observouse que a prova procurou, atravs de sua alegao,
refutar aquele que nega a existncia do id quo
maius, tornando claro ao insensato a insustentabilidade de sua posio.
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330
Resumo
ste artigo trata do estudo de determinadas aes adotadas pelos monarcas portugueses da dinastia de Borgonha na chamada Idade Mdia Tardia Portuguesa. Essas aes
polticas propunham a normatizao do reino no
mbito social, poltico, econmico, cultural, bem
como da qualidade das relaes de poder entre esta
e as Ordens do reino. As aes de povoamento, de
criao de Concelhos e, particularmente as aes
poltico-administrativas fortaleceram o poder monrquico perante as outras Ordens, a ponto de inventar um futuro Estado.
Palavras-chave: Medievo Portugus, Forais
Concelhos, Poder Rgio, Aes administrativas.
331
Esses documentos, para alm do bvio, no fornecem muitas outras informaes, entretanto seus
objetivos no so difceis de ser percebidos, quais
sejam: o exerccio efetivo do senhorio rgio sobre
terras pertencentes Coroa; a ampliao do poder
monrquico; a ocupao e colonizao do espao
rural; o incremento produo agrcola e, nalguns
casos, igualmente a defesa da fronteira, a ampliao dos recursos monetrios do reino. Da os reis
terem igualmente concedido privilgios s pessoas que desejassem viver e trabalhar nesses novos
Concelhos. Escolhemos dar como exemplo o Foral
concedido por D. Dinis ao Concelho de Gostei e
Castanheira, localizado ao norte do reino.
Dom Dinis, (...) outorgo aforo para todo sempre a vs juizes, e concelho de Gostei e da Castanheira e a todos vossos
successores essas aldeas com todos seus termos novos, e
velhos, e per hu os melhor puderdes haver com todas suas
entradas, e sas saidas e com todas sas pertenas, e com
todos os direitos, que eu hy hey, e de direito, devo a haver,
(...) cada hum de vos em cada hum anno por foro dose
soldos de Portugal por dia de Paschoa, e dose soldos por
dia de Sam Martinho, e Senhas oitavas de cento, em o
novo, e darem voz, e coima pelo foro, e polo costume de
terra de Bragana: e devem a ser escuzados dos outros
foros de terra de Bragana todos aquelles que essas aldeas morarem fezerem este foro sobredito. E devedes seer
concelho per vs, e meter vossos juizes jurados cadnno
por dia de Pascoa:(...) E elles posso vendr, e dar os ditos
herdamentos, e fazer delles toda sa perfeio; mais non
os posso vender nem dar, nem doar, nem atestar, nem
em nemha maneyra alhear a Abbade, nem a Priol, nem
a Ordem, nem a Creligo, nem a Cavalleiro, nem a Dona,
nem a Escudeyro, nem a nenha pessa Religiosa, nem
poderosa mais se os vender houvrem, ou dar em alguma
maneyra, seja a tal pessoa que faom a mim, e a todos
meos successores cada anno compridamente o dito foro.
Em Testemunho desta cousa dei a elles esta carta. (Alves,
1984, p. 289.)
333
334
335
Pelos idos de 1244, o Clero e a Nobreza, ficaram descontentes com a administrao do rei, considerando-a nociva tanto a seus interesses quanto
aos do prprio reino. O motivo que, em vrias
partes do territrio, a mdia e a pequena nobreza, intentando a dilatar seu patrimnio, passaram
a atacar propriedades dos vizinhos, a se apossar da
terra e das colheitas e a matar os camponeses que
a viviam. Boa parte da nobreza acabou se digladiando entre si e contra o rei e seus partidrios, os
quais no conseguiram pr um cobro na situao
que, para alm de todas as mazelas causadas pela
guerra, estava provocando o desaparecimento e o
despovoamento no s de aldeias e vilas, mas at
mesmo do campo. ( Veloso, 1996, p.111)
Ento, a fim de tentar resolver aquela situao,
o alto Clero juntamente com parte da Nobreza que
se opunha a Sancho ii, exps a situao ao Papa
Inocncio iv (1243-54), dado que, o reino portugus
de certo modo estava subordinado S Apostlica,
pois, como vimos, fora Alexandre iii que reconheceu Portugal como um novum regnum da Cristandade e o ttulo de rex, j usado por Afonso i.
Inocncio iv, invocando o precedente histrico
e o argumento do rex inutilis, personificado no rei
franco Childerico iii (741-751), avalizou a deposio
e a substituio de Sancho ii por seu irmo, Afonso, conde de Boulogne, que vivia na corte de Lus
ix (1223-70). Este, ao chegar em Portugal, preferiu
usar o epteto de Protetor do reino. No entanto, os
partidrios de Sancho ii, embora no muitos, no
concordaram com a nova situao e a nao foi engolfada por uma guerra civil ainda mais terrvel,
que se estendeu de 1245 a 1248, quando finalmente Afonso e seus aliados acabaram derrotando o
adversrio.
O novo rei, Afonso iii (1248-1279), tambm outorgou mais de 50 forais, distribudos, principalmente, no Alentejo e em Trs-os-Montes. Esse gesto externa a preocupao permanente da Coroa no
tocante a povoar, disciplinar, organizar, cristalizar
o poder rgio e, ainda, a proteger territrios em que
a presena lusitana ainda no se havia consolidado.
D. Dinis, (1279-1325), seu filho, igualmente nesse aspecto deu continuidade poltica rgia, tendo
outorgado mais de 80 forais, cuja maioria, 76,6 %,
foi para a regio nordeste do reino, no demais
336
Durante o sculo xiii, talvez por causa das inmeras tarefas atribudas competncia do mor-
domo, ele obteve um auxiliar, o dapifer, considerado como um sub ou vice-mordomo. Este
executava servios a mando de seu superior,
a quem assessorava, geralmente, no mbito
palaciano.
O alferes exercia funo basicamente militar
ofcio de carter guerreiro. Teve duas designaes:
alferes e signifer, termos esses que respectivamente
significavam cavaleiro e aquele que transportava
as insgnias rgias. ( Homem, 1996, p. 534.)
O chanceler era o responsvel pela burocracia administrativa do reino e, por causa disso, seu
nome constava em todos os documentos expedidos
pela corte. Alis, tinha como uma de suas funes
supervisionar a redao e a publicao de todos
os documentos exarados pelo monarca. Com o
aumento de suas atribuies, obteve auxiliares, a
saber, um vice-chanceler e um grupo de tabelies,
escrives e notrios, responsveis pela escrita dos
actos e, quando a prtica surgiu, pelo registro dos
mesmos. Nem sempre identificados, tais funcionrios poderiam ser normalmente leigos e/ou eclesisticos. ( Homem, 1996, p. 536.)
Alm desses trs cargos mais importantes, desde meados do sculo xii e nas centrias seguintes
foram sendo criados outros cargos para ajudar o
rei na administrao do reino, a saber: os almoxarifes, responsveis pelo recebimento das rendas,
dos direitos do rei, dos direitos das alfndegas, das
portagens e dos reguengos; o repostaramos, oficial que tinha a seu cargo vesturio, armas, livros,
alfaias litrgicas, baixela; o porteiro-mor, guarda
das portas dos paos e da cmara do rei; o eicho,
despenseiro rgio, responsvel pelo abastecimento
do palcio, podendo por isso agir como comprador. Todos esses cargos estavam, de forma direta
ou indireta, relacionados com questes de cunho
econmico do reino.
O cargo de porteiro-mor, criado por Afonso
iii, respeitava fiscalizao da cobrana de todos
os impostos pertencentes Coroa. At ento, essa
funo era desempenhada pelo mordomo-mor, o
qual, durante o reinado de D. Dinis, tornou-se o
responsvel pela administrao do pao real e chefe de todos os funcionrios que a trabalhavam,
incluindo os ovenais, incumbidos de receber e pagar as contas do rei. O monarca igualmente criou
337
338
BIBLIOGRAFIA
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definio de Fronteiras. Do Condado Portucalense Crise do Sculo xiv. Lisboa: Editorial Presena, 1996.
339
Resumo
Rainha Guinevere tornou-se cone de infidelidade, tanto no seio da Tradio Narrativa Arturiana como na Literatura Ocidental, sempre entre a impiedosa pecha de libertina e o
estigma de inveterada vtima apaixonada. O tema
proposto visa a contribuir para os estudos relativos
identidade da mulher na Literatura Arturiana:
partindo da hiptese de que as personas femininas
em sua postura ruptora, teriam tido grande influncia do substrato cultural provindo do povo cltico, que permearia todo o Ciclo Breto. Levanta-se
que a questo da infidelidade seria uma emanao
da prxis scio-cultural celta, um eco da fecunda
Deusa Me, transmutada em crime pela frma de
imoralidade imposta pela prelazia fundamentalista medieval, provinda do prottipo de mulher
demonaca propugnado pelos oratores. Visa-se a
investigar as origens da poligamia de Guinevere,
por meio do comparativismo. Para atingir tal meta,
o fito basilar estabelecer uma relao dialgica
entre o feminino celta mtico e scio-cultural com
a Literatura Arturiana do Medievo Central. Tomar-se- por corpus as representaes da personagem
nas seguintes produes literrias: o Lanval, lai de
Marie de France e o episdio Sonhos de Lancelote,
de A Demanda do Santo Graal, obra annima do
sculo xiii. No que concerne ao celtismo, utilizar-se- os estudos de notrios mitlogos e de historiadores da rea, sobre os caracteres scio-histricos da mulher celta e a idia de casamento inserta
nessa sociedade; alm de famosas narrativas, que
se mostrem pertinentes ao temrio proposto, mitolgicas ou folclorizadas.
341
uinevere, Gwenhwyfar, Genebra ou Ginebra, seja em qual idioma for, todo estes nomes designam a grande Rainha de Camelote e do reino de Logres, a esposa e companheira de
Artur, a amante de Lancelote e uma das principais
personagens da Literatura. Como toda grande personagem, Guinevere marcada pelos mais diferentes matizes, nuances e ambigidades, que, de acordo com a pena do autor, pde adquirir. Analis-la
implica num desvelamento contnuo de inmeras
tradies e releituras sobrepostas, num contnuo
deslindar de palimpsestos.
Na atualidade, Guinevere posta sob um foco
que no a reduz reprovvel viso de mulher lasciva e infiel, mas que procura investigar, na origem da personagem, as possveis causas para a sua
postura: sua leitura no tem por referentes outras
personagens da narrativa. Assim, a infidelidade
conjugal constituir ou no uma transgresso de
padres, dependendo de como o ato tomado nas
vrias obras do ciclo arturiano e de como recebido pelos seus leitores: em graus distintos de simpatia e/ou desprezo. Ter-se-ia, aqui, um desdobramento da mesma personagem, que surge ao longo
do tempo: grande rainha, amante, guerreira e me.
Todavia, primeira vista, o leitor comum recebe a
personagem estigmatizada pela pecha da infidelidade conjugal.
Observa-se que Guinevere apreendida de
duas maneiras: tida como um cone de traio,
carregado de luxria, lascvia, volubilidade, ou
como uma vtima dos arroubos incertos de Eros,
que inebriariam os coraes mais susceptveis conduzindo-os por veredas arriscadas, considerandose o amante uma espcie de vtima doente e o
amor uma molstia. Essas duas vises aqui salientadas aparecem nas obras analisadas.
Entre o lendrio das narrativas insulares (orais
ou literalizadas) e a voga literria arturiana do sculo xii, o tema da Rainha Guinevere sempre est
ligado ao masculino, sendo raptada por um vilo e resgatada pelo prprio rei Artur ou por um
cavaleiro-heri. Salienta-se que esse cavaleiro se
transmuta, freqentemente, em seu amante. Primeiramente, suas relaes adulterinas teriam sido
com Gawain; depois, os textos medievais tambm
deixam transparecer possveis relaes com Kai,
Yder, Meleagant, e com Mordred, o filho/sobrinho
de Artur. Somente com Chrtien de Troyes que a
rainha ter por amante Lancelote do Lago, sem que
Guinevere, j em intrnseco liame com o masculino, fosse vilanizada ou tachada de rproba diablica. H, inclusive um baixo-relevo na Catedral
de Mdena, que data de 1099, retratando um dos
famosos raptos da rainha.
No Lanval (France, 2001, p. 82), lai produzido
j no sculo xii (1160), por Marie de France, a Rainha aparece como uma antagonista, mulher mimada e at cruel, uma representao que mistura elementos da figura da Damme sans merci, da Senhor
do Fine Amours e ingredientes celtas/celtizados,
provindos do maravilhoso breto. O centro dessa
narrativa Lanval, o melhor dos cavaleiros de Artur, que tem uma viso: ocorre a apario de uma
fada, a grande Senhora de Avalon com sua corte,
vinda do Outro Mundo cltico. Acontece entre ambos um enlace amoroso e, inebriado de paixo, a
vassalagem de Lanval transfere-se imediatamente
de Guinevere para a figura fantstica. A rainha,
notando o distanciamento do apaixonado cavaleiro, oferece-se a Lanval como amante, ele a ignora.
Guinevere mostra-se furibunda, ciumenta, odiosa.
Pela tica do Amor Corts, seu erro quebrar as
regras da courtoise, descer de seu patamar de Dona
para insinuar-se ao vassalo amoroso. Sua vilania tambm se d pela vingana que evoca depois,
343
1. Sigla adotada para a obra A Demanda do Santo Graal (MEGALE, 1992; NUNES, 2005).
2. Cf. Moore, 1989, s.p.
3. Classe dos miles (Duby, 1989, p.28), a camada dos bellatores (Duby, 1993, p.181), passam a fazer parte da nobreza e ganham status quo, rnamse Ordem Religiosa.
4. Obedincia, esta, alis, j gestada sculos antes com a convocao Paz de Deus (ou Trgua de Deus) (Duby, 1993, p.181).
344
Alm disso, havia um desejo de reforar a importncia sacramental do matrimnio cristo. Este
teria por fautor as transformaes das relaes
ocorridas no incio do perodo feudal. A partir do
ano mil, constitui elemento importante da Reforma Gregoriana (...) recebe da Igreja suas novas
caractersticas (Le Goff, 2007, p.86); entre estas,
se torna monogmico, ao passo que a aristocracia
mantivera uma poligamia de fato; por outro lado se
torna indissolvel. Repudiar as esposas fica difcil
(...) o adultrio (...) severamente castigado (Le
Goff, 2007, p.86). O que era um simples contrato
civil vira matria eclesistica, sob a vigilncia institucional: no sculo xii, o matrimnio entra para
o hall dos sacramentos que s os padres poderiam
administrar.
Ora, isso seria de cardeal importncia para
a postura expressa na narrativa imprimir um
exemplo negativo e os seus efeitos. Guinevere representa uma imagem dessas transformaes: esses
conflitos adulterinos passam a ser culpabilizados e
vilanizados em sua constituio diegtica. A Rainha torna-se um reflexo destes processos histricos, um exemplum do que aconteceria com o infiel.
Alm disso, observa-se que as bifurcaes scioculturais e histrico-literrias agravam-se, significativamente, nos sculos xiii/ xiv. ento que o
pensamento teocntrico assaz radical manifesta-se
mais agudamente num embate com a emergncia de inmeras linhas de pensamento sectrias5
ou provenientes do substrato dito pago6, no s
dos costumes, das narrativas folclorizadas, mas do
prprio cotidiano popular das zonas culturais noeruditas (FRANCO JR., 2006, p.103)7. Todavia, em
a DSG, as dicotomias emergem a cada episdio:
costumes populares x moral eclesistica aparecem
com clareza. Um novo modus vivendi tenta se estabelecer, com costumes cobrados, at ento, da cristianssima nobreza.
Assim, infere-se que as narrativas desenhar-
345
Guinevere mascararia as deusas, solares, claras, por seus caracteres: como a me Brighit, a me
da Irlanda, que por sua enorme importncia foi at
cristianizada, tornando-se a Santa Brgida, padroeira da Irlanda. Essas divindades esto, intrinsecamente, ligadas vegetao. Esto relacionadas s
estaes do ano. O paralelo com Guinevere reside na recorrncia do tema mitolgico do rapto
das jovens deusas por um deus solar, um jovem.
Seus esposos deuses ou, quase sempre, grandes
reis evemerizados esperam por sua volta: dessa
incompletude nasceria o inverno. A jovem deusarainha e o deus-cavaleiro se tornam amantes por
um perodo, em seguida a esposa volta ao antigo
lar, o inverno desvanece e, assim, as estaes mudam e se organizam. Exemplo disso o mito do
rapto de Blathnat (Pequena Flor), deusa irlandesa
da vegetao, que segue exatamente esta dinmica
narrativa. Roger Sherman Loomis10 liga diretamente esse mito aos raptos de Guinevere: a Rainha seria uma emanao de Blathnat (Nogueira, 2004,
p.49). patente que as divindades agrcolas, esto
profundamente ligadas fertilidade e seus ritos, o
que remete sexualidade sacralizada e expressa
abertamente em festivais de colheita, algo inconcebvel no ambiente scio-religioso judaico-cristo
medieval11.
No mbito scio-cultural, aborda-se o papel da
mulher no casamento. Este seguir padres diferentes do que os de outros povos e os costumes
matrimoniais deviam ser anlogos em todos os pases clticos (Launay, 1978, p.202). Muitas vezes,
no existia casamento-ritual: o consentimento
mtuo bastava (Launay, 1978, p.201). A mulher
poderia escolher seu marido e nunca podia ser
casada por obrigao. Ambos traziam seus bens,
mantendo a propriedade do que lhes pertencia. As
mulheres, por terem o direito de propriedade privada, detinham o mesmo poder do homem dentro
do matrimnio, no existia submisso de nenhuma
das partes12. A unio dos nubentes no possua a
346
13. Esta espcie de poligamia no implicava reificao da mulher, j que era sempre reconhecida plena em soberania, podendo a qualquer
momento rescindir o contrato de casamento a que estava jungida.
14. Este termo registra-se em inmeros textos literrios (cf. o conto da Razzia d Boeufs).
15. Na Tain bo Cualnge, a rainha Medb, (...) encarna essa soberania e a concede no somente a Ailill, seu marido, mas tambm a todos os
guerreiros que lhe agradam ou que possam ajud-la de alguma forma. O rei Ailill, ao tomar conhecimento das diversas aventuras da mulher,
sorria, comentando que se ela assim fazia era porque sentia essa necessidade. E os textos antigos dizem que ela prodigalizava a amizade de suas
coxas - lamiti des cuisses (Barros, 1994, p.84).
16. Para mais detalhes sobre a projeo da deusa e o amor corts, cf. Barros, 2001.
347
Concluso
Consideramos, pois, que a grande Rainha de Camelote est entre dois mundos, em meio a um
cosmo em transformao: quase to antiga quanto Artur, encarna elementos to antigos quanto os
dele, que deslizam, sorrateiros, pelas brumas celtas.
Conjuga em si a Realeza, Soberania rgia de me
do povo, como fica expressa nas primeiras pginas
BIBLIOGRAFIA
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Portugus e Literatura) Faculdade de Letras, Universidade Catlica de Petrpolis, 2007.
348
349
Resumo
homem um ser social? A presente comunicao no visa alimentar um debate que remonta aos primrdios da humanstica europia em torno da natureza selvagem
do ser humano oposta a sociabilidade civilizadora.
Tratar-se-, de fato, de reflexo a respeito dos elementos que fazem o sujeito permanecer em sociedade, ou seja, da reproduo do social, e mais especificamente da introjeo do coletivo no indivduo
e a projeo desse no social.
Para tanto, centraremos nossa ateno nas maneiras de pensar e de sentir das pessoas e sociedades passadas. Tal objeto foi a base da chamada
histria das mentalidades. Muita tinta correu para
descrever como os homens do passado pensavam
o mundo. Quanto aos sentimentos, bem, muitos
deles permaneceram (e permanecem) no ostracismo. Nossa inteno refletir a respeito da factibilidade desse projeto iniciado por Marc Bloch. Para
tanto, utilizaremos a solitudo tida como elemento
importante na reproduo da sociedade medieval.
importante destacar que a presente comunicao
surgiu de um primeiro esforo de delineamento
terico, realizado em 2007, para a formatao de
projeto de pesquisa a respeito da solitudo medieval.
Assim, seu contedo e organizao se aproximam
mais de um programa de estudos do que de concluses finais sobre a histria da solitudo medieval.
351
Maneiras de Sentir e de Pensar: Uma Histria do Sentimento de Solido na Idade Mdia Possvel?
Gabriel de C. G. Castanho (USP)
1. Introduo
vivendo em sociedade. Contudo, a questo parece-me ainda bastante complexa tendo em vista a
existncia de foras centrfugas que tendem desagregao da ordem vigente: a revoluo, para citar
o caso mais radical e seguindo a filosofia dialtica
hegeliana, pressupe a dissoluo de um ncleo social e o estabelecimento de um novo regime coletivo. Essas foras contrrias a ordem atual das coisas
possuem em si certo aspecto que podemos chamar
de utpico por pretender instituir nesse mundo
uma outra forma de organizao social tida como
mais adequada, se no, mais perfeita. Dito de outra maneira, utopia pressupe o distanciamento, se
no o abandono, de uma determinada organizao social corrompida e a aproximao de outra.
Ora, para ns medievalistas a fuga aut contemptus
mundi no s uma realidade documentada com,
literalmente, regra para uma parcela da populao
ao longo dos sculos.1
Chego aqui ao ponto de partida. Se o homem
um ser social isso no significa que esse ser seja
natural; ele decorrncia de processos de construo humana que passam, entre outros elementos,
pelo desejo contrrio a manuteno do social. Do
mesmo modo, a vontade de isolar-se no um fato
da natureza humana, mas sim a decorrncia de
uma determinada conjuntura histrica. Em suma,
no se trata de defender que a natureza humana
social ou individual; mais importante assumir a
construo social de tais discursos, reconhecendo
a contradio que lhe inerente, vale dizer, que a
reproduo social depende do desejo humano e que
esse muitas vezes buscou o isolamento. A separao dentre os homens assume assim um papel na
organizao de uma sociedade, ainda que esse pa-
1. A presente comunicao surgiu de um primeiro esforo de delineamento terico, realizado em 2007, para a formatao de projeto de pesquisa
a respeito da solitudo medieval. Assim, seu contedo e organizao se aproximam mais de um programa de estudos do que de concluses finais
sobre a histria da solitudo medieval.
353
Sentimentos sociais
A preocupao historiogrfica com os sentimentos
no novidade. Desde ao menos os historiadores
romnticos do sculo xix, se no antes, o tema passeia por nossos escritrios. Para ns, historiadores
do sculo xxi, profundamente influenciados pela
chamada Revoluo Francesa da Historiografia
iniciada com a fundao da revista dos Annales
em 1929, o grande ponto de inflexo se encontra
em um texto de Marc Bloch: Faons de sentir et de
penser. Um dos captulos mais importantes para
o que veio a se chamar histria das mentalidades
reivindicava a necessidade de se estudar os sentimentos em uma sociedade a fim de compreendla. Tarefa no sem dificuldades para oshistoriens
ports, par instinct, reconstruire le pass selon les
lignes de lintelligence (Bloch, p. 117). No famoso
captulo, a questo est colocada em termos cognitivos: o autor busca compreender como se percebem as coisas e como essa percepo engendra
manifestaes sociais. Orientations de pense et
de sentiment dont laction sur la conduite sociale
semble avoir t particulirement forte e que fazem parte de caractres communs de la mentalit
religieuse (Bloch, p. 130). De tal modo, conclui:
comme ne pas reconnatre, dans la peur de lenfer,
un des grand faits sociaux du temps? (Bloch, p.
135).
A lio deixada por Bloch de que o historiador no s pode se dedicar aos estudos dos sentimentos passados, mas, ainda mais, deve faz-lo se
pretende buscar explicaes para o funcionamen-
354
plos nveis que gerar em ns um sentimento de satisfao, alegria, tristeza, frustrao etc. Evidentemente as metas no so singulares e sim mltiplas,
chegando mesmo a constituir redes; redes essas que
do significado a organizao social e auxiliam na
sua reproduo.
As teorias de Reddy, tendo sido elaboradas a
partir de objetos modernos, seriam tambm aplicveis aos estudos medievais? A questo j foi, de
certo modo, respondida por B. Rosenwein. A afinidade da autora com a teoria geral mencionada
acima fica clara quando lemos que para ela
emotions () are upheavals of thoughts () that involve judgments about whether something is good
or bad for us. These assessments depend, in turn,
upon our values, goals, and presuppositions
products of our society, community, and individual
experience, mediators all(Rosenwein, p. 191).
Partindo de tal pressuposto terico, a autora aborda a
relao entre religio e sentimentos na Idade Mdia: the example of the Middle Ages suggests that
religious values, ideas, and teachings powerfully
influence the expression of emotion. Further, the
effects go to the other way as well: habits of emotional expression shape the ways in which religion
is experienced and understood. (Rosenwein, 201).
A imbricao entre religio e sentimento forte,
fazendo com que ambos elementos tenham papel
ativo na relao. People train themselves to have
feelings that are based on their beliefs. At the same
time, feelings help to create, validate, and maintain
belief systems(Rosenwein, 196).
