Significação Da Publicidade

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SIGNIFICAO DA PUBLICIDADE

Jean Baudrillard

1.0 IMPERATIVO E O INDICATIVO PUBLICITRIO

A publicidade tem como tarefa informar as caractersticas deste


ou daquele produto e promover a sua venda. Essa funo objetiva
resta em princpio sua funo primordial.1
Da informao, a publicidade passou persuaso, depois persuaso clandestina (Vanee Packard), visando agora a um consumo
dirigido: temo-nos amedrontado diante da ameaa de condicionamento
totalitrio do homem e suas necessidades. Ora, pesquisas mostraram
que a fora de impregnao publicitria era menor do que se pensava.
Rapidamente se verifica uma reao por saturao (as diversas publicidades se neutralizam umas s outras ou cada uma por seus excessos).
Por outro lado, a injuno e a persuaso levantam todas as espcies de
contramotivaes e de resistncias (racionais ou irracionais: reao

1 No esqueamos, porm, que as primeiras


publicidades diziam respeito s poes
milagrosas, aos remdios de senhoras idosas e a
outros truques: informao, por conseguinte,
porm das mais tendenciosas.

passividade, no se quer ser possudo reao nfase, repetio do


discurso etc.), em suma, o discurso publicitrio dissuade ao mesmo

tempo que persuade e da parece que o consumidor , seno imunizado,


pelo menos um usurio bastante livre da mensagem publicitria.
Isso dito, a funo explcita da publicidade no nos deve enganar:
se ela no persuade o consumidor quanto a certa marca precisa (Omo,
Simca ou Frigidaire), o faz quanto a outra coisa mais fundamental para a
ordem da sociedade inteira. Omo ou Frigidaire no passam de libis
para essa funo.
Assim como a funo do objeto pode, por fxm, no passar de um
libi para as significaes latentes que impe, assim tambm na publicidade e com tanta maior amplido por se tratar de um sistema de conotao mais puro - o produto designado (sua denotao, sua descrio),
tende a no passar de um libi, sob a evidncia do qual se desenvolve
toda uma confusa operao de integrao,
Se mais a mais resistimos ao imperativo publicitrio, por outro
lado, em sentido inverso, nos tomamos mais sensveis ao indicativo da
publicidade, ou seja, sua prpria existncia como segundo produto de
consumo e evidncia de uma cultura. nessa medida que acreditamos
nela; o que nela consumimos o luxo de uma sociedade que se d a ver
como instncia distribuidora de bens e que se ultrapassa numa cultura.
Recebemos ao mesmo tempo uma instncia e sua imagem.

2.

A LGICA DO PAPAI NOEL

Os que negam o poder de condicionamento da publicidade (dos


mass media em geral) no descobriram a lgica particular de sua eficcia. No mais se trata de uma lgica do enunciado e da prova, mas sim
de uma lgica da fbula e da adeso. No se acredita, deixa-se entretanto que ela fique de perto. No fundo, a demonstrao do produto
no persuade ningum: serve para racionalizar a compra, que, de todo
modo, precede ou ultrapassa os motivos racionais. Sem acreditar
nesse produto, acredito, porm, na publicidade que me deseja fazer crer.
a histria do Papai Noel: as crianas no mais se perguntam sobre sua
existncia e no relacionam essa existncia com os presentes que
recebem como se se tratasse de um jogo de causa e efeito. A crena no
Papai Noel uma fabulao racionalizante que permite preservar na
segunda infncia a relao miraculosa de gratificao pelos pais (e mais
precisamente pela me), que caracterizara as relaes da primeira

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infncia. Essa relao miraculosa, completada pelos fatos, interioriza-se


numa crena que seu prolongamento ideal. A fico no artificial,
pois se funda no interesse recproco que as duas partes mantm no
sentido de preservar aquela relao. O Papai Noel em tudo isso no tem
importncia e a criana nele s acredita porque no fundo no tem
importncia. O que ela consome por meio dessa imagem, dessa fico,
desse libi e em que acreditar mesmo quando deixar de crer , o
jogo da solicitude miraculosa dos pais e os cuidados que estes assumem
em ser cmplices da fbula. Os presentes apenas sancionam tal
compromisso.2 3
A operao publicitria do mesmo tipo. Nem o discurso retrico,
nem mesmo o discurso informativo acerca das virtudes do produto tem
efeito decisivo sobre o comprador. O indivduo sensvel temtica
latente de proteo e de gratificao, ao cuidado que se tem de solicit-lo e persuadi-lo, ao signo, ilegvel conscincia, de em alguma
parte existir uma instncia (no caso, social, que remete diretamente
imagem materna) que aceita inform-lo sobre seus prprios desejos,
adverti-los e racionaliz-los a seus prprios olhos. Ele no acredita na
publicidade mais do que a criana no Papai Noel. O que no o impede
de aderir da mesma maneira a uma situao infantil interiorizada e de se
comportar de acordo com ela. Da a eficcia bem real da publicidade,

