Actas Do IV Congresso de História Da Arte Portuguesa PDF
Actas Do IV Congresso de História Da Arte Portuguesa PDF
Actas Do IV Congresso de História Da Arte Portuguesa PDF
2014
Ttulo
Actas do IV Congresso de Histria da Arte Portuguesa
em Homenagem a Jos-Augusto Frana
Sesses Simultneas (2. edio revista e aumentada)
Coodernao
Begoa Farr Torras
Reviso de texto
Helena Roldo
Colaborao
Ughetta Molin Fop e Elosa Rodrigues
Propriedade
APHA Associao Portuguesa de Historiadores da Arte
Comisso de Honra
Comisso Organizadora
Antnio Costa
Pedro Flor
Eduardo Loureno
Comisso Executiva
Jorge Sampaio
Jos Mattoso
Mrio Soares
Isabel Falco
Nuno Crato
Joana Monteiro
Nuno Portas
Comisso Cientfica
Ana Tostes, Instituto Superior Tcnico
Antnio F. Pimentel, Museu Nacional de Arte Antiga
Jos C. Vieira da Silva, Universidade Nova de Lisboa
Mrio Barroca, Universidade do Porto
Myriam A. R. de Oliveira, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Raquel Henriques da Silva, Universidade Nova de Lisboa
Sylvie Deswarte-Rosa, Centre National de la Recherche Scientifique-Lyon
Vitor Serro, Universidade de Lisboa
Walter Rossa, Universidade de Coimbra
NDICE
Nota 2. Edio
A presente publicao recolhe verses revistas e aumentadas das comunicaes apresentadas nas
Sesses Simultneas do IV Congresso de Histria da Arte Portuguesa em Homenagem a Jos-Augusto
Frana, que teve lugar na Fundao Calouste Gulbenkian de 21 a 24 de Novembro de 2012. Trata-se,
portanto, da segunda edio destas Actas, cuja primeira edio foi publicada no CD entregue aos
participantes e pblico do Congresso junto com o livro de resumos.
As comunicaes aqui contidas seguem a ordem do programa de trabalhos do Congresso, estando
portanto organizadas em sesses temticas e com indicao da data de apresentao.
No caso dos autores que optaram por no publicar neste volume a verso revista da sua
comunicao, aparece em seu lugar apenas o resumo da mesma, desde que aprovado pelo autor.
Foram uniformizadas as listas bibliogrficas que aparecem no fim de cada comunicao, tendo-se
deixado no entanto escolha dos autores a norma de referenciao bibliogrfica utilizada no texto e
nas notas de rodap, bem como a adopo ou no do Novo Acordo Ortogrfico da Lngua
Portuguesa.
Errata
As imagens que acompanham os textos Rostos da Lusitnia: uma introduo ao retrato escultrico
na Antiguidade Clssica e Antiguidade Tardia no actual territrio portugus (p. 402) e O que Cirilo
no sabia sobre Giovanni Grossi e os outros estucadores suos em Lisboa (p. 490) foram
originalmente omitidas por erro e aparecem agora no fim do volume, nas pginas 447-449 e 450-452
respectivamente.
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dos enquadramentos das peas arquitetnicas da nova estrutura de modulao espacial, que
subordina e organiza as peas decorativas, em especial as oito hermas aladas que, valorizadas na sua
individualidade, so, dentro do esquema arquitetural dessa composio, smbolos de todo um
pensamento de matriz arquitetnica, que organiza o espao de maneira bem mais leve que o arranjo
do altar-mor, propositalmente mais carregado, sem, contudo, perder a leitura de cada elemento
compositivo focado na valorizao da figura humana dos anjos e do coroamento em dossel com a
figura do Pai-Eterno (Fig. 2). uma concepo realmente madura, uma obra-prima do estilo joanino
no Brasil, que soube valorizar as preciosas telas como centro da composio das duas paredes
laterais da capela-mor e que, propositalmente, esto no eixo da abertura do culo superior da
abbada de modo a equilibr-la tanto em relao ao eixo de simetria da composio vertical, quanto
tirando partido de uma composio triangular imaginria formada pela abertura superior e pelas
duas falsas janelas ao lado das telas, que aqui tm o papel de equilibrar arquitetonicamente as
massas dos cheios e vazios da composio, ainda que cenograficamente (estas, entretanto, deixam a
clara impresso de que, no projeto original, talvez fossem para ser realmente abertas). Levando em
conta que a organizao da iluminao dessa capela-mor muito semelhante da Matriz de
Tiradentes, executada pelo bracarense Joo Ferreira Sampaio quase quinze anos antes, possvel
pensar que este sistema de iluminao j fizesse parte da antiga capela (mais barroca) e que no foi
possvel modific-lo em funo das dificuldades construtivas da taipa. A anlise destas duas obras,
como ressalta Myriam Ribeiro (2012), nos do bem a dimenso do que so dois espritos totalmente
diferentes de compor a obra de arte para um mesmo programa artstico-arquitetural. Nesta
comparao, podemos perceber claramente a diferena entre a viso do arquiteto-entalhador e a do
entalhador nato, ainda que ambas, artisticamente dentro do seu estilo, consigam solues estticas
muito bem-sucedidas, sendo verdadeiras jias da arte barroca brasileira.
Estranhamente, a qualidade da obra da capela-mor de So Joo del-Rei no se repete na obra
pstuma de Coelho de Noronha que vai ser a fatura da capela-mor da Matriz de Caet (Fig. 3), a
partir de 1759. Logicamente, ali o problema arquitetnico e cenogrfico era outro, j que a nova
Matriz estava estruturada sobre uma condicionante espacial diferenciada, que marca o incio do ciclo
das igrejas mineiras vinculadas ao rococ, onde a combinao da luz, a abstrao das massas de
talha, agora concentradas pontualmente nos altares, inaugura um novo compromisso esttico para o
espao da igreja mineira.
No campo especfico da sua atuao documentada em Arquitetura, sabe-se que ele fez o risco
original da Matriz do Morro Grande em 1762 que, segundo Bazin (1971), teria sido corrigido em
1763 pelo jovem Antnio Francisco Lisboa (seu oficial no atelier de Caet) , informao confirmada
pelo relato do vereador de Mariana em 1790. Fica, no entanto, a pergunta: qual seria a relao entre
Coelho de Noronha e o Aleijadinho naqueles tempos? Acreditamos que no deve ser apenas uma
coincidncia que seja no projeto da Matriz do Morro Grande (Fig. 4) da autoria original de Coelho de
Noronha, e possivelmente modificado pelo Aleijadinho, que apaream as primeiras movimentaes
volumtricas das torres e os primeiros elementos escultrico-ornamentais aplicados sobre uma
fachada, devendo se salientar tambm que no projeto da Matriz de Caet que, apenas uma dcada
aps serem utilizadas em Portugal, as primeiras torres chanfradas aparecerem em Minas, como
tambm o primeiro culo de desenho rococ. Essas observaes, entretanto, reafirmam as nossas
convices tanto sobre a importncia cultural desse atelier como sobre a vitalidade e a rapidez com
que a circularidade cultural de modelos artsticos e arquitetnicos chegava regio de Minas
naquele incio da segunda metade do sculo XVIII, tendo uma vinculao direta com personagens do
mundo da criao, como Jos Coelho de Noronha. Neste sentido, no deixa de ser interessante notar
que ao mesmo modo que as obras como So Vicente de Fora, Mafra ou a S do Porto renovaram o
gosto da Arte e da Arquitetura em Portugal, em Minas, a partir dos ateliers formados em obras
particularmente especiais, como o da Matriz de Caet, que est se fazendo a renovao do gosto
na Capitania, fenmeno alis que vai se repetir em relao expanso do rococ, apenas doze anos
mais tarde no atelier das obras do Carmo de Ouro Preto.
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[s.n.], 1733.
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Agradeo Fundao de Amparo Pesquisa de Minas Gerais pelo apoio concedido para participao no
evento.
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BELO, 2004; BOUZA LVAREZ, 2001; CHARTIER, 2003; LISBOA; MIRANDA, 2009.
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Assim, estava o calgrafo/pintor de Vila Rica a trabalhar nas primeiras dcadas do sculo XVIII na
regio das Minas, uma sociedade urbana em intensa transformao (lembre-se que as primeiras vilas
foram criadas naquela regio a partir de 1711). So quatro as suas obras atualmente identificadas
(Figs. 1 a 4); todas so compromissos de irmandades realizados entre 1725 e 1735, sendo trs para
irmandades de Vila Rica e um para uma irmandade de Congonhas do Sabar, duas importantes
freguesias institudas em torno de reas mineradoras a partir de fins do sculo XVII. possvel que
tenha realizado outros trabalhos, que ainda no foram localizados e listados, pois este sem dvida
um dos nomes que marcaram a atividade da ornamentao de manuscritos naquela regio na
primeira metade do sculo XVIII.
A primeira pergunta sobre esse profissional refere-se forma de aprendizado do ofcio. sabido que
o ensino da escrita em Portugal, antes do sculo XVIII, estava ligado aos calgrafos, que dividiam suas
mltiplas atividades profissionais com o ensino.3 Poderia ser tambm um complemento profissional
de sacristes, bacharis ou mesmo de outros profissionais cujas atividades no se relacionassem com
a escrita. Era comum que os professores ensinassem em sua prpria casa, mesmo que fossem aulas
ligadas s instncias poltico-administrativas, mas a prtica tambm se realizava durante a aula de
catequese ou de canto. Na Amrica portuguesa, a educao dos meninos, na maior parte, era feita
pelos prprios pais, por parentes, capeles ou por mestres particulares. A caligrafia poderia ser
aprendida tambm sem o auxlio de mestres, fazendo uso de obras impressas ou cpias manuscritas,
como dizem alguns dos tratadistas da arte da escrita que publicaram suas obras entre os sculos XVII
e XVIII.4
Um dos exerccios era copiar as letras em seus tracejados inmeras vezes, para cada estilo que se
quisesse aprender e para isso existiam pranchas especficas. Aps o domnio das letras, o aluno
passava a copiar boas mostras de textos, que poderiam tanto ser processos judiciais quanto textos
de carter religioso ou de educao moral, contendo exemplos de grandes cavalheiros. Dessa forma,
as mostras de letras cumpriam funo doutrinria e pedaggica, ao pretender treinar a mente e as
mos dos jovens. Essas pranchas poderiam estar impressas em manuais ou ser elaboradas pelo
prprio punho do professor. Quanto aos impressos, discpulos e mestres portugueses utilizaram
livros editados em outras lnguas devido ausncia de impresses nacionais destinadas ao ensino da
caligrafia durante mais de um sculo (entre a suposta edio de 1572 de Manoel Barata5 e a obra de
Manoel de Andrade de Figueiredo, em 1722, decorreram-se 150 anos). A proximidade cultural e
lingustica fazia que manuais espanhis fossem os preferidos at primeira metade do sculo XVIII.
Essa aproximao tambm se revelava na produo dos calgrafos portugueses: Giraldo Fernandez
de Prado, em seu tratado de caligrafia manuscrito em 1560-61, seguiu de perto os conceitos visuais
da letra do espanhol Juan de Iciar, expostos em sua obra publicada dez anos antes. O prprio Manoel
de Andrade de Figueiredo, o expoente mximo da caligrafia portuguesa do sculo XVIII, usou
referncias dos seus colegas espanhis: no que se refere elegncia e galhardia do trao, Andrade,
por exemplo, era comparado a Pedro Daz Morante, chegando a ser identificado como o Morante
portugus; j nas questes pedaggicas e conceituais da letra, Andrade seguiu muito de perto Jos
de Casanova, que publicou seu livro em 1650 em Madrid.
As letras ornamentadas e volteios decorativos eram igualmente aprendidos atravs da cpia.
Morante pedia a seus alunos mais avanados que treinassem volteios para que soltassem a mo e os
usassem de forma moderada nos documentos. Andrade mostrava em seu livro vrios exemplos de
letras adornadas e desenhos caligrficos para bordaduras e vinhetas, que poderiam ser copiados por
quem quisesse (e assim foi feito, pois alguns desses elementos se tornaram populares e repetidos
MAGALHES, 1994.
ANDRADE, 1722; MORANTE, 1629 e 1631.
5
BARATA, 1590. A edio de 1572 citada por alguns autores, porm no existe um exemplar conhecido
atualmente.
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exausto). Outro autor, Jos Lopes Baptista de Almada,6 ensinava alguns truques para que os volteios
parecessem ter sido feitos de uma s vez, percia s alcanada pelos melhores calgrafos. Essa
matria dos desenhos feitos a partir de volteios caligrficos era to complexa que havia uma
distino conceitual entre eles: os chamados naturais eram aqueles elaborados sem estudos
prvios, tracejados pelos grandes calgrafos; os artificiais eram feitos a partir de um desenho
prvio, que depois era copiado para o documento atravs da tcnica do picado ou splvero e que
poderia ser usado inmeras vezes; os de memria eram aqueles que eram constantemente
repetidos por um calgrafo com pouco repertrio decorativo; e os de fantasia eram aqueles em que
a pena era trabalhada livremente, com enredos primorosos, sem planejamento prvio, executados
com tanta liberalidade que nem mesmo poderiam ser repetidos.
Tambm o aprendizado da pintura decorativa de manuscritos era feito atravs da relao mestrediscpulo ou atravs da leitura de tratados de pintura e de manuais prticos, os livros conhecidos
como segredos das artes liberais, comuns nos sculos XVII e XVIII. Isso porque a letra pintada e os
desenhos ornamentais no eram ensinados na maioria das publicaes de caligrafia. As obras de
Morante, por exemplo, apresentam vrios desenhos caligrficos primorosos de sua mo, mas no
fornecem explicaes de como faz-los. J Andrade gravou diversos modelos de letras capitulares,
algumas de carter pictrico, mas no forneceu as receitas de tintas para iluminao nem ensinou
como traar ou copiar os modelos disponibilizados.
Em alguns tratados de pintura, a tcnica da iluminao tambm era abordada, muito embora as
regras de utilizao das cores, de composio e de proporo fossem apresentadas como comuns
pintura em outros suportes. Sabemos que a relao do espectador com a pintura est associada ao
suporte que a abriga e sua localizao e funo. Asencio y Merojada, outro calgrafo espanhol
setecentista, explicava como a clareza e a visibilidade das letras se transformavam de acordo com o
suporte, a tcnica de inscrio e a combinao de cores, tal como a pintura.7 Ainda que as letras
tivessem sempre uma mesma figura, sua legibilidade dependia da distncia ou da altura em que
estivessem inscritas e da cor e superfcie do suporte. Mesmo tendo um mesmo corpo, os efeitos de
nitidez se modificavam conforme uma srie de variveis que estavam relacionadas com o conjunto
esttico da obra que recebia a inscrio, sendo ela um documento, uma pintura em tela ou em forro,
uma lpide ou um monumento. Por isso o autor defendia a necessidade de dominar os conceitos da
geometria e da perspectiva, assim como as teorias da cor, considerando o ponto de vista do
observador, definindo deste modo um campo de conhecimento que aproximava a escrita da pintura.
O calgrafo/pintor, portanto, deveria saber manejar essas especificidades. A prtica e a observao,
aliadas ao domnio de alguns conceitos tericos, eram os verdadeiros mestres dos iluminadores.
Dos tratados que abordavam a pintura em manuscritos podemos destacar a Arte da pintura:
symetria e perspectiva de Filipe Nunes, um dos poucos ttulos em lngua portuguesa que foram
impressos no sculo XVII, tendo sido reeditado no sculo XVIII. Foi bastante utilizado em sua poca e
copiado intensivamente ao longo dos sculos XVII e XVIII, em verses integrais ou parciais, para
compor as bibliotecas conventuais e particulares. Havia tambm edies mais populares, como a j
citada obra de Jos Lopes Baptista de Almada Prendas da Adolescencia ou Adolescencia Prendada
no formato de dicas e receitas que ensinavam de forma direta os mtodos operativos, incluindo as
tcnicas de cpias de modelos. Ainda devem ser lembradas as muitas obras formadas a partir dos
cadernos de anotaes dos amadores da arte da pintura sobre papel, que sintetizavam as
informaes coletadas em diversos campos e que acabaram por circular entre vrios proprietrios.
Algumas vezes esses cadernos continham, alm da informao textual sobre as receitas de
pinturas, uma srie de modelos iconogrficos que poderiam ser reproduzidos e que faziam parte do
aprendizado do pintor de manuscritos.
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7
ALMADA, 1749.
ASENSIO Y MEJORADA, 1780.
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Para dar subjetividade e esse processo de formao profissional, podemos usar as anotaes
autobiogrficas de Manuel de Faria e Sousa, extensamente trabalhadas por Edward Glaser e por
Diogo Ramada Curto.8 Faria e Sousa era originrio de uma famlia da nobreza da regio do Minho.
Seu av e seu pai dominavam a escrita e a leitura e foi este ltimo quem lhe ensinou a ler e a
escrever, rompendo com uma tradio alde do Seiscentos portugus. A leitura aprendeu pela
repetio de poemas de autores latinos, italianos e espanhis. A escrita exercitou a partir das obras
de Manuel Barata e do espanhol Igncio Perez,9 emprestadas de um escudeiro vizinho. Tendo muito
interesse pela caligrafia e pelos documentos adornados, passou a copiar figuras de livros religiosos
impressos e depois a desenhar e a pintar. Aps esse incio autodidata, aos nove anos foi
encaminhado a um mosteiro beneditino com o objetivo de estudar a gramtica com um abade amigo
de seu pai, mas acabou por se interessar mais pelas aulas de caligrafia que outro religioso lhe
ministrava. Dos 10 aos 14 anos, foi discpulo de um clrigo telogo, tendo se transferido em sua
companhia para Braga. Naquele perodo, apesar de todos os esforos, pouco se dedicava gramtica
e continuava mais preocupado com as boas letras e as pinturas e desenhos de frontispcios.
Posteriormente, enquanto prestava servio ao Bispo do Porto, foi novamente discpulo de um
cnego beneditino, um excelente calgrafo, quando pde se aperfeioar nas artes da iluminura e da
boa letra.
Quanto ao calgrafo/pintor de Vila Rica, tendo em vista a qualidade tcnica e esttica dos trabalhos e
seu desenvolvimento posterior, possvel que tenha aprendido o ofcio a partir de receitas
simplificadas de preparo e aplicao das tintas e copiando uma srie de modelos que lhe estavam
disponveis. Nas suas quatro obras, o calgrafo seguiu dois modelos distintos de planejamento visual.
Os dois realizados em 1725, para duas localidades diferentes, pouco se diferem no que se refere ao
desenho grfico das pginas, especificadamente o tipo de capitulares, as vinhetas e a letra usada no
texto; alm disso, as obras so marcadas pela cpia direta, com algumas adaptaes, dos modelos de
letras de Andrade (Fig. 5) e de vinhetas do espanhol Pedro Daz Morante (Fig. 6). Os outros dois,
realizados em 1734 e 1735 para duas irmandades diferentes da Matriz de Vila Rica, apresentam as
mesmas caractersticas de pintura e design da pgina, embora o profissional tivesse promovido uma
diversificao maior quanto escolha dos elementos decorativos individuais, como as letras
capitulares e as vinhetas (Figs. 3 e 4). Ao longo de dez anos, o calgrafo foi capaz de se desenvolver
no estilo e na tcnica do uso das cores e dos traos do desenho. Ele manteve seu padro executivo,
mas conseguiu ampliar seu repertrio, que foi posteriormente apropriado por outros profissionais
que trabalharam para irmandades da Matriz de Vila Rica.
O calgrafo/pintor de Vila Rica possua uma apurada cultura visual da escrita, pois dominava variados
tipos de letras e claramente teve contato com mais de uma obra sobre caligrafia. Utilizou modelos de
capitulares usados em compromissos portugueses de fins do sculo XVI, fez uso extensivo da obra de
Manoel de Andrade de Figueiredo, especialmente no uso das capitulares para iluminao, e copiou
desenhos de Pedro Daz Morante, cujas vinhetas caligrficas lhe serviram de molde e modelo em
mais de uma situao. impossvel, hoje, saber qual era o acervo do calgrafo: se exemplares
completos da publicao de Andrade e de duas obras de Morante, se gravuras avulsas (que eram
vendidas mesmo na escola de Morante e depois por vrios comerciantes) ou se possua cpias
manuscritas. Quanto ao modelo de capitular encontrado na caligrafia portuguesa de fins do
Quinhentos, correto afirmar que este padro manteve-se atualizado pelas inmeras repeties na
clicheria de capitulares de obras impressas. A manuteno de referncias tradicionais da caligrafia
explica-se porque, como afirma Joo Adolfo Hansen,10 neste perodo a inveno era mais uma
combinao de elementos j coletivizados, dispostos de uma forma aguda e nova, do que
propriamente um rompimento com a tradio.
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Fig. 1 Compromisso da Irmandade de So Gonalo, da Igreja de Nossa Senhora da Conceio de Vila Rica,
Minas Gerais, 1725. Acervo Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Portugal
Fig. 2 Compromisso da Irmandade do Santssimo Sacramento da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar das
Congonhas, Minas Gerais, 1725. Acervo Arquivo Pblico Mineiro, Brasil.
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Fig. 3 Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora Pilar, Matriz de Villa Rica, Ouro Preto, Minas Gerais,
1734. Acervo Arquivo Eclesistico da Parquia do Pilar de Ouro Preto, Brasil
Fig. 4 Compromisso da Irmandade do Arcanjo So Miguel, Freguesia de Nossa Senhora do Pilar, Ouro Preto,
Minas Gerais, 1735. Acervo Arquivo Eclesistico da Parquia do Pilar de Ouro Preto, Brasil.
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Fig. 6 Desenhos de Pedro Daz Morante e vinheta do Compromisso da Irmandade de So Gonalo, da Igreja
de Nossa Senhora da Conceio de Vila Rica sobrepostas
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BIBLIOGRAFIA
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prendas, artes, e curiosidades mais uteis, deliciosas, e estimadas em todo o mundo: obra utilssima
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principalmente para os inclinados s Artes, ou prendas de Escrever, Contar, Cetrear, Dibuxar,
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Relay race with a silver statue: the interaction of the Portuguese Viceroy with
an image of Saint Francis Xavier in Goa
Urte Krass
Ludwig Maximilian Universitt, Munique, Alemanha
Abstract
In 1670, a large and expensive silver statue of Saint Francis Xavier was manufactured in Goa and
installed in the Jesuit church of Bom Jesus. Donated by the Genoese noblewoman Francesca Sopranis
(whose last will and testament has been traced and used here as a source for the first time), the
statue soon came to be used as a means to visualize Portuguese power structures. Its gestural
expressivity invited both local Christian believers and colonial rulers to interact with the 4-foot-8-inch
silver sculpture. When the Portuguese Viceroy placed his sceptre in the statue's hand in 1693 this
performative act mirrored the coronation of the Madonna of the Immaculate Conception by Joo IV,
which had symbolically implemented the Portuguese Restaurao half a century earlier. At the same
time Francis Xaviers statue maintained an openness to variant readings and appropriations rooted in
the broad pluralistic spectrum of Hindu traditions, Indo-Christian culture, and 17th-century Goan
society. The convergence of ideas stemming from Western visual cultures with non-European image
concepts was stimulated even further when the statue received a diadem made of gold sent from
Africa. In exploring the premises and implications of the intercultural processes surrounding the
making and reception of the silver statue of Francis Xavier in Goa, this paper seeks to shed light on
the complexity of transcontinental artistic exchange in a (semi-)global context.
The complete version of this paper has been published in Qualche ornamento stabile, e perpetuo.
Die Silberstatue des Heiligen Franz Xaver in Goa und ihre performative Vereinnahmung im 17.
Jahrhundert, in Mitteilungen des Kunsthistorischen Institutes in Florenz 55, 2013: 73-93.
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Exposio do Mundo Portugus de 1940, tivesse, desde cedo, programado uma forma de abordagem
ao caso da necessidade de conservar o patrimnio arquitectnico ultramarino. Afinal, como deu
conta o prprio Antnio de Oliveira Salazar (1889-1970) no ano de 1932, j como presidente do
Conselho de Ministros, temos de mudar de processos, de mentalidade, temos de ir para as nossas
colnias como quem no sai da sua terra, como quem no vai para o estrangeiro [Ferro, 2007: 84].
No obstante a posio de Oliveira Salazar relativa legitimidade da presena portuguesa nos
territrios ultramarinos, bem como o dinamismo da Direco-Geral dos Edifcios e Monumentos
Nacionais, a verdade que a referida mudana de processos e mentalidade tardou no universo dos
monumentos portugueses erguidos no alm-mar desde o longnquo sculo XV. De facto,
debruando-nos sobre o perodo e tema em causa, o Governo central, em relao ao patrimnio
ultramarino, pouco mais fez do que, por exemplo, acolher na I Exposio Colonial Portuguesa de
1934 reprodues do arco dos vice-reis da Velha Goa (Fig. 1), ou do farol da Guia de Macau [Galvo,
1934]. No ano de 1951, no por iniciativa prpria mas sim do incontornvel Mrio Tavares Chic
(1905-1966), atravs da Junta das Misses Geogrficas e Investigaes Coloniais, o Governo apoiou
uma viagem de estudo aos monumentos da ndia Portuguesa [Mariz, 2012] (Fig. 2). A par destas
aces pontuais e indirectas no seio do Ministrio do Ultramar, o Ministrio das Obras Pblicas e
Comunicaes, atravs da Direco-Geral dos Monumentos e Edifcios Nacionais, efectivamente,
pouco fez neste universo, sendo de ressalvar as viagens realizadas pelo arquitecto Baltazar de Castro
(1891-1967), director do Servio de Monumentos Nacionais.
Estando os monumentos ultramarinos, teoricamente, na alada do Ministrio do Ultramar, a verdade
que, no obstante as suas reorganizaes, verificava-se, fruto do desconhecimento, desinteresse
ou falta de sensibilidade, um vazio legislativo relativo a esta questo. Afinal, na Lei Orgnica do ano
de 1936, possvel identificar a existncia da Repartio de Obras Pblicas, Portos e Viao na
dependncia da Direco-Geral do Fomento Colonial [Dirio do Governo, 1936], sem que haja, no
entanto, qualquer especificao relativa aos monumentos, elementos dependentes, na Metrpole,
da Direco-Geral dos Edifcios e Monumentos Nacionais do Ministrio das Obras Pblicas e
Comunicaes. Mais de vinte anos depois, no ano de 1957, no mbito de uma modificao da
orgnica e dos quadros do Ministrio do Ultramar, notrio um avano, assistindo-se
independncia da Direco-Geral de Obras Pblicas, funcionando, a partir de ento, como servio
central e abrangendo a Direco dos Servios de Urbanismo e Habitao, a Direco dos Servios de
Pontes e Estruturas, a Direco dos Servios Hidrulicos, a Direco dos Servios de Transportes
Terrestres, a Repartio dos Servios Elctricos e a Repartio dos Correios, Telgrafos e Telefones
[Dirio do Governo, 1957: 674]. J os monumentos, a sua conservao e valorizao, continuavam
omissos na legislao.
Finalmente, no ano de 1958, atravs do Decreto 41:787 de 7 de Agosto, a Direco-Geral de Obras
Pblicas e Comunicaes do Ministrio do Ultramar viu alargadas as suas incumbncias,
extrapolando a arquitectura e urbanismo, para abranger, igualmente, os monumentos de interesse
nacional. Assim, a partir deste momento, caberia quela Direco-Geral o inventrio, classificao,
conservao e restauro [Dirio do Governo, 1958: 757] dos monumentos portugueses erguidos no
Ultramar ao longo dos sculos da presena nacional.
Foi, precisamente, na sequncia deste diploma legislativo que o arquitecto Lus Benavente (19021993), director do Servio de Monumentos Nacionais na Metrpole desde o ano de 1952 e
funcionrio em comisso de servio no Ministrio do Ultramar desde 23 de Setembro de 1958, deu
incio a um programa centralizador de salvaguarda do patrimnio arquitectnico portugus do almmar.
29
A par das necessrias intervenes de conservao e restauro dos monumentos em causa, a grande
ambio do arquitecto passava pela criao de legislao destinada classificao, valorizao e
reabilitao daquele patrimnio [Benavente, 1960: Cx. 118, Pt. 805, Doc. 2], precedida de uma aco
muito actual: o inventrio de todo o universo arquitectnico de origem portuguesa. De resto,
podemos desde j referir que o insucesso desta medida to importante condicionou o
desenvolvimento do programa patrimonial. Afinal, o arquitecto Benavente comeou por enviar um
questionrio a todas as provncias ultramarinas, procurando conhecer que monumentos existiam em
cada uma delas. Contudo, fruto do desconhecimento e/ou desinteresse, o arquitecto constatou que
verificmos que a matria remetida, no constitua nem possua elementos pelos quais fosse
possvel a criao de um Tombo propriamente dito [Benavente, 1960: Cx. 118, Pt. 805, Doc. 2].
Ainda assim, com as dificuldades caractersticas da desmesurada extenso dos territrios
ultramarinos, a falta de meios econmicos por parte dos governos provinciais, o excesso de
burocracia, a contestao internacional e nacional do colonialismo, e a frgil acumulao de funes,
por parte de Lus Benavente, no Ministrio do Ultramar e no Ministrio das Obras Pblicas e
Comunicaes, o arquitecto foi, paulatinamente e com notvel nimo, dando cumprimento ao
Decreto 41:787, contribuindo, de forma inegvel e pioneira, para a salvaguarda, prtica e terica, do
patrimnio arquitectnico portugus ultramarino.
Observado o modo como a ausncia de legislao relativa a este tema perdurou num contraste
evidente comparativamente ao cenrio da Metrpole e importncia da poltica colonial, interessanos compreender o porqu desta manifestao da conscincia patrimonial no momento supracitado.
Em termos polticos fundamental ter presente a conjuntura nacional, mas tambm internacional.
Afinal, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) terminara h mais de dez anos e, no mesmo ano, foi
criada a Organizao das Naes Unidas, acontecimentos que contriburam, de forma inaudita, para
a manifestao de sentimentos nacionalistas um pouco por todos os pases colonizados, levando,
correctamente, os autores a falar de uma nova frica [Cervell, 2005: 53]. Neste momento, a Itlia
perdeu a Lbia no ano de 1951 e a Somlia italiana nove anos depois, Espanha ficou sem o seu
protectorado de Marrocos em 1956, Frana perdeu, igualmente, o seu protectorado de Marrocos e a
Tunsia no mesmo ano, para perder em 1958 e 1962, respectivamente, a Guin francesa e a Arglia.
Por outro lado, a par destas manifestaes locais, assistia-se, igualmente, ao surgimento de um
esprito de comunho, conforme testemunha a Conferncia de Bandung do ano de 1955, ocasio em
que os pases no alinhados se uniram reivindicando, a uma voz, as suas pretenses.
Simultaneamente, ao longo de todo o processo, os Estados Unidos da Amrica e a Unio Sovitica, as
duas novas grandes potncias mundiais, apoiaram, evidentemente, as reivindicaes dos territrios
colonizados face ao imperialismo europeu. Perante este cenrio e a adeso de Portugal
Organizao do Tratado do Atlntico Norte, foi precisamente a partir do ano de 1958, o mesmo da
homologao do Decreto 41:787, que se assistiu a uma mudana decisiva na defesa nacional do
imprio, cuja oficializao datou de Agosto de 1959 com a elaborao de um documento por parte
de Jlio Botelho Moniz (1900-1970), ministro da Defesa Nacional, e Oliveira Salazar [Telo, 2005: 33]:
Portugal no s no iria recuar na sua poltica colonial como iria reforar a defesa daqueles
territrios. A posio do regime, tendo em considerao a sua ideologia, compreensvel, pois afinal
recorde-se que, em Julho de 1954, os enclaves portugueses de Dadr e Nagar-Aveli foram ocupados
pela Unio Indiana, ameaando a presena nacional em Goa, Damo e Diu.
Em termos patrimoniais, importante referir que o Decreto 41:787 no surgiu de forma totalmente
descontextualizada, bem como a escolha do arquitecto Benavente para pr em prtica o mesmo no
foi inusitada. Afinal, logo no ano de 1956, o Gabinete de Urbanizao do Ultramar solicitou ao
arquitecto Benavente que destacasse um tcnico do seu servio para se deslocar a So Tom e
Prncipe, pedido esse a que o director do Servio dos Monumentos Nacionais, aps contactos com
Arnold Walter Lawrence (1900-1991) da Comisso de Monumentos e Relquias do territrio que
actualmente corresponde ao Gana, com os elementos recolhidos no local pelo arquitecto Baltazar de
30
Castro e por Charles Boxer (1904-2000), acedeu com a sua prpria ida j no ano de 1958 [Mariz,
2012] (Fig. 3).
No entanto, no podemos considerar que o interesse manifestado em So Tom e Prncipe e o
entusiasmo de Lus Benavente tenham sido os nicos factores que, no universo patrimonial,
contriburam para a demonstrao da necessidade de criao de uma poltica centralizada destinada
aos monumentos em estudo. Isto porque, mesmo antes desta tentativa de centralizao que foi, de
resto, prolongada at queda do regime, os territrios sujeitos administrao portuguesa
contaram, em determinados momentos, com manifestaes de conscincia patrimonial para com os
monumentos erguidos, no passado, no Ultramar.
O caso da ndia portuguesa incontornvel, uma vez que esta contava, desde o ano de 1895, com a
Comisso Permanente de Investigaes Arqueolgicas, qual caberia acudir ao arrasamento
vandlico do que resta da velha Goa, conservar intransigentemente as runas e os escombros,
estudar palmo a palmo a rea da cidade morta, reunir monografias e ensaios de toda a ordem para a
obra e ressurreio histrica a fazer [Boletim Oficial do Governo do Estado da ndia, 1895: 628] (Fig.
4). J no continente africano, no ano de 1922, foi criada a Comisso de Monumentos Provinciais de
Angola cujas incumbncias passavam pela proposta de classificao, conservao e restauro
daqueles imveis [Boletim Oficial de Angola, 1922: 137-138] (Fig. 5). No mesmo ano o Governo
Provincial de Cabo Verde denunciou a sua preocupao com os patrimnios arquitectnico e
arqueolgico daquelas ilhas, assumindo a necessidade de conservao e, no menos importante, de
travagem da destruio da Cidade Velha, incumbindo, para isso, a Direco de Obras Pblicas da
tarefa [Boletim Oficial da Provncia de Cabo Verde, 1922: 94-95] (Fig. 6). A provncia de Moambique,
anteriormente ao Decreto 41: 787, tambm j contava, desde 20 de Fevereiro de 1943 e do Diploma
Legislativo n. 825, com a sua Comisso dos Monumentos e Relquias Histricas, qual cabia
investigar, classificar, restaurar e conservar os monumentos e relquias da Colnia, divulgar o seu
conhecimento arqueolgico-histrico e promover a sua propaganda cultural e turstica [Boletim
Oficial de Moambique, 1943: 159-161] ( Fig. 7).
Finalmente, uma vez observadas as manifestaes de conscincia patrimonial por parte do Governo
portugus, repare-se, por momentos, na outra extremidade do espectro, isto , na actividade
promovida no universo privado e, concretamente, pela Fundao Calouste Gulbenkian.
Efectivamente, apenas dois anos aps a criao da Fundao por disposio testamentria de
Calouste Gulbenkian (1869-1955), no ano de 1958, assistiu-se ao primeiro testemunho de esta
instituio pretender abranger no seu programa de actividades a recuperao do patrimnio
arquitectnico portugus no mundo. Isto porque data daquele ano, o mesmo da criao do Servio
de Bibliotecas Itinerantes, o pedido dirigido pela Fundao a Charles Boxer e Carlos de Azevedo
(1918-1995), amigos desde a dcada de 40 passada em Oxford, para que se deslocassem ao Qunia.
Nesta misso em colaborao com o Governo local, os estudiosos deveriam realizar um estudo
histrico e analisar o estado de conservao do Forte de Jesus de Mombaa. Esta seria, de resto, a
metodologia utilizada numa linha de aco que tem sido permanente no seio da Fundao Calouste
Gulbenkian [Vilar, 2010:7], isto , a salvaguarda do patrimnio cultural e histrico portugus no
mundo atravs do envio de especialistas e da elaborao de projectos em colaborao com as
autoridades locais [Matias, 2006].
Concluindo, no obstante o desfasamento em relao situao verificada na Metrpole, possvel
observarmos, entre o final da dcada de 50 e a queda do regime ditatorial, a existncia de uma
conscincia patrimonial manifestada pelo Governo em relao ao patrimnio arquitectnico
portugus ultramarino. O programa desenvolvido de uma forma centralizada, essencialmente, pelo
arquitecto Lus Benavente no seio do Ministrio do Ultramar, apesar das suas fragilidades devedoras
dos problemas derivados da questo colonial e das extraordinrias dimenses do imprio, revestiuse, efectivamente, de um pioneirismo notvel aos nveis nacional e internacional. Ainda assim, no
31
32
33
34
BIBLIOGRAFIA
BENAVENTE, Lus. Arquivo Nacional Torre do Tombo, Fundo Lus Benavente, Caixa 118, Pasta 805,
Documento 2.
Boletim Oficial de Angola, Decreto n. 161, 24 de Maio de 1922: 137-138.
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1895:628.
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Boletim Oficial da Provncia de Cabo Verde, n. 14, Srie I, 8 de Abril de 1922: 94-95.
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FERRO, Antnio. Entrevistas a Salazar. Lisboa: Parceria AM Pereira, 2007.
GALVO, Henrique. lbum Comemorativo da 1. Exposio Colonial Portuguesa. Porto: Litografia
Nacional, 1934.
MARIZ, V. O caso pioneiro de So Tom e Prncipe no panorama da salvaguarda dos monumentos
portugueses ultramarinos durante o Estado Novo. Colquio internacional So Tom e Prncipe numa
perspectiva interdisciplinar, diacrnica e sincrnica, Lisboa, Centro de Estudos Africanos do ISCTE-IUL
e Instituto de Investigao Cientfica Tropical, 2012 (no prelo).
35
Em relao ao iconoclasmo no antigo Ultramar portugus, uma das poucas referncias Dario Gamboni,
The destruction of art: Iconoclasm and vandalism since the French Revolution (London: Reaktion Books, 1997),
109, onde o autor se debrua principalmente sobre Macau. Mesmo casos mediticos de destruio ou remoo
de esttuas estado-novistas em Portugal, como as de Salazar no Palcio da Foz em Lisboa e em Santa Comba
Do, tm suscitado menos ateno do que seria de esperar. O tratamento mais exaustivo destes casos, numa
perspectiva histrica da produo e recepo das imagens de Salazar, de Joo Medina, Salazar, Hitler e
Franco (Lisboa: Horizonte, 2000), 195ss. Mais especificamente dentro da Histria da Arte referem-se as
abordagens de Jos Guilherme Abreu, Escultura pblica e monumentalidade em Portugal (19481998): Estudo
transdisciplinar de Histria da Arte e Fenomenologia Gentica (dissertao de doutoramento, Universidade
Nova de Lisboa, 2006), 583588 e 646649, e Helena Elias e Ins Marques, As ltimas encomendas de arte
pblica do Estado Novo (19651985), on the w@terfront 23 (2012).
36
seguir aqui: a das leituras e significados das esttuas cadas (e em queda) em Maputo durante e aps
a independncia de Moambique em 1975. Particularmente, tentarei problematizar o fim das
esttuas que est implcito na pergunta de Lopes Ribeiro, discutindo a sua sobrevivncia alm da
simblica morte teatralizada no ritual do apeamento.
Der moderne Denkmalkultus: sein Wesen und seine Entstehung (1903). Utilizou-se a traduo espanhola, El
culto moderno a los monumentos: Caracteres y origen (Madrid: A. Machados Libros, 2008).
3
Franoise Choay, A alegoria do patrimnio (Lisboa: Edies 70, 1999).
4
Henri Lefebvre, The production of space (Oxford: Blackwell Publishing, 1991), 3339 e 220228.
5
Veja-se Antoni Remesar, Para una Teora del Arte Pblico: Proyectos y Lenguajes Escultricos (Barcelona,
1997), para uma defesa da pertinncia de uma abordagem patrimonial arte em espao pblico.
37
Para uma tentativa recente de inventariao, veja-se o segundo volume da obra Patrimnio de origem
portuguesa no mundo: Arquitetura e urbanismo (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2010), coordenado por
Filipe Themudo Barata e Jos Fernandes. Os contedos desta obra esto a ser disponibilizados on-line em
http://www.hpip.org/. Para o caso de Moambique, veja-se Gerbert Verheij, Monumentalidade e espao
pblico em Loureno Marques nas dcadas de 1930 e 1940 (dissertao de mestrado, Universidade Nova de
Lisboa, 2011), especialmente 117129.
7
Sobre o Gabinete de Urbanizao Colonial, veja-se Ana Vaz Milheiro e Eduardo Costa Dias, Arquitectura em
Bissau e os Gabinetes de Urbanizao colonial (19441974), arqurb 2 (2009): 80114; sobre a actividade
deste organismo em Moambique pode-se consultar Andr Faria Ferreira, Obras pblicas em Moambique:
Inventrio da produo arquitectnica executada entre 1933 e 1961 (Lisboa: Edies Universitrias Lusfonas,
2008).
8
Este argumento desenvolvido ao longo de Verheij, Monumentalidade e espao pblico.
9
Veja-se Monumentos coloniais vo ficar em museu, Notcias de Moambique 24 (24 de Maio de 1975), 19,
onde reproduzido o decreto do governo relativo remoo das esttuas coloniais.
10
Esta e seguintes citaes de Colonialismo: Um mundo de esttuas e de smbolos, Notcias de Moambique
24 (24 de Maio de 1975), 13. A questo das esttuas inseria-se num debate mais alargado sobre a resemantizao urbana. Para isso, veja-se tambm os nmeros 4 (21 de Dezembro de 1974), 10 (8 de Fevereiro
de 1975) e 12 (22 de Fevereiro de 1975).
38
que implicava a eliminao da distncia que antes dava esttua a sua plausibilidade como imagem
de um regime.
Dentro da referida lgica de descolonizao, o governo de transio previu a recolha das esttuas
desmanteladas em museus, como futuros elementos de estudo da histria da ocupao colonial.
H vrios destes repositrios de estaturia colonial, que atestam de polticas semelhantes nas outras
novas naes lusfonas: o Forte do Cachu em Guin, a Fortaleza de So Sebastio em So Tom e
Prncipe, e a Fortaleza de So Miguel, em Luanda. Em Maputo, parte da estaturia portuguesa
encontra-se hoje no recinto do Museu de Histria Militar, situado na Fortaleza de Nossa Senhora da
Conceio11. Houve, no entanto, outros destinos para as esttuas derrubadas, que passarei
brevemente em revista.
11
A esttua equestre de Mouzinho de Albuquerque e os dois relevos laterais do plinto (Simes de Almeida e
Leopoldo de Almeida), nada se sabendo da alegoria feminina que estava frente do plinto; a esttua de
Antnio Enes de 1910 (Teixeira Lopes); e um busto, provavelmente um retrato de lvaro de Castro de Costa
Mota sobrinho, colocado em 1949 no Museu lvaro de Castro. A mesma sorte teve a esttua de Neutel de
Abreu (Euclides Vaz), inaugurada em 1956 em Nampula, hoje no museu da cidade.
12
Veja-se imagens em delagoabayworld.wordpress.com/category/coisas/estatuas-da-camara-municipal-lm/.
Nesta obra o indgena , semelhana da desaparecida figura alegrica do Monumento a Mouzinho,
figurada de forma particularmente paternalista, o que poder explicar este tratamento. No entanto, tambm
de notar que a figura de pedra, material mais frgil do que o bronze. Uma esttua de Vasco da Gama em
Inhambane, tambm em pedra, mostra, no entanto, j sinais claros de vandalismo intencional (veja-se imagens
em myafricanices.blogspot.pt/2006/04/inhambane-moambique.html).
13
Veja-se o testemunho do poeta Rui Nogar em Patrick Chabal, Vozes moambicanas: Literatura e
Nacionalidade (Lisboa: Vega, 1994), 160182. A estrofe citada de seguida do seu poema Aeroporto.
14
Apesar de seguirem cnones prximos ao realismo socialista (e consta que foram encomendadas na Coreia
do Norte), curioso notar nestas obras uma certa continuidade com os modelos estado-novistas ao nvel da
temtica herica, de figurao e pose, e dos prprios lugares.
39
Outras esttuas, pelo contrrio, mantiveram-se no seu lugar. o caso do Padro de Guerra, obra
comemorativa da interveno portuguesa em Moambique durante a Primeira Guerra Mundial,
inaugurada em 1935, da autoria do escultor Ruy Gameiro e do arquitecto Veloso Reis Camelo. A
preservao pode dever-se a razes prticas: ao contrrio das esttuas de bronze, esta uma
estrutura com mais de 14 metros de altura em pedra macia, que no poderia ter sido removida sem
danos irreversveis. Isto no impediu, contudo, a destruio de um padro semelhante em Luanda
(por Manuel Mendes e Henrique Moreira).
Mas tambm de notar que o Padro em Maputo (ao contrrio do que acontecia no Padro em
Luanda) das poucas obras de escultura pblica erguida em Moambique durante o regime do
Estado Novo que figura a populao sem paternalismos: nos relevos, soldados moambicanos
erguem a figura da ptria em p de igualdade com soldados metropolitanos. E possvel que hoje a
pesada retrica nacionalista da figura da ptria j no seja legvel como tal. Neste sentido, cita-se
uma interpretao frequentemente reproduzida em guias tursticos. Esta diz que a figura feminina
homenageia uma mulher que salvou a cidade, matando uma perigosa serpente num pote de gua a
ferver; interpretao que toma um fragmento de padro segurado pela ptria por pote e que se
apoia na presena de uma serpente direita da figura.
Estes processos de alterao semntica podem ser intencionais: em Bissau, o Monumento ao Esforo
da Raa foi rededicado aos Heris da Independncia, depois de retiradas as inscries originais e
colocada uma estrela de cinco pontas no topo. Tambm podem levar a reposies. Na ilha de
Moambique, as esttuas de Vasco da Gama e de Cames foram primeiro removidas como smbolos
da ocupao colonial, e mais tarde recolocadas por figurarem personagens historicamente ligadas
ilha.
15
Mia Couto, A derradeira morte de Mouzinho, in Cronicando (Lisboa: Caminho, 1991), 161163. As citaes
seguintes so daqui retiradas.
40
preferido representar no o heri das cargas de cavalaria e da captura do temido Gungunhana, mas
antes o romntico cavaleiro, nascido, segundo o prprio, no sculo errado, e que cedo se suicidou16.
Mas esta melancolia de ordem biogrfica no pode ser separada de outra, prpria das esttuas
postas de lado. Esttuas que, l-se num livro dedicado, precisamente, s memrias de Loureno
Marques, haviam perdido a cidade e clamaram por Justia, ignorantes da fragilidade da condio
humana e da subjectividade da interpretao da histria17. A esttua , assim, tambm um
monumento sua prpria queda, memria do imprio perdido. Tal como a runa, representa aquilo
que j no de certa forma um antimonumento, um espelho quebrado que reflecte o vazio que
sobra das fantasias de dominao.
No entanto, as leituras do monumento no se limitam necessariamente a tais alegorias de um
passado perdido e irrecupervel. De facto, na Fortaleza de Maputo, estas memrias convivem com a
valorizao patrimonial, turstica e cultural. Uma imagem do fotgrafo moambicano Jos Cabral
aponta, tambm, para a possibilidade de leituras menos melanclicas18. A imagem (Fig. 5) retrata o
filho do fotgrafo a subir um dos relevos do Monumento a Mouzinho. A persistncia e o peso do
passado colonial aparecem, na figura da criana, com uma quase ntima proximidade ao presente e
ao futuro. Parece que a fotografia nos diz que no possvel despachar a histria para o museu, mas
que a histria, marcando o presente, no o determina, deixando em aberto o futuro. Remete assim
para a ambgua esperana do narrador do conto de Mia Couto de que, aps a necessria morte
simblica da esttua, o povo moambicano seria finalmente capaz de construir, a partir das runas do
passado, o seu prprio futuro, sem ningum [lhes] dizer o que fazer.
A imagem de Jos Cabral ilustra como a esttua de Mouzinho pode continuar a desempenhar um
papel na visualizao no s do passado, mas tambm do presente. Os caminhos das esttuas
portuguesas poder-se-ia responder por fim a Antnio Lopes Ribeiro no se esgotaram na queda,
mas antes abriram-se a novos contextos, olhares e interrogaes.
16
Para uma viso histrica (e no mistificada) de Mouzinho de Albuquerque veja-se Aniceto Afonso,
Mouzinho de Albuquerque, o heri dos heris, in Histria de Portugal (Lisboa: Ediclube, 1993), IX: 255262.
17
Jos Alves Pereira, prefcio a Memrias de Loureno Marques: Uma viso do passado da cidade de Maputo,
de Joo Loureiro (Lisboa: Maisimagem, 2004), 2. ed., 7.
18
Este fotgrafo est tambm por laos biogrficos ligado esttua de Mouzinho: o neto do governadorgeral homnimo que em 1935 disponibilizara uma verba avultada no oramento da Colnia para completar o
fundo necessrio para a realizao do monumento.
41
42
Fig. 5 (no disponvel) Jos Cabral, Maputo, 2002. Fonte: Anjos urbanos (Lisboa: P4Photography, 2009)
43
BIBLIOGRAFIA
44
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para el concurso de catedra, no publicado, Barcelona, 1997, disponvel em
http://www.academia.edu/453848/Hacia_una_teoria_del_Arte_Publico
RIBEIRO, Jos Lopes. Requiem nos cais de Lisboa, in Resistncia 128, 15 de Junho de 1976: 6.
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Lpez. Madrid: A. Machados Libros, 2008, 3. edicin.
VERHEIJ, Gerbert. Monumentalidade e espao pblico em Loureno Marques nas dcadas de 1930 e
1940, dissertao de mestrado, Universidade Nova de Lisboa, 2011.
45
46
Elias, H. (2006) Sistemas de Arte Pblica das Administraes Centrais e Locais do Estado Novo em Lisboa:
sistemas de encomenda da CML em Lisboa, Tese de doutoramento, Universidade de Barcelona.
2
Elias, H.; Brito, V. (2006) Aco Cultural e Poltica do Esprito em Lisboa (1944-1959). Cadernos do Arquivo
Municipal, n. 8, CML AML, pp. 106-129.
3
Estas encomendas foram apelidadas de escultura de capote ou eskultura. Cf. Frana, J.-A. (1991) A Arte em
Portugal no Sculo XX, Bertrand Editora, p. 283.
4
Ver: 2. Momento: esttuas, bustos e motivos decorativos. Elias (2007) Op. cit., pp. 268-276.
5
Balnerios da Serafina e Alcntara (1949) e Parque Infantil de Monsanto (1944). Ver: Elias (2006) Ibidem, p.
248.
6
A DSUO reservou uma alnea especfica para o pagamento destes trabalhos, configurando um segundo
momento de aco municipal. Ver: Elias (2006) Aco Cultural e Obras Municipais: inscrio e denominao de
verbas, ibidem, pp. 204-207 e 241.
7
A inscrio regular desta verba tem origem numa medida municipal tomada na sequncia de uma petio de
um largo grupo de artistas e arquitectos no sentido de se salvaguardarem verbas para incluso de motivos
decorativos em edifcios de promoo municipal, abrangendo portanto habitao e equipamentos. Salvao
Barreto instaurou esta prtica por despacho de 20 de Maro de 1954. Ver: Agarez, R. (2009) O moderno
revisitado, Ed. CML, pp. 208-211 e Marques, Ins (2012) Arte e Habitao em Lisboa 1945-1965: Cruzamentos
47
48
uma praa de 80 m2, guarnecida com 12 esttuas, para a realizao de eventos solenes. Os
elementos eram pensados para conduzir o visitante a um espao de encenao, onde era
encaminhado ao lugar de memria que a praa constituiria. No entanto, em 1944, Salazar13 ordenou
que se reservasse o projecto para estudo futuro14 e mandou seguir a encomenda das 12 esttuas15.