Trabalhos partindo do pressuposto de que os
sentimentos participam da histria existem; mais
difcil encontrar aqueles que buscam o papel
ativo dos sentimentos nas mudanas histricas e
nas conformaes sociais (exemplos da busca pelo
carter ativo dos sentimentos so encontrados em
Reddy e Rosenwein). De fato, a explicao da organizao social no pode partir de um pressuposto
terico que veja nas maneiras de pensar e de sentir
um mero fenmeno superestrutural. A dicotomia
material-idealista em nada auxilia o pesquisador
preocupado em compreender os processos pelos quais a sociedade se organiza, pois como bem
enunciou
J. Morsel
les reprsentations sont en effet un lment constitutif de tout systme social,
355
Formas de solitudo2
Foram muitas as relaes sociais que se baseavam
no isolamento. Listaremos aqui apenas algumas.
1. A separao do restante da comunidade elemento fundamental para a compreenso de
algumas punies judicirias.3 Os excomungados, exilados ou excludos cumprem uma pena
jurdica que tem seu precedente primeiro na
queda e expulso paradisaca;
2. A tica crist da solido v a solitudo como local de perdio e do crime, mas tambm da redeno. A referncia sempre a proximidade
ou afastamento em relao a Deus. Nesse sentido, apartar-se de Deus possui valor negativo
associado melancolia e, conseqentemente,
accidia; possvel herana da antiguidade
clssica associada bile negra (Webb, p. 1). A
redeno ocorre quando a separao significa
aproximao a Deus. Desse modo, apartar-se
em Deus significa a paz contemplativa (cio);
um tipo de solido (isolamento) na medida em
que pressupe o distanciamento de relaes
sociais e introspeco voltada a Deus.
3. A partida para o isolamento muitas vezes vem
2. O assunto j conhecido e debatido pela historiografia h quase cinqenta anos. Bany, J., Lglise et le mpris du monde , In. Aesc, 1965, v.
20, n.5, p. 1006-1014. Bultot, R., Mpris du monde et xie sicle. in. Aesc, 1697, v. 22, n. p. 219-228.
3. A centralizao analtica no conceito de solitudo no significa excluir do campo de anlise outros termos importantes. Um deles secretum.
Tal termo abre a possibilidade de abordar uma questo ainda no abordada aqui, mas que me parece de grande importncia: a privacidade. O
conceito latino, de um lado, despe a noo moderna de suas marcas burguesas (evidentes principalmente aps a Revoluo Industrial privacidade como um valor e um direito associado ao individuo) e, de outro, indica, por meio de uma noo cristianizada ou no, os momentos e
situaes cotidianas e intimas que pressupem certo isolamento em meio a uma vida socializada, mas que parecem se diferenciar da solido.
Aqui as informaes trazidas pela arqueologia so particularmente interessantes. A obra mais atual a esse respeito a de D. Webb.
356
Concluso
As concluses possveis a que essa comunicao
pode chegar so fundamentalmente programticas. No sero tecidas afirmaes de como precisa-
4. A penitncia pode ser vista como maneira de solido? Se a resposta for afirmativa, ela pressupe qual eficcia dessa mesma solido?
5. Vale notar que as noes de educao e imitao se aproximam das noes de comunidade, regimes ou refgios emocionais utilizados
por Rosenwein e Reddy. Contudo esses autores no deram grande ateno a essa relao.
357
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He was fayr man and wict, of bodi he was the beste knicth... Corpo
e gnero em King Horn e Havelok the Dane: um estudo introdutrio.
Gabriela da Costa Cavalheiro (UFRJ)
Resumo
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He was fayr man and wict, of bodi he was the beste knicth... Corpo
e gnero em King Horn e Havelok the Dane: um estudo introdutrio.
Gabriela da Costa Cavalheiro (UFRJ)
In Havelok, as in Horn, we have another romance hero whose body is central to the narrative.
Eve Salisbury
ranscritos no sculo xiii, no baixo medievo ingls, King Horn (annimo, 1225)
e Havelok the Dane (annimo, 1275)1 so
narrativas consideradas emblemticas dentro de
um grupo de romances que se insere em uma tipologia denominada Matria da Inglaterra. Assim
como as outras obras abarcadas por essa terminologia, tais narrativas carregam uma srie de peculiaridades temticas tais como o tema do exlio e
do retorno, a presena marcante da chamada wooing woman (mulher que faz a corte) (Weiss, 1991,
p. 149), reforando com isso a ausncia da dinmica
do amor corts, o resgate de elementos histricos
anteriores ao momento de transcrio dos textos,
entre outros que as colocam numa posio pouco
confortvel dentro de tendncias padronizadoras
nos estudos literrios do baixo medievo ingls.2 Em
consonncia com essa peculiaridade temtica, um
elemento se sobressai dentro dos romances, trata-se do corpo ento disposto e elaborado como pea
fundamental no intenso jogo cnico3 que tange a
movimentao de todos os personagens nas narrativas. Desse modo, versando uma anlise que (re)
pense o lugar do corpo e o corpo como lugar
1. Optamos por adotar a datao dos romances convencionada por obras de referncia do tema, como as de W. R. J. Barron e W. H. Schofield, e
reconhecidas pela edio por ns adotada, a saber, Herzman, Ronald B.; Drake, Graham et Salisbury, Eve. Four Romances of England King
Horn, Havelok the Dane, Bevis of Hampton, Athelston. Michigan: Medieval Institute Publications (Teams), 1999. Vale ressaltar que utilizaremos
a verso original dos romances, em ingls mdio, apresentada na edio referida, mas que ainda contaremos com a traduo de King Horn para
o portugus, de nossa autoria, em Cavalheiro, Gabriela da C. King Horn: um romance ingls ducentista. In: Mirabilia revista eletrnica de
Histria Antiga e Medieval, Volume 7, dezembro de 2007, p. 182-204. http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num7/numero7_12.html, capturado em 16 de julho de 2008, de onde foram extradas as citaes. J as citaes de Havelok the Dane, por ns traduzidas, referir-se-o edio
crtica utilizada e, em nota, seguir a verso do trecho citado em ingls mdio acompanhada de uma numerao entre parnteses referente a
cada dezena de versos.
2. Referimo-nos principalmente ao mal uso de obras de carter geral como a de Barron, W. R. J. English Medieval Romance. Harlow: Longman,
1987.
3. Ao nos referirmos a um jogo cnico, dialogamos com as idias sobre a performatividade no gnero discutidas por Judith Butler em seu
ensaio Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo.
4. schofield, W.H. English Literature from the Norman Conquest to Chaucer. New York: Phaeton Press, 1969 Sendo a primeira edio da obra
em questo de 1906.
361
de estudo por ns buscados. Esses seriam, a princpio, nossos objetivos dentro do presente trabalho
e que, desse modo, seriam guiados por leituras crticas interdisciplinares entre as reas de Histria
Comparada, Literatura e Estudos de Gnero8.
Assim sendo, seguimos para o passo seguinte
de nossa aproximao com o objeto de estudo, um
breve e por assim dizer quase superficial panorama do enredo e da estruturao das narrativas.
Transcrita no sculo xiii, King Horn (1225) o mais
antigo romance em ingls mdio,9 constituindo-se
de 1545 versos e sobrevivendo em trs manuscritos, a saber, Cambridge University MS (Gg.4.27.2),
British Library MS Harley 2253 e Bodleian Library
MS Laud Misc. 108. Protagonizada pelo prncipe
Horn, a narrativa desenvolve-se em torno de suas
aventuras em reinos distantes enquanto parte de
suas provaes como caval(h)eiro recm sagrado e
cuja recompensa final est na conquista da mo da
princesa Rymenhild, a responsvel por ajud-lo a
ingressar na cavalaria e motivadora de quase toda
sua ao na narrativa. Por outro lado, considerada
pelos crticos da literatura inglesa como o romance arquetpico por excelncia da Matria da Inglaterra (Field, 2008, p. 39), Havelok the Dane (1290)
narra os infortnios do amadurecimento e do relacionamento do prncipe dinamarqus Havelok e
da princesa inglesa Goldeboru, cuja unio levar
libertao da Inglaterra e da Dinamarca de governantes usurpadores e os consagrar como modelo
ideal de unio rgia. Composto por 3002 versos, o
romance, tambm em ingls mdio, sobrevive em
5. As observaes de Bodel sobre as trs matrias surgem em sua obra La Chanson des Saisnes (cerca de 1200).
6. Tais como Derek Pearsall (1974), Diane Speed (1994), Robert Rouse (2005), Christopher Cannon (2007), Rosalind Field (2008), entre outros.
7. Pearsall, Derek. The Matter of England. In: Watson, George (org.). The New Cambridge Bibliography of English Literature, Vol I: 600-1660.
Cambridge: Cambridge University Press, 1974.
8. A saber, em Histria Comparada as discusses propostas por Jrgen Kocka (2003) e Hartmut Kaelble (2005), em Literatura a excelente exposio crtica de Rosalind Field (1991; 2008) e nos Estudos de Gnero os trabalhos de Joan Scott (1990), Jane Flax (1991) e Judith Butler (2003).
9. Ao utilizamos o sintagma romance em ingls mdio, estamos adotando um sinnimo para romance da Matria da Inglaterra, uma vez que
tal sinnimo largamente utilizado pela critica histrico-literria dessa literatura, j mencionada anteriormente. importante ressaltar que o
termo ingls mdio [Middle English], foi pensado por lingistas e fillogos de fins do sculo xix, em dilogo com uma diviso tripartida dos
perodos lingsticos do territrio ingls, seguindo o modelo da j estabelecida diviso da lngua alem em antigo-alto-alemo [Althochdeutsch], mdio-alto-alemo [Mittelhochdeutsch] e moderno-alto-alemo [Neuhochdeutsch]. Assim, instituiu-se que a lngua dos anglo-saxes denominar-se-ia antigo ingls [Old English] ou anglo-saxo [Anglo-Saxon], o perodo por volta 1100 e 1150 e meados do sculo xv convencionou-se
chamar de ingls mdio [Middle English] e, por fim, o ingls moderno [Modern English] o perodo posterior ao sculo XV, especialmente a
partir do xvi com o florescimento da escrita shakespeareana. (In: Burrow, J. A. Medieval Writers and their Work Middle English Literature
1100-1500. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 3) Optamos, em nosso estudo, por utilizar a traduo dessa nomenclatura, por j estar
consagrada em portugus em obras como as de Paulo Vizioli (Vizioli, Paulo. A literatura inglesa medieval. Edio bilnge. So Paulo: Nova
Alexandria, 1992), originalmente escrita em portugus, e na traduo da obra de Jorge Luis Borges (Borges, J. L. Curso de literatura inglesa.
Traduo de Eduardo Brando. So Paulo: Martins Fontes, 2002).
362
10. Termo em ingls mdio que significa marca de nascena, uma das principais marcas do corpo do caval(h)eiro a acentuar sua origem
nobre.
11. And the erles men woren al thore, than Havelok bi the shuldren more than the meste that ther kam: in armes him noman nam that he
doune sone ne caste.
12. He was bothe stark and strong, in Engelond (990) non hise per of strengthe that evere kam him ner.
13. O nith saw she therinne a lith, a swithe fayr, a swithe bryth (...) she lokede noth and ek south, and saw it come nut of his mouth.
363
localizao de seus corpos torna-se bastante distinta. Dentro de uma dinmica amorosa extremamente
intensa, constante e concreta no sentido de concretizao carnal dos anseios e desejos dos amantes,
claramente evidenciada no texto Horn no hesita
em ir para o quarto procurar aventura (Cavalheiro, 2007, p. 191), o quarto de Rymenhild, que o chamara para se declarar ao passo que enlouquecia por
am-lo em silncio a wooing woman trata-se do
mesmo quarto que tornou-se iluminado pela sua
[de Horn] bela aparncia (390) (Cavalheiro, 2007,
p. 188). Nesse locus, o corpo de Horn, ento apenas
um escudeiro, ganha nfase e se torna o principal
meio atravs do qual ele se posiciona diante de Rymenhild com autoridade e nobreza, persuadindo-a a
controlar seus impulsos, pois para ele sua unio com
ela era inaceitvel uma vez que sua origem nobre
ainda era desconhecida e ele ainda no havia ingressado na cavalaria. A mesma beleza que faz Rymenhild apaixonar-se por ele, ganha outra conotao
e salva sua vida no incio do romance, quando os
sarracenos invadem seu reino e se recusam a matlo com suas prprias mos, colocando-o num navio
deriva, chamando-o audacioso, (...) grande e forte,
belo e bem alto (Cavalheiro, 2007, p.185).
Curiosamente, Havelok salvo de maneira similar tambm no incio do romance, logo ao chegar
casa de Grim, o homem incumbido de mat-lo.
Porm, a esposa do pescador v uma luz muito intensa iluminar o quarto escuro onde o menino estava escondido e se assusta ao v-la jorrar de seus
lbios como um raio de sol17 (Herzman, Drake et
Salisbury, 1999, p. 100). Entretanto, pouco antes de
se encontrar com Goldeboru, antes mesmo de conhec-la, Havelok descrito pelo narrador como
puro de corpo18 (Herzman, Drake et Salisbury,
1999, p. 111) pois o jovem prncipe nunca havia estado com uma mulher, nem mesmo por farra ou por
desejo19 (Herzman, Drake et Salisbury, 1999, p. 111).
Antes de encontr-la, Havelok andava quase nu, tra-
364
365
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366
Resumo
367
obra que fosse prpria do Quatrocentos e do Quinhentos portugus, ao contrrio do que aconteceu
em Espanha, onde muitos dos cancioneiros traziam
no Prlogo uma arte de fazer poemas3. atravs
de leis da arte potica que se desenvolvem conceitos e padres do exerccio de poetar, e esse gosto,
tirado Antiguidade, foi razoavelmente bem desenvolvido em Castela. baseado nessas poticas
que pretendo desenvolver o estudo formal do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Estando Espanha e Portugal viceralmente ligados, os procedimentos da arte de fazer poesia revelam-se idnticos
baseados numa mesma arte da imitao, a qual
se diferencia mais quanto ao contedo, revelando
uma potica de sentimentos prprios de cada uma
daquelas regies.
Pode-se dividir o Cancioneiro de Resende em
seis grandes blocos: (1) baladas; (2) vilancetes; (3)
cantigas; (4) esparsas; (5) trovas e (6) poemas de
forma mista4. Alm desses, h um outro cuja forma
estrfica nica: o de nmero 615, que lembra o
rond 32 quadras com um cabo em quintilha.
As formas estrficas que aparecem no Cancioneiro Geral vo desde poemas monsticos5 at
aqueles cujas estrofes so de onze ou mais versos6,
cada uma dessas formas com sua peculiaridade ora
1. No estudo da forma, ser levada em conta no apenas a camada exterior da obra, mas principalmente a linguagem que o poeta fala e que,
na Poesia, se apresenta como um todo estruturado, em que cada elemento possui determinada funo (Iriarte, 1962, p. 160).
2. A exemplo do estudo de Pierre Le Gentil, o trabalho em desenvolvimento como Tese de Doutorado est centralizado na obra de Garcia de
Resende, Cancioneiro Geral, e sero abordados tanto as formas como os temas; quanto primeira, pretendo fazer uma anlise mais sistematizada. Lembre-se que a obra de Le Gentil abrange a lrica dos sculos xv e xvi, de Portugal e Espanha.
3. Vejam-se, como exemplo, as obras de Enrique de Villena, Arte de Trovar (1433); Juan del Encina, Arte de poesa (1496); Juan Alfonso de Baena,
Prologus Baenensis (1445-1550); Promio del Marqus de Santillana (1446-1449). J Antonio de Nebrija, em sua Gramtica de la Lengua Castellana (1492), alm de um estudo da gramtica do castelhano, elenca os elementos caractersticos da Retrica potica.
4. A caracterstica original desse grupo a mescla de vrias formas numa s composio. Tome-se como exemplo o poema que abre o Cancioneiro Geral, conhecido por O cuidar e sospirar. Trata-se de 146 poemas de formas mistas numa s composio, desenvolvendo um nico tema:
116 trovas, uma sextilha, cinco quadras, uma quintilha, 22 cantigas e um vilancete. Alm desse poema, selecionei outros 93, cuja forma mista.
5. Trata-se de versos alheios ou no de um s verso, que aparecem como mote, refro ou verso mesclado aos versos do poeta que os glosa; h
ainda os dsticos (poemas de dois versos), que aparecem da mesma forma que os monsticos e tambm como refres ou motes de vilancetes.
6. Podem ser divididos em tercetos, que aparecem como foi descrito na nota anterior ou como mote para vilancetes; quadras, independentes ou
como intercalaes e cabo (ltima estrofe do poema tambm chamado fim) um desses poemas o de nmero 615, j comentado; quintilhas,
independentes (duas ocorrncias) ou tambm como intercalao e cabo; sextilhas, tambm independentes (duas ocorrncias) ou intercalao e
cabo; stimas, que aparecem nas esparsas, trovas, vilancetes; oitavas, nonas ou novenas, dcimas e poemas com mais de 11 versos, que ocorrem
nas baladas, esparsas, trovas, vilancetes e cantigas. Nas baladas, o mximo de versos por estrofe dez; nas esparsas, o mximo de versos por
estrofe, conforme aparece no Cancioneiro, treze.
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(a)
(b)
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(c)
(d)
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7. A edio do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende aqui utilizada a mais recente, de 1998, empreendida por Aida Fernanda Dias, que fixou
o texto, estudou-o (Volume V, A Temtica) e organizou um Dicionrio Comum, Onomstico e Toponmico (Volume VI), de 2003. A publicao
da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Maia.
8. Alm do mote, o autor estuda o zeugma complexo, a silepse e a nfase como subgneros da brevitas.
9. Ornato que enfeita o cimo de um capacete (Dias, 2003, p. 183).
10. Moto ou mote, palavras breves de que se usa nas medalhas, moedas, divisas, empresas, encerrando um pensamento, um ideal de vida, a
afirmao de um sentimento. (ibidem, p. 398).
11. Cf. Dias, 1998, p. 8-10, volume II.
12. Tendo desejado que morresse uma nica mulher. Frase moldada no Evangelho de S. Joo, 18-14: Erat autem Caiphas, qui consilium dederat
judaeis: Quia expedit unum hominem mori pro populo (Dias, 2003, p. 864). sanguinis est (ibidem, p. 866).
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13. Non licet [...] No lcito lan-la no fogo. Frase moldada no Evangelho de S. Mateus, 27-6: Non licet eos mittere in carbonam, quia pretium sanguinis est (ibidem, p. 866).
14. Segundo a lei deve morrer. Versculo 7 do captulo 19 do Evangelho de S. Joo. (ibidem, p. 869).
15. Mata-a, mata-a, crucifique-a. Frase moldada no Evangelho de S. Joo, 19-15: Tole, tole, crucifige eum. (ibidem, p. 869).
16. Hanc dimittis non es amicus Caesaris. Se a soltas, no s amigo de Csar. Frase moldada no Evangelho de S. Joo, 19-12: Si hunc dimittis,
nos es amicus Caesaris. (ibidem, p. 864).
17. Entregou-lha para que fosse crucificada. Frase moldada no Evangelho de S. Joo, 19-16: Tunc ergo tradidit eis illum ut crucifigeretur.
(ibidem, p. 869)
18. Observe-se que nessas 23 composies nem todas tm por fim quadras. Algumas so de longa extenso o que poderia caracterizar, dentro
do gnero balada, um canto real. Outras tm nmeros de estrofes inferiores a seis. Como classific-las? No estudo que venho desenvolvendo
pretendo chegar a uma concluso ou, pelo menos, propor uma. Talvez entre aqui a questo da releitura da tradio atravs da inovao, to
enfaticamente comentada por Le Gentil (1949-1952).
371
19. Ressalte-se que, como exposto neste estudo at aqui, o poema lembra a balada: as divergncias ficariam, para resumir, no fato de que a
balada original destinava-se dana, com temas melanclicos, histricos, fantsticos, sobrenaturais, e a forma era mista (sc. xiii); a balada
erudita era composta de trs estrofes em oitavas, cada uma terminando com os mesmos versos (sc. xiv). No sc. xv, surge a balada propriamente dita, dividida em petite ballade, grande ballade e double ballade, em que cada estrofe culminava com o mesmo verso. Cf. Moiss,
2004, p.49-51.
20. Talvez aqui haja uma identidade mais prxima balada tradicional: poema para cantar e danar. Lembre-se que as redondilhas so apropriadas para o canto devido sua extenso (de cinco e sete slabas poticas) e s suas rimas.
372
cia com o verbo acomodar do qual derivou acomodao, cujo nome, para Casas Rigall, define o
recurso retrico; (c) essa nova moldagem efetuada,
principalmente quanto ao objeto que gramaticalmente ser modificado de masculino para feminino
no se subordina ao discurso original, o que h
o uso de uma passagem bblica de forte conotao para justificar, de forma tambm conotativa e
hiperblica o sentimento do poeta; (d) as partes
transcritas dos Evangelhos no esto em forma potica (no h rima, ritmo ou metro, no h musicalidade, enfim), os trechos em prosa foram copiados,
e modificados apenas os pronomes e substantivos.
Ainda de acordo com Casas Rigall (ibidem, p.
177), Green comentara que o uso de trechos da Bblia
um costume antigo21 e faz parte da natureza humana evidencia-se isso at hoje. Durante a Idade
Mdia, produziu-se uma clara discordncia entre a
considerao social e moral das pardias religiosas:
socialmente eram correntes e aceitas; moralmente, resultavam desprezveis, vergonhosas. Quanto
pea de Rui Moniz, pode-se comentar que esse
tipo de poesia era aceito e trivial; vejam-se como
exemplos a balada nmero 368, de Luis Anriques,
e a trova nmero 19, de Joam de Meneses, ambos
com tema religioso, tirados do Cancioneiro Geral.
Quanto a ser desprezvel ou vergonhoso, isso talvez
seja verdade quanto cortesania, to prpria dos
seres ulicos. No entanto, se essa poesia era admitida e usual, esses adjetivos depreciadores parecem
apenas ferir o decoro; o que provocaram, isso certo em muitos casos e possivelmente com relao
a esse poema de Moniz, foi a fria dos censores.
Lembre-se de que composies do prprio Rui Moniz, de fundo religioso, foram indexadas, conforme
exposto acima.
Enfim, Rui Moniz produz uma pardia, em que
transpe passagens dos Evangelhos de So Joo e de
So Mateus, ajustando-as sua inteno: denegrir
a dame sans merci, que no se rendia aos amores
de seu servidor. Na primeira estrofe, define como
so essas mulheres: virtuosas, gentis e manhosas
(que tem qualidades, virtudes, cf. Dias, 2003, p.
421). Contudo, estas qualidades, se positivas para
as mulheres, para quem as serve tm cunho negativo, pois fazem-nas repudiar seus servidores. por
isso que, fazendo uma releitura da Bblia, Moniz se
diz evangelista dos amores e que na Bblia, especificamente na Paixo, encontra-se o castigo que essas mulheres devem sofrer. Nessa estrofe, refere-se
genericamente s mulheres dotadas daqueles trs
atributos citados; nas prximas estrofes, o alvo passar a ser uma mulher em especial.
E essa mulher especial no se deixa servir, no
circula nos ambientes em que o poeta e seus colegas esto: prefere uma casa onde repousa a bondade, e ela no mora com algum cujo corao falso
o do prprio poeta (estrofes dois e trs). Se andasse onde anda o poeta, entre as que ele e os outros
mais desejam, essa dama que tanto mal traz iria
sempre trovar a todos, entendendo-se esse verbo
por perturbar, causar torvao (ibidem, p. 705).
Nessa estrofe, a quarta, percebe-se certo desejo do
poeta de corromper a senhora a quem serve, pois
se ele e os outros cortesos deseja tanto as outras damas, por que quereria a mais cruel e difcil
delas? Talvez porque ela se equivalesse a ele, que
se define como algum que possui um falso coraam. Ou talvez porque, andando ela junto com as
outras que tanto desejam aqueles a quem se dirige
o poeta, sua dama seria apenas servida reclusa,
ela instiga no s desejos de amor, mas de castigo
por ser absolutamente virtuosa. E o poeta encontra
nas Escrituras um castigo ltimo a crucificao
da dama, assim como aconteceu com Cristo, na
Paixo. Aqui, ao decretar a crucificao da mulher
de que saqueixava, Rui Moniz radica en una
hiprbole sagrada: la equiparacin de los avatares
que sufre el amador corts con la vida y muerte
de Jesucristo (Casas Rigall, 1995, p. 179, parafraseando o que escrevera J. Y. Tillier, relativamente
acomodao validada pelos Evangelhos). Ao exigir
um castigo de tal magnitude, o poeta demonstra a
fora que o sentimento de recusa lhe provocou.
Para concluir, observa-se que o poema de Rui
Moniz pleno de dilogo com outro texto, o bblico,
o que certamente agradava a audincia, pois esse
dilogo fazia parte do cotidiano do homem medie-
21. J ocorria, por exemplo, nas cantigas de escrnio e religiosas, mas no nas de amigo e amor durante o trovadorismo (Casas Rigall, 1995, p.
177). Exemplos destas podem ser os poemas compilados no Cancioneiro da Biblioteca Nacional: de Fernam Soarez [de Quinhone], no. 1469; de
Joham Soares Coelho, no. 1663; de Ayras Perez de Vuytoron, no. 1390.