2Os placebos so substncias neutras que os


mdicos administram aos doentes psicossomticos. No raro que esses doentes se
restabeleam tanto por causa de tal substncia
inativa quanto por efeitode um medicamento real.
Que integram, que assimilam esses doentes pelos
placebos? A idia da medicina + a presena do
mdico. A me e o pai ao mesmo tempo. Ainda
neste caso a crena lhes ajuda a recuperar uma
situao infantil e a resolver regressivamente um
conflito psicossomtico.
3Seria necessrio ampliar essa anlise para as
comunicaes de massa em geral, mas este no
o lugar oportuno.

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segundo uma lgica que, embora sem ser a do condicionamento-reflexo,


no menos rigorosa: lgica da crena e da regresso.1

3.

GRATIFICAO E REPRESSO: A DUPLA INSTNCIA

Precisamos ouvir por essa doce litania do objeto o verdadeiro


imperativo da publicidade. Veja como a sociedade no faz mais do que
se adaptar a voc e a seus desejos. Portanto, razovel que voc se
integre nesta sociedade. A persuaso, como diz Packard, faz-se clandestina, mas no visa tanto compulso de compra e ao condicionamento pelos objetos quanto adeso ao consenso social que esse discurso sugere: o objeto um servio, uma relao pessoal entre voc e
a sociedade. Que a publicidade se organize a partir da imagem maternal
ou a partir da funo ldica, de qualquer modo ela visa a um mesmo
processo de regresso aqum dos processos sociais reais de trabalho, de
produo, de mercado e de valor, que poderiam perturbar esta
miraculosa integrao: esse objeto, o senhor no o comprou, o senhor
sim emitiu o seu desejo e todos os engenheiros, tcnicos etc. com ele o
gratificaram. Numa sociedade industrial, a diviso do trabalho j dissocia o trabalho de seu produto. Apublicidade coroa esse processo, dissociando radicalmente, no momento da compra, o produto do bem de
consumo: intercalando entre o trabalho e o produto do trabalho uma
vasta imagem maternal faz com que o produto no seja mais considerado como tal (com sua histria etc.), mas pura e simplesmente como
bem, como objeto. Ao mesmo tempo que dissocia, no mesmo indivduo,
produtor e consumidor, graas abstrao material de um sistema muito
diferenciado de objetos, a publicidade se afana, em sentido inverso, em
recriar uma confuso infantil entre o objeto e o desejo do objeto, em
retomar o consumidor ao estgio em que a criana confunde sua me
com o que ela lhe d.
De fato, a publicidade no omite to cuidadosamente os processos objetivos, a histria social dos objetos seno para, pela instncia
social imaginria, melhor impor a ordem real de produo e de explorao. a que se precisa escutar, atrs da psicagogia publicitria, a
demagogia e o discurso poltico, a ttica desse discurso que, ainda nesse
plano, repousa sobre um desdobramento: o da realidade social em uma
instncia real e em uma imagema primeira se diluindo atrs da

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segunda, tornando-se ilegvel e s dando vez a um esquema de absoro


na ambincia maternal. Quando a publicidade em substncia lhe prope:
A sociedade adapta-se totalmente a voc, integre-se totalmente nela,
claro que a reciprocidade falsificada: uma instncia imaginria que
se adapta a voc, enquanto, em troca, voc se adapta a uma ordem bem
real. Mediante poltrona que se adapta s formas de seu corpo, voc
esposa e se responsabiliza por toda a ordem tcnica e poltica da
sociedade. A sociedade se faz maternal para que melhor preserve uma
ordem de coero.4 Vemos por a o imenso papel poltico que
desempenham a difuso dos produtos e as tcnicas publicitrias: asseguram propriamente a substituio das ideologias anteriores, morais e
polticas. Melhor ainda: enquanto a integrao moral e poltica no se
exercia sem problemas (necessitava lanar mo da represso aberta), as
novas tcnicas economizam a represso: o consumidor interioriza, no
prprio movimento do consumo, a instncia social e suas normas.
Essa eficcia reforada pelo prprio estatuto do signo publicitrio e pelo processo de sua leitura.
Os signos publicitrios nos falam dos objetos, mas sem expliclos em vista de uma prxis (ou muito pouco): de fato, remetem aos
objetos reais como a um mundo ausente. So literalmente legenda, ou
seja, pem-se a para que sejam lidos. Se no remetem ao mundo real,
tampouco o substituem exatamente: so signos que impem uma
atividade especfica, a leitura.
Se veiculassem uma informao, haveria leitura plena e transio
para o campo prtico. Mas desempenham outro papel: o de prova de
ausncia do que designam. Nessa medida, a leitura, no transitiva, organiza-se em um sistema especfico de satisfao, no qual, entretanto,
aparece sem cessar a determinao de ausncia do real: afrustrao.