Mais tarde, as esttuas destinadas ao arranjo da Torre de Belm foram expostas na exposio 15
Anos de Obras Pblicas (1948)16.
Com o despacho de Salazar, a localizao das esttuas ficou comprometida. A CML props, tambm
sem resultados, um estudo de Faria da Costa com outra disposio para as esttuas na rea do
monumento. Em 1952, o projecto da CAPOPI voltou a ser apreciado pelo MOP. Mas segundo a
DGEMN e a JNE, o projecto no privilegiava o monumento e nem respeitava a sua zona de proteco.
As esttuas foram ento sugeridas para a fachada do Palcio de Ultramar, projectado para a Praa do
Imprio. Entretanto, como este projecto demorava a ser aprovado, as esttuas foram armazenadas17.
Em 1967, a CML, ainda fez um estudo de impacto ambiental, simulando a colocao das esttuas
ao longo da Av. da ndia. A JNE sugeriu, na altura, uma consulta posterior mais detalhada, por se
tratar de uma zona de proteco de monumentos18.
A monumentalizao desta rea vinha sendo tambm discutida, por parte dos poderes pblicos, no
anteprojecto de urbanizao da Praa do Imprio e ZMB, em que era admitida a possibilidade da
construo do Padro dos Descobrimentos. A ideia seguia o desejo de Duarte Pacheco e poderia ser
uma soluo economicamente vivel para a comemorao dos quinhentos anos da morte do Infante
D. Henrique. Nos esbocetos, o Arq. Cristino da Silva ensaiou vrias solues para a implantao do
Padro mas numa delas este era substitudo pelo Monumento aos Heris da Ocupao Ultramarina,
projectado para a Praa do Areeiro. A hiptese foi discutida (JNE, DGEMN, CML) mas declinada. A
JNE e a DGEMN no concordaram tambm com a instalao do Padro frente Praa Afonso de
Albuquerque. A deciso recaiu ento sobre a soluo de uma localizao muito prxima da escolhida
para a primitiva construo (1940). O monumento foi inaugurado durante as Comemoraes
Henriquinas (1960). A zona ribeirinha de Belm ficou assim marcada por um elemento icnico da
Exposio do Mundo Portugus.
Nos ltimos anos do regime, a colocao do monumento travessia area do Atlntico-Sul (1972)
nos relvados da Torre de Belm motivou tambm a interpelao da JNE e da DGEMN CML. Como o
monumento se encontrava fora da rea de proteco da Torre de Belm, localizado em terreno
administrado pela CML, o assunto no foi continuado e o monumento, colocado.
13
Salazar actuou sobre os destinos de algumas encomendas (Padro dos Descobrimentos, Duarte Pacheco,
Nuno lvares Pereira ou III concurso do Monumento ao Infante D. Henrique).
14
Elias (2004) Op. cit.
15
Elias (2004) Ibidem.
16
Elias, (2004) Ibidem, idem. Sobre a exibio de esttuas sem critrio neste certame, J.G. Abreu refere: Como
segundo grande evento celebrativo do prprio regime (depois da Exposio do Mundo Portugus o drama) a
exposio, agora a tragdia, consumava, mostrava um cenculo de esttuas e a falta de propsito da
escultura ali apresentada, evidenciando a progressiva eroso do Estado Novo e o fim de poca da poltica de
esprito. Ver: Abreu, J.G. (2006) Escultura Pblica e Monumentalidade em Portugal (1940-1998): Estudo
Transdisciplinar de Histria da Arte e Fenomenologia Gentica, Dissertao de doutoramento, FCSH-UNL,
Segunda Parte Estudo Histrico, Captulo V 15 Anos de Obras Pblicas: Um Cenculo de Esttuas, pp. 149154.
17
Elias (2006) Op. cit., p. 404.
18
Elias (2006) Ibidem, p. 405.
49
4. Consideraes finais
Ao longo do Estado Novo, a feitura e localizao de elementos de arte pblica foi gerida a vrios
ritmos institucionais, com nfase na actividade consultiva dos rgos ministeriais e municipais
competentes. Os sistemas de arte pblica estavam estruturados para aprovar ou rejeitar a feitura e
localizao de propostas, impactando na concretizao de alguns trabalhos nos espaos pblicos. A
anlise das actividades exercidas pelos organismos intervenientes nas encomendas para a zona
marginal de Belm e suas transformaes urbanas associadas permite-nos perceber de que forma se
configuraram estes espaos de representao municipais e estatais do Estado Novo em Lisboa. O seu
exemplo ilustra o funcionamento das etapas decisrias dos sistemas de arte pblica e pode ser
extensvel a outras propostas realizadas, ou no, na capital. Este caso pe igualmente em destaque o
papel das instituies no desenvolvimento dos trabalhos, nomeadamente a importncia dos rgos
consultores na agilizao ou demora dos processos de gesto das encomendas e negociao dos
espaos a que eram destinadas. Os eventos ocorridos at ao advento da democracia mostraram que,
nesta rea, o trajecto das encomendas foi condicionado por dinmicas institucionais que alteraram o
seu destino e a respectiva configurao dos espaos a que estas estavam originalmente associadas.
50
51
52
53
Nota prvia: ao longo do estudo usaremos as seguintes formas de abreviao: ASF Arquivo do Santurio de
Ftima; GECA Grande Espao Coberto para Assembleias; SEAC Servio de Ambiente e Construes; UI
unidade de instalao.
1
Veja-se Peregrinao Aniversria de Outubro Dedicao da Igreja da Santssima Trindade. Santo Padre
envia o Cardeal Bertone como Legado Pontifcio, Voz da Ftima, agosto 13, 2007, 1.
2
O primeiro arquiteto a trabalhar a ideia foi Joo de Sousa Arajo (n. 1929) ao desenhar uma enorme
cobertura que se apoiaria em ambos os braos da colunata do recinto. Debaixo desta estrutura existiriam
compartimentos com essa funo de servir as grandes assembleias. Acerca desta soluo no levada a cabo e
considerada quase utpica, veja-se ASF. SEAC, 3 / 1966 / Projecto da Cobertura da Colunata Arq. Joo S.
Arajo / 3.4 / Ampliao do Santurio de Ftima; UI n. 5196; ASF. SEAC, Estudos da cobertura da colunata.
Arq. Arajo, 5.B.4.3. 1966-1967; UI n. 5197.
3
Veja-se Plano de construes para o Santurio, Voz da Ftima, dezembro 13, 1976, 4.
4
Construo do Centro Pastoral de Paulo VI, texto da conferncia de imprensa de apresentao do projeto,
de 7 de maio de 1979, 3.
54
para cerca de 10 000 pessoas de p; Centro Pastoral Paulo VI que ocupar[i]a o plo oposto
baslica5.
Avaliado distncia, percebe-se que este perodo fora de importante reflexo, fazendo maturar a
ideia que, dcadas mais tarde, leva publicao de um programa preparado pelo Servio de
Ambiente e Construes (SEAC)6 para subjazer ao concurso que seria aberto em junho de 19977.
Preparando os pressupostos que deveriam nortear a construo de uma nova igreja, o documento
traduz-se num projeto de programa para um edifcio de grandes dimenses que intitula Grande
Espao Coberto para Assembleias (GECA) e Outros Espaos8. realmente com base neste
documento que o Santurio se prope levar por diante a construo de um Grande Espao Coberto
para Assembleias, edificao que deveria responder s necessidades dos peregrinos de Ftima, e
a construo de um novo Presbitrio para o Recinto de Orao, tido como provisrio9.
Embora o Santurio se tenha munido de uma equipa interdisciplinar e tenha feito questo de
auscultar a comunidade que, potencialmente, viria a ser utilizadora do espao a construir, e no
obstante se ter munido de instrumentos vrios para essa auscultao, inclusivamente, a opinio dos
peregrinos, na abertura do concurso, efetuada atravs de um convite a 20 arquitectos, para uma
pr-qualificao10, ficaram hesitaes vrias, das quais d conta o rgo informativo da instituio:
quanto localizao, eram apontados dois espaos a zona da Praa Pio XII e a zona atrs da actual
Baslica; os elementos do SEAC no conseguiram tomar uma deciso, preferindo deixar a
resoluo desta questo para mais tarde, atravs da realizao de um concurso de ideias entre
arquitectos11.
data da publicao desta informao j se encontravam selecionados os arquitetos concorrentes
Alcino Soutinho (Porto), Carrilho da Graa (Lisboa), Gonalo Byrne (Lisboa), Jos Carlos Loureiro
(Porto), Alexandros Tombazis (Grcia), Gnter Pfeifer (Alemanha), Oscar Tusquets Bianca (Espanha),
Mrio Botta (Sua), Pedro Ramirez Vasquez (Mxico), e Vittorio Gregotti (Itlia) e o mesmo jornal
afirmava que haviam sido presentes nove propostas dos seguintes arquitectos: Mrio BOTTA,
Gonalo Sousa BYRNE, Joo Lus CARRILHO DA GRAA, Vittorio GREGOTTI, Jos Carlos LOUREIRO,
Gonter PFEIFER, Alexandros N. TOMBAZIS, Oscar TUSQUETS BLANCA e Pedro Ramirez VAZQUEZ. Os
leitores da Voz da Ftima eram ainda informados de que no tinha sido entregue a proposta
prevista do Arq. Alcino SOUTINHO e de que todos os concorrentes corresponderam, de modo
5
Leia-se a carta de 4 de agosto de 1978, da lavra do reitor do santurio, Luciano Gomes Paulo Guerra, fazendo
um convite muito empenhado [...] para uma visita respectiva exposio que estar aberta de 16 a 31 de
Agosto a fim de que o Santurio pudesse conhecer a opinio pblica acerca dos mesmos projetos; ASF.
SEAC, SEAC / Exposio de Anteprojectos / Agosto-Setembro / 1978-Fotos / 3.B.3.4.3.
6
Acerca deste servio do Santurio de Ftima, criado em 1974, veja-se Plano de construes para o
Santurio, 4.
7
A base programtica subjacente a este concurso, que se publica em 1996, beneficiou da colaborao do
Secretariado Nacional de Liturgia e de um corpo de arquitectos e outros tcnicos que contriburam para a
necessria interdisciplinaridade que uma obra dos incios do terceiro milnio teria de demonstrar: Maria Teresa
Gomes Ferreira, Luciano Coelho Cristino, Marinho Antunes, Manuel Clemente, Antnio Rego, Casimiro Rosa,
Edgar Fontes, Miguel Velho da Palma, Nuno Teotnio Pereira, Sebastio Formosinho Sanches, Manuel Alzina de
Menezes, Gasto da Cunha Ferreira, Antnio Ado da Fonseca, Eduardo Oliveira Fernandes, Carlos Barradas da
Silva, Vtor Pimentel, Ludwig Reiche e Instituto de Meteorologia; cf. Grande Espao Coberto para Assembleias
(GECA) e Outros Espaos: Projecto de Programa (Ftima: Santurio de Ftima, junho de 1996), 3-4.
8
Grande Espao Coberto para Assembleias (GECA) e Outros Espaos: Projecto de Programa.
9
Nova baslica para o ano 2003. Conhecidos os arquitectos concorrentes, Voz da Ftima, outubro 13, 1997, 1.
Ainda que, nesta fase preliminar, se quisesse levar por diante a construo de um novo presbitrio para o
recinto de orao, essa ideia ser abandonada e seguir por diante apenas a nova igreja que, maneira de
profecia, j aqui era chamada de baslica, ttulo que s veio a auferir a partir de junho de 2012 (veja-se a edio
do mesmo jornal, Voz da Ftima, agosto 13, 2012, 1).
10
Nova baslica para o ano 2003. Conhecidos os arquitectos concorrentes, 1.
11
Idem.
55
geral, s exigncias do Programa12. Destes nomes, apenas Gonalo Byrne, Oscar Tusquets Blanca e
Alexandros Tombazis13 foram entendidos como autores [] susceptveis de melhor poderem
desenvolver um trabalho futuro14, pelo que foram convidados a explanar as suas propostas numa
fase final, da qual sairia vencedor, como noticiava a 13 de janeiro de 199915, o arquiteto grego
nascido em 1939.
A deciso do jri revelou-se pouco consensual, no s no seio da comunidade de arquitetos
nacionais16, como no seio de alguns membros da hierarquia catlica17 e de algumas franjas da Igreja
que, inclusivamente, leram no edifcio caractersticas pantestas18. Pelo mesmo jornal podemos
conhecer a apreciao do projeto19: transcrevendo meia dezena de comentrios de alguns dos
assessores de especialidades, o texto fazia uma breve descrio que de seguida tomamos:
Alexandros Tombazis prope uma construo em forma circular, cuja cobertura centralmente
marcada e apoiada por duas grandes vigas paralelas. A implantao feita na zona da Praa Pio XII,
no interior de um amplo ptio rebaixado. A forma radial do interior do edifcio garante uma boa
visibilidade a todos os participantes entre si e centraliza as atenes no altar, o que confere unidade
e coerncia ao espao.20
Embora no seja uma apreciao muito desenvolvida, parece-nos que se encontram nela as linhas
fundamentais que contriburam para a escolha do projeto: entre outros aspetos, a avaliao, quase
sempre de ordem tcnica, sublinhava o facto de a proposta de Tombazis revelar, de um modo muito
clarividente, um sentido de igreja que se materializava numa forma circular e no consequente
movimento de apreenso do espao gerado pela forma radial, na boa visibilidade a todos os
participantes entre si, mostrando-se materializao da assembleia reunida, mas centraliza[ndo] as
atenes no altar21 que a pea chave de cada templo construdo, em primeira anlise, para a
reunio da Liturgia que , segundo o credo catlico, ao mesmo tempo, banquete e sacrifcio.
12
Santurio de Ftima concurso internacional de ideias. Localizao da nova baslica ser na zona da praa
Pio XII?, Voz da Ftima, abril 13, 1998, 1.
13
Os projetos podem ser avaliados atravs da publicao que deles se faz em Arquitectura Ibrica. Igreja da
Santssima Trindade Ftima. Holy Trinity Church. Iglesia de SSma Trinidad (setembro de 2007): 20-31.
14
Santurio de Ftima concurso internacional de ideias. Localizao da nova baslica ser na zona da praa
Pio XII?, 1.
15
Arquitecto grego venceu concurso para nova baslica de Ftima, Voz da Ftima, janeiro 13, 1999, 3.
16
Poderemos abonar tal opinio atravs da voz do arquitecto Sebastio Formosinho Sanches, membro do
Jri que se insurge contra a medida [da consulta popular efectuada pelo Santurio sobre a proposta
vencedora] por acentuar a divergncia de opinio, como se pode conferir em Alberto Jorge dos Santos
Nogueira Estima, Arquitectura religiosa em Portugal na poca contempornea: 1936-1996 (Dissertao de
doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006, 682), e da bastonria da Ordem dos
Arquitetos, Olga Quintanilha, que tambm critica o resultado do concurso (Estima, Arquitectura religiosa em
Portugal na poca contempornea: 1936-1996, 682).
17
Tambm de dentro da Igreja soaram vozes discordantes: D. Eurico Dias Nogueira, Arcebispo de Braga, D.
Antnio Monteiro, Bispo de Viseu, D. Manuel Martins, ex-Bispo de Setbal, D. Gilberto Reis, Bispo de Setbal,
D. Janurio Torgal Ferreira, secretrio da Conferncia Episcopal, a Juventude Operria Catlica, o Centro de
Reflexo Crist [...], Estima, Arquitectura religiosa em Portugal na poca contempornea: 1936-1996, 682.
18
Produziu-se alguma literatura, sobretudo em fruns da Internet, que comparava a nova igreja de Ftima ao
monumento megaltico Stonehenge. Veja-se o seguinte documento: Andreas Maehlmann e Daniel Fringeli, On
the Way to the Unified World Religion: A New Fatima, Streitpunkt-Fatima, consultado em julho 28, 2012,
http://www.streitpunkt-fatima.de/home/pages/100-05-Der_Neubau_in_Fatima/100-05_bilder/Englisch11.pdf.
19
Respeito pelo espao e pelas pessoas, Voz da Ftima, janeiro 13, 1999, 3.
20
Idem.
21
Destacmos, do texto anteriormente citado, as expresses que consideramos chaves justificativas da escolha
do projeto de Tombazis.
56
22
Veja-se Vera Lcia de Sousa Rita, A Igreja da Santssima Trindade: espao religioso contemporneo
(Dissertao de mestrado, Departamento de Arquitetura da Faculdade de Cincias e Tecnologia da
Universidade de Coimbra, 2010).
23
Por encontrar que da anlise conceptual do projeto da nova baslica ressalta a sua forma circular, Alberto
Estima opera, quando da anlise deste espao na sua tese doutoral, um excurso, bem conduzido, acerca desta
forma simbolicamente entendida como perfeita. Vejam-se as pp. 679681 da sua dissertao Arquitectura
religiosa em Portugal na poca contempornea: 1936-1996. Embora o autor no acentue o aspeto de a planta
se revelar um desenho conciliar, este fundamenta com bastante interesse a evoluo histrica da planta
circular recorrendo, nomeadamente, a Carlos Borromeu e a Francisco de Holanda. O autor utiliza tambm o
que teoriza o historiador da arte Paulo Varela Gomes acerca da planta centrada na experincia arquitetnica
do sculo XVII portugus e que pode ser lido, entre outros trabalhos seus, em Arquitectura, Religio e Poltica
em Portugal no Sculo XVII: A Planta Centralizada (Porto: FAUP publicaes, 2001).
24
Nuno Higino, A substncia dos sonhos a luz, in As Cidades de lvaro Siza (Porto: Figueirinhas, 2001).
Pode, contudo, dizer-se que h uma relao entre as diretrizes da Sacrosanctum Concilium (constituio
conciliar sobre a Liturgia sada em 1963) e a planta centralizada, como se v nas experincias arquitetnicas
colhidas por Joo Lus Marques, Na casa do Meu Pai h muitas moradas Jo 14,2. Reflexes em torno da
organizao do espao litrgico numa Igreja em mudana. Experincias portuguesas no sc. XX (Dissertao
de doutoramento, Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, 2004-2005). No subsdio que o
Santurio editou como projeto de programa construo, dizia-se claramente: qualquer que seja o lugar que
o fiel ocupe, ele tem de sentir a unidade da assembleia. No sendo uma frase que, em absoluto, se possa
conotar com a planta centrada, parece-nos que ela espelha uma ideologia que expressa a importncia dos
convivas que celebram o banquete ao redor do altar.
25
Arquitecto grego venceu concurso para nova baslica de Ftima, 3.
57
iluminao artificial) de forma a dar prioridade ao uso daqueles, tanto quanto isso for possvel, antes
de fazer intervir as energias comerciais26.
J finalizada a construo, pode, com propriedade, avaliar-se a obra de arquitetura, inclusivamente,
na sua capacidade de dilogo com as obras de arte nela integradas, entregues a artistas de renome
internacional. Na entrada principal, os painis superiores e a porta axial, de bronze, foram criados
pelo artista plstico portugus Pedro Calapez (n. 1953), o tratamento a lembrar o trabalho de vitral
da mesma entrada principal, de vidro, pelo canadiano Kerry Joe Kelly (n. 1945), os carateres
epigrafados nas restantes portas de bronze foram desenhados pelo portugus Francisco Providncia
(n. 1961) e a escultura que o prtico de entrada sustenta foi encomendada a Maria Loizidou (n.
1958), escultora do Chipre. No interior da baslica, o crucifixo previsto para presidir ao espao da
autoria de Catherine Green, artista irlandesa, e a imagem da Virgem de Ftima, no presbitrio da
baslica, cujo painel do fundo foi assinado pelo padre jesuta da Eslovnia Marko Ivan Rupnik (n.
1954), saiu do escopro de Benedetto Pietrogrande (n. 1948), escultor italiano. Previu-se tambm um
painel de azulejos na galil dedicada aos apstolos So Pedro e So Paulo da autoria do arquiteto
portugus lvaro Siza Vieira (n. 1933); a esttua do Papa Joo Paulo II, j no exterior da baslica, foi
modelada por Czeslaw Dzwigaj (n. 1950), escultor polaco, e a Cruz Alta, no adro do templo, foi
riscada pelo alemo Robert Schad (n. 1953).
A tnica para a escolha dos autores foi colocada, para alm da qualidade comprovada e
internacionalmente reconhecida dos eleitos, na diversificada origem dos artistas recrutados nos mais
diversos pases. O projeto de iconografia, em maturao, pelo menos, desde 2001, altura em que se
constituiu um grupo para dar os primeiros passos no sentido de definir os assuntos icnicos a
inscrever na nova igreja27, embora no venha a seguir as propostas dele dimanadas, vir a acentuar a
forte carga simblica da forma circular que se recorta por treze vezes nas entradas dedicadas a Cristo
e aos Apstolos, aqueles que espalharam a f pela universalidade do orbe, e acentuar, sobremodo,
a temtica da adorao a Deus, topos umbilicalmente ligado mensagem de Ftima.
Desde a configurao da planta at incorporao dos diferentes temas artsticos que pontuam o
templo, a baslica assume-se, efetivamente, como metfora da tenda da adorao, se quisermos
servir-nos da linguagem veterotestamentria, consagrada ao Deus Uno e Trino28. O peregrino, antes
de passar a porta principal, dedicada a Cristo, recebido por anjos que, sobrevoando a prumada das
duas grandes vigas da baslica, convidam: venite, adoremus Dominum. A escultura de Maria
Loizidou feita de rede de ao, que se projeta no espao consoante a luminosidade do dia, bem a
voz da Igreja a fazer eco da mensagem contida na Escritura e lembrada nas vises de Ftima, e faz-se
antecmara do espao interior destinado reunio da assembleia adoradora estabelecida junto do
altar do banquete sacrificial de Cristo, vivido, sobremodo, na celebrao eucarstica. Segundo a
doutrina crist, esse banquete rene a Igreja peregrina sobre a terra, a Jerusalm terrestre,
alimentada do Cordeiro Pascal. A igreja inaugurada noventa anos aps as aparies tambm sinal
deste pensamento, porquanto nela se rene assinalvel multido congregada numa grande praa de
cidade que, para alm da entrada consagrada a Cristo, tem doze portas dedicadas ao colgio
apostlico, a fazer ecoar essoutra cidade de doze portas e de outros tantos fundamentos29.
Este tema da cidade santa congregada em torno da adorao do Cordeiro , com efeito, o tema
mximo exposto na baslica dedicada Trindade, desenhado de forma visual no grande ecr de cor
aurfera que se faz cenrio da reunio. O painel de terracota dourada assume-se imagem,
precisamente, dessa Jerusalm celeste adoradora do Cordeiro Pascal, figurado ao centro, num trono
26
Idem.
Veja-se o Memorando do Servio de Ambiente e Construes (Seac) acerca do Grupo de Arte para o GECA
(GRUARG).
28
Veja-se Fausto Sanches Martins, Iconografia do mistrio da Santssima Trindade (Lio de sntese para
Provas de Agregao, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005).
29
Veja-se o Livro do Apocalipse 21,12, sobre as doze portas e 21,14, sobre os doze fundamentos da cidade.
27
58
sobre a porta santa que contm grafado que Cristo o primeiro e o ltimo, o alfa e o mega. Do seu
trono, como nas antigas representaes da histria da arte crist, saem guas vivas que fazem brotar
vicejante flora, ali figurada na mesma cor do ouro. Completamente ciente da tradio da arte
paleocrist, Marko Ivan Rupnik, com essa tonalidade, proclama a sacralidade da multido dos
representados que, ao deixarem iluminar-se pela luz do Cordeiro, merecem agora habitar a morada
celeste. Fazendo uso do relato no Livro do Apocalipse, o autor representa a multido de p, formada
por incontveis santos e santas de todos os sculos, inclusivamente dos sculos XX-XXI30, e presidida
pelo ltimo adorador do Antigo Testamento, Joo Batista, e, completando o tema da Deisis, pela
primeira adoradora do Novo Testamento, a Virgem Maria, ali desenhada segundo a iconografia de
Ftima31.
O espao destinado a essa grande assembleia reunida alberga, na totalidade, 8633 lugares que,
conforme as circunstncias de celebrao, se poderiam fazer diminuir para 317532, possibilidade que,
uma vez mais, entronca na linha de pensamento da modernidade que prev se jogue com os espaos
de acordo com a necessidade de um especfico momento.
A textura exterior do edifcio, afagada na pedra de cor branca33, apenas interrompida pelo desenho
das duas enormes vigas que permitem se prescinda de qualquer apoio interior como colunas ou
pilares para sustentao de uma cobertura de 125 metros de dimetro, ajudar a suavizar o enorme
volume, que se implantou na praa Pio XII e que, embora de uma forma bem integrada, fechou a
enorme praa do recinto de orao que, em nosso entender, detinha, naquele ponto, comum ao
urbanismo da praa barroca, uma das suas caractersticas mais relevantes. Contudo, o risco de
destruir essa praa dos meados do sculo XX foi magistralmente calculado, porquanto as vigas fazem
esse prolongamento at ao infinito, o que tpico da urbanstica barroca.
Levado concluso o arranjo urbanstico do lugar, a nova baslica ficou a mediar o recinto de orao
que termina na praa Pio XII e a rea do Centro Pastoral de Paulo VI, que iniciar na futura praa
Joo Paulo II espaos que previsivelmente acolheram as esculturas dos papas e do bispo que,
provisoriamente, dali saram34 e aos quais se juntou a escultura de Joo Paulo II. As capelas da
reconciliao do complexo desenhado por Alexandros Tombazis, tal como o plano previa, no tm
expresso volumtrica, pois so totalmente subterrneas, situadas sob a praa que antecede o adro.
Tambm este facto de serem subterrneas se pode entender como simblico, tratando-se de
espaos destinados ao sacramento que, segundo a doutrina catlica, liberta do mal. No haver
dvidas de que, estando o projeto cumprido e verificando-se a planeada soluo de o santurio se
impor via de trfego automvel que separava o santurio do centro pastoral, a baslica da
Santssima Trindade se constitui como um novo centro visual que, contudo, no rivaliza com os
outros espaos do santurio, antes com eles dialoga.
30
Entre estes, alm dos beatos Francisco Marto (1908-1919) e Jacinta Marto (1910-1920) e da serva de Deus
Lcia de Jesus (1907-2005), encontram-se o Padre Pio (1887-1968) e a Madre Teresa de Calcut (1910-1997).
31
Retomamos o que escrevemos acerca da leitura da baslica feita em chave de adorao: Marco Daniel
Duarte, Da iconografia mediao: a arte como narrativa e como elemento da adorao (Atas do Simpsio
Adorar Deus em esprito e verdade. Adorao como acolhimento e compromisso, coordenao de Vtor
Coutinho, Ftima, 2011), 291-321.
32
O setor 1, tambm chamado, na documentao inicial, de GECA 1, tem a capacidade de 3175 lugares
sentados, incluindo 58 para peregrinos com necessidades especiais de locomoo; o setor 2 (GECA 2) tem 5458
lugares sentados, onde se incluem 18 especificamente preparados para os peregrinos com capacidade motora
reduzida.
33
Sobre a importncia da cor branca no revestimento, veja-se a explicao de Luciano Guerra no dia da
adjudicao da 1. empreitada da obra: Luciano Guerra, Baslica da Santssima Trindade Janeiro 2004
Adjudicao da 1. empreitada: Discurso do Reitor do Santurio, Santurio de Ftima, consultado em junho 6,
2011, http://www.santuario-fatima.pt/portal/index.php?id=1356.
34
Falamos das obras de Joaquim Correia (1920-2013), Paulo VI e D. Jos Alves Correia da Silva, e de Domingos
Soares Branco (1925-2013), Pio XII.
59
No obstante as crticas de que fizemos eco, a construo inaugurada em 2007 parece ter
conseguido responder bem expectao que dela dimanava: a grande expectativa para o incio do
milnio agora, de algum modo, a nova igreja-santurio de Ftima35. O mesmo autor continuava:
veremos se esta obra, to simblica em vrios planos, assumir uma superior dimenso, uma
capacidade de inovao e de renovao na sua proposta de grandioso espao sagrado36. A fortuna
crtica do templo37 parece demonstrar que a qualidade da baslica da Santssima Trindade foi,
efetivamente, capaz de enobrecer a Arquitectura Religiosa contempornea38.
Espao concebido para o culto catlico, a sua dimenso psicolgica, em consequncia das razes
espirituais, mas tambm artsticas, ultrapassa em muito a sua primordial funo cultual, tendo-se
tornado uma das edificaes mais visitadas de Portugal e, no s por isso, na nova imagem de
Ftima, beneficiando de uma coerncia de contedo que bem se adapta paisagem urbana e
paisagem semntica onde toma implantao.
35
Veja-se Jos Manuel Fernandes, Arquitectura religiosa, in A Igreja e a Cultura Contempornea em Portugal:
1950-2000, coordenao de Manuel Braga da Cruz e Natlia Correia Guedes (Lisboa: Universidade Catlica
Portuguesa, 2001), 43. Fizemos uma recenso crtica a este artigo publicada em Estudos. Revista do Centro
Acadmico de Democracia Crist, Nova Srie n. 1 (2003, 205-211).
36
Fernandes, Arquitectura religiosa.
37
O imvel foi distinguido com o Prmio Secil de Engenharia Civil 2007, promovido pela Secil Companhia
Geral de Cal e Cimento, SA e pela Ordem dos Engenheiros de Portugal, atribudo em abril de 2008, e o Prmio
Outstanding Structure 2009, atribudo pela Associao Internacional para a Engenharia de Pontes e Estruturas
(IABSE), em setembro de 2009.
38
A opinio de Alberto Estima que, embora se mostre mais favorvel soluo apresentada a concurso por
Gonalo Byrne, reconhece a valia da baslica que veio a ser construda (Estima, Arquitectura religiosa em
Portugal na poca contempornea: 1936-1996, 686).
60
Fig. 1 Maqueta do recinto do Santurio de Ftima com a implantao da baslica da Santssima Trindade
(Arquivo Fotogrfico do Santurio de Ftima)
Fig. 2 Fachada principal da baslica da Santssima Trindade com a Cruz Alta, de Robert Schad, com a porta e
painis dos Mistrios do Rosrio, de Pedro Calapez, e a porta de vidro de Kerry Joe Kelly
(Arquivo Fotogrfico do Santurio de Ftima)
Fig. 3 Vista da baslica de Nossa Senhora do Rosrio a partir do trio da baslica da Santssima Trindade, junto
escultura Venite, adoremos Dominum, de Maria Loizidou (Arquivo Fotogrfico do Santurio de Ftima)
61
FONTES DOCUMENTAIS
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associ-lo e responsabiliz-lo pela apropriao ou recusa da obra de Arte Pblica que venha a ser
produzida com os seus capitais privados.
Alm disso, olhar para a Arte Pblica como um investimento que ter de dar retorno financeiro
demasiado perigoso, e corre-se o risco de deturpar o conceito de Arte Pblica ou de pr em causa o
retorno do investimento. Uma obra de Arte Pblica realizada tendo em conta os seus visitantes. Ou
seja, no se escolhem os materiais pela sua durabilidade mas sim pelo impacto que o artista deseja
provocar ou ainda pelos media que escolhe para criar a sua obra. Podemos estar a falar de um grafiti
que tem a sua durabilidade limitada, ou ainda de uma pea de teatro de rua que tem carcter
efmero. O investimento em Arte Pblica contempornea dificilmente responde s habituais
premissas dos mercados da arte.
Mas investir em Arte Pblica com capitais privados, sem ter em conta o lucro com a sua alienao, ou
apoios mecenticos a artistas ou instituies especficas, possvel atravs da figura da
Responsabilidade Corporativa das empresas.
Muito se fala hoje em sustentabilidade, em sustentar os negcios das empresas, mantendo-os
saudveis comercialmente, respeitando o meio ambiente, assegurando a segurana e a sade de
todos os envolvidos, respeitando as comunidades em que se inserem e ajudando a manter a herana
cultural das mesmas.
Para que isso acontea, e as empresas possam desenvolver na sua estrutura uma responsabilidade
Cultural Corporativa, precisam de definir os seus objetivos, e traar a estratgia de implementao.
Para esse efeito sugere-se que escrevam o seu compromisso numa poltica, que os defina, e regulem
as aes para os alcanar.
Depois disso ser necessrio estabelecer o oramento para o investimento neste tipo de
responsabilidade cultural, e como obt-lo:
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A actividade social chamada comrcio, por malvista que esteja hoje pelos teoristas das
sociedades impossveis, contudo um dos dois caractersticos distintivos das sociedades
chamadas civilizadas. O outro caracterstico distintivo o que se denomina cultura. Entre o
comrcio e a cultura houve sempre uma relao ntima, ainda no bem explicada, mas
observada por muitos. , com efeito, notvel que as sociedades que mais proeminentemente
se destacaram na criao de valores culturais so as que mais proeminentemente se
destacaram no exerccio assduo do comrcio.1
Fernando Pessoa
Nela foi colocada a hiptese de realizar uma programao artstica para centros comerciais,
sustentada num documento resultado final da dissertao A Poltica de Arte Pblica para a Sonae
Sierra, gestora de Centros Comerciais que inspira e rege o processo. Esse documento define Arte
Pblica na perspetiva corporativa da empresa, mas partindo do estudo terico de artistas como Siah
Armajani (atravs do seu Manifesto para a Escultura Pblica) e de pensadores como Habermas. Falta
coloc-la em prtica e avaliar os seus resultados.
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Existe ainda uma soluo mista de Sponsoring com Autofinanciamento: Venda de livros com a
histria da escolha da obra e com reportagens sobre arte pblica portuguesa editada e publicada
pelo Jornal Nacional parceiro.
Em jeito de concluso, a Responsabilidade Corporativa Cultural tem de nascer mesmo em contextos
econmicos desfavorveis, no pode estar dependente de variveis como a moda ou as tendncias
de marketing. A falta de Cultura da populao faz que esta no esteja preparada para entender, em
toda a sua plenitude, as outras dimenses da Responsabilidade Corporativa Social e Ambiental.
So os fatores Culturais que estruturam a nossa identidade e histria enquanto nao ou comunidade. O paradigma de apoio s Artes por entidades privadas tem evoludo ao longo do tempo:
comeou-se com o Mecenato, seguiu-se o Marketing Cultural e hoje fala-se da Responsabilidade
Cultural.
Este paradigma contemporneo no utiliza a Arte e a Cultura para fins promocionais ou de
comunicao. Preconiza o envolvimento da sociedade civil na criao cultural. Esta dimenso investe
na Arte visando o desenvolvimento da prpria sociedade e no no resultado econmico. As
empresas cidads que investem na Responsabilidade Cultural tm um papel social nas comunidades
alm da criao do emprego, ou da contribuio para o produto nacional. Participam na construo
de cidades e comunidades. O seu ponto central o funcionamento da sociedade e a
responsabilidade dos agentes empresariais, e no a Arte ou o artista. Em situaes econmicas
menos favorecidas as empresas podem colaborar com os seus recursos alm dos financeiros.
O Marketing trabalha os clientes, a Responsabilidade Corporativa trabalha as comunidades, e deixa
de ser uma moda da gesto estratgica das empresas para ser uma obrigao moral, civil e tica
perante as partes interessadas no negcio, incluindo a nossa microesfera pessoal. A gesto de
empresas tem de tomar conscincia de que a no atuao nesta matria, seja ao nvel ambiental,
social ou cultural, ter repercusses negativas na sua prpria famlia e amigos. Todos partilhamos o
mesmo planeta e a mesma sociedade civil. Quanto mais a sociedade estiver informada e estimulada
pela Arte e pela Cultura, mais cvico poder ser o seu comportamento.
A Cultura promove a educao, refora a identidade e o sentido de pertena, provoca externalidades
positivas nos outros sectores da economia, refora a coeso social, enriquece as pessoas e reflete o
nosso passado. O papel do Estado nestas funes tem-se demonstrado inoperante. Perante isto, a
responsabilidade de apoio a estas causas, via apoio do terceiro sector, fica nas mos das famlias e
das empresas.
A aplicao de uma poltica de Arte Pblica para Centros Comerciais pretende enriquecer com Arte
estes edifcios com vocao comercial, tornando-os mais identitrios, mais relacionais e mais
histricos.
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Fig. 2 Pormenor da base da obra Eva Break com texto dos participantes
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Fig. 5 Last Ride II, pelo artista de arte urbana Mr Dheo em 2013 no Gaia Shopping
71
Investigadora integrada do CHAM UNL/UA onde, neste momento, desenvolve um projecto ps-doutoral
intitulado Entre a utilidade e o deleite: o patrimnio txtil na Casa de Bragana (sculos XVI-XVIII), na
qualidade de bolseira da Fundao para a Cincia e a Tecnologia (SFRH / BPD / 76288 / 2011).
2
Segundo Afzal Ahmed, os portugueses transaccionavam cerca de 80 a 90 variedades de tipos de tecidos
indianos; cf. Ahmed, Indo-portuguese Trade, 91. A propsito da diversidade de provenincia de artigos txteis
vindos da ndia para Lisboa recorde-se, apenas a ttulo de exemplo, uma das listas da fazenda embarcada na
nau Gara que parte de Goa em 1559: Arquivo Nacional Torredo Tombo (Lisboa), Cartrio Jesutico, mao 80,
Doc. 42 publ. por Pinto, Um Olhar sobre a Decorao e o Efmero no Oriente, 237-254.
3
Sobre os algodes indianos exportados para a Europa, cf. Riello e Parthasarathi, ed. The Spinning World, em
particular os ensaios de Giorgio Riello The Globalization of Cotton Textiles: Indian Cottons, Europe, and the
Atlantic World, 1600-1850 e de Beverly Lemire, Revising the Historical Narrative: India, Europe, and the
Cotton Trade, c. 1300-1800; Giorgio Riello e Beverly Lemire. East & West: Textiles and Fashion in Early
Modern Europe, Journal of Social History, 41:4 (2008): 887-916; Rosemary Crill, ed. Textiles from India: The
Global Trade. Calcut/Londres: Seagull Books, 2006.
4
Ainda assim, cf. por exemplo o j citado estudo de Ahmed e o de Cunha, Economia de um Imprio.
5
Atente-se nos importantssimos e incontornveis mananciais que constituem os escritos de Tom Pires,
Duarte Barbosa, Garcia de Orta e de Antnio Bocarro respectivamente, a Suma Oriental (1515), O livro de
Duarte Barbosa (1518), Colquio dos simples e das drogas (1563) e o Livro das Fortalezas (1635) em cujos
contedos se traam os principais centros de produo e as mercadorias neles transaccionadas, ao mesmo
tempo que indicam protagonistas, circuitos, preos e tipos de permutas ento vigentes.
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Por outro lado, o epteto da ndia, que tantas vezes acompanha estas peas, em nada facilita o
trabalho de reconhecimento das respectivas provenincias, dada a elasticidade geogrfica que lhe
subjaz, ao compreender um vastssimo territrio asitico que em muito ultrapassa as estritas
fronteiras do subcontinente indiano. Tal abrangncia com alguma facilidade perceptvel na medida
em que, muito embora a expresso possa ser utilizada de modo autnomo a mesma surge tambm,
e por vezes em simultneo, associada a outras indicaes, essas sim bem mais explcitas. Um bom
exemplo do que acabamos de assinalar pode encontrar-se no inventrio da guarda-roupa de D.
Manuel I (1469-1521), datado de 1522, no qual, entre os muitos panos da ndia arrolados, se
distingue uma cortina de oratoreo de huu pano de brocado da Imdia que veo dOrmuz6. Tambm na
carta de partilhas de D. Ana de Atade (c. 1560 -?), realizada em 1626, aps a morte do seu marido,
D. Henrique de Portugal (c. 1545-1625), comendador de Santa Maria de Pernes, surgem diversas
referncias a artigos da Jmdia como esteiras, peas de mobilirio e colchas. Deste conjunto merece
destaque um ncleo de quatro alcatifas de estrado e de mesa da Jmdia de dias ou do dias7,
designao alusiva, com toda a probabilidade, a Odias ou Yazd, uma das principais cidades iranianas
em conjunto com Kirman, Ispao e Khurasan fornecedoras de tapetes para Portugal8. Diferente
registo, que aponta j para outras longitudes e permite confirmar a manuteno e validade da
referida expresso na viragem do sculo XVII para o XVIII, -nos oferecido pelo inventrio dos bens
de D. Lus de Lencastre, conde de Vila Nova de Portimo, feito no ano da sua morte (1704) e no qual
se identifica a meno a uma Colcha da India tambm da China9.
s dificuldades assinaladas acresce o facto de as aluses a tantas terras asiticas amide apensas aos
tipos de fazenda registados nas listas de carga ou nos inventrios de bens, como Bengala, Cambaia,
Sinde, Malaca, Cochim ou Macau, nem sempre garantirem uma origem segura, se atendermos que
estes artigos so constantemente deslocados e empregados como moeda de troca na aquisio de
muitas outras mercadorias. Ainda assim, atravs do cruzamento das informaes que dimanam da
documentao e das obras remanescentes afigura-se possvel reconhecer todo um conjunto de
indicaes concernentes s suas particularidades intrnsecas, como o caso da cromia, das
tecnologias de fabrico e matrias-primas dominantes na sua feitura, das solues ornamentais que
as enriquecem, assim como acerca da sua morfologia e funcionalidade. nossa convico de que,
atravs de um trabalho devidamente orientado para a sistematizao e anlise das caractersticas
que enformam este tipo de patrimnio, se poder, por fim, constituir agrupamentos com base nas
especificidades identificadas e, consequentemente, mapear as culturas e geografias implicadas na
sua manufactura dentro daquele que constituiu o vastssimo territrio asitico marcado pela
presena portuguesa. Este decerto um exerccio complexo e moroso mas indispensvel10, tanto
mais quando se trata de uma regio onde a produo txtil assume uma expresso de excelncia,
sem paralelo, em termos de diversidade de opes e de centros de fabrico, que no se extingue na
mais convencional atribuio de uma provenincia indiana, chinesa ou persa porventura as
principais mas no decerto as nicas zonas fornecedoras de artigos txteis asiticos aos portugueses.
Na impossibilidade de, por ora, dispormos da informao supramencionada, o presente estudo
incide no modo plural como os artigos txteis asiticos, de mltiplos e distintos perfis artsticos,
foram apreendidos pela sociedade portuguesa. Enquadrvel numa perspectiva de abordagem
distinta, mas complementar, daquela que subjaz ao conhecimento dos artigos transaccionados, esta
tambm para ns uma questo seminal no mbito do fenmeno subsequente introduo massiva
de txteis extra-europeus em Portugal (e na Europa). To importante como estabelecer o sistema de
circulao e comercializao destes bens ou reconhecer e caracterizar este universo material nas
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11
74
colchas, cobertores e cortinados, dominados pela figurao de aves e flores16. A adopo de txteis
asiticos de forma to aparentemente transversal pela estratigrafia social portuguesa depressa se
repercute no quotidiano sacro17 e civil nacional, a emergindo como opo frequente na animao
dos interiores das habitaes, dos templos e da prpria urbe, ou no vesturio coevo passando a
elencar os lotes das mercadorias, poca, mais estimadas e vendveis em Portugal18.
Sabemo-lo atravs da leitura das visitaes19, dos inventrios de bens e de partilhas, testamentos e
dotes ou processos inquisitoriais, cujos arrolamentos incluem, a ttulo bastante regular, obras
provenientes da sia. No menos ilustrativas, conquanto que menos exploradas deste ponto de
vista, so as narrativas de acontecimentos extraordinrios sacro-profanos que marcaram a histria
portuguesa no perodo moderno, como aquelas acerca das quais tivemos oportunidade de nos
ocupar noutra sede20. Na generalidade, estas relaes, pela natureza e finalidade que lhes subjaz,
encerram importantes informaes, que no estritamente de foro contabilstico, oferecendo uma
dimenso interpretativa da realidade que, de certo modo, escapa aos outros tipos de documentao
citados: aquela respeitante no estrita existncia dos objectos mas sua vivncia e fruio num
determinado contexto. No obstante o facto de as descries traduzirem vises truncadas da
realidade portuguesa, na medida em que se circunscrevem a momentos excepcionais no quadro
daquele que se constitui como o quotidiano nacional, as mesmas facultam preciosos elementos
acerca dos protagonistas, das ambincias recriadas, assim como sobre o relacionamento das pessoas
com os objectos que as rodeiam, aspecto em discusso no presente texto.
No caso concreto do universo artstico que nos interessa, o dos txteis, estas fontes renem informes
que permitem compreender melhor o modo como os portugueses reagem perante a sua presena e
as suas particularidades, designadamente daqueles de origem asitica. Nesse sentido, e no mbito da
mincia com que na globalidade se descrevem as solues ornamentais adoptadas nos diferentes
quadros festivos, permitimo-nos assinalar trs aspectos que sobressaem da anlise realizada a um
conjunto de cerca de cem textos: o incontornvel protagonismo dos txteis e a inerente estima dos
portugueses por este domnio artstico; a incidncia dos discursos compulsados nos espcimes
procedentes da sia em detrimento daqueles europeus (raras vezes distinguidos); a meno
explcita, nos documentos, a obras originrias da ndia, da China e da Prsia, amide acompanhadas
de uma srie de comentrios de teor verdadeiramente laudatrio sobretudo direccionados para a
sua execuo e respectivo valor material, a beleza/dimenso artstica patenteada e a respectiva
provenincia21.
16
Sobre este assunto cf. artigos de Hugo Miguel Crespo, Trajar as Aparncia, Vestir para Ser: o testemunho da
pragmtica de 1609 e de Paula Monteiro, Roupas de Cama e Outras Cousas do Lar in Vasconcelos e Sousa. O
Luxo no Porto ao Tempo de Filipe II de Portugal (1610), 93-148 e 149-177, respectivamente.
17
Durante a primeira dcada do sculo XVI, algumas das alfaias litrgicas que constituam os acervos
patrimoniais eclesisticos nacionais apresentavam-se j realizadas em tecidos asiticos. Assim o testemunha o
conjunto de dalmticas e capas feitas de pano de Calecut registado na visitao realizada igreja de Nossa
Senhora da Conceio em Lisboa no ano de 1509, bem como os estampados (ou pintados indianos) que, entre
1511 e 1512, se podiam observar nos mosteiros da Madre de Deus de Xabregas (Lisboa), da Pena da serra de
Sintra e de Santa Maria de Belm graas s benfeitorias de D. Manuel I; cf. Dias, Visitaes da Ordem de Cristo,
76.
18
Nesse sentido, chamamos a ateno para os elementos fornecidos por Joo Brando na sua Estatstica de
1552, acerca da quantidade de gente envolvida no comrcio dos artigos txteis em Lisboa, nomeadamente
daqueles da ndia; cf. Brando, Grandeza e Abastana de Lisboa, 98, 199, 206.
19
Cf. por exemplo Dias, Visitaes; Gomes, Visitaes a Mosteiros Cistercienses em Portugal, 109-112.
20
Cf. Ferreira, Os txteis chineses no contexto religioso portugus.
21
Para Franois Crouzet, ainda que o carcter inovador seja menos frequente ao nvel das tcnicas de produo
utilizadas do que na natureza dos artigos manufacturados, nas matrias-primas usadas e nos estilos e
decorao adoptados, este constitui-se como uma componente inseparvel e valorativa do comrcio de luxo;
cf. Crouzet, Some remarks on the mtiers dart, in Fox e Turner, ed. Luxury Trades and Consumerism, 272.
75
22
Ainda em 1747 os txteis persas encontravam-se bem cotados: segundo se pode ler num relato das festas de
canonizao de S. Camilo de Llis, assinaladas naquele ano, todo o pavimento da capela-mor da igreja do
Hospital de Todos os Santos de Lisboa foi coberto com preciosas alcatifas da Persia; cf. Relaa das
magnificas festas, XVI.
23
Cf. Ferreira, Os txteis chineses no contexto religioso portugus, vol. I, 327-330. Sobre os tapetes persas em
Portugal vide os estudos de Hallett, From the looms of Yazd and Isfahan Persian Carpets in Portugal, 90-123,
e Hallett e Pereira, O Tapete Oriental em Portugal.
24
Como se pode ler nas seguintes obras: Relaes das Sumptuosas Festas, fl. 89 e Chagas, Festas qve o Real
Convento do Carmo fes Canonizaa de S. Andre Cursino, fl. 89.
25
Cf. Crill, Asia in Europe: Textiles for the West, 265.
76
indianos? ou, at por inerncia, a uma eventual hierarquizao dos panos da ndia em termos de
usos e de espaos ao abrigo de um determinado estatuto valorativo?
Por ora no temos como responder de forma plena. Em todo o caso, estamos certos de que o intenso
contacto com pessoas e bens de provenincia asitica a que Lisboa se associa no sculo XVI muito
ter concorrido para o desenvolvimento de uma evidente familiaridade com esses mesmos
testemunhos que, desde ento, chegam ao pas. Ao mesmo tempo, segundo nos foi dado
compreender, com base nas pesquisas que temos intentado desenvolver neste domnio temtico,
salvo certos tipos de produo, como as mui formosas colchas e cus de camas, de subtis lavores e
pinturas assim como das patolas ou panos pintados feitas em Cambaia26, logo assinaladas por
Duarte Barbosa em 1518, os espcimes indianos correspondiam, grosso modo, a panos e roupas de
algodo (alguns com mistura de seda). Estes seriam de qualidade baixa ou mdia27 e destinavam-se
sobretudo confeco de vesturio civil e sacro, como to bem o demonstram os inventrios de
bens patrimoniais datveis da primeira metade de Quinhentos. Embora os artigos indianos se
mantenham como opes vlidas e apreciadas no domnio txtil at pleno sculo XVIII, a partir de
meados de Quinhentos estes tero comeado a partilhar e, at porventura, a ceder o protagonismo
aos seus congneres persas e chineses28, os quais se tornam, entretanto, mais frequentes em
Portugal ainda que aparentemente em menor quantidade quando comparados com aqueles
provenientes da ndia, porventura menos dispendiosos. Produzidas em seda, e enriquecidas por
composies bordadas de grande riqueza ornamental e cromtica, como amide se assiste nos
artefactos chineses, estas obras parecem conotar-se com produes mais luxuosas e sofisticadas. E
estes so alguns dos aspectos que justamente ecoam entre os comentrios compulsados: ao que
tudo aponta, os lusitanos reconhecem as diferenas entre os suportes utilizados nas opes
decorativas adoptadas por ocasio dos festejos. No caso dos exemplares chineses denotam mesmo
abertura em relao componente inovadora que os enforma elogiando e assinalando essa mesma
dimenso, muito em particular a vivacidade e o naturalismo que caracteriza a abordagem dos temas
figurados.
Na impossibilidade de desenvolver mais o assunto afigura-se, todavia, seguro afirmar que a entrada
massiva dos panos da ndia em Portugal implicou inevitveis transformaes culturais da sociedade
ao nvel do conhecimento, do gosto e do consumo gerados em torno deste tipo de bens. Graas ao
intenso convvio com os txteis asiticos, que desde o sculo XVI se encontram disponveis no
mercado nacional, os portugueses integram obras provenientes de to remotas paragens no seu
quotidiano e revelam um ntido -vontade em relao a este universo artstico, que parecem
26
Cf. Barbosa, Livro em que d Relao do que viu e ouviu, 79. Sobre as colchas e outras tipologias indianas
apreciadas pelos portugueses vide os estudos de Barbara Karl, Marvellous things are made with
needles:Bengal colchas in European inventories, c. 1580-1630, Journal of the History of Collections, 23:2
(2011): 301-313; Yumiko Kamada, The Attribution and Circulation of Flowering Tree and Medallion Design
Deccani Embroideries, in Navina Najat Haidar e Marika Sardar, ed., Sultans of the South: Arts of Indias Deccan
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Luxury for Export: Artistic Exchanges between India and Portugal around 1600 (Boston: Isabella Stewart
Gardner Museum, 2008); Teresa Pacheco Pereira, volta de alguns bordados indianos monocromos, in
Oriente, 15 (2006): 4457; Lotika Varadarajan, Indo-portuguese textiles new orientations, in Ftima da Silva
Gracias, Celsa Pinto e Charles Borges, ed., Indo-Portuguese History: Global Trends. Proceedings of XI
International Seminar on Indo-Portuguese History. Goa, [s.n.], 2005, 251259.