373
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374
Resumo
s sculos xv e xvi em Portugal so conhecidos como o perodo das Ordenaes, em decorrncia do aumento contnuo do registro de normas jurdicas, reunidas em
corpus documentais, as Ordenaes Afonsinas e
as Ordenaes Manuelinas. Essas coletneas de
leis esto vinculadas ao poder centralizador do monarca e disseminao da imprensa. Numa poca
em que as leis passam a ser definidas pelo rei, que
legisla a partir do direito consuetudinrio, romano
e cannico, tendendo a moldar o seu poder imagem e semelhana do princeps, convm questionar
a presena das mulheres nestes compndios, analisando as situaes jurdicas em que so citadas e
as penas imputadas. Tendo em vista a quantidade
de ordenaes produzidas e os diferentes contextos
nos quais se inserem, optou-se pela anlise do estatuto jurdico das mulheres nas Ordenaes Manuelinas, cuja escrita teve incio em 1505, mas a
verso definitiva publicada em 1521. Assim, a anlise deste corpus jurdico permitir compreender
alguns traos relativos concepo jurdica sobre
as mulheres na sociedade portuguesa quinhentista.
375
s sculos xv e xvi em Portugal so conhecidos como o perodo das Ordenaes, em decorrncia do aumento contnuo do registro de normas jurdicas, reunidas em
corpus documentais, as Ordenaes Afonsinas e
as Ordenaes Manuelinas. Essas coletneas de
leis esto vinculadas ao poder centralizador do monarca e disseminao da imprensa. Numa poca
em que as leis passam a ser definidas pelo rei, que
legisla a partir do direito consuetudinrio, romano
e cannico, tendendo a moldar o seu poder imagem e semelhana do princeps, convm questionar
a presena das mulheres nestes compndios, analisando as situaes jurdicas em que so citadas e as
penas imputadas, reflexo esta que permite compreender o estatuto jurdico das mulheres. Tendo
em vista a quantidade de ordenaes produzidas
e os diferentes contextos nos quais se inserem, optou-se pela anlise do estatuto jurdico das mulheres nas Ordenaes Manuelinas, cuja escrita teve
incio em 1505, mas a verso definitiva publicada
em 1521.
Antes de tratar do estatuto jurdico das mulheres em Portugal, convm mencionar o conceito de
direito que nortear esta anlise. Esta definio
tributria da reflexo desenvolvida pela Escola dos
Annales e relaciona a histria jurdica histria social. Nesse sentito, o direito compreendido como
uma forma de regulamentao da vida indissocivel da realidade social que pretende normatizar,
combinando-se com outros sistemas valorativos,
como a religio e a moral, tendo por objetivo resolver os conflitos sociais e proporcionar coeso
sociedade. (Hespanha, 1982, p. 195).
Entretanto, ao lidar com fontes textuais de direito o historiador tem de reconhecer que as leis
no so integralmente cumpridas e que, muitas
vezes, sequer visam a uma aplicao pontual, principalmente em decorrncia de outras normas socialmente eficazes de controle do comportamento
social. Assim, ela desempenha funes diferentes
377
visto que variam de acordo com o contexto histrico no qual so produzidas. (Scott, 1990, p. 27)
As Ordenaes Manuelinas surgem no reinado de D. Manuel (1495 a 1521), perodo de influncia
e difuso do direito comum, quando a administrao se confrontou com o problema da divulgao
das Ordenaes pelo Reino, visto que o trabalho
de sistematizao e compilao j havia sido feito
parcialmente no cdigo anterior, as Ordenaes
Afonsinas.
A presena das mulheres nas Ordenaes Manuelinas se faz de forma mais contundente no livro
V, relativo ao direito criminal, em seguida no livro
IV, sobre direito civil. As mulheres tambm aparecem com certa assiduidade no livro I, referente ao
regimento dos cargos pblicos. A quantidade de ttulos que mencionam as mulheres absolutamente
a mesma no livro II, o mais heterogneo de todos,
e no livro III, sobre o direito processual, sendo os
dois volumes onde as mulheres so menos vistas.
Para auxiliar a anlise da condio jurdica das
mulheres nas Ordenaes Manuelinas, optou-se
por analisar estes livros um a um, para, posteriormente, depreender uma imagem geral das mulheres neste compndio.
No que se refere ao livro i, onde menos se
encontra a presena das mulheres, elas, quando
aparecem, o fazem como vivas que requerem tratamento especial, como herdeiras a requererem as
fazendas e os bens do marido, como participantes
da vida comercial, no papel de taverneiras, regateiras, padeiras sendo constrangidas a dar o po que
vendem quando este no corresponde ao peso estabelecido , como peixeiras, sendo obrigadas, como
os homens, a afinar a balana a cada dois meses,
como fruteiras e tecedeiras.
Estes ttulos denotam como, no setor do comrcio, as mulheres detinham um papel primordial na
distribuio dos gneros alimentares, trabalho que
muitas vezes reproduzia os objetivos da vida diria
do cotidiano feminino. Desse modo, o fabrico e a
venda de po, assim como o de biscoitos e de bolos,
eram tarefas basicamente desempenhadas por mulheres. Outro setor do comrcio urbano no qual as
mulheres estavam presentes era na venda de peixes, sendo, geralmente, esposas de pescadores.
H ainda toda uma variedade de gneros ali-
378
mentares cuja distribuio incumbia, fundamentalmente, s mulheres, como leite, ovos, legumes
e frutas. Muitas vezes, o contato com o pblico
proporcionava ocasies para atividades sexuais, o
que fez com que o comrcio a varejo praticado por
mulheres se ligasse prostituio. Nesse sentido,
as leis das Ordenaes Manuelinas tm como objetivo a regulamentao dessas atividades e a proibio da vinculao do comrcio com prostituio.
As mulheres esto presentes ainda como presas sujeitas ao assdio dos presos e at mesmo do
carcereiro, como monjas que necessitam de auxlio
na defesa de seus mosteiros contra homens com intenes escusas e nesses casos a lei as ampara,
visando, pela manuteno da honra, ao controle
da sexualidade como mulheres boas que tm o
privilgio de no terem em suas casas meirinhos
e mordomos a prenderem malfeitores estes funcionrios so proibidos de entrarem em suas casas, tendo tal medida, provavelmente, o intuito de
proteger a fama dessas mulheres , como procuradoras de seus maridos, mes a cuidarem dos interesses de filhos rfos (fazendo inventrios, sonegando bens de raiz nos inventrios, criando filhos
com seus prprios bens, caso o rfo no os tenha,
como tutoras e curadoras, desde que no tenham
se casado novamente e sejam honestas), curadoras
de maridos loucos e como rfs constrangidas sexualmente em casa de seus tutores, juzes de rfos
e escrives.
Toda esta gama de situaes nas quais as
mulheres so apresentadas se insere dentro das
responsabilidades relativas aos ofcios dos funcionrios reais, sendo poucos os casos em que se
regulamentam suas atividades. De qualquer forma,
ainda que sejam retratadas muitas vezes como necessitadas de proteo como no caso das presas,
vivas, rfs e monjas , esta variedade de cenrios permite depreender os papis desempenhados
pelas mulheres: elas participavam ativamente do
comrcio alimentcio, reclamavam suas heranas e
seus filhos e eram tutoras e curadoras de filhos e de
maridos invlidos.
As mulheres surgem de forma mais tmida no
livro ii, aparecendo como mulheres de clrigos,
como mulheres virgens que foram violentadas ou
casadas com as quais os homens cometeram adul-
1. No entanto, havia meios de burlar a necessidade desta procurao, sendo necessrio apenas que o juiz consentisse com a venda.
2. Ordenaes Manuelinas, livro IV, ttulo VII, pp. 23-26. As mulheres ficavam responsveis por esta gesto por serem meeiras dos maridos, o
que no ocorria caso a esposa viesse a falecer, visto que neste caso o marido retomava a posse integral de todos os seus bens.
3. Ibid., livro IV, ttulo X, pp. 32-33.
379
4. Ibid., livro v, ttulo xiiii, pp. 52-54. Se a virgem fosse violentada noite ou em lugar ermo, para comprovar a violncia sofrida deveria gritar
apontando o responsvel e mostrando as marcas do crime. digno de nota o constrangimento envolvendo tal comprovao, o que, aliado
vergonha de ter sido violentada, deveria dificultar sobremaneira a punio dos criminosos. Para a comprovao do crime de violncia contra
mulheres, ver Ibid., livro v, ttulo lxxvi, pp. 233-234.
5. Ibid., livro v, ttulo xiii, pp. 50-51.
6. Ibid., livro v, ttulo xv, pp. 54-59.
380
Ainda que o direito seja um discurso fragilizante no que diz respeito condio das mulheres, a leitura das Ordenaes Manuelinas revela
uma srie de situaes nas quais elas participam
ativamente da sociedade, seja porque possuem jurisdio sobre terras, seja porque so esposas de
fidalgos, vassalos e homens da corte, o que lhes
possibilita uma atuao mais presente, seja por reclamarem seus filhos, seja por serem curadoras e
tutoras, participarem do comrcio, administrarem
heranas, bens de raiz ou por tomarem parte nos
contratos, entre outras situaes.
Obviamente, as mulheres tambm aparecem
nos seus tradicionais papis de virgens, esposas e
vivas, mas o fato que, ainda que o direito no
alcance de forma integral todos os segmentos da
sociedade e no seja um espelho dela, a existncia
dessas leis permite concluir que de fato as mulheres estavam presentes em tais situaes e tinham
um quotidiano bastante diferente do desejado por
alguns textos morais e legislativos, uma vez que as
leis no normatizam situaes inexistentes. Este
carter contraditrio da legislao, no deve ser
encarado como um equvoco, visto que os textos
jurdicos so bastante flexveis, apresentando normas muito diferentes e at mesmo contraditrias,
em decorrncia de conter numerosas disposies
de data e esprito muito diferentes, no sendo possvel exigir uma grande coerncia formal. (Bruhl,
1997, p. 65)
Por trs de todas as proibies destinadas s
mulheres e de todas as caractersticas que lhes so
imputadas, encontra-se uma justificativa dominante: a fraqueza de seu sexo, responsvel por sua
passividade, luxria, por sua incapacidade de assumir funes pblicas, por sua ignorncia o que as
equipara aos menores, justificando ainda que sejam tuteladas e, sobretudo, por sua inferioridade.
No entanto, quando se analisam os documentos oriundos dos processos civis, percebe-se que as
mulheres aparecem realizando contratos, comprando, vendendo e negociando mercadorias. Percebese, portanto, que as regras aqui analisadas tm um
carter muito mais prescritivo do que descritivo,
refletindo menos a realidade do que o desejo dos
legisladores. (Wiesner, 1993, p. 70)
381
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382
Resumo
ste trabalho objetiva discutir uma questo levantada por Celso Cunha, com
relao edio feita por Walter Mettmann (1986) do refro da Cantiga de Santa Maria 70, atribuda a Afonso x (1221-1284), cujo incipit Eno nome de Maria. Talvez com base na
edio de Mettmann (1986, p. 235), e partindo da
considerao da lei de Mussafia (Mussafia, 1896),
Cunha (2004[1985], p. 88), com relao ao refro
da CSM70 (Eno nome de Maria / inque letras no
mais y ), afirma que a alternncia de setesslabo
com octosslabo desapareceria no canto pela pronncia Ma-ri-. A partir do comentrio de Celso
Cunha, o objetivo da presente comunicao analisar a notao musical que acompanha a cantiga
CSM70 nos trs manuscritos em que sobreviveu
(Toledo - To80, Escorial rico - T80 e cdice dos msicos, Escorial, E70), em busca de pistas para solucionar este problema, uma vez que o comentrio
de Cunha baseia-se justamente nessa dimenso. O
exemplo focalizado mostra que a considerao da
notao musical das cantigas das quais sobreviveram tambm as partituras pode trazer importantes
subsdios para a avaliao das edies disponveis
para cantigas especficas (e, talvez at, para a proposio de novas edies, mais adequadas considerao das duas dimenses que, poca, no se
desvinculavam: msica e texto).
383
1. Introduo
ste trabalho objetiva discutir uma questo levantada por Cunha (2004[1985], p.
88), com relao edio feita por Mettmann (1986, p. 235) do refro da Cantiga de Santa
Maria (de agora em diante, CSM) 70,cujo incipit
Eno nome de Maria.
As Cantigas de Santa Maria (CSM) so uma
coleo de 4201 cantigas em louvor da Virgem Maria, com notao musical, mandadas compilar pelo
Rei Sbio de Castela na segunda metade do sculo
xiii, que sobreviveram em quatro cdices: o de Toledo (To), o menor e o mais antigo; o cdice rico de
El Escorial (T), o mais rico em contedo artstico,
que forma um conjunto (os chamados cdices das
histrias) com o manuscrito de Florena (F); e o
mais completo, o cdice dos msicos El Escorial
(E). Trata-se de um monumento literrio, musical e
artstico da mais elevada importncia (cf. Parkinson, 1998, 179), de longe a maior e mais rica coleo
produzida nos vernculos romnicos da Idade Mdia (Leo, 2007, p. 21), o cancioneiro em louvor da
Virgem Maria mais rico da Idade Mdia (cf. Mettmann, 1986, p. 7 e Bertolucci Pizzorusso, 1993,
p. 142), um dos mais primorosos monumentos da
lngua e literatura galego-portuguesa (Lapa, 1933,
p. iii), documento e [...] monumento da cultura
medieval ibrica (Leo, 2003, p. 459). Na opinio
de Ferreira (1994, p. 58), tambm do ponto de vista
musical, a coleo das CSM especialmente notvel entre a documentao remanescente de msica
medieval mondica, por duas razes: a) they represent twenty years of centralized compositional
and editorial investiment and b) they use two original semi-mensural natational systems.
Parkinson (1998, p. 189-190) assim apresenta
uma lista do repertrio completo das CSM (os nmeros das cantigas correspondem aos da edio de
Mettmann 1986-1988-1989):
1. Descontadas as repetidas - cf. Mettmann (1986, p. 7 e 24; 1987, p. 356), Parkinson (1998, p. 179) e Bertolucci Pizzorusso (1993, p. 142).
385
A demostra AVOGADA,
APOSTA e AORADA,
e AMIGA e AMADA
da mui santa conpannia.
Eno nome de Maria...
386
387
primeiras estrofes (registrada nos manuscritos remanescentes, como mostram as figuras 2, 3 e 4), o
texto relativo s demais estrofes.
mos - tra
mos - tra
diz
que
ra - m e ra
- yz,
e
Re
Jhe- su - Cris - to,
jus - to
a - ve - re
- mos e
que
3. E - rre
4. I
nos
5. A
ar
y
ju
to
- nn e
- yz,
- d a -
Em-pe - ra - driz, ro - sa
do mun - do; e
fi
- iz
e por is - to foi por
e - la
de nos vis - to,
ca - ba - re - mos a - que - lo
que
nos que - re
- mos
que - na
se - gun
de
Deus,
388
vi
- sse
di
- sso
pois
e
ben se
- ri
Y - sa
la
nos
gui
a.
a.
a.
A tabela 1, abaixo, faz um resumo da relao entre proeminncia musical e pauta prosdica das
palavras que caem nessa posio, com relao
notao da CSM70. A partir da diviso em compassos proposta por Angls (1943, p. 78), pode-se
verificar uma tendncia de slabas proeminentes
no nvel lingstico carem em posio de proeminncia musical: a tabela 1 mostra que, somados
os casos em que slabas tnicas de palavras com
duas slabas ou mais e monosslabos tnicos caem
no incio do compasso (acento musical), tem-se um
total de 52.3% (56 casos) de coincidncia entre proeminncias. No entanto, o exemplo mostra que h
a possibilidade de slabas com outra pauta prosdi-
ca, tonas finais, pretnicas ou monosslabos tonos (clticos), carem na posio proeminente em
nvel musical. Dentre os monosslabos tonos que
figuram em posio de proeminncia musical, h 7
ocorrncias da conjuno e, considerada tnica por
Cunha (1982). Se essas ocorrncias forem computadas entre os monosslabos tnicos, a coincidncia
entre as proeminncias musicais e lingsticas sobe
para 71.6%. Estudos anteriores (Massini-Cagliari,
1995, 1999, 2005) apontaram a possibilidade de monosslabos tonos receberem tonicidade no nvel da
palavra, adjungindo-se a outros vocbulos apenas
em nveis prosdicos superiores. Neste caso, a coincidncia subiria para 74.1%.
Tabela 1. Pauta prosdica das slabas em posio inicial do compasso musical CSM70.
389
390
Concluso
O exemplo focalizado mostra que possvel extrair
elementos da notao musical que podem se constituir em argumentos para a realizao fontica das
cantigas, quanto sua estrutura silbica e ao seu
ritmo lingstico (no que diz respeito a questes de
silabao e identificao do padro prosdico de
palavras especficas). Alm disso, a considerao
da notao musical das cantigas das quais sobreviveram tambm as partituras pode trazer importantes subsdios para a avaliao das edies disponveis para cantigas especficas (e, talvez at, para
a proposio de novas edies, mais adequadas
considerao das duas dimenses que, poca, no
se desvinculavam: msica e texto).
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391
Resumo
393
394
1. Introduo
O presente trabalho d incio a estudos referentes
construo de imagens de judeus em textos de carter mariolgico medievais. Para tanto, selecionamos para nosso corpus documental trs trabalhos
elaborados em contextos histricos diferentes. So
eles: o tratado conhecido como De Perpetua Virginitate Sanctae Mariae, de Ildefonso de Toledo (sculo vii); as Cantigas de Santa Maria, de Alfonso
X (sculo xiii), e o poema Duelo de la Virgen, de
Gonzalo de Berceo (sculo xiii).
A seleo desses trabalhos se d pela dimenso
teolgica e difuso que tiveram na Europa medieval, sobretudo a obra de Ildefonso de Toledo, cuja
prpria figura e teologia mariana so constantemente citadas em textos medievais posteriores.1
Alm disso, todos esses textos so provenientes da
Pennsula Ibrica. O terceiro ponto que em todos eles a presena da Virgem Maria personagem
central, atuando como mediadora nas relaes entre cristos e judeus.
O eixo encadeador da anlise das trs narrativas ser a forma como construda a presena
judaica nos discursos mariolgicos e suas implicaes com o poder. Verificaremos quais as relaes
entre a imagem dos judeus e a de Maria e quais
as adjetivaes que os autores usaram para cada
um deles. Para tanto, utilizaremos os pressupostos
da comparao como mtodo histrico. Ao compararmos dois ou mais fenmenos histricos, poderemos vislumbrar elementos especficos pertencentes
a cada um deles. Isto abre a possibilidade heurstica, segundo Jorgen Kcka (Kcka, 1950), de iluminar questes, antes negligenciadas, quando no
se utilizava a comparao como mtodo. Seguindo
as perspectivas deste historiador alemo, possvel analisar separadamente os trs textos de nossa
1.Sobre a presena de Ildefonso de Toledo, na condio de personagem, nas obras de Alfonso X e Gonzalo de Berceo ver: Martn, Jos Luis. Los
Milagros de la Virgen versin latina e romance. uned Historia Medieval Espacio, Tiempo y Forma, Madrid, serie iii, tomo 16, p. 117 203,
2003. p. 117 203.
2.Blanco Garca, V. (Ed.). San Ildefonso de Toledo. La virginidad perpetua de Santa Mara. Madrid: Bac, 1954.
395
O tratado De Perpetua Virginitate Sanctae Mariae uma obra que, de maneira geral, defende a
idia da concepo virginal por Maria, a chamada
Imaculada Conceio, referente doutrina agostiniana de pecado original.3 Porm, esse novo olhar
sobre a figura de Maria oficializou-se apenas no
sculo xix. No Conclio de feso,4 por exemplo,
Maria encarada como Theotokos, literalmente, aquela que d a luz a Deus. Porm, destaca-se
que a terminologia no se refere maternidade de
Maria, e nem mesmo sua virgindade, mas sim
sua condio carnal de geradora. Nesse contexto,
a mariologia , sobretudo, cristolgica, porque se
refere exclusivamente a Cristo, delegando Maria
a posio de mera genitora.
Segundo Rivera Recio (Rivera Recio, 1985, p.
164) o Tratado foi direcionado a dois heresiarcas
orientais, Evidio e Joviniano, ambos da segunda
metade do sculo iv. Joviniano negava a superioridade da virgindade sobre o matrimnio, enquanto,
para Elvdio, Maria perdeu a virgindade no momento do nascimento de Cristo e que ela e Jos tiveram outros filhos depois.
Para Ildefonso de Toledo, Maria no foi contaminada pelo pecado original, mantendo, assim,
sua virgindade perptua. Para o bispo, Maria foi
Me de Deus, Mater Dei, gerando espiritualmente
o Filho. Mesmo aps o parto, Maria manteve integralmente sua condio anterior de virgem. Nesse
caso, negligencia-se o corpo, valorizando-se o esprito: Virgen antes de la salida del Hijo, virgen en
el nacimiento del Hijo, virgen despus de nacido el
Hijo (Rivera Recio, 1985, p. 166).
H mais um grupo a quem a obra dirigida:
os judeus. A obra de Ildefonso tambm marcadamente antijudaica. Se pensarmos no contexto
da Igreja visigoda no sculo vii, o bispo de Toledo
corrobora com o posicionamento oficial cristo em
diversos pontos, principalmente na questo judai-
3. O pecado original, segundo Agostinho, d-se pela contaminao do feto, infectio carnis, que atinge a alma racional no momento de sua infuso, sendo Cristo isento dessa transmisso. Ver: Agostinho. Confisses. In: Os Pensadores. So Paulo: Abril, 1973.
4. Reunio de lderes cristos que se desenvolveu em cinco sesses, entre 22 de Junho e 31 de Julho de 431 em feso, cidade da sia menor,
atualmente est localizada em uma parte da Turquia. Foi convocado por Teodsio ii e, entre outras questes, visou combater o Patriarca de
Constantinopla, Nestrio.
5. Brevirio de Alarico o cdigo de leis editado por Alarico ii em 506 d.C. Conhecido tambm como Lex Romana Visigothorum foi uma
compilao dos textos aplicveis, retirados do Direito romano oficial e destinado populao galo-romana ou hispano-romana. Ver: Feldman,
Sergio Alberto. A monarquia visigtica e a questo judaica - entre a espada e a cruz. Saeculum Revista de Histria, Joo Pessoa, n. 17, p. 11
25, jul/ dez. 2007.
396
397
398
Nos dois milagres, para Scarborough, Maria retratada, como uma compartilhadora da maternidade, intervindo em socorro das mes:
Aunque se hacen en las Cantigas de Santa Mara repetidas distinciones entre la Virgen Mara y cualquier otra
mujer, cuando los poetas hacen que las madres hablen,
casi siempre las voces de stas establecen este punto en
comn, es decir, la maternidad compartida entre ellas y
Santa Mara (Scarborough, on line).
No Duelo de la Virgen, Maria descrita com traos humanizantes e sua condio de me (Madre)
mais detalhadamente descrita, inclusive com refrncias corporais. Segundo a teloga norueguesa
Kari E. Brresen, a prpria idia de maternidade
divina era obliterada pelos telogos da Antiguida-
Nas trs obras os judeus so tratados como traidores de Cristo e Maria. No sculo VII, no contexto
de Ildefonso, os discursos mariolgicos se utilizaram de outras estratgias para atingir a incredulidade dos judeus, como, por exemplo, a concordncia com os discursos oficiais da Igreja para
legitimar sua teologia. Trata-se de uma obra mais
rgida quanto ao seu carter doutrinal, diferente da
flexibilizao do Duelo de Berceo ou as intervenes milagrosas marianas das Cantigas de Afonso
X. Somente no sculo xiii a Virgem ter um papel
materno mais especfico. Os autores da Baixa Idade Mdia do voz figura de Maria e ela se torna,
assim, auxiliadora de Cristo, contribuindo para punio e converso dos judeus.
Assim, consideramos que diferentes mariologias contriburam para reforar a doutrina crist
antijudaica. Os papis de Maria, como construes
histricas, recebem diferentes tratamentos de acordo com cada contexto. Mesmo quando ainda no
havia um culto oficial destinado Virgem, sua importncia d-se no campo teolgico como reafirmao da identidade crist contra grupos judaizantes.
399
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400
Resumo
401
Introduo
A partir do sculo xii, Tiago Maior, apstolo que
segundo a tradio crist teria evangelizado a Hispnia, se tornou um componente mtico importante da Reconquista: Santiago Matamoros. As crnicas medievais descrevem intervenes miraculosas
do santo em favor do exrcito cristo nas batalhas
frente aos mouros.
Assim como na guerra de Reconquista, o padroeiro e protetor dos primeiros conquistadores
espanhis do Novo Mundo foi Santiago Matamoros (Baschet, 2006, p.27). Dessa forma, era natural
que os gritos de Santiago! e o discurso sobre as
supostas aparies do santo tambm ecoassem na
Amrica.
403
1. Como nos explica Laurence Bardin, a anlise de contedo pode ser dividida em duas metodologias: A abordagem quantitativa funda-se na
freqncia de apario de certos elementos na mensagem. A abordagem no quantitativa, recorre a indicadores no frequenciais susceptveis de
permitir inferncias; por exemplo, a presena (ou a ausncia), pode constituir um ndice tanto (ou mais) frutfero que a presena de apario
Bardin, Laurence. Anlise de contedo. Lisboa: Edies 70, 1994, p. 114.