4Por detrs desse sistema de gratificao, vemos


ademais reforarem-se todas as estruturas de
autoridade: planificao, centralizao,
burocracia-partidos. Estados, aparelhos reforam
sua dominao a partir dessa vasta imagem
maternal que toma cada vez menos possvel a sua
contestao real.

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A imagem cria um vazio, visa a uma ausncia. Por isso evocadora. Mas um subterfgio. Provocando um investimento, ela o corta
ao nvel da leitura. Faz convergir as veleidades flutuantes sobre um
objeto que mascara, ao mesmo tempo que o revela. Ela engana, sua
funo mostrar e enganar. O olhar presuno de contato, a imagem e
sua leitura so presuno de posse. A publicidade assim no oferece nem
uma satisfao alucinatria, nem uma mediao prtica para o mundo: a
atitude que suscita a de veleidade enganadaempresa inacabada,
surgir contnuo, engano contnuo, auroras de objetos, auroras de desejos.
Todo um rpido psicodrama se desenrola na leitura da imagem. Ele, em
princpio, permite ao leitor assumir sua passividade e transformar-se em
consumidor. De fato, a profuso de imagens sempre usada para, ao
mesmo tempo, elidir a converso para o real, para alimentar sutilmente a
culpabilidade por uma frustrao contnua, para bloquear a conscincia
mediante uma satisfao sonhadora. No fundo, a imagem e sua leitura
no so de modo algum o caminho mais curto para um objeto, mas sim
para uma outra imagem. Assim se sucedem os signos publicitrios como
as auroras de imagens nos estados hipnaggicos.
Precisamos reter bem essa funo de omisso do mundo na imagem, funo de frustrao. Somente isso nos permite compreender como
o princpio de realidade omitido na imagem nela, entretanto,
transparece eficazmente como represso contnua do desejo (sua espetacularizao, seu bloqueio, sua decepo e, finalmente, sua transferncia regressiva e derrisria num objeto). Ser aqui que apreenderemos o
acordo profundo do signo publicitrio com a ordem global da sociedade:
no mecanicamente que a publicidade veicula os valores dessa
sociedade, , mais sutilmente, por sua funo ambgua de presuno
algo entre a posse e a ausncia de posse, ao mesmo tempo designao e
prova de ausncia que o signo publicitrio faz passar a ordem

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social em sua dupla determinao de gratificao e represso.5


Gratificao, frustrao: as duas vertentes inseparveis da integrao. Sendo legenda, cada imagem dissipa a polissemia angustiante do
mundo. Mas, para ser legvel, ela se faz pobre e expedita ainda
suscetvel de muitas interpretaes, restringe seu sentido pelo discurso
que a subintitula, como uma segunda legenda. E, sob o signo da leitura,
sempre remete a outras imagens. A publicidade, por fim, tranqi- liza as
conscincias por uma semntica social dirigida e dirigida, em ltimo
termo, por um nico significado, que a prpria sociedade global. Esta
assim se reserva todos os papis: suscita uma multido de imagens, cujo
sentido, por outro lado, esfora-se em reduzir. Suscita a angstia e a
acalma. Cumula e engana, mobiliza e desmobiliza. Sob o signo da
publicidade, instaura o reino de uma liberdade do desejo. Mas nela o
desejo nunca efetivamente liberado - seria o fim da ordem social ,
o desejo s liberado na imagem e em doses suficientes para provocar
os reflexos de angstia e de culpabilidade ligados emergncia do
desejo. Aliciada pela imagem, mas enganada e culpabilizada tambm
por ela, a veleidade de desejo recuperada pela instncia social.
Profuso de liberdade, contudo imaginria, contnua orgia mental,
contudo orquestrada, regresso dirigida em que todas as perversidades
so resolvidas em favor da ordem: se, na sociedade de consumo, a
gratificao imensa, a represso tambm enorme; recebemo-las
conjuntamente na imagem e no discurso publicitrios, que fazem o
princpio repressivo da realidade atuar no prprio corao do princpio
de prazer.

5Esta anlise transponvel no sistema dos


objetos. porque o objeto ambguo, por no
ser apenas um objeto, mas sempre, ao mesmo tempo,
prova de ausncia da relao humana (assim como o signo
publicitrio prova de ausncia do objeto real),
que o objeto pode, tambm ele, desempenhar um
papel potente de integrao. A especificidade
prtica do objeto, contudo, faz que a prova de
ausncia do real seja a menos acisada que no
signo publicitrio.