27
Presumimos que anlogos queles com que, segundo Pyrard de Laval, todos andavam vestidos da cabea aos
ps, desde o cabo da Boa Esperana at China; cf. Laval, Viagem de Francisco Pyrard de Laval, vol. 2, 184-185.
28
Ainda que tambm estes se encontrem pontualmente presentes na extensa lista de artigos que integram o j
citado documento relativo ao guarda-roupa de D. Manuel, realizado em 1522: Item Mais huun esparamentos
doratoreo de brocado da China- a saber- seis peas de corredias que tem todas jumtamente dezanove panos e
tres covados e duas teras cada pano e framjados de retros azull pellas ylhargas E huu eo do mesm brocado
dalparavazes pellas ylharguas e por huua so fromtarya framjado de rretros azul e forrado de bocasym vermelho
guranicido de fitas de cadaro; cf. Freire, Inventrio, p. 388.
77
29
Embora a notcia mais antiga de que dispomos at ao momento, relatando a presena de panos da China
numa destas efemrides, date apenas de 1595, acreditamos que no futuro venham a localizar-se referncias
mais remotas ao uso deste tipo de suportes em momentos festivos sacros nacionais semelhana do que
sucedeu, por exemplo, em Goa desde meados do sculo XVI; cf. o nosso estudo Entre a vivncia religiosa
cultual e acadmica, 191-202.
78
Quadro I Referncias a txteis chineses e objectos de ourivesaria indiana nas festas organizadas em Lisboa
pela canonizao de Santa Maria Madalena de Pazzi, 1669. Fonte: Siro Vlperni, O Forasteiro Admirado.
Relaam, panegyrica do Trvinfo, e Festas, qve celebrou o Real Convento do Carmo de Lisboa Pela Canonizao
da Serfica Virgem S. Maria Magdalena de Pazzi, Religiosa da sua Ordem, primeira parte. Lisboa: off. de
Antnio Rodrigvez dAbrev, 1672.
Txteis chineses
Ourivesaria indiana
79
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MOREIRA, Rafael, As Formas Artsticas, in Histria dos Portugueses no Extremo Oriente: De Macau
Periferia, dir. A.H. de Oliveira Marques, 1. vol., tomo I. Lisboa: Fundao Oriente, 1998.
PINTO, Pedro. Um Olhar sobre a Decorao e o Efmero no Oriente: a relao dos Bens Embarcados
em Goa em 1559 para o Reino, o inventrio dos Bens do Vice-Rei D. Martim Afonso de Castro,
falecido em Malaca, em 1607, e a relao da entrada do vice-rei D. Jernimo de Azevedo em Goa, em
1612, Revista de Artes Decorativas, 2, 2008: 237-254.
Relaa das magnificas festas, com que na Cidade de Lisboa foy applaudida a Canonizaa de S.
Camillo de Lellis, fundador da Congregaam dos Clerigos Regulares Ministros dos Enfermos: e
Sermoens Pgados no festivo Oitavario, que pelo mesmo fim se celebrou nos Hospital Real de Todos
os Santos. Lisboa: off. de Francisco da Sylva, 1747.
Relaes das Sumptuosas Festas com que a Companhia de Jesus da Provncia de Portugal Celebrou a
Canonizao de S. Ignacio de Loyola, e S. Francisco Xavier. Lisboa, 1623.
RIELLO, Giorgio e Prasannan Parthasarathi, eds. The Spinning World: A Global History of Cotton
Textiles, 1200-1850. Delhi: Primus Books, 2012.
RIELLO, Giorgio e Beverly Lemire. East & West: Textiles and Fashion in Early Modern Europe,
Journal of Social History, 41:4, 2008: 887-916.
SOUSA, Maria Teresa de Andrade e. Inventrio dos Bens do Conde de Vila Nova D. Lus de Lencastre,
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SOUSA, Gonalo de Vasconcelos e, ed. O Luxo no Porto ao Tempo de Filipe II de Portugal (1610).
Porto: Universidade Catlica Editora, Centro Interpretativo da Ourivesaria do Norte de Portugal /
Centro de Investigao em Cincia e Tecnologia das Artes, 2012.
81
O maior terico desta teologia poltica foi o jesuta Francisco Suarez, cuja principal obra foi Defensio Fidei
(1613).
2
VITERBO, Sousa e ALMEIDA, R. Vicente A capella de S. Joo Baptista erecta na Egreja de S. Roque, p. 12.
3
VELLOSO, Queirs Guia de Portugal artstico, p. 4.
4
Precisamente porque a Europa atravessava uma fase complexa, misto de modernidade e de sistemas
arcaizantes, optou-se por recorrer a Roma, como alis era costume para as encomendas reais. De facto, a
sociedade portuguesa, na periferia da Europa, no est apta a aceitar, sem discusso, esquemas que lhe so
estranhos, a que se mistura, contudo, uma vontade de fazer como em Roma, ou, pelo menos, de fazer como se
82
em que se iria inserir. A condicionante fundamental seria o espao disponvel: partindo de S. Roque,
era necessrio produzir um espao que se apoiasse num princpio da Igreja ps-Trento.
A capela de S. Joo Baptista, mandada edificar por D. Joo V para os jesutas, teria realmente sido
construda sob a inspirao dos mesmos. De facto, ao padre Carbone jesuta italiano, matemtico,
radicado em Portugal coube zelar pela obra, em conjunto com Pereira de Sampaio encarregado
de Portugal em Roma , pedindo para que desde materiais a artistas, tudo fosse do melhor 5que se
achasse em Roma. Assim, a capela apresenta um esquema estilstico que precede e anuncia o
neoclassicismo, o espao pictrico com forte dominante barroca tal como os grupos escultricos da
prataria e uma decorao interior rocaille, sobretudo nas artes ornamentais.
O interior da capela reveste-se dos mais belos e ricos materiais: mrmore branco, bronzes dourados
e madeiras raras, prfiros verde e roxo, disporo, lpis-lazli, alabastro, ametista, brecha antiga,
jalde... O lampadrio, de ourivesaria, composto por trs lmpadas, em prata e bronze dourado,
decoradas com querubins, festes e outros elementos fitomrficos. No centro, cruzado por duas
palmas com a cifra de D. Joo V, num fecho entrelaado de festes e flores. O seu suporte, numa
cornija em estanho, todo decorado com folhagem e sobre esta, grinaldas de flores centradas por
putti. O pavimento em mosaico composto por materiais como ametista, gata, lpis-lazli, em tons
azul, rosa e amarelo. Representa a esfera armilar. As cancelas de metal dourado mostram as insgnias
reais ao centro.
O altar, ponto culminante do acto litrgico, apresenta um fundo em mosaico com a cena do
baptismo de Cristo e a sequncia dos degraus acentuada pela cor do prfiro roxo e verde, com um
estrado em madeira de laranjeira, marfim, pau-santo e bano, finalizado em tom dourado. Com um
fronto em lpis-lazli, a sua base de jalde antigo e ametista. As pilastras que o ladeiam so de
alabastro. O tema central narra o passo do Apocalipse, segundo S. Joo. A banqueta do altar, cujo
fundo de lpis-lazli, assume-se como imponente neste conjunto. Com uma estrutura
profundamente decorada, de entrelaados com putti, grinaldas de flores e cabeas de anjos,
constituda por uma grande cruz de altar e seis castiais. A cruz radiante de altar, de base triangular,
decorada com nichos onde figuram as Virtudes Teologais. A sua estrutura composta por
ornamentao de putti e grinaldas de flores, em entrelaados. O p da cruz e os castiais tm, em
cada face, um nicho com figuras com representaes simblicas. Significam elas a Dignidade, a
Bondade, a Humildade, o xtase, o Sofrimento, a Dor, enfim, todas as qualidades e sentimentos
nobres, toda a amargura da pobre humanidade traduzida na expresso das extraordinrias
figurinhas.6 As trs sacras so em prata dourada com texto em pergaminho. A sua moldura formada
em pilastras, arquitrave, fronto quebrado, com as representaes simblicas e medalho oval,
decorada com anjos e signos, cachos de uvas e espigas de trigo em volutas, com o escudo real a
fechar a base. Existe toda uma simblica religiosa que enriquece o conjunto das sacras e que remete
para alm do puro deleite esttico, para uma atitude funcional subtil, que refora os dogmas de
Trento e afirma o catolicismo.
Ao mandar construir a capela como obra sumptuosa, o monarca no esqueceu os objectos de culto,
cujo esplendor no foi inferior prpria capela a que estavam destinados. A coleco, na qual todos
os objectos intervm activamente no acto religioso, tradicionalmente designada como o Tesouro
da Capela. H uma adequao da obra de arte aos fins a conseguir. O belo, como forma de sublime,
aquilo que eleva o esprito, alia-se prtica do catolicismo.
Importante neste conjunto o trptico em mosaico, que ornamenta pictoricamente a capela. O
painel central, ponto de partida para a interpretao do conjunto, representa o acto do baptismo de
pensava em Portugal a arquitectura romana. RODRIGUES, Maria Joo M. A Igreja de S. Roque em Lisboa, p.
18.
5
VITERBO, Sousa e ALMEIDA, R. Vicente op. cit., p. 13.
6
VITERBO, Sousa e ALMEIDA, R. Vicente op. cit., p. 53.
83
Cristo por S. Joo Baptista, num cu aberto, e numas guas transparentes. Assistindo a este acto est
a Virgem numa atitude expectante com uma das trs Marias; num plano superior, o Salvador
Eterno, envolto numa nuvem, acompanhado de trs anjos. A descer sob Cristo e a presidir sua
fixao nEle est a pomba do Esprito Santo, que inunda a composio de uma luz sobrenatural. A
ladear Cristo e ajoelhados sob Ele esto dois anjos, num plano inferior, testemunhas do Mistrio. A
moldura deste retbulo rematada, na parte superior, com ornamentos de metal onde consta o
monograma de Cristo: IHS.
O tema do Pentecostes, que compe o painel do lado esquerdo, apresenta a descida do Esprito
Santo sobre a Virgem e os Apstolos no Cenculo, e tem como figura central a Virgem, sobre a
cabea da qual transparece a luz do Esprito Santo. As cores so fortes e quentes, sobretudo o tom
avermelhado do cu, de onde provm a luz da chama divina. Perante a descida do Esprito, a Virgem
tem os olhos postos no cu, com as mos fixas no peito. Porm, a sua atitude serena, ao contrrio
dos apstolos, agitados com o acontecimento. A ladear a Virgem esto as duas Marias, sendo que,
no conjunto, todos rodeiam a Virgem, situada ao centro.
Do lado direito, no mosaico com o tema do mistrio da Anunciao, sobressai novamente o
vermelho da chama divina, que ilumina a Virgem ajoelhada perante o arcanjo Gabriel. Este segura na
mo uma flor de ptalas brancas, a flor-de-lis. Contrariamente tradio, as vestimentas do Arcanjo
no so brancas7, mas em tons de laranja e azulado, em harmonia com as cores da composio.
Ambos os quadros, em moldura de bronze dourado, so rematados por querubins em mrmore.
A anlise iconogrfica das obras revela, mais uma vez, o pragmatismo artstico dos jesutas, com os
seus intuitos doutrinais. A representao da gua adquire, no retbulo central, uma densidade
simblica extremamente profunda, crucial quer para os preceitos catlicos difundidos, como a
prtica do baptismo para a salvao das almas, quer para afirmar a figura de Jesus nos desgnios
jesuticos. De facto, a gua um elemento constante na vida de Cristo, frequente nas passagens do
Novo Testamento:
E quem der de beber a um destes pequeninos, ainda que seja somente um copo de gua
fresca, pode ser Meu discpulo. (Mateus 10,42)
Depois, deitou gua numa bacia e comeou a lavar os ps aos discpulos. (Joo 13,5)
Pilatos, vendo que nada conseguia e que o tumulto aumentava cada vez mais, mandou vir
gua e lavou as mos em presena da multido, dizendo: Estou inocente do sangue deste
justo. (Mateus 27,24)
Ao chegarem a Jesus, vendo-O j morto, no Lhe quebraram as pernas, mas um dos soldados
perfurou-Lhe o lado com uma lana e logo saiu sangue e gua. (Joo 19,34)
A imerso na gua simboliza a purificao, logo, a passagem da morte para a vida. No momento do
rito baptismal, d-se a transformao sacramental. Atravs destas aluses iconogrficas, os jesutas
no exortavam, persuasivamente, apenas ao sacramento do Baptismo. Atravs da imagem, os
jesutas souberam conduzir os crentes aos mistrios de Deus. Nesta aluso ao Baptismo de Cristo
importante a invocao ao Esprito Santo, que desce sobre a gua. O episdio do baptismo de Cristo
passa a ser revelador da Santssima Trindade: na voz manifestada do Pai, na figura do Filho, que
baptizado, e no Esprito Santo, que paira sobre as guas do rio Jordo, vivificando-as.
Constata-se a importncia que os jesutas deram a este tema, presente no quadro central que decora
a capela de S. Joo Baptista. Imanente a toda esta simbologia est, de facto, a figura de Jesus.
84
Imanente e omnipresente e S. Joo foi, de facto, o precursor e anuidor do Messias, segundo o seu
prprio testemunho nas margens do rio Jordo:
Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. (Joo 1, 29)
Jesus o cordeiro de Deus imolado que restitui a redeno Humanidade; aquele que, pela cruz,
submete-se ao sacrifcio supremo. Tambm a anlise iconogrfica dos quadros laterais conduz aos
dogmas do Cristianismo, completando o sentido da obra central. No tema da Anunciao, o Arcanjo
tem, em relao Virgem, a mo direita levantada, parecendo apontar para o Esprito Santo, mas
tambm com o intuito de salientar a importncia das palavras que profere.
Quanto flor-de-lis, que simboliza a brancura da neve imaculada, transportada na mo esquerda do
Arcanjo, foi bem aproveitada pela iconografia crist, aludindo virgindade de Maria. No trio
iconogrfico da capela, ainda comum a presena da essncia divina ou celeste na figura do Arcanjo
e de Cristo, e da essncia humana, com a Virgem e S. Joo Baptista. Mas um terceiro factor comum
ao trptico: a pomba do Esprito Santo. Simbolicamente associada ao Esprito Santo, a pomba branca
tambm smbolo da inocncia. O local desta capela foi, outrora, dedicado ao culto do Esprito Santo
e, por isso, o tema foi pragmaticamente aproveitado pelos jesutas de S. Roque, para reforarem este
dogma da Igreja Catlica, ao mesmo tempo que permitia a glorificao do santo onomstico do
monarca.
Na capela de S. Joo Baptista, o mais pequeno pormenor dotado de simbologia. Todo o seu
esplendor no tem seno uma funcionalidade: o critrio religioso. Foi um meio para atingir um fim
prtico. Como figura de Deus na terra, o monarca, mecenas da obra, evidenciou, atravs de
representaes visuais, o seu poder simblico. Com a funo de conduzir os homens, f-lo atravs da
memria e do reconhecimento de smbolos, acessveis ao mais simples dos sbditos. Por outro lado,
o rei era tambm o promotor da F catlica. O simbolismo religioso adquire, nesta capela, uma carga
quase transcendente. O rei D. Joo V cumpria o plano teolgico-poltico da sua poca, os jesutas
prescreviam os ditames do catolicismo. D. Joo V, sem ser a Luz, representava o brilho do astro solar
no mundo terreno. S. Joo Baptista, sem ser a Luz, apontava-a.
esse mesmo fim utilitrio que explica que o processo de realizao da capela de S. Joo Baptista,
com todo o seu tesouro, s possa ser entendido num contexto simblico, poltico e religioso.
importante a presena do smbolo real nas cancelas de metal dourado, no lampadrio. As armas
reais de D. Joo V esto presentes no medalho da base de todas as peas da banqueta. Em peas
como os tocheiros ou as sacras, encontramos o escudo e a coroa reais, muitas vezes acompanhadas
pela concha, emblema de S. Joo Baptista, clara associao entre o poder real e a religio, e no
pavimento a presena da esfera armilar.
O simbolismo torna-se mais forte se partirmos da anlise do retbulo central, o tema do baptismo de
Cristo. D. Joo V, o rei-sol, assumira na sua pessoa toda uma carga poltica e religiosa. No sendo
Deus, era aquele que representava os desgnios divinos, numa monarquia teolgico-poltica,
buscando a analogia com o seu santo onomstico. Assim, se o rei simboliza o sol em torno do qual
tudo gira, tambm Jesus simboliza o sol da justia (Malaquias 3,14). O prprio monograma jesuta,
IHS, abreviatura do grego IHSOUS que em latim significa Jesus, envolto em raios, aparece
representado por um sol. A alegoria do sol est ligada ao smbolo universal do rei, logo, tambm
um smbolo cristolgico.
Desta forma, imagem de S. Joo Baptista, smbolo da caridade, associava-se o simbolismo do sol
que est intimamente ligado figura de Cristo. Por isso, a monarquia absoluta to bem adoptou a
alegoria solar: o sol est no centro do universo8, assim como o rei est no centro da vida terrena e
8
Monarcas absolutos como Lus XIV ou D. Joo V reinaram sob o smbolo do sol, numa poca em que as ideias
de Galileu e Coprnico j tinham vencido: o sol que est no centro do Universo, e os planetas giram em seu
85
Cristo no centro da vida espiritual. Mas a simbologia solar ligada a Cristo vai ainda mais longe: os
doze raios solares representam os doze apstolos.
Se o monarca atingia os seus propsitos propagandsticos atravs deste bem conseguido programa
iconogrfico, tambm a Companhia de Jesus afirmava, mais uma vez, o culto aos santos, Virgem e
ao Esprito Santo, a prtica dos sacramentos e, sobretudo, a figura de Cristo como tema central. E ,
de facto, essa figura de Jesus, fonte de inspirao de toda a aco dos jesutas, o ponto fulcral para a
interpretao da simbologia desta pintura.
S. Joo Baptista no mais do que um meio para se chegar a Cristo, ideia que refora a simbologia
solar, j que
o solstcio de Inverno que abre a fase ascendente do ciclo anual; e o solstcio de Vero que
abre a fase descendente [...]. fcil constatar que a porta do Inverno que introduz na fase
luminosa do ciclo, e a porta estival na sua fase de obscurecimento [...]. O nascimento de Cristo
foi no solstcio de Inverno, e o de S. Joo Baptista no solstcio de Vero.9
Da as palavras dos Evangelhos: Ele deve crescer e eu diminuir (Joo 3,30).
S. Joo Baptista, simbolicamente associado ao rei, no sendo a Luz, , porm, ele que a aponta.
Jesus, directamente ligado a S. Joo Baptista pelo santo sacramento do Baptismo, representa o
ponto-chave de toda a aco jesuta.
O rei magnnimo ergueu uma capela em honra do santo com o seu nome, S. Joo Baptista, smbolo
da caridade. O resultado foi um espao de alegorias simblicas, um espectculo sensorial10 ou o
prprio teatro dos sentidos11.
O esquema da capela foi, quer pelo gosto do rei, quer pelo controlo dos jesutas, um produto do seu
tempo, que excedeu o seu tempo.
redor. Nada melhor para a monarquia absoluta, como forma de simbolizar o seu poder. Mas a ideia do rei
como sol, que o Absolutismo to bem aproveitou, no era nova. O simbolismo solar quase to antigo como as
prprias civilizaes. Tomando o exemplo da mitologia clssica, j o deus Apolo assumia na sua figura o
simbolismo solar.
9
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain Dicionrio dos Smbolos, p. 614.
10
MARTINS, Fausto Sanches A arquitectura dos primeiros colgios jesutas em Portugal: 1542-1759, p. 980.
11
Idem, ibidem.
86
A 24 de Setembro de 1992, na Capela Nossa Senhora da Glria, S de Braga, reuniu-se uma equipa cnego
Melo, cnego Macedo e o tcnico de conservao Fernando Beloto responsvel pela abertura do tmulo, e
pela seleco e recolha dos txteis. Posteriormente, foi convocada para o local a especialista em txteis e
conservadora Teresa Alarco.
2
COELHO, Maria H. da Cruz O Arcebispo D. Gonalo Pereira: Um querer, um agir. In IX Centenrio da
Dedicao da S de Braga. Congresso Internacional, Braga. A Catedral de Braga na Histria e na Arte (Sculos
XII-XIX). Braga: Universidade Catlica Portuguesa / Cabido Metropolitano e Primacial de Braga, 1990, pp. 389462; FERREIRA, J. Augusto Fastos Episcopaes da Igreja Primacial de Braga (sec.III-sec.XX): Obra Illustrada com
os brazes dos respectivos Arcebispos desde o sculo XIV-XV. [Braga]: Edio da Mitra Bracarense, 1930, vol. II,
pp. 126-162.
3
SILVA, Jos Custdio Vieira; RAMA, Joana Sculpto Immagine Episcopali: Jacentes episcopais em Portugal
(sc. XIII-XIV). Revista de Histria de Arte. 7 (2009), pp. 94-119; MONTEIRO, Manuel Rodrigues O tmulo de D.
Gonalo Pereira. Braga: Pax, 1944.
87
parcelar. Este conjunto caracterizado por sete lampassos4, uma sarja lavrada, seis tafets, um
bordado ao estilo opus anglicanum5 e dois com variante de ponto de cruz oblquo e ainda um
cordo com n de cabea turco, uma corda, um fragmento de pergaminho e outro de penas6.
Para fazer corresponder os fragmentos aos txteis remanescentes no interior do tmulo, foi
essencial a documentao realizada durante a abertura que, no integrada no processo do TesouroMuseu, foi recuperada para este propsito7. Nesta documentao so j anotadas incertezas s quais
acrescem outras suscitadas por quem no esteve presente. Porm, foi possvel chegar a uma
proposta interpretativa do achado txtil.
Produzido a partir dos finais do sculo XI e incios do sculo XII, um tecido lavrado com decorao produzida
essencialmente por tramas fixas por teia de ligao, em tafet ou sarja. DESROSIERS, Sophie [et al] Soieries et
e
autres textiles de l'Antiquit au XVI sicle [catalogue du Muse National du Moyen ge Thermes de Cluny].
Paris: Runion des muses nationaux, 2004, pp. 23-28.
5
Bordado de lavor ingls, com apogeu entre o sculo XIII e meados do XIV, amplamente utilizado em
paramentos litrgicos. Com variao tcnica durante a sua efmera produo, reconhecido pelo fundo
preenchido por fios metlicos contrastando com os motivos executados a seda policroma em ponto fendido,
concntrico nas carnaes. FLURY-LEMBERG, Mechthild Textile Conservation and Research. Berna: AbeggStiftung, 1988, pp. 118-139; KENDRICK, A.F. English Needlework. London: A. & C. Black LTD, 1933, pp. 15-38.
6
A este conjunto acrescem a mitra, as nfulas e as luvas removidas aquando dos restantes fragmentos e
intervencionadas na Abegg-Stiftung, Sua, integrando actualmente a exposio do Tesouro-Museu da S de
Braga.
7
D. Gonalo Pereira (Restauro do Tmulo) C. 1263_22/12/1348, S de Braga. Coimbra: Cres Conservao e
Restauro do Patrimnio Arqueolgico e Histrico Lda., 1992. Arquivo do Tesouro-Museu da S de Braga,
Compactdisc, 53 min.; ALARCO, Teresa Apontamentos no local (A completar o relatrio). Manuscrito no
publicado, Arquivo do Tesouro-Museu da S de Braga, 1992; IDEM Relatrio. Manuscrito no publicado,
Arquivo do Tesouro-Museu da S de Braga, 4 de Novembro de 1992; Abertura do tmulo do Arcebispo Dom
Gonalo Pereira. Coimbra: Cres Conservao e Restauro do Patrimnio Arqueolgico e Histrico Lda., 1992.
Arquivo do Tesouro-Museu da S de Braga, documentao fotogrfica em formato digital.
8
O alfinete de prata foi o nico elemento de ourivesaria remanescente e integra, actualmente, a exposio do
Tesouro-Museu da S de Braga.
9
A casula tem o tecido enfolado nas costas que se estenderia cobrindo a cabea, identificado como um capuz,
elemento reminiscente da paenula. Este ornado por sebasto aplicado em cruz e rematado, na frente, por
brases bordados que terminam no sebasto frontal, provavelmente com uma aplicao txtil ou metlica.
VESTIDURAS pontificales del arzobispo Rodrigo Ximnez de Rada, s. XIII: su estudio y restauracin. Madrid:
Instituto de Conservacin y Restauracin de Bienes Culturales, 1995, p. 77; NORRIS, Herbert Church
Vestments: Their Origin and Development. London: J.M. Dent & Sons LTD, 1949, pp. 55-83.
88
em sarja idntica da casula e tem gales metlicos10. Sob esta, a tunicela, em lampasso, fica
identificada pelas mangas longas e estreitas. Este tecido tambm aplicado nos maniquetes* que
parecem pertencer alva adornada11 e esto sobrepostos a outros punhos, justos e ornados por
botes falsos, provavelmente de outra alva. Acrescem-se outras vestes interiores, nomeadamente as
bragas* (com corda* que cinge cintura) e o amito adornado* que envolvia a cabea, ambos em
tafet de linho12. Numa dominante desordem, existem tecidos lavrados13 na zona inferior do corpo e
lampassos* a envolver os tornozelos e as pernas14.
O conjunto de acessrios rene: luvas, estola, manpulo, cngulo, cligas e sapatos pontificais. As
luvas em malha tm punhos bordados, provavelmente opus anglicanum, e marcas no dorso do
adorno metlico, hoje inexistente. A estola* e o manpulo so em lampasso, sendo a primeira
rematada por galo franjado15. O cngulo* resulta de uma rede losangular pontuada por ns de
cabea turco16. As cligas envolviam provavelmente os ps e seriam no mesmo tecido lavrado dos
sapatos, do qual foi observada uma sola.
10
As mangas curtas e largas so rematadas por tecido com fios metlicos. Os gales esto aplicados segundo a
decorao recorrente nas dalmaticelas e dalmticas, onde um galo horizontal a delimitar o decote cruzado
por outro que demarca os ombros, descendo para a frente e para as costas.
11
A revestir o avesso dos maniquetes est um tafet, de cor crua, que se prolongaria perfazendo as mangas e
provavelmente a restante veste. Os elementos de fecho (boto e aselha) assinalam tcnicas peculiares do
perodo medieval. CROWFOOT, Elisabeth; PRITCHARD, Frances; STANILAND, Kay Textiles and Clothing c.
1150-1450: Medieval Finds from Excavations in London. London: Boydell Press, 2001, pp. 130-141, 164-172.
12
A banda decorativa do amito em lampasso e fecha com boto e aselha (idnticos aos dos maniquetes).
poca, o amito adornado podia cobrir a cabea, como de um capuz se tratasse, recolhendo para trs,
assemelhando-se a uma gola. VESTIDURAS Ob. cit., p. 125; NORRIS Ob. cit., pp. 85-86.
13
Destacam-se tecidos amarelos com decorao relevada e pontuada por motivos talvez obtidos por fios
metlicos. Pode sugerir-se a analogia com os diaspros (gnero de lampassos), caracterizados pelos pormenores
espolinados a fio metlico, dos finais do sculo XIII e do sculo XIV. DESROSIERS Ob. cit., pp. 342-347.
14
A identificao de um lampasso como pea rectangular envolvente das pernas pode sugerir a frequente
aplicao de tecidos, rectangulares ou barras, junto bainha em algumas vestes litrgicas. VASCONCELOS,
Antnio Garcia Ribeiro Arqueologia: Duas cartas sbre indumentria litrgica na iconografia medieval a
propsito dos Painis de S. Vicente de Fora. Biblos. 2 (n 3 e 4) (1926), pp. 1-14. A ttulo de exemplo enumerase a dalmtica, a tnica e a alva do arcebispo Rodrigo Ximnez de Rada, sculo XIII, assim como algumas
representaes de vestes no fresco da Cappella di San Martino, Basilica inferiore di San Francesco d'Assisi,
Perugia, do sculo XIV.
15
A estola tem as extremidades trapezoidais unidas por um ponto de costura que as impedia de cair
livremente, reportando fixao com presilha de tecido, cordo ou fita utilizada na dita estola pastoral.
16
Desconhece-se a composio e estrutura do cngulo na sua totalidade, mas sabe-se que as extremidades,
terminadas por borlas franjadas, combinam cordes com ns de cabea turco (DE BOECK, J. [et al] Stof Uit
de Kist: De middeleeuwse textielschat uit de abdij van St.-Truiden. Leuven: Peeters Publishers, 1991, p. 389).
17
Repete-se quatro vezes alcanando o tecido a largura de 54 cm, com ourelas de 0,75 cm.
89
por barras implcitas, ora de lees, ora de aves, e por um andamento ondulante vertical insinuado
pelos caules dos ornatos fitomrficos (Fig. 1).
No que concerne tcnica de tecelagem, os motivos so produzidos por lminas de cabedal dourado
(tramas suplementares) que atravessam toda a largura do tecido e so fixas por uma teia de ligao,
de seda, em sarja 2 prende 1 (direco S, face trama). As teias e tramas de fundo, de seda,
entrecruzam-se em sarja 3 prende 1 (direco Z, face teia). Os resultados da anlise microqumica de
SEM-EDS e de FTIR revelaram tratar-se de lminas com substrato de pele, curtida por tanagem
vegetal, na qual foi aplicada uma folha de ouro, quase puro18. Esta tipologia de lmina
caracterstica dos tecidos medievais da sia Central e China que chegaram Europa a partir dos
sculos XIII/XIV19. Corroborando esta origem, foi identificado por HPLC-DAD o corante pau-brasil,
poca unicamente utilizado no Oriente, bem como a presena de antraquinonas
laranja/avermelhadas, ainda por identificar, inexistentes nas plantas de origem europeia at agora
exaustivamente estudadas. Estas antraquinonas aparecem associadas a outras duas, alizarina e
purpurina, identificadas nos gneros de Rubiaceae20.
O segundo lampasso com o mdulo decorativo incompleto de 48,5 cm x (?) afigura-se tambm
profuso, assinalado por ave de perfil com garras e uma palmeta entre outros ornatos fitomrficos.
A reconstruo provvel que aqui se prope foi baseada no tecido da arca funerria do infante D.
Pedro (1319), sepultado no Monasterio de Santa Mara Real de Huelgas, Burgos21. Atravs do
desdobramento dos ornatos, segundo o eixo de simetria vertical, forma-se uma parelha de aves
afrontadas com longas caudas entrecruzadas encimadas por palmetas. As aves demarcam um
andamento horizontal repetido na barra implcita seguinte, de forma descentrada, ficando uma
malha ogival de dupla ponta insinuada pela passagem de linhas ondulantes verticais pelas caudas
(Fig. 2). Tal como no lampasso dos lees, os motivos so formados por lminas de cabedal
dourado, com maior dimenso, mantidas superfcie da tecelagem, diferindo a organizao das teias
e tramas de fundo em tafet. Foi tambm detectado o pau-brasil, bem como o ndigo e uma grande
quantidade de alizarina, associada s j referidas antraquinonas.
Estes lampassos denunciam um gosto asitico, de provvel produo do imprio mongol (do sculo
XIII at meados de XIV), que se difundiu atravs da sia Central at ao Iro, com comeo na China22.
Caracterizados pela superfcie maioritariamente dourada, so integrados na designao de panos de
ouro ou Nasij23. No lampasso dos lees a densa composio assimtrica e dinmica que remete
18
Apesar de ser frequente a utilizao de um adesivo para a aplicao de folha de ouro, os resultados das
anlises laboratoriais no so conclusivos. Foi identificado um composto de natureza proteica que tanto pode
estar relacionado com a degradao do cabedal como com a presena de uma cola animal. JAR, Mrta Fili
metallici nelle stoffe di Cangrande. In Cangrande della Scala. La morte il corredo funebre di un principe nel
medioevo europeo. A cura di E. Napione, G.M. Varanini P. Marini. Venezia: Marsilio, 2004, pp. 112-122; IDEM
Metal thread variations and materials: simple methods of pre-treatment identification for historical textiles.
Conserving Textiles: Studies in Honour of gnes Timr-Balzsy. 7 (2009), pp. 68-76; INDICTOR, N. [et al.] Metal
Threads Made of Proteinaceous Substrates Examined by Scanning Electron Microscopy Energy Dispersive XRay Spectrometry. Studies in Conservation. 34 (1989), pp. 171-182.
19
JAR (2004) Ob. cit., p. 120; FLURY-LEMBERG Ob. cit., p. 160.
20
Existem diferentes gneros de Rubia, sendo os mais conhecidos: Rubia tinctorum (europeia), Rubia cordifolia
(asitica) e Rubia peregrina (europeia).
21
GMEZ-MORENO, Manuel El Panteon Real de las Huelgas de Burgos. Madrid: Instituto Diego Velzquez,
Consejo Superior de Investigaciones Cientficas, 1946, pp. 34-35, n 44, Lam. XC.
22
A fuso das tradies txteis dos artesos do Norte da China e do Iro Oriental, restabelecidos na Monglia e
sia Central, originou um multitnico reportrio de sedas luxuosas, que invadiram posteriormente o
mediterrneo sob a designao ocidental de panos trtaros. WARDWELL, Anne Panni tartarici: eastern
Islamic silks woven with gold and silver (13th and 14th centuries). Islamic Art. III (1988-1989), pp. 95-173.
23
As lminas de cabedal dourado eram j utilizadas nas dinastias Jin e Song e comuns nos nasij de produo
chinesa durante o sculo XIV. Outras tipologias de elementos metlicos, em lmina ou em fio laminado, com
substrato animal (membrana ou pergaminho) ou de papel, dourados ou prateados, podiam ser igualmente
90
para a sia Central associada a motivos atribuveis China, sendo comparvel aos lampassos do
The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque (1989.191) e do The Cleveland Museum of Art, Ohio
(1991.5), atribudos sia Central ou Daidu, sculo XIII, bem como ao tecido n. 2 referido por
Zvezdana Dode atribudo dinastia Yuan, sculo XIII-XIV24. No lampasso das aves a composio
simtrica e esttica, com motivos afrontados que remetem para influncias chinesas, tpicas das
dinastias Liao e Jin, relembrando as estruturas em medalho de origem iraniana oriental25.
evidente a semelhana com os lampassos provenientes dos tmulos do infante D. Pedro e de Blanca
de Portugal, referidos como brocado chino e brocado oriental branco, respectivamente, ficando para
o primeiro assinalada a influncia rabe26. Para ambos foi recentemente considerada a influncia de
modelos chineses, mas herdados do perodo pr-mongol27. Deste modo, nos dois lampassos
analisados, cuja materialidade e estilo remetem para uma produo da sia Central, do perodo
Mongol, fica assinalado um gosto marcadamente chins.
91
Arraiolos. O ponto de trana eslavo mencionado, entre outros bordados, num fragmento que
envolvia as relquias da escultura da Virgem de la Majestad, catedral de Astorga, datado da segunda
metade do sculo XIII29, e parece tambm figurar num dos coxins do tmulo de Fernando de la
Cerda, em Santa Mara Real de las Huelgas, Burgos30. Com aspecto semelhante, mas distinto
tecnicamente, o punto espiga fora j aplicado em exemplares medievais como observado na
almofada do Arcebispo Rodrigo Ximnez de Rada, de produo francesa, datada do sculo XIII31.
A provenincia do lavor em anlise fica por definir. No entanto, sugestionada a possibilidade de os
fragmentos terem pertencido a uma almofada que, semelhana do esculpido no jacente, forma par
com outra.
29
YARZA LUACES, Joaqun (Comis.) Vestiduras ricas: el Monasterio de Las Huelgas y su poca 1170-1340
[catlogo da exposio]. [S.l.]: Patrimonio Nacional, 2005, pp. 241-242.
30
GMEZ-MORENO Ob. cit., Lam. CXXIII e CXXIV. Alguns bordados com diferentes designaes espanholas
parecem ser em ponto de trana eslavo, como sendo o punto trenzado nos coxins dos tmulos medievais
de Fernando de la Cerda (IDEM, Ibidem, Lam. CXXXI), do rei Enrique I (IDEM, Ibidem, Lam. CXXVIII) e da rainha
Berenguela de Castilla (IDEM, Ibidem, Lam. CXXVIII). Variantes deste ltimo ponto so o punto trenzado al
aire e o punto trenzado de pleita identificados nos coxins da monja Constanza II (IDEM, Ibidem, Lam. CXXVIII
e CXXX) e da rainha Leonor de Inglaterra (IDEM, Ibidem, Lam. CXXVI e CXXVIII; YARZA LUACES Ob. cit., p. 242),
respectivamente.
31
VESTIDURAS Ob. cit., pp. 28-53.
32
No sebasto todas as figuras esto representadas a meio corpo, aureoladas e inscritas em quadriflios, sendo
denominadas pelas filacteras. Enumeram-se Daniel, Isaas e Jacob no sebasto da frente e Johans, Petru(s),
Iovac, Jesus Cristo (sem filactera) e Vir(go) no capuz, ficando por identificar as restantes atendendo
acentuada degradao. Para este assunto consultar Arquivo do Tesouro-Museu da S de Braga, Apontamentos
no local (A completar o relatrio). Autoria de Teresa Alarco.
33
A ornamentao brasonada ocorria ocasionalmente em vestes litrgicas bordadas em opus anglicanum.
KENDRICK Ob. cit., pp. 22-24. Destaca-se nas coleces portuguesas a casula da Igreja Matriz de Ponta
Delgada, Aores, com escudos atribuda a John Grandisson, bispo de Exeter, Inglaterra (1327-1369) e a Eduardo
III de Inglaterra (1312-1377). ALARCO, Teresa; CARVALHO, Jos Alberto Seabra Imagens em paramentos
bordados: sculos XIV a XVI. Lisboa: Instituto Portugus de Museus, 1993, pp. 62-67.
34
KENDRICK Ob. cit., p. 25.
92
Acresce a este conjunto a mitra em opus anglicanum, datada do primeiro quartel do sculo XIII, que
caracterizada por um bordado primrdio desta tcnica pois sobre uma sarja lavrada so bordados
motivos a fio laminado de prata dourada35.
Concluso
O estudo em desenvolvimento permitiu correlacionar os fragmentos medievais dentro do tmulo de
Dom Gonalo Pereira e a relao de cada um destes com o mundo txtil exterior.
A harmonia do conjunto marcada pelos lampassos atribudos a uma produo da sia Central, bem
como pela representao das susticas, tecidas, bordadas ou mesmo esculpidas. Enriquecida pelo
bordado opus anglicanum, este adorno adita uma outra provenincia que conflui para a
heterogeneidade do conjunto marcada por um gosto que se integra na moda internacional da poca.
Ao rigor ditado na encomenda do tmulo e da capela contrape-se a ausncia, por ora, de
informao sobre a aquisio das vestes e dos acessrios fnebres, no entanto os brases asseguram
uma inteno premeditada.
Considerando as qualidades tcnicas e artsticas deste achado de raro valor cultural e histrico, digno
de uma figura de elevado prestgio como era Dom Gonalo Pereira, ficam informaes por anunciar e
questes por responder.
* Foram removidos fragmentos para anlise. No caso da mitra, o fragmento corresponde apenas ao
pergaminho do enchimento.
35
A mitra tem representado o Martrio de So Loureno e a Lapidao de Santo Estvo. associada a outras
quatro, datadas dos finais do sculo XII ou princpios do sculo XIII, com temtica e tcnica de produo
anlogas. VOGT, Caroline Episcopal Self-fashioning: The Thomas Becket Mitres. Riggisberger Berichte.
Iconography of Liturgical Textiles in the Middle Ages. 18 (2010), pp. 117-128. A tcnica deste bordado
alterada nos finais do sculo XIII, ficando a sarja de seda substituda por tafet de linho, integralmente bordado
por fios laminados e seda policroma. HARRIS, Jennifer 5.000 Years of Textiles. Washington: Smithsonian
Books, 1993, pp. 200-203; KENDRICK Ob. cit., p. 25.
93
94
Fig. 4 a) Pormenor do
bordado com variante de
ponto de cruz oblquo /
Fotografia: Madalena Serro
(DGPC; FCT); b) Levantamento
grfico da decorao /
Desenho: Madalena Serro
(DGPC; FCT) e Paula Monteiro
(LJF/DGPC)
95
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97
98
99
Cf. Isabel Maria Arajo Lima Cluny Summavielle, O Conde de Tarouca e a Diplomacia na poca Moderna
(Dissertao de doutoramento em Histria e Teoria das Ideias apresentada Faculdade de Cincias Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa: 2002), ou a verso editada: Isabel Cluny, O Conde de Tarouca
e a Diplomacia na poca Moderna (Lisboa: Livros Horizonte, 2006).
5
Cf. Maria Alexandra Trindade Gago da Cmara, A Arte de Bem Viver: A Encenao do Quotidiano na
Azulejaria Portuguesa da Segunda Metade de Setecentos, Vol. I (Dissertao de doutoramento em Histria da
Arte Moderna Portuguesa apresentada Universidade Aberta de Lisboa, Lisboa: 2000), 422-425.
6
Cf. Gustavo de Matos Sequeira, Depois do Terramoto: Subsdios para a Histria dos Bairros Ocidentais de
Lisboa, Vol. I (Lisboa: Academia das Cincias de Lisboa, 1967), 63.
7
BPE, Cd. CX/1-6, n. 25, fl. 34 v..
8
ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO (Lisboa), Registos Paroquiais, Baptismos, Freguesia de Nossa
Senhora da Pena (Santa Ana), L. 6B, fl. 160 v., ref. por Ayres de Carvalho, D. Joo V e a Arte do Seu Tempo,
Vol. II (Lisboa: Edio do Autor, 1962), 151.
9
Cf. ANTT, Cartrio Notarial de Lisboa, n. 7 A (actual n. 15), Cx. 81, L. 430, fls. 88 v.-89 v. e L. 431, fls. 4-6,
publ. por Ayres de Carvalho, Documentrio Artstico do Primeiro Quartel de Setecentos, Exarado nas Notas
dos Tabelies de Lisboa (separata da revista Bracara Augusta, vol. XXVI), Braga (1974): 17.
10
BPE, Cd. CX/1-6, n. 25, fl. 30 v..
100
Quanto vida de Ferno Teles da Silva, menos conhecida do que a de seu pai, sabe-se que ter
nascido a 25 de Setembro de 1698, sendo baptizado a 1 de Outubro desse ano na freguesia do
Socorro11 e que se ter casado em 1725 na freguesia das Mercs12 com D. Maria Josefa de Melo
(1705-1744), filha de D. Francisco de Melo, monteiro-mor do reino e embaixador extraordinrio em
Madrid13, e de D. Catarina de Noronha. Alis, ter sido essa a via para adquirir tal cargo honorfico,
cuja carta lhe foi atribuda a 1 de Janeiro de 172814, que inclusivamente lhe ter possibilitado vir a
habitar a morada de casas de seu sogro na sobredita Calada do Combro, assim como vir a possuir
uma majestosa quinta no stio do Lumiar. Acerca de outros pormenores da sua vida pessoal pouco se
conhece. Contudo, a sua descendncia ter sido assegurada atravs de vrios filhos e filhas15.
Tambm a sua ligao irmandade dos Passos da Graa, onde foi provedor entre 1741 e 1742,
encontra-se comprovada, dando-nos uma outra perspectiva, mais espiritual, da sua vida16, que
abandonou a 2 de Junho de 176317.
ANTT, Registos Paroquiais, Baptismos, Freguesia de Nossa Senhora do Socorro, L. 5B, fl. 193.
ANTT, Registos Paroquiais, Casamentos, Freguesia de Nossa Senhora das Mercs, L. 2C, fl. 156 v..
13
Cf. Ana Leal de Faria, Arquitectos da Paz: A Diplomacia Portuguesa de 1640 a 1815 (Lisboa: Tribuna da
Histria, 2008), 247.
14
ANTT, Chancelarias de D. Joo V, L. 72, fl. 111.
15
Francisco Jos Amaro Lus de Melo (ANTT, Registos Paroquiais, Baptismos, Freguesia de Nossa Senhora das
Mercs, L. 2B (1689-1728), fl. 274 v.); Maria Catarina (Idem, ibidem, L. 2B (1728-1746), fl. 9 v.); Catarina
(Idem, ibidem, fl. 17 v.); Joo (Idem, ibidem, fl. 25 v.); Isabel (Idem, ibidem, fl. 33); Lusa (Idem, ibidem, fl. 47
v.); Teresa Josefa (Idem, ibidem, fl. 56 v.); Catarina (Idem, ibidem, fl. 66 v.); Jos Maria Justino Antnio Lus
de Melo (Idem, ibidem, fl. 76); Lus Jos Maria de Melo (Idem, ibidem, fl. 104 v.) e Antnio Garcia Jos
Alexandre Lus de Melo (Idem, ibidem, fl. 134 v.).
16
Vide Pe. Ernesto de Sales, Nosso Senhor dos Passos da Graa (de Lisboa) (Lisboa: Edio do Autor, 1925), 200.
17
ANTT, Registos Paroquiais, bitos, Freguesia de Nossa Senhora das Mercs, L. 02, fl. 162.
18
ARQUIVO HISTRICO DO PATRIARCADO, Ris de Confessados, Freguesia de Nossa Senhora das Mercs, ano
1723, s. n. fl.
19
ANTT, Registos Paroquiais, bitos, Freguesia de Nossa Senhora das Mercs, L. 01 (1622-1831), fl. 88 v..
20
BPE, Cd. CX/1-6, n. 25, fl. 22.
21
Vide Ayres de Carvalho, D. Joo V e a Arte do Seu Tempo, Vol. II,[...], 368; Jos Fernandes Pereira, Antnio
CANNEVARI, in Jos Fernandes Pereira (dir. de), Dicionrio da Arte Barroca em Portugal (Lisboa: Editorial
Presena, 1989), 107-108; Vtor Serro, Histria da Arte em Portugal: O Barroco (Lisboa: Editorial Presena,
2003), 190-191; Antnio Filipe Pimentel, Antnio Canevari e a Torre da Universidade de Coimbra, in AA.VV.,
12
101
Santos Pacheco de Lima22. Plantas essas que so alvo de uma anlise detalhada e consequentemente
de duras crticas, a que se seguir a desconstruo dos projectos. Com efeito, Joo Gomes da Silva
apresenta comentrios assertivos ao modo de construir de cada um deles. Acerca da proposta do
referido Messier expressa que he absolutamente impropria para hum Fidalgo em Lisboa, e somente
boa para hum banqueiro em Paris. Quanto de Antnio Canevari, diz que he to condenavel, que
se no pode ver sem enfado, e indignao [] Foi fortuna para vos que Canavari sahise de Lisboa23.
Por fim, quando menciona Santos Pacheco, refere que a planta de Diabos Pacheco he na verdade a
couza mais monstruoza que vi fazer a hum Architecto, se he que elle se pode chamar Architecto e
mais adiante caracteriza ainda o artista como pessoa que tem geito de ser algum Portuguez
serrado, de entendimento grosso, e teimoso24.
Aps refutar as propostas destes trs riscadores, atravs de um verdadeiro desfile de crticas e
alvitres, o conde de Tarouca inicia uma autntica lio terica sobre o modo de construir, que
espelha cabalmente o conhecimento adquirido nas suas muitas deslocaes pela Europa. Tal
preleco, que tinha por objectivo dar a conhecer ao seu filho o que de melhor se fazia na ento
pennsula itlica, Frana, Inglaterra, Holanda, Alemanha e Espanha, deveria elucidar Ferno Teles da
Silva, para que em articulao com o modo de construir portugus conseguisse levar a bom porto a
empresa de erguer uma habitao que apelidou de huma casa magnifica. Com efeito, ao redigir o
seguinte comentrio: Conforme o documento antigo si fueris Rome, Romano vivito more, deveis
edificar na maior parte seguindo o metodo Portuguez, mas isso no impede que emendeis em
algumas circunstancias o dito nosso mtodo, reflectindo no que tem de bom, os das outras
naoens25, enceta um conjunto de elogios s artes construtivas dos j referidos pases. Veja-se pois
a aluso ao facto de os italianos construrem vastos palcios, apesar de descurarem algumas
comodidades, vantagem levada pelos franceses no que s artes decorativas diz respeito,
particularmente aos trabalhos de madeiras aplicadas aos interiores, e capacidade economicista dos
ingleses e holandeses, ao aproveitar os terrenos e rentabilizar os espaos. A estas consideraes
acrescenta ainda outras menos generosas s construes dos alemes, cuja genialidade s se deve
ao facto de chamarem arquitectos italianos, bem como s castelhanas, acerca das quais conclui: Os
Castelhanos no construem nada de bom por nenhum caminho.26
Contudo, a aco de afamados construtores do seu tempo no termina na novidade da existncia de
plantas destes artistas. Na segunda carta, compreende-se que Ferno Teles da Silva contactara ainda
com Carlos Mardel27, a quem pedira igualmente um parecer sobre a sua obra, o que leva a que seu
Artistas e Artfices e a Sua Mobilidade no Mundo de Expresso Portuguesa, Actas VII Colquio Luso-Brasileiro de
Histria da Arte (Porto: Departamento de Cincias e Tcnicas do Patrimnio / Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 2005), 49-58; Francisco Jos Gentil Berger, Canevari em Portugal, in Artitextos, n. 2
(Setembro de 2006): 9-18 e Antnio Filipe Pimentel, Antnio Canevari e a Arcdia Romana: Subsdios para o
Estudo das Relaes Artsticas Lisboa/Roma no Reinado de D. Joo V, in Teresa Leonor M. Vale (coord. de),
Lisboa Barroca e o Barroco de Lisboa: Colquio de Histria da Arte (Lisboa, Livros Horizonte, 2007), 31-47.
22
Vide Ayres de Carvalho, Novas Revelaes para a Histria do Barroco em Portugal, in Belas-Artes, n. 20,
1964, Slvia Ferreira, A Igreja de Santa Catarina, A Talha da Capela-Mor (Lisboa: Livros Horizonte, 2008), e
particularmente de Francisco Jos Gentil Berger, Lisboa e os arquitectos de D. Joo V: Manuel da Costa
Negreiros no estudo sistemtico do barroco joanino na regio de Lisboa (Lisboa: Edies Cosmos, 1994), 277.
23
Trata-se da sada intempestuosa de Antnio Canevari de Portugal, motivada pela querela gerada em torno da
obra do Aqueduto das guas Livres. Cf. Joaquim Oliveira Caetano, Arquitectos, Engenheiros e Mestres de
Obras do Aqueduto das guas Livres, in Irisalva Moita (dir. de), D. Joo V e o Abastecimento de gua a Lisboa
(Lisboa: Cmara Municipal de Lisboa, 1990), 67-100.
24
BPE, Cd. CX/1-6, n. 25, fls. 2-3 e 22 v..
25
Idem, ibidem, fl. 4 v..
26
Idem, ibidem, fl. 5.