404
apstol Santiago, patrn de Espaa (Lpez de Gmara, 1954, p.39). O cronista continua o relato do
episdio, e informa a verso dos espanhis que
testemunharam por,
tres veces al de caballo rucio picado pelear en su favor
contra los indios, (...) y que era Santiago, nuestro patrn. Hernn Corts queria mejor que fuese San Pedro, su especial abogado; por cualquiera que de ellos
fuese, se tuvo a milagro, como de vers pareci; porque, no
solamente los vieron los espaoles, sino tambin los
ndios lo notaron por el estrago que ellos haca cada vez
que arremetia a su escuadrn, y porque les parecia que
los cegaba y entorpecia (Lpez de Gmara, 1954, p.40)
(grifos meus)
Outro conquistador presente foi Bernardino Vzquez de Tapia (c. 1493-1559) que, assim como Lpez
de Gmara, descreveu a apario de um cavaleiro
misterioso que montava un caballo blanco:
Despus de entrdoles el pueblo, tuvimos otras dos batallas muy recias con ellos y nos tuviron en ponto de nos
matar, y corriramos gran perigo si no fuera por los caballos que sacaron de los navios; y aqu se vio un gran
milagro, que, estando en gran peligro en la batalla,
se vio andar peleando uno de un caballo blanco, a
cuya causa se desbarataron los ndios, el cual caballo no haba entre los que traamos (Vzquez de
Tapia, 1988, p.136) (grifo meu)
Posteriormente, o cronista, na tentativa de apresentar um milagre, concluiu esse episdio com uma
interpretao dos relatos indgenas no qual associou os personagens descritos dentro dos santos
cristos correspondentes:
405
A ltima manifestao mais prxima do maravilhoso cristo na conquista dos mexicas aconteceu
em Otumba. Aps a vitria sobre Narvez, Corts
retornou capital mexica, onde os comandados
por Alvarado encontravam-se sitiados dentro do
palcio de Axaycatl, antigo tlatoani. Logo depois,
devido o difcil combate, os conquistadores tiveram que se retirar da cidade no desastroso episdio
conhecido como a Noche Triste (primeira grande
derrota europia no Novo Mundo, 30 de junho de
1520). Com os ndios sob o encalo dos espanhis,
mais tarde, Bernal Daz pareceu admitir, pelo me-
Logicamente, a declarao do conquistador no caracteriza um apoio decisivo de Santiago. De qualquer forma, essa foi a ltima meno mais prxima
do maravilhoso cristo que encontrei nas fontes
analisadas sobre a conquista de Mxico-Tenochtitln, campanha finalizada em 13 agosto de 1521 com
a vitria hispnica.
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407
Resumo
objetivo desta comunicao tecer algumas consideraes preliminares tericas, histricas e historiogrficas , sobre
a necessidade de construo de um modelo de anlise que contemple as especificidades do medievo
ibrico, com vistas a elaborao de um trabalho
mais verticalizado sobre o tema. Tomo como ponto
de partida os argumentos de Jacques Le Goff e Jos
Rivair Macedo, empenhados em precisar o objeto
Idade Mdia, utilizando, alm disso, os pressupostos da anlise do discurso, na leitura de algumas
fontes daquele perodo histrico, como Las Siete
Partidas, de Afonso X, o Sbio, na sua articulao
com a chamada literatura dos descobrimentos Dirios da descoberta da Amrica: as quatro viagens
e o testamento, de Cristvo Colombo, e a Carta ao Rei Dom Manuel, de Pero Vaz de Caminha.
Procuro mostrar os vnculos estruturais de carter
scio-poltico entre um plano mais amplo (medievo
europeu) e outro mais restrito (medievo ibrico),
de modo que a caracterizao da parte interfere,
dialeticamente, na descrio do conjunto no qual
est inserida. A esses dois planos geo-histricos diferenciados, acrescento um terceiro, o continente
americano, em um recorte espaciotemporal bem
identificado: o contexto do expansionismo martimo europeu, nos sculos xv-xvi, apontando para
os seus fundamentos medievais, na perspectiva da
longa durao histrica.
409
411
412
O segundo trabalho em destaque A grande Ibria: Convergncias e divergncias de uma tendncia, de Vamireh Chacon, voltado para uma anlise conceitual a partir da noo Ibero-Amrica.
Avanando nas anlises de Morse e de Barboza,
Chacon recusa o conceito de Iberismo, pela sua
conotao poltica discutvel (em torno da velha
questo da Unio Ibrica, com Portugal se unindo
Espanha, sob a hegemonia da ltima), adotando,
em seu lugar, a noo propositiva de Iberidade,
que ecoa o sentimento de Freyre, na definio de
uma universalidade ecumnica, morena, mestia,
miscigenada, presente no mundo inteiro (Chacon,
2005, p.38). Seu objetivo a recuperao de uma
viva herana, que rene em uma Grande Ibria
(Chacon, 2005, p.229) as regies de fala espanhola
1. Concepo de realeza apoiada na associao entre o rex e aquele que rege corretamente, agindo com justia e sabedoria e esquivando-se do pecado.
413
2. O dirio de bordo de Colombo se organizava de acordo com o calendrio civil, enquanto a Carta de Caminha seguia a ordem de numerao
das folhas.
414
culturas indgena e africana (esta, atingindo o status de disciplina obrigatria na graduao em Histria) no inclui a herana portuguesa que, junto
s duas primeiras, compem o trip formador cultural brasileiro. Assim, apesar de certas afirmaes
de que a Amrica Latina caminha pela valorizao
do seu passado colonial e preocupa-se mais com o
tratamento dessas fontes (Silva; Silva, 2005, p.160),
os novos estudos sobre as relaes entre Brasil e
Portugal so ainda incipientes no meio acadmico nacional mais comprometido com as grandes
correntes de pensamento, ou com a histria local.
Isso se explica, parcialmente, por certa acomodao intelectiva em uma zona de conforto que evita
os riscos de certos vos epistemolgicos, como a
longa durao histrica aceito por Chau, no seu
artigo , ou do campo minado por velhos tabus.
Desse modo, o vezo de colonizado ou a histrica
lusofobia dos brasileiros, sobretudo entre os marxistas radicais, declaradamente refratrios histria do colonizador, comprometem a elaborao
de uma crtica mais depurada sobre os vetores da
herana cultural ibrica nos pases americanos de
fala portuguesa e espanhola.
Sem pretender obnubilar o teor de violncia
inerente conquista americana, no se pode admitir, tampouco, uma anlise simplista que ope a figura demonizada do colonizador ibrico imagem
inocente do indgena vitimizado cujo exemplo
mais contundente As veias abertas da Amrica Latina, de Eduardo Galeano, que toca em pontos sensveis ao grande pblico, como o mito dos
vencedores e vencidos, originrio da tradio de
Las Casas (Fernandes; Morais, 2003). Janice Theodoro (2003) tambm condena a estrutura binria
formada por espanhis maus e ndios bons, argumentando que a compreenso da conquista da
Amrica como fenmeno histrico deve passar por
uma complexa poltica de alianas, porquanto sem
o apoio de grupos indgenas, Corts no teria conquistado a cidade do Mxico.
Em sntese, a construo de uma nova perspectiva sobre a histria ibrica passa por uma atitude
epistemolgica pluralista, baseada no reconhecimento da legitimidade de sua trajetria singular,
3. Entre os que adotaram essa perspectiva esto o portugus Antnio Srgio, o espanhol Luis Vitale e o brasileiro Fernando Novais, cujos trabalhos clssicos, a despeito de seu mrito inaugural, levaram cristalizao do velho discurso.
415
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417
Resumo
419
Introduo
Garcia de Resende (1470-1536) se apresenta como
uma das figuras mais expoentes no que diz respeito lngua e literatura portuguesas na passagem
da Idade Mdia para a Idade Moderna. Seu feito
intelectual mais marcante tenha, talvez, sido a
compilao do Cancioneiro Geral, em que rene
a produo potica portuguesa que vai do sculo
xv at primeira metade do sculo xvi. Faz parte
tambm do esplio resendiano obras picas como
a Miscelnea, na qual esto registrados, de forma
rimada, grandes feitos do imprio portugus. Fora
isso, Garcia de Resende comps, pioneiramente, sobre essa mulher icnica da Idade Mdia, as Trovas
morte de D. Ins de Castro, contribuindo ento
para a mitificao dessa importante personagem na
histria de Portugal.
Alm de obras voltadas para o enaltecimento
das conquistas e progresso portugueses, a produo
resendiana tambm marcada por uma forte carga
de moralismo, a qual, segundo Crabb Rocha (1993,
p.289), deplora as transformaes duma sociedade que o esprito de aventura colocara merc da
cobia, da intriga, do oportunismo e da ostentao
de riquezas.
provavelmente nesse cenrio de moralismo
e preocupaes com os rumos da sociedade portuguesa de ento que desagua o Breue memorial dos
pecados e cousas que pertence(m) a cfiss, em
1521, impresso depositado na Biblioteca Nacional
de Lisboa, sob a cota reservado 91, e corolrio das
manifestaes sociais formatadas nos fins da Idade
Mdia portuguesa.
Com base nessa obra pretende-se, aqui, apresentar as caractersticas do seu sistema pontuacional, muito condicionado pelos ditames da Idade
Mdia, assim como discutir o processo de edio
que precedeu a essa anlise, frutos de um trabalho
de iniciao cientfica realizado no mbito do grupo Prohpor, Programa para a Histria da Lngua
Portuguesa, da Universidade Federal da Bahia.
421
1. Letrina P, na cor dourada, de fundo vermelho, ornada com filigranas e antenas douradas, ocupando as linhas 01 e 02.
422
Hrvickton Israel Nascimento & Rosa Virgnia Mattos & Silva eAmrico Venncio Lopes Machado Filho (ufba)
423
424
do corpo do texto, o que demonstra a sua importncia como um marcador de mudana de tema.
No to antigos como o caldeiro medieval,
conquanto bastante recorrentes no documento,
usados inicialmente para indicar o fim de um pargrafo ou sentena, os sinais de fim de texto (sft)
se fazem presentes com 89 ocorrncias. Esses sinais
foram estudados por Martins (1996) em um corpus
constitudo por documentos dos sculos xiv e xv.
Segundo a autora, o primeiro sinal dos manuscritos uma espcie de 7. Depois sero outras figuras compsitas, ou seja, a pluralidade de formas e
cores sero caractersticas bem especficas dos sft.
No Breue memorial esse sinal apresenta-se sob a
forma de traados retos horizontais por vezes preenchidos com tons diferentes dos que os delineiam,
podendo ter as cores verde e dourado; azul e dourado; vermelho e dourado; azul e vermelho; verde;
dourado e verde seguido de dourado e azul; dourado e verde seguido de vermelho.
Consideraes finais
Pretendeu-se nas linhas que se seguiram apresentar uma brevssima sntese do trabalho de um ano
de iniciao cientfica, cujo corpus de autoria de
uma expoente figura do final do perodo arcaico
da lngua portuguesa, Garcia de Resende. Esperase ento que este trabalho tenha contribudo, ainda
que infimamente, no conhecimento de algum aspecto da sociedade portuguesa da virada da Idade
Mdia para a Era Renascentista, principalmente no
que concerne aos mecanismos de poder e repreenso, materializados pela Igreja e seus fiis representantes, a exemplo de Garcia de Resende. Tambm
para o conhecimento do portugus quinhentista,
no que diz respeito aos usos pontuacionais empregados naquela poca, 1521, onde a sistematizao
e prescrio metalingustica estavam quase por
acontecer atravs da Gramtica da linguagem
portuguesa (1536), de Ferno de Oliveira, e da
Gramtica da lngua portuguesa (1540), de Joo
de Barros.
Hrvickton Israel Nascimento & Rosa Virgnia Mattos & Silva eAmrico Venncio Lopes Machado Filho (ufba)
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425
Resumo
427
Introduo
1. Caracterizao do documento
A obra, de imenso ttulo, Horas de Nossa Senhora segundo costume Romao. com as horas do
spirito sancto e da Cruz e dos finados e sete
psalmos e ora de Sam Ly Papa e ora da
empardeada e com outras muytas e devotas oraes, foco da presente pesquisa, um documento
do ltimo ano dos quatrocentos, datado de 13 de
fevereiro, cujo original se encontra na Library of
Congress, em Washington, sob a cota de Rosenwald
451 da Rare Book and Special Collections Division.
Esse documento foi doado biblioteca pelo famoso
colecionador de livros raros, Lessing J. Rosenwald,
nascido em Chicago em 1891 e falecido em 1979.
Os Livros de Horas ou de Horas Cannicas
contemplam uma tradio da Igreja Catlica que
tinha por intuito oferecer um material que servisse
de diretriz para que os fieis praticassem suas devoes durante certas horas do dia. No sculo xv,
esse tipo de devocional foi largamente introduzido na sociedade devido ao advento da imprensa,
tendo sido tambm conhecido como Quindecium
Orationes.
O documento , pois, alm de mais um registro da religio crist e arquivo da cultura letrada
medieval, fonte de interesse para os estudos lingsticos, porque, alm de ser uma traduo de
manuscritos latinos para o vernculo, um dos
primeiros incunbulos em lngua portuguesa, isto
, um dos primeiros livros impressos com o advento da imprensa.
A presente pesquisa de iniciao cientfica visa
a um levantamento lexical atravs da construo
de um glossrio pautado em campos lexicais relacionados com a cultura religiosa, os quais faro
parte da base de dados do Projeto Dicionrio Etimolgico do Portugus Arcaico (Deparc), integrado ao Grupo de Pesquisa Prohpor (Programa para
a Histria da Lngua Portuguesa), da Universidade
Federal da Bahia.
O livro em pauta possui 165 milmetros de altura e 108 de largura, com encadernao em couro.
Impresso em papel com tipos mveis de letra gtica, o documento apresenta seu texto escrito em
preto e vermelho, geralmente com as rubricas em
vermelho.
H profuso de iluminuras monocromticas,
em preto, em torno da caixa de reserva, aparecendo, ainda por vezes, entre as manchas de texto,
direita ou esquerda. As imagens representam personagens bblicos e autoridades religiosas mescladas com criaturas fantsticas e trazem, em alguns
casos, identificao textual. De acordo com a descrio feita pela Library of Congress, as gravuras
e tarjas so metlicas e as mesmas que caracterizam quase todos os livros de Horas, em latim ou
em latim-francs, impressos por Pigouchet e Vostre
em Paris nos finais do sculo xv e comeos do xvi.
Isso demonstra a dificuldade que tem sido gerada
para os novos fillogos da era digital, na avaliao
429
2. O trabalho de edio
Como um dos objetivos basilares no desenvolvimento da pesquisa o levantamento sistemtico do
lxico patente no livro Horas de Nossa Senhora,
procedeu-se realizao de uma edio interpretativa da obra, j que esse tipo de edio, embora altere certas particularidades do texto com intuito de
facilitar a leitura e interpretao dos vocbulos, a
exemplo do desenvolvimento das abreviaturas e da
modernizao da pontuao, no modifica, contudo, as caractersticas lingsticas da poca em que
foi escrita a obra, isto , o portugus arcaico. No
obstante, possibilita a apresentao de um texto de
forma a ser mais acessvel a um pblico bem mais
amplo, ao contrrio da edio diplomtica, na qual
o grau de interveno feita pelo editor bem mais
limitado. Nesse sentido, o trabalho no fica restrito apenas a lingistas ou especialistas na rea da
Filologia, alm de poder ser disponibilizado para
usurios que no possuem o hbito de leitura de
textos do passado mais remoto.
Nessa perspectiva, considera-se a edio adotada neste trabalho adequada, j que possibilita um
estudo apropriado do lxico da lngua portuguesa
no perodo arcaico. A partir dos resultados alcanados, isto , de posse do rico manancial lexical
encontrado, ser elaborado um glossrio do lxico
presente na obra.
Dessa forma, tal pesquisa est sendo funda-
430
mental por proporcionar ao pesquisador uma formao prtico-terica na rea da Lingstica Histrica, nomeadamente na esfera da Lexicografia
Histrica. Com a elaborao e concluso do glossrio, far-se- a incorporao dos verbetes gerados
nomenclatura do Dicionrio Etimolgico do Portugus Arcaico.
A priori, pode-se considerar que os diversos campos lexicais, que sero elaborados a partir da lista
de palavras gerada da edio, comporo a concluso do trabalho, a exemplo de campos referentes s
indumentrias, s oraes, etc.
Nessa perspectiva, tal trabalho ser de alguma
importncia, principalmente pela necessidade de
pesquisa no campo da Filologia, no que diz respeito
edio de documentos, como recuperao e acesso a culturas passadas e, muitas vezes, esquecidas.
8. Em slaba interior, antes de consoantes, as vogais nasais so transcritas por vogal seguida
de m ou n, conforme determina a ortografia
atual.
9. Em slaba final, as nasais so transcritas por
vogal seguida de m, exceto nos casos em que
apaream com a mesma grafia com que se fixou o til no portugus contemporneo.
10. Ditongos nasais terminados em o so mantidos conforme a ortografia atual, exceo
de contexto intervoclico em que a consoante
possa ser interpretada como ataque de slaba.
11. O h inicial, seja etimolgico ou no, ser
mantido como se apresenta no documento
por questes de caracterizao do portugus
arcaico.
12. As vogais dobradas sero mantidas.
13. As consoantes dobradas so reduzidas a simples, exceo de ss e rr, com valor, respectivamente, de sibilante alveolar surda e vibrante
mltipla em contexto intervoclico e no inicial de palavra e em nomes prprios, quando
no iniciais.
14. As sibilantes so representadas conforme aparecem no texto, independente ou no de corresponderem sua etimologia, exceo das
dobradas que seguem o critrio anterior.
15. Nos casos consagrados pela ortografia atual,
utiliza-se o hfen, assim como para clticos em
situao de nclise ou mesclise.
16. As palavras escritas em latim so transcritas
em itlico.
17. A pontuao modificada para seguir a
vigente.
18. O apstrofo utilizado em casos de eliso de
vogal ou consoante inicial devido a vocbulos
em contato.
19. A edio segue de forma fidedigna a seqncia
das linhas do texto.
20. O sinal tironiano substitudo pela vogal e.
21. No haver indicao de letrinas ou capitulares na edio interpretativa, pois h a edio
anasttica, logo se faz desnecessrio transcrio a indicao destas.
22. Os trechos que se encontram em cor vermelha sero postos na mesma cor na edio.
431
5 Amostra da edio
Em funo do pouco espao disponvel, apresentase um pequeno fragmento do esboo proposto. O
flio 120r, transcrito abaixo, reporta-se a uma das
oraes referentes quarentena de perdo por conta do sacrifcio de Jesus Cristo, crucificado, com o
propsito de salvar a humanidade. Quanto s caractersticas intrnsecas do texto, nota-se a presena do Caldeiro Medieval, representado pelo sinal
. Nota-se tambm uma mescla de algarismos em
extenso com nmeros em smbolos romanos.
Consideraes finais
[f.120r]
Ho sancto padre Nicolao papa quinto
outorgou a qualquer pessoa que esta
sobredicta orao rezar cada dia segundo dito
he por cada vez que ha dissere. xx anos e
xx quorentenas de perdo. E mais lhes outorga
tantas quorentenas de perdo quantas
gotas de sangue sayram do corpo de nosso
remiidor e salvador Jhesu Chispto. Que foram
treynta
e nve mill e cccc. e xxx gotas de sangue
432
Pretendeu-se, com este trabalho de iniciao cientfica, dar uma breve notcia sobre um dos primeiros incunbulos em lngua portuguesa, o Livro das
Horas de Nossa Senhora, fazendo uma sucinta
reflexo de cunho filolgico na edio de textos antigos, mais especificamente o sculo xv, tomando
por base uma edio interpretativa de uma obra
quatrocentista, alm de perpassar pelos estudos
lingsticos, sobretudo, para o conhecimento do lxico patente no documento, tendo como suporte os
princpios da Lexicografia Histrica.
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Welker, Herbert Andras. Dicionrios. Uma pequena introduo lexicologia. Braslia, Thesaurus, 2004.
433
Resumo
435
Introduo
O objeto de estudo desta comunicao est associado s pesquisas sobre a Antropologia Escolstica, que visam, a partir do entendimento da relao
entre histria, filosofia e direito, a compreenso
do surgimento de novas concepes de cincia,
transformaes no entendimento da relao entre
santos e fiis e na escrita hagiogrfica. (Boureau,
1995 e 2002; Piron, 2009) Alm disso, parte de uma
iniciativa relativamente recente de potencializar a
utilizao dos processos de canonizao na Baixa
Idade Mdia expandindo as anlises para o mbito
do funcionamento jurdico dos mesmos. (Klaniczay, 2004)
Este trabalho se concentra em um aspecto especfico no que tange santidade: a santidade oficial, ou seja, aquela reconhecida pelo Papado aps
a anlise de inquritos realizados para a verificao
da ocorrncia e da validade de milagres operados
por um candidato a santo. Essa concepo de santidade oficial foi defendida por Andr Vauchez em
contraponto idia que, mesmo sem o reconhecimento do Papa, havia a santidade local. (Vauchez,
1981)
Nesta comunicao tratamos do inqurito para
a investigao e verificao dos milagres atribudos a Toms de Aquino (1274). Seu processo foi
movido pela Ordem dos Irmos Pregadores, ou dos
Dominicanos da qual fez parte e que, em 1317,
determinou que o Frade Guilherme de Tocco realizasse uma pesquisa prvia sobre sua vida e relatos
de milagres. Autorizado por uma bula expedida
pelo Papa Joo xxii, em 1318, o primeiro inqurito
ocorreu no Palcio Episcopal de Npoles, em 1319.
O resultado, tanto das pesquisas realizadas pelo
procurador do processo, como de sua participao
no mesmo (como testemunha e como interrogado
depoimento do dia 04 de agosto de 1319) e do
1 As consideraes apresentadas neste texto foram inicialmente desenvolvidas na palestra Como se Constri um Santo? Os milagres no processo de canonizao de Toms de Aquino (1319-1323), proferida no Memorial do Rio Grande do Sul para os membros do gt de Estudos Medievais
da Anpuh/RS, em Porto Alegre. Alm disso, so reflexes que esto no cerne da investigao realizada no curso de doutorado em Histria,
iniciado em 2008, sob a orientao do Dr. Jos Rivair Macedo. Financiamento: Capes.
437
Ao analisar a Vit de So Lus, escrita por Guilherme de Saint-Pathus em 1303, Jacques Le Goff fez
um levantamento sobre a relao processo de canonizao e hagiografia e concluiu que o So Lus dos
documentos hagiogrficos (principalmente os escritos por mendicantes) seria um frade mendicante que teria sido rei e, ainda, um santo da le-deFrance e regies vizinhas e da cruzada. (Le Goff,
2002, p.297-302). Essa concluso nos remete ao que
aquele historiador chamou de redes de tradio s
quais So Lus e seus hagigrafos estariam ligados.
Parece bvio concluir que Toms de Aquino
seria um santo mendicante devido ao seu pertencimento Ordem dos Dominicanos. Poderamos
caracterizar um santo mendicante com um conjunto de elementos pastorais e do novo universo
intelectual do sculo xiii quando, inclusive, Toms
de Aquino foi um dos protagonistas? Para o perodo
no qual ocorreu a investigao e a canonizao, os
historiadores trabalham com a categoria de santos
recentes, ou seja, aqueles que so canonizados em
um intervalo de cerca de cinqenta anos entre a
morte e o reconhecimento oficial. (Vauchez, 1981)
Essa categoria caracteriza, tambm, uma santidade moderna, mais inspirada na biografia virtuosa
do que nos milagres e no maravilhoso, ou, ainda,
numa santidade por delegao, entendida por
Andr Vauchez como uma santidade que, apesar de
mais prxima dos indivduos comuns, se exerce e
se manifesta atravs dos pedidos e do atendimento
aos mesmos. Essa delegao permitia que homens
e mulheres permanecessem no mundo profano, cabendo, ento, aos santos, interceder por eles. Isto,
segundo o autor, colocou outro problema: o risco
de um mundo mais desregrado. Atuando contra
esse problema, as ordens mendicantes tiveram um
papel fundamental, ao propor novos modelos para
os fiis. (Vauchez, 1991, p. 161-172)
Toms de Aquino pode ser considerado um
santo recente. Afinal, entre 1274 e 1323, ou seja, em
quarenta e nove anos, de intelectual controverso,
polmico e condenado passou a santo. Mas, ser
que pode ser considerado um santo moderno?
Na bula em que autoriza o processo, o Papa informa que recebeu cartas de nobres, scholares e mestres da regio e da Universidade de Npoles e que
essas cartas relatavam indcios de santidade de Toms de Aquino. Ento, o Papa escreveu:
Qud recolend memori Fr. Thomas de Aquino, Ordinis
Fratrum Prdicatorum, sacr Theologi Doctor, dum viveret, odore sanctitatis emicvit, conversatione resplendvit,
& multis maguis eam ante, qum post suum obitum miraculis coruscavit, quare pro parte ipsorum nobis fuit humiliter supplicatum, vt de eiusdem Fr. Thom vit & miraculis, Inquisitione prmiss, si reperiremus prmissa
veritate fulciri, ipsum adscriberemus Sanctorum catalogo,
ipsumque faceremus per vniversas Ecclesias honre cgruo
solenniter venerari. (aa ss, 1668, p. 687).