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4. A PRESUNO COLETIVA Detergente Pax


A publicidade que silencia sobre os processos objetivos de produo e de mercado tambm omite a sociedade real e suas contradies.
Joga com a presena/ausncia de um coletivo global, com a presuno
coletiva. Esse coletivo imaginrio, mas, virtualmente consumido, basta
para assegurar o condicionamento serial. Considere-se, por exemplo, um
cartaz Pax. Nele se v uma multido imensa e indistinta que agita
brancas bandeiras imaculadas (a brancura Pax) em direo a um dolo
central, um gigantesco pacote de Pax, de reproduo fotogrfica e
dimenso igual, que se mostra de face para a multido, no edifcio da
ONU, em Nova York. bem claro que toda uma ideologia de paz e
candura alimenta a imagem. Aqui, entretanto, consideremos sobretudo a
hipstase coletiva e seu uso publicitrio. Persuade-se o consumidor no
sentido de que ele, pessoalmente, deseja Pax, medida que, de antemo,
se lhe apresenta sua imagem de sntese. Esta multido ele, e seu desejo
evocado pela presuno do desejo coletivo na imagem. A publicidade
aqui muito hbil: cada desejo, seja o mais ntimo, ainda visa ao
universal. Desejar uma mulher subentender oue todos os homens so
suscetveis de desej-la. Nenhum desejo, nem mesmo sexual, subsiste
sem a mediao de um imaginrio coletivo. Talvez no possa sequer
emergir sem esse imaginrio: seria imaginvel que se pudesse amar uma
mulher de que se estivesse certo que nenhum homem do mundo seria
capaz de desej-la? Inversamente, se multides inteiras adulam uma
mulher, fica
rei gamado por ela mesmo sem a conhecer. Esse o recurso
sempre presente (e o mais frequentemente ocultado) da publicidade. Se
normal que vivamos nossos desejos em referncia coletiva, a publicidade se dedica, todavia, a transformar tal constncia na dimenso
sistemtica do desejo. Ela no se fia na espontaneidade das necessidades
individuais, prefere control-las pelo funcionamento do coletivo e pela
cristalizao da conscincia sobre esse coletivo puro. Uma espcie de
sociodinmica totalitria festeja suas mais belas vitrias: uma estratgia
da solicitao coletiva institui-se sobre a presuno coletiva. Essa
promoo do desejo pela nica determinao de grupo capta uma
necessidade fundamental, a da comunicao, mas para orient-la no
quanto a uma coletividade real, mas sim a um fantasma coletivo. O

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exemplo de Pax claro: a publicidade finge solidarizar os indivduos


base de um produto cuja compra e uso precisamente os remetem s suas
esferas individuais. Paradoxalmente, somos induzidos a comprar em
nome de todo mundo, por solidariedade reflexa, um objeto sobre o qual
nossa primeira providncia ser us-lo para diferenar-nos dos outros. A
nostalgia coletiva serve para alimentar a concorrncia individual. De
fato, mesmo essa concorrncia ilusria, pois, finalmente, cada um dos
leitores do cartaz comprar pessoalmente o mesmo objeto que os outros.
O balance da operao, seu lucro (para a ordem social) consiste,
portanto, na identificao regressiva a uma totalidade coletiva vaga e,
da, na interiorizao da sano grupai. Cumplicidade e culpabilidade
como sempre esto aqui ligadas: o que tambm estabelece a publicidade
a culpabilidade (virtual) quanto ao grupo. No mais porm segundo o
esquema tradicional da censura: aqui, a angstia e a culpabilidade so de
incio suscitadas para todos os fins teis; e este fim, pela emergncia de
um desejo dirigido, a submisso s normas do grupo. E fcil contestar
o imperativo explcito do cartaz Pax (no ser ele que me far comprar
Pax em vez de Omo, Sunil ou no comprar nada); menos fcil recusar
o significado segundo, a multido vibrante, exaltada (sublinhada pela
ideologia de paz). Resiste-se mal a esse esquema de cumplicidade
porque no se trata sequer de resistir: a conotao ainda aqui bastante
legvel, mas a sano coletiva no forosamente figurada por uma
multido, porquanto pode ser retransmitida por qualquer outra
representao. Por exemplo, ertica: por certo no compramos batatas
fritas porque venham ilustradas
com uma cabeleira loura e duas belas ndegas. Mas certo que,
nessa breve mobilizao da libido pela imagem, toda a instncia social
ter tido tempo de passar, com seus esquemas habituais de represso, de
sublimao e de transferncia.
Traduo de L Costa Lima

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