27
Carlos Mardel encontrava-se prximo de Ferno Teles da Silva, uma vez que tambm ele vivia na freguesia
das Mercs. Tal evidncia comprovada atravs do baptismo de seu filho Joo nessa freguesia, a 23 de Julho
de 1735, onde consta como filho de Carlos Mardel, natural da Alemanha, e de sua mulher Margarida Mardel,
102
pai procure saber referncias acerca desta personalidade. Tal procura, em terras prussianas, no ser
feliz, pois o que o conde de Tarouca consegue apurar que, segundo as suas palavras Carlos
Martelo [] falsrio, embusteiro, e caluniador, acrescentando ainda que Diz o dito Senhor Carlos
Martelo que fora aqui Capito Ingenheiro, e mandando eu examinar isso nos livros do Comissariado
que corresponde as nossas vedorias no se acha que tal homem fosse; nem Capito, nem Official.
Informei me com Marinoni28 Mestre deputado, ha muitos annos pello Emperador para os ingenheiros,
e este o no conhece. Tambem o Baron Ficher29 nascido aqui, e primeiro Architecto do Emperador
no o conhece. Tambem Joo Lucas30 Architecto do Principe Eugenio, e antigo aqui no o conhece.
Porem mandando ouvir nisto a Beduzi31, a quem nunca falei, dis que o conhece mas que no sabe que
elle fosse Official, e que no achou nelle nenhuma luz de Architectura Civil32.
Ainda a propsito da aparente discrdia entre pai e filho sobre a empresa das supra-referidas casas,
intervm Estvo de Menezes, que indica o arquitecto e ourives alemo Joo Frederico Ludovice
como um dos mais capacitados para avaliar a j mencionada fbrica: Ora, meu Senhor, sem perder
mais tempo com rapazes, com ignorantes, e com pataratas, mostraj as Vossas Plantas a homens de
juizo, consultaj Architectos que o sejo verdadejramente como Federico, ou outro que tenha feito
obra grande; medi; e avaliaj a Vossa, e vede bem ao depois se vos convem fazella porque na vossa
idade ja no vaj bem emprender, nem desmajar ligejramente.33
Quanto proposta do pai, que, no nosso entender, e cotejando com o remanescente, dever ter sido
parcialmente atendida, ilustra cabalmente o que se desejava data que deveria ser uma morada de
casas nobres34. Sendo o piso nobre aquele que melhor espelha a concepo do conjunto, este
deveria apresentar vinte cinco pessas, a saber: oratrio, sala, treze casas para a Senhora e dez para
o Marido. Das inmeras consideraes tecidas, salientamos ainda algumas que nos parecem de suma
importncia para o cabal entendimento do projecto: a existncia de uma escada principal, projectada
com treze palmos de largo, que deveria cercar toda a sala e saguo, sem impedir que a entrada nessa
diviso se desse pelas habituais antecmaras e guarda-roupa, e a amplitude do ptio, com tamanho
suficiente para serem capazes de voltar nele coches a seis cavalos. Este local deveria ainda possuir
huma fonte, ou gruta de embrechados rsticos que, no entender do embaixador, no era muito
natural do reino da Irlanda, cf. ANTT, Registos Paroquiais, Baptismos, Freguesia de Nossa Senhora das Mercs,
L. 2B (1728-1746), fl. 56.
28
Trata-se de Johann Jakob Marinoni (1676-1755), astrnomo e matemtico da corte de Viena.
29
Nessa data trata-se do arquitecto Joseph Emanuel Fischer von Erlach, filho e discpulo de Johann Bernhard
Fischer von Erlach (1656-1723).
30
seguramente o arquitecto Johann Lukas von Hildebrandt (1668-1745).
31
Trata-se do bolonhs Antonio Maria Nicolau Beduzzi (1675-1735).
32
BPE, Cd. CX/1-6, n. 25, fl. 19.
33
Idem, ibidem, fl. 31 v..
34
Sobre o tema vejam-se as vrias edies do congresso internacional Casa nobre: um patrimnio para o
futuro, bem como o projecto em curso A Casa Senhorial em Lisboa e no Rio de Janeiro (scs. XVII, XVIII e XIX)
Anatomia dos Interiores (PTDC/EATHAT/112229/2009). Parcelarmente, destacamos ainda: Carlos de Azevedo,
Solares Portugueses (Lisboa: Livros Horizonte, 1969), Helder Carita e Homem Cardoso, Oriente e Ocidente nos
Interiores em Portugal (Porto: Livraria Civilizao Editora, 1983), Helder Carita, Bairro Alto: Tipologias e Modos
Arquitectnicos (Lisboa: Cmara Municipal de Lisboa, 1994), particularmente o captulo Palcios, Edifcios
Pblicos e Religiosos, 63-92, Antnio Filipe Pimentel, Repercusses do tema do Palcio-Bloco na arquitectura
portuguesa, in Actas del VII Simposio Hispano-Portugus de Historia del Arte (Badajoz: s. ed., 1995), 81-94,
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decifrao dos cdigos habitativos, in GEHA.A1, n. 1 (Julho de 1998): 61-67, Joo Vieira Caldas, A Casa Rural
dos Arredores de Lisboa no Sculo XVIII (Porto: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 1999),
Maria Alexandra Trindade Gago da Cmara, op. cit., Vol. I, particularmente o captulo Arquitectura e
quotidiano: a habitao-nobre no termo de Lisboa, 89-130, e Carlos Franco, Diverso, Cor e Brilho: as longas
noites dos sales da Lisboa setecentista, in Teresa Leonor Vale, Maria Joo Pacheco Ferreira e Slvia Ferreira
(coord. de), Lisboa e a Festa: Celebraes Religiosas e Civis na Cidade Medieval e Moderna, Colquio de Histria
e de Histria da Arte, Actas (Lisboa: Cmara Municipal de Lisboa, 2009), 123-129, entre outros autores.
103
dispendiosa, a qual deveria ficar em frente porta, exibindo bela aparncia a quem passasse pela
Calada do Combro. Alm destes reparos, que seguramente nortearam as escolhas de Ferno Teles
da Silva, outros sobressaem nas supracitadas cartas. A sala de sessenta e um palmos em quadro
como o saguo que esta debaixo, o oratrio vizinho da segunda, e terceira antecamara, a
existncia de uma caza de louvor de trinta palmos, e meio sobre vintasete, a qual na planta vos ha
de paresser que he esgona / erro que eu no fiz jamais / mas os seus trs ngulos so perfeitamente
rectos, huma Caza sextavada de vinte e outo palmos, e meio no maior comprimento, e dezasete de
laergura, com todas as paredes, e membros nella iguais, e pus lhe o que ha poucos annos inventaro
os Francezes chamando lhe nicho, que vem a ser alcova pequena, na qual no pode entrar mais que o
leito para huma pessoa, uma caza ouvada de vintenove palmos de comprido sobre dezasete de
largo, a qual, como digo destino para filhas e huma caza de vinte seis palmos no maior
comprimento, sobre dezaseis, e meio de largo, para nella se comer em particular com a familia35.
Todavia, e apesar das alteraes impostas ao edificado, no nos devemos alhear do sabor
italianizante patente em alguns elementos, possivelmente aproveitados da proposta de Canevari.
Elucida esta questo uma frase de Joo Gomes da Silva explicando que, uma vez que o portal
idealizado pelo arquitecto italiano j se deveria encontrar feito, deveria ser reaproveitado: Torno a
falarvos do portal de Canavari no s porque vos agrada tanto, mas porque talvez se acahr feito, e
no quizera que perdsseis o seu grande custo. Nesse cazo podeis empregalo, tirando fora os trs
arcos exteriores, e seus pilares rsticos, e pondo o dito portal com duas grandes janelas aos lados.36
Com efeito, o portal em arco, ladeado por dois vos rectangulares, ainda hoje se observa no local,
incutindo, a par das escadas e de alguns aspectos decorativos ainda perceptveis nos interiores, o
aspecto italianizante a que vrios autores anteriormente se referiram37.
Por fim, resta-nos destacar o facto de o conde de Tarouca evidenciar nesta singular fonte para o
estudo da casa nobre setecentista preocupaes que vo muito para alm da funcionalidade dos
espaos. A ornamentao e a modernidade que o edifcio tinha a obrigao de ostentar dever-se-ia
incluir nos mais altos parmetros europeus. Elucida particularmente este intento a referncia na
sobredita correspondncia aos adornos de um Francez Marot38, aplicados na nova casa do conde
de Obdam39, e que tambm deveriam constar da decorao desta morada de casas nobres.
Em suma, embora Joo Gomes da Silva deixasse transparecer a sua vivncia cosmopolita, o apreo
pela construo portuguesa foi algo que sempre o acompanhou. Apesar de no existirem certezas
acerca do que pensava ser o mtodo portugus, certo era o conhecimento que tinha da existncia
de uma prtica construtiva que decorria da frequncia da aula de aprendiz de arquitectura civil, em
que a identidade da construo portuguesa era passada, nomeadamente as mtricas (petip), as
propores e relaes volumtricas40.
35
104
Fig. 3 Desenho do alado principal do palcio do Monteiro-Mor. ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA (Lisboa),
Ncleo Intermdio, Processo n. 45664, fl. 3 (1881).
105
Fig. 4 Desenho do alado lateral esquerdo do palcio do Monteiro-Mor. ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA
(Lisboa), Ncleo Intermdio, Processo n. 45664, fl. 4 (1881).
Fig. 5 Planta do piso nobre do palcio do Monteiro-Mor. ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA (Lisboa),
Ncleo Intermdio, Processo n. 45664, fl. 6 (1881).
106
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Ncleo Intermdio, Processo n. 45664
ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO (Lisboa)
Cartrio Notarial de Lisboa, n. 7 A (actual n. 15), Cx. 81, L. 430, fls. 88 v.-89 v. e L. 431, fls. 4-6
Chancelarias de D. Joo V, L. 72, fl. 111
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Registos Paroquiais, Baptismos, Freguesia de Nossa Senhora das Mercs, L. 2B (1689-1728), fl. 274
v., L. 2B (1728-1746), fls. 9 v., 17 v., 25 v., 33, 56, 56 v., 66 v., 76, 104 v. e 134 v.
Registos Paroquiais, Baptismos, Freguesia de Nossa Senhora do Socorro, L. 5B, fl. 193
Registos Paroquiais, Casamentos, Freguesia de Nossa Senhora das Mercs, L. 2C, fl. 156 v.
Registos Paroquiais, bitos, Freguesia de Nossa Senhora das Mercs, L. 01 (1622-1831), fl. 88 v.
Registos Paroquiais, bitos, Freguesia de Nossa Senhora das Mercs, L. 02, fl. 162
BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL (Lisboa)
Seco de Reservados, Cod. 5166: Medidas Gerais de Portugal (1660), de Joo Nunes Tinoco (act.
1652-1689)
BIBLIOTECA PBLICA DE VORA (vora)
Cd. CX/1-6, n. 25, fls. 1 a 43
CONSERVATRIA DO REGISTO PREDIAL (Lisboa)
Freguesia das Mercs, Processo n. 217
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109
A comunicao apresentada ao IV CHAP, aqui resumida, foi entretanto includa e desenvolvida no Captulo 4
da dissertao de doutoramento: Gran cosa Roma!? Interrogar o mandar fazer arquitectura em Portugal
no sculo XVI: as Casas de Sortelha e da Castanheira, entre topologia e metamorfose, Departamento de
Histria da Arte, FCSH-UNL (em fase de concluso).
110
Nomeadamente, Jlio de Castilho na sua Lisboa Antiga e Norberto Arajo no Inventrio de Lisboa.
111
primeira referncia propriedade de 1788, onde surge com o n. 2, rendendo 200$000 ris. At
ento, a nica propriedade no lado direito da rua o palcio arruinado do Marqus de Valena2.
Nas memrias de William Beckford, que a 3 de Novembro de 1787 visitou o palcio, este descrito
com algum pormenor, notando-se que a casa estaria ainda inabitada nesse ano, mas tendo j a
definio que lhe conhecemos. Diz-nos o visitante: fomos ver uma casa enorme que Quintela, o
negociante, mandou construir. Uma velha criada fanhosa veio alumiar-nos a escada, a qual to
grande que mais parece um edifcio pblico ou de um teatro. [...] Fazia to escuro que mal se podiam
distinguir as portas das janelas. A maior parte das salas tinha um p-direito extraordinrio. Um dos
trios, desastrado e estreito octgono, no pode ter, se bem calculo, menos de doze metros de
altura (2009, p.163).
Posteriormente e com vista a aumentar a propriedade e dessa forma acabando por marcar a
dinmica da malha urbana da zona, Joaquim Pedro adquire o terreno fronteiro propriedade em
que mora (Silva, 1997, p. 88), onde, por acordo com os proprietrios confinantes, no haver
construo e ficar como largo: o actual Largo Baro de Quintela. Anexar ainda propriedade hum
Cho na Travea extinta de So Jos e hum Terreno no Lado Poente da Rua do Thesouro Velho, que
em parte da travea de So Jos (Silva, 1997, p. 88) arrematados em Abril de 1791. A compra destes
dois terrenos que obrigar as Obras Pblicas a suprir a Travessa de S. Jos, que facilitaria a
circulao entre a Rua do Alecrim e a actual Rua Antnio Maria Cardoso permitiu-lhe aumentar a
rea de jardim que se desenvolve defronte e contiguamente fachada posterior do palcio, bem
como construir os dois prdios nobres de rendimento3, na sequncia do muro de acesso ao ptio das
cavalarias.
A observao das fachadas elos de ligao entre a casa e o exterior permite discernir uma
diferenciao de tratamento entre fachada principal e fachada posterior, resultado quer das
imposies topogrficas, quer das utncias que estavam reservadas s reas da casa ligadas a cada
uma das fachadas. Desta forma, reserva-se fachada voltada Rua do Alecrim as funes de
representatividade da casa e seu proprietrio. Enquanto que a fachada posterior, voltada ao jardim
privado, se define numa tnica mais intimista, qual no alheia a reduo de escala de trs para
um piso.
A fachada posterior aproxima-se dos valores da arquitectura das villas, ou casas de veraneio,
apostando em elementos de maior rusticidade, como as pilastras com silhares de junta aberta, que
encontramos, por exemplo, na articulao dos panos da fachada principal do palcio da Quinta das
Laranjeiras, precisamente o palcio da famlia no termo da cidade. Estes palcios partilham, ainda, a
frmula dos culos ovalados que se rasgam no andar em tico e a relao de grande proximidade
que ambas as fachadas posteriores estabelecem com o jardim envolvente, abrindo-se a este e
convidando a fruir das suas amenidades. Contudo, a fachada posterior do palcio das Laranjeiras
prope uma soluo de maior aparato, conferida pela escadaria de dois lanos que liga o andar
2
A Rua do Alecrim, apesar de estar includa na rea de interveno da reconstruo pombalina, teve um
desenvolvimento mais tardio, quase inteiramente do perodo mariano, sendo notrias as fugas ao plano e uma
maior particularizao de lotes e fachadas. A rua perdeu em uniformidade, quando comparada com os
prospectos contidos no Cartulrio Pombalino, mas ganhou em fora imagtica. Do ponto de vista social nota-se
uma forte presena do investimento privado, e de negociantes nacionais e estrangeiros habitando a rua, o que
lhes permitia estar mais prximos do centro financeiro da capital a Baixa mas numa zona mais qualificada e
dotada de cariz aristocrtico.
3
O prdio nobre de rendimento surge como uma variao ao prdio de rendimento, marca operativa do plano
de reconstruo pombalina, que vemos surgir, desde logo, nos prospectos mais tardios do cartulrio
pombalino. Esta categoria ter importante expresso no perodo mariano, particularmente na zona do Chiado.
Define-se por uma maior uniformizao entre andares, uma individualizao maior das fachadas e a
predominncia, particularmente no primeiro e segundo pisos, de um arrendatrio por piso.
112
nobre ao jardim, enquanto no palcio Quintela a ligao ao jardim ainda mais prxima, visto que o
andar nobre est ao mesmo nvel deste, constituindo uma novidade do final do sculo XVIII.
Alm de permitir essa leitura de espao intimista, a fachada posterior lugar de experincia de um
maior eclectismo dos elementos arquitectnicos, nomeadamente nas opes tomadas nos perfis das
molduras dos vos. Afastando-se de opes mais experimentadas e de genealogia mais facilmente
identificvel, as molduras dos vos apresentam variaes, que a individualizam e dinamizam,
aproximando-a de valores que o romantismo assumir em pleno.
A fachada principal define-se numa intencionalidade distinta. Mesmo na proposta simplificadora de
Manuel da Maia para os palcios ps-terramoto, o portal seria armoriado, anunciando os seus
proprietrios. O palcio Quintela, data da sua construo, no poderia ainda apresentar armas do
baronato, que s sero atribudas em 1806, pelo que traduz esse intuito de representatividade na
escolha da linguagem arquitectnica ali empregada.
Jos de Sarmento Matos prope, e Raquel Henriques da Silva (1997, pp. 86-87) corrobora a proposta,
do palcio Lavradio ser o referente serial desta fachada. As opes estruturantes das fachadas so
similares, com particular nfase na soluo tradicional da resoluo do eixo central com ligao
portal-janela, bem como da utilizao de sacadas anunciando ao exterior a distribuio da zona
nobre do palcio. No entanto, a composio do palcio Quintela, embora devedora da soluo de
tnica barroca do palcio Lavradio, se tenha classicizado, ou neoclassicizado por ditames de estilo e
tempo.
Os referentes do palcio Quintela incorporam, tambm, valores devedores da dinmica construtiva
ps-terramoto e das propostas dos arquitectos da Casa do Risco, particularmente da segunda fase.
Neste sentido, encontramos no perfil recortado dos vos de peito e nas sacadas de perfil recortado,
sobrepujado de cornija, eco das solues propostas nos prospectos para a zona do Chiado,
integrando-se o palcio, com facilidade, no tipo de linguagem seguida por grande parte dos prdios
da Rua do Alecrim. Tambm a marcao dos cunhais com pilastras ou a marcao do piso nobre com
friso de cantaria so partilhados por muitos prdios. Sem olvidar, a opo pelas varandas de ferro
forjado, de cuidado lavor, to familiares arquitectura lisboeta e presena obrigatria em todos os
prospectos da Casa do Risco.
Apesar da clara ligao ao classicismo pragmtico do pombalino, a definio dos elementos
arquitectnicos reveste-se na fachada principal do palcio Quintela de uma maior elegncia e
erudio, jogando-se com as subtilezas contidas, por exemplo, na alternncia de molduras
delineadas por finos frisos e de molduras rectas inscritas em molduras recortadas, gerando uma
variao levemente eclctica do modelo canonizado pelos prdios da reconstruo pombalina. A
mesma erudio encontra-se no jogo dinmico criado pelas msulas das sacadas do andar nobre, que
se prolongam at moldura do vo inferior, criando um movimento vertical, coadjuvado pelos sulcos
longitudinais que as ornam.
Na exposio das influncias e ligaes passveis de ser estabelecidas a partir da leitura da fachada
principal, voltamos a referir o palcio das Laranjeiras que j vimos ter pontos de relao com a
fachada posterior. Intui-se uma familiaridade dada pelos valores de organizao e escolha de
elementos arquitectnicos, numa frmula muito lisboeta, diferenciando-se, porm, pela maior ou
menor erudio no trabalho desses mesmos elementos.
Por seu lado, a leitura das plantas do palcio torna clara a complexidade da sua distribuio interna,
com lgicas diferenciadas de circulao e utilizao do espao. Monique Eleb-Vidal e Anne DebarreBlanchard (1989) referem que , precisamente, ao longo do sculo XVIII que a questo da
113
Lcriture dun discours spcifiquement architectural sur la distribution va tre le fait nouveau de cette fin du
XVIIe sicle et surtout du XVIIIe sicle. Dsormais les ouvrages darchitecture vont traiter de la distribution
comme dune discipline part entire, au mme titre que la construction ou la dcoration., (Eleb-Vidal e
Debarre-Blanchard, 1989, p. 39)
5
Eleb-Vidal e Debarre-Blanchard referem neste sentido que lenfilade principale, au long de la faade, met
en relation les pices nobles, et est destine montrer au visiteur la richesse de lhabitant, proportionnelle la
longueur de cette perspective. Les dgagements et escaliers, situs dans la zone des pices secondaires sont
destins offrir des trajets diffrents aux matres, aux domestiques et aux visiteurs. (1989, p. 50).
6
Carvalho e Negreiros no seu tratado Aditamento ao livro intitulado Jornada pelo Tejo que foi of. a S. A. Real o
Prncipe Nosso Senhor que Deus guarde em o anno de 1792-1797 define como divises a integrar o piso nobre
da residncia de um nobre casado a sala de espera, antecmara, sala de visitas, gabinete, toucador, oratrio
ou tribuna para a ermida, caza de jantar, cmara, guarda roupa com chamin, caza de lavor, despejos,
enquanto o programa para o fidalgo casado tinha de mais do que tem o nobre antes da sala de visitas duas
antecmaras e depois da caza de jantar hum gabinete para caf e huma caza do tinel e mais outra cmara de
despejos (Carita, 2010).
114
A organizao do andar nobre permitiria, assim, uma seleco de sociabilidades, conferida pelas
opes de circulao, mas tambm pela possibilidade de percorrer todo o espao ou apenas uma
parte dele, criando um jogo entre o que do domnio privado e o que aberto aos visitantes. Estas
dinmicas da vida privada, aliadas a questes do foro estritamente tcnico adaptao ao terreno,
colocao de paredes mestras, iluminao do espao imprimem ao andar nobre do palcio
Quintela, na condio de exemplar de arquitectura residencial nobre setecentista, uma leitura quase
elptica: divises abrindo-se a divises, na sequncia das fachadas, gravitando em torno do vestbulo
central, autntico dinamizador do espao de onde partem e confluem opes de percurso e
concomitantemente de fruio da casa.
O palcio Quintela exemplo paradigmtico de arquitectura civil mariana que plasma em todas as
suas valncias implantao urbana, fachadas e organizao interna as marcas de um perodo
histrico pautado pelo dinamismo cultural, artstico e social, momento de transio entre as
categorias e esquemas mentais do Antigo Regime e a entrada em cena do liberalismo polticoeconmico e do romantismo enquanto movimento cultural e artstico. Esta realidade transparece,
desde logo, na importncia da figura de Joaquim Pedro Quintela, um dos mais notveis negociantes
da praa de Lisboa nesse momento, cuja casa serve, tambm, o propsito de ecoar a seu estatuto
social. A implantao do palcio remete para essa realidade, estando situado numa artria em pleno
desenvolvimento, mas qual, por vontade do prprio Quintela, introduzido um largo fronteiro,
remontando tradio dos terreiros dos grandes palcios seiscentistas, mas transmutando-se aqui
em espao aberto cidade, interrompendo a malha urbana do Plano das Obras Pblicas. As prprias
fachadas so entendveis nessa leitura do palcio enquanto pea de transio, nomeadamente no j
referido tratamento diferenciado da fachada principal que, mantendo valores barrocos e
pombalinos, os adapta a uma elegncia neoclssica, enquanto a fachada posterior remete para outra
linha de valores, onde o eclectismo do tratamento dos vos e a relao directa com o jardim
apontam o caminho que ser seguido por muitos palacetes da centria seguinte.
115
116
117
118
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122
Cabe referir que na mesma poca tero sido construdas outras escadas da mesma tipologia no
emblemtico Palcio dos Marqueses de Castelo Rodrigo, tambm conhecido por Palcio Corte-Real.
Uma planta e um alado deste palcio (Fig. 1), datveis da segunda metade do sculo XVIII e hoje
guardados na Biblioteca Nacional3, atestam a presena desta estrutura no programa do seu interior.
Nos finais do sculo XVII, o Palcio, j na posse da Casa do Infantado, recebeu grandes alteraes,
instalando-se aqui o Infante D. Pedro, mais tarde o rei D. Pedro II. A rica iconografia deste palcio
evidencia estas transformaes, que acrescentaram um piso recuado sobre o andar nobre. Se no
desenho de Lisboa de Pier Maria Baldi, ou na gravura de Dirk Stoop, o edifcio surge com a sua
morfologia original, o piso sobrelevado j claramente perceptvel tanto na representao do
palcio na Panormica de Lisboa em azulejos, do Museu do Azulejo, datada dos incios do sculo
XVIII, como na Panormica de Lisboa atribuda a Jos Pinho de Matos, igualmente do sculo XVIII.
A nosso entender, o corpo de escadas parece, porm, corresponder, nas suas lgicas programticas e
arquitectnicas, ao primitivo edifcio, dadas as caractersticas de estrutura fundamental com que se
articula com toda a planta. De facto, estas escadas integram-se na morfologia e no partido esttico
do palcio, com a sua planta quadrada marcada, nos cantos, por torrees com telhados de quatro
guas, muito inclinados, cujas fortes influncias espanholas tm sido largamente referidas pela
historiografia4.
A anlise comparativa da planta, considerando a sua inspirao no esquema monumental do
Escorial, sugere que estas escadas davam acesso a um piso nobre situado no alto de um quarto piso,
transpondo os dois pisos intermdios, o que naturalmente imprimia ao conjunto uma escala
verdadeiramente monumental. Dado o seu majestoso comprimento, tanto o lance central como os
dois lances laterais, mais uma vez em sintonia com o Escorial, contemplavam com um patim
intermdio, o que tornava a subida mais suave, evitando, por outro lado, uma sensao de
desconforto e insegurana na descida.
A falta de um corte da escadaria e a existncia de apenas uma planta sumria do piso nobre dificultanos uma avaliao em pormenor da sua estrutura. O nmero de degraus visveis na planta no
permite a subida dos trs andares e o sentido dos lances no est apontado. Tudo indica, porm, que
o corpo de escadas se desenvolvia numa caixa aberta em triplo p-direito, limitada por grandes
paredes autoportantes.
Como assinalmos anteriormente, esta tipologia de escadas apresenta, nos dois casos, claras
afinidades com o Escorial, afastando-se, por outro lado, de uma filiao italiana radicada no
conhecido caso da Academia de So Rocco, em Veneza, de 1545-1550. No caso italiano, e embora a
planta se apresente muito semelhante, um lance central com dois lances simtricos e opostos, a
estrutura construtiva e espacial revela-se profundamente diferente. Estudos desenvolvidos por
vrios historiadores da arquitectura espanhola, como Catherine Wilkinson5, Bonet Correa6 ou
Fernando Maras7, analisaram em pormenor a evoluo das escadas imperiais espanholas e realam
a sua autonomia face s suas congneres italianas. Em sntese, as duas tipologias, espanhola e
italiana, apresentam uma diferena fundamental na sua estrutura e concepo espacial: enquanto
nas escadas italianas os lances so separados entre si por paredes desenvolvendo-se em espaos
cobertos por abbadas, numa sucesso de espaos visualmente descontnuos, nas espanholas, como
3
BN, Iconografia, Planta do Plano Nobre do Palcio dicto da Corte-Real: Praa do Corpo Santo. Des. 149A.
Cf. FRANA, Jos-Augusto, Lisboa Pombalina e o Iluminismo, Lisboa, Ed. Bertrand, 1977, pp. 29-31; SERRO,
Vtor, O Renascimento e o Maneirismo, Lisboa, ed. Presena, 2001, p. 204.
5
WILKINSON, Catherine, The Escorial and the Invention of the Imperial staircase, in The Art Bulletin, College
Art Association, Vol. 57, n. 1, Maro de 1975, pp. 65-90.
6
CORREA, Antnio Bonet, Le Scale Imperiali Spagnole, in Galeazzo Alessi e L'Architettura del Cinquecento.
Convegno Internazionali di Studi, Gnova, 1974, Sagep Ed., Gnova, 1975, pp. 631-683.
7
MARAS, Fernando, La Escalera Imperial en Espana, in LEscalier dans larchitecture de la Renaissance, Paris,
Ed. Picard, pp. 165-170.
4
123
salienta, Fernando Maras, se concebe un espacio visualmente continuo, nico, digno de ser
contemplado y experimentado como tal8, em sintonia com as escadas reais desenvolvidas em
Portugal. Se as escadas do Palcio Corte-Real teriam tido um impacto significativo na poca, foram,
porm, as escadas do Mosteiro de Belm que, pela sua escala mais contida, constituram o modelo
de referncia desenvolvido posteriormente em Portugal. Na sua lgica funcional, subindo apenas um
piso, estas escadas respondiam a uma tipologia mais comum de casa nobre com apenas dois pisos.
III Das escadas reais de estrutura autnoma a ncleo gerador do programa arquitectnico
Ao longo do sculo XVII, tanto as escadas do Palcio Corte-Real como as escadas do Mosteiro dos
Jernimos no parecem ter tido repercusses assinalveis nos programas das casas nobres
portuguesas. Basta para o corroborar referir o Palcio dos Condes de Redondo e o dos Condes da
Castanheira9, com escadas de apenas um lance, ou o dos Condes de Cantanhede, ao Loreto, este
ltimo com um esquema de lances envolvendo um ptio central.
Neste perodo, assistimos a um outro grupo de experincias que se liga com a tipologia de escadas de
lances simtricos e convergentes, divulgadas nos tratados de Srlio e de Vignola. Ensaiada tanto no
Palcio de Palhav10 como no Palcio Fronteira11, nas dcadas de setenta do sculo XVII, esta
tipologia acaba por no ter significativas repercusses, embora encontremos uma sua rplica, no
Palcio Mello12, aos Capuchos, j na segunda dcada do sculo XVIII, e outra, ainda mais tardia, no
Palcio do Machadinho, na Madragoa.
Outra tipologia, que ficar como um exemplo isolado, so as escadarias nobres do Palcio Tvora, ao
Campo Pequeno13. Numa soluo de influncia francesa, estas escadas, embora solenes,
permanecem limitadas entre paredes, sem adquirirem um valor cnico prprio do espao barroco,
que o esquema de escadas reais ir possibilitar.
Ser, assim, necessrio esperar pelas ltimas dcadas do sculo XVII para assistirmos, pela mo de
Mateus do Couto (sobrinho) e Joo Antunes, dois eminentes arquitectos da Provedoria de Obras
Reais, recuperao da tipologia de escadas reais e, no caso do segundo, sua utilizao numa
articulao coerente com o programa arquitectnico.
Da nossa investigao, tudo indica que ter sido o arquitecto Mateus do Couto ( sobrinho), autor da
traa do Palcio dos Condes de Ficalho, em Serpa (Figs. 2 e 3), o responsvel pela primeira
reutilizao do esquema de escadas reais na arquitectura senhorial. Na realidade, o projecto daquele
palcio foi recentemente atribudo a este arquitecto por Vtor Serro,14 a partir de documentao
que comprova a sua estada na vila de Serpa, em 1677, contratado para realizar as obras na igreja de
Santa Maria de que os Mellos, alcaides de Ficalho, eram patronos. A participao de Mateus do
8
124
Couto (sobrinho) no projecto do palcio coincide, por sua vez, com o programa azulejar das salas do
piso nobre do referido palcio, que nos seus largos padres em azul e branco apontam para uma
produo lisboeta datvel do ltimo quartel do sculo XVII. No seu conjunto, o projecto atesta ainda
uma primeira fase experimental onde a caixa de escadas se inscreve de forma autnoma no
programa distributivo dos interiores, sem uma relao axial e contnua com o vestbulo de entrada,
aqui situado num compartimento lateral face caixa das escadas.
Ser, porm, a partir da obra de Joo Antunes e de um significativo conjunto de palcios urbanos da
sua autoria que a estrutura de escadas reais adquire um estatuto programtico, associando de forma
coerente e funcional o corpo de escadas reais com um grande vestbulo de entrada.
Nas suas incumbncias oficiais este arquitecto ocupara-se de obras no Mosteiro dos Jernimos,
tendo sido responsvel, em parceria com o arquitecto Manuel do Couto15, pela finalizao das
citadas escadas deste mosteiro16, sendo aqui, em nosso entender, que Joo Antunes ter
reconhecido as capacidades de ritualidade cenogrfica desta estrutura, vindo posteriormente a
adapt-la a um novo sentido de fluidez espacial.
Na realidade, ao longo da sua carreira, este notvel arquitecto acumula os importantes cargos de
Arquitecto das Ordens Militares, em 169717, e de Arquitecto Rgio, em 169918. Nesta qualidade, Joo
Antunes trabalhava em estreita relao com a alta aristocracia detentora de cargos na administrao
rgia, sendo natural que a ele recorresse de forma informal para o risco das obras dos seus palcios.
Encontram-se neste caso o Conde de Tarouca, o seu irmo Marqus de Alegrete, ou o Marqus de
Abrantes, este ltimo detentor do cargo hereditrio de Gro-mestre da Ordem de Santiago.
Deste conjunto, assinalamos o Palcio do Conde de Tarouca (1700), o Palcio da Bemposta (1701), o
Palcio dos Condes de Atalaia (Marqueses de Tancos), cujo risco para as obras data de 169719, e o
Palcio do Conde-Baro20. Podemos ainda acrescentar a participao no Palcio dos Marqueses de
Abrantes, a Santos, e no do Calhariz, onde documentalmente sabemos que se encarregou da capela.
Constituindo-se como uma novidade e um notvel contributo para a histria da casa senhorial, o
Palcio da Bemposta21 (Fig. 4) destaca-se, porm, neste conjunto, apresentando pela primeira vez
um ncleo de escadas reais articulado axialmente com um grande vestbulo de entrada. Entendido
como elemento central e gerador do programa arquitectnico, o ncleo de escadas e vestbulo
espelha-se na fachada com um corpo limitado por pilastras onde se inscrevem dois grandes portais,
cujas funes permitiam uma maior fluidez e ritualizao das entradas e sadas dos coches. Com um
programa arquitectnico muito semelhante destaca-se igualmente o Palcio dos Condes de Alvor,
iniciado em 169922, onde vemos repetir-se o mesmo esquema de entrada com dois portais. Embora a
autoria do traado deste palcio seja desconhecida, observamos que o Conde de Alvor foi Vice-rei do
Estado da ndia, entre 1681 e 1686, e ocupou largos anos o cargo de Conselheiro de Estado, estando
pelas suas funes prximo de Joo Antunes. Independentemente de uma problemtica de autorias,
15
Segundo Sousa Viterbo, Manuel do Couto era filho de Matheus do Couto, no sendo evidente, atravs da
documentao, se seria filho de Matheus do Couto Tio ou de Matheus do Couto Sobrinho. Cf. SOUSA VITERBO,
Dicionrio, Lisboa, IN-CM, Vol. I, p. 249.
16
MENDONA, Isabel, A Casa da Portaria e Casa da Escada Conventual do Mosteiro de Santa Maria de Belm,
Lisboa, Faculdade de Letras, 1988 (texto policopiado).
17
COELHO, Teresa Campos, Um Concurso para o Provimento do Lugar de Arquitecto das Ordens Militares, in
Monumentos, n. 7, Lisboa, DGEMN, Setembro 1997, pp. 103-107.
18
SOUSA VITERBO, Dicionrio Histrico e Documental dos Arquitectos, Engenheiros e Construtores Portugueses,
Lisboa, IN-CM, Vol. I, 1899, p. 43.
19
IAN/TT Cartrio Notarial de Lisboa n. 9 A (actual n. 7), Cx. 57, L. 307, pp. 74 e 75.
20
IAN/TT Cartrio Notarial de Lisboa, n. 9 A (actual n. 7), Cx. 63, L. 351, fls. 69-70 (29 de Julho de 1712).
21
Sobre a histria deste palcio, cf. MOITA, Lus, A Bemposta (O Pao da Rainha ), in Olisipo, Lisboa, n. 40,
n. 56, n. 57, n. 60, n. 61, n. 64, e n. 65, Outubro 1947 a Janeiro 1964.
22
AH da CML, Livro de Cordeamentos de 1614-1699, s.n.
125
os dois projectos acusam uma soluo arquitectnica coerente nas suas relaes entre planta e
alado, que veremos progressivamente alargar-se a partir de Lisboa a todo o territrio.
De forma precoce, vemos aparecer este modelo de palcio, no Norte do pas, nos incios do sculo
XVIII, de que so exemplo: em Viana do Castelo, nas obras de Manuel Pinto de Vilalobos, a Casa Rego
Barreto (1705)23 ou, em Braga, com Manuel Fernandes da Silva, o Palcio dos Falces (1703)24. Com
programas muito semelhantes, marcados por uma linha austera aferida arquitectura ch, as
fachadas apresentam j o ncleo central demarcado no exterior por pilastras e uma soluo de dois
portais de entrada.
No podemos deixar de referir, corroborando uma circulao de influncias a partir da Provedoria de
Obras Reais, a presena do arquitecto Joo Antunes em Braga, nos anos 1698 e 1701, quando este
mestre chamado s obras da Casa do Tesouro da S25 (actual sacristia), assumidas, por sua vez, por
Manuel Fernandes da Silva e seu pai.
No Alentejo, assinalamos esta soluo arquitectnica, ainda vinculada a um barroco nacional, no
Palcio do lamo (Fig. 5), em Alter do Cho. A casa ter sido totalmente remodelada em 1732, sobre
uma construo inicial realizada em 1649, por iniciativa de Diogo Mendes de Vasconcelos26. Se o
programa interior apresenta um coerente ncleo de escadas reais articulado axialmente com
vestbulo de entrada e salo, o desenho da fachada apresenta ao centro um simples portal de
entrada.
Duma primeira fase de assimilao deste modelo, regista-se, em Viseu, o Solar dos Peixotos, com
uma caixa de escadas reais localizada num topo do corpo da fachada, indiciando obras de renovao
sobre um edifcio preexistente. A data de construo do palcio situa-se no ano de 1729, tendo sido
adquirido em fase de obras por Antnio de Loureiro Castelo-Branco e Vasconcelos ao seu primo, o
cnego Nicolau de Almeida Castelo-Branco27. Se na documentao a obra decorria por conta do
mestre pedreiro Pascoal Rodrigues, a traa, pela sua complexidade, poder ser atribuda ao
arquitecto Gaspar Ferreira, de Coimbra, autor da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra e
activo na regio em obras de vrias igrejas.
23
SOROMENHO, Miguel, Manuel Pinto de Vilalobos: da Engenharia Militar Arquitectura, Lisboa, 1991,
Dissertao de mestrado em Histria da Arte Moderna apresentada Faculdade de Cincias Sociais e Humanas
da Universidade Nova (texto policopiado).
24
ROCHA, Manuel Joaquim Moreira, Manuel Fernandes da Silva: mestre arquitecto de Braga 1693/1751, Porto,
ed. Centro de Estudos D. Domingos de Pinho Brando, 1996, p. 166.
25
BIRG, Manuela, Joo Antunes: 1643-1712, (catlogo), Lisboa, Instituto do Patrimnio Cultural, 1988, p. 34.
26
KEIL, Lus, Inventrio Artstico de Portugal: Distrito de Portalegre, Lisboa, 1943.
SILVA, Antnio L. Pereira da, Nobres Casas de Portugal, Porto, Tavares Martins, 5 vols., 1986.
27
COSTA, Jorge Braga da; CRUZ, Jlio, Monumentalidade Visiense, Viseu, Avis, 2007.
126
patim superior, os dois portais situados simetricamente esquerda e direita do acesso a duas alas
independentes do piso nobre.
Na sua lgica espacial e construtiva, as escadas reais constituem uma soluo unitria em dois pisos,
com pouca aptido para se desenvolver em maior altura, abrangendo mais pisos. Com estas
caractersticas e com o papel estrutural que lhe foi conferido, o ncleo de escadas reais tende a
constituir-se como factor essencial fixao de um modelo de palcio em dois pisos, com o piso
nobre no primeiro andar e com espaos cobertos por altos tectos associados aos sistemas de
cobertura.
No desenho da fachada verificamos uma maior elaborao e complexidade de composio, passando
o ncleo central a ser enfatizado por um fronto triangular assente em pilastras. Em alguns casos, o
ncleo central salienta-se dos corpos laterais com um ligeiro ressalto conseguido com recurso a dois
cunhais, acentuando uma leitura axial do alado, como vemos no Palcio Lavradio, em Lisboa, ou no
Palcio Mexia Galvo, ao Campo Grande28, iniciado no ano de 1739.
Numa preocupao de dotar a fachada de uma maior acentuao rtmica, conforme a uma lgica do
barroco internacional, as janelas do corpo central tendem a ser destacadas atravs de um desenho
diferenciado face s janelas dos corpos laterais. Por outro lado, o portal de entrada tende a conjugarse, num elemento nico, com a varanda e janela central do piso nobre que, recebendo profusa
decorao de msulas, flores e concheados, reforam a axialidade no desenho do alado,
acrescentando-lhe, igualmente, nas suas variadas solues decorativas, animao e ritmo.
No interior, o ncleo central de vestbulo, escadarias e salo, pelo seu valor de representao, recebe
particular acentuao decorativa, tendo aqui a azulejaria a sua expresso mais significativa, em
grandes painis cujo desenho e composio nos permitem observar as alteraes de gosto com o
avanar do rocaille.
No contexto de uma linguagem afecta ao barroco internacional assinalamos, no Porto, a divulgao
do ncleo de escadas reais em articulao com o programa arquitectnico, nas obras do Palcio de
So Joo Novo. O papel preponderante tradicionalmente atribudo a Nasoni nesta regio foi
recentemente reajustado pela contribuio de Jaime Ferreira Alves29, contextualizando-o numa
conjuntura mais complexa, em que a figura do arquitecto Antnio Pereira tem vindo a emergir como
fundamental. Na realidade, este mestre o autor do risco do Palcio de So Joo Novo, iniciado
meses antes da chegada de Nasoni cidade do Porto.
Pormenor particularmente significativo para o nosso estudo, Antnio Pereira veio de Lisboa, onde
trabalhara com o arquitecto Joo Antunes, como seu ajudante na Provedoria de Obras Reais30.
Antnio Pereira transferiu-se para o Porto, em 1719, para trabalhar nas obras de renovao da S,
sendo igualmente seu o traado das escadarias reais de ligao ao primeiro piso do claustro.
Parece assim concluir-se ser devido a este crculo de arquitectos a introduo de um modelo
portugus de palcio, estruturado a partir de um ncleo central de escadas reais, articulando a um
tempo planta e um alado tripartido.
A partir de meados do sculo XVII e prolongando-se at s primeiras dcadas do sculo XIX,
observamos por todo o pas a adopo deste modelo, registando-se sobretudo nos casos de maior
investimento arquitectnico. Vemos este modelo circular numa srie de pujantes e espectaculares
realizaes da casa senhorial do Norte, de que destacamos: o Palcio do Raio (Figs. 6 e 7), construdo
28
Conforme petio apresentada, em 1739, ao Senado da Cmara de Lisboa pelo desembargador Diogo de
Sousa Mexia. AH da CML, Livro de Cordeamentos de 1738-1740, s.n.
29
FERREIRA-ALVES, Jaime, Antnio Pereira: arquitecto do palcio de S. Joo Novo, in Boletim Cultural, 2.
srie, Vol. 7/8, Cmara Municipal do Porto, (1989/90), pp. 241-258.
30
SOUSA VITERBO, Dicionrio Histrico, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1899, Vol. II, p. 243.
127
com traa de Andr Soares (1754), a Casa do Cabo, a Casa de Cedovim, a Casa de Almendra, o Solar
dos Pimentis, o Solar dos Calanhos, sendo o Palcio da Brejoeira um dos seus mais emblemticos e
derradeiros exemplos.
Descendo para as Beiras, se o Palcio dos Condes de Anadia constitui uma precoce formulao deste
modelo, ainda nos finais da primeira metade do sc. XVIII (Fig. 8), a ele podemos acrescentar o
Palcio dos Condes de Santar, a Casa Grande, em Oliveira do Conde, a Casa das Fidalgas, em Carregal
do Sal, o Palcio Sottomayor, em Condeixa, ou ainda o Palcio das Brolhas, em Lamego.
At hoje menos estudada, a regio do Alentejo e Algarve oferece-nos, no entanto, tal como o Norte e
as Beiras, uma nova srie de exemplos de que destacamos: os palcios Tocha e Praia Monforte, em
Estremoz, o Palcio Sousa da Cmara, em Vila Viosa, com projecto do arquitecto Jos Francisco de
Abreu, em 176531, ou o Palcio dos Morgados Cardosos, em Borba.
De forma tardia, ainda no Algarve, podemos detectar a inspirao neste modelo, tanto nos dois
palcios da famlia Bvar, em Portimo e em Faro, como na Casa Grande, em Silves, esta ltima
construda j nos incios do sculo XIX.
Voltando a Lisboa e ao perodo dos finais do sculo XVIII, ainda podemos constatar a permanncia
deste modelo em dois emblemticos palcios: o Palcio dos Viscondes de Porto Covo, terminado
pelo ano de 1784, acusando uma derradeira esttica barroca, e o Palcio Baro de Quintela, ao
Chiado, apontando uma nova e emergente inspirao neoclssica32.
Julgamos, assim, traada em linhas gerais a gnese, evoluo e irradiao por todo o Pas do modelo
de palcio de ncleo central de escadas reais. Iniciado ainda num contexto do final da arquitectura
ch e do barroco nacional, este modelo assume caractersticas de um modelo de longa durao,
atravessando todo o sculo XVIII. Integrando linguagens do barroco internacional e italianizante, do
rococ e ainda do neoclssico, ele vai circular por todo o territrio nacional acabando por se
estender ao Brasil e ndia.
Com todas as implicaes que gera, aos nveis espacial e morfolgico, o ncleo de escadas reais
emerge, assim, em Portugal, como o elemento mais significativo e estruturante das lgicas
conceptuais da casa senhorial do sculo XVIII, ao propiciar a formao de um dos modelos mais
originais e eruditos da arquitectura domstica portuguesa.
31
ESPANCA, Tlio, Inventrio Artstico de Portugal, Distrito de vora, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes,
Vol. I, 1978, pp. 725-727.
32
Este palcio foi objecto de uma recente monografia, por Ins GONALVES, O Palcio Baro de Quintela:
contributo para um estudo monogrfico, Lisboa, FCSH-UNL (Dissertao de mestrado policopiada).
128
Fig. 1
Planta do Plano Nobre do
Palcio dito da Corte-Real.
Sc. XVIII, 2. metade. BN,
Iconografia,
Desenho 149-A
129
Fig. 4 Planta do piso nobre do Palcio da Bemposta. Arq. Joo Antunes, 1701. Biblioteca do
Arquivo Histrico Obras Pblicas (BAHOP), 1836, Desenho 55-4B.
Fig. 5 Escadarias nobres do Palcio do lamo. Alter do Cho, Alentejo, c. 1732. Foto: Helder Carita.
130
131
Fig. 8 Palcio dos Condes de Anadia, Mangualde. Perspectiva do ncleo de escadas reais
articulado de forma axial com o vestbulo de entrada.
132
Esta comunicao integra o artigo mais desenvolvido a ser publicado em 2015 : O legado de JosAugusto Frana na escrita da histria da arte em Portugal: caracterizao crtica do cnone e de
exemplos da sua persistncia in Revista Prticas da Histria. Revista sobre teoria, historiografia e
usos do passado, n. 1, Instituto de Histria Contempornea da Faculdade de Cincias Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
133
134
Tavares Chic e Armando Vieira Santos. Publicado em fascculos de 1959 a 1973, outras colaboraes
se evidenciam: Jos Jlio, Santos Simes, Manuel Figueiredo, Manuel Mendes, Costa Barreto, Rui
Mrio Gonalves e Adriano Gusmo, mantendo-se no presente uma obra de referncia fundamental.
Quinhentos Folhetins foram publicados pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda constituindo um I volume em
1984 apenas com 125, e mais tarde os restantes 125 folhetins, entre 1977 e 1987, foram apresentados num II
volume em 1993, e deram continuidade a outros textos publicados nas Artes e Letras do Comrcio do Porto
entre 1953 e 1973, assim como Notas e Lembranas publicadas no Dirio de Notcias, respectivamente na
Pgina Literria entre 1957 e 1959.
135
O surrealismo
Referir os comeos da escrita de J.-A. Frana estabelecer a ligao ao surrealismo. Evocando essa
circunstncia o autor escreveu para o catlogo da mais recente exposio L e C. Retrospectiva de
Fernando Lemos na Pinacoteca de So Paulo (2011). O texto de apresentao uma carta entre
amigos de longa data, escrita em Angers, na qual J.-A. Frana refere o historial da presena de Lemos
na sua escrita. A dado passo afirma: Era a questo de um lbum de desenhos, o primeiro que fazias
e me enviaste para eu ver e entender; tnhamo-nos encontrado poucas vezes antes, mas a confiana
foi merecida por ambos. De qualquer modo, foi tambm o primeiro texto crtico que escrevi.
[Frana, Lemos, Fernando. Retrospecto 1951-2011]
Pois bem, tal significa que o surrealismo e a crtica de arte andaram quase sempre de mos dadas no
percurso de J.-A. Frana, se bem que na primeira e nica Exposio do Grupo Surrealista de Lisboa,
do qual foi um dos fundadores, tivesse tambm apresentado pinturas...2 No tendo ido por esse
caminho, certamente porque no era o seu, e tambm por algum pudor, J.-A. Frana, logo a
propsito desse facto marcante para a histria do surrealismo em Portugal, ocorrido passados nove
anos sobre a exposio surrealista de Antnio Pedro, Antnio Dacosta e Pamela Boden em Lisboa,
publica Balano das Actividades Surrealistas em Portugal, a par de outros Cadernos Surrealistas. 3
Assumindo-se na defesa da arte moderna e da experimentao, J.-A. Frana posiciona-se
criticamente face ao neo-realismo, por condicionar a liberdade criativa e a mitigar face a uma
condicionante social, e assume a defesa terica do surrealismo, tal como na dcada seguinte o far
relativamente ao abstraccionismo, que entretanto escolher como a linha principal de programao
da Galeria de Maro entre 1952 e 1954, antes da sua partida para Paris.
J.-A. Frana foi sempre um defensor da prtica artstica dos surrealistas, integrando-os na terceira
gerao do modernismo e tendo presente que estes agiam em perfeita conscincia dos seus actos no
rompimento com a tradio. Com excepo para Antnio Pedro e Antnio Dacosta, os surrealistas
iniciavam a actividade num tempo de avaliao do prprio surrealismo no contexto do ps-guerra.
Neste sentido Frana no os considera propriamente vanguardistas, posicionamento partilhado
por Antnio Maria Lisboa e Mrio Cesariny, sendo que este no perdoou a J.-A. Frana esta
concepo sobretudo modernista, com a legitimidade que lhe assiste o estatuto de poeta,
considerando-se ele prprioe os seus companheiros do grupo, como os verdadeiros surrealistas. A
divergncia entre a ideia de modernismo defendida por Frana e a de vanguarda defendida por
Cesariny est na base, entre outros factos da fractura havida entre os surrealistas portugueses, que
conduziu constituio do grupo de Cesariny. No caso de J.-A. Frana, esta categoria operatria est
ancorada numa arquitectura metodolgica e criticista que suporta um entendimento histrico e
sociolgico do que definiria mais tarde como factos artsticos dando continuidade ao seu nico
mestre Pierre Francastel e que supe intencionalmente um enquadramento histrico e social para
o surrealismo, e uma datao, e um fim, o que no seria de modo nenhum compatvel com o
projecto de Cesariny, para quem a arte e a vida se fundiam em total acordo com os pressupostos do
surrealismo autntico. O que ficou desses tempos interventivos, polmicos do surrealismo para JosAugusto Frana? no podemos esquecer tambm a sua posio poltica contra o regime de Salazar,
j que a capa do catlogo na exposio de 1949 exortava ao voto no general Norton de Matos,
opositor de Carmona. O que ficou para alm das amizades insubstituveis: os quatro mosqueteiros
(Frana, Azevedo, Vespeira e Lemos) como se achavam mais tarde os Cavaleiros do Sexto ou Bisexto
Imprio? O que ficou do surrealismo alm da coleco de obras que no seu conjunto fundamental
2
Sendo que uma pintura sua veio a ser integrada em moldes de evocao fotogrfica na exposio
comemorativa Surrealismo Porqu? na Casa dos Cubos em Tomar (2009), nos 60 anos passados sobre a
abertura da exposio surrealista a 19 de Janeiro de 1949 em Lisboa
3
Outros Cadernos Surrealistas foram assinados por Antnio Pedro (Proto-poema da Serra de Arga, Alexandre
ONeill (A Ampola Miraculosa) e Nora Mitrani (Razo Ardente) que a estes autores se veio juntar.