A recomendao, portanto, era de uma investigao minuciosa basicamente sobre dois aspectos: se
os interrogados sabiam sobre a vida de Toms de
Aquino e os modos pelos quais souberam disso e se
presenciaram milagres de cura, e as circunstncias
desses fatos, ou seja, ms, dia, testemunhas, locais
de referncia, palavras pronunciadas, se conheceram as testemunhas e/ou os atendidos com graas
atribudas ao investigado. As anotaes do notrio
permitem um acesso indireto s falas, tanto dos inquisidores, quanto dos depoentes.
Por mais que para um historiador do sculo xxi
seria uma postura ingnua acreditar ipsis litteris no
texto, importante ressaltar que a funo do not-
O interrogado nos fornece um catlogo de virtudes: homem de santa vida, puro, modesto,
sempre com os olhos elevados ao cu e sempre
andava pelo Studio. Essas informaes so anotadas no processo, principalmente porque o foco
dos questionamentos versa sobre a veracidade da
declarao anterior: o interrogado conheceu, viu
e conversatus fuit cum eo per longum tempus, &
in diversis locis, como na cidade de Npoles e no
mosteiro de Fossanova. (idem)
Assim como nos depoimentos, Guilherme de
Tocco tambm, na primeira parta da Ystoria, oferece um vasto panorama das virtudes do santo,
como nos captulos dedicados pureza do corpo
e da mente, suas oraes e contemplao. (Guilhaume de Tocco, 1996, p. 150-156) Outro aspecto
importante a se observar na Ystoria e que poderamos considerar como uma hagiografia moderna
a insero do autor na narrativa. Acerca do motivo
de sua eleio para ser procurador da causa percebemos que, segundo o prprio Guilherme de Tocco,
ele conheceu Toms de Aquino no final da sua vida
e que era um homem dcil, humilde, puro, casto
e desapegado dos bens temporais. (aa ss, 1668, p.
705)
Cruzando as informaes do depoimento com
a hagiografia escrita simultaneamente, interessante um trecho da Ystoria Sancti Thome de Aquino, no qual Guilherme de Tocco nos informa como
se sentiu encarregado da misso e a responsabilidade de obter a competncia para escrever sobre
Toms de Aquino. O hagigrafo teve uma viso e
nos informa que viu um caminho decorado com
439
440
Consideraes Finais
A princpio, ento, Guilherme de Tocco no inseriu
os milagres post-mortem na Vita, exceto os de odor,
que seriam os primeiros indcios de santidade de
Toms de Aquino. Entendemos que esta primeira
parte da Ystoria, portanto, compreende uma faceta da santidade moderna por enfatizar a vida do
santo. Acreditamos que, a observao dos milagres
aponta para esse caminho, mas, uma anlise da
construo do texto, ao contrrio, aponta para uma
repetio de topoi hagiogrficos. Mas isso tema
para outro encontro.
441
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442
Resumo
443
445
446
Promove mudanas no escudo real, manda embaixada de obedincia ao papa Inocncio viii, descobr
novas terras na frica e cuida da administrao
do reino com sua corte itinerante. Enfrenta novas
ondas de traio, punindo , sempre os culpados
com rigor. Desfaz o casamento do prncipe com a
Infante Dona Isabel e faz um novo contrato para
casa-lo com a Infante Dona Joana. Envolve-se em
inmeras guerras contra os mouros, mantendo
vivo o ideal das cruzadas. Recebe Jorge, seu filho
bastardo, na corte, apenar da proibio da rainha.
Acontece o casamento do prncipe e, pouco depois,
a tragdia de sua morte que abala profundamente
os soberanos, enquanto a peste ronda as ruas de
Lisboa. O rei tenta fazer de D. Jorge seu herdeiro no
trono, mas esbarra na oposio da rainha e acaba
nomeando o herdeiro de direito, o duque de Beja,
seu primo e irmo da rainha. Consegue, junto ao
papa, o Mestrado de Santiago e Avis para D. Jorge.
Em seguida, aceita em Portugal, em troca de dinheiro, os judeus expulsos de Castela. O rei cai doente e desconfiam que foi envenenado. Mas, mesmo assim, ele continua com sua corte itinerante,
governando e mantendo o poder. A doena torna
seu trabalho de governar um faardo cada vez mais
pesado. A doena mina cada vez mais a sua vida, o
rei faz seu testamento e morre.
D. Joo ii deixou o poder real mais forte do que
a nobreza e o pas no caminho das grandes conquistas que viriam a se realizar no reinado de D.
Manuel. Isso tudo aconteceu graas dedicao
447
448
4. Concluso
D.Joo, segundo a crnica de Rui de Pina, foi um rei
a quem o poder realmente pertenceu. Mas nunca se
utilizou dele para prazeres e banalidades, pelo contrrio, o seu poder foi utilizado para administrar a
justia e os negcios do reino, criando perspectivas
de progresso e grandeza que viriam a aparecer de
seu sucessor, D.Manuel, o Venturoso.
Alm disso, fortaleceu o poder real, mantendo
uma indiscutvel ascendncia sobre a nobreza, o
que viria a ser um dos principais fatores da tranqilidade poltica do reinado seguinte.
A passagem de D. Joo ii pelo reino de Portugal
foi to marcante que ele, mais tarde, foi chamado
de O prncipe perfeito.
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Pina, Rui de. Crnica de D.Joo ii. Coimbra: Atlntida, 1950.
449
Resumo
451
1. Primeiras palavras
O presente Trabalho Estudo lxico-semntico do
subcampo rgo sexual de religiosos em cantigas
de escrnio e maldizer galego-portuguessas 1, tem
por objetivo apresentar, descrever e analisar as unidades lxicas que fazem parte do subcampo rgo
sexuais e se encontram textualizadas nas cantigas
satricas galego-portuguesas.
Para a efetivao deste Trabalho, optou-se,
pelas Cantigas descarnho e mal dizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses editadas, criticamente, por Manuel Rodrigues Lapa, em sua 2
edio de 1970, e na edio crtica de Graa Videira Lopes Cantigas de escrnio e maldizer dos trovadores e jograis galego-portugueses, de 2002. A
escolha por tais cantigas satricas se deu pelo fato
de essas produes se apresentarem como fontes
importantes para o exame do imaginrio acerca da
sexualidade dos religiosos, pois o vocabulrio dos
textos pertencentes a esse gnero fonte riqussima de usos lingsticos medievais, j que, como
afirma Lapa (1965, p. vii), a poesia satrica dos trovadores desconhecia, muitas vezes, a arte sutil do
eufemismo e preferia chamar as coisas pelos prprios nomes.
Vale ressaltar que no se quer fomentar a angstia estril da crtica tradicional acerca de tais
textos: se seriam ficcionais ou reais. Segundo Sodr
(2007, p, 141) o jogo entre o ficcional e o histrico
ganha dimenses hoje dificilmente apreensveis.
Entende-se que as cantigas de escrnio e maldizer
so documentos construdos social e historicamente, podendo, por isso, ser tomadas como testemunhas da construo social da sexualidade de alguns
religiosos.
No Ocidente, desenvolveu-se a construo de
uma conduta tica e moral, a partir da formao
de condutas sexuais, eleitas tambm pela Igreja, in-
1. O trabalho ora apresentado um pequeno recorte da minha Dissertao de Mestrado intitulada O campo lexical da sexualidade de religiosos em cantigas de escrnio e maldizer galego-portuguesas, cujo objetivo apresentar, descrever e analisar parte do campo da sexualidade de
religiosos em cantigas de escrnio e maldizer galego-portuguesas atravs da anlise smica.
453
Com o propsito de apreender outros traos do contedo smico da unidade lxica, foram consultadas
as obras lexicogrficas, verificando-se as seguintes
454
Caralhote
Caralhote um substantivo formado pela
adio do sufixo -ote base da lexia caralho
(Corominas; Pascual, 1991). Essa unidade lxica
aparece registrada trs vezes, na composio de
Martin Sorez.
O fragmento a seguir contextualiza, claramente, a referida unidade, na esfera da sexualidade:
Colho
Colho, substantivo masculino com datao
no sculo xiii, oriundo do lat. tardio cle-eonis
(Cunha, 1986). No corpus, a lexia registrada apenas duas vezes, nas cantigas dos trovadores Joan
Servando e Fernand Esquio:
[...] Mui ben vos semelharan,/ca se quer levan cordes/
de senhos pares de colhes;/agora vo-los daran:/quatro
caralhos asnaes,/manguado en coraes,/com que colhades
o pan. (L 148, v. 17, L 227, v.30).
A partir do contexto, fica evidente que a lexia colho se encaixa na esfera do campo da sexualidade
dos religiosos. Entretanto, a lexia colho constitui-se tambm por outros semas, encontrados em
alguns dicionrios, na tentativa de identificar os
traos seguintes: [...] designao vulgar do testculo do homem e dos animais (Moraes, 1949-1959);
[...] testculo (Aulete, 1881).
Em conjunto com o estudo do contexto e com
todos os dados alcanados na pesquisa, torna-se
pertinente afirmar que o contedo smico constitutivo da lexia colho compreende os seguintes
traos: S1 rgo sexual; S2 rgo sexual masculino; S8 gnada sexual masculina responsvel pela
produo de espermatozide; S9 rgo de formato
ovoide.
Madeira2
Madeira2 uma unidade formada do latim
matra, com datao no sculo XIII (CUNHA,
1986), registrada nove vezes, em duas composies
dos trovadores Paai Gmez Charinho e Afonso Lopes de Baian2:
[...] E, meus amigos, par Santa Maria,/se madeira nova
podess aver,/logu esta casa iria fazer/e cobri-la; e descobri-la-ia/e revolv-la, se fosse mester;/e se mi a mi a abadessa der/madeira nova, esto lhi faria. (L 59, v. 7, 10, 16,
21, L 304, v. 3, 5, 8, 18, 28).
O contexto , na maioria das vezes, fator de grande relevncia para se depreender o trao semntico
de uma unidade lxica. O contexto, entretanto, no
torna claro outros semas constitutivos do contedo, fazendo-se necessrio um levantamento mais
cauteloso do sentido da lexia madeira2, dentro de
algumas obras de referncia, para, assim, se tentar abarcar outros traos da referida unidade: [...]
o mesmo que toda e qualquer lenha para fornos
e foges // [...] madeira de construo (Viterbo,
1983); [...] todo corpo lgneo // paus e raboados
para edificar (Bluteau, 1712); rgo sexual masculino (Lapa, 1970 - vcem).
Observa-se que as acepes dicionristicas,
especialmente em Moraes e Aulete, trazem, de
modo geral, a descrio da lexia madeira como
substncia compacta e slida relacionada a algumas unidades especficas, como pau e cacete.
J o vcem define a lexia madeira, explicitamente,
como pnis, o que permite assegurar que o sentido
da referida unidade registrada nas cantigas se refere ao rgo sexual masculino.
Portanto, pode-se afirmar que os semas que fazem parte do contedo do signo madeira2 so os
traos: S1 rgo sexual; S2 rgo sexual masculino; S3 rgo copulador; S4 rgo excretor; S5
condutor dos gametas masculinos parte genital
feminina; S6 rgo de formato cilndrico, que, dilatado, fica em estado de ereo.
Pissa
A unidade lxica pissa possui uma origem um
tanto controversa. Segundo Bluteau (1712), essa lexia derivada do francs pier. J Machado (1967)
registra a possibilidade de tratar-se de uma derivao regressiva da palavra pissota; peissota, com
formao por via popular, com base na pronncia
de pissota, no sculo xiii.
A lexia pissa encontra-se registrada trs vezes, em cantigas dos trovadores Joan Servando e
Fernand Esquio.
[...] Don Domingo, vossa vida/ com pe,/pois Marinha
jaz transsida/e sem cea,/per que vos aa sobida/cansou
essa cordovea:/ficou-vo-la pissa espida,/que j xe vos
[non] enfea [...]. (L 147, v. 4, L 227, v, 27, 42).
2. Devido ambigidade interpretativa do signo madeira, julgou-se pertinente a existncia das unidades madeira2 e madeira1. Portanto,
a partir do contexto da equivocatio (recurso potico utilizado quase sempre pelos trovadores) e das obras de referncia, pode-se inferir que o
contedo da unidade madeira2 apresentada nas composies se atrela ao subcampo rgo sexual e ao sema conjuntivo rgo sexual masculino. No entanto, o contexto possibilita tambm outra leitura para a lexia madeira, que chamaremos de madeira1, cujo sentido faz parte do
paradigma lxico material utilizado em construo, que no se faz representativo para anlise no presente Trabalho.
455
O contexto sugere que a lexia cono est direcionada ao rgo sexual feminino. Assim, perfeitamente pertinente a incluso dos traos conjuntivos
rgo sexual e rgo sexual feminino.
No entanto, achou-se prudente se fazer um
estudo, em algumas obras de referncias, sobre a
lxica cono, com o objetivo de visionar outros traos smicos.
Assim se encontra definido o signo: [...] vulva,
partes pudendas da mulher (Aulete, 1881); Vagina
456
S1
Caralho
+
Caralhote +
Colho
+
Madeira2
+
Pissa
+
Cono
+
Casa2
+
S2
+
+
+
+
+
-
S3
+
+
+
+
-
S4
+
+
+
+
-
S5
+
+
+
+
-
S6
+
+
+
+
-
Por fim, ao se considerarem os contextos, assim como as obras de referncia, pode-se afirmar
que os semas que fazem parte do contedo do signo casa2 se formam pelos traos: S1 rgo sexual; S10 rgo sexual feminino; S11 rgo genital
composto por parte externa e interna; S12 rgo
que recebe o pnis no ato sexual; S13 canal de sada do feto e placenta, no parto natural, e do fluxo
menstrual.
Por fim, conclui-se que a anlise smica do
subcampo rgo sexual demonstrou que os seus
signos se compem de 13 traos smicos, que se
encontram distribudos no quadro abaixo, pondo
amostra seus traos de conjuno e de disjuno
entre as lexias analisadas3.
S7
+
-
S8
+
-
S9
+
-
3. Concluso
Pde-se observar a importncia do contexto para a
apreenso dos sentidos das lexias e tambm verificar, muitas vezes, as limitaes das obras lexicogrficas, constatando-se a necessidade de estudos
lexicogrficos e lexicolgicos relativos s primeiras
fases do portugus arcaico.
Quanto analise dos dados, salienta-se que no
se pode dizer fielmente que a anlise aqui proposta esteja fora de qualquer subjetividade, podendo
ocorrer divergncias quanto depreenso dos semas. Desse modo, conclui-se que se tenha alcanado o objetivo proposto neste Trabalho, ou seja, o de
identificar e descrever, atravs da analise smica, as
lexias que comporiam o campo da sexualidade de
religiosos, a partir das cantigas de escrnio e maldizer selecionadas. Por fim esse Estudo justifica-se
no s pela contribuio de interpretaes e compreenso das cantigas satricas galego-portuguesas
analisadas. Ele contribui ainda para o conhecimento, ainda que parcial do lxico da modalidade literria das primeiras manifestaes sincrnicas do
portugus, no campo semntico, e, de forma especial, para os estudos dos campos lexicais referentes
sexualidade de religiosos. Alm disso, este Trabalho poder servir de ponto de partida para novas
pesquisas na rea da Lexicologia da Idade Mdia e
da Lingstica Histrica.
3. O sinal (+) confirma a presena de certo trao semntico e o sinal (-) negativo indica a ausncia do trao.
457
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458
Resumo
459
Lmina de Agilulfo, 590-616, arte no metal: bronze dourado com uma fina folha de ouro, 8 cm, Museo Nazionale del Bargello, Firenze. No centro,
a figura do rei no trono com dois guerreiros lombardos, e acima de sua cabea h uma inscrio quase apagada, mas com as letras do rei identificveis. Na parte intermediria, as duas Vitrias aladas danam e carregam uma placa com a inscrio victuria. Nos cantos, as duas duplas de
oferentes se aproximam do rei. Nas extremidades, duas representaes de torre, uma em cada lado.
1. A arte germnica
As imagens medievais eram objetos no de simples valor, de nico aspecto material ou esttico
em intima ligao com o sagrado. Elas expressavam caractersticas funcionais, no apenas estticas. Dentro desse carter de funcionalidade, elas
apresentavam trs funes. Primeiro, as imagens
medievais serviam como uma oferenda a Deus, aos
santos, ao alm. Dessa maneira, elas eram como
uma ponte, pois estabelecia uma ligao entre os
devotos e o outro mundo. Segundo, as imagens tinham funo pedaggica, com o intuito de orientar
os analfabetos. Terceiro, as imagens funcionavam
como afirmao de poder, justificavam-no e ressaltavam os poderes dos soberanos. Estes, por meio
das imagens, criavam um ambiente de aproximao glria de Deus e, ao mesmo tempo, de dessemelhana em relao aos mortais comuns (Duby,
1997, p. 15-16).
As imagens so meios que possibilitam compreender as representaes mentais e sociais de um
perodo (Burke, 2004, p. 13). Elas sugerem relaes
461
arte da pedra, mas a do metal, das contas de vidro, do bordado. No h monumentos, apenas objetos que as pessoas
transportam consigo, armas, e essas jias, esses amuletos
com que os chefes se enfeitam na vida e que so postos
ao lado de seus cadveres no tmulo. () Uma decorao
abstrata, smbolos mgicos entrelaados em que s vezes
se inserem as formas estilizadas do animal e da figura
humana (Duby, 1997, p. 20).
2. A arte lombarda
A arte lombarda, como a dos outros povos germnicos, era a ourivesaria e a metalurgia, e os lombardos eram excelentes nessas reas, tanto antes
quanto aps a formao de seu reino. Contudo,
eles sofreram influncias das artes tardo-romanas,
bizantinas e orientais difundidas principalmente
pelas cidades de Milo e Ravena para o territrio
do reino Lombardo (Chastel, 1991, p. 51).
Essa difuso da cultura tardo-romana foi mais
intensa nos sculos vii e viii. Foi um perodo de
esplendor para a cultura bizantina. Esta se propagou com maior facilidade devido a uma certa estagnao da cultura dos povos invasores, e com os
mosteiros como meio de propagao para a Itlia e
para o Ocidente (Argan, 2003, p. 276-277).
A influncia tardo-romana foi mais presente
1. Valdinievole est localizada na provncia de Pistia, na Toscana.
462
3. A lmina
A lmina de Agilulfo foi encontrada no final do
sculo xix, supostamente num castelo da regio de
Valdinievole1, e pertencia a parte frontal do elmo
do rei Agilulfo (Milanese, 1997, p. 145). Ela uma
placa de bronze com uma fina camada de ouro, e
foi produzida por meio de uma tcnica de oscilao
brusca de temperatura (Zampieri, 2000, p. 113). A
lmina apresenta uma composio simtrica de estilo rgido, com o aspecto de imagem majestdica
dos antigos imperadores romanos (Garcia Marsilla, 2002, p. 41).
A imagem gravada no metal divide-se em quatro partes. Ao centro, vemos a figura do rei em seu
trono, rodeado por dois guerreiros. Ao lado destes,
duas vitrias aladas se apresentam. Entre as extremidades e a vitria alada, aparecem duas duplas de
oferentes. Por fim, duas torres, uma em cada extremidade, compem a cena.
O rei veste um traje tpico romano. Seu cabelo aparenta ser escorrido, e est com um penteado partido ao meio. Ele tem um rosto estilizado com uma
barba composta por um longo cavanhaque. Em sua
mo esquerda, ele porta uma espada, que no parece ser longa e assemelha-se a um gldio romano.
Com a mo direita faz o gesto do triunfo dos imperadores romanos a mo fechada com o dedo indicador e mdio juntos apontados na altura peitoral.
Os trajes, o gesto e a disposio do rei no trono
comprovam ser uma cena de triunfo, e a inscrio
ao lado da cabea real demonstra ser Agilulfo.
Os dois guerreiros esto dispostos ao lado do
rei. Eles esto armados ao estilo lombardo. Elmo
com penacho estilo rabo de cavalo, cobrindo a
parte superior da cabea e a face lateral at o pescoo, e armadura de cota de malha em placas sobre
um manto, estendida da regio do tronco ao joelho.
A lana e o escudo redondo com uma ornamentao central compem o armamento.
As duas Vitrias dispem as pernas entreabertas, como se estivessem saltando ou danando. Elas
possuem um par de longas asas e um longo vestido
com um cinto quase na altura peitoral. A vitria
direita do rei tem o cabelo comprido at os ombros
e a boca aberta, parecendo entoar algum canto, garantindo uma expresso facial de alegria. Ela carrega um corno na mo esquerda e um estandarte
na mo direita. A vitria do outro lado do rei tem
o cabelo mais curto e um rosto mais sereno. Ela
tambm carrega um corno, na mo direita, e uma
placa, na mo esquerda.
A figura da vitria alada comparada ao Eros
grego2, o cupido romano, ou Nike grega3. Por
meio da proximidade a esses elementos da cultura
greco-romana, a Vitria alada foi uma reminiscncia de um estilo artstico prprio do perodo tardoromano (Riegl, 1992, p. 251).
As duplas de oferentes possuem os rostos estilizados e diferentes uns dos outros, porm seus trajes
so semelhantes um manto que cobre o tronco, os
braos e a parte superior da perna, coberta por uma
cala at o tornozelo. A primeira dupla de oferentes
faz um gesto de oferecimento com as mos, com
2. O Eros grego era concebido como um intermedirio entre os deuses e os homens e como um desejo de perpetuar o mortal (MACEDO, 2001,
p. 10 e 89).
3. A Nike grega relacionava-se s conquistas, principalmente as agonsticas (VEIGA, 1999, p. 34.).
463
Turim, tambm conhecido como Ago, foi o escolhido para ser esposo e rei. Segundo Paulo Dicono,
ele era um homem esforado, aguerrido, de bom
nimo e apresentvel porte fsico (Paulo Dicono,
Historia Langobardorum, iii, 35).
Com Agilulfo, o reino Lombardo adquiriu
maior definio, estabilidade, centralizao e pacificidade. Ago intensificou a aproximao aos
catlicos, sobretudo com a ajuda de sua esposa, e,
em 607, converteu-se ao catolicismo (Musset, 1968,
p. 87).
O reinado de Agilulfo foi um trao de romanizao, no qual a caracterstica tribal da realeza
prosternou diante dos fatores internos e externos
o fortalecimento do catolicismo e paz com os
varos, os francos e os bizantinos favorveis
estabilidade real (Gasparri, 2005, p. 214). Portanto, o reinado de Agilulfo foi caracterizado por uma
atitude pacfica frente aos cristos e aos inimigos
varos, francos, bizantinos e duques.
Essa disposio poltica voltada para a romanidade demonstrada pela Lmina de Agilulfo. No
entanto, no se pode enxerg-la como um simples
objeto inserido num programa poltico-ideolgico,
como defendeu Brogliolo, com o intuito de aproximar a maioria da populao romana ao reino
Lombardo, fragmentado tanto socialmente quanto
politicamente, e, dessa forma, com a pretenso de
fundar um reino ao modelo da monarquia franca e
visigoda (Brogliolo, 2000, p. 138-140).
464
5. Consideraes finais
O perodo de reinado de Agilulfo foi essencial para
os lombardos. Foi um tempo de estabilidade poltica e de paz. Alm disso, a influncia da cultura
romana tornou-se mais marcante, pois o rei revestiu-se de um carter de honra e dignidade imperial
romana. E tanto a poltica do rei quanto a romanizao foram refletidas nas artes e nas construes.
Edifcios religiosos igrejas, batistrios foram
fundados e decorados de acordo com aspectos romanos e bizantinos (Gasparri, 2005, p. 215-216).
A partir dessa concepo acerca do reinado de
Agilulfo e dos elementos presentes na cena as Vitrias aladas, os guerreiros, o gesto da mo direita
do rei e os oferentes pode-se interpretar a Lmina
como uma representao do triunfo do rei.
Como dito anteriormente, as imagens medievais tinham trs funes: a oferta, o pedaggico e
a afirmao de poder. Dessa maneira, a Lmina foi
um objeto ofertado a Deus por um soberano. Ela
serviu como meio de demonstrar a seus contemporneos e aos posteriores que Agilulfo havia sido
um bom rei, e tambm uma forma de agradecer a
Deus.
Portanto, a Lmina de Agilulfo foi um meio
simblico que o rei utilizou para marcar o esplendor de seu reinado s geraes posteriores, e um
ofertrio a Deus como agradecimento, visto que ele
havia se convertido. Logo, uma representao do
triunfo do rei ofertada a Deus.
BIBLIOGRAFIA
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465
Resumo
467
Introduo
A filosofia agostiniana baseada em suas experincias de vida: sua formao pag, sua participao no maniquesmo, sua converso ao Cristianismo, o contato com a religiosidade popular, tanto de
sua me, quanto da populao do bispado de Hipona que o procurava e o contato com as heresias e
cismas, das quais fez parte e combateu.
Propomos como ponto de partida para compreender como e por que o Bispo de Hipona elaborou
sua filosofia analisar a sua vida. E compreender as
circunstncias em que elas foram enunciadas. Neste trabalho, enfocaremos como o maniquesmo o
influencia.
Devemos analisar as circunstncias que levaram Agostinho a participar do maniquesmo e depois a abandon-lo e se converter ao Cristianismo.