136
A crtica de arte
O exerccio da crtica de arte comeou em 1946, quando J.-A. Frana tinha 24 anos. De acordo com o
livro Memrias para o ano 2000, o seu primeiro artigo incidiu sobre a exposio de Portinari, que
tendo sido enviado para o Jornal das Artes Horizonte, recentemente lanado em Lisboa, ao ser
aceite para publicao marcou o incio desta actividade. A convite do jornal, outros artigos se
seguiram sobre a arte abstracta, assim como uma dzia de crticas a exposies, incluindo a II Geral
de Artes Plsticas (1947), e um artigo a favor de Antnio Pedro e menos a favor de Cndido da Costa
Pinto, sendo que a extino do jornal as veio interromper.
Esta colaborao foi a primeira experincia de uma crtica de arte regular em Portugal, j que seria
interrompida no futuro, at que entre 1959 a 1967, em Paris, Frana assinava uma coluna na revista
Art dAujourdhui, vendo assiduamente exposies e escrevendo sobre elas, e participando em
reunies da redaco para a definio do nmero. Em Portugal s retomaria esta actividade de 1970
em diante na regularidade da revista Colquio/Artes que dirigia e na qual publicava as suas Cartas
de Paris de Lisboa.
Acerca da sua aco como crtico de arte, comentou a dado passo que nunca tinha sido nomeado
para tal, mas ao longo dos anos soma-se o trabalho regular em revistas e jornais, os inmeros
prefcios a exposies que tambm escreveu. Podemos ter uma pequena mostra atravs do livro
Cem Exposies(Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982), que criteriosamente organiza
separadamente as exposies de artistas portugueses e de estrangeiros e as exposies colectivas
portuguesas das internacionais. No incio surge o texto Aviso ao pblico por causa dos crticos e
vice-versa publicado na Exposio Surrealista (1949), e logo a seguir outro sobre Vespeira (1952):
Introduo a uma pintura ertica.4 Alguns dos artistas mencionados tinham exposto na Galeria de
Maro como Almada, Botelho, Sarah Afonso, Mrio de Oliveira, enquanto os outros surgem em
espaos diferenciados. Alm dos artistas das primeiras geraes modernistas, uma grande parte
evidencia-se nos anos sessenta em diante. Quanto aos artistas estrangeiros destacamos Edgar Pillet,
um dos responsveis pelo Atelier dArt Abstrait (que foi apresentado na Galeria de Maro) e depois
Millares, Amelia Toledo (que leccionou no Curso de Formao Artstica da Sociedade Nacional de
Belas-Artes em 1965), Miotte, Poliakof, Kolos Vary, Vasarely, Sonia Delaunay, verificando-se
fortemente nesta escolha a incidncia na Escola de Paris e em artistas de maior vocao abstracta e
gestual.
4
Ao elencar os nomes mencionados pelo crtico encontramos Almada, Botelho, Sarah Afonso, Mrio de
Oliveira, Fernando Lemos, Joo Hogan, Valadas Coriel, Jlio Resende, Ren Brtholo, Jos Jlio, Jos Escada,
Lourdes Castro, Bernardo Marques, Eduardo Viana, Carlos Carneiro, Manuel Baptista, Noronha da Costa, Artur
Casais, Nikias Skapinakis, Amadeo, Vasco Costa, Carlos Calvet, Vieira da Silva, Helena Almeida, Manuel
Casimiro, Jos Rodrigues, Maluda, Palolo, Jos de Guimares, Srgio Pinho, Emlia Nadal, Costa Pinheiro, CruzFilipe e Joaquim Rodrigo. Aos quais se juntam, Antnio Dacosta, Pomar, Lima de Freitas, Jlio Resende,
Fernando Lanhas, Menez (1. individual), Jorge de Oliveira, Hogan, e Cargaleiro, entre outros.
137
O proprietrio e gerente era Manuel dos Santos, personalidade ligada publicidade. J.-A. Frana partilhava a
responsabilidade da Galeria com Fernando Lemos at sua partida para o Brasil.
138
sintctico, globalizante portanto, forjando um novo conceito para a Histria da Arte [Frana,
Quinhentos Folhetins I, DL, 21-1-70]6.
O sentido do Ver
Na base deste programa metodolgico e conceptual decisivo o relacionamento com o objecto
artstico e, como pudemos verificar, o exerccio da crtica de arte e o convvio com os artistas foi
sempre privilegiado. A condio do ver foi sempre para J.-A. Frana um pr-requisito, um elo
fundamental que tudo liga. Neste sentido, devemos fazer justia, uma vez mais, s suas palavras
publicadas na entrevista no Dirio de Lisboa: Na arte s h uma maneira de l chegar: ver, ver, ver.
Escrevi uma vez: Olhei dez mil quadros, vi mil, estudei cem e compreendi dez. Uma obra de arte
uma garrafa deitada ao mar, encontra-se ou no se encontra. E para todos aqueles que foram
alunos de J.-A. Frana, este foi um elemento decisivo na sua pedagogia, e o princpio que atravessa
toda a sua obra. Mas a palavra, o segundo elemento decisivo, chega entretanto como uma espcie
de virtude esclarecedora, razo iluminada sobre o ver para a construo da teia do saber.
Na exposio bibliogrfica que teve lugar na Biblioteca Nacional em Novembro de 2012 Jos-Augusto
Frana: exposio bibliogrfica 1949-2012 agruparam-se as publicaes sob a denominao de Factos
Socioculturais sobre o romantismo, os anos vinte em Portugal, o Ano X, 1936, ou o Ano XX, 1946, propiciando
uma abordagem sociolgica global e factual dos aspectos investigados.
139
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consultado em 10 Novembro 2014,
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140
LINO, Raul, 1929, A Casa Portuguesa, in Portugal: Exposio Portuguesa em Sevilha, Lisboa, Imprensa
Nacional, 68 pgs.
2
TVORA, Fernando, 1947 (1945), O Problema da Casa Portuguesa, Lisboa, Editorial Organizaes.
3
AMARAL, Keil do, 1947, Uma iniciativa necessria, Arquitectura, n. 14, pp. 12-13.
4
PORTAS, Nuno, 1959, A responsabilidade de uma novssima gerao no movimento moderno em Portugal,
Arquitectura, n. 66, pp. 13-14.
5
ALMEIDA, Pedro Vieira de, 1970, Raul Lino, Arquitecto Moderno, in Raul Lino: Exposio Retrospectiva da
sua Obra, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, pp. 115-188.
6
FIGUEIREDO, Rute, 2007, Arquitectura e Discurso Crtico em Portugal (1893-1918), Lisboa, Colibri.
7
SAID, Edward W., 2005 (1994), Reconsiderando a teoria itinerante, Manuela Ribeiro Sanches (org.),
Deslocalizar a Europa: Antropologia, Arte, Literatura e Histria na Ps-Colonialidade, Lisboa, Cotovia, pp. 25-42.
8
Salientam-se as arquiteturas produzidas, entre outros, por Ventura Terra ou Marques da Silva que, tal como
na dcada de 1970, recusavam uma perspetiva local do tpico da identidade.
9
SMILEY, David, 2001, Making the Modified Modern, Perspecta, n. 32, pp. 39-54.
141
Neste momento, em 1960, Jos-Augusto Frana publica A Arte em Portugal no Sculo XIX,10 onde se
verifica um cruzamento de objetivos entre o seu programa terico para observao das artes e a
interrogao ento conduzida arquitetura portuguesa do sculo XX no contexto das
transformaes em curso na sociedade portuguesa. A preparar o fim de um tempo e a abrir a nossa
contemporaneidade, o Prefcio desta obra, redigido por Frana, constitui uma moldura terica
prxima da nova histria e dos mtodos de investigao da cultura material; e, em consonncia
com este, no campo da arquitetura, Nuno Portas e Pedro Vieira de Almeida elaboravam as primeiras
reflexes sistemticas para outra histria da arquitetura portuguesa do sculo XX,11 a partir da crtica
ortodoxia moderna, da teorizao e da prtica do projeto.
2
Era no atelier de Nuno Teotnio Pereira que os jovens Portas e Vieira de Almeida levavam prtica
do projeto as suas ideias e inquietaes. Arquitetura pensamento era o seu lema e crtica
arquitetura associada ao Movimento Moderno ento produzida,12 considerada inadequada face s
circunstncias portuguesas que deviam ser olhadas com outros olhos.
Este renovado olhar era experimentado em diversos projetos realizados no atelier entre 1949 e
1958: as igrejas de guas e do Sagrado Corao de Jesus, os bairros da Soda Pvoa, Santa Marta e da
Pedreira, e as casas na praia das Mas e de Barata dos Santos. Entre eles, salientamos a casa de
Sesimbra (Fig. 1), em 1957, particularmente esquecida pela histria, onde se explicita esta posio no
texto que acompanha a sua publicao na revista Arquitectura. Esta casa, realizada na sequncia da
casa da praia das Mas e contempornea da casa de Barata dos Santos em Vila Viosa obra
unanimemente considerada como manifesto crtico da arquitetura moderna , publicada com
uma invulgar reflexo terica sobre o projeto, Testemunho de um dos Autores, assinado por
Portas,13 e com a seguinte nota final: Experimentao que interessou, alm dos autores, uma equipa
de que fizeram parte Pedro Vieira de Almeida, M. da Luz V. Pereira e J.M. Torre do Vale, entre
outros.14 Este texto conforma um programa intelectual, articulando-o diretamente com o desenho
da casa, do qual se destacam alguns tpicos relevantes.
[experimentao]
Este testemunho comea por salientar o carcter de investigao terica e prtica que, ao focar-se
sobre o projeto, permite falar de uma experimentao, (em sentido mais preciso do que
habitualmente lhe damos quando se chama a cada obra uma experincia): de facto, tratou-se de
desenvolver e exprimir o que tnhamos por mais seguro para ponto de partida e que era, afinal, uma
concepo de habitar, que, nos seus ritmos essenciais, se vai manter nesses diversos projectos.15
10
FRANA, Jos-Augusto, 1966 (1963), A Arte em Portugal no Sculo XIX, Lisboa, Bertrand.
PORTAS, Nuno, 1978 (1970), A Evoluo da Arquitectura Moderna em Portugal: uma interpretao, in
Bruno Zevi, Histria da Arquitectura Moderna, vol. II, Lisboa, Arcdia, pp. 687-746.
Este captulo a transformao dos artigos publicados no Jornal de Letras e Artes em 1963 (prmio Fundao
Calouste Gulbenkian de Crtica de Arte, em 1964), na sequncia de uma bolsa de estudo da mesma fundao.
12
Entre outras, ver a crtica dirigida ao Pavilho de Portugal na Exposio Universal de Bruxelas de 1958, da
autoria de Pedro Cid: PORTAS, Nuno, SILVA, F. Gomes, 1958, Expo 58, Arquitectura, n. 63, pp. 23-38.
13
PORTAS, Nuno, 1966, Testemunho de um dos Autores, Arquitectura, n. 93, pp. 115-116.
14
Ibid., p. 116.
15
Idid., p. 115 [e todas as seguintes citaes do mesmo texto].
11
142
[objetivo]
A possibilidade de experimentao tinha um objetivo de adestramento tcnico em dois planos:
conseguir designar espaos integrando sinais arquitectnicos como a forma envolvente, relaes
entre nveis, iluminao, etc. , e conseguir que tais espaos fossem, em si prprios, proponentes de
qualidades aos comportamentos dos seus habitantes.[...] Para uns estes desgnios parecero
elementares [...] o que ser esquecer que a tradio racionalista havia posto a acentuao noutros
princpios, havia difundido outras prioridades [...] sentamos que havia a explorar outras vias [...].
[programa]
A casa de Sesimbra e a srie de projetos onde se inclui propem outra resposta que, ajustada a um
programa real, se compromete com a realizao cultural dos seus habitantes: dar ambientes
variados e estimulantes vida social em casa, expressar bem a individualidade do mundo pessoal,
baseada numa concepo aberta dos servios domsticos, evitando uma segregao de funes,
metas que entraro no campo quotidiano dos membros do agregado familiar.
Estas intenes refletem uma experimentao j iniciada em outras casas, sobretudo o que, ao ser
particular em cada uma delas, podia traduzir uma possibilidade de teorizar uma nova arquitetura:
nesta casa, como na da praia das Mas, o terreno natural acidentado entrou para a prpria
estruturao dos espaos; como na de Vila Viosa, isso sucederia com o terreno cultural definido
pelas confrontaes monumentais de que usufrua. E prossegue na tentativa de libertar a obra de
anteriores compromissos estilsticos, ou de assumir outros bem patentes na sugesto didtica das
malhas reguladoras de Wright na referida Hanna House (1937): A reminiscncia de elementos
figurativos, usados naturalmente na Praia das Mas e j polemicamente ao aceitarmos o desafio da
integrao na de Vila Viosa, no se encontra nesta obra de Sesimbra seno na massa das paredes
em consequncia de uma opo construtiva. Era, neste sentido, uma procura de vocabulrio quase
sem compromissos com as linguagens antecedentes, cultas ou populares.
[dificuldade]
Mas a dificuldade em tentar pelas prprias mos uma arquitetura e pensamento como
contracrtica moderna era equacionada: No nos parecia assim to fcil, [...] suspeitvamos que
havia dimenses da arquitectura por descobrir ou por redescobrir, e, para isso, pensvamos que
urgia levar frente uma experimentao que fosse ao mesmo tempo de criao e de crtica. O que
permitia sem precisar de se afundar nas angstias de problemticas espacialistas, interrogar o
processo encetado: quais as fontes e os critrios ou o mtodo, se possvel para uma
interpretao real de uma obra concreta por forma a que pudssemos assumir o que lhe pode
conferir uma identidade o stio, a cultura preexistente, as disponibilidades materiais e tcnicas
exprimindo com no menos fora os valores universais de uma nova cultura de habitar, de uma nova
forma de entender o espao, numa palavra, comunicando novidade e progresso vida quotidiana
dos utentes?
3
Este close reading da casa de Sesimbra, suportado neste texto de 1966, abertamente marcado
pela mesma doutrina que fundamenta o Prefcio de 1963. O texto de Frana estabelece um feixe
de luz que, se at hoje interfere na investigao artstica e arquitetnica, alavancou, na poca, um
diferente entendimento da histria, contribuindo, no campo da arquitetura, para a confirmao de
uma prtica renovadora no pensamento e no projeto, como se verificou no anterior testemunho.
Poder parecer estranho que seja atribuda esta importncia ao Prefcio de uma histria da arte
do sculo XIX. Mas a sua releitura, hoje, revela-o como pedra angular para o estudo da modernidade
143
144
vez de histria da arte, deve passar a fazer-se, mais completa e ultimamente, histria da vida
artstica. E no s para o sculo XIX, e no s no domnio cultural portugus...20
[ser crtico do presente para ler o passado]
Coloca tambm o problema da operatividade da histria, tal como Portas e Vieira de Almeida o
estavam a fazer, sem escamotear o problema da instrumentalizao: Metodologicamente, o
historiador da arte no poder deixar de ser um crtico de arte, para alm dos crditos filolgicos que
exija. Ele ter de ser leitor estilstico das obras, capaz de as solicitar, com os olhos da cara e por
isso mesmo necessariamente treinado na viso das do seu prprio tempo, sem o que toda a leitura
do passado seria exerccio de erudio descarnada. Aqui, como na histria em geral, a reversibilidade
do conhecimento regra essencial que s por ingenuidade se pretenderia iludir.21
[a cultura material e os cultural studies]
Por fim, aborda o consumo da arte (bem como do espao) como um problema coletivo contraposto
ao singular, devendo ser observado no mbito de uma cultura material e estudado nas suas
manifestaes reveladoras, aqum e alm-fronteiras, no que hoje se designa cultural studies: A
potica e esttica prolongam-se, porm, e em situaes de produo e de consumo. A obra de arte
produzida dentro duma sociedade determinada e por essa sociedade em primeira mo consumida
[...]. Mas esta cultura artstica traduz-se ainda de outro modo prtico, por um lado na organizao de
exposies, no processo associativo dos artistas, e por outro na organizao de coleces. 22[...] A
relao da arte nacional com o estrangeiro constitui outro ponto a pesquisar, num movimento
complementar de ida e vinda de elementos nacionais e estrangeiros (quais? e porqu?).23
4
O texto do Prefcio extravasou a obra onde se insere e consolidou um pensamento aberto nova
histria e cultura material. Forneceu, implcita ou explicitamente, um contexto terico
inquietao de alguns arquitetos que, ao se insurgirem contra a ortodoxia do Movimento Moderno,
procuravam no compromisso cultura/local/habitante outros valores para fazer arquitetura.
Neste processo, encontramos Portas e Vieira de Almeida a defender outra forma de olhar e fazer
arquitetura, numa ao pioneira e militante de divulgao da produo internacional e teorizao
das suas ideias em artigos e ensaios.24 Esta inquietao tinha como foco o convencionalismo
histrico, em que a questo da tradio portuguesa urgia ser revista sem concesses paroquiais, nem
historicismos. A tradio o cerne do problema,25 aspeto tambm repetidamente sublinhado por
Frana, por exemplo, na sintomtica lei do eterno recomeo,26 ou quando afirma: Inquire-se o
sculo XIX para melhor se entender o sculo XX, seu prolongamento, dentro dum ciclo estrutural; e
20
145
27
146
Fig 1 Casa de Sesimbra (1957-1964), N. Teotnio PEREIRA, Nuno PORTAS (n. 1934), Pedro Vieira ALMEIDA
(1933-2011). [Origem] IHRU/SIPA. PT NTP: Coleo de Desenhos: DES.0005578
Este trabalho financiado por Fundos FEDER atravs do Programa Operacional Factores de
Competitividade COMPETE e por Fundos Nacionais atravs da FCT Fundao para a Cincia e a
Tecnologia no mbito do projecto PEst-C/EAT/UI0145/2011.
147
O presente trabalho insere-se num conjunto de estudos dedicados a Joaquim Machado de Castro
tendo como referente a sua condio de elemento fronteira num tempo de mudana. Procurou-se
realar essa condio fronteiria de Machado de Castro, elegendo-o como exemplo, talvez no seu
meio o mais completo, de um tempo que se extinguia, confrontando-o, em permanente contexto,
com outros protagonistas cujas opes ideolgicas, estticas e vocacionais melhor recortassem o
perfil do mestre da esttua equestre. Neste conjunto de leituras comparativas2 reservmos ao
estudo presente a relao de Machado de Castro e de Joo Jos de Aguiar procurando compreender
e validar a conhecida declarao de Castro, que apresentamos em epgrafe.
Cf. Henrique Ferreira Lima, Machado de Castro: Escultor Conimbricense, 2. ed. (Coimbra: Instituto de Histria
da Arte, 1989), 373-374.
2
O primeiro destes dilogos foi j apresentado atravs da comunicao Machado de Castro e Domingos
Sequeira: arte pblica em tempo de mudana no Colquio Internacional Machado de Castro: Da Utilidade da
Escultura, Museu Nacional de Arte Antiga, 2012. A terceira e ltima parte desta trilogia ser desenvolvida em
torno da relao de Machado de Castro e Bartolomeu da Costa, e do confronto das disciplinas da Escultura e da
Fusria, no quadro da recepo da esttua equestre de D. Jos I na sua poca e da consequente questo da
hierarquizao das Artes e Cincias no Portugal de finais do Antigo Regime. O presente texto parte de uma
verso mais longa a incluir num volume autnomo que reunir o conjunto dos referidos estudos a editar no
final de 2013.
148
importante ponderar, a partir do estabelecimento de uma cronologia documentada da sua obra que
se encontra em muitos casos por apurar com rigor.
Ser foroso admitirmos que Machado representa o ltimo momento de uma continuidade, em
oposio a essa obsesso de rotura e frenesim do novo patente na arte da escultura a partir do
sculo XIX3, e que no plano nacional, como todos os seus condicionamentos, Aguiar representa bem.
Castro, bastio da tradio, iniciou a sua carreira num ambiente oficinal de matriz corporativa ao
qual pde associar as luzes de artistas com formao acadmica, como Jos de Almeida e Giusti,
ambos de escola romana, construindo com base nestes dois plos ambos conservadores mas de
matizes diversas os limites da sua pesquisa artstica. No podemos, neste contexto, deixar de
assinalar nas primeiras obras sob a sua direco a integrao, sem sobressaltos, nessa genealogia.
Identificamos nesta fase inicial uma evidente coerncia artstica patente no conjunto da F (1773)4,
coroando o fronto do palcio do Santo Ofcio ao Rossio, no monumento equestre a D. Jos I na
Praa do Comrcio (1770-1775)5, sobretudo no pathos acrescentado nos grupos laterais, no Neptuno
(1771?)6 hoje no Largo da Estefnia, no programa escultrico de So Vicente de Fora e nas esculturas
em barro para a Quinta Real de Caxias (c. 1783)7.
Na primeira destas obras infelizmente desaparecida8 podemos detectar, nas reprodues grficas e
pictricas que se conservaram, o movimento e dramatismo do confronto triunfante da F sobre a
Heresia [Fig. 1]. Do mesmo modo testemunhamos a opo de Machado de Castro nas
representaes dos povos vencidos dos grupos laterais do monumento a D. Jos [Figs. 2 e 3],
recorrendo a figuras reclinadas de acentuada expresso dramtica, citaes berninianas a que os
desenhos originais de Eugnio dos Santos to pouco o obrigavam. A mesma inclinao que ainda
identificamos noutra obra do conjunto de Caxias [Fig. 4], soluo evidentemente tributria dos
grupos laterais do monumento a D. Jos.
Do conjunto de So Vicente de Fora9 elegemos So Teutnio [Fig. 5], testemunho com eloquncia
bastante para fecharmos este primeiro grupo, na expresso das atitudes e desenho dos respectivos
panejamentos, exemplo sugestivo desse amachucado [Fig. 4a] de que nos fala Cyrillo10 a propsito
da inspirao em Pedro de Cortona das peas de Jos de Almeida, o que nos reenvia sem surpresa
para essa referncia formativa do mestre da esttua equestre.
Cf. Bent Sorensen, Sculpture, in Dictionnaire europen des Lumires, dir. Michel Delon (Paris: PUF, 1997),
982.
4
Seguimos, falta de outros elementos, a data de execuo apresentada por Cyrillo Volkmar Machado,
Colleco de Memorias... (Lisboa: na Imp. de Victorino Henriques da Silva, 1823), 266.
5
Consideramos aqui o ano da inaugurao do conjunto do monumento embora a fundio da esttua equestre
date de 1774. Os grupos laterais, segundo o autor, foram acabados em Abril de 1775 e o baixo-relevo alegrico
alusivo reconstruo de Lisboa concludo bastante mais tarde, em Maro de 1795.
6
Cf. Cronologia, in Joaquim Machado de Castro, o Virtuoso Criador (Lisboa: MNAA/INCM, 2012), 214-215.
7
Idem.
8
Veja-se sobre este conjunto Miguel Figueira de Faria, Machado de Castro e Domingos Antnio de Sequeira
(no prelo).
9
Conjunto carente de estudo mais atento e sobretudo de investigao arquivstica que lhe confira o devido
suporte documental. Sobre a atribuio da direco das obras de escultura do baldaquino de So Vicente de
Fora veja-se Machado, Colleco de Memorias, 267; Diogo de Macedo, Machado de Castro (Lisboa: Artis,
1958), 71-72 e 104-106; Sandra Costa Saldanha, A Escultura em So Vicente de Fora: Projecto, Campanha e
Autores, in Mosteiro de So Vicente de Fora: Arte e Histria, coord. Sandra C. Saldanha (Lisboa: Centro
Cultural do Patriarcado de Lisboa, 2010), 199-204.
10
Machado, Colleco de Memorias, 254: Nos pannos quiz imitar hum certo amarrotado de que muitos usaro
Pedro de Cortona, e Cyrro Ferro, que tambm se acha em algumas estatuas de Carlos Monaldi.
149
Alm da evidente influncia romana confere-se, neste subgrupo de obras, a universalidade temtica
e domnio dos materiais que caracteriza a polivalncia de Machado de Castro. Nesta primeira srie,
datvel sensivelmente entre 1770 e 1780-85, sublinha-se uma certa unidade criativa, nomeadamente
nos domnios da expresso na definio longa do prprio escultor11 e solues plsticas.
Na passagem de So Vicente de Fora para o teorema de esculturas da Estrela possvel identificar
uma continuidade. As obras da baslica no ostentam, porm, a mesma agitao barroca do So
Teotnio e seus pares. Encontramos ainda afinidades, por exemplo, na reutilizao dos modelos do
referido So Teotnio e do So Joo da Cruz ou no paralelismo da expresso que se assinala entre
Santa Mnica e Santa Teresa de vila.
Mas visvel uma evoluo, sobretudo perceptvel nos modelos em barro das esttuas da Estrela,
que deixa antever uma pesquisa nas atitudes no sentido de uma presena mais serena e graciosa
vejam-se a F, a Gratido, a Santa Vernica ou a Liberalidade em concordncia com as opes que
Castro viria a assumir nas suas intervenes literrias. Se ao nvel plstico a simplificao das formas
passvel de justificao, devido diferena dos materiais da madeira para o mrmore , essa
moderao na composio, contornos, ornatos, expressividade e movimento, no nosso ponto de
vista representa uma descolagem relativamente ao primeiro conjunto. Esta evoluo sem significar
rotura, at porque credvel que haja aproveitamento de trabalhos anteriores, nomeadamente de
parte dos modelos das Virtudes concebidos por Machado de Castro, do Arco da Rua Augusta para a
fachada da Estrela, poder conduzir-nos s opes caracterizadoras da arte do mestre da esttua
equestre.
Na grande empreitada que se seguiu, relativa ao novo palcio real da Ajuda, a interveno de
Machado tardia e digamos terminal. As suas dificuldades fsicas agravaram-se a partir de 1814.
Nesta fase perderia em grande parte a mobilidade pelo que as visitas obra seriam excepcionais.
Castro, nesta fase final da sua vida, operaria exclusivamente como criador de modelos que os seus
mais prximos discpulos se encarregariam de passar pedra. As trs esculturas que ainda assina
sozinho, note-se12 para a nova obra rgia passaram por este processo.
Nada de novo no contexto da carteira de trabalhos de Castro. Este contnuo recurso a outras mos
no lhe era indiferente. A ausncia do toque do mestre merece-lhe elucidativos comentrios. De
toda a sua produo em que escultura ter manejado a matria em todas as fases da criao desde
o desenho inicial da obra at s respectivas tarefas de acabamento? A nossa particular ateno aos
modelos em barro por ele concebidos, para um melhor escrutnio da sua verdadeira maneira,
justifica-se por traduzirem a regra e no a excepo. Castro foi acima de tudo um criador de modelos
a que outros deram forma. de salientar a importncia que concede capacidade de mostrar as
paixes, e viveza das figuras e ao mrito de conseguir reproduzir sentimentos de outrem, como
testemunho fundamental de autoria, concluindo nas suas reflexes que esse fogo, e o zelo de o
exprimir acho-se unicamente no peito do criador da pea13.
11
Cf. Joaquim Machado de Castro, Expresso, in Dicionrio de Escultura (Lisboa, 1937), 45-46.
Uma diferena visvel na prtica dos dois escultores a da respectiva relao com os ajudantes e discpulos
em sede de autoria. Machado de Castro pese embora as mltiplas notcias de que as suas peas tiveram outras
mos particularmente do seu discpulo dilecto Faustino Jos, no partilha por norma a assinatura epigrafada
nas esculturas. Aguiar, pelo contrrio, deixa bem explcita essa marca nas esculturas da Ajuda Aco Virtuosa,
Clemncia e Constncia onde identifica o respectivo ajudante J. Gregrio Viegas.
13
Joaquim Machado de Castro, Descripo Analytica da Execuo da Real Esttua Equestre (Lisboa: na
Impressam Regia, 1810), 167-168. Se a figura for executada pela propria mo, que modelou o exemplar, pode
com effeito ser semelhantissima; porem a ser feita por mos diversas, de outro, ou mais operarios, s pode
achar-se esta exacta semelhana nas actitudes, contornos, pannejamentos, e ainda mesmo na correco do
desenho; sendo trabalhada por Escultor de prestimo [...] Eis-aqui o que he impossvel conseguir-se cabalmente
nas obras em que o Author no pode fugir de entregar-se nas mos, e sentimentos de outrem: esse fogo, e o
zelo de o exprimir, acho-se unicamente no peito do criador da pea. E posto que do modelo com
12
150
A arte de Castro
Machado de Castro deu grande importncia questo da expresso posicionando-se contra os
excessos14. No seu pioneiro Discurso... insistia na necessidade de imitar com verdade os caracteres
[...] sempre vigiando que movimentos, que gestos produzem o Amor, o Odio, a Ira, a Pacincia, a
Soberba, a Humildade [...]15. Ilustra, em seguida, o seu pensamento atravs de uma completa gama
de exemplos entre os quais cita a famosa esttua de Laocoonte, na qual os respectivos criadores
exprimiro de tal modo a dor, e agitao, que os espectadores pro... espero para o ver levantar!
Attendem... escuto para ouvir-lhe os gemidos!!!16. Cita, igualmente, a Retorica como fonte auxiliar
da expresso no s para que as suas Imagens, e representaes exprimo bem os affectos do
animo, porm, para que os movo nos espectadores17. O citado Discurso... teve a sua primitiva
edio em 1788, prximo do intervalo cronolgico do referido primeiro ciclo de obras, acentuando a
respectiva coerncia.
Noutro texto redigido j na fase final da vida a sua leitura sobre a expresso parece suavizada
apresentando como paradigmas Rafael e Poussino o Rafael Francs18 o que nos comunica uma
clara opo esttica sem, contudo, ferir a flexibilidade que as representaes devem seguir em
funo do carcter e paixes a materializar.
Mas se neste domnio podemos admitir uma suavizao da sua arte, noutros aspectos a fronteira
consolida-se. A pesquisa da expresso das paixes constitui uma das temticas de eleio dos artistas
de referncia do perodo barroco. Sendo um dos aspectos a que Machado de Castro concede
particular ateno nos seus trabalhos literrios, merecer acentuarmos que esta preocupao ajuda
a melhor definir o seu tempo artstico. Machado ainda confessadamente um artista de Trento. A
fidelidade a essa ortodoxia leva-o a apresentar uma interpretao de base teolgica a partir da
constatao das limitaes estticas da natureza e o necessrio recurso interveno humana no
conceito do belo reunido para reconstruir a beleza ideal perdida na sequncia do pecado original19.
O artigo Antigo do seu Dicionrio de Escultura... fundamental na percepo das orientaes que
seguiu. O seu teor, exposto j em fase avanada da sua vida, representa um ponto de chegada. O
ataque que faz adopo acrtica dos modelos da Antiguidade demonstra o seu antagonismo aos
especialidade emane o que mais contribue para bem mostrar as paixes, e viveza das figuras; o modo com que
se maneja a matria, no concorre pouco para o alcance destes atendveis requisitos. Alm disto, as diversas
intenes, os diversos prestimos dos operarios sobalternos, faltando-lhes os motivos de se lhes inflammar a
imaginativa, trabalhando servilmente, com frialdade, e tambem a medo; todo o seu cuidado (se o tem) se
limita a no desarranjar a pea que se lhes confia; em acabar muito, e muitas vezes em lugares desnecessarios;
em articulaes que degenero em gosto secco, e deslustra, em certo modo, as mais partes da Arte, que a
direco do chefe na obra tem espalhado.
14
Joaquim Machado de Castro, Discurso sobre as utilidades do Desenho (Lisboa: na Offic. de Antnio Rodrigues
Galhardo, 1788), 225-226: Se hum Pintor ou Escultor exprime qualquer affecto com frieza, falta-lhe o que a
paixo requer; e por conseguinte no chegou ao Bom-Gosto. Se representa esse affecto com exagerao,
excede os limites; tem o superfluo; deixou perder de vista o Bom-Gosto.
15
Idem, 226. Esta lista de Paixes pode indiciar o conhecimento do texto relativo clebre conferncia
proferida na Acadmie Royale de Peinture et de Sculpture por Charles Le Brun em 1668 e que teve primeira
edio em 1698, ou da posterior edio de Jean Audran, Expressions des passions de lme, 1727. A
Encyclopdie pode ter sido tambm a ferramenta utilizada por Castro na sua aproximao problemtica da
expresso das paixes. Veja-se a propsito da conferncia de Le Brun, Jacqueline Lichtenstein e Christian
Michel, Confrences de lAcadmie royale de Peinture et de Sculpture, Tomo I, Vol. 1 (Paris: cole Nationale
Suprieure des Beaux-Arts, 2007), 260 e seguintes.
16
Castro, Discurso sobre as utilidades do Desenho, 227.
17
Idem, 223.
18
Castro, Dicionario de Escultura, Expresso, 45.
19
Castro, Discurso sobre as utilidades do Desenho, 228.
151
princpios da nova escola sobre a qual estava informado quanto baste para (querendo) a ela poder
aderir20.
Apesar dos elogios que subscreve estaturia grego-romana (excelentissimos em carnes, bem que
exaggeradas; mas nas femininas foram optimos, mostrando nellas o Bello reunido), deixa claro os
limites que auto-impe criao. O tratamento dos panejamentos serve de novo pretexto
reprovao21.
A rejeio categrica da adorao cega dos antigos tem deste modo tanto de preconceito religioso
como de esttico. As sucessivas aluses religio, boa moral e filosofia s indicam-nos outra
fronteira na arte de Machado relativamente ao novo estilo, numa prolongada apologia da correco
das carnes, estabelecendo limites objectivos liberdade do recurso ao nu no tratamento
anatmico dos modelos. Esta defesa do pudor tempera os excessos permitidos na estaturia dos
antigos e seus seguidores modernos autorizando o exerccio do nu apenas dentro dos limites
estabelecidos22.
Se no primeiro aspecto relativo expresso podemos admitir uma evoluo, no captulo da
gramtica das formas, da construo exposio anatmica, e composio dos panejamentos, a
sua fixao aos modelos barrocos revela uma intransigente constncia na sua longa experincia
artstica.
As opes de Castro so, porm, sempre sustentadas no conhecimento dos novos usos dos que, na
sua opinio, copiam cegamente a estaturia clssica, sendo neste sentido uma rejeio consciente e
documentada23. O seu recurso selectivo ao antigo permitia-lhe momentos desalinhados de
aproximao na construo do seu discurso24. A afirmao dessa autonomia de Machado de Castro
fica bem patente no remate da referida declarao ao realar a liberdade do artista no processo
criativo, manifestao de uma vontade legtima que se sobrepunha escola ou ao artisticamente
correcto segundo a poca: Nas obras prprias cada hum se dirige pelo gosto, e circunstancias, que o
movem25.
20
Castro, Dicionario de Escultura, Antigo, 23-24: Os supersticiosos dArte, (que no so poucos, tanto
Artistas como Amadores della) em qualquer Pea, tendo visos do antigo, adoro-na cegamente, e seguem-lhe
o estilo, sem discernimento, nem filosofia de qualidade alguma.
21
Idem, [os gregos e os romanos antigos] longe de ns o seu estilo [...] que at chega a ser contrrio
Religio, e boa Moral, boa Razo, e s Filosofia. [...] Alguns Modernos ha, que cgos do fanatismo pelo
Antigo, desdenho com insolente despreso dos pannejamentos de Carlos Maratti; mas porqu? Porque so
muito mais difficeis de executar que os do Antigo, por conterem em si a reunio do Bello Natural. Na Escultura,
os Corifeos deste verdadeiro estilo so Angelo de Rossi, Camilo Rusconi e Maini. E na Pintura so o grande
Rafael dUrbino, e o Poussino, aos quais seguiu Maratti.
22
Castro, Descripo Analytica, 26.
23
As suas opes pela tradio barroca estendem-se a outros aspectos como o desenho do globo ocular,
nomeadamente na representao das pupilas. Mesmo admitindo que os Antigos no praticarao no marmore
esta individuao dispe-se a aceitar as crticas dos Artistas, e Conhecedores demasiadamente ligados s
ninharias da Arte, sustentando que como assim faz melhor effeito, este he o que sempre se deve preferir.
Observando o conjunto de estaturia da Ajuda essa distino encontra-se bem documentada entre as obras
assinadas por Castro e as de autoria de Aguiar. Cf. Castro, Descripo Analytica, 26.
24
Liberdade que lhe franqueava, por exemplo, o uso da grega no manto da representao real de D. Maria I,
hoje exposta na Biblioteca Nacional de Lisboa. Esta escolha reenvia-nos para a Europa de Aguiar integrada no
conjunto monumental dedicado mesma monarca instalado em Queluz, traduzindo a relatividade que nalguns
aspectos encurta a distncia entre as experincias artsticas dos dois mestres.
25
Cf. Castro, Descripo Analytica, 26.
152
A arte de Aguiar
E na Ajuda que se delimita o ltimo territrio de Machado de Castro e se estabelece a fronteira. A
cronologia das esculturas da Ajuda esclarecedora: data da colocao da ltima escultura de
Machado a Generosidade (1818) sucede-se a primeira srie de Aguiar datada de 181926. A obra
deste ltimo permite, porm, um exerccio de catalogao mais linear. Contrariamente ao exerccio
de continuidade desenvolvido por Machado de Castro, Aguiar assume a rotura com a tradio. As
suas inconfessadas referncias porque no escreve... so evidentes: expresso, movimento,
arquitectura anatmica, panejamentos, em todos os aspectos se detecta a mudana.
Olhando os testemunhos que se conservaram, conclumos que a reduzida produo e as limitaes
temticas condicionaram o seu processo de pesquisa artstica. No conjunto da sua obra
inventariamos apenas duas figuras masculinas, alm da j citada relativa ao prncipe D. Joo. Sem
usufruir como Castro das representaes de santos idosos, mrtires ou povos vencidos, limitado
expresso alegrica das encomendas que lhe chegavam, dificilmente podemos aferir as opes de
expresso e atitude impressas nas suas obras, limitadas a um espectro de pequena variao. Por
outro lado, se so compreensveis os condicionamentos que Machado sofria no recurso ao nu, o
conjunto da Ajuda revela-nos igualmente as limitaes de Aguiar, bem patentes nas obras em que
arrisca maior exposio anatmica como a Aco Virtuosa e Anncio Bom compreensivelmente
ambas relativas a modelos masculinos. Neste plano ainda mais visvel a sua resposta conservadora
no conjunto das esttuas alegricas femininas. Neste caso revela a preferncia, como j foi notado,
em vestir as suas figuras utilizando o vesturio como principal temtica escultrica27,
funcionando este recurso como elemento identitrio e quase como assinatura, no fugindo a um
certo mecanicismo, de produo em srie, penalizado pela repetio de solues formais deixando
antever um impasse criativo na sua pesquisa plstica. Entende-se, porm, nesta limitao mais a
necessria convergncia com o ambiente envolvente do que uma opo do autor, afastando-o de
opes de rotura mais evidentes em concordncia com a sua escola.
Assinalem-se, porm, as excepes que deixam antever o que podia ter sido o outro caminho de
Aguiar. Percebendo as suas fontes que no renegam a filiao canoviana, identificamos, todavia, uma
expresso personalizada que ganha forma nas suas melhores obras entre as quais elegemos uma
trilogia composta pela frica [Fig. 6] do monumento a D. Maria I, a esttua ao Regente [Fig. 7] e a
Prudncia da Ajuda [Fig. 8]. Nesses momentos Aguiar aproxima-se nalguns aspectos da arte grega e
reencontramos afinidades com as ideias de nobre simplicidade e grandeza tranquila expressas, a
propsito, nas reflexes de Winckelmann28. Aguiar, assumida a frieza prpria sua escola, e que lhe
tem merecido referncias crticas29, percorre caminhos diversos libertos do compromisso de
emulao literal dos modelos gregos, conferindo s suas criaes uma interpretao original dos
princpios assimilados onde emerge um certo rusticismo que no lhe retira virtudes no confronto
com as obras dos outros seguidores das ideias neoclssicas. Nesse compromisso identificamos, como
tem sido reconhecido, a mais cosmopolita inspirao apolnea na esttua do Prncipe, mas
igualmente uma sensualidade e um realismo etnogrfico na frica e na Prudncia que no se contm
nos limites convencionados da arte de Cnova.
26
Veja-se a cronologia proposta por Elsa G. Pinho, Poder e Razo: Escultura Monumental no Palcio Nacional
da Ajuda (Lisboa: IPPAR, 2002), documento n. 1, p. 123. As obras de Castro so datadas entre 1813 a 1818,
seguindo-se as de Aguiar entre 1819-1830.
27
Jos Fernandes Pereira, Jos Joo de Aguiar, in Dicionrio de Escultura Portuguesa (Lisboa: Editorial
Caminho, 2005), 20.
28
Veja-se, a propsito, Guilhem Scherf, Tout est bon dans le grec: la sculpture et le got grec (1750-1770),
in LAntiquit rve, dir. Guillaume Faroult, Christophe Leribault e Guilhem Scherf (Paris: Louvre
ditions/Gallimard, 2010), (catlogo de exposio), 80.
29
Cf. Jos-Augusto Frana, A Arte em Portugal no Sculo XIX, vol. I, 2. ed. (Lisboa: Livraria Bertrand, 1981), 74.
153
O primeiro ciclo, que definiramos como o dos monumentos reais, define a potencialidade artstica
de Jos Joo de Aguiar expressa na simplicidade erudita da sua obra-chave o citado D. Joo e na
presena majestosa de D. Maria I que qualidade mais impressiva se pode exigir a um monumento
rgio? auspicioso incio de carreira interrompido falta de patrocnios. Note-se que o grande
monumento das cinco esttuas chegou a ser acolhido, entre 1828 e 1830, no telheiro da Ajuda onde
ento ainda trabalhava30. Aguiar pde dessa forma testemunhar o abandono da sua primeira obra.
Simples acaso ou no esse imprevisto confronto coincide com o momento em que assina a sua
ltima obra para o novo palcio real, e derradeira da sua carreira, com o sugestivo ttulo
Perseverana, final da srie e do segundo ciclo j na fase de declnio, na espcie de autoplgio em
que se viu enclausurado.
Concluso
Os trabalhos de identificao das fontes de inspirao de Machado de Castro tm sempre conduzido
escola romana: Jos de Almeida, Alexandre Giusti, Giovanni Battista Maini, Giuseppe Rusconi,
Giovanni Rossi31. Mas outros paralelismos tm tambm sido estabelecidos, como aquele que
compara na sua simplicidade e expresso sria Maria Madalena de Pazzi da Estrela ao So Bruno
de Jean-Antoine Houdon32. Acrescentaramos, para a sua primeira fase Bernini, e para o conjunto da
sua obra insistiramos em Alexandre Giusti e Vieira Lusitano, seguindo, afinal, os prprios
testemunhos do escultor. O que aprendeu finalmente Machado de Castro na escola de Giusti?
Cremos que a frase em epgrafe ao presente trabalho, expressa j na fase final da sua vida, se refere,
sobretudo, metodologia de formao seguida pelo mestre em Mafra, princpios que ter depois
desenvolvido na escola de Lisboa que criou no contexto da execuo do monumento equestre a D.
Jos I. Estamos, portanto, no plano didctico. As afinidades estilsticas com as obras assinadas por
Giusti so, porm, tambm assinalveis sobretudo na moderao das expresses e atitudes e numa
certa pesquisa da graa, na esteira das confessadas influncias assimiladas por Castro nas obras de
Rafael e Poussin conhecidas atravs das estampas. Nesta construo cabe ainda a assimilao do
desenho de Vieira Lusitano, ltima referncia visvel que citamos mas no menos importante,
fechando um leque de grande diversidade e influncias mltiplas capitalizadas ao longo da sua vida
activa.
A riqueza do processo de aprendizagem de Machado de Castro conferiu-lhe uma competncia
diversificada que nenhum outro escultor do seu tempo pde reivindicar. Encontrava-se apto a
qualquer trabalho, em todo o tipo de materiais, convivendo vontade com ajudantes, aprendizes,
canteiros e outros praticantes dos ofcios. Percorreu as formas mais populares da disciplina da
escultura em madeira na tradio dos santeiros modelao em barro das figurinhas dos prespios
a par da expresso mais erudita da estaturia em mrmore, sacra ou profana, do retrato tumulria,
at aos monumentos reais, sobretudo, a modalidade de expresso mais elevada, a colossal esttua
equestre, que o prprio classificaria como a Epopeia da Escultura. Foi, em suma, artista e artfice o
que distinguia de Aguiar, o escultor formado em Roma, quase quarenta anos mais novo, pertencente
a outra gerao com uma conscincia mais estreita de classe, que o inibia de participar nas
30
Cf. Francisco Santana, A Associao dos Arquelogos Portugueses e Lisboa, in Arqueologia e Histria, srie
X, vol. III (Lisboa: 1993), 134-141.
31
Veja-se, por exemplo, Teresa Leonor Vale, O que de Itlia Machado de Castro viu: olhares directos e
indirectos sobre a escultura barroca italiana, in Joaquim Machado de Castro: O Virtuoso Criador (Lisboa:
MNAA/INCM, 2012), 54-57 ou Sandra Costa Saldanha, A arte de inventar ou o talento de bem furtar: os
arqutipos romanos na escultura portuguesa de Setecentos, in Lisboa Barroca e o Barroco de Lisboa, coord.
Teresa Vale (Lisboa: Livros Horizonte, 2007), 61-75.
32
Cf. Anne-Lise Desmas, Seus talentos o ponho ao lado dos primeiros artistas de seu sculo. Machado de
Castro e os escultores europeus do seu tempo, in Joaquim Machado de Castro: O Virtuoso Criador (Lisboa:
MNAA/INCM, 2012), 39.
154
33
Castro, Discurso sobre as utilidades do Desenho, 230: Este louco enthusiasmo Escolastico; este verdadeiro, e
detestavel fanatismo dos estudos, he pai da soberba, nutridor da ignorancia, e parcial intimo da insolencia. Em
qualquer se revestindo deste ridiculo capricho, j despreza todos os que no seguem a sua Seita, persuadindose que, por ter sido discipulo de tal ou tal mestre, se acha constituido supremo Legislador da faculdade que
professa, e decisivo contraste dos talentos alheios, especialmente daquelles que emanaro doutra Escola [...].
Longe, longe de ns a paixao de Escola: os possessos de tal espirito, logo mostro as contorses da soberba, as
visagens da ignorancia, e o orgulho da insolncia.
34
Diogo de Macedo, Joo Jos de Aguiar: Vida dum Malogrado Escultor Portugus (Lisboa: Revista Ocidente,
1944).
35
Aguarda-se neste contexto o estudo em curso de Cristina Dias sobre Joo Jos de Aguiar.
155
Fig. 2 Joaquim Machado de Castro. Grupo lateral da Esttua Equestre de D. Jos I (detalhe).
(Foto do Autor)
156
Fig. 3 Joaquim Machado de Castro. Grupo lateral da Esttua Equestre de D. Jos I (detalhe).
(Foto do Autor)
Fig. 4 - Joaquim Machado de Castro. Figura Masculina Reclinada. Rplica em polister platinado.
Cmara Municipal de Oeiras, Quinta Real de Caxias.
157
158
159
BIBLIOGRAFIA
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na Impressam Regia, 1810.
. Dicionrio de Escultura. Lisboa: Livraria Coelho, 1937.
. Discurso sobre as utilidades do Desenho. Lisboa: na Offic. de Antnio Rodrigues Galhardo, 1788.
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DESMAS, Anne-Lise. Seus talentos o ponho ao lado dos primeiros artistas de seu sculo. Machado
de Castro e os escultores europeus do seu tempo, in Joaquim Machado de Castro: O Virtuoso
Criador, 39. Lisboa: MNAA/INCM, 2012.
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1981.
LICHTENSTEIN, Jacqueline e Christian Michel. Confrences de lAcadmie royale de Peinture et de
Sculpture. Tomo I, Vol. 1. Paris: cole Nationale Suprieure des Beaux-Arts, 2007.
LIMA, Henrique Ferreira. Machado de Castro: Escultor Conimbricense. Coimbra: Instituto de Histria
de Arte, 1989.
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Ocidente, 1944.
. Machado de Castro. Lisboa: Artis, 1958.
MACHADO, Cyrillo Volkmar. Colleco de Memrias... Lisboa: na Imp. de Victorino Henriques da Silva,
1823.
PEREIRA, Jos Fernandes. Jos Joo de Aguiar, in Dicionrio de Escultura Portuguesa, 20. Lisboa:
Editorial Caminho, 2005.
PINHO, Elsa Garrett. Poder e Razo: Escultura Monumental no Palcio Nacional da Ajuda. Lisboa:
IPPAR, 2002.
SALDANHA, Sandra Costa. A arte de inventar ou o talento de bem furtar: os arqutipos romanos na
escultura portuguesa de Setecentos, in Lisboa Barroca e o Barroco de Lisboa, coord. Teresa Leonor
Vale, 61-75. Lisboa: Livros Horizonte, 2007.
. A Escultura em So Vicente de Fora: Projecto, Campanha e Autores, in Mosteiro de So Vicente
de Fora: Arte e Histria, coord. Sandra C. Saldanha, 199-204. Lisboa: Centro Cultural do Patriarcado
de Lisboa, 2010.
SANTANA, Francisco. A Associao dos Arquelogos Portugueses e Lisboa, in Arqueologia e
Histria, srie X, vol. III (1993): 134-141.
160
SCHERF, Guilhem. Tout est bon dans le grec: la sculpture et le got grec (1750-1770), in
LAntiquit rve, dir. Guillaume Faroult, Christophe Leribault e Guilhem Scherf, 80. Paris: Louvre
ditions/Gallimard, 2010.
SORENSEN, Bent. Sculpture, in Dictionnaire europen des Lumires, dir. Michel Delon, 982. Paris:
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VALE, Teresa Leonor. O que de Itlia Machado de Castro viu: olhares directos e indirectos sobre a
escultura barroca italiana, in Joaquim Machado de Castro: O Virtuoso Criador, 54-57. Lisboa:
MNAA/INCM, 2012.
161
Amador Patrcio de Lisboa, Memrias das principais providencias..., Lisboa, 1758. Prlogo.
Gustavo Matos Sequeira, Depois do Terremoto. Vol. 1. Lisboa: Academia das Cincias de Lisboa, 1916, p. 38.
3
Portugal Aflito e Conturbado pelo Terramoto do anno de 1755. Lisboa: CML, s.d., p. 62.
4
IANTT, Ministrio do Reino. Decretamento de Servios, Jos Monteiro de Carvalho, Mao 114 doc. 49.
5
Francisco M. de Sousa Viterbo, Dicionrio Histrico e Documental dos Arquitectos, vol. III, p. 388.
6
Idem, vol. II, p. 175.
2
162
Vila Velha de Rdo7. A experincia no rio Tejo o ter habilitado para trabalhos no rio Mondego, para
que faz, em 1751, uma Carta do rio Mondego com o projeto para o novo encanamento8 (Fig. 1).
Neste mesmo ano, em dezembro, nomeado Ajudante de Infantaria com exerccio de engenheiro e
destacado para a provncia de Trs-os-Montes.
No perodo que serviu em Trs-os-Montes h um conjunto significativo de desenhos que atestam o
seu envolvimento nos levantamentos das fortificaes da regio, entre os quais constam plantas da
praa de Outeiro (1753), do castelo de Vimioso (1753), de Vinhais (1753), de Miranda do Douro, da
praa de Monforte do rio Livre (1753), do castelo de Montalegre (1753), de Chaves (1753), de Freixo
de Espada a Cinta (1754) e Bragana (1754), assim como uma carta geographica da Provncia de Trsos-Montes (1755)9 (Fig. 2). Mas, alm destas plantas, h ainda um mapa que pela sua natureza
deveras interessante. Trata-se do Mappa dos confins do Brasil com as terras da Coroa de Espanha
na Amrica Meridional, que foi desenhado por Monteiro de Carvalho em 1752 (Fig. 3). O mapa
uma cpia do famoso mapa das cortes, cujo original serviu de base para as discusses do tratado
de Madrid, de que entretanto decorriam as demarcaes no Brasil10. No se sabe para quem o
desenho foi feito. Mas a realizao deste desenho ou coloca Monteiro de Carvalho na rbita de
algum militar que deveria ir para o Brasil nessa ocasio, ou trata-se de uma encomenda de algum da
corte, com acesso aos documentos diplomticos e interessado em ter uma cpia do mapa.
No h qualquer dvida de que o seu retorno a Lisboa ocorreu por causa do terramoto, e que por
isso foi chamado de volta corte, onde se apresentou no fatdico dia 1 de novembro de 175511,
tendo sido, segundo as suas prprias palavras, encarregado para o dezintulho da Capital12.
Contudo, para alm da sua ao no desentulho, qualquer que tenha sido, o veremos envolvido numa
srie de servios fora de Lisboa.
Ainda em 1755 dois desenhos colocam-no em bidos e em Mrtola13. Em bidos foi o responsvel
pela abertura da valla real da Villa de bidos. Em julho de 1757 mandado para Alccer do Sal
para tirar a planta da ribeira de sal e celeiros, at Porto de El Rei. Em fevereiro de 1758
incumbido de executar uma planta do Tejo desde Abrantes at Vila Velha de Rdo, mostrando
todos os impedimentos da navegao. A carta que lhe faz a encomenda do trabalho considera o
facto de Monteiro de Carvalho ter sido unicamente o engenheiro pratico que nos anos de 1744-46
assistiu ao encanamento do rio. Entre janeiro de 1759 e maio de 1760 outras trs diligncias fora da
corte so-lhe encarregadas. Em 1759, Assitio a abertura da Estrada Real de Lisboa ate Cascaes,
aonde riscoo o Campo da Parada, de que tirou planta. Em Sintra, foi encarregado da reedificao, e
direco da Caza da Cmara, Torre e Cadeia da Villa de Cintra. O decreto determinava que se fizesse
a sobredita reedificao total da caza da cmara, e cadeia, no mesmo sitio, em que antes estava, e
na mesma estructura que antes tinha. A Alenquer foi enviado em 1760, por Paulo de Carvalho e
Mendona, por ordem da Rainha, para uma diligncia que no especificada na proviso, mas que
na lista de trabalhos identificada tambm como reedificar a Caza de Cmara e Cadea. Todos
IANTT, Ministrio do Reino. Decretamento de Servios, Jos Monteiro de Carvalho, Mao 114 doc. 49.
Ver listagem da cartografia manuscrita de autoria Jos Monteiro de Carvalho nas referncias bibliogrficas.
9
Idem.
10
Sobre este mapa ver Andr Ferrand de Almeida, Entre a Guerra e a Diplomacia os conflitos luso-espanhis e
a cartografia da Amrica do Sul, in Nova Lusitnia: Imagens Cartogrficas do Brasil nas Coleces da Biblioteca
Nacional (1700-1822). Catlogo. Lisboa: CNCDP, 2001 e Mrio Olmpio Clemente Ferreira, O Tratado de Madrid
e o Brasil Meridional. Lisboa: CNCDP, 2001.
11
A sua certido de ofcios confirma que servia na corte desde o primeiro de Novembro de mil sete centos
cincoenta e cinco. IANTT, Ministrio do Reino. Decretamento de Servios, Jos Monteiro de Carvalho, Mao 59
doc. 54.
12
IANTT, Ministrio do Reino. Decretamento de Servios, Jos Monteiro de Carvalho, Mao 114 doc. 49.
13
Ver listagem da cartografia manuscrita de autoria Jos Monteiro de Carvalho nas referncias bibliogrficas.
8
163
14
IANTT, Ministrio do Reino. Decretamento de Servios, Jos Monteiro de Carvalho, Mao 114 doc. 49.
Ver listagem da cartografia manuscrita de autoria Jos Monteiro de Carvalho nas referncias bibliogrficas.
16
Jos Monteiro de Carvalho, Diccionrio Portuguez das plantas, arbustos, Lisboa, na Officina de Miguel
Manescal da Costa, Impressor do Santo Officio. Anno MDCCLXV. BNP SA 33169P.
17
Note-se que a relao direta de Monteiro de Carvalho com a casa de Pombal confirma-se ainda mais pela
posio similar em que se pode colocar a sua irm, a pintora Joana Incia Monteiro de Carvalho, conhecida
como Joana do Salitre, a quem so atribudos, entre outros, o retrato do marqus de Pombal de corpo inteiro,
hoje no acervo do Museu da Cidade e o retrato dos trs irmos de Pombal no Palcio de Oeiras, conhecido
como Concrdia Fratrum. Sobre estes retratos e sobre o quadro maior de uma potica da cultura onde se
pode inserir um conjunto de obras dedicadas a Pombal veja-se Ivan Prado Teixeira, Mecenato Pombalino e
Poesia Neoclssica. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1999.
18
Cf. Francisco M. de Sousa Viterbo, Dicionrio Histrico e Documental dos Arquitectos, vol. II, p. 175.
19
H documentao no AHCML que se refere a um pedido para derrubar a muralha do chafariz de dentro em
setembro de 1765, alegando os oficiais que tal contribuiria para o aformoseamento da rea com uma praa
mais espaosa e para a melhor circulao na Rua Direita dos Remdios, que dava serventia a todo o bairro de
Alfama (cf. AHCML 10 de setembro de 1765 Consulta sobre a demolio da muralha digo da parte da muralha
ao Chafariz de Dentro, fl. 153, Livro 6. de Registo de Consultas e Decretos de D. Jos I 1759-1777, e AHCML
10 de setembro de 1765 Consulta sobre a demolio da parte da muralha ao Chafariz de Dentro, fl. 161, Livro
14. de Consultas, Decretos e Avisos de D. Jos I (1757/1763-1765). Em 1768 a situao ter sido efetivamente
regulada tendo-se feito um plano, tal como indica o decreto rgio (Cf. AHCML, 5 de abril de 1768 Decreto
sobre se alargar a rua que vai do Chafariz de Dentro pela dos Remdios, fl.28, Livro 16. de Consultas, Decretos
e Avisos de D. Jos I (1768-1769).
15
164
vistoria e medio e tirando a planta de um cho de Jos da Cruz de Miranda de que fazem a
avaliao20.
Em fevereiro de 1768 ascende novamente na carreira militar passando ao posto de Sargento-mor.
Neste mesmo ano nomeado examinador dos discpulos da Academia Militar, juntamente com Filipe
Rodrigues de Oliveira e Guilherme Elsden. Mas a partir de 1769 que a sua ao em Lisboa mais
presente. O decreto passado a 6 de maro de 1769, que determinava pr a lanos os terrenos da Rua
Augusta e de todas as ruas que as pessoas quisessem edificar, afirmava que as arremataes
deveriam ser feitas com a presena dos desembargadores inspetores dos respetivos bairros e do
sargento-mor Jos Monteiro de Carvalho. Em setembro, o sargento-mor nomeado diretor da obra
do novo hospital a ser instalado no Colgio de Santo Anto21 e em abril de 1770 nomeado diretor
das obras do edifcio da Inquisio22.
Embora no seja possvel esclarecer completamente as questes relativas autoria do projeto destes
edifcios, absolutamente seguro que Monteiro de Carvalho dirigiu as obras e foi responsvel pela
construo de ambos. No caso do Hospital de Todos os Santos, que transferido para o Colgio de
Santo Anto, o decreto de nomeao determinava que o sargento-mor assistisse ao processo de
arrematao dos terrenos do antigo hospital e sugeria ainda que ser conveniente que se principiem
a fazer no edifcio novo as acomodaes respectivas as enfermarias que jazem no lado ocidental do
Hospital antigo, para que o terreno que estas desocuparem se possa ir arrematando; porque he o
mais precioso em razo de ficar com as frentes na boa praa do Rocio e sua mayor vizinhana23.
No caso do edifcio da Inquisio, as determinaes previam que para o mayor decoro, e grandeza
do referido edifcio cediam-se as cazas em que antes do sobredito terramoto se faziao as Cessoens
do Senado da Cmara, com o seu terreno, e materiais assim como se deveria comprar para o
mesmo Edifcio o pequeno terreno das cazas que foro de Dom Brs de Oliveira, como outros
materiais que nelle se acharem24.
20
IANTT, Ministrio do Reino. Decretamento de Servios, Jos Monteiro de Carvalho, Mao 114 doc. 49.
H vrias plantas do projeto para o Hospital na Biblioteca Nacional, umas assinadas por Caetano Thomaz,
outras tm apenas Souza e outras no tem qualquer assinatura. Sousa Viterbo afirma que Caetano Thomaz foi
encarregado de tirar uma planta do Convento de Santo Anto por ordem do conde de Oeiras em 4 de fevereiro
de 1764. Leonor Ferro identifica Caetano Thomaz como mestre pedreiro e esclarece a sua situao
relativamente ao Palcio das Necessidades, atribuindo-lhe com segurana apenas o frontispcio da igreja de
So Jos. No caso do Hospital de Santo Anto refere o levantamento que o conde de Oeiras lhe encarregou e
supe que ele possa ter feito o desenho das alteraes e no o projeto. Refere tambm outros desenhos do
Hospital (D. 31 R e D.129 A), estes ltimos identificados como cpias do Sousa, que ela diz poderem ser do
seu filho, Manuel Caetano de Sousa, ou de um dos seus netos. H uma indicao no catlogo de Irisalva Moita
(cf. Irisalva Moita (dir.), Lisboa e o Marqus de Pombal: Exposio Comemorativa do Bicentenrio da Morte do
Marqus de Pombal (1782-1982) (Cat. da exposio), Lisboa, 1982, n. 267) de que existiria na BNP uma planta
assinada por Monteiro de Carvalho que ali se reproduz mas que no se encontrou o original na BNP. No
sabemos de que altura so os desenhos de Caetano Thomaz ou de Manuel Caetano de Sousa, nem o de Jos
Monteiro de Carvalho. Resta saber se Jos Monteiro foi diretor das obras segundo o projeto de algum dos
outros citados, ou autor de novo projeto.
22
O edifcio da Inquisio levanta o mesmo tipo de problemas no que diz respeito ao papel desempenhado por
Monteiro de Carvalho. O projeto do palcio tem autoria atribuda por Horta Correia a Reinaldo Manuel dos
Santos, sob o plano geral de Mardel para o Rossio (cf. Jos Eduardo Horta, Correia, Vila Real de Santo Antnio:
Urbanismo e Poder na Poltica Pombalina, Porto, 1997). Segundo Horta Correia, o projeto para a fachada
simtrica ao palcio, onde est o arco da bandeira, tambm seria de Reinaldo Manuel dos Santos, entretanto
diretor da Casa do Risco. possvel admitir, sobretudo neste caso, que Monteiro de Carvalho tenha sido o
diretor da obra da Inquisio, seguindo efetivamente o projeto coordenado pela Casa do Risco.
23
IANTT, Ministrio do Reino. Decretamento de Servios, Jos Monteiro de Carvalho, Mao 114 doc. 49.
24
Idem.
21
165
Alm da direo destas duas obras de grande dimenso, vemo-lo ocupado na gesto contnua de
vrios outros processos que se ligam diretamente com a metodologia da reconstruo. Mas, talvez a
base mais significativa deste trabalho de conhecimento concreto da cidade tenha sido a elaborao
das plantas das freguesias25 (Fig. 4). Na carta do conde de Oeiras dirigida ao cardeal patriarca em 20
de dezembro de 1769 diz-se que Monteiro de Carvalho se acha prevenido com as ordens necessrias
para satisfazer qualquer incidente duvidoso que se possa encontrar no dito plano26. Em 1770
encarregado de elaborar uma lista com algumas propriedades rgias em Lisboa que estavam sem uso
e que poderiam ser vendidas27. Feita a listagem, igualmente encarregado de gerir as arremataes
que deveriam ser feitas na sua presena e do inspetor dos respetivos bairros.28
Em 1771 ocupa-se das avaliaes dos terrenos que ficavam compreendidos nas imediaes do
Passeio Pblico29, assim como tambm, nesta mesma ocasio, ter sido responsvel pela plantao
das rvores ento doadas por Jcome Ratton formando o prprio Passeio Pblico. No ano seguinte,
por um aviso do marqus de Pombal, vemo-lo dirigindo as obras da calceta da ribeira de So Paulo30.
Outros dois avisos do marqus de Pombal, deste mesmo ano, indicam a sua presena na avaliao de
17 pores de casas que deveriam ser demolidas31 e numa espcie de obra de urgncia para
desentulhar covas no Campo de Santana e montar provavelmente um patbulo onde se deveria
realizar um suplcio32.
Em setembro de 1774, so os administradores da Real Fbrica das Sedas que pedem que Monteiro
de Carvalho fosse examinar a sua obra que se achava j principiada, com as paredes feitas at
cimalha das portas, para ver se estas se adequavam ao plano e regulamento para poderem continuar
ou alias determinar segundo o mesmo plano o que se deve executar33. Esta indicao preciosa
pois reafirma o sentido de controlo da esttica urbana exercido pela equipa, ainda quando,
naturalmente, no executavam todas as obras.
Em janeiro de 1776 est Monteiro de Carvalho, juntamente com Reinaldo Manuel dos Santos,
avaliando uma srie de propriedades na Rua da Palma, para serem demolidas, para que se alargasse
a rua34. O decreto para o alargamento da rua promulgado em maio, determinando que se
comprassem as propriedades necessrias de acordo com a avaliao feita pelos dois engenheiros35.
25
IANTT, Casa Forte, Livro Manuscrito n. 153. Enumerao dos arruamentos constitutivos e a descrio dos
limites das freguesias (40) estabelecidas pela remodelao paroquial de 1770 em virtude da carta rgia de 18
de dezembro de 1769. Jos Monteiro de Carvalho.
26
IANTT, Miscelnea Manuscrita n. 1140, fls. 115 a 146. Mf. 2144 fl. 120.
27
IANTT, Ministrio do Reino. Decretamento de Servios, Jos Monteiro de Carvalho, Mao 114 doc. 49.
28
Note-se que o decreto era claro ao impor aos novos proprietrios a submisso ao plano e ao seu mtodo
obrigando-se no acto da arrematao a edificar pelos seus respectivos prospetos, no precizo termo de hum
anno. IANTT, Ministrio do Reino. Decretamento de Servios, Jos Monteiro de Carvalho, Mao 114 doc. 49.
29
IANTT, Ministrio do Reino. Decretamento de Servios, Jos Monteiro de Carvalho, Mao 114 doc. 49.
interessante ver que o decreto instruindo a avaliao indica que se deveria levar em considerao a mais-valia
que a nova praa implicava, que valorizava os terrenos a despeito da perda que eventualmente sofriam com a
diminuio das suas dimenses.
30
Cf. Francisco M. de Sousa Viterbo, Dicionrio Histrico e Documental dos Arquitectos..., vol. III, p. 388.
31
AHCML, 1 de fevereiro de 1772, Avizo sobre se ordenar que os Mestres da Cidade com a assistencia do
Sargento Mor e Infantaria com exercicio de Engenheiro Jos Monteiro de Carvalho, fl. 1, Livro 18. de Avisos,
Consultas e Decretos de D. Jos I (1772-1777).
32
IANTT, Ministrio do Reino. Decretamento de Servios, Jos Monteiro de Carvalho, Mao 114 doc. 49.
33
Idem.
34
AHCML, 30 de maro de 1776, Relao das Propriedades pelas Obras publicas do Senado da Camara, fl.
126. Livro 2. do Registo de Decretos de D. Jos I (1765-1777) Livro 2. de Decretos onde se costumo
registar os do Senhor Rey Dom Jose o primeiro.
35
AHCML, 9 de maio de 1776, Decreto sobre Sua Magestade mandar se alargue a Rua Nova da Palma, fl. 125,
Livro 2. do Registo de Decretos de D. Jos I (1765-1777) Livro 2. de Decretos onde se costumo registar os
166
do Senhor Rey Dom Jose o primeiro e AHCML, 9 de maio de 1776, Decreto sobre se alargar a Rua Nova da
Palma, fl. 220, Livro 18. de Avisos, Consultas e Decretos de D. Jos I (1772-1777).
36
Prospeto das propriedades de casas que se ho de reedificar no lado occidental da Rua Nova da Palma. AML,
Cartulrio Pombalino, doc. 62.
37
IANTT, Ministrio do Reino. Decretamento de Servios, Jos Monteiro de Carvalho, Mao 114 doc. 49.
38
Ver listagem da cartografia manuscrita de autoria Jos Monteiro de Carvalho nas referncias bibliogrficas.
39
Annimo, Planta do bairro de So Paulo com a indicao dos donos de vrias propriedades. S.d. AHMOP
D44C.
40
Prospeto das propriedades da Rua do Prncipe que decorre desde a Inquisio at o Passeyo Publico. AML,
Cartulrio Pombalino, doc. 26; Prospeto da rua que vahe pela parte oriental do Passeyo Publico. AML,
Cartulrio Pombalino, doc. 27;
41
H uma Relao das propriedades de cazas que nesta cidade de Lisboa se tem edificado, e reedificado, na
forma ordenada pelo novo plano, desde o anno de 1755 at o presente de 1777 (ANTT, Ministrio do Reino.
Diversos, Mao 1000 / Caixa 1124); e outro documento similar no Arquivo Municipal de Lisboa cujo ttulo indica
Relao das propriedades de Cazas, que nesta cidade de Lisboa, se tem edificado, e reedificado, pella nova
Regulao determinada por S. Magestade, desde o anno de 1755 ate o prezente de 1776, no entantoaparece
depois a notao Feita pelo Sargento Mor Engenheiro Joseph Monteiro de Carvalho 1778 (AHCML 211-A).
Veja-se Renata Arajo, A Relao das Propriedades e processo de edificao e reedificao de Lisboa, in
Lisboa Setecentista: a ordem nascida do caos (DVD). Lisboa: Arquivo Municipal de Lisboa, 2012.
42
IANTT, Ministrio do Reino. Decretamento de Servios, Jos Monteiro de Carvalho, Mao 114 doc. 49. A
tena da Ordem de Cristo foi concedida em 4 de maio de 1789, j depois da morte de Monteiro de Carvalho. A
sua viva, D. Rosa Joaquina, renunciou em favor das netas Ana Cristina Carvalho Peres e Maria Caetana
Carvalho Peres. Mesmo depois da concesso da tena, a viva e a filha continuaram um longo processo,
reivindicando remuneraes pelos servios do sargento-mor, que no foram todas atendidas.
43
Ver listagem da cartografia manuscrita de autoria Jos Monteiro de Carvalho nas referncias bibliogrficas.
44
IANTT, Ministrio do Reino. Decretamento de Servios, Jos Monteiro de Carvalho, Mao 114 doc. 49.
167
45
IANTT, Ministrio do Reino. Decretamento de Servios, Jos Monteiro de Carvalho, Mao 114 doc. 49.
168
169
170
BIBLIOGRAFIA
Fontes manuscritas
AHCML 211-A, Relao das propriedades de Cazas, que nesta cidade de Lisboa, se tem edificado, e
reedificado, pella nova Regulao determinada por S. Magestade, desde o anno de 1755 ate o
prezente de 1776. Feita pelo Sargento Mor Engenheiro Joseph Monteiro de Carvalho 1778.
AHCML, 1 de fevereiro de 1772, Avizo sobre se ordenar que os Mestres da Cidade com a assistencia
do Sargento Mor e Infantaria com exercicio de Engenheiro Jos Monteiro de Carvalho procedo na
avaliao das pores que se devio cortar das propriedades constantes da relao junta ao mesmo
officio, fl. 1, Livro 18. de Avisos, Consultas e Decretos de D. Jos I (1772-1777).
AHCML, 30 de maro de 1776, Relao das Propriedades pelas Obras publicas do Senado da Camara
da Rua Nova da Palma que o Decretto faz meno, fl. 126, Livro 2. do Registo de Decretos de D. Jos
I (1765-1777) Livro 2. de Decretos onde se costumo registar os do Senhor Rey Dom Jose o
primeiro.
AHCML, 9 de maio de 1776, Decreto sobre Sua Magestade mandar se alargue a Rua Nova da Palma
para que o Senado da Camara haja de comprar as Propriedades incertas na Planta Junta ao mesmo
Decreto pagandose logo a sua Avaliao, fl. 125, Livro 2. do Registo de Decretos de D. Jos I (17651777) Livro 2. de Decretos onde se costumo registar os do Senhor Rey Dom Jose o primeiro, e
AHCML, 9 de maio de 1776, Decreto sobre se alargar a Rua Nova da Palma, fl. 220. Livro 18. de
Avisos, Consultas e Decretos de D. Jos I (1772-1777).
IANTT, Casa Forte, Livro Manuscrito n. 153. Enumerao dos arruamentos constitutivos e a
descrio dos limites das freguesias (40) estabelecidas pela remodelao paroquial de 1770 em
virtude da carta rgia de 18 de dezembro de 1769. Jos Monteiro de Carvalho.
IANTT, Ministrio do Reino. Diversos, Mao 1000 / Caixa 1124. Relao das propriedades de cazas
que nesta cidade de Lisboa se tem edificado, e reedificado, na forma ordenada pelo novo plano,
desde o anno de 1755 at o presente de 1777.
IANTT, Ministrio do Reino. Decretamento de Servios, Jos Monteiro de Carvalho, Mao 114 doc.
49.
Cartografia manuscrita
[Jos Monteiro de Carvalho], Monforte do Rio Livre (1753). GEAEM 3091/2A-25-35.
[Jos Monteiro de Carvalho], Monforte do Rio Livre (1753). GEAEM 3089/2A-25-35.
[Jos Monteiro de Carvalho], Plano superior para a morada dos forneiros. Plano trreo do edifcio
para os fornos AHMOP, D. 23-3B; [Jos Monteiro de Carvalho], Prospeto do edifcio para os fornos
AHMOP, D. 23-4B.
171
[Jos Monteiro de Carvalho], Planta do citio do Arsenal the o Convento de S. Francisco da Cidade; e
mostra o lugar onde se devem construir os fornos para uzo dos moradores da cidade bacha ficando
inteiramente separados dos mais idificios. AHMOP, D. 23-2B.
[Jos Monteiro de Carvalho], Prospeto da rua que vahe pela parte oriental do Passeyo Publico. AML,
Cartulrio Pombalino, doc. 27.
[Jos Monteiro de Carvalho], Prospeto das propriedades da Rua do Prncipe que decorre desde a
Inquisio at o Passeyo Publico. AML, Cartulrio Pombalino, doc. 26.
[Jos Monteiro de Carvalho], Prospeto das propriedades de casas que se ho de reedificar no lado
occidental da Rua Nova da Palma. AML, Cartulrio Pombalino, doc. 62.
[Jos Monteiro de Carvalho], Prospeto dos Padres da Boa-Hora para frente da Calada de S.
Francisco. AML, Cartulrio Pombalino, doc. 66.
ANNIMO, Planta do bairro de So Paulo com a indicao dos donos de vrias propriedades. S.d.
AHMOP D44C.
CARVALHO, Jos Monteiro de. Carta do rio Mondego com o projecto para o novo encam.to, 1751.
IGEO, CA322/IGP.
. Carta Geogrfica da Provncia de Trs-os-Montes, 1755. IGEO, CA75/IGP.
. Planta da praa de Bragana cituada na prov. de Trs-os-Montes dessenhada pelo Ajud. E
Ingenheiro Joze Monteiro de Carv., 1754. GEAEM 926/1-4A-8.
. Planta da praa de Chaves capital da prov. de Trs-os-Montes dessenhada pelo Ajud. E
Ingenheiro Joze Monteiro de Carv., 1753. GEAEM 1295/1-8-312.
. Planta da praa de Freixo de Espada a Cinta na prov. de Trs-os-Montes dessenhada pelo Ajud. E
Ingenheiro Joze Monteiro de Carv., (1754). GEAEM 1942/2-19A-27.
. Planta da praa de Miranda do Douro na prov. de Trs-os-Montes dessenhada pelo Ajud. E
Ingenheiro Joze Monteiro de Carv., (175). GEAEM 3111/2A-25-35.
. Planta da praa de Monforte do Rio Livre na prov. de Trs-os-Montes dessenhada pelo Ajud. E
Ingenheiro Joze Monteiro de Carv., 1753. GEAEM 3090/2-21-30.
. Planta da praa de Outeiro na prov. de Trs-os-Montes pelo Ajud. E Ingenheiro Joze Monteiro de
Carv., anno de 1753. GEAEM 3237/2A-26A-38.
. Planta da praa de Vinhaes na prov. de Trs-os-Montes pelo Ajud. E Ingenheiro Joze Monteiro de
Carv., 1753. GEAEM 2984/2A-26A-37.
. Planta de Vinhaes, 1753. GEAEM 2985/2A-26A-37.
. Planta do Castello de Montalegre na prov. de Trs-os-Montes dessenhada pelo Ajud. E
Ingenheiro Joze Monteiro de Carv., (1753). GEAEM 3068/2-21-30.
172
. Planta do castelo de Vimioso na prov. de Trs-os-Montes pelo Ajud. E Ingenheiro Joze Monteiro
de Carv., 1753. GEAEM 2978/2A-26A-38.
. Carta Geographica da Provncia da Beira oferecida A S. Magestade Fidelssima e Augustissima
Senhora D. Maria I. Raynha de Portugal. Pelo Sargento Mor Engenheiro Joz Monteiro de Carvalho.
BNP, Iconografia, D. 159R.
. Carta Geographica da Provncia da Entre Douro Minho e Trs os Montes. Dedicado A Magestade
Fidelssima e sempre Augusta de El Rey de Portugal e dos Algarves Dom [...] Nosso Senhor por Joz
Monteiro de Carvalho, Sargento Morde Infantaria com exerccio de Engenheiro. BNP, Iconografia, D.
158R.
. Carta Geographica da Provncia da Estremadura que S. Magestade Fidelssima e Augustissima
Senhora D. Maria I. Raynha de Portugal oferece o Sargento Mor Engenheiro Joz Monteiro de
Carvalho. BNP, Iconografia, D. 156R.
. Carta Geographica da Provncia do Alentejo que A S. Magestade Fidelssima e Augustissima
Senhora D. Maria I e Raynha de Portugal oferece o Sargento Mor Engenheiro Joz Monteiro de
Carvalho. BNP, Iconografia, D. 157R.
. Carta toppografica do paul e mais terras adjacentes, que junto a vila de bidos pago a Rainha
Nossa Senhora o tero da novid.e da sua produo [ca. 1755]. IGEO. CA 119/IGP.
. Esboo da planta do citio do Arsenal the o Convento de S. Francisco da Cidade; e mostra o lugar
onde se devem construir os fornos para uzo dos moradores da cidade bacha ficando inteiramente
separados dos mais idificios. AHMOP, D. 23-1B
. Mappa dos confins do Brasil com as terras da Coroa de Espanha na Amrica Meridional pelo
Ajudante Engenheiro Jos Monteiro de Carvalho. O que est de amarelo he o que occupao os
Portugueses. O que esta de cor de rosa he o que tem occupado os Espanhoes. E o que fica em branco
athe agora no se acha occupado. Anno de 1752. BNP, Iconografia, D 114 R.
. Planta da Praa de Campo Maior por Jos Monteiro de Carvalho, Capp.am Engenheiro da mesma
em Julho de 1752 [sic]. GEAEM 3773-2-17A-25.
. Planta da Praa de Marvo e seos contornos. Joseph Monteiro de Carvalho, Cap.m Engenheiro a
fez em 1762. GEAEM 3144-2-21-30.
. Planta da Praa de Mertolla e seos contornos [ca. 1755]. IGEO. CA 424/IGP.
Fontes impressas
CARVALHO, Jos Monteiro de. Diccionrio Portuguez das plantas, arbustos, matas, arvores, animaes
quadrpedes, e reptis, aves, peixes, mariscos, insectos, gomas, metaes, pedras, terras, mineraes, &,
que a Divina Omnipotncia creou no globo terrqueo para utelidade dos viventes. Escrito por Jos
Monteiro de Carvalho, Lisboa, na Officina de Miguel Manescal da Costa, Impressor do Santo Officio.
Anno MDCCLXV. BNP SA 33169P.
173
Lisboa, Amador Patrcio de. Memrias das principais providencias que se dero no terremoto que
padeceo a Corte de Lisboa no anno de 1755... Lisboa, 1758.
Portugal Aflito e Conturbado pelo Terramoto do anno de 1755. Lisboa: CML, s.d.
Estudos
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VITERBO, Francisco M. de Sousa. Dicionrio Histrico e Documental dos Arquitectos, Engenheiros e
Construtores Portugueses, 2. ed., 3 vols. Lisboa: INCM, 1988-89.
174
El exceso de naturalismo al que se presta la cera junto a su fragilidad frente a la accin de los agentes
de deterioro, han sido dos de los factores ms importantes que han contribuido a la marginacin de
este material dentro del campo del arte. En el pasado, la accin de moldear un rostro estuvo
considerada un mero acto mecnico, vinculada a lo manual y a lo artesanal; es precisamente el
elevado grado de exactitud y verosimilitud conseguida con la cera, la causa por la que los objetos
elaborados con ella quedaron excluidos de la categora de arte1.
La ptima plasticidad de este material2 y su capacidad de imitar de manera excepcional la
transparencia y luminosidad de la piel, contribuyeron a la eleccin del mismo para personificar las
partes visibles del cuerpo, pues se consegua plasmar la sensacin de vida en la figura representada y
se lograba provocar ante el espectador un efecto de empata. Creadas con un fin esencialmente
pedaggico para responder al conocimiento cientfico, las colecciones de ceras anatmicas
alcanzaron su difusin durante el siglo XVIII y con el tiempo fueron objeto de diferentes valoraciones
dependiendo de las fluctuaciones del gusto propio de cada poca. La fascinacin del arte
contemporneo hacia la temtica de la mortalidad del ser y ms an el cuestionamiento sobre la
autenticidad del cuerpo humano, han ayudado, de manera intensa, a situar a la cera en un puesto
relevante por su capacidad para consentir la creacin de esculturas con similitud ilusionista
generadoras de un sentido de desasosiego en el espectador3. Frente al inters que hubo en el pasado
por mostrar el funcionamiento del cuerpo humano y su anatoma, el arte contemporneo centra su
atencin en mostrarlo como un contenedor donde se concentran las paradojas de la sociedad actual.
Y en este sentido, las increbles caractersticas metafricas de la cera han contribuido a su constante
reactualizacin.
Material dctil, material plstico por excelencia que activa el sentido del tacto entre los dedos del
escultor. Maleable a voluntad4, para que una forma pueda plasmarse sobre su materia5 es esencial
que sta se muestre ni demasiado slida ni excesivamente lquida, ni muy dura, ni muy suave. La
metfora de una superficie cubierta de cera, una especia de tabula rasa sobre la cual se poda
1
David Freedberg, El poder de las imgenes (Madrid: Ctedra, 1992), 253. En 1911, Julius von Schlosser seal
el carcter mgico de las imgenes en cera como una forma de supervivencia del pasado dentro de la historia
de la antropologa. Vase Julius von Schlosser, Geschichte der Portrtbildnerei in wachs, Jahrbuch der
Kunshist Sammlungen des allerhchsten Kaiserhauses, 29 (1911): 171-258. Remitimos tambin a Andrea
Daninos (ed.), Julius von Schlosser. Storia del Ritratto in cera. Un saggio, (Milano: Officina Libraria, 2011).
2
Una interesante reflexin sobre la plasticidad de la cera se encuentra en Georges Didi-Huberman, The orden
of material: Plasticities, malaises, survivals. In Brandon Taylor (ed.), Sculpture and Psychoanalysis, (Burlington:
Ashgate Publishing, 2006), 195-212.
3
Jessica Ullrich, Wax Sculptures Past and Present. In WAX-Sensation in Contemporary Sculpture, catalogue
th
th
exhibition, Kunstforeningen GL STRAND 5 of February-15 of May 2011 - Kunsten Museum of Modern Art
th
th
Aalborg 29 of May-11 of September 2011, (Copenhagen: Oplag, 2011), 18.
4
Didi-Huberman, The orden of material, 196.
5
Thelma R. Newman, Wax as Art Form, (London: Published by Thomas Yoseloff, South Brunswick, 1966).
175
176
metamorfosee en sus mltiples estados lquida, pastosa o slida-, siempre se mantiene como cera13.
Es un material que palpita, capaz de alcanzar un elevado grado de imitacin en relacin al original, de
pasar de una forma a otra hasta volverse similar a la carne, a la textura y al color de la piel humana.
Como las Venus anatmicas con cuerpos idealizados que adquirieron gran fama en las ferias
ambulantes y en los museos populares europeos alrededor de 1820 y 1830, en respuesta no slo a la
necesidad creciente de disponer de modelos tridimensionales para la enseanza de la Medicina, sino
tambin a la curiosidad morbosa de un pblico que buscaba el entretenimiento y el placer, la obra de
Vanesa Beecroft, Blond Figure Lying (2008), muestra a una mujer tumbada sobre una camilla, con
una largusima melena rubia que cae suelta hasta los pies. Su postura de mrtir, con las palmas hacia
arriba, parece aludir a la resignacin que asumen las mujeres al aceptar las exigencias estticas
impuestas por el canon de belleza actual que las conduce hacia la muerte fsica por causa de los
desrdenes alimenticios extremos. En esta escultura, el estado de abandono de su cuerpo recuerda
al cadver en la morgue pero tambin rememora las antiguas muecas mdicas entregadas a la
diseccin por manos masculinas, que escudriaban en su interior para encontrar las evidencias de su
capacidad reproductora. Beecroft fusiona el ideal clsico de belleza con la cosificacin de la mujer en
la sociedad de consumo y lo utiliza como excusa para establecer con el espectador un dilogo basado
en el cuestionamiento de los lmites entre lo real, lo imaginario y lo transcendental. La obra
seleccionada de esta artista simboliza el concepto de belleza al que se llega a travs de un proceso
esttico que arrastra inexorablemente a la muerte por causa de perseguir una belleza antinatural14.
Todo en esta figura, incluso el ttulo de la pieza, Lying, sugiere un juego dual sobre su estado vital dormida, sumisa o muerta-, y sobre su posible autenticidad15.
Inspirndose en uno de los modelos anatmicos en cera realizados por el taller ceroplstico de La
Specola, de Florencia, Kiki Smith elabor su Virgin Mary (1993). Cuando observamos las esculturas
figurativas que albergan las salas de los museos, stas nos muestran su enorme poder y crean a
nuestro alrededor una especie de espacio psquico; logran permanecer en nuestra memoria a modo
de recuerdos como pasajes de la historia pasada. Smith nos sita ante una figura femenina
descarnada, alejada de las Venus idealizadas que sirvieron de inspiracin para los modelos
anatmicos del siglo XVIII, mucho ms prxima a los cuerpos masculinos de despellejados con los
que se estudiaba anatoma en los talleres de los artistas del Renacimiento y en las escuelas de
Medicina. Un cuerpo en el que slo hay msculos, carne y sangre. Frente a las representaciones
tradicionales de las vrgenes medievales que pueden verse en las iglesias, aqu el personaje
representado es una virgen anclada a la realidad, no hay espacio para separar la sexualidad de la
divinidad16. Al interrogarse en sentido plstico sobre este mito femenino, la artista construye su
propio enfoque en relacin al enigma de la procreacin y del nacimiento17.
Las cualidades particulares de la cera llevaron a este material a ser asociado, a menudo, con el
cuerpo muerto. La cera se vuelve carne fnebre, imagen mortuoria. La muerte y el sufrimiento estn
muy presentes en las esculturas de la artista belga Berlinde De Bruyckere, que ella misma elabora a
partir de moldes. El inquietante color de la piel, con la tez blanquecina, de extraordinario verismo en
cuando a la apariencia de piel y carne, se asemeja al fro mrmol, las venas se intuyen carentes de
sangre; todo ello confiere a las piezas un realismo espantoso18. En sus cuerpos mutilados llama la
13
177
atencin la ausencia de rostros, cabezas y rganos sexuales. Este recurso de mostrarlos como
desechos carentes de vida, la permite ejercer un fuerte impacto visual sobre el espectador, que se ve
obligado a enfrentarse con aqullo que prefiere obviar. La carencia de belleza y de proporciones en
las formas, adoptadas a travs de sus figuras contorsionadas, contribuye a la materializacin de la
carne orgnica en alusin a la trgica existencia del ser humano dominada por la soledad y el dolor.
Sus esculturas encarnan el sufrimiento, la vulnerabilidad y la fragilidad de la existencia19. No es casual
la eleccin del material. En sustitucin del mrmol, caracterizado por su dureza y durabilidad,
cargado de connotaciones de riqueza y explotacin, De Bruyckere recurre a la cera, un material frgil
que tiende a desintegrarse, a mutar y a transformarse, de modo que logra con su uso reanimar a las
formas. El cuerpo es aqu devenir metafrico de la constante lucha entre la vida y la muerte20.
Restituir al arte la crudeza de la carne. Una serie de obras realizadas por Paul Thek, conocidas como
Technological Reliquaries (1964-1967), consisten en urnas de plexigls que contienen brazos, piernas
o manos en cera tomados de moldes de su propio cuerpo. Son piezas que recuerdan a las reliquias
cristianas o a los exvotos populares21, si bien con un carcter muy distinto al de stos22 pues la
intencionalidad de la obra parece estar en mostrar una sepultura de las emociones. Estas partes del
cuerpo, reactualizadas segn la era tecnolgica, permiten al artista provocar una reaccin del
espectador al que invita a reflexionar sobre los aspectos desagradables que oculta el mundo
consumista. Para lograr sus fines utiliza piezas de carne en cera, resultado de moldes de s mismo,
que enfrenta a la imagen colectiva de cuerpo. Consigue as que el pblico pueda identificarse con l
en un intento de vincular su trabajo con los mitos y las imgenes de un inconsciente colectivo23. La
cera utilizada en los rituales mortuorios encierra una antigua tradicin ancestral basada en la
creencia del espritu fantasmagrico que acompaa a la reliquia tras la muerte del cuerpo. El
desmembramiento de estas piezas es una provocacin y una crtica social.
Siniestras partes corporales son realizadas por el norteamericano Robert Gober al trabajar el cuerpo
fragmentado a partir de la tcnica del molde, con lo que construye en yeso y cera determinadas
partes como piernas, brazos y torsos, a los que incorpora otros elementos como vello natural e
indumentaria24. En algunas de las piezas, por ejemplo en Untitled (Candle) (1991), una vela surge de
una base de cera recubierta de pelos, en clara alusin al miembro viril erecto. Presentadas a modo
de pequeas capillas o altares de exvotos, estas piezas se sitan entre lo sagrado y lo profano, si bien
se ha producido un cambio en el concepto de abstraccin metafrica de vida /muerte por medio de
la puesta en escena del objeto. Nuestro pensamiento mantiene el recuerdo de las reliquias y los
exvotos anatmicos pero tambin nos enfrenta a los actos criminales. A modo de cadveres
http://dhc-art.org/de-bruyckere-currin/
Berlinde de Bruyckere, exhibition 13 June -24 July 2010, (Zurich: Hauser & Wirth). Acceso 18 Junio, 2012.
http://www.hauserwirth.com/exhibitions/668/berlinde-de-bruyckere/view/.
20
Berlinde de Bruyckere, catalogue exhibition 3 October 20 December 2008, (Paris: Espace Claude Berri).
Acceso 22 Julio 2012.
http://www.claudinecolin.com/en/archives-86-berlinde-de-bruyckere.
Berlinde de Bruyckere, DHC / ART, catalogue exhibition 30 junio -13 noviembre 2011, John Currin. Acceso 21
Julio, 2012.
www.dhc-art.org.
21
Los exvotos son una especie de fantasmas que nos rodean, cuya plasticidad psquica se expresa a travs de
la cera. Georges Didi-Huberman, Ex voto. Image, organe, temps, (Paris: Bayad, 2006), 97, 99.
22
Manuel J. Borja-Villel et al., Paul Thek: Artista de artistas. Obras y procesiones de 1958-1988, (Madrid:
Documenta, Artes y Ciencias Visuales / Museo Reina Sofa, 2009).
23
Holland Cotter et al., Paul Thek: The wonderful world that almost was, [Paul Thek: El mn maravells que no
va arribar a ser], (Rotterdam: Witte de With, Center for Contemporary Art / Barcelona: Fundaci Antoni Tpies,
1996), 82.
24
Joan Simon, Robert Gober y lo Extra Ordinario. In Joan Simon and C. David, Robert Gober, catlogo
exposicin 14 enero 8 marzo 1992. (Madrid: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofa, Ministerio de
Cultura, 1992), 18.
19
178
mutilados, sus fragmentos hiperreales de miembros desarticulados del cuerpo humano contienen un
fuerte componente icnico. Son piezas que pretenden atraer la atencin de un pblico impasible
acostumbrado a las tragedias diarias que narran los medios de comunicacin en un grito de protesta
hacia los horrores del mundo contemporneo25. Estos objetos imposibles instauran un mbito
ambiguo entre la ficcin y la realidad que termina por generar una cierta desazn e incomodidad en
el espectador26. A ello contribuyen tanto los materiales empleados como las formas incongruentes o
monstruosas realizadas a escala real27.
El poder metafrico de la cera posibilita establecer referencias a temas eternamente sometidos a
cuestionamiento por el ser humano: la mortalidad, la fugacidad del tiempo o la congelacin del
instante. La nocin tradicional de obra de arte como algo permanente ha sido y contina siendo
interrogada por la prctica contempornea. Un importante nmero de propuestas artsticas actuales
tienen la particularidad de incluir un proceso de desintegracin del material como algo esencial para
la propia obra, pudiendo incluso culminar con la descomposicin total de la misma. La destruccin
como construccin del significado en ellas contrasta con la tradicional manera en que se han
presentado ante nosotros las figuras de cera del pasado, como objetos caracterizados por su
condicin de cosa nica, perdurable en el tiempo. Si antao aqullas eran mostradas al espectador
en un contexto determinado por su condicin de objeto nico, hoy en da el carcter cambiante y el
factor temporal son aspectos de enorme inters en algunas manifestaciones artsticas. La presencia
de un tiempo constructor de significados encarnados en un material cambiante e inconsistente como
la cera, es un elemento que genera incertidumbre al espectador. Cuerpos que consumen y se
consumen, que han perdido su figura e incluso su propia carne. El destino de la pieza es
inexorablemente ser derretida. Todo flucta, cualquier imagen que se forme es cambiante, se
metamorfosea sobre s misma. En Remedios (2006), Laura Anderson nos muestra una figura de
cuerpo entero en cuya parte superior hay la llama de una vela. La escultura sufre un proceso lento de
desaparicin progresiva en clara alusin al tiempo que consume la vida y a la luz generadora pero a
la vez destructora. Queda constancia as de la incapacidad de las imgenes cristianas para cumplir
con su misin sanadora de guas. Es interesante sealar el valor metafrico de la llama que arde
porque, aqu, la vela no ejerce como objeto lumnico sino que, ante todo, es un signo del tiempo y
del ser. Un planteamiento similar se encuentra en Urs Fischer, cuyo conjunto escultrico mostrado
en la Bienal de Venecia (2011) situaba a una rplica en cera de un espectador y a una silla vaca
frente a la copia del Rapto de las Sabinas, de Giambologna. Quiz con la intencin de unificar las
diferentes temporalidades del hombre y del arte en un comn y efmero destino inexorable: la
disolucin del cuerpo.
Slo quedan pequeas huellas de cera, testigos de la desaparicin de la vela consumida por el fuego,
esa misma vela en la que la mariposa de Didi-Huberman cae fulminada28. Lo que ya no est
permanece, persiste tanto en el tiempo como en nuestra imaginacin, que se encarga de
rememorarlo una y otra vez. Enigmticas e inquietantes, las figuras en cera son una expresin
artstica que ha logrado atravesar los siglos.
25
Gober dirige sus propuestas a una sociedad que est enferma de indiferencia, prejuicio o miedo. Remitimos a
la entrevista que Craig Gholson realiz al artista en 1989, publicada en BOMB Magazine- Artists in
Conversation, 29. Acceso 22 Julio, 2012.
http://bombsite.com/issues/29/articles/1252/.
26
Hal Foster, An Art of Missing Parts, October, 29, (2000), 128-156. Acceso 28 Julio, 2012,
http://www.jstor.org/discover/10.2307/779236/.
27
Jos Miguel Corts, El cuerpo mutilado. (La angustia de muerte en el arte), (Valencia: Direcci General De
Museus i Belles Arts, Conselleria de Cultura, Educaci i Ciencia, 1996), 201.
28
Georges Didi-Huberman, La imagen mariposa, (Barcelona: Mudito & Co, 2007).
179
Desenhos 62-72 a veloz documentao da produo grfica criada pelo autor entre as
respectivas datas, ou seja, a amostragem de uma dcada de desenhos. O filme regista, um a
um e por ordem cronolgica, cerca de 1500 desenhos, alguns dos quais mostrados em
diferentes posies. Um dos mais longos trabalhos de ngelo de Sousa em Super 8 (c. 2132)
, nas suas palavras, um truque de arquivamento [que lhe permitia] consultar melhor as
existncias2.
2.
As maquetas de esculturas, produzidas a partir de 1967, podem ser consideradas como um dos documentos
de trabalho de ngelo de Sousa, que hoje so reconhecidos como objectos de arte. ngelo de Sousa
reproduziu-as fotograficamente com o intuito de manipular a sua condio de apontamento, mas a sua
pequena escala de trabalho tem interessado pela diversidade de solues. Um conjunto destas maquetas foi
exposto na exposio Porto 60/70: os artistas e a cidade (Serralves, 2001) e pertence hoje coleco do Museu
de Arte Contempornea de Serralves (Porto). Algumas maquetas foram igualmente exibidas na exposio
dedicada obra escultrica de ngelo de Sousa, organizada no Centro de Arte Contempornea da Fundao
Calouste Gulbenkian em 2006. Nesse ano, quando ngelo de Sousa teve a oportunidade de as ampliar, no se
limitou cpia das maquetas: a escala e o tempo sugeriram-lhe novas solues. Acerca da relao das
esculturas com os documentos de trabalho, ver: Paula Pinto, ngelo de Sousa: documentos de trabalho, in
ngelo de Sousa (1938-2011): Ainda as esculturas, Guarda: Teatro Municipal da Guarda, 2012, pp. 15-20.
2
ngelo de Sousa, Entrevista conduzida por Joo Pinharanda, Quero conhecer diferente, Pblico, 8 Outubro
1993, pp. 4-6.
180
O que procuro evidenciar a forma como os seus documentos nos falam da obra e a obra dos
documentos. De que forma o filme nos mostra os desenhos e os desenhos (bem como a sua
organizao) evidenciam o interesse do autor na realizao do filme? E como que os Slides de
Cavalete reiteram a sua expresso pictrica, ao mesmo tempo que evidenciam o cruzamento de
experincias em diferentes meios (em ltima instncia o seu maior projecto criativo)?
ngelo de Sousa explorou uma panplia de suportes e prticas artsticas, que vo da gravura e da
serigrafia pintura, da fotografia ao filme, da escultura arte pblica e da cenografia instalao.
Embora a adequao de cada forma sua materialidade fosse reconhecida como uma especificidade
da obra de ngelo de Sousa, a transversalidade das ideias e a sua articulao em diferentes suportes
e ao longo do tempo conduz-nos a uma dimenso menos conhecida do seu trabalho.3 Esse exerccio
obriga-nos a pensar na actividade quotidiana do autor em vez de pensar nas obras como objectos
finais e isolados no espao museogrfico.
Intitular o filme Desenhos representou j uma maneira de cruzar fronteiras entre objectos e prticas
artsticas. Registando os desenhos em filme, criou um banco de dados e de imagens. Mas alm da
funo de arquivo, o filme passou a existir como um olhar de autor e como um registo experimental:
uma oportunidade para observar os desenhos sob novas perspectivas, para os animar e testar a
exequibilidade de outros suportes; criar um dilogo entre os diferentes desenhos e entre diferentes
formas artsticas. O filme permite-nos ter acesso a um volume de desenhos num espao e num
tempo que o contacto directo no permite, aproximando a nossa percepo do seu projecto criativo
de trabalho como um todo.
A data em que Desenhos 62-72 foi realizado (1972-73) marcou no s um retorno de ngelo de
Sousa pintura, mas sobretudo uma mudana na forma de pintar. No Vero de 1972, o autor
realizou a primeira srie de mdio e grande formato de pinturas geomtricas, elaboradas com tintas
tricromticas off-set.4 ngelo de Sousa registou em filme a exposio na Galeria Quadrum, onde
estas pinturas foram expostas em 1975.5 Ainda em 1972 recebeu uma meno honrosa do prmio
Soquil da AICA com uma exposio de esculturas, realizada na SNBA (Lisboa), que tambm
documentou num filme intitulado Uma escultura. O filme da SNBA claramente relaciona a montagem
cinematogrfica com os processos de composio da escultura e a respectiva instalao expositiva.6
3
Acerca da simbiose entre a ideia-forma-matria na obra de ngelo de Sousa, ver: Bernardo Pinto de Almeida,
A imaginao da matria; 2991 palavras ao ngelo em 1992, catlogo da exposio Esculturas 66-67,
realizada no Porto, na Galeria Quadrado Azul, 1992.
4
O resultado da sobreposio das cores primrias, num processo de subtraco da cor, faz que estas pinturas
paream realizadas a preto-e-branco. A forma e o processo de obteno das cores nestas pinturas revelam-se
importantes para a compreenso dos Slides de Cavalete.
5
As pinturas de envelope, que assumem claramente o contraste entre o branco e o preto (formado pela
soma das trs cores primrias), foram mostradas na Primeira Bienal de Jovens Artistas Portugueses (Fundao
Cupertino de Miranda, 1972), mas s viriam a ser expostas de forma compreensvel em Abril de 1975, na
exposio Pinturas 1971-75, organizada na Galeria Quadrum (Lisboa). De salientar que ngelo de Sousa
realizou um filme documental da exposio e orientou com Ernesto de Sousa uma aco de formao com
crianas, em que estas pintavam os cartazes da exposio. Esta aco refora a ideia do acto criativo exercido
sobre o documento, uma vez que as crianas pintavam os esquemas das pinturas de ngelo de Sousa, por sua
vez utilizados como cartaz da exposio. Estes cartazes intervencionados foram expostos na galeria, com as
pinturas. O filme atesta esta coabitao.
6
Em 2012, organizei uma exposio no Centro para os Assuntos da Arte e da Arquitectura (Guimares), onde
coabitavam o filme de ngelo de Sousa, Uma escultura (filme Super 8 transcrito para digital, 1972, 1212),
uma das 3 esculturas (7 elementos construdos em tiras de ao inoxidvel, 250 x 600 cm) que faziam parte da
exposio na SNBA, o cartaz da exposio (Maio 1972), o guio do filme, o catlogo da exposio da AICA /
Prmio Soquil, maquetas da escultura feita em papel e em alumnio, fotografias das maquetas, fotografias com
vistas da exposio e alguns recortes de imprensa. A ressonncia provocada pela coexistncia destes objectos e
seus documentos assinalava o dilogo entre os processos de montagem da escultura, do filme e da prpria
instalao expositiva. Ver folheto da exposio.