Aps a converso, surge necessidade de o bispo
defender a sua nova f, o que o leva a elaborao de
um anti-maniquesmo.
2. Agostinho e o maniquesmo
Mnica, me de Agostinho era crist fervorosa,
possua uma f mstica, como era comum entre os
nmidas da poca. Estes acreditavam em sonhos e
tinha experincias de transes e xtases por meio de
embriaguez, canto e dana (BROWN, 2005. p.38).
Criou seu primognito segundo sua f, tanto que
ele foi catecmeno quando criana.
Com o intuito de proporcionar-lhe uma carreira de magistratura, magistrio ou ainda na administrao imperial, seus pais se esforaram para
que ele cumprisse o ciclo de estudos completo, estudou as artes liberais e se especializou em retrica.
Mas seus estudos o afastaram da f de sua me.
Estes foram permeados pelos escritores latinos e
pagos como Virglio, Salstio e Ccero.
E Ccero a principal influencia de Agostinho.
Foi este que o atraiu para a filosofia, por meio do
dialogo Hortensius. Encantado, o jovem busca a sabedoria elucidada pelo filosofo e orador nas Escrituras Sagradas, mas acaba por se decepcionar com
a linguagem pobre do texto bblico, se comparado
a escrita clssica:
O que senti, quando tomei aquele livro [as Escrituras], no foi o que acabo de dizer, seno que
me pareceu indigno compar-lo elegncia ciceroniana. A sua simplicidade repugnava ao meu orgulho e a luz da minha inteligncia no lhe penetrava
no ntimo. (Confisses, Livro III, 5, 9)
Desiludido com o Cristianismo e com as Escrituras Sagradas, Agostinho atrado para o
maniquesmo. Uma seita que mistura elementos
judaico-cristos com o gnosticismo, o budismo e o
zoroastrismo, que se mostrava detentora da Verdade e a buscava atravs da Razo.
Como dualistas rgidos acreditavam que o Universo estava dividido entre o Reino das Trevas e
o Reino da Luz, que estavam em luta constante.
Contudo, segundo a sua cosmogonia, o mal que
sempre ataca e o bem apenas se defende. Satans
tendo invadido o reino de Luz, roubou partculas e
as aprisionou na matria. A partir disto foi criado
o mundo como forma de liberar estas partculas.
Os praticantes do maniquesmo esto divididos
em dois grupos hierrquicos. Os Perfeitos que devem ter uma vida asctica rgida: deveriam dizer
sempre a Verdade o que inclui propagar o maniquesmo; no poderiam cometer atos de violncia
ou matar, inclusive animais e vegetais, uma vez
que estes tambm continham partculas de luz;
no podiam comer carne ou ingerir bebida alcolica; deviam viver unicamente da caridade dos
laicos; deviam se abster do sexo e realizar jejuns
peridicos.
J quanto aos Ouvintes, as regras eram menos
rgidas. Deveriam renunciar a idolatria, evitar a
mentira e a blasfmia, propagar a Verdade, respei-
469
470
vez que est vivificado pela alma e que apenas assim pode viver.
Tanto a alma quanto o corpo participam da Sabedoria Divina. Sendo que foram criados por Deus,
participam do ser. E o corpo, mesmo fazendo parte do mundo sensvel est ligado, mesmo que de
forma indireta a Deus. Desta forma, possvel ao
homem, com a graa de Deus, o caminho do bem.
O que contraria a viso maniquesta de uma matria malvola a aprisionar uma alma boa, que presa
acaba no conseguindo fazer o bem.
Portanto, percebemos de forma clara uma negao de Agostinho as idias maniquestas que antes ele defendia em debates pblicos. Contudo, sua
participao na seita deixaram marcas que mesmo
aps a converso iro persistir.
471
Portanto, o que percebemos que as idias agostinianas so fortemente influenciadas pelo maniquesmo, pois h, primeiramente, uma necessidade de
neg-lo, alm, da busca por questes que so anteriores ou concomitantes a sua participao na seita,
e, por ltimo, temos as questes inconscientes.
5 . Concluso
Desta forma, devemos entender as idias Agostinianas como um anti-maniquesmo, como reao
oposta seita que ele havia defendido. Assim, se encaixam suas idias de Deus, do Mal e da criao. E
que esto baseadas no Antigo Testamento por oposio a idia dualista de negao a este.
Mas no devemos deixar de perceber que h uma
sobrevivncia de conceitos e idias maniquestas no
pensamento Agostiniano, seja de forma inconsciente, como oposio ou ainda como forma de responder
questes que o levaram a seita.
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472
Resumo
473
475
Na Portugal do sculo xv, essa legislao concentrava-se nas chamadas Ordenaes Afonsinas.
2. As Ordenaes Afonsinas
Primeiro surgem os costumes, os usos e as crenas
que fazem parte da sociedade e que com o passar
dos tempos tornam-se comuns para um determinado povo. Costume um ordenamento de fatos
que as necessidades e as condies sociais desenvolvem e que, tornando-se geral e duradouro, acaba impondo-se psicologicamente aos indivduos.
(Ferrara, 2006).
Esses costumes adquirem importncia e passam a ser respeitados, auxiliando nas relaes civis
e penais, gerando aquilo que consignamos como
regras de conduta, ou seja, no prprio direito. Direito o conjunto de condies pelas quais o arbtrio de um pode conciliar-se com o arbtrio do
outro, segundo uma lei geral de liberdade. (Kant,
1954). Para Rousseau o Direito um conceito moral, fundado na razo.
A idia de possuir um conjunto de leis para a
todos reger no recente. Basta lembrarmos do
Cdigo de Hammurabi, um monumento monoltico talhado em rocha de diorito, sobre o qual se
dispem 46 colunas de escrita cuneiforme acdia
(Marques, 2007, p.90) que Ribeiro (2005, p.42) descreve como cdigo de leis que ficou clebre como
uma das primeiras expresses escritas do direito
e um dos mais antigos e importantes conjuntos
de leis. A idia da existncia de um cdigo de leis
vem geralmente baseada no tratamento igualitrio
dos homens e do seu rgido cumprimento para a
soluo de disputas. O principal exemplo deste tipo
em Portugal ficou conhecido como Ordenaes
Afonsinas.
Simo (2006) considera que sua organizao
tem incio no reinado de D. Joo i (1385-1433) e
teve como objetivo atender aos pedidos das Cortes que queriam leis organizadas e que facilitassem
a administrao da justia. Considerava-se que a
possibilidade da utilizao de um conjunto de leis
comuns para o Reino centralizaria as decises evitando desgastes relacionados imensa gama de
fontes de direito existentes no perodo. O incio de
sua vigncia difcil de precisar, mas a sua estru-
476
Percebe-se o cuidado do legislador que busca colocar este grupo socialmente enfrequecido em p de
igualdade em qualquer embate jurdico.
Os privilgios relacionados com requerimentos de citao de algum que se encontrava fora da
corte era determinado pela idade do rfo. Segundo o Livro i, Ttulo v, item 2;
a peffoa, que tal Carta (de citao) requerer, he affi viuva,
orfom, ou peffoa miferavel, que deve haver tal privilegio,
e Orgom nom paffe de idade de quatorze annos, fe for
varom,ou de doze, fe for molher; porque eftes per direito
ham tal privilegio, e os maiores nom...
(Ordenaes Afonsinas, Livro I, Ttulo V, item 2, 38-39)
O livro citado trata ainda das doaes, das vendas, das compensaes de dvidas, de aluguis, das
sesmarias e percebe-se a vontade do legislador de
tentar abarcar a problemtica das relaes civis em
nuances e detalhes.
O Ttulo lxxxii deste mesmo livro que tem
como ttulo Dos Tetores, e Curadores, e em quantas maneiras podem feer dados faz a primeira
meno aos rfos. H a preocupao dos monar-
477
A segunda situao diz respeito ao Tetor, ou Curador lidimo, que he dado ao meor per direito (Or-
478
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479
Resumo
481
1. Introduo.
Nos ltimos vinte anos, os estudos sobre Bizncio
nos sculos xi e xii se tornaram um importante
ponto de reviso historiogrfica. At muito pouco tempo, esse perodo foi tratado somente como
um perodo de um caos poltico resultado da queda da Dinastia Macednia (867-1056), quando imperadores efmeros se sucederam e destruram a
estabilidade e brilhantismo criado por essa dinastia. Processo degenerativo que resultou na famosa
derrota bizantina em Mazikert, em 1071, quando o
exrcito imperial bizantino foi destrudo e dispersado pelos turcos-sedjulcidas liderados pelo Sulto
Alp Arslan. A partir da, a histria de Bizncio foi
tomada como uma longa decadncia at a tomada
de Constantinopla pelos Otomanos em 1453. Uma
exceo poderia ser feita em relao ao sculo xii,
quando os ditos trs grandes Comnenos, Aleixo i
(1081-1118), Joo ii (1118-1143) e Manuel i (1143-1180)
conseguiram de certa forma reavivar e manter o
poderio bizantino por pelo menos um sculo.
Entretanto, a historiografia mais atual tem feito uma leitura diferente desse perodo. (Bravo &
Alvarez, 1988.) Tem sido afirmado que os sculos xi
e xii foram um perodo de grandes transformaes
em diversos campos dentro da civilizao bizantina. No campo poltico, como foi observado no recente trabalho de Leonora Neville (Neville, 2004),
aconteceu uma profunda mudana. As instituies
polticas bizantinas foram mantidas, mas a forma
que e por quem o poder era exercido mudou de
forma bastante clara. Desde sempre, em Bizncio, o
poder emanou do Imperador e quem estava prximo a ele poderia usufruir de uma frao dele. Contudo, at meados do sculo xi, essa proximidade
do poder e o privilgio de exerc-lo dependiam da
entrada na corte imperial. Uma micro-sociedade
palaciana que s era permitida a entrada atravs
de ttulos honorficos que davam acesso a postos
dentro da administrao imperial e rendas anuais
dadas diretamente pelas mos do Imperador. Ttu-
483
484
gem no-aristocrtica de Catacalon, porm isso poderia ser somente uma afirmao que ele ascendeu
devido suas capacidades, apesar de ter uma origem
aristocrtica.(Signes Cordoer, 2000, pp. 15-19)
A aristocracia militar bizantina comeou a
surgiu a partir do sculo x, quando algumas famlias comearam a ter uma ascendncia dentro das
provncias bizantinas, as themata, que at ento
eram majoritariamente compostas de vilarejos de
pequenos proprietrios de terra: os chorion. Foi
observado em vrios locais, nesse sculo x, que
famlias locais foram adquirindo gradualmente a
maior parte das terras de seus vizinhos da chorion.
Os antigos proprietrios tornaram-se dependentes,
trabalhando nas terras do poderoso local e, desse
modo, foram nomeados, segundo a terminologia
jurdica bizantina, paroikoi. Apesar de que a perda da propriedade da terra signifique a perda de
grande parte da independncia desses paroikoi, de
forma que vrios ditos imperiais foram emitidos
por todo esse sculo tentando limitar a apropriao
de terra dos pobres (ptochoi) pelos poderosos (dynatoi), havia certos benefcios que compensassem.
Aparentemente, a carga fiscal bizantina era bastante pesada e alguns, em tempos de dificuldades, no
conseguiam arc-la. Desse modo, ao vender as suas
terras, os camponeses bizantinos se livravam desse
pesado encargo, alm de criarem relaes de clientelismo com o poderoso local, o que trazia proteo
e benefcios.
Contudo, o grande passo para um poderoso local entrar de fato para a aristocracia era a obteno
de um ttulo honorfico e a conseqente entrada
na corte imperial. Em um primeiro momento, esses ttulos honorficos eram to somente ganhos
pelo benefcio do Imperador. Era uma forma de os
Imperadores se cercarem to somente de homens
seus, porm gradativamente os ttulos passaram a
ser abertamente comprados e tomados como um
tipo de investimento, uma vez que os ttulos davam
direito a rendas anuais, a proximidade com o Imperador e acesso a postos militares e administrativos.
Aparentemente houve uma diferenciao entre
postos que eram dirigidos a laicos, religiosos e eunucos. O que resultou uma diferenciao dentro da
elite bizantina, pois geralmente os indivduos laicos de origem provincial tendiam a obter os cargos
militares, enquanto os de origem urbana tendiam
a obter postos burocrticos. Outro fator que ligava a elite provincial ao ofcio militar era a proximidade que esses viviam com a ameaa externa.
Eram as terras deles que os invasores, queimavam,
saqueavam e tomavam. Portanto, as incertezas da
vida rural em Bizncio impeliam esses poderosos a
se responsabilizarem em relao defesa de suas
terras e de sua regio. (Neville, 2004. pp. 14-98; Kazhdan & Epstein. 1985, pp 53-73; Treadgold, 1997.
pp. 540-541)
No caso da famlia Cecaumeno, h a especificidade de ser uma linhagem de origem armnia. Nos
sculos x e xi, o perodo de expanso territorial
bizantina, uma das formas mais famosas de anexao era a cooptao de pequenos potentados locais
que existiam em grande nmero por toda fronteira
do Imprio Bizantino. Todavia, incerto o grau de
independncia desses potentados locais absorvidos
em relao ao poder imperial. Uma vez que recebiam de ttulos honorrios, postos militares e administrativos com as rendas referentes elas e ainda
tinham grande liberdade de ao.(Neville, 2004,
pp. 28-31; Kazhdan & Epstein, 1985, pp. 170-174)
Embora tenha escrito embasado principalmente em sua prpria experincia, ele d poucos exemplos citando diretamente episdio de sua prpria
vida. A carreira militar do autor Cecaumenos deve
ter se iniciado na dcada de 1030, pois diz ter participado de uma campanha militar contra a revolta
do lder blgaro Pedro Delian, em 1041, ao lado do
lder varengo3 Harald Hadrada e sob o comando do
Imperador Miguel iv Paphlagonio (1034-1041).(Cecaumenos, 2000, xi, 8, v) Cecaumenos posteriormente esteve em Constantinopla e testemunhou
a revolta popular que destituiu Miguel v, em 1042
(Cecaumenos, 2000, xi, 26 & xv, 11-14), e restituiu
as ltimas representantes da Dinastia Macednia,
Teodora e Zoe, ao poder. Aparentemente, ele no
teve influncia nem participao nessa sublevao, apesar de Cecaumeno se mostrar simptico a
Miguel v e nem um pouco em relao a seu sucessor Constantino ix Monomachos (1042-1055).
3. A chamada guarda varenga foi uma unidade militar pessoal do Imperador e criada pelo Imperador Baslio ii. Ela foi composta primeiramente de guerreiros russos, porm, aps a invaso normanda na Inglaterra, em 1066, grande parte dessa guarda foi composta de anglo-saxes.
485
486
poderosos locais e chefes valacos1 que no concordaram com um aumento de impostos promulgado
por esse Imperador. Posteriormente, os conspiradores comearam a tentar envolver Niculitzas na
conspirao. Ele ainda tentou convenc-los a desistir da revolta, mas acabou se envolvendo, devido
ao medo de Niculitzas de uma provvel retaliao
contra sua famlia e foi declarado lder da revolta
pelos conspiradores. Enquanto isso enviava missivas ao Imperador, reafirmando sua fidelidade e
tentando achar uma soluo para o problema. No
fim, o Imperador decidiu revogar o aumento de impostos, em troca de uma rendio total dos revoltosos. Alguns resistiram a isso e foram punidos, mas
a maioria se rendeu a vontade imperial.
Nesse pequeno episdio est muito marcada a
importncia da fidelidade ao imperador a qualquer
custo. Aparentemente, Cecaumenos via a poltica
como um jogo perigoso, difcil de se jogar e era um
ambiente onde muito poucos saiam vencedores.
Mesmo assim, ao observar o perodo que Cecaumenos viveu, a vitria era temporria e insegura.
Alm do mais, para o autor, entrar na poltica custava abandonar todos os valores e a moral que ele
defendia. Melhor mesmo era ficar longe dela e aumentar sua honra atravs do servio civil e, principalmente, militar ao Imprio.
4. Concluses
Observamos que nesse pequeno ensaio sobre a trajetria e personalidade de Cecaumenos, observamos algumas aproximaes com a atual produo
de biografias por historiadores. (Schmidt, 1997, pp.
11-13)
Durante muito tempo a biografia foi execrada
do campo historiogrfico. Os paradigmas estruturalistas vigentes desde a dcada de 30, quando
Marc Boch e Lucien Febvre comearam a difundir
a Histria Social Analtica, no a aceitavam, por
ser considerada por demais narrativa, personalista e acontecimental. Contudo, nos ltimos 20 anos
vm surgindo novos trabalhos rediscutindo temas
anteriormente evitados pela Nova Histria e um
desses temas a biografia. As razes so muitas,
mas provavelmente a mais forte que a historio-
487
so esquecidos pela nova biografia, porm so vistos por uma nova perspectiva. Ao mesmo tempo
em que no se biografa essas figuras como sendo
os grandes condutores da histria, tambm se tenta no cair na super-contextualizao. O que faria
o personagem to somente parte das estruturas de
seu tempo, apagando assim sua individualidade.
Procura-se achar um meio termo, fazendo um estudo da relao da trajetria do personagem com
o mundo em que vivia. Um bom exemplo disso a
monumental biografia de So Lus, Rei Lus ix da
Frana, por Le Goff. Ao mesmo tempo em que Le
Goff apresenta esse personagem como um homem
do seu tempo, grande admirador das novas ordens
mendicantes, como os Franciscanos e Dominicanos, e cruzado fervoroso, esse historiador demonstra tambm a importncia da obra desse santo-rei,
como o que ps as pedras fundamentais do que
seria futuramente o Estado Nacional Francs. (Le
Goff, 1999)
Contudo, onde encaixamos o personagem aqui
estudado? O Cecaumenos de quem to pouco sabemos? Do mesmo modo em que no se pode dizer
que ele foi um grande ator nos acontecimentos de
488
sua poca - mesmo que ele tenha sido de fato Catacalon Cecaumenos, sua influncia para o desenrolar da ebulio poltica que era Bizncio no sculo
xi foi pequena - , ele tambm no foi um heri medocre como Menochio, isto , sua trajetria no
foi nada heterodoxa e em nada testou os limites da
sociedade e cultura bizantina em sua poca. Pelo
contrrio, em seu Strategikon, Cecaumenos no
pretendeu inovar, ele pretendeu continuar e transmitir uma tradio de valores que foi ensinado a
ele. Ele era, em seus rgidos valores morais e carreira no exrcito imperial, um defensor da taxeis, a
ordem divina bizantina a qual o Imperador se encontrava no centro. Provavelmente, nesse ponto
que se encontra o valor de Cecaumenos e seu prosaico livro de conselhos, pois o autor, ao contrrio
da regra que dominava o main stream literrio bizantino, no queria que sua obra se destacasse por
sua qualidade retrica, s queria passar, para seus
filhos, netos e sobrinhos o que ele havia aprendido
em sua vida. Ento, apesar de que, no livro, h muito poucas informaes diretas de eventos da vida
do autor, percebemos claramente uma vida, uma
trajetria de um homem em seu tempo.
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489
Resumo
491
nhecer a legitimidade da consagrao do novo bispo de Cartago, Ceciliano, alegando que tanto ele
quanto os que o ordenaram eram traditores, isto ,
haviam, durante o tempo da Grande Perseguio
de Diocleciano (284-305 d.C.), entregado s autoridades os vasos e os livros sagrados para escapar
do martrio. Os dissidentes elegeram o seu prprio
bispo e afirmaram ser a verdadeira Igreja crist, a
Igreja dos mrtires, em oposio a Igreja dos traditores. Os catlicos isto , aqueles que permanecem em comunho com Ceciliano os chamaro
de donatistas em virtude do nome de um dos seus
lderes, o bispo Donato, de Cartago.
Aps uma srie de disputas conciliares e polticas visando determinar qual das partes era a
verdadeira Igreja, o grupo de Ceciliano foi reconhecido como tal pelo Imprio e os donatistas
so duramente perseguidos pelos agentes de Constantino. Mas a partir de 321 d.C., com o fracasso
da poltica de represso, a Igreja donatista passa
a gozar da tolerncia imperial, o que permite que
ela cresa e se torne a religio da maior parte dos
norte-africanos. (Frend, 2002, p. 427)
Foi este o cenrio encontrado por Agostinho
(354-430 d.C.) ao assumir o episcopado da igreja de
Hipona (391 d.C.). Ele se empenhou na promoo
da unidade da Igreja, partindo do pressuposto de
que os donatistas deveriam retornar comunho
com a Igreja catlica, fora da qual no havia possibilidade de salvao.
Para atingir o seu objetivo, Agostinho procurou, em primeiro lugar, convencer os donatistas
por meio da argumentao teolgica. A tarefa no
era fcil, pois ambas as Igrejas eram teologicamente muito semelhantes entre si. (Hamman, 1989, p.
158) As diferenas, trabalhadas por Agostinho, diziam respeito doutrina acerca da Igreja e dos sacramentos, pontos de discrdia desde a crise de 311
d.C.
Paralelo ao seu esforo teolgico, encontramos
Agostinho movendo-se na esfera institucional, par-
493
ticipando ativamente dos muitos conclios eclesisticos africanos, de onde emanam decises pastorais e polticas contra os donatistas.
Finalmente, depois de algumas hesitaes iniciais, Agostinho tambm defender o uso da fora
contra os cismticos, apelando ao aparato repressor do Imprio. Essa defesa ser mais explcita
a partir do conclio de Cartago de 411 d.C., que
condenou definitivamente o donatismo e permitiu
ao catolicismo, com o apoio imperial, tornar-se a
Igreja majoritria na frica do Norte. a partir
de ento que a violncia do Imprio ser usada
com mais rigor contra os donatistas. O objetivo
coagi-los a deixar o donatismo e unir-se ao catolicismo, sob pena de punio. (Brown, 2005, p. 417)
Em nosso trabalho, procuramos analisar como
Agostinho procurou, em seus discursos, legitimar
o uso da violncia contra os donatistas. Para fazlo, ele precisou construir uma representao estigmatizante do grupo dissidente.
A metodologia que utilizamos para proceder
com o nosso trabalho a Anlise do Discurso.
Neste tipo de anlise, procura-se relacionar a forma ao contedo, pois a lngua tanto uma estrutura quanto um acontecimento. (Orlandi, 2005,
p. 19) O conceito de discurso envolve esse carter
duplo da linguagem, ao mesmo tempo lingstico
e extralingstico. Por isso, importante levar em
conta o quadro institucional e as disputas sociais e
polticas que permeiam a sua produo. (Brando,
2002, p. 18)
Escolhemos para a anlise o Sermo ad Caesariensis ecclesiae plebem (Sermo aos fiis da
Igreja de Cesaria, abreviado como Ad Caes.
Eccl.). Este sermo foi pregado por Agostinho em
418, quando de sua visita Cesaria de Mauritnia. Na ocasio, foi procurado pelo bispo donatista Emrito, um dos mais importantes porta-vozes
do donatismo, que fora privado de sua sede episcopal e exilado, mas continuava ativo na regio de
Cesaria. (Frend, 2002, p. 471) O bispo de Hipona
convidou seu adversrio para ir at o templo catlico, onde pregou este sermo, perante um auditrio de fiis catlicos e donatistas.
As circunstncias do encontro se refletem
na composio do texto. Na avaliao de Langa
(1990, p. 578), o Sermo ad Caesariensis ecclesiae
494
495
496
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Resumo
O Prof. Ms. Jos Teixiera Neto Professor do Curso de Filosofia do Campus do Serid/Caic uern e doutorando do Programa Integrado de
Ps-Graduao em Filosofia ufrn/Natal
Excepcionalmente neste artigo, as notas encontrar-se-o no fim do texto.
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sas vem existncia com a finalidade de manifest-lo. Afirmar tambm que o intelecto primeiro
ama mostrar e comunicar a sua inteligncia e o faz
mediante suas obras, pois somente assim as substncias inteligentes podero v-lo visivelmente.
Consequentemente fica claro que as coisas visveis
foram criadas para manifestar visivelmente o invisvel, pois de outro modo o intelecto criado no
poderia v-lo.
O conceito chave para se compreender o estatuto das coisas principiadas o de participao.
Busquemos no De venatione sapientiae, no De
beryllo e no De dato patris limunum esclarecer este
conceito. O Cardeal afirmar no De venatione sapientiae que a sabedoria brilha nas diversas razes
que participam dela19. A questo que no se d
uma participao direta das coisas singulares no
princpio primeiro como se as coisas principiadas
fossem imagens da causa primeira, pois o princpio
primeiro no nem nominvel e nem participvel.
O que de fato participado a sua imagem ou similitude20. Por conseguinte, surge o problema de
como pode ser pensada a relao entre o princpio
imparticipado e as coisas principiadas que so sua
apario. No mesmo De veneatione sapientiae ele
afirmar que a similitude de Deus, princpio primeiro, o posse fieri21 que anterior as coisas
feitas, mas no anterior ao princpio primeiro.
Assim, por exemplo, no campo da Igualdade Nicolau afirmar que a humanidade no pode ser participada de modo igual por todos os homens e
justamente a diversidade de participao, ou seja,
o participar de modo diverso do mesmo que os
faz ser mltiplos22. Mais adiante, falando j sobre
o Termo ele vai apontar a relao que se d entre
as razes ou exemplares de todas as coisas e a razo ou mente eterna que tudo que pode ser. A
relao a mesma apontada entre a humanidade
e os diversos homens, ou seja, dar-se a variedade
dos exemplares, pela participao diversa na razo
eterna. Somente por que as razes ou exemplares
das coisas participam diversamente da razo eterna
dar-se a diversidade23.