181
A par destas experincias com um carcter mais documental, ngelo de Sousa explorou a face mais
experimentalista dos filmes de chos, o primeiro dos quais Cho (1. experincia), 1972
devolvendo-nos, simultaneamente, a pincelada impressionista e a geometria da sua pintura de 1972.
Estes filmes so exemplo concreto da transversalidade dos meios, no que respeita o projecto
artstico como um todo, a par da documentao e da propagao do trabalho de ngelo de Sousa
por diferentes reas disciplinares.
Em 1993, para a exposio Antolgica em Serralves, ngelo de Sousa expressou o interesse em
repetir este filme, mas ficou apenas a inteno.7 Teramos agora acesso a trs dcadas de desenhos
de ngelo de Sousa em filme. A velocidade inerente ao filme de certo modo incompatvel com o
estudo detalhado dos desenhos e conceptualmente o registo sistemtico de mais desenhos no
mudaria substancialmente o resultado final do filme a que hoje temos acesso. A sua exibio em
Serralves teria, contudo, mudado a abstracta conotao documental qual o filme ficou associado.
A questo da documentao e da temporalidade do filme enquanto arquivo remete-nos para o
treino dirio do fazer, associado ao desenho. O desenho foi por isso encarado, durante muito tempo,
como um elemento do processo e uma menos-valia de um projecto maior. ngelo desenhou muito
em blocos de desenho e em folhas soltas A5. Usava o desenho como uma engrenagem de trabalho e
com ele gerava um corpo que urgente estudar. Depois de uma rigorosa seleco, datava os
desenhos e usava um carimbo sequencial para os numerar, voltando todos os anos ao nmero um.
Quando transferia desenhos para a tela ou ampliava-os em papel, justapunha essas informaes.8
Desta forma, o ltimo desenho passava a referenciar uma obra precedente, nalguns casos talvez os
mesmos desenhos do filme, transformando-os por sua vez em documentos.9 No arquivo fsico dos
desenhos, entre alguns milhares de unidades, conseguimos perceber os constantes movimentos de
avano e retorno; os desenhos, mesmo feitos sem ideia prvia, reiteram temas, abstractos ou
figurativos, a que grande parte das vezes regressava. Essas estratgias do processo de trabalho,
raramente acessveis ao pblico, so evidenciadas no filme dos desenhos, pela prpria dinmica que
lhes concede o movimento. A cpia, a repetio, a justaposio e a sequncia aparecem-nos assim
como ferramentas conceptuais do seu trabalho, cuja organizao nos ajuda a incorporar valor
obra.10
A exposio [Antolgica em Serralves] teria ainda alguns vdeos, que no existem afinal. Um, repetiria um
truque de arquivamento que fiz h anos, em Super 8, filmando desenho a desenho todo o meu esplio, de
modo a poder consultar melhor as minhas existncias. Acerca da citao de ngelo de Sousa ver Pinharanda,
Quero conhecer diferente, Pblico, 8 Outubro 1993, pp. 4-6.
8
ngelo de Sousa usava um processo de numerao de desenhos que nunca foi estudado. Esta numerao
surge na frente dos desenhos e no no verso. Vrias datas e numeraes aparecem justapostas nos desenhos
mais recentes, ampliados e transpostos para tela ou papel (100 x 70 cm). Em 1991, no livro ngelo de Sousa: 75
desenhos, editado pela Oiro do Dia, ngelo de Sousa escreve: O nmero carimbado corresponde, de facto,
marca do carimbo numerador utilizado para facilitar, para meu governo, a ordenao e arrumo cronolgico dos
desenhos medida que iam sendo executados.
9
Tenho coleccionado pequenos desenhos (meia folha de papel A4) actividade que mesmo quando o tempo
escasseia exige menos condies materiais; como so abundantes mais de um milhar tenciono a exemplo
de uma experincia anterior, utiliz-los, se no for de outro modo, numa espcie de filme de animao que
serve simultaneamente como ficheiro rapidamente acessvel de ideias aproveitveis. ngelo de Sousa,
Relatrio ao Servio de Belas-Artes da Fundao Calouste Gulbenkian, 19 de Outubro de 1977.
10
Estabelece desta forma uma sequncia entre os desenhos, cujo historial fica referenciado. Contrariamente
ao que acontecia com a pintura, ngelo no guardava fichas dos desenhos que fazia. Pessoalmente defendo, e
porque esta no era uma ideia estranha a ngelo de Sousa, que os seus desenhos A5, datados e numerados
pelo autor, poderiam ser documentados e preservados num formato cinematogrfico. A construo deste filme
expositivo serviria no s para materializar a imensido dos trabalhos, mas tambm como documento para o
estudo do processo produtivo e criativo de ngelo de Sousa.
182
Mas se o desconhecimento pblico do filme Desenhos 62-72 se deveu em parte ao descuido crtico e
certamente a problemas tcnicos que o filme apresenta11, porque permaneceram os Slides de
Cavalete no acervo pessoal de ngelo de Sousa? Contrariamente ao filme Desenhos 62-72, os Slides
de Cavalete no existem como documento de outra coisa, mas antes como originais que resultaram
de inmeros ensaios fotogrficos. De ensaio em ensaio e seguindo um plano estruturado de trabalho
quotidiano, ngelo de Sousa chegou previsibilidade de imagens cujos objectos nunca existiram.
Manipulando a sobreposio luminosa das cores primrias e mscaras com formas geomtricas, com
diferentes tempos de exposies, desafiou aquilo que h de mais elementar na fotografia a cores: a
possibilidade de reproduzir qualquer cor a partir da mistura das trs cores primrias. Mas em vez de
usar os diapositivos para reproduzir a cor das pinturas, tambm elas construdas atravs da
sobreposio de camadas de cor, manipulou as cores at formar obras imaginrias.
As experincias com filtros/acetatos de cor reportam-nos para filmes como Experincia Op e Op2
(1968) e para o filme Sombra da Trepadeira (1974).12 Nos filmes Op, ngelo de Sousa filmou o
resultado da manipulao de folhas de acetato impressas com tramas coloridas, projectadas numa
superfcie branca, por uma mquina de projeco de acetatos.13 Estudioso e profundamente
conhecedor da mecnica dos aparelhos que utilizou projector de transparncias, projector de
slides, cmara de filmar, mquina fotogrfica e da sua relao com a percepo visual, todos estes
projectos revelam o seu interesse pela simplificao de meios e fins. Em Sombra da Trepadeira, tirou
partido do irrepetvel movimento natural do vento numa planta trepadeira, para tornar visvel o
desacerto provocado pela sobreposio da sombra de uma planta num plano fixo, filtrada pelas
respectivas cores primrias.14 Este exerccio explorava a potencialidade da sua primeira mquina de
filmar Elmo C-300, que lhe permitia avanar e recuar a pelcula, expondo-a repetidamente a
diferentes planos de luz.15 Foram estes processos de justaposio e sobreposio de cores que
transps para os Slides de Cavalete, utilizando a sntese aditiva, em vez da subtractiva.
11
O filme Desenhos 62-72 apresenta vrios problemas tcnicos, o maior dos quais o aparecimento de lixo na
lente, o que interfere profundamente com o rigor grfico e a subtileza dos desenhos. Essa possivelmente uma
das razes por que este filme nunca foi exibido.
12
Um outro filme em 8mm desconhecido do pblico mostra uma experincia a meio caminho entre os filmes
Op e Slides de Cavalete. ngelo de Sousa testa, neste filme registado como Experincias de cor, a sobreposio
de filtros de cores, tentando antever os resultados. ngelo explorou a obteno do branco a partir da
sobreposio do vermelho, do verde e do azul (sntese aditiva). Assim, onde nesta bobine de filme parece
no existir qualquer imagem, calculo que ngelo de Sousa tivesse testado a sntese aditiva da cor.
13
sobreposio das diferentes tramas, acresce o movimento das mos, que convocam o seu vocabulrio de
formas, mesmo nos projectos mais abstractos. ngelo desconsiderou estes filmes Op pela sua proximidade ao
movimento de Arte com o mesmo nome, mas eles revelam interesses e particularidades da obra de ngelo de
Sousa que no voltou a abandonar.
14
ngelo de Sousa filmou a sombra da planta Trepadeira, iluminada por um projector de diapositivos e
recorrendo sobreposio sucessiva de planos fixos de filmagens coados por filtros com as 3 cores primrias. A
sobreposio dos trs planos com cores diferentes resulta na formao de um nico plano de sombra negra,
cujo movimento f-la desintegrar em justapostas sombras de cor magenta, amarelo e ciano.
15
ngelo de Sousa: A minha primeira mquina de filmar era uma Elmo que funcionava com carregadores para
os sistemas 8mm normal, Single 8 [da Fuji] e Super 8 [da Kodak]. Comprei carregadores para normal e Single,
que permitiam andar com a pelcula para trs e para diante. Tinha uma antipatia natural pelo Super 8, porque
no permitia fazer isso. Mas no podia substituir lentes. Foi por isso que decidi comprar uma mquina de Super
8, a Beaulieu, que era na poca o topo do topo. Juntamente com a Leica, era a nica que permitia tirar a
objectiva e substitu-la por outros sistemas pticos. Tinha ainda um zoom de grande amplitude [o da primeira
mquina era muito pequeno] e como referi, permitia variar as velocidades [a primeira mquina s admitia
velocidades de 18 e 24 fotogramas por segundo]. Sempre que quisesse avanar e retroceder com a pelcula,
poderia usar a Elmo, com a qual fiz Sombra de Trepadeira. Joo Fernandes e Miguel Wandschneider,
Felicidade no gatilho: entrevista a ngelo de Sousa, in catlogo da exposio ngelo de Sousa: Sem Prata,
(Porto: Fundao de Serralves / Edies ASA, 2001), pp. 39-40.
183
Estas experincias punham em prtica o procedimento, frequente j no seu trabalho pictrico dos
anos 1960, de combinar cores atravs da sobreposio de diferentes camadas de tinta, dadas
segundo diferentes movimentos do pincel. A partir de 1972, quando as pinturas se tornam
geomtricas e abstractas, so a tcnica com que sobrepe as diferentes camadas de cor e a forma
como os planos se justapem que definem o aspecto formal da sua obra. A interaco fsica entre as
cores e a sua percepo visual foram motivos transversais na obra de ngelo de Sousa, como o foram
para figuras internacionais da sua gerao, implicando a transferncia de experincias entre
diferentes suportes e materiais (exemplo da pintura cintica), mas sobretudo usando os processos de
trabalho como forma criativa de aprendizagem: so exemplo Rudolf Arnheim, Josef Albers, Paul Klee,
Bruno Munari, entre outros autores, representados na sua biblioteca.
A produo de Slides de Cavalete implicou a montagem de um dispositivo complexo, que constava de
um ecr de vidro opalino, colocado verticalmente (perpendicular ao cho) entre um projector de
slides ( distncia de 1,70 m) e uma cmara fotogrfica ( distncia oposta de 60 cm). O ecr,
constitudo por duas folhas de vidro opalino, servia para fixar uma janela de cartolina preta de
propores equivalentes ao formato 24 x 36 mm da pelcula fotogrfica , bem como duas mscaras
amovveis, que delineavam as figuras geomtricas dos Slides de Cavalete, imagem das pinturas de
envelope.
A mistura fsica de cor, estabilizada nos Slides de Cavalete, decorreu da sobreposio de exposies
da pelcula de diapositivos projeco directa de luz, filtrada por diferentes filtros/acetatos de cor
(ciba). Em 1988, na segunda e ltima vez em que Slides de Cavalete foi exibido, ngelo de Sousa
descreveu assim o processo: A realizao do trabalho constou de seis exposies para cada slide,
trs exposies para cada uma das duas reas da mscara, atravs dos filtros primrios. Em cada
uma das exposies verde, vermelho ou azul fiz variar o tempo de exposio at um mximo de
12 segundos, recorrendo a outras mscaras menores (como se usa fazer durante a ampliao
fotogrfica).16 Apontada e enquadrando a janela de vidro opalino, a pelcula reversvel captava as
sucessivas exposies de luz coada pelos acetatos de cor, que cobriam ou corriam (vertical,
horizontal ou obliquamente) frente lente do projector de slides. Os esquemas de trabalho apontam
para a experincia com filtros de cor, utilizando quer as cores de sntese subtractiva (experimentada
na pintura com a mistura de pigmentos, mas tambm no filme Trepadeira), quer as cores da sntese
aditiva azul, vermelho e verde com cuja mistura em partes e tempos iguais se obtm o branco.17
Os seus apontamentos revelam notas acerca do cruzamento dos filtros e da obteno de variaes
graduais da cor, da delimitao e tratamento de diferentes zonas do ecr, da interposio de sombra
copo? mo? de micas de cor colocadas em frente ao projector e de micas movimentadas em
frente da lente da mquina fotogrfica, bem como do acoplamento de diferentes lentes ao projector
de luz. No filme Sombra de Trepadeira, ngelo de Sousa tinha sublinhado o desacerto provocado
pelo movimento das plantas, atravs da sobreposio de filmagens com diferentes filtros de cor.
Contrariamente, aqui procura o alinhamento das formas geomtricas, mas as diferentes tonalidades
reveladas nos diapositivos sugerem o movimento dos filtros de cor, tal como acontecia j nos
primeiros filmes Op, ou mesmo a interferncia da mo diante dos filtros de cor, tal como aconteceu
nos filmes Mo (1976) e sobretudo mais tarde, no vdeo Ensaio para a Mo Esquerda (1998). A
manipulao da imprevisibilidade dentro de um esquema de trabalho que os documentos
16
ngelo de Sousa, Descrio de um trabalho realizado em 1978-79 (e j exposto, embora em condies algo
precrias), in Fotoporto: Ms da Fotografia (Porto: Casa de Serralves, Setembro-Outubro de 1988), folha solta.
17
O princpio aditivo foi demonstrado pelo fsico James Clerk Maxwell (1831-1879) e foi utilizado como base da
demonstrao original sobre a viabilidade da fotografia colorida, realizada pela primeira vez em 1861, pelo
fotografo Thomas Sutton. Ele tirou trs negativos a preto-e-branco do mesmo tema (um lao de tecido escocs
axadrezado): um com filtro vermelho, outro com filtro verde e o ltimo com filtro azul e deles obteve trs
transparncias positivas. Em seguida projectou os positivos resultantes atravs de projectores cujas lentes se
encontravam cobertas por um filtro da mesma cor usada para tirar a foto: as imagens vermelha, verde e azul
ficaram superpostas, criando a primeira fotografia totalmente colorida.
184
Tambm na escultura a cor se relaciona com os diferentes materiais e o modo de operar. Saliento, dado o
paralelo com os Slides de Cavalete, a escultura Sem ttulo (1985-2006) realizada para a sua ltima exposio no
CAM. Composta por trs grandes folhas acrlicas recortadas (de cor vermelha, azul e verde), esta escultura
assume-se como imagem quando o espectador, movendo-se no espao, consegue finalmente alinhar as trs
formas num aparente plano nico. Em ambos os casos, a capacidade de alinhar diferentes formas de cor num
mesmo plano que revela a imagem final.
19
A exposio A Fotografia como Arte A Arte como Fotografia inaugurou no Centro de Arte Contempornea
Museu Nacional de Soares dos Reis, a 14 de Maro de 1979, viajando depois para Coimbra: Edifcio Chiado
(Abril-Maio de 1979), e para Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian (Maio-Junho de 1979).
20
No texto do catlogo Floris M. Neusss escreve: A discusso sobre a pergunta se a fotografia arte tem a
idade da prpria fotografia. [...] A influncia da fotografia, ou melhor da imagem fotogrfica, na pintura foi
suficientemente investigada e exposta []. Inversamente, a influncia das imagens fotogrficas na imagem
fotogrfica quase no foi objecto de reflexo at Erika Billeter empreender a sua primeira detalhada tentativa
em 1977 com a sua exposio Pintura e Fotografia em Dilogo. Floris M. Neusss, Fotografia como Arte
Arte como Fotografia: Sobre as possibilidades de uma nova tendncia, in catlogo da exposio A Fotografia
como Arte A Arte como Fotografia (Porto: Centro de Arte Contempornea, Maro de 1979), p. 5.
21
ngelo de Sousa, Felicidade no gatilho: entrevista a ngelo de Sousa, pp. 19-20.
185
Nota: existem imagens e documentos da maior importncia para o estudo das obras acima referidas;
infelizmente, sem qualquer justificao, o herdeiro de ngelo Sousa no permite a sua reproduo
para a investigao.
22
O diaporama Slides de Cavalete s voltou a ser exibido em 1988 na exposio Fotoporto: Ms da Fotografia
(Porto: Casa de Serralves, Setembro-Outubro de 1988).
23
Douglas Crimp, Photographs at the End of Modernism, in On the Museums Ruins (Massachusetts/ Londres:
The MIT Press, 1977 3. edio), p. 2.
186
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. Descrio de um trabalho realizado em 1978-79, in Fotoporto: Ms da Fotografia. Porto: Casa
de Serralves, Setembro-Outubro de 1988.
187
188
A primeira oficina
O modelo anatmico da primeira oficina seiscentista caracterizado pelo corpo volumoso, pescoo
grosso, rosto ovalado, testa alta, sobrancelhas finas, olhos desorbitados, plpebras semicerradas,
olhar vago, nariz fino e recto, lbios carnudos, cabelo e barba ondulantes, braos rolios e mos
papudas (Remgio 2009) (Fig. 1). As expresses so individualizadas e naturalistas e as composies
teatrais.
No mosteiro, esta oficina ter executado as esculturas da Virgem com o Menino1, dos relicrios do
Santurio (c. 1670-1672) (Remgio 2009), do plano horizontal e da Virgem do retbulo do Trnsito de
So Bernardo (c. 1675-1678) (Remgio 2012), da primeira fase da Srie Rgia (c. 1675-1678)2 e do rei
D. Afonso I (?) (MAC, Inv. Esc. 88)3.
1
No h qualquer informao sobre a identificao e provenincia desta escultura, mas ter pertencido
provavelmente a um retbulo destrudo durante as obras da Direco-Geral dos Edifcios e Monumentos
Nacionais (DGEMN) na dcada de 1930 (ATT Ministrio das Finanas). A escultura foi depositada na sacristia e
posteriormente transferida para o refeitrio do mosteiro.
2
A primeira fase da Srie Rgia seria constituda pelas esculturas dos reis D. Afonso I (1109-1185) a D. Joo IV
(1604-1656) e de So Bernardo, que estaria no centro da sala. medida que os monarcas se iam sucedendo, a
Sria Rgia ia sendo completada. A escultura do rei D. Pedro II (1648-1706) referida em 1716 (Santos 1979),
pelo que ter sido executada com a do seu irmo, o Vitorioso (1643-1683), numa segunda campanha ocorrida
entretanto. Entre 1762 e 1765, o abade-geral Frei Nuno Leito encomendou as esculturas do rei D. Joo V
(1689-1750), do rei D. Jos I (1714-1777) e do grupo da Coroao do Rei D. Afonso I e mandou transferir toda a
Srie Rgia para uma nova Sala dos Reis, localizada na antiga Portaria (Santos 1979). Nesta altura, o retbulo de
So Bernardo dando esmola a pobres e enfermos seria destrudo. Dada a diferena de alturas e de modelos
anatmicos, acreditamos que a escultura de D. Afonso I seja uma segunda deste rei e tenha sido executada
nesta terceira campanha.
3
Os dados encontrados no foram conclusivos para apurar a provenincia exacta desta escultura, mas
sabemos que a Real Associao dos Architectos Civis e Archeologos Portuguezes, sediada em Lisboa, foi
contactada em 1884 por Augusto Csar Marques, administrador do Concelho de Alcobaa, dando notcia de
que uma escultura do rei D. Afonso V (1291-1357) e uns elementos de pedra haviam de ser enviados para o
respectivo museu, o Museu Arqueolgico do Carmo (MAC) (AAAP Actas). Em Janeiro do ano seguinte, a
189
A esta oficina atribumos ainda as esculturas de Santa Maria Madalena do Convento de Santa Maria
Madalena de Alcobaa (MNAA, Inv. Esc. 2506)4, da Imaculada Conceio e do Cristo atado coluna
do Mosteiro de Santa Maria de Coz, de Santa Rosa de Lima5, de So Joo Baptista do Mosteiro de
So Joo de Tarouca e da Cabea de So Joo Baptista do Mosteiro de Santa Maria do Lorvo
(Remgio, no prelo).
Como o estofo da escultura de So Joo Baptista de Tarouca igual ao do relicrio do mesmo santo
do Santurio de Alcobaa, legtimo supor que, mesmo que a escultura tenha sido executada em
Alcobaa, pelo menos os estofadores ter-se-o deslocado a Tarouca. Apesar de ser mais provvel que
as oficinas estivessem sediadas em Alcobaa, a sua hipottica itinerncia tambm no deve ser
excluda.
escultura j tinha integrado o acervo do mais antigo museu nacional (AAAP Actas). Defendemos que esta
escultura representar D. Afonso I, o fundador da nacionalidade e do mosteiro de Alcobaa, dada a sua maior
ligao aos cistercienses portugueses e a Alcobaa.
4
Com a extino das ordens religiosas em 1834, o Convento de Santa Maria Madalena de Alcobaa foi vendido
em hasta pblica (ATT Ministrio das Finanas) e comprado por Ana Maria da Conceio Perdigoto, uma
proprietria local. Na dcada de 1960, Joo Matias Canha, neto da primeira proprietria, vendeu a escultura e
outras peas do convento ao coleccionador Antnio Capucho (1918-2009) por quinhentos escudos (Arruda et
al. 2004). Em 2010, a escultura foi doada pelos herdeiros do coleccionador ao Museu Nacional de Arte Antiga.
5
Esta escultura foi adquirida na dcada de 1960 na Vestiaria por Tarcsio Trindade (1931-2011), antigo
presidente da Cmara Municipal de Alcobaa, e ainda permanece na posse da sua famlia.
190
Por j ter sido responsvel pela execuo de obras em Tibes entre pelo menos 1665 e 1667, pela
sua idade e pela fama de que j gozava em 1676, no faz sentido que Manuel de Souza fosse
aprendiz quando ter trabalhado em Alcobaa (Le Gac et al. 2003), mas sim oficial ou mesmo mestre.
Seria sim mais provvel que o percurso de aprendizagem de Manuel de Souza tivesse passado pelo
Convento de Santa Catarina de Carnota, uma vez que as suas obras precedem Alcobaa, tanto em
termos cronolgicos como artsticos.
de sublinhar que quando Manuel de Souza foi abordado por Alcobaa era ainda secular, dando a
entender que o mosteiro estava aberto a oficinas seculares ou mistas. Esta ideia reforada tendo
em conta que as encomendas de obras artsticas deste perodo so maioritariamente respondidas
por artistas seculares (Santos 1979, Serro 1995, Sobral 2000, Serro 2003). Assim, bem possvel
que a primeira oficina de Alcobaa fosse constituda por escultores seculares ou conversos com a
colaborao de seculares assalariados.
A segunda oficina
A segunda oficina seiscentista executou esculturas mais elegantes, requintadas e dinmicas. A
modelao mais apurada evidencia um maior domnio tcnico e artstico.
Aparentemente com influncias flamengas, o modelo dos anjos, por exemplo, foi repetidamente
seguido em vrios retbulos (Fig. 5). Este caracterizado pelo rosto efeminado e inexpressivo, olhos
rasgados, farta cabeleira at aos ombros, pescoo alto e corpos esguios. Sobre tnicas compridas,
vestem tunicelas at aos joelhos, modeladas com muita fantasia (Remgio 2009).
No mosteiro, esta oficina ter executado as esculturas do retbulo da capela-mor (c. 1676-1678)6
(Remgio 2009), do Prespio (c. 1684-1690)7 e da glria de anjos do retbulo do Trnsito de So
Bernardo (c. 1687-1690) (Remgio 2012). Seja qual for a razo que tenha levado esta oficina a
continuar os trabalhos do retbulo do Trnsito, legtimo supor que a primeira oficina j no estaria
em funes no mosteiro de Alcobaa. Efectivamente de salientar que j no existem registos de
encomendas de obras da primeira oficina depois do abaciado de 1675 a 1678.
Embora no faa parte deste ncleo mais homogneo, o retbulo de So Pedro (c. 1675-1678?)8 do
mosteiro tem algumas aproximaes com as esculturas da segunda oficina, principalmente atravs
6
O retbulo da capela-mor foi desmontado em 1930 pela DGEMN e as suas esculturas em barro cozido
policromado depositadas na Sala do Captulo do mosteiro (ATT Ministrio das Finanas), enquanto as de
madeira esto actualmente no refeitrio. Parte das colunas de pedra foram colocadas a decorar uma das
rotundas da cidade de Alcobaa.
7
A capela do Prespio estava localizada no ptio lateral sacristia e foi destruda no incio do sculo XX. As
nicas duas esculturas localizadas actualmente do Prespio alcobacense, o anjo do Anncio aos Pastores e um
grupo com dois anjos msicos, pertencem actualmente ao Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA, Inv. 715 e
733 Esc.).
Enquanto a primeira foi adquirida em 1944 a Lus Reis Santos (1898-1967) por 10 000$00 (AMNAA
Inventrio), a segunda foi encontrada no Stio da Nossa Senhora da Nazar por Salvador Barata Feyo (18991990) dois anos depois e oferecida ao museu (Feyo 1949). Atravs da documentao fotogrfica, ainda
conseguimos localizar o que poder ser o tacelo superior de uma escultura de mdias dimenses em barro
cozido policromado e representar um anjo ou um pastor, mas no temos conhecimento da sua actual
localizao. A escultura em pedra policromada representando o profeta Isaas, que estava num nicho da
fachada da capela do Prespio ainda est no mosteiro, bem como alguns dos azulejos do lambril da
antecmara oitocentista que precedia a capela do Prespio.
8
A capela de So Pedro era a primeira do brao do lado da Epstola do transepto. Na dcada de 1930, o
retbulo em talha dourada foi desmontado pela DGEMN e as suas esculturas depositadas na sacristia (ATT
Ministrio das Finanas). Actualmente, algumas esto expostas numa dependncia do refeitrio do mosteiro e
outras depositadas nas suas reservas.
191
da escultura do Redentor. Tenha sido esta oficina ou ainda uma terceira a executar este retbulo, a
oficina que o efectuou com toda a certeza que tambm executou o So Jos da Igreja de Santa
Eufmia de Coz, uma vez que as semelhanas entre esta escultura e a do Cristo do retbulo de So
Pedro so evidentes.
A segunda oficina tambm ter executado as esculturas da Sagrada Famlia do Santurio da Nossa
Senhora da Nazar na Nazar (CNSN, 0084 e 0123), as de Nossa Senhora do Rosrio e de Anunciao
da igreja do Mosteiro de So Joo de Tarouca, de um relicrio de Santa Ceclia (?) (MAS Inv. n. E
60)9, de uma Virgem (?)10 (MMC|CTM, 43 E) (Remgio, 2013) e de a Virgem (AD-ESC-0406).
Embora no tenhamos quaisquer informaes sobre as esculturas de Tarouca, a sua execuo ter
tido certamente alguma interveno de Frei Sebastio de Sottomayor. Nascido em Braga,
Sottomayor tomou o hbito em 1638 no Mosteiro de So Joo de Tarouca e dali partiu em 1672 para
Alcobaa (Calado et al. 1974), tornando-se o principal impulsionador da escultura em barro cozido
policromado do mosteiro.
Da autoria destas esculturas, chegou-nos o relato oral da observao de uma inscrio incisa Pr no
barro fresco de um dos tacelos de uma das esculturas do retbulo da capela-mor quando foi
desmontada por volta de 2001. Esta inscrio poder corresponder a um cdigo de identificao de
tacelos ou porventura assinatura do mtico Frei Pedro.
Sobre a execuo das esculturas do retbulo do Trnsito de So Francisco de Assis (MSR Inv. n. SPA
17) do Convento de So Pedro de Alcntara de Lisboa, fundado em 1672 (Conceio 1740), temos a
importante informao de que foram executadas por um converso cisterciense da regio de Leiria,
provavelmente de Alcobaa, e posteriormente transportadas para Lisboa (Piedade 1728). Como o
conjunto escultrico possui esculturas que se assemelham claramente a esculturas de ambas as
oficinas, embora a composio mantenha uma certa harmonia e equilbrio, pensamos que este
retbulo possa ter sido executado por ambas as oficinas, numa fase de transio, e respeitando o
projecto inicial. Contudo, temos o indcio de que pelo menos uma das oficinas seria constituda por
conversos.
Este relicrio foi adquirido em Outubro de 1940 pelo primeiro director do Museu de Alberto Sampaio, Alfredo
Guimares, por 300$00, ao antiqurio Jos Pinto da Rocha de Guimares. Embora esteja classificado como
representando Santa Marinha, acreditamos que se trate de Santa Ceclia, pela sua iconografia.
10
Esta escultura foi adquirida num antiqurio alentejano pelo coleccionador Dr. Jos Carlos de Carvalho Telo de
Morais, que a doou depois ao Museu Municipal de Coimbra. Embora esteja classificada como representando a
Rainha Santa Isabel, acreditamos que se trate de uma Virgem, pelas semelhanas que tem com a Virgem da
Sagrada Famlia da Nazar e da Nossa Senhora do Rosrio de Tarouca.
192
(1653-1713), o secretrio de Sottomayor (Calado et al. 1974), e por isso um interveniente em todo o
processo. Contudo, Lencastre apenas foi secretrio de Sottomayor no seu segundo mandato, que
decorreu entre 1687 e 1690 (Calado et al. 1974) e as primeiras encomendas datam da dcada de
1670.
Possivelmente pertencentes ao antigo arquivo da Casa dos Cunha (Santos 1924), as trs cartas foram
adquiridas por Joo Maria Correia Aires de Campos (1847-1920), 1. Conde do Ameal, e leiloadas em
1924 (lote n. 2:583) (Santos 1924), quando foram descobertas por Gustavo de Matos Sequeira
(1880-1962). Na sesso de 14 de Abril, estando presentes importantes coleccionadores (Sequeira
2008), as cinquenta e nove peas que constituam este lote foram arrematadas por 400$00 ao Prof.
Doutor Abel Pereira de Andrade (1866-1958) (Santos 1924).
A biblioteca do professor catedrtico da Faculdade de Direito de Lisboa e deputado regenerador foi
herdada pelo seu filho varo, o Dr. Abel de Andrade Jnior (1902-1982), tendo sido posteriormente
dividida. As publicaes de Direito foram doadas Universidade de Coimbra. Parte foi deixada no
Mosteiro de So Pedro de Folques, propriedade da famlia at 1995, quando foi adquirida pela
Cmara Municipal de Arganil. O remanescente que ficou na posse da famlia foi subdividido em cinco
parcelas, correspondentes aos seus cinco filhos. Na biblioteca ainda existente no mosteiro de
Folques no encontrmos quaisquer cartas. Contactados inmeros descendentes, fomos informados
de que alguma documentao avulsa fora lamentavelmente deitada para o lixo. Apesar de tudo,
nossa convico de que as cartas existiram, bem como Frei Pedro.
Retomando esta pista actualmente desacreditada, ficmos a saber que a Infanta de Carnide foi trs
vezes a banhos s Caldas da Rainha por questes de sade, em 1675, 1676 e noutra data (Borges
1998). Como mandou queimar toda a sua documentao aps a sua morte (Duarte 2008), perdeu-se
uma importante fonte de informao sobre esta relevante personalidade portuguesa.
Das trs esculturas encomendadas nada mais se sabe, mas podero ter sido porventura executadas
para um dos edifcios religiosos a que a Infanta estava ligada, como o Convento de So Joo da Cruz
de Carnide, que fundou em 1685, ou o Convento de Santa Teresa de Jesus de Carnide, onde viveu
desde 1650, faleceu e est sepultada.
Como padroeira da igreja do Convento de Santa Teresa de Jesus, foi uma importante impulsionadora
das suas obras que decorreram precisamente entre 1662 e 1668/1677 (Duarte 2008, Conceio
1819). Curiosamente, na fachada deste convento encontrmos duas esculturas seiscentistas em
barro cozido policromado, uma representando Santa Teresa do Menino Jesus (Fig. 6) e outra, Santo
Alberto de Trpani (Fig. 7). Embora a escultura de Santa Teresa no esteja esteticamente longe das
esculturas de Alcobaa e o Santo Alberto seja extremamente anlogo escultura de So Jos da
Igreja do Bom Jesus de Turquel, nos coutos de Alcobaa, no as conseguimos inserir
inequivocamente em nenhuma das duas oficinas estudadas. Contudo, fica a dvida: faro estas duas
esculturas parte da encomendada ao mtico Frei Pedro?
Concluses
As esculturas em barro cozido policromado do Real Mosteiro de Santa Maria de Alcobaa
encomendadas entre o ltimo tero do sculo XVII e meados do sculo XVIII tero sido executadas
por vrias oficinas barristas, algumas a trabalhar simultaneamente em determinados perodos.
Tendo havido vrias oficinas, possvel que tenham existido oficinas com constituies diferentes,
umas por conversos, eventualmente com a colaborao de seculares, e outras apenas por seculares.
nossa convico de que Frei Pedro tenha existido e sido um dos escultores conversos.
Desconhece-se a relao entre Frei Cipriano da Cruz e Alcobaa, mas vivel admitir que tenha
integrado a primeira oficina barrista seiscentista, ainda enquanto secular, dadas as evidentes
193
Agradecimentos
Os autores manifestam o seu agradecimento ao Dr. Jorge Pereira de Sampaio, director do Mosteiro
de Santa Maria de Alcobaa; Dr. Ceclia Gil, ao Dr. Rui Raquilho e Dr. Maria Augusta Trindade
Ferreira, antigos directores do mesmo mosteiro; ao Prof. Doutor Antnio Filipe Pimentel, director do
Museu Nacional de Arte Antiga; ao Dr. Jos Morais Arnaud, presidente da direco da Associao dos
Arquelogos Portugueses; ao Dr. Ansio Franco e ao Dr. Rui Trindade, conservadores do MNAA; Dr.
Dora Mendes, directora do Museu do Hospital e das Caldas da Rainha; Dr. Maria Jos Meireles,
tcnica superior do Museu de Alberto Sampaio; Dr. Joana Barata, tcnica do Museu Municipal de
Coimbra; ao Dr. Lus Sebastian, coordenador local da Direco Regional da Cultura do Norte; ao Dr.
Bernardo Trindade e restante famlia, famlia do Prof. Doutor Abel de Andrade; ao Prof. Doutor
Nelson Correia Borges, Professor Associado aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra; pela colaborao prestada durante a elaborao deste estudo, indispensvel para alcanar
os resultados obtidos.
194
Fig. 4 Cronologia dos conjuntos escultricos em barro cozido policromado do Real Mosteiro de
Santa Maria de Alcobaa e a compatibilidade cronolgica entre estes dois grupos de esculturas
sustentam a hiptese de que o escultor bracarense tenha integrado esta oficina
195
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199
200
A par desta reduzida paleta que caracteriza a pintura de Anunciao interessa compreender a
evoluo do artista no domnio das tcnicas e dos materiais. Um dos grandes desafios que a presente
investigao enfrenta conseguir fundamentar e correlacionar as evidncias materiais e tcnicas
encontradas nas obras com o testemunho da informao literria da poca. Verifica-se que na
primeira metade do sculo XIX h, em Portugal, uma crescente preocupao em traduzir bibliografia
estrangeira. Nela incluem-se manuais de apoio s tcnicas da pintura e, muito particularmente,
disciplina de desenho, considerada basilar no ensino da arte pictrica.1 Contudo, no caso de
Anunciao, so ainda desconhecidos quaisquer manuais ou apontamentos que teriam sido
elaborados por este professor da Academia.
A investigao de Maria Helena Lisboa, no sendo um estudo aprofundado desta matria, aponta
trs obras como possveis manuais que tero sido consultados pelos alunos da Academia de BelasArtes de Lisboa. So estes o Cours de Peintre par Principes (sculos XVII-XVIII), de Roger de Piles, o El
Museo Pictrico y Escala ptica (1715-1724), de Antonio Palomino Castro y Velasco e o Manuel du
Peintre et du Sculpteur (1833), de Louis-Charles Arsenne (LISBOA, 2007, 308-314). Se a escolha das
duas primeiras prova do ainda considervel apego ao modo de fazer acadmico, j o manual de
Arsenne poder oferecer esclarecimentos mais atualizados do perodo em estudo.
Dado importante tambm o legado de Manuel de Macedo (1839-1915) que, segundo Rangel de
Lima, teria estudado no atelier de Anunciao entre 1857 e 1858 (LIMA, 1876, 41). O seu Manual de
Pintura profcuo nas descries de materiais e procedimentos e constitui-se como um importante
testemunho das prticas pictricas da segunda metade do sculo XIX, em Portugal.
Antes da caracterizao material das obras necessrio ter em conta os princpios bsicos da
construo de uma pintura a leo (Fig. 3). A tela foi utilizada como suporte das pinturas estudadas, e
sobre ela foi aplicada uma fina camada de isolamento com cola animal seguida de uma preparao
essencialmente branca. Esta ltima atua como elemento que garante a estabilidade mecnica da
pintura e dissimula os efeitos da textura e do tom castanho da tela. Na maioria dos casos ainda
aplicada uma ltima camada branca muito lisa e mais opaca (Fig. 3, camada 3), sobre a qual so
diretamente aplicadas as tintas quando no antecede um esboo ou desenho preparatrio. Inicia-se
ento o processo de construo da cor.
O processo da aplicao das tintas em trs fases descrito por Manuel de Macedo semelhana do
que acontece nos manuais estrangeiros.2 Podemos assumir que este seria um conhecimento tcnico
bsico, integrado quer no ensino acadmico nacional quer em instituies estrangeiras,
nomeadamente francesas e inglesas. De uma forma geral dava-se incio construo da pintura
preenchendo grandes reas com um tom neutro, correspondentes aos espaos confinados s partes
escuras, separadas dos pontos de luz. Seguia-se a operao de recobrir, dando agora maior nfase ao
pormenor. Por fim, a terceira etapa consistia no acabamento e na definio de contornos e pontos
de luz atravs do impaste (MACEDO,1898, 43).
A radiografia e a anlise de cortes estratigrficos revelam fases intermdias do processo criativo,
podendo estas ser indcio de que a pintura de Anunciao seguia os preceitos acima descritos. Na
obra Vista da Penha de Frana (1857) possvel ter a perceo de uma pincelada larga, subjacente
pintura final (Fig. 2). A copa das rvores iniciada sem pormenor com um tom intermdio castanho,
como podemos observar pela presena da camada 4 no corte estratigrfico da figura 3.
Analisando as instrues descritas nos manuais de Macedo e de Arsenne, constata-se que o primeiro
no fornece informao sobre a natureza qumica da camada de preparao, referindo apenas a
1
No Catlogo dos livros da biblioteca da Academia de Bellas Artes, de 1862, podemos encontrar a lista desse
apoio bibliogrfico de que os alunos e professores da Academia de Belas-Artes de Lisboa dispunham.
2
Leslie Carlyle refere, entre outros, nomes como Bardwell, Templeton e Bouvier como autores que explicam o
mtodo da pintura por fases, ou Painting in Stages, pp. 200-202.
201
utilizao do branco de zinco e branco de chumbo como pigmentos para a fase da pintura. Macedo
aconselha ainda um aparelho misto3, com a sobreposio de uma primeira camada, que consiste
numa tmpera de cola animal e branco finamente modo, e de uma segunda, base de leo de linho
que aglutina o mesmo branco.4 Arsenne reconhece algumas vantagens da tmpera mas d
preferncia s preparaes feitas com leo e branco de chumbo misturados de maneira a formar
uma pasta macia que cobre a tela com uma s aplicao (ARSENNE, 1833, 337).5
No entanto, ambos os autores referem a existncia de duas qualidades de branco de chumbo, sendo
a que possui um gro mais fino e homogneo o chamado branco de prata.6 Apenas Arsenne
apresenta pormenores sobre os diferentes tratamentos que permitem obter este pigmento mais fino
(ARSENNE, 1833, 225).
Em todas as pinturas analisadas esto presentes estas duas qualidades de branco de chumbo. De
uma forma geral a verso mais grosseira utilizada nas primeiras camadas de preparao, sendo a
mais refinada aplicada por ltimo.
No existe porm uma total correspondncia entre os dados fornecidos por estas duas fontes
bibliogrficas e a evidncia material das pinturas. Neste contexto, para tentar compreender esta
disparidade foram consultados os livros de despesa da Academia de Belas-Artes de Lisboa com vista
a estabelecer uma relao entre as aquisies e os materiais utilizados na poca.
Tal como demonstram as anlises, a natureza dos materiais encontrados na camada de preparao
das diversas telas no constante. Assim, para a aplicao direta sobre a tela temos como material
mais utilizado o cr (carbonato de clcio), sendo a alternativa misturas de branco de chumbo e de
sulfato de brio. No que respeita aquisio de cargas7 no encontramos referncias explcitas sobre
o sulfato de brio. J quanto ao carbonato de clcio foram identificados mais de vinte registos nos
referidos livros de despesa, entre 1862 e 1876, sob as designaes de cr e cr da Holanda mas
destinados s oficinas de estamparia.
As anlises camada de preparao do quadro Vista da Amora (1853) revelam uma mistura de
branco de chumbo e sulfato de brio, o que, segundo algumas fontes, poderia tratar-se do alvaiade
de Veneza.8 Este produto igualmente referenciado em 1847 nos livros de despesa da Academia
Nacional de Belas-Artes onde registada uma encomenda para as aulas de pintura.9
Maior constncia existe na aplicao da ltima camada, que aplicada antes da execuo da pintura,
constituda por uma fina e opaca camada de branco de chumbo (Fig. 3, camada 3).
3
O aparelho misto um termo utilizado para designar uma camada de preparao cujo ligante consiste numa
mistura de leo e cola.
4
A atribuio do tipo de branco no clara, apenas na edio de 1915 o autor refere a utilizao de gesso fino
para esta tmpera de cola animal que constitui a primeira camada de preparao, e alvaiade para o segundo
aparelho que feito base de leo.
5
No sculo XVII, o famoso tratado de Thodore de Mayerne j fazia consideraes sobre a escolha entre o
ligante base de leo e a tmpera de cola. Constatava-se que a progressiva opo pela verso oleosa se devia
natureza absorvente da cola e sua susceptibilidade degradao com a humidade.
6
A designao de branco de prata nem sempre teve igual significado. Pode caracterizar um pigmento que
contm prata na sua composio, mas tambm pode estar relacionado com um composto de carbonato de
chumbo (The Pigment Compendium, p. 343). Por outro lado, so tambm conhecidas inmeras receitas que
fazem aluso ao tratamento do composto de chumbo cuja moagem em gua e a sua decantao permitia obter
finas partculas deste pigmento (Witlox, 2012).
7
A definio de carga como elemento constituinte de uma tinta refere-se a materiais que, quando misturados
com os pigmentos, no alteram significativamente as propriedades ticas finais. As propriedades mecnicas, a
morfologia e a densidade so fatores inerentes que influenciam o rendimento das tintas e o seu
manuseamento. A sua frequente utilizao ainda justificada pelo baixo custo destes materiais.
8
The Pigment Compendium, pp. 91 e 384.
9
Livro de Receitas e Despesas, vol.III, 1844-49, ABAL, p. 111.
202
Na segunda metade do sculo XIX, foram identificadas mais de setenta encomendas referentes a
telas sem qualquer tipo de preparao, o que sugere que seria comum a aplicao da preparao das
telas no contexto das aulas de pintura10.
No caso especfico de Toms da Anunciao sabe-se que em setembro de 1852, para a execuo do
quadro Vista da Amora, foi encomendada tela sem ser feita referncia sua preparao prvia.11
de salientar que em janeiro desse mesmo ano havia sido requisitado alvaiade (branco de chumbo)
modo a leo para aparelhar trs quadros das aulas de pintura histrica.12
Por outro lado, foram identificadas apenas duas referncias sobre a aquisio de panos j
preparados nas dcadas de sessenta e setenta, o que faz persistir a dvida sobre a possvel utilizao
destes materiais pr-fabricados de algumas das pinturas de Anunciao.13 Como j foi referido em
cima, a preparao das telas efetuada num sistema de sobreposio de camadas.
A anlise visual das obras e a confirmao da identidade das tintas ao nvel molecular revela a
simplicidade da paleta adotada pelo pintor, um tanto restrita se considerarmos o fenmeno
internacional da industrializao de novos pigmentos.14 Assim, para obter a atmosfera de uma
paisagem tranquilizante o artista recorre com frequncia ao emprego dos ocres que possibilitam
subtis transies tonais entre o vermelho, o castanho e o amarelo. Neste contexto surge com alguma
timidez o recm descoberto amarelo de crmio por vezes misturado com os ocres mais claros ou em
conjunto com o azul da Prssia para formar alguns verdes da vegetao.
Como prtica comum neste tipo de pintura, no estranho o uso de verniz para produzir efeitos de
transparncia sob a forma de velatura. O seu emprego excessivo intensificou e harmonizou o
castanho das folhagens e alterou a superfcie da pintura, iludindo quanto correta interpretao dos
materiais utilizados.
Uma das questes que se levantam relaciona-se com o uso de betume cuja natureza viscosa permitia
obter velaturas castanhas de forma rpida e eficaz. Esta caracterstica poder ter sido responsvel
pela sua utilizao at princpios do sculo XX sem que, por outro lado, fossem ignorados os efeitos
nefastos pintura devido ao seu fraco poder de secagem.15
Contradies nas afirmaes de alguns autores so incentivo para uma cuidada anlise sobre a
possvel presena de betume nas obras de Anunciao. Se, para Jos-Augusto Frana, Anunciao
tinha uma paleta que fugia aos betumes e se arriscava a aplicaes de spia, segundo Armando de
Lucena o colorido andava confinado na escala dos tons castanhos, quentes, de um dourado aceso a
10
203
que no era estranho o malfadado betume da Judeia, a tinta artificiosa dos glacis (FRANA, 1966,
261; LUCENA, 1943, 55).
Na investigao em curso foi escolhida a copa da rvore que figura no centro da composio da
pintura Paisagem e Animais (1852) para recolher amostras da velatura e efetuar anlises dos
compostos a um nvel microscpico e molecular. A figura 4 representa os resultados das anlises,
uma feita sobre uma zona mais opaca e escura e outra sobre uma zona mais clara e translcida da
velatura castanha. O espectro d-nos informao sobre a presena simultnea de uma resina e de
um ocre amarelo nos dois pontos da pintura analisados (Fig. 4, indicaes a amarelo e vermelho,
respetivamente). Curiosamente, a zona clara resulta essencialmente da cor do xido de ferro ao
passo que a parte escura da velatura resulta de uma espessa camada de resina amarelecida.
Estes dados esto de acordo com o que Ramalho Ortigo havia escrito acerca dos pigmentos
utilizados no quadro Vista da Penha de Frana (1857) do ento professor da Academia. Em 1879 o
escritor, dirigindo-se a Miguel ngelo Lupi, jri do concurso de pintura da mesma Academia16,
utilizava a ironia para se referir s rvores pintadas por Anunciao como sendo cor de chocolate,
pintadas com terra de sena (ORTIGO, 1945, 25).
Os resultados at agora obtidos no confirmam a existncia de material betuminoso nas obras de
Anunciao. Contudo seria necessrio analisar mais pinturas para poder obter informaes mais
conclusivas, ainda que no possamos ignorar as referncias feitas a estes produtos nos catlogos de
fornecedores assim como nos livros de despesas da Academia.17
Quanto resina que era utilizada tudo indica que seria a mstique. Encontram-se em curso anlises
laboratoriais para confirmao deste dado mas a consulta dos livros de despesa da Academia conta
com vrias referncias de aquisio desta resina desde 1841 a 1881, muitas vezes surgindo sob a
designao de Verniz de Almcega.
A anlise detalhada das pinturas de Toms de Anunciao oferece um conjunto de dados que
possibilitam no apenas a avaliao das tcnicas e materiais utilizados pelo pintor como tambm o
seu enquadramento no contexto da arte nacional e estrangeira. A consulta de alguns manuais que
circulavam pelas nossas academias, como os j referidos de Arsenne e de Macedo, prova que havia
conhecimento do que se fazia noutros pases, apesar da ainda forte presena dos dogmas de um
ensino clssico arcaizante.
Embora escassa, e nem sempre clara, a informao fornecida pelos registos da Academia, quando
confrontada com os catlogos de fornecedores da poca, permite-nos desenvolver o conhecimento
sobre a oferta de produtos que condicionaram o ensino e a prtica da pintura na segunda metade do
sculo XIX.
Se por um lado os dados que encontramos na literatura nem sempre tm correspondncia com as
evidncias materiais das obras estudadas, s estas, nesses casos, podero permitir fazer o caminho
inverso, ajudando a construir a histria da pintura portuguesa.
16
Trata-se do concurso para obteno de bolsa de estudo no estrangeiro para estudar pintura de paisagem.
Concorreram, nesse ano, Ernesto Condeixa, Artur Loureiro e Columbano Bordalo Pinheiro.
17
A lista de produtos da Serzedello & C. contm duas qualidades de betume, o Betume Inglez e o Betume
Judaico. A significativa diferena de preo entre os dois produtos poder estar relacionada com a origem dos
materiais e com o processo de fabrico. Sabemos que a provenincia pode ser natural ou fruto da destilao do
carvo, ou ainda produto da refinao do petrleo.
Nos livros de contabilidade da Academia de Belas-Artes de Lisboa encontramos algumas referncias aquisio
de betume, ainda que seja necessria precauo ao interpretar a designao deste material, que muitas vezes
consiste numa massa de preenchimento e no numa tinta para pintura.
204
Fig. 1 esquerda: pintura a leo Paisagem e Animais (1852), 40,5 x 51,5 cm; direita: pintura a leo Vista da
Penha de Frana (1857), 68,3 x 105,5 cm. Coleo do MNAC-MC.
Fig. 2 esquerda: imagem com luz visvel de um pormenor da copa da rvore que se encontra em primeiro
plano na pintura Vista da Penha de Frana (1857); direita: radiografia do mesmo pormenor. A indicao a
tracejado branco assinala o limite de uma primeira fase da pintura que apenas visvel na radiografia.
5
4
3
2
1
0
Fig. 3 Amostra recolhida numa velatura castanha na pintura Vista da Penha de Frana (1857).
A micrografia mostra o corte transversal onde visvel a estratigrafia completa da pintura:
0 tela; 1, 2 e 3 camadas de preparao; 4 camada neutra intermdia; 5 pintura final.
205
206
1mm
1cm
A
1
Absorvncia (u.a.)
1
1800
1600
1400
1200
1000
800
-1
Fig. 4 esquerda: micrografia de um pormenor da copa da rvore da pintura Paisagem e Animais (1852) com
indicao da rea (A) onde foram recolhidas as amostras 1 e 2; em cima, direita: ampliao da rea (A) com
indicao dos dois pontos de anlise: 1 zona escura da velatura; 2 zona mais clara e translcida; em baixo,
direita: sobreposio de espectros de infravermelho correspondente s anlises 1 e 2 com indicao das
bandas principais de uma resina (a amarelo) e de um xido de ferro (a vermelho).
Agradecimentos
A equipa do Crossing Borders agradece ao Museu do Chiado, nomeadamente, na pessoa da curadora
Maria de Aires Silveira. Agradecemos ainda FCT-MCTES pelo financiamento do projeto Crossing
Borders: Histria, Materiais e Tcnicas de pintores portugueses 1850-1918 (Romantismo,
Naturalismo e Modernismo) (PTDC/EAT-EAT/113612/2009) e das bolsas de doutoramento de Diogo
Sanches (SFRH/BD/65690/2009) e de ngela Ferraz (SFRH/BD/70093/2010). Por fim, ao laboratrio
associado REQUIMTE atravs do PEst-C/EQB/LA0006/2011, unidade de investigao VICARTE
atravs do PEst-OE/EAT/UIO729/2011 e ao Instituto de Histria da Arte.