Anteriormente no De beryllo o Cardeal havia
explicado que em Deus esto os exemplares ou razo de todas as coisas24. Por isso, segundo ele, o
que disseram Plato, Aristteles e todos os outros
pensadores no diferente de afirmar que a verdade confere existncia as coisas mediante uma similitude25. E citando o Super Dionysium de divinis
nominibus de Alberto ele reconhecer que todas
as coisas participam do prprio princpio primeiro
por participarem de uma nica forma que, por fluir
dele, similitude da sua essncia27.
O ltimo texto que gostaramos de citar para
fundamentar a concepo do cusano sobre a participao das coisas principiadas no princpio primeiro imparticipado o De dato patris luminum.
O opsculo uma meditao sobre um versculo
da carta de Tiago (1, 17) que diz: Todo dom precioso e toda ddiva perfeita vm do alto e desce
do Pai das luzes. Na primeira parte do opsculo
(I, 91-96) o cusano mostrar o que o apstolo quis
dizer de modo geral. No segundo momento, busca
compreender e apresentar a luz admirvel que se
esconde nas palavras do apstolo (ii, 97). Esta segunda interpretao buscar revelar o significado
que est entranhado na prpria palavra do apstolo. Primeiramente interpretar a expresso todo
dom timo. Seguindo o princpio de que o timo
difusivo de si mesmo e que no se d de maneira
diminuda ele concluir que parece ser a mesma
coisa Deus e a criatura, segundo o modo daquele
que d Deus, segundo o modo do que dado
criatura28.
A segunda parte do versculo, vm do alto e
desce do Pai das luzes, indicar para Nicolau o
modo de recebimento do dom que vem do alto.
O que dado no ser recebido no modo como
dado, por isso se produz de modo descendente.
Neste sentido, ele explicar que o infinito se recebe
de modo finito, o universal de modo particular e o
absoluto de modo contrado. Mais ainda, o que cai
da verdade diferente dela sendo uma semelhana e uma imagem29.
O Cardeal considerar tanto no De apice theoriae quanto no De dato patris luminum que apario perfeita e suprema do princpio primeiro o
Cristo, seu Verbo30. Concebido dessa forma Nicolau
prope pensar, no Compendium, uma analogia entre a mente e o princpio de todas as coisas. Como
a mente se manifesta atravs da palavra, da mesma
forma o princpio primeiro, formador de todas as
coisas, d-se a conhecer no seu Verbo e se manifesta
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Notas
1. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 1, p. 205-218, jan./jun. 2007.
2. De apice theoriae, 2: Petrus: Credidi te perfecisse omnem speculationem in tot variis tuis codicibus
explanatam.
3. De apice theoriae, 2: Cardinalis: Si apostolus Paulus in tertium caelum raptus nondum comprehendit incomprehensibilem, nemo umquam ipsum qui maior est omni comprehensioni satiabitur quin
Semper instet, ut melius comprehendat. Gonzles Ros (2008, p. 254) afirma que Sin embargo, aquel
nombre [posse ipsum] no fue ltimo porque con l se alcance el nombre preciso del principio primero, sino porque el 11 de agosto de 1464 se interrumpa aquella incesante bsqueda con la muerte de
Nicols en Todi.
4. Compendium, Capitulum i, 1: [...] singulare non est plurale nec unum multa; ideo unum in multis
non potest esse singulariter seu uti in se est, sed modo multis communicabili.
5. Compendium, Conclusio, 44: Habes, quae nos in his alias latius sensimus, in multis et variis opusculis, quae post istud Compendium legere poteris, et reperies primum principium undique idem varie
nobis apparuisse et nos ostensionem eius variam varie depinxisse.
6. De apice theoriae, 16: Velis igitur, mi Petre valde dilecte, mentis oculum acuta intentione ad hoc
secretum convertere.
7. De apice theoriae, 14: puta omnem praecisionem speculativa solum in posse ipso et eius apparitione
ponedam.
8. De venatione sapientiae, 1,4:Illa [sapientia] autem in racionibus lucet, quae ipsam varie participant.
9. De li non aliud, xxiii, 106: Quando igitur Moiss universi voluit describere constitutionem, in quo
Deus se manifestaret, ad huius constitutionem singula creata bona dicit ut universum esset gloriae et
sapientiae Dei perfecta revelatio.
10. Trialogus de possest: Card: Ita a creatura mundi fit dei manifestatio (2); BERN: Quid igitur est
mundus nisi invisibilis dei apparitio? Quid deus nisi visibilium invisibilitas, uti apostolus in verbo in
principio nostrae collocutionis praemisso innuit? Mundus igitur revelat suum creatorem, ut cognoscatur, immo incognoscibilis deus se mundo in speculo et aenigmate cognoscibilitaer ostendit, ut bene
dicebat apostolus apud deum non esse est et non sed est tantum (72).
11. De beryllo, Capitulum iii, 4: Oportet te primum attendere unum esse primum principium, et id
nominatur secundum Anaxagoram intellectus, a quo omnia in esse prodeunt ut se ipsum manifestet.
Intellectus enim lucem suae intelligentiae delectatur ostendere et communicare.
12. De visione Dei, Capitulum xii, 53: Apparuisti mihi, domine, aliquando ut invisibilis ab omni
creatura, quia es Deus absconditus infinitus. Infinitas autem est incomprehensibilis omni modo comprehendendi. Apparuisti deinde mihi ut ab omnibus visibilis, quia intantum res est, inquantum tu
eam vides; et ipsa non esset actu nisi te videret. Visio enim praestat esse, quia est essentia tua. Sic,
Deus meus, es invisibilis pariter et visibilis: invisibilis es uti tu es; visibilis es uti creatura est, quae
intantum est, inquantum te videt.
13. Idiota. De mente, Capitulum ii, 65: Qui vero in mentis intelligentia aliquid esse admittunt, quod
non fuit in sensu nec in ratione, puta exemplarem et incommunicabilem veritatem formarum, quae
in sensibilibus relucent, hi dicunt exemplaria natura praecedere sensibilia sicut veritas imaginem.
14. Dialogus de Genesi, i, 151: Sic igitur est cosmos seu pulchritudo, quae et mundus dicitur exortus in
clariori repraesentatione inattingibilis idem. Varietas enim eorum, quae sunt sibi ipsi idem et alteri
aliud, inattingibile idem inattingibile ostendunt, cum tanto plus idem in ipsis resplendeat, quanto
magis inattingibilitas in varietate imaginum explicatur.
15. De dato patris luminum, iv, 111: Sic plane videmus quomodo filius in divinis est ostentio vera patris secundum omnipotentiam absolutam et lumem infinitum. Sed omnis creatutra est ostentio patris
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patris luminum, iv, 110: Verbum veritatis ratio seu ars absoluta seu ratio, quae lumen dici potest
omnis rationis. In hoc lumine, quod et verbum et primogenitus et suprema apparitio patris, omnes
apparitiones descendentes [...].
30. Compendium, Capitulum viii, 21: Ita de formatore omnium conceptum facito ut de mente. Quodque ipse in verbo de se genito se cognoscit atque in creatura, quae est increati verbi signum, se ostendit
in variis signis varie, et nihil esse potest, quod non sit signum ostensionis geniti verbi.
31. De beryllo, Capitulum xxxi, 54: [...] ut sensibile sit quase verbum conditoris, in quo continetur
ipsius intentio, qua apprehensa scimus quidditatem et quiescimus. Est autem intentionis causa manifestatio, intendit enim se sic manifestare ipse loquens seu conditor intellectus.
32. De dato patris luminum, iv, 110: In hoc lumine, quod et verbum et filius primogenitus et supema
apparitio patris, omnes apparitiones descendentes pater luminum voluntarie genui, ut in summa
virtute et unitionis fortitudine apparitionum complicarentur omnia apparentialia lumina, quase in
abstracta filiatione omnis filiatio qualitercumque explicabilis et in universalissima arte omne per
artem quantumcumque explicabile et in absoluta ratione seu discretione omne lmen qualitercumque
discernens.
33. De dato patris luminum, iv, 111: Genuit autem nos in verbo illo aeternae artis et apparitionis, ut,
dum lumen ostensionis eius, quod est verbum infinitum, in descensu recipimus, modo quo huiusmodi
in descensu a nobis recipi potest simus initium aliquod creaturae eius.
34. De venatione sapientiae, Capitulum xxviii: Non enim praecessit ipsam mentem divinam alia
mens, quae ipsam determinaret ad creadum hunc mundum. Sed quia mens aeterna libera ad creandum et non creandum vel sic vel aliter, suam omnipotentiam, ut voluit, intra se ab aeterno determinavit. Mens enim humana, quae est imago mentis absolutae, humaniter libera omnibus rebus in suo
conceptu trminos ponit, quia mens mensurans notionaliter cuncta.
35. Para os dois ltimos pargrafos conferir: Idiota. De mente, Capitulum iii, 72-73: Scis, quomodo
simplicitas divina omnium rerum est complicativa. Mens est huius complicantis simplicitas imago.
Unde si hanc divinam simplicitatem infinitam mentem vocitaveris, erit ipsa nostrae mentis exemplar.
Si mentem divinam universitatem veritatis rerum dixeris, nostram dices universitatem assimilationis
rerum, ut sit notionum universitas. Conceptio divinae mentis est rerum productio; conceptio nostrae
mentis est rerum notio.si mens divina est absolutas entitas, tunc eius conceptio est entium creatio,
et nostrae mentis conceptio est entium assimilatio. Quae enim divinae menti ut infinitae conveniunt
veritati, nostrae conveniunt menti ut propinquae eius imagini. Si omnia sunt mente divina ut in sua
praecisa et propria veritate, omnia sunt in mente nostra ut in imagine seu similitudine propriae veritatis, hoc est notionaliter; similitudine enim fit cognitio.
36. Omnia in deo sunt, sed ibi rerum exemplaria; omnia in nostra mente sed ibi rerum exemplaria; omina
nostra mente sed ibi rerum similitudines.
37. Idiota. De mente, Capitulum iv, 74: Attende aliam esse imaginem, aliam explicationem. Nam
aequalitas est unitatis imago. Ex unitate enim semel oritur aequalitas, unde unitatis imago est aequalitas.et non est aequalitas unitatis explicatio, sed pluralitas. Complicationis igitur unitatis aequalitas
est imago, non explicatio.
38. Idiota. De mente, Capitulum iv, 74: Post imagines sunt pluralitates rerum divinam complicationem explicantes, sicut numerus est explicativus unitatis et motus quietis et tempus aeternitatis et
compsito simplicitatis et tempus praesentiae et magnitudo puncti et inaequalitas aequalitatis et
diversitas identitatis et ita de singulis.
507
BIBLIOGRAFIA
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Cusa, Nicolau de. A viso de Deus. Traduo e Introduo de Joo Maria Andr. Lisboa/Portugal: Fundao Calouste Gulbenkian, 1985.
508
Resumo
509
1. Dos dois tomos, o mais importante o El Escorial que foi projetado com cerca de duzentas cantigas e com uma segunda parte que no foi
finalizada com outras duzentas cantigas, o Cdice de Florena
511
Esta disposio bastante significativa considerando a ideologia crist medieval, pois todas as
tentaes vinham do mundo exterior para tentar
as pessoas que se dedicavam vida religiosa. Nesse caso, como argumenta Casagrande (1991, p. 169),
o espao privado, a casa ou mosteiro, constituem
o espao feminino por excelncia, adquirindo um
significado simblico, pois evoca imediatamente o campo metafrico da segurana e da virtude
feminil.
Essa valorizao do espao da casa e do mosteiro provoca
um processo de reduo do externo e de valorizao do
interno. No qual, a mulher afastada da vida pblica e
recolocada no espao privado, no mesmo sentido em que
a filosofia crist a separa da exterioridade do seu corpo e
as limitam interioridade da alma. (Casagrande, 1991,
p. 169).
512
Em seguida, aparece Santa Maria muito descontente com a atitude da monja, mui mal trager, e
diz que veio socorr-la, apesar da vergonha pela
inteno da religiosa de deixar o mosteiro: Vennach or acorrer / o por que me deitast, e non m
en cal. (Afonso X, 1959, p. 167). A reprovao da
santa com a atitude da personagem tambm representada na vinheta 3 da cantiga.
Esta composta pelos mesmos elementos que
figuram na vinheta 2, acrescentando-se a Virgem
que est ao lado do leito e um anjo que lhe acompanha. Maria aparece coroada, com o manto azul,
de acordo com a concepo medieval da santa. Ela
aponta para o grande buraco infernal, em posio
de reprimir a monja e lhe mostrar o que lhe aguardava se continuasse com seu plano. A religiosa,
mesmo adormecida, tem a face voltada para Santa
Maria e as mos postas em cima do peito. Nossa Se-
513
nhora participa da viso da monja, contudo, apresentada ao seu lado e no no espao direita que
corresponderia a sua viso, demonstrando tambm
que ela uma via de acesso s duas esferas, podendo transitar do sonho realidade.
A monja ainda corria perigo e, vendo que poderia perder aquela alma, o diabo aparece e tenta
lev-la para dentro do buraco. A narrativa encaminha-se para seu pice, ao travar-se um embate
entre as foras do mal versus as do bem. A prpria
pontuao desta estrofe converge para a construo desta polaridade, deixando a personagem no
centro da disputa. Imediatamente, ela chama por
Santa Maria que vem socorrer-lhe: Esto dit, un
diaboo a puxou / dentro no po; e ela braadou /
por Santa Maria, que a sacou / del, a Reynna nobre spirital. (Afonso X, 1959, p. 167, grifo nosso).
Na vinheta 4, que ilustra esta cena, a religiosa
j no aparece em seu leito, mas no mesmo espao
que figura em sua viso, assim, sonho realidade
aparecem confundidos. No h mais os arcos gticos de antes. sua esquerda, aparece o diabo, uma
mistura entre homem e animal, como era comum
na representao das figuras demonacas, que tenta empurr-la para dentro do buraco negro. Por
sua vez, direita, est Nossa Senhora, seguida do
anjo, que a segura pela mo e a impede de cair no
inferno.
Assim, Santa Maria vence e demonstra seu
poder e compaixo para com seus devotos, pois,
mesmo que pecadores, lhes socorre nos momentos
difceis. Contudo, adverte a monja para que no co-
514
meta mais pecados, seno ela no tornar a salvla: Des oge mais non te partas de mi / nen de meu
Fillo, e se non, aqui / te tornarei, u non aver al..
(Afonso X, 1959, p. 168). A fisionomia de Santa
Maria e o gesto, na vinheta 5, so de repreenso
personagem. Nesta ilustrao, ao centro, separada
por arcos gticos, aparece Santa Maria, apontando,
com a mo direita, para a monja e com a esquerda
para o buraco infernal. No plano esquerdo do quadro, est a religiosa de joelhos, em gesto de splica,
como se pedisse perdo e ouvindo atentamente a
santa, e, atrs dela, o anjo. Na parte inferior, aparece o inferno com, cada vez mais, pecadores.
A religiosa desperta do sono e ainda espantada
com a viso que tivera se dirige a um portal, onde
encontra o cavaleiro e dois servos: [...] a monja,
tremendo-ll o coraon; / e con espanto daquela vijon / que vira, foi logo a un portal. (Afonso X,
1959, p. 168). Por meio de uma longa fala, a personagem recusa-se a ir com o cavaleiro e explica-lhe
os motivos.
[...] Mal quisera falir
en leixar Deus por ome terreal.
[...]
Mais, se Deus quiser, esto non ser,
nen fora daqui non me veer
ja mais null ome; e ide-vos ja,
ca non quer os panos neno brial.
[...]
Nen mentre viva nunca amador
averei, nen non quer eu outr amor
senon da Madre de Nostro Sennor,
a Santa Rey[n]na celestial.
(Afonso X, 1959, p. 168, grifo nosso)
Assim, ela reconhece seu erro em deixar o amor
de Deus pelo de um homem, recusa os presentes
que ele lhe havia prometido, panos e o brial2,
afirmando que nunca mais sair do mosteiro e ver
outro homem. Na ilustrao desta cena, correspondente a vinheta 6, figuram a monja e o cavaleiro,
em espaos separados por uma coluna que divide o
mosteiro do mundo exterior. A protagonista aponta para o cu em referncia ao fato que s amar
Nossa Senhora, enquanto que o cavaleiro suplica
para que ela o acompanhe. Este quadro composto
ainda por trs servos do cavaleiro, com trajes mais
simples, marcando a distino social a que estavam
submetidos, e seu cavalo, sendo segurado por um
dos serviais.
Assim, no incio e no fim da cantiga, tanto na
ilustrao como no texto, tem-se o dilogo entre
a monja e o cavaleiro. Este seria o tempo cronolgico dos acontecimentos. Todavia, h ainda um
tempo subjetivo, que se passa no plano onrico,
mas que interfere na realidade cotidiana da monja.
Magalhes (1987, p. 110), fala ainda de um tempo
mtico, em que a personagem vive no sonho um
A narrativa termina com a monja ficando e o cavaleiro partindo. Como expe Magalhes (1987, p.
112), estes verbos, ficar e partir, so paradigmticos
para distinguir o tempo das mulheres e o dos homens. A autora aponta ainda que em outras narrativas medievais as vises, mesmo que passem pelo
Inferno, levam as pessoas tambm ao Cu. Contudo, nesta cantiga, no lugar da luz que acompanha
as vises, tm-se as trevas. O sonho/reflexo, que
apavora a monja, faz com que ela se decida pelos
bens eternos em vez dos terrenos que desfrutaria
com o cavaleiro. (Magalhes, 1987, p.113). Desse
modo, a viso remete ao imaginrio cristo medieval, alimentado por demnios, fogo e caldeiro,
em uma clara aluso ao que acontece quelas que
deixassem a vida santa e dedicada a Nossa Senhora
dentro do mosteiro para se entregar aos prazeres
do mundo, prazeres carnais.
515
Este imaginrio, povoado pelo medo, contribua ainda para que se exercesse um maior controle
sobre essas mulheres. Por isso, os valores impostos
a homens e mulheres no contexto medieval eram
distintos, o que se reflete na representao dos espaos destinados a monja e o cavaleiro. Nesta perspectiva, o espao feminino deveria limitar-se a casa
ou ao mosteiro, enquanto aos homens no havia
um espao limitado. Logo, elas figuram, em textos
e imagens, realizando as atividades domsticas do
cotidiano, orando nos altares da Virgem, em cen-
516
BIBLIOGRAFIA
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Schapiro, Meyer. Palabras, escritos e imgenes: semitica del lenguaje. Traduccin de Carlos Esteban.
Madrid: Ediciones Encuentro, 1998.
517
Resumo
519
propsito, o Papa Alexandre iii, nomeou como legado o abade de Claraval, Henrique. Este mandou
pregadores e organizou a primeira cruzada contra
os hereges. Formada por cavaleiros da Provena e
do Languedoc, os cruzados sitiaram Lavaur. A regio, um baluarte hertico encontrava-se sobre o
abrigo de Rogrio Trencavel, em 1181. (Falbel, 1976,
p. 48)
Apesar desta primeira investida armada, a heresia continuou a florescer na regio. Com a ascenso do Papa Inocncio iii (1198-1216), o discurso
heterodoxo j havia se propagado por todo o norte
da Itlia e sul da Frana, principalmente no Languedoc, onde obteve grande aceitao e infiltrao
nas classes populares alm do apoio e proteo da
nobreza. (Runciman, 1998, p. 216)
No perodo de 1147 a 1209, o combate aos ctaros deu-se atravs de tentativa de persuaso. Foram enviados pregadores para regio, com o intuito de revelar os erros dos herticos e reconduzi-los
a f e aos princpios catlicos. Durante este tempo,
dentre os enviados, estavam Bernardo de Claraval
(1090-1153) e So Domingos (1170-1221). A essa primeira investida contra os herticos, o historiador
Pierre Belperron denominou de cruzada espiritual.
(Falbel, 1976, p. 47)
Nos anos de 1204 e 1205, Inocncio iii salientou
ao Rei Felipe Augusto (1165-1223), que por via da
Bula Ad Abolendam, o monarca possua o direito
de privar dos seus feudos os vassalos que protegiam os hereges. (Falbel, 1976, p. 48) Contudo, neste perodo o exercito e os vassalos reais estavam
empenhados no conflito contra os Plantagenetas, o
que acabou por impossibilitar a execuo do pedido Papal. (Runciman, 1998, p. 220)
Novamente, em 1207, o papa escreveu ao Rei.
Ao Duque de Borgonha, aos Condes de Bar, de Nevers, de Dreux, e outros fies do reino, enviou um
pedido com o mesmo objetivo: de organizar uma
cruzada contra os herticos. Alm de prometer in-
521
522
O Legado Ctaro
Escrito por volta do ano de 1240 na Lombardia,
o Livro Dos Dois Princpios considerada a mais
importante obra Ctara que chegou at os nossos
dias. O livro uma coletnea de autor desconhecido, composta por sete breves tratados, dispostos da
seguinte forma: 1. O Livre Arbtrio, 2. A Criao,
3. Os Signos Universais, 4. Compedido para as Instrues dos Iniciantes, 5. Contra os Garatistas, 6.
O Livre Arbtrio, 7. As Persecues. Descoberto
no ano de 1939, pelo Padre Dondaine, o documento
pertence ao acervo dos Conventos secularizados da
Biblioteca Nacional de Florena. (Zambon, 1997, p.
41)
A anlise que vir a seguir, diz respeito ao temo
do livre arbtrio, contido no primeiro e sexto tratado. Trata-se de uma refutao de concepo catlica do mesmo, onde se provar a inexistncia de
tal faculdade concedida por Deus a suas criaturas.
1. Acreditavam na existncia de dois princpios eternos e independentes. Um responsvel pelo Bem e outro pelo Mal. Eram predominantes nas
Igrejas cataras da occitnia e Itlia principalmente em Desenzano.
2. Tal termo referia-se tanto aos catlicos como aos garatistas. Esses ltimos eram dualistas moderados, defendiam a existncia de um nico
principio primordial.
523
524
Concluso
Foi necessria a atuao conjunta da Igreja com o
brao Secular para por fim ao perigo que os ctaros proporcionavam a hegemonia do Catolicismo.
A resposta para elucidar o porqu da existncia do
Mal, levou-os a desenvolver uma escatologia prpria. Com influncias claras da concepo dualista
desenvolvidas por Mani maniquesmo, o mito
ctaro d uma viso heterogenia sobre a origem do
universo.
A doutrina dos dois princpios, ao definir a origem do mal, colocava fim a grande dvida: como o
mal entrou no mundo, uma vez que Deus a origem de toda a Bondade? Dar toda a responsabilidade ao anjo Lcifer, sobre tal gnese, gerava muitas
incgnitas. Uma vez que ele tambm era uma criatura de Deus.
Mesmo com a afirmao de um princpio, o
que revelava a fonte catara, era que o livre arbtrio, jamais poderia ser o meio pelo qual os anjos
e os seres humanos tenderiam a manifestar o mal.
A critica dos dualistas absolutos revelou as fissuras
da doutrina do livre arbtrio. Apenas com a espada
e o fogo dos inquisidores a Igreja teve condies de
venc-los.
BIBLIOGRAFIA
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525
Resumo
527
1. Trata-se do preceito estabelecido em Gnesis 2, 16-17: Podes comer de todas as rvores do jardim. Mas da rvore do conhecimento do bem e
do mal no comers, porque no dia em que dela comeres ters que morrer.
2. Gnesis 2, 21-22: Ento Iahweh Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em
seu lugar. Depois, da costela que tirara do homem, Iaweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem. O termo carne remete ao vnculo
de parentesco (Gneses 2, 23): Esta, sim, osso dos meus ossos e carne da minha carne. A mulher ter sido formada do varo assinala o vnculo
que une o homem e a mulher, o matrimnio. Eles so um s (uma s carne/corpo), unidos pelo amor com a finalidade de multiplicar o gnero
humano. (Hildegarda, 1999. p. 30).
529
530
p. 36). De acordo com esta viso de mundo, Cristo e a essa Nova Aliana significam que o antigo
pacto, estabelecido entre Deus e o povo judeu, foi
alargado para permitir que dele fizesse parte todo
o gnero humano.
A Nova Aliana traz consigo novas exigncias, mudanas de comportamento que so consideradas necessrias devido s vicissitudes do
tempo. Nos primrdios da Criao do mundo era
permitido que se tomasse esposa em uma estirpe
prxima, porque havia poucos seres humanos. Porm, segundo Hildegarda esta no era mais uma
prtica permitida. Os cristos deveriam ser mais
perfeitos em sua conduta do que foram os judeus.
Ela usa uma analogia arquitetnica, para afirmar
a necessidade do aperfeioamento do povo cristo,
no qual as pessoas representam as pedras de uma
construo: pois as pedras que costumam pr-se
como fundamento de um edifcio so toscas e sem
polir, mas depois se requerem pedras formosas e
bem compostas para seus muros (Hildegarda,
1999, p. 235). Os matrimnios consangneos, mesmo quando admitidos em tempo dos patriarcas do
Antigo Testamento, devido necessidade, so ainda assim, vistos como uma espcie de imperfeio
pedras sem polir.
Para Agostinho, igualmente, a prtica dos casamentos consangneos entre os primeiros descendentes de Ado e Eva era justificvel somente
pela necessidade de procriao, para se atender
ao imperativo da multiplicar do gnero humano.
Fazia-se uma concesso a estes matrimnios diante da impossibilidade de desposar pessoas de parentescos mais distantes. Os filhos de Ado e Eva
foram, portanto, obrigados a desposar as prprias
irms. Mas, posteriormente, este tipo de relacionamento se tornou condenvel pelo veto da religio,
em benefcio da caridade. Dessa forma, o amor no
se concentraria mais em um grupo restrito, mas se
difundiria e os laos de sangue se multiplicariam.
Com isso, os vnculos sociais se ampliariam e mais
pessoas estariam conectadas pelos laos de parentesco. Com o crescimento das alianas, a amizade e
a coeso social se estreitariam ao contrrio do que
proporciona o casamento consangneo, que limita
4. De acordo com a concepo do Bispo Isidoro de Sevilha, o ltimo grau de parentesco o sexto que associado teoria isidoriana das seis
idades do mundo e aos seis dias da Criao como definidos no texto bblico do Gnesis.
531
O Scivias iluminado com 36 vises que funcionam como ilustraes de suas vises bem como
uma forma de inteligibilidade dos contedos doutrinrios transmitidos pela monja. A imagem acima representa Ado e uma nuvem que toca a sua
costela. A nuvem a representao abstrata de
Eva. Dentro dela observam-se estrelas que, por sua
vez, significam a multido do gnero humano que
Eva albergava dentro de si.
Em sua Segunda Viso do Scivias Hildegarda
descreve a Criao de Ado e Eva:
5. A descrio da nuvem no coincide plenamente com a da imagem, que verde. A cor verde, na concepo de Hildegarda de Bingen, est
associada sua noo de viriditas, que uma espcie de fora natural, cuja fonte Deus, que , por sua vez, fonte de toda vida, fecundidade,
frescor, verdor, logo, est associada capacidade de engendrar, de gerar. Simboliza Eva como me do gnero humano. Por outro lado, a cor
branca significaria a inocncia (a integridade, ou seja, a virgindade) de Eva no momento de sua Criao at a sua desobedincia do preceito
divino. No fosse a desobedincia, Eva teria permanecido integra (virgem) como Maria e no teria tido as dores do parto. Branca tambm a
cor da flor da obedincia que representa o preceito divino que Deus ofereceu como ddiva a Ado (Fraboschi, 2004, p.78).
6. Segundo a doutrina agostiniana da Criao, Deus criou todas as coisas simultaneamente (a terra, o mar, os astros, os anjos, a alma humana) e
todos os seres vivos (o corpo de Ado e de todos os seus descendentes) j foram criados tambm desde o incio, mas se desenvolveriam somente
com o desenrolar do tempo. Esta noo filosfica denominada por Agostinho como rationes seminales ou causales (Boehner, 2004, p. 178179).
532
Quando da Queda de Lcifer e de seu sqito (anjos que se converteram em demnios), os demais
anjos, a enorme multido de lmpadas viventes
que tinham grande claridade, com fiel e ardente
devoo mantiveram-se firmes no divino amor e,
portanto, no perderam a suprema felicidade. Lcifer, ao contrrio, porque se rebelou contra Deus,
querendo prevalecer sobre o Criador, devido ao pecado da soberba, perdeu o seu brilho, a sua beleza
que era a maior de dentre todos os anjos (Hildegard, 1999, p. 25-26). Desviou-se do reto caminho
e seguiu a senda da condenao, caram nas trevas
porque no quiseram conhecer ao Senhor. E assim
como Lcifer perdeu o seu brilho, quem seguir o
caminho do Demnio perder a viriditas, o princpio vital, a vida (Hildegarda, 1999, p. 278).
Na Sexta Viso da Primeira Parte do Liber Scivias (denominada O coro dos anjos), Hildegarda
de Bingen descreve as cinco milcias celestes (so
os anjos), que se dividiam basicamente em duas
funes. A primeira: ajudar aos homens em suas
necessidades (sobretudo terrenas). A segunda: para
manifestar aos homens os juzos secretos de Deus
e dessa forma mostrar caminho (os preceitos que
devem ser seguidos) para salvaguardar a salvao
(Hildegarda, 1999, p. 93-94). Essa diviso de duas
funes dos anjos, entre o terrestre e o celeste, possui um significado transcendental, a unio do corpo e da alma humana no servio a Deus, para que,
assim como os cidados celestes, se possa compartilhar da dita eterna (Hildegard, 1999, p. 94).
Os anjos que ardentes de amor permaneceram em
torno de Deus so um modelo, no qual devem se
espelhar aqueles pretendem alcanar verdadeira
salvao. O amor a Deus e a obedincia aos seus
preceitos conduzem salvao:
Todavia, nem todos os eleitos obedecem prontamente a Deus. Muitas vezes necessrio que se
imprima uma fora que obrigue as ovelhas do
Senhor (Lucas 14, 23), que as incite a escolherem
a vida, para serem resgatadas da morte e salvas. Deus incita a reta escolha proporcionalmente
ao apego que as suas criaturas tenham ao mundo,
conforme os seus excessos, imprimindo castigos
de acordo com sua persistncia no erro (Hildegarda, 1999, p. 324-325).
As boas obras dos fieis (que so sustentadas
pela f) constroem e expandem a cidade de Deus;
com o bem que se faz acede-se ao esplendor que foi
preparado para os eleitos (Hildegarda, 1999, p. 452).
O homem deve seguir, em certa medida, o caminho inverso ao da Queda de Ado e Eva; contrapor desobedincia a obedincia, a soberba
humildade, cujo principal modelo Cristo, o desenfreio carnal castidade. Mortificar o corpo, ou
seja, renunciar aos deleites carnais; ser casto imitando a virgindade do Filho de Deus (Hildegarda,
1999, p. 39-40). Esse o modelo mais exigente, para
os clrigos. Para os seculares, o casamento segundo os preceitos da Igreja catlica (divinos, na concepo da monja alem) a alternativa admissvel
para a salvao. A moderao, a justa proporo
(medida) a expresso que define a regulao da
sexualidade conjugal: monogmica, exogmica
(entre parentes distantes)7. O casamento tem como
finalidade a procriao e, portanto, a idade reprodutiva o parmetro para definir a validade de
uma unio. Seguindo o mesmo critrio, as prticas
sexuais contra a natureza (masturbao e sodomia8) so proibidas devido a sua inutilidade para a
reproduo. Da mesma forma o sexo durante a gravidez ou menstruao feminina (Hildegarda, 1999,
p. 30-39). Todo excesso, tudo que ultrapassasse a
medida, que tivesse como finalidade o prazer carnal, e no o amor aos filhos (o desejo de procriar),
7. Exogmica a unio entre parentes distantes. A definio dos graus de parentesco proibidos pela Igreja Catlica variou ao longo da Idade
Mdia, do quarto ao stimo grau.
8. A sodomia significava tanto a prtica homossexual, masculina e feminina, quanto s posies sexuais heterossexuais anais. Prticas que,
na concepo hildegardiana, eram perversas, contra a natureza humana estabelecida pelo Sumo Artfice, porque tinham como finalidade o
prazer, alm de serem incuas para a procriao.
533
534
BIBLIOGRAFIA
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535
Resumo
537
539
1 O ano de 1391 foi marcante para a histria dos judeus que viviam na Pennsula Ibrica, pois, nesse ano ocorreram srios ataques s comunidades judaicas dos reinos de Castela e Arago, onde vrios bairros foram destrudos e muitos judeus foram mortos ou convertidos fora ao
Cristianismo.
2 Disputa sediada na cidade de Tortosa em Arago, promovida pelo papa Benedito xiii. Tinha como objetivo a converso de todos os judeus da
Pennsula Ibrica e a comprovao de que Jesus era o verdadeiro Messias e os talmudistas ocultavam essa evidncia.
3 Sua existncia deve ser notada na hora de analisar os preceitos mosaicos desenvolvidos pelos conversos, j que muitas vezes estavam dotados
de um carter mais consuetudinrio e cultural do que religioso, inserindo-se no conjunto de costumes e tradies hereditrios. Assim, um
converso podia ser cristo sincero mas ter dificuldade em se desvencilhar de algumas tradies judaicas do cotidiano que careciam de sentido
religioso (Obrad, 1999, p. 378).
540
4 A Sentencia Estatuto de Toledo deu origem aos Tratados de Pureza de Sangue muito utilizados entre o sculo xv e xviii na Pennsula Ibrica.
Ambos determinavam que qualquer cristo que possusse ascendncia judaica estaria impossibilitado de possuir diversos cargos no reino e
determinadas profisses.
5 Para os cristos-velhos o culto judaico se consistia numa heresia, pois, acreditavam que o Talmude era portador de proposies herticas
contra Jesus Cristo e Maria. O cristo que por ventura no seguisse os preceitos do Cristianismo, mas de outra religio era considerado hertico
e apstata.
541
542
de um conflito religioso, mas, de um conflito social que utilizava a questo religiosa para angariar
adeptos e embasar seus argumentos anti-conversos
(Obrad, 1999, p. 375). Ruano (2003, p. 13) parece
concordar com a autora, pois, declara que os conflitos acerca da questo judaica e dos conversos
buscavam [...] mascarar seus sucessivos desgnios
[...] com o pretesto demaggico da religiosidade.
Por sua vez, Carneiro afirma que na Idade Mdia
os homens [...] se utilizaram [...] de desacordos de
carter religioso como motivo para justificar suas
lutas pelo poder e sua ganncia econmica (1988,
p. 18).
Essa hostilidade dificultava a assimilao social e religiosa daqueles conversos que muitas
vezes precisavam manter seus vnculos com os
antigos correligionrios, fosse devido profisso,
fosse devido aos bairros onde moravam e que na
maioria dos casos no tinham condies financeiras de se deslocarem para outra regio. No geral,
conseguiam escapar dessa situao aqueles conversos que, quando eram judeus, j se encontravam altamente envolvidos com os cristos, morando por
exemplo fora das judiarias ou mantendo importantes cargos e relaes na corte.
Nos reinos de Castela e Arago muitos conversos eram ricos, porm, a maioria dos conversos lutava bastante para sobreviver. Essa maioria
de conversos que trabalhava arduamente, principalmente como artesos, era intermediria entre a
pobreza e uma condio financeira estvel. Segundo Obrad (2005, p. 49), s vezes a dificuldade era
tamanha que alguns conversos mendigavam. Isso
demonstra que apenas uma minoria dos conversos
era privilegiada e os que no podiam gozar dessas
benesses eram justamente aqueles conversos que
mantinham a proximidade aos judeus mais pobres,
como mencionado acima, e, que mais sofriam a excluso social.
Logo, podemos perceber que a questo scioeconmica tinha bastante relevncia nos conflitos
religiosos, porque aqueles conversos que antes
mesmo do batismo j mantinham estreitas relaes
scio-econmicas com os cristos, conseguiram
ascender mais facilmente e, no geral, acabaram se
afastando de suas antigas comunidades judaicas.
Aqueles conversos que se mantiveram nos bairros
de seus antigos correligionrios, logicamente continuaram a manter as relaes sociais com os judeus,
algo que era bastante reprovado pela Igreja e pelos cristos-velhos, porque acreditava-se que esses
conversos retornavam mais facilmente ao Judasmo devido proximidade com os judeus.
Porm, no geral, os conversos acabavam sendo
alvo das desconfianas dos cristos-velhos, fossem
os mais pobres que permaneciam nos bairros judaicos, ou, fossem os mais ricos que instigavam
a inveja por seus altos cargos e influncia poltico-econmica. Baer (ii, 1981, p. 526) destaca que a
maioria dos conversos, independente da situao
scio-econmica, era para os cristos-velhos gente
suspeita e odiada, pois, alm de muitos se converterem contra vontade, ainda existiam aqueles que
no professavam nenhuma religio, mas uma filosofia racionalista e averrosta6 onde acreditavam
que na vida s existia o nascer e o morrer; o resto
era um nada.
No que se refere s relaes sociais entre conversos e cristo-velhos, podemos destacar os casamentos e as profisses. No que tange aos casamentos, podemos perceber que aqueles conversos que
possuam um nvel social e econmico mais elevado uniam-se s famlias crists-velhas mais abastadas ou pertencentes nobreza, enquanto que, os
conversos com uma posio scio-econmica mais
modesta mantinham os laos matrimoniais dentro
de seu prprio grupo.
A Igreja e os cristos-velhos criticavam o posicionamento dos conversos que efetuavam as alianas matrimoniais somente dentro de seu grupo. Isso
gerava especulaes a respeito dos motivos que levavam a tal escolha, dentre as suposies estava
o fato de no formularem a unio com cristosvelhos devido ao desejo de manter as tradies
judaicas, o que seria impossibilitado se a unio
matrimonial e familiar se efetuasse com cristos
verdadeiros. Porm, a Igreja se esquecia de que os
prprios cristos-velhos que julgavam as atitudes
dos conversos, no geral, no queriam manter esse
tipo de vnculo com os nefitos principalmente por
6. Averris (1126-98) natural de Crdova, na Espanha. Em sua juventude estudou jurisprudncia, teologia, matemtica, medicina e filosofia, e
obteria mais tarde importantes posies administrativas nos governos islmicos de Yacub Yusuf e de Yusuf Yacub Al-Mansur na Espanha, alm
de servir como mdico da corte. A grande nfase dada por Averris obra aristotlica e sua oposio influncia da religio sobre a filosofia
levaram desconfiana por parte dos ortodoxos. Alberto Magno e Toms de Aquino atacaram os averrostas e em 1270 seus erros foram condenados formalmente pela Igreja (loyn, 1997, p. 107).
543
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544
Resumo
545
Para ter uma viso melhor sobre o territrio portugus, D. Dinis fez uma inspeo por toda a rea
sobre o seu domnio, para verificar quais eram as
deficincias do reino, e graas a esse procedimento, o Rei pde obter dados mais concretos acerca da
realidade de cada local, bem como ter uma viso do
conjunto de todo o pas (Paes, 1998, pp. 121). Dentre os monarcas portugueses at meados do sculo
xiv, D. Afonso iii (1248-1279) e D. Dinis (1279-1325)
foram segundo Flvio Ferreira Paes Filho os que
mais perceberam as necessidades e deficincias do
reino, podendo assim ... fomentar e desenvolver
os mecanismos poltico-econmico-sociais necessrios ao desenvolvimento do reino e ao fortalecimento da monarquia (Paes Filho, 1998, p. 99).
D. Dinis tambm estimulou a organizao administrativa durante o seu reinado, seguindo os
547
Mas Jos Mattoso mostra que, ainda falta um estudo mais critico e preciso sobre a legislao dionisina e, devido a este fato, a apreciao da sua obra
administrativa fica mais difcil. Ainda, segundo
Mattoso, existe muitos estudos sobre suas leis ...
mas em edies defeituosas e por vezes com datas
errneas ou no datadas. Assim difcil tirar partido, para uma sntese histrica do corpo legislativo que se lhe atribui, e que bastante numeroso
(Mattoso, 1993, p. 155-156)
Por isso interessa-nos estudar as leis de Desamortizao de 1291, pois, a legislao durante o reinado de D. Dinis, como j foi dito, em quantidade
inferior a de D. Afonso iii, seu pai, mas a suas leis
tiveram uma influncia maior no territrio lusitano. O uso da legislao por D. Afonso iii e D. Dinis
tinha como objetivos principais: a centralizao do
poder nas mos do monarca, a organizao administrativa e a busca por uma identidade e independncia para o estado portugus dentro da Pennsula, comeando com D. Afonso III e consolidada
por D. Dinis que se (...) beneficiando dos trunfos
acumulados por seu pai e do poder material que ele
prprio adquiriu e o fez respeitar alm fronteiras
548
(...) (Mattoso, 1993, p. 149), obteve xito na realizao dos seus objetivos.
Usando o direito e a diplomacia D. Dinis conseguiu por fim a uma fase de longas disputas com
o poder eclesistico; esse desejo de pacificao com
o clero era um objetivo de D. Afonso iii que, nos
ltimos dias de sua vida pediu ao filho que resolvesse a questo e pusesse fim ao interdito papal,
estabelecido sobre o reino portugus, devido s
suas desavenas com o clero local, como afirma
Jos Mattoso:
O longo interdito a que o reino tinha estado sujeito desde
1267 foi finalmente levantado em 31 de Junho de 1290. O
acontecimento foi registrado como um dos mais notveis
da poca pelo Livro de noa de Santa Cruz de Coimbra.
Terminava assim um conflito que havia durado 22 anos.
A dificuldade de chegar a um acordo mostra bem a gravidade das divergncias e os obstculos que foi necessrio
ultrapassar (Mattoso, 1996, p. 148).
Percebe-se, pois, qual era a situao que os nobres sobretudo a mdia nobreza e a fidalguia
enfrentavam com relao interferncia da Igreja
no que toca aos testamentos deixados pelos membros de ordens religiosas, ao morrerem. Vrias pessoas pertencentes nobreza acabavam tornandose pobres, pois, em vez de seus parentes religiosos
deixarem os seus bens para os seus consangneos,
deixavam tudo o que tinham, inclusive terras, que
eram a principal fonte de renda do perodo, para as
ordens eclesisticas. Segundo Flvio Ferreira Paes
Filho, por esses motivos, a Igreja conseguia obter
vrios privilgios e fontes de renda: possua o direito de receber foro, de iseno fiscal e, ainda, o de
aplicar a justia dentro das propriedades coutadas
(Paes Filho, 1998, p. 130).
Essas reclamaes vinham tambm de pessoas
que tinham parentes pertencentes ao Clero, pois
alm de provavelmente serem os eclesisticos os
redatores dos testamentos, exerciam certa presso
sobre aqueles que testavam e quando tais pessoas
morriam, eles vinham e requeriam a herana. E devido a este fato o patrimnio das famlias acabava
diminuindo. E isso tambm prejudicava o Rei no
que tange a defesa do reino, pois quem prestava o
servio militar eram as pessoas pertencentes a mdia e pequena Nobreza que estavam se empobrecendo devido a esse fato.
Tambm, para Jose Mattoso as leis de desamortizao que D. Dinis promulgou em 1286, 1291,
1292, 1305 e 1309 favoreciam no s a coroa, mas
tambm aos nobres, pois estes eram prejudicados
com a excessiva acumulao de bens fundirios
549
550
BIBLIOGRAFIA
Fonte
Livro das Leis e Posturas, transcrio paleogrfica de Maria Teresa C. Rodrigues, Universidade de Lisboa.
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551
Resumo
553
Introduo
Dessa maneira, o fillogo, ao buscar o registro desse texto, atravs da edio, dever levar em conta
o pblico-alvo; ou seja, a quem se destina a obra:
a) se a pblico especializado, a edio dever trazer todas as caractersticas intrnsecas e extrnsecas
que o trabalho filolgico resgata; b) se, no entanto,
no especializado, a edio a ser preparada ser de
menos compormisso lingstico.
Para as duas situaes, conservadora ou menos
555
Esses elementos da scripta so indcios que no podem ser esquecidos pelo fillogo, porque so eles
que permitem o uso do texto para compreenso do
momento cultural que representa. Destacando-se,
entretanto, que o mais importante utilizao de
textos fidedignos, enquanto no se dispe de um
texto fidedigno, todas as operaes a serem realidadas naquele texto podem ser arbitrrias, intempestivas e inseguras (TAVANI, 1988, p. 53), a leitura
que se prope buscar operar com rigor em todo o
processo de elaborao.
3. O Documento
A Demanda do Santo Graal um manuscrito apogrfo do sculo xiii, no entanto o testemunho da
Biblioteca de Viena, ustria, em tradio do sculo xv, cpia de uma outra verso de poca anterior.
Rodrigues Lapa (apud Nunes, 2005, p. 12) diz-nos
que a Demanda deve ter sido traduzida do francs
o mais tardar no ltimo quartel do sculo xiii e,
556
conforme Megale (2001), a primeira traduo ibrica do cdice. Ivo Castro (apud MEGALE, 2005),
em suas pesquisas, afirma que Joam Vivas fez a
traduo ibrica, da qual so testemunhos hoje a
Demanda portuguesa e a Demanda espanhola. O
manuscrito 2594, da Biblioteca Nacional de Viena,
o nico que se encontra completo. O cdice provavelmente pertence ao novo ciclo, a Post-Vulgata
ou Pseudo-Boron (Nunes, 2005, p. 9), e compreende trs partes: 1. Estoire del Saint Graal; 2. Merlin;
3. Queste del Saint Graal.
Este ciclo no conservado em um nico manuscrito, mas em diversos fragmentos e o trabalho
de reconstituio vem sendo realizado por Fanny
Bogdanow da Manchester University Press, entre
outros.
O cdice de Viena relata a lenda arturiana dos
cavaleiros da Tvola Redonda, os amores de Lancelot e Guenivre, histria de Tristo e Palamedes.
Em sua edio dA Demanda do Santo Graal, Nunes (2005) trz amplo relato acerca da origem do
referido manuscrito da Vulgata, sendo:
Robert de Boron o autor da trilogia em verso li livres dou
graal Joseph, Merlin, Perceval -, quem vai (entre 1191
e 1212) no s explicar a origem do Graal mas tambm
articular a histria do Graal com o reinado de Artur (Nunes, 2005, p. 8).
E, ainda, os
romances em verso do sculo xii vo alimentar a passagem prosa do sculo seguinte. Entre 1215 e 1235 vai surgir um ciclo mais vasto resultante desta tendncia para
estabelecer relaes entre elementos de tradio diversa
o Lancelot-Graal, em que o tema do Graal surge articulado com a histria dos amores de Lancelot e Guenivre.
O Lancelot-Graal compreende cinco partes na sua verso
mais divulgada, a Vulgata: 1. Estoire del Saint Graal; 2.
Estoire de Merlin; 3. Lancelot du Lac; 4. Queste del Saint
Graal; 5. Mort Artu (Nunes, 2005, p. 8).
Complementando,
A Queste del Saint Graal da Post-Vulgata baseia-se nas
duas ltimas partes da Vulgata, Queste del Saint Graal
e Mort Artu, remodelando ou omitindo episdios e acrescentando outros de acordo com o esprito do novo romance
(NUNES, 2005, p. 10).
3. A Edio
Cambraia (2005, p. 93) define a edio diplomtica como sendo uma transcrio rigorosamente
conservadora de todos os elementos presentes no
modelo, tais como sinais abreviativos, sinais de
pontuao, paragrafao, translineao, separao
vocabular etc.
Com A Demanda do Santo Graal as discusses
estiveram em torno de qual destino seria dado a
essa edio, o que levou a questionarem-se as edies existentes. Ento, diante de todas essas edies qual seria aquela que melhor conservaria os
fatos intralingsticos, j que existem quatro edies interpretativas que a priori satisfariam at
ento aos estudos extralingsticos? Partindo-se
do princpio de que por ser A Demanda um documento cujo texto foi fixado no sculo xv, a lngua
ali registrada merece um estudo apurado a ser realizado por lingistas e fillogos, seria necessrio
um texto fidedigno, um texto que guardasse em sua
manifestao escrita os registros realizados pela escrita ou escritas da sua poca. Diante desses fatos e
da inexistncia de uma edio diplomtica, deu-se
incio tarefa de transcrever o referido manuscrito 2594 da Biblioteca Nacional de Viena, ustria,
em toda a sua amplido e complexidade de eventos
intralingusticos existentes, e de discutir quanto
sua viabilidade, bem como a eleio dos critrios a
serem adotados.
4. Os Critrios
Nesse sentido, optou-se pelas seguintes normas de
transcrio, aos quais se podem juntar outros novos, com o decorrer do trabalho:
1. Flio e coluna sero indicados entre colchetes
retos [fxr/v-cx] e mudanas de linha por barra
vertical | .
2. Manuteno das grafias originais de consoantes e vogais, independentemente de seu valor
fontico, inclusive as geminadas.
3. Conservam-se sempre unidas as palavras que
assim se apresentam na manuscrito, assim
como so mantidos separados os elementos
morfolgicos constitutivos que na atualidade
se grafam unidos.
4. As abreviaturas so desenvolvidas em itlico.
5. O sinal tironiano 7 transcreve-se com e.
6. O sinal tironiano 9 em final de palavra transcreve-se com os.
7. A pontuao rigorosamente mantida
8. As vogais dobradas so integralmente
mantidas;
9. As vogais orais u e i com valor consonntico
so transcritas mantendo-se a grafia original
do texto.
10. O i longo representado pelo j, em todas as
suas ocorrncias.
11. As sibilantes so representadas conforme aparecem no texto, independentemente de corresponderem ou no sua etimologia.
12. O h inicial conservado, independente de sua
etimologia ou no.
Palavras finais
Diante do desafio de transcrever integralmente A
Demanda do Santo Graal se tem verificado que,
embora j existam muitos tabalhos relacionados
a essa importante obra, tem-se, por outro lado,
construdo a certeza de que tem esta pesquisa de
Mestrado algo ainda a contribuir para o melhor
aproveitamento desse material. Aqui, pretende-se
apenas das notcia da elaborao de uma nova edio de carter nomeadamente conservador.
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