BIBLIOGRAFIA
207
208
Amadeo partiu para Paris em 1906 e regressou a Portugal em 1914 com o incio da 1. Grande
Guerra. Apesar da sua curta existncia, o pintor de Manhufe deixou uma obra mpar no contexto da
pintura portuguesa do incio do sculo XX. Considerado o mais importante pintor do modernismo1,
explorou diversas experincias artsticas2 ao longo do seu percurso.
La Lgende de Saint Julien lHospitalier3 (1912), baseada no conto homnimo de Gustave Flaubert,
revela-se uma obra singular4 na sua produo e o seu nico livro de artista (Fig. 1). Recriao em
chave modernista de um manuscrito iluminado, apresenta pormenores que nos remetem para as
obras dos scriptoria e oficinas medievais.
Em Amadeo, certamente, no se coloca a hiptese de um revivalismo ou de mimetismo. Todavia, na
La Lgende, o mundo medieval convocado, desde logo, com o conto centrado em So Julio
Hospitaleiro5 manifestando-se na forma como se estrutura o livro, na relao entre texto e imagem,
no papel dado s margens e, ainda, na funo simblica do bestirio e da herldica (Fig. 1).
A Fundao Calouste Gulbenkian editou em 2006 uma verso fac-similada de La Lgende de Saint
Julien lHospitalier, com o intuito de divulgar esta obra. O ensaio de Maria Filomena Molder que nela
se inclui fornece uma viso panormica da mesma, contextualizada no percurso do artista naqueles
anos de 1911-1912, despertando o olhar do leitor, flio a flio, para as suas diversas particularidades.
Destas reala-se o admirvel trabalho de copista-calgrafo de Amadeo, no qual reconhecemos o rigor
e o gosto pela harmonia de um monge medieval. Por outro lado, evidencia-se ainda o facto de o
realizar a partir da histria de Flaubert em lngua francesa, sem que se observem erros ou hesitaes,
revelando familiaridade com o texto e grande capacidade hermenutica6.
Em Janeiro de 2012, a equipa do Crossing Borders levou a cabo uma investigao sobre os materiais e
tcnicas utilizados pelo artista neste livro manuscrito. Esta investigao coincidiu com o centenrio
da La Lgende. Os resultados obtidos sero ponto de partida para uma discusso sobre a eventual
inteno do artista de criar pontes entre o seu livro e a iluminura medieval. Recorrendo ao
mapeamento da cor em toda a ilustrao, atravs de algoritmos matemticos, procurar-se-
compreender se a riqueza cromtica de La Lgende possui relaes semelhantes quelas que se
encontram nos estudos sobre iluminura medieval.
Durante a poca em que viveu em Paris (1906-1914), o jovem pintor ter certamente estado a par
dos diversos livres dartiste que iam surgindo. Maria Jorge Vale Pereira refere que estes
acompanharam as vanguardas, resultando da associao de escritores e artistas que colaboravam
entre si na produo dos mesmos (Pereira 2008). Guillaume Apollinaire e Andr Derain, que Amadeo
1
Jos-Augusto Frana refere que o termo modernismo muito nacional, aludindo primeira gerao de
artistas portugueses dos anos 10 e 20 do sculo XX, prolongados em 30 e adaptados ainda em 40 [cf. Frana, J.A., Histria da Arte em Portugal: O Modernismo, Lisboa: Editorial Presena, 2004].
2
Sou impressionista, cubista, futurista, abstracionista? De tudo um pouco [cf. Amadeo, citado em: Alfaro, C.,
Amadeo de Souza-Cardoso: Fotobiografia [Catlogo Raisonn]. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2008, p.
253].
3
Coleco Centro de Arte Moderna Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa.
4
A obra de Amadeo de Souza-Cardoso caracterizada, sobretudo, pela pintura sobre carto e sobre tela [cf.
Amadeo de Souza-Cardoso: Pintura [Catlogo Raisonn], Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2008].
5
Referido na Lenda Dourada de Jacques de Voragine, escrita c. 1255 [cf. Voragine, Jacques. La Lgende dore,
trad. Thodore de Wyzewa. Paris: Seuil, 1998, p. XVIII]. As catedrais de Chartres (1215-25) e de Ruo (1220-30)
apresentam painis em vitral ilustrando a vida deste santo. De salientar que foi a partir destes vitrais da
catedral de Ruo que Gustave Flaubert se inspirou na realizao do conto de So Julio. Tal como o prprio
refere no ltimo pargrafo do mesmo: Et voil lhistoire de Saint Julien l'Hospitalier, telle peu prs quon la
trouve, sur un vitrail dglise, dans mon pays [Eis a histria de So Julio Hospitaleiro, mais ou menos como
representada num vitral de igreja da minha cidade].
6
Cf. Molder, M.F., Ensaio in Amadeo de Souza-Cardoso, La Lgende de Saint Julien lHospitalier, Lisboa:
Fundao Calouste Gulbenkian, 2006, pp. 16-17.
209
bem conhecia, conceberam em 1909 um dos primeiros livros de artista intitulado L'Enchanteur
Pourrissant (Alfaro 2007, Rowel 2002). Por outro lado, o contacto com os artistas russos t-lo-
introduzido nas criaes de livros de artista das vanguardas russas. Em 1912, Natlia Goncharova
publicou em colaborao com escritores russos a obra intitulada Igra v adu [Um jogo no Inferno], um
dos primeiros livros de artista neste contexto (Pereira 2008, Rowel 2002). possvel que Amadeo de
Souza-Cardoso tenha tido conhecimento deste livro, cuja esttica, apesar de diferente, aparenta
algumas semelhanas no desenho. No existe, contudo, evidncia de que tal tenha acontecido. De
salientar que, ao contrrio do manuscrito de Amadeo, todos os livros atrs referidos so edies
impressas. Os livros de artista russos eram ento usados, sobretudo, como meio privilegiado de
divulgao da produo artstica emergente (Pereira 2008), cujo estilo parece estar mais prximo
daquele da La Lgende. Muitas vezes resultaram da associao de escritores e artistas que
recuperaram nos seus desenhos uma linguagem grfica primitiva, inspirada na iconografia russa
(Pereira 2008, Rowel 2002). Neles encontra-se um certo misticismo e revisitao ao passado j
encenado por William Blake, exemplo paradigmtico e prenunciador dos livros de artista (Pereira
2008), cuja influncia na obra de Amadeo ter de ser considerada em estudos futuros. Do imprio
russo provinha, tambm, a exuberncia dos espectculos dos Ballets Russes, de Diaghilev, que se
iniciam na capital francesa naquele perodo. A influncia dos trajes desenhados por Lon Baskt para
os Ballets so evidentes na ilustrao da La Lgende, em particular na representao de Julio como
bailarino, que recorda a graciosidade de Nijinsky (Molder 2006, Pritchard 2010).
1912 o ano da afirmao artstica para Amadeo. O sucesso adquirido pela participao no Salo dos
Independentes e pela publicao do lbum XX Dessins so determinantes. Com La Lgende marca-se
um ponto de chegada artstica para Amadeo, que com esta obra afirma a sua identidade grfica. Para
Amadeo de Souza-Cardoso as viagens, ento, so o grande livro do artista [...]. Ora, em todos os
livros preciso virar de folha, esse virar de folha equivale aqui a uma viagem7. precisamente
durante um perodo de frias na Bretanha, no Vero de 1912, que o artista inicia a ilustrao do
conto de So Julio. Os ambientes bretes que Amadeo visitara inspiraram a sua obra. Nela
observam-se elementos que remetem, em especial, para a arquitectura e para elementos
decorativos dos castelos que visitou de Pont lAbb e Keriolt, bem como para as suas tapearias
alusivas a episdios de caa (Alfaro 2007).
A escolha do pergaminho8 para revestimento das pastas do livro estabelece desde logo uma ligao
Idade Mdia. O interior do manuscrito constitudo por 143 flios, sendo dividido em trs partes: a)
frontispcio e pginas iniciais com monogramas; b) sinopse por imagens, onde se apresentam as
personagens e a sequncia da histria de So Julio Hospitaleiro; e c) texto e ilustrao da obra
propriamente dita. A diviso dos captulos em numerao romana e a respectiva decorao, bem
como as capitulares mais simples, mas requintadas, e os fins-de-linha presentes em alguns flios
remetem-nos para as realizaes medievais, nomeadamente, dos Livros de Horas (Figs. 1 e 2).
notvel, igualmente, a relao que se estabelece entre texto e imagem. O texto emoldurado
pelas margens povoadas de imagens e ornamentos maneira da iluminura gtica. A mancha de texto
assume forma e como tal tambm imagem, sendo este aspecto explorado tanto no cdice
medieval como na modernidade de Amadeo (Fig. 3). Trata-se, portanto, de um processo milenar que
organiza o texto em imagens, como acontece de forma extrema na poesia visual contempornea
(Fig. 3). O uso de animais remete-nos para uma tradio mais antiga, romnica, em que o bestirio
utilizado como ornamento e smbolo. A figura do falco est associada a Julio9, caador feroz e
corajoso. Nos bestirios medievais smbolo de nobreza e, at mesmo, do nobre convertido10. Uma
7
Cf. Amadeo, citado em: Amadeo de Souza-Cardoso: Dilogo de Vanguardas. Lisboa: Fundao Calouste
Gulbenkian, 2006, p. 23.
8
Sobre este encontram-se pintados pequenos brases, alguns dos quais em destacamento.
9
O falco um dos atributos de So Julio Hospitaleiro.
10
Cf. Gonalves, M.I.R. Livro das Aves, Edies Colibri: Lisboa, 1999.
210
outra figura importante o veado, que pressagia o parricdio e que nos bestirios medievais
apontado como smbolo de benevolncia e de perseguio por parte do maligno (Clark 2006). Outros
elementos so as cabeas de animal, que nos cdices medievais prefiguram em determinados
contextos um sentido demonaco.
Ao folhearmos o livro parece-nos rever o prprio Amadeo na imagem do cavaleiro e do caador num
imaginrio aristocrtico e medievalista impregnado do sentido do maravilhoso e do exotismo. Vrios
flios so decorados com brases que se evidenciam pelo seu forte contraste cromtico, alguns dos
quais alusivos herldica bret. Noutros, a decorao resulta da desconstruo desses mesmos
brases, nos quais possvel observar, isoladamente: flores-de-lis, instrumentos de guerra, insectos,
vrios animais, castelos, entre outros elementos (Molder 2006).
Tal como no cdice medieval, a cor factor esttico sendo tambm usada para melhor destacar as
imagens do texto. A forma como a cor construda remete mais para uma iluminura romnica do
que gtica, sendo aplicada pura, em fortes contrastes como o azul-vermelho, verde-vermelho ou o
preto-dourado (Figs. 1 e 3). Ainda que sem a opacidade da tmpera medieval, tal como na iluminura
romnica as cores so muito luminosas e os materiais dos mais duradouros.
Em relao paleta molecular utilizada na La Lgende 11, encontrou-se correspondncia com a
paleta de Amadeo, baseada nos resultados do estudo anterior12, excepo dos azuis e das cores
metlicas. O azul de cobalto, o azul de Amadeo na pintura a leo, encontra um seu equivalente
cromtico no azul ultramarino na aguarela. Entre os pigmentos identificados nas ilustraes
encontram-se o amarelo de cdmio, o ocre amarelo, o azul da Prssia, o azul ultramarino, o viridian,
o verde esmeralda, o violeta de cobalto, o vermelho, o laranja de cdmio, a laca de cochinilha e,
finalmente, o negro de carvo, presente na tinta-da-china13. Estes colorantes, de tons muito puros,
so aplicados sem mistura, o que permite a construo da luminosidade j referida. As tintas base
de ouro e de prata so aplicadas profusamente e, em particular, na sinopse. No caso da prata
observa-se alguma degradao, com consequente enegrecimento extensivo em especial em reas
pintadas prximo dos bordos dos flios (Fig. 4).
Na iluminura medieval, o ouro e a prata so smbolo de luz e riqueza, aplicam-se em motivos que se
desejam destacar pela sua majestade como as aurolas dos santos e ainda, de uma forma geral, em
mltiplos elementos decorativos na construo de uma pgina de onde jorra luz (Fig. 4).
Como tintas de escrita, observa-se ainda a presena de azul de cobalto, verde de cobalto e de uma
tinta vermelha sinttica, pertencente famlia -naphtol; esta ltima talvez um pouco
surpreendentemente, uma vez que este tipo de corantes no dos mais estveis.
Estudos recentes sobre o significado da cor na iluminura medieval portuguesa evidenciaram a
relevncia de um mapeamento sistemtico da cor (Melo et al. 2014), ou seja, a importncia de
determinar qual a proporo ocupada, em rea, por cada uma das cores. No caso da iluminura
medieval, sempre que o texto integrava a imagem, este tambm foi contabilizado como cor. Pelo
contrrio, na La Lgende procedeu-se ao mapeamento das imagens e do texto (Fig. 5).
11
211
Agradecimentos
Os autores gostariam de expressar a sua gratido ao Centro de Arte Moderna-Fundao Calouste
Gulbenkian, na pessoa da sua directora Dr. Isabel Carlos, bem como Dr. Ana Vasconcelos, pela
disponibilidade e gentileza com que foram recebidos, por ocasio do estudo da obra La Lgende de
Saint Julien lHospitalier de Amadeo de Souza-Cardoso. Agradecem ao fotgrafo Paulo Costa do
Arquivo Fotogrfico do CAM por ter cedido fotografias da obra e Dr. Vnia Solange Muralha
(VICARTE) pela realizao das anlises por micro-espectroscopia Raman. Dirigem tambm o seu
agradecimento FCT-MEC pelo financiamento do projecto Crossing Borders: Histria, Materiais e
Tcnicas de pintores portugueses 1850-1918 (Romantismo, Naturalismo e Modernismo) (PTDC/EATEAT/113612/2009) e das bolsas de doutoramento de Ana Margarida Silva (SFRH/BD/64137/2009) e
de Cristina Montagner (SFRH/BD/66488/2009). Por fim, ao laboratrio associado REQUIMTE-LAQV,
unidade de investigao VICARTE e ao Instituto de Histria da Arte.
212
Fig. 1 La Lgende de Saint Julien lHospitalier (1912, fl. 51, fl. 80 e fl. 24), onde visvel a relao entre texto e
imagem, as capitulares decoradas e os fins-de-linha. No ltimo flio, reala-se o jogo cromtico entre preto e
dourado. Coleco CAM-FCG
Fig. 2 Da esquerda para a direita: Numerao de caderno em cdice romnico portugus Legendrio (sculo
XII [anos 80], Alc. 421, fl. 33v). Notas marginais inseridas em figuras hbridas (incios do sculo XIII, Isidoro de
Sevilha, Etimologias, Alc. 446, fl. 128v). Reclame decorado em Livro de Horas italiano (1495-1500, Cofre 27, fl.
35v). Os manuscritos alcobacenses integram a coleco BNP e o manuscrito italiano, a coleco PNM.
213
Fig. 3 O texto toma forma e transforma-se em imagem. Exemplos de: Livro das Aves do Mosteiro de Santa
Cruz (sculo XII, fl. 94v), coleco BPMP; La Lgende de Saint Julien lHospitalier (1912, fl. 84), coleco CAMFCG; e poesia visual de Jorge Castro (21 de Maro de 2007) publicao de imagem gentilmente autorizada
pelo poeta.
Fig. 4 Da esquerda para a direita: Anunciao de um Livro de Horas (1400-1420; Cofre n. 22, fl. 22), coleco
PNM; Degradao da prata: La Lgende de Saint Julien lHospitalier (1912, fl. 105), coleco CAM-FCG, com
escurecimento, particularmente nos brases do topo; Cortejo fnebre num outro Livro de Horas (1400-1420,
Cofre n. 24, fl. 116), coleco PNM, onde se observa um escurecimento semelhante no cu.
214
Fig. 5 Resultados do mapeamento da cor de La Lgende de Saint Julien lHospitalier. A tinta preta, no
includa nestes grficos, ocupa uma rea de 47%.
215
BIBLIOGRAFIA
216
217
trouxe ao nosso panorama artstico1. Amplo e desafogado este ateli, decorado com uma
sobriedade elegante, articulava inteligentemente os espaos de modo a acumular as funes de local
de trabalho do artista, escola de pintura e espao de exposio (Fig. 1).
A amplitude de espao era uma caracterstica que se exigia a um bom ateli. Embora Columbano
tivesse afirmado que havendo gosto pela profisso at se podia pintar num vo de escada2, a
verdade que tanto ele como a generalidade dos seus companheiros naturalistas ocupavam atelis
suficientemente espaosos para permitir executar pinturas de grandes dimenses e posicionar o
modelo de modo a poder observ-lo sem deformaes perspticas.
As inovaes passam tambm pela orientao dos espaos. Tradicionalmente o ateli voltava-se para
norte, onde a luz menos sujeita a alteraes. Com novos princpios quanto luz e cor, os
naturalistas escolhem outras orientaes. Veja-se o caso do ateli Casulo, que Jos Malhoa construiu
em 1895, em Figueir dos Vinhos, voltado para sul. A iluminao, fundamental para o trabalho do
pintor, assume agora particular importncia. No Casulo a luz natural entrava por uma grande
claraboia e amplas portadas laterais, modelo comum generalidade dos atelis que se abrem cada
vez mais para o exterior, sendo muitas vezes uma extenso do jardim.
O conforto trmico requisito fundamental no ateli do pintor. Porm, as poucas pistas que temos
sobre o assunto indicam que este dificilmente era conseguido. Ramalho Ortigo descreve-nos um
ateli de Silva Porto com temperatura de forno3. Mas se o calor um problema, o contrrio
tambm verdade. So muitos os atelis que apresentam salamandras ou braseiras. Encontramo-las
nos atelis de Columbano, Malhoa, Antnio Ramalho, Carlos Reis, entre outros, para aquecer o
modelo nu ou o pintor e, perigosamente, colocadas junto s telas e demais materiais de pintura
(Figs. 2 e 3).
s grandes amplitudes trmicas juntam-se os problemas de humidade. E como tal, embora o nosso
clima temperado seja favorvel aos longos tempos de secagem da pintura a leo, as condies
ambientais dos atelis no permitiriam evitar o uso de secantes4.
Os atelis dos artistas eram dotados de equipamentos de acordo com as suas necessidades, as suas
capacidades econmicas e o seu gosto pessoal. O mobilirio essencial est, de uma forma geral, em
todos eles. So os armrios e cmodas para guardar utenslios e desenhos, uma mesa ou estirador
para desenhar, um biombo ou uma cortina mvel para o modelo se trocar e bancos, cadeiras ou
poltronas para o pintor e os convidados se sentarem.
Mas o centro das atenes o cavalete que suporta a pintura durante a sua execuo. Nos registos
visuais observados encontramos cavaletes de vrios tipos, desde os comuns, mais simples, utilizados
para suportar estudos ou pinturas de pequenas dimenses, at aos robustos cavaletes mecnicos,
que vemos nos atelis de Antnio Ramalho, Silva Porto, Marques de Oliveira ou Columbano (Figs. 36).
volta do cavalete habitual encontrarmos pincis, em recipientes ou espalhados, em nmero
considervel e de diferentes dimenses. A cada um cabia uma funo especfica. Os curtos e duros
serviam para esboar, os de plo mais comprido para terminar o esboo, as broxas usavam-se para
aplicar as primeiras camadas de tinta e os pincis de plo de marta ou de petit-gris (uma espcie de
esquilo) para os acabamentos e aplicao final do glacis5, uma velatura de cor transparente aplicada
para fazer vibrar as cores. Os pincis de plo de texugo, de lontra ou de orelha de lobo serviam, no
final, para alisar a pintura, eliminando a textura das pinceladas. Por isso mesmo, so menos
1
218
utilizados nos atelis dos pintores naturalistas que, ao contrrio dos seus antecessores romnticos,
assumem a materialidade da pintura em pinceladas gordas e texturadas.
A paleta um utenslio que aparece em quase todas as representaes dos atelis. De forma oval ou
quadrilonga, de variadas dimenses, nela o pintor naturalista colocava geralmente uma escala de
doze a quinze cores, do claro para o escuro, da direita para a esquerda6. So cores que provm dos
tubos que, tal como as caixas de tintas, tm agora lugar de relevo junto ao cavalete.
As caixas que vemos nas imagens dos atelis de Silva Porto e de Marques de Oliveira so pequenas
caixas portteis7 (Figs. 4 e 5) semelhantes aos modelos apresentados nos catlogos da companhia
Winsor & Newton8. Estas podiam conter entre 12 e 24 tubos de tintas e outros materiais como
pincis de plo de marta e de porco, lpis de carvo, faca de tintas, contentores metlicos para leo
e terebintina e uma paleta de mogno. Embora fossem comercializadas caixas de tintas especficas
para atelis, de maiores dimenses e podendo conter at 72 tubos de tintas, frequente
encontrarmos nos atelis este tipo de caixas, mais pequenas, concebidas para a pintura ao ar livre.
A ideia da aproximao realidade, subjacente ao naturalismo, pressupunha a utilizao de modelos
fiis por parte dos pintores. Estimulado por essa procura de realismo, o apogeu do modelo vivo surge
a partir de 1870 e continua ao longo da primeira metade do sculo XX9. Podemos definir trs tipos de
modelos: os clientes, que pagam ao artista para terem o seu retrato, os amadores, famlia ou amigos
que generosamente se dispem a posar, e os modelos profissionais a quem o pintor paga.
Alm dos modelos vivos, os artistas dispunham de um nmero limitado de opes. Na grande
generalidade das imagens analisadas encontramos modelos de gesso ou pequenos manequins de
madeira articulados. Estes, porm, oferecem evidentes limitaes.
Numa imagem do ateli de Columbano encontramos um manequim em tamanho real (Fig. 6). Muito
utilizado no sculo XIX, trata-se de uma figura articulada usada pela razo bvia de poder reter a
pose por tempo infinito. No caso de Columbano, que no era afeito ao uso de modelos
profissionais10, esta era a soluo ideal uma vez que o manequim estava sempre disponvel e evitava
o desconforto de contratar e conviver com o modelo vivo. Porm, na conceo dos manequins
nunca esteve a inteno de substituir totalmente os modelos de carne e osso. Os manuais de pintura
recomendavam um primeiro esboo com o modelo vivo e s depois o uso do manequim para o
estudo dos panejamentos. Encarado como ferramenta complementar foi, desde logo, um utenslio
presente na formao do artista. Nos livros de contabilidade da Academia de Belas-Artes de Lisboa
encontramos desde 183911 registos de manequins de madeira, em tamanho real e, em 1875, a
indicao da compra em Paris de um manequim masculino,12 provavelmente muito parecido com o
que vemos no ateli de Columbano. Estes, mais caros, eram compostos por um esqueleto de bronze
coberto por cortia, crinas de cavalo, l, um revestimento externo de seda e com cabea de madeira
esculpida ou de papier-mch13. Estes ltimos eram vendidos pela empresa inglesa Roberson (18191985) e estavam apenas disponveis em modelos masculinos e femininos, embora a francesa
219
Lechertier Barbe (1848-1970) anunciasse tambm, a partir de 1882, tamanhos de jovem rapaz,
rapariga e crianas14.
No decurso de uma cada vez maior reivindicao da liberdade individual do artista, ocorrido ao longo
do sculo XIX, o ateli assume-se como lugar essencial nessa definio de estatuto e de identidade
prpria15. A evoluo dos recursos materiais e o gosto pela pintura ao ar livre, e sobre o motivo
tiveram algumas consequncias que contriburam para a alterao definitiva dos anteriores modelos
de ateli. As cores j preparadas em tubos e as caixas de tintas libertaram e simplificaram os espaos.
O papel do espao fixo modifica-se. Este passa a servir tambm como lugar de ensino, de reunio e
de exposio. A arquitetura adaptou-se ao novo iderio naturalista de luz e cor.
So estes os sinais de modernidade identificados na centena de imagens analisadas. E se os espaos
se alteram, tambm os equipamentos e materiais se atualizam. So agora comprados em
fornecedores comerciais, e frequentemente fornecidos por grandes casas estrangeiras como a
inglesa Winsor & Newton ou a francesa Lefranc. Os pintores naturalistas portugueses souberam,
assim, participar neste momento de grandes inovaes tcnicas e materiais que foi o final do sculo
XIX. O isolamento dos seus atelis aparente. L chegam as novidades de Londres, de Paris... do
mundo.
Agradecimentos
Agradecemos FCT-MCTES pelo financiamento do projecto Crossing Borders: Histria, Materiais e
Tcnicas de pintores portugueses 1850-1918 (Romantismo, Naturalismo e Modernismo) (PTDC/EATEAT/113612/2009) e da bolsa de doutoramento de ngela Ferraz (SFRH/BD/70093/2010).
14
15
Idem.
Martin-Fugier, La Vie dartiste au XIXe sicle, 88.
220
Fig. 1 Aspectos do ateli de Artur Loureiro, no Palcio de Cristal no Porto, c. 1906 e 1909.
Retirado de Carneiro, O Pintor Artur Loureiro; Osrio, Arthur Loureiro: O Homem e o Artista.
221
222
223
BIBLIOGRAFIA
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Colourmen in Nineteenth Century, in Looking Trough Paintings: The Study of Painting Techniques
and Materials in Support of Art Historical Research. Londres: De Prom e Archetype Publications,
1998.
224
Introduo
O Polptico de So Vicente, do Museu Nacional de Arte Antiga, atribudo a Nuno Gonalves, foi
objecto de estudo laboratorial publicado em 1974, segundo o qual os pigmentos azuis, a avaliar pelos
resultados obtidos para o nico painel analisado (o Painel dos Cavaleiros), limitavam-se utilizao
de azurite (ALVES, 1974). Esta tambm foi a concluso obtida a respeito das duas outras pinturas
portuguesas de Quatrocentos analisadas na mesma ocasio.
A azurite provavelmente o pigmento azul mais frequente na pintura europeia do sculo XV (KHN,
1973) e o seu uso exclusivo e, portanto, o no-uso de azul ultramarino est de acordo com a
informao um pouco mais tardia de que o azul ultramarino no era usado em Portugal devido ao
seu elevado custo (CRUZ, 2006). Porm, essa situao no parece coerente com a qualidade e a
importncia do Polptico de So Vicente. Com efeito, o azul ultramarino, preparado a partir de uma
pedra semipreciosa (lpis-lazli) proveniente do actual Afeganisto, tinha um preo comparvel ao
do ouro, era o mais estimado dos pigmentos e o seu emprego em pintura, pelo prestgio que
conferia, era indispensvel nas obras de maior relevncia e indissocivel destas (BALL, 2001).
O estudo laboratorial que est a ser realizado sobre as pinturas de Nuno Gonalves, no apenas as
que constituem o Polptico de So Vicente, mas tambm as que integram a srie dos Quatro Santos e
as que restam dos Martrios de So Vicente, mostra, no entanto, que a situao no essa e que
Nuno Gonalves, alm da azurite, efectivamente utilizou com abundncia o azul ultramarino. Onde e
como usou os dois pigmentos azuis no Polptico de So Vicente um aspecto que aqui se pretende
apresentar. Outro o duplo arrependimento que ocorreu durante a pintura da figura de So Vicente
que se repete nos dois painis centrais do polptico, no qual esto envolvidos os pigmentos azuis.
Trata-se de um dado relevante atendendo importncia que essa figura tem na obra e, por outro
lado, ao significado simblico que as cores podem ter.
225
Mtodos de anlise
Embora no estudo das obras de Nuno Gonalves esteja a ser usado um grande e diversificado
conjunto de mtodos analticos, para o que aqui se apresenta contriburam especialmente a
microscopia ptica e a microscopia electrnica de varrimento acoplada a espectrometria de raios X
por disperso de energia (SEM-EDS). Para o efeito foram usadas amostras microscpicas recolhidas
das pinturas e montadas em resina de modo a exporem a sua seco transversal (corte
estratigrfico). Estas amostras foram observadas num microscpio ptico Leitz Wetzlar, com
mquina fotogrfica Leica DC500, usando ampliao de 110 e de 220. Aps deposio de filme de
carbono, as amostras foram observadas num microscpio electrnico de varrimento Hitachi 3700N
acoplado a um espectrmetro de raios X dispersivo de energia Bruker Contact 200 usando uma
diferena de potencial mxima de 20 kV.
226
De acordo com as anlises elementares, foram usadas duas qualidades de azul ultramarino. O de
melhor qualidade constitudo essencialmente por partculas de cor azul e a razo atmica entre as
concentraes de silcio e alumnio aproximadamente de 1:1, tal como se verifica na lazurite o
principal mineral constituinte do azul ultramarino, responsvel pela sua cor azul (PLESTERS, 1993). No
azul ultramarino de menor qualidade observam-se partculas com cor menos saturada e maior
concentrao de silcio, devido presena de silicatos que no contribuem para a cor.
Tambm no caso da azurite parece haver diferentes qualidades que, pelo menos, se distinguem pela
granulometria e, consequentemente, pela cor j que no caso deste pigmento os dois parmetros
esto profundamente relacionados (GETTENS & FITZHUGH, 1993). Por exemplo, no fundo por trs das
personagens do ltimo plano foi usada azurite excepcionalmente grossa e heterognea e com
intensa cor azul, enquanto no estrato de azurite que em vrios motivos surge sob um estrato de azul
ultramarino a azurite muito mais fina e tem cor menos saturada. No se sabe, no entanto, se o uso
de azurite de menor qualidade e menor granulometria em estratos que no esto superfcie mais
outra manifestao de uma optimizao de custos ou se teve como objectivo proporcionar uma
superfcie menos irregular para a aplicao do estrato de azul ultramarino sobrejacente.
227
Tambm o barrete de So Vicente, agora de cor vermelha, em qualquer um dos dois painis
comeou por ter cor diferente, pois, imediatamente por baixo dos dois estratos superficiais
semelhantes aos dois estratos vermelhos das faixas das dalmticas, observa-se um estrato vermelho
translcido constitudo essencialmente por um corante e, sob este, um estrato base de azurite.
Considerando que os estratos de corantes eram tipicamente usados como estratos finais atravs dos
quais era realizada a modelao dos motivos e a estes davam a sensao de profundidade, o estrato
de azurite e o estrato do corante vermelho devem formar um conjunto indissocivel usado com o
objectivo de originar uma determinada cor. Assim, numa primeira verso o barrete de So Vicente
tinha tom violeta, ainda que diferente dos outros tons violetas que presentemente se observam no
polptico, j que estes, como se referiu, foram obtidos de outro modo.
Estes arrependimentos em que esto envolvidos os azuis e a figura de So Vicente, alm de darem
conta da execuo em simultneo dos dois painis centrais do polptico, podero ter algumas
consequncias ao nvel da interpretao desta obra cuja averiguao e discusso, no entanto,
deixamos para os historiadores da arte.
Agradecimentos
Agradece-se FCT pelo financiamento atravs da bolsa de doutoramento com a referncia
SFRH/BD/37215/2007 e do projecto ON-FINARTS PTDC/EAT-HAT/115692/2009; e Direo-Geral do
Patrimnio Cultural / Museu Nacional de Arte Antiga
228
Fig. 1 Estratigrafia de amostra da manga azul da figura ajoelhada no primeiro plano do Painel dos Cavaleiros,
onde se observa um estrato de azul ultramarino sobre um estrato de azurite (microscopia ptica).
Fig. 2 Estratigrafia de amostra recolhida no fundo, de cor azul, entre as cabeas das duas figuras no canto
superior esquerdo do Painel dos Cavaleiros. Na imagem de microscopia ptica ( direita) observam-se vrios
estratos de cor azul, mas a microscopia electrnica de varrimento ( esquerda), especialmente atravs da
distribuio de vrios elementos (nomeadamente, o cobre, representado a azul), mostra que so constitudos
por azurite.
229
Fig. 3 Estratigrafia de amostra recolhida nas vestes de cor violeta da figura feminina ajoelhada no Painel do
Infante, onde se observa um estrato com azul ultramarino sobre um estrato com azurite, ambos misturados
com um corante vermelho (microscopia ptica).
Fig. 4 Estratigrafia de amostra recolhida na faixa horizontal de cor lisa da dalmtica de So Vicente do Painel
do Arcebispo que d conta do arrependimento descrito no texto: a) microscopia ptica; b) microscopia
electrnica de varrimento (distribuio de sdio, alumnio, silcio, cobre e mercrio).
230
BIBLIOGRAFIA
231
232
Blanche (1861-1942),8 e de ter tido um contacto pessoal diminuto com Sargent,9 preferiu frequentar
os portugueses a residir ou em visita a Paris,10 refugiando-se no seu atelier, onde a sua irm
dezassete anos mais velha foi a sua companhia e modelo de eleio,11 evocando na sua pintura
atmosferas ntimas e familiares, de interiores lisboetas.
Basta atentarmos nos antecedentes do quadro Soire chez lui feito de propsito para ser exposto
no Salon parisiense (da a sua grande escala para tema to ntimo, como j foi vrias vezes dito)12,
para se compreender a sua temtica lisboeta. Varela Aldemira, discpulo de Columbano, informa-nos
da existncia de um desenho, de assunto semelhante, intitulado Ensaio do Quarteto do Rigoletto, de
1877, que est na gnese de Soire chez lui,13 mas tambm O Sarau, quadro de 1880, se debrua
sobre estas prticas de sociabilidade da pequena burguesia oitocentistas, bem lisboeta: pequenas
reunies em casa, com familiares e amigos ntimos, para fazer msica. Paris interessa-lhe menos
que a recordao de Lisboa, da famlia, do crculo ntimo de amigos.
No podemos deixar de referir o contraste avassalador que ento existia entre a Paris que
Columbano conheceu, j totalmente haussmanizada, em plena III Repblica, cidade cosmopolita por
excelncia, capital do consumo e do espectculo, e a Lisboa de 1881, cidade que ainda no possua
uma nica avenida, visto que o esperado boulevard s se inauguraria em 1885, j depois do regresso
de Columbano. Era ainda a Lisboa do Passeio Pblico rodeado de grades, terminando na Praa da
Alegria de Baixo, onde comeavam as hortas saloias e domingueiras. A principal via de acesso ao
centro era o velho eixo de Santa Marta, So Jos e Portas de Santo Anto.
Quo diferente poderia ter sido esta experincia urbana daquela que viria a ter entre o Jardim do
Luxemburgo e Montparnasse. A obra produzida em Paris, se exceptuarmos os retratos de Mariano
Pina e os quadros que pintou em Fontainebleau onde foi acompanhar Artur Loureiro, foram
interiores e atmosferas ntimas, que lembravam a vivncia lisboeta do pintor (Soire chez lui, os
desenhos e estudos preparatrios, A Luva Cinzenta).
2. O interior burgus
Foi o interior burgus, e no o espao exterior da cidade, aquele para onde se voltou a ateno de
Columbano. As suas pinturas esto repletas de objectos que caracterizam o interior burgus: os
pianos verticais que proliferavam em Lisboa, tal como por todas as cidades e lares burgueses da
Europa (O Sarau, 1880; Estudo para Soire chez lui, 1882; Soire chez lui, 1882; o piano que se
subentende em Convite Valsa, 1880; Trecho Difcil, 1885). Columbano no ficou imune abundante
produo oriunda de oficinas, fbricas e comrcio de loias que fizeram proliferar os cache-pots, os
vide-poches em barbotine nos interiores burgueses. importante no esquecer aqui a proximidade
de Rafael Bordalo Pinheiro, e da sua produo cermica. Desde 1880 que a pintura de Columbano se
povoa destes objectos: o jarro azul com flores e o prato na parede do salo onde pousa Ramalho
8
V. Jos-Augusto Frana, A Arte em Portugal no Sculo XIX, II, Lisboa: Bertrand, 1990. Diogo de Macedo diz-nos
que Columbano conheceu tambm o pintor holands Willem de Zwart (1862-1931). V. Diogo de Macedo, 1952,
op. cit., p. 37.
9
V. Pedro Lapa, op. cit., p. 29.
10
V. Diogo de Macedo, 1952, op. cit., p. 37.
11
Uma pobre mulher em viuvez virginal ser o mais constante de todos [os fantasmas da vida nacional], anjo
tutelar e simblico da obra do pintor, diz Jos-Augusto Frana, in Malhoa e Columbano, Lisboa: Bertrand,
1987, p. 40.
12
V. Diogo de Macedo, 1952, op. cit. V. Jos-Augusto Frana, 1990, op. cit. V. Pedro Lapa, op. cit., p. 31.
13
V. Diogo de Macedo, Columbano: Concerto de Amadores, Lisboa: MNAC, 1945. Esto tambm na gnese de
Soire chez lui, um conhecido desenho preparatrio e um estudo pintado em grandes manchas cromticas,
representando um grupo restrito em torno de um piano, alm do quadro j referido, A Luva Cinzenta. V. Pedro
Lapa, op. cit., p. 31.
233
Ortigo (1880), o grande vaso negro e dourado em Encantadora Prima (1880), o grande jarro azul e
o vaso creme em O Sarau (1880), o vaso cinza em barbotine com flores cermicas coladas no Retrato
de Maria Augusta (1881), vasos e taas sobre msulas e consolas (Encantadora Prima, 1880; O Sarau,
1880; Retrato de D. Jos Pessanha, 1885), o cache-pot colorido de O Convite Valsa (1880), o grande
cache-pot de cobre em Soire chez lui (1882), os pratos que poderiam ser de Rafael, no Retrato de
Joaquim Loureno Lopes (1883) e na magnfica e inquietante pintura que o Retrato de D. Jos
Pessanha (1885). A importncia cada vez maior do espelho, numa poca em que o narcisismo se
associa ao incremento do consumo. Vejam-se os dois espelhos da sala da Encantadora Prima, e no
Retrato de D. Jos Pessanha, como em Vel zquez (1885). A presena do relgio de pndulo,
marcando um tempo que passou a estar associado ao dinheiro, apesar de mais lentamente em
Portugal (O Sarau, 1880). Nesta pintura, os objectos tm uma importncia tal que se sobrepem s
personagens, organizando-as por grupos: o grupo do reposteiro, o grupo da msula com taa, o grupo
do jarro azul, o grupo do vaso creme e o grupo do pndulo (Fig. 1).
A importncia da revoluo oitocentista dos txteis, gerando a moda ou o permanente fora de moda,
uma constante na obra de Columbano, de onde se destacam A Luva Cinzenta e o vestido de Maria
Augusta em Soire chez lui, j referidos, bem como o imponente sobretudo de Mariano Pina no seu
retrato de 1883. As bengalas, os culos, as luvas, as sombrinhas, os leques, os chapus so adereos
que persistem na obra de Columbano, lembrando-nos a classe social do universo representado. O
txtil oitocentista marca a sua presena tambm nos interiores recheados de tapetes (Encantadora
Prima, 1880; O Sarau, 1880; Retrato de Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, 1884), almofadas e
otomanas (Encantadora Prima, 1880; Convite Valsa, 1880; O Sarau, 1880; Soire chez lui, 1882), e
reposteiros (O Sarau, 1880).
A fantasmagoria de objectos que formam o interior burgus assume uma importncia tal na obra de
Columbano, que em certas telas se sobrepe em importncia s prprias figuras retratadas. o caso
de Soire chez lui, onde fora e luz tm os tecidos, como notou J.-A. Frana. O que vemos so as luvas
e o peitilho do cantor, e sobremaneira o magnfico vestido de Maria Augusta. Alm disso, repara-se
logo no cache-pot de cobre, e em menor grau numa otomana, nas partituras no cho, no piano, e
numa cadeira apenas percebida no escuro da sala.
Walter Benjamin j nos havia sugerido que o interior oitocentista era um estmulo intoxicao e ao
sonho. Para Benjamin, viver nestes interiores era como tecer um invlucro em torno de si prprio,
como viver dentro de uma teia de aranha, em cujo trabalho rduo se iam pendurando ao acaso os
acontecimentos mundiais, que a ficariam suspensos quais corpos de insectos ressequidos. uma
caverna da qual no se deseja sair14. Tudo isto nos faz pensar em Columbano, nos seus gostos,
preferncias e atitudes, no seu precoce abandono da pintura de ar livre.
Benjamin compara a existncia no espao residencial oitocentista com a vida no interior de uma
concha. Uma concha em cujo interior se encontra estampada a imagem do seu ocupante. Residir
fabricar a sua prpria concha.15 Ter sido nessa concha, nesse casulo ou ventre materno que
Columbano preferiu instalar-se, recusando tudo o resto, todo o mundo exterior, de forma radical.
3. Os fundos evanescentes
Podemos observar, desde as pinturas de interiores que Columbano realizou em 1880, uma tendncia
para tratar de forma difusa os fundos dos seus quadros, cho e paredes, eliminando o sentido da
profundidade. Tambm os objectos tendem a ser tratados em mancha, num certo
14
V. Walter Benjamin, The Arcades Project [convolute I2,6], Cambridge, MA: The Belknap Press of Harvard
University Press, 1999, p. 216.
15
V. Walter Benjamin, 1999, op. cit., p. 221.
234
esfarrapamento das suas formas, como reparou Jos-Augusto Frana.16 Curiosamente, esta
tendncia para tratar fundos e objectos de forma difusa, patentes j no Convite Valsa e no Sarau,
tende a perder intensidade em Paris, onde h um esforo de grande conteno, de seriedade,
sobretudo no tratamento dos fundos das pinturas que a produz. Comeando por escurec-los, os
fundos destes anos tendem a aproximar-se dos fundos de Manet dos anos 1860 e tambm dos
fundos de Sargent sem nunca o conseguir totalmente. H sempre uma vaga tendncia para a
indefinio. Aps Paris, h como que uma libertao e uma exacerbao dessa tendncia, tornandose mais claros os fundos, como que devido a uma satisfao intensa, felicidade do pintor ao
reencontrar o seu casulo lisboeta, a sua famlia, o seu meio17 nos retratos de D. Jos Pessanha
(1885), no retrato da sua cunhada Elvira Bordalo Pinheiro (1884), no do seu sobrinho Manuel
Gustavo (1884), mas tambm no atelier de Silva Porto, Um pintor (1883), que Columbano d largas
libertao do seu desejo. o perodo, entre 1883 e 1885, em que, segundo Jos-Augusto Frana, o
pintor est intimamente contente por ter retomado as suas comodidades de pequeno-burgus
solitrio. Lisboa lembrava-se dele...18 sobretudo no retrato do sobrinho, Manuel Gustavo, que
Columbano autonomiza claramente a mancha cromtica, abolindo contornos e provocando a
indefinio dos planos, como observou Pedro Lapa.19
Veja-se como j em O Sarau (1880), os objectos assumem um aspecto fantasmagrico, surgindo de
um limbo enevoado de tons verdes ou de azuis: msulas, vasos, jarres, relgio surgem flutuando por
cima das personagens. Um reposteiro azul dilui-se nas paredes de neblina. O gato tende a diluir-se no
tapete, tambm ele pintado como se de uma pequena nuvem se tratasse. Columbano pe, deste
modo, em relevo a fantasmagoria que o mundo das coisas encerra no interior burgus, o seu
fascnio, como signos que vo perdendo o significado, de tal forma o seu contexto evanescente
(Figs. 2 e 3).
Vimos como em Paris os fundos se tornam mais escuros, como em Soire chez lui (1882). JosAugusto Frana notou o cho, vago, e mais vago ainda o fundo das paredes que a penumbra devora,
cor de terra tendendo ao negrume e s cinzas; todos os brancos amarelados e velhos um quadro
vindo do fundo do tempo20
Mais tarde, de regresso a Lisboa, Columbano voltaria prtica radical j anteriormente anunciada,
no tratamento dos fundos, confundindo paredes e cho, anulando constantemente a profundidade
do espao,21 tudo flutuando, figuras e objectos, naqueles limbos de prazer amarelos e acastanhados,
numa magnfica subverso da ordem burguesa, atravs daquilo que lhe sacrossanto: o interior
burgus, a casa com o seu mundo de objectos que se desejavam precisos, de sentido claro, nico e
bvio, como pretenderia reaccionariamente Ramalho Ortigo,22 que na pintura de Columbano via o
criminoso desleixo do acabamento e muito significativamente a via tambm o seu desdm
revoltante pelo sentido exacto e preciso daquilo que tem que dizer-nos23 e Monteiro Ramalho
achava uma adulterao voluntariosa da verdade, que a sua arte era toda particular, caseira,
aconselhando a que fizesse quadros completos em vez de imperfeitos esboos24. As palavras dos
crticos e sobretudo a frase de Ramalho Ortigo no poderiam ser mais explcitas: eles queriam as
16
V. Jos-Augusto Frana, A Arte em Portugal no Sculo XIX, II, Lisboa: Bertrand, 1990, p. 282. Para JosAugusto Frana, este esfarrapamento das suas formas vinha directamente da maneira setecentista de um
Piazetta, cuja cor veneziana tivesse sido abafada.
17
V. Jos-Augusto Frana, A Arte em Portugal no Sculo XIX, II, Lisboa: Bertrand, 1990, p. 268. V. Pedro Lapa,
op. cit., pp. 39-40.
18
V. Jos-Augusto Frana, citado por Pedro Lapa, op. cit., p. 40.
19
V. Pedro Lapa, Columbano Bordalo Pinheiro 1874-1900, Lisboa: Museu do Chiado / MNAC, 2007, p. 122.
20
V. Jos-Augusto Frana, A Arte em Portugal no Sculo XIX, II, Lisboa: Bertrand, 1990, p. 266.
21
V. Pedro Lapa, op. cit., pp. 26 e 39.
22
V. Pedro Lapa, op. cit., p. 40.
23
Ibid.
24
Ibid.
235
formas acabadas, de sentido exacto e preciso... E era disso mesmo que a modernidade de
Columbano se afastava, transgredindo, e desse modo enervando os comentadores burgueses,
porque era o prprio interior burgus, a concha, o casulo, o museu ou o santurio de que fala Walter
Benjamin, que Columbano punha em causa, logo ele que, paradoxalmente, no podia passar sem
isso. Talvez o paradoxo seja aparente, na medida em que o amor radical do pintor ao conforto
burgus, intimidade do espao interior, poderia transform-lo num lugar de sonho, de rverie, de
memria, onde paredes e cho se confundem, onde os planos se desmaterializam Enfim, onde
tudo pode acontecer (Fig. 4).
O que podem querer dizer, afinal, estes fundos? Eles constituem certamente uma tentativa plstica
de fugir imposio do sentido, doxa (ao discurso corrente, neste caso o discurso pequenoburgus).25 Os fundos de Columbano so a evaso, a deriva e o desejo. Aquilo que as atitudes ou o
temperamento sorumbtico e melanclico do pintor no exprimiam explodia nas telas, numa
abolio de contornos. Roland Barthes sonhava com um mundo de puros significantes, liberto da
tirania do sentido. Era aquela tirania que Walter Benjamin j repudiara no seu belssimo texto
aforstico Via de Sentido nico26 (Fig. 5).
A referida crtica de Ramalho Ortigo exemplar: ele queria ver na pintura de Columbano o sentido
exacto daquelas formas, e no o encontrava, e da perturbao que isso lhe causava associava falta
de sentido exacto, a noo de desleixo, que era nada mais nada menos que o medo da desordem
antiburguesa, de um atentado sua racionalidade. Mas no foram s os crticos portugueses que no
entenderam a pintura de Columbano. A crtica francesa tambm no lhe foi receptiva. O crtico Louis
de Fourcaud escreveu no Le Gaulois do dia um de Junho de 1882, a propsito de Soire chez lui, que
Columbano era um artista incompleto. Incomodou-lhe a iluminao lamacenta, corrompendo todas
as aparncias. Aqui, encontramos o mesmo horror burgus lama, aos fundos evanescentes, que
corrompem as aparncias. A mentalidade da poca exigia uma representao clara, no
corrompida e Columbano no lha dava. Um dos comentrios mais apropriados, dos que foram feitos
em Portugal, veio do escritor e jornalista Fialho de Almeida que viu no fundo dos quadros, brumas
cor de cinza. Embora Fialho tenha sentido, tal como todos os seus contemporneos, que os quadros
eram inacabados (no acabando nunca), pressentiu que Columbano os deveria fazer dessa
maneira, porque era assim que o pintor via e sentia: tipos incompletos, almas aos pedaos,27 no
fundo aceitando a representao necessariamente fragmentada do mundo moderno.
As nuvens e os esfumados da incerteza os fundos que intrigavam ou irritavam os
contemporneos dificilmente os poderiam compreender imediatamente porque eram sintomas de
uma modernidade emergente, de um novo sentir, que provavelmente de forma involuntria
enchiam as telas de Columbano, criando uma atmosfera nova... de sonho, de jogo, de espectros, de
limbo, de nostalgia... Compare-se por exemplo estes fundos com a perfeita definio de contornos
de Lendo uma Carta de Alfredo Keil (apenas sete anos mais velho que Columbano), pintado alguns
anos antes, em 1874.28 Keil interpreta o interior burgus de forma perfeitamente acabada,
imediatamente perceptvel para um pblico burgus. A partir de 1880, a interpretao de
Columbano, j ningum a entende.
A incerteza era a nova realidade sociocultural, mental, era o mundo em transformao. A mancha
columbanesca pode ser entendida como o refgio e o escape involuntrio do prazer (o Id), puro
significante ou vontade inconsciente de tudo envolver num paraso de significantes puros, de um
mundo sem sentido... que perturba e delicia. Era o reverso das convenes burguesas e pequenoburguesas, dos seus complexos, da constante preocupao com as aparncias, do medo do que os
25
236
outros possam dizer ou pensar, enfim de toda essa armao frrea, desse espartilho que o mundo
do sentido e da sua imposio... O Ocidente humedece tudo de sentido, maneira de uma religio
autoritria29.
Curiosa e inesperadamente pela via da sua misantropia, do seu fechamento ao mundo exterior em
acelerada transformao, que Columbano se afasta do academismo. rejeitando a modernidade
urbana que o pintor acede pintura moderna. A singularidade da sua obra deve-se provavelmente a
esse processo indito.
Foi o mergulho profundo do artista no interior burgus e, mais concretamente, a sua profunda
imerso no interior burgus lisboeta que permitiu a sua originalidade no panorama da arte ocidental.
A cidade de Columbano e Lisboa acima de tudo so interiores (a produo nos dois anos em Paris,
1882-1883, tambm havia resultado em interiores de Lisboa, acima de tudo). Ao regressar, so
novamente os interiores de Lisboa que lhe interessam, como, alis, antes de partir. A grande
contribuio da arte de Columbano para o conhecimento de Lisboa reside precisamente na sua
representao do interior burgus. Interior esse que consistia no reverso da medalha da
modernidade urbana, de uma cidade que, a partir do regresso do pintor, crescia com a sua Avenida e
as avenidas novas, atravessadas por transportes sobre carris, carros elctricos na viragem do sculo,
e o aumento do nmero de cafs no Rossio e mais salas de espectculo, enfim La Modernit a uma
escala portuguesa. Mas ao contrrio do que acontecera por exemplo em Paris, que teve os seus
pintores da vida moderna, a transformao do facies de Lisboa no mereceu a ateno de
Columbano nem de nenhum outro artista, diga-se de passagem. Columbano foi o pintor da Lisboa
interior, da outra face da modernidade urbana e dela indissocivel o interior burgus, com toda
essa panplia de objectos, de tecidos, de espelhos e relgios. Sem a pintura de Columbano, no
existiria uma interpretao artstica destes espaos. No haveria pintura da Lisboa oitocentista (Fig.
6).
29
V. Roland Barthes, LEmpire des signes, Paris: Flammarion, 1984, pp. 90-91.
237
238
239
BIBLIOGRAFIA
240
241
paisagem urbana e abandonando uma viso predominantemente rural que marcara a cultura nacional
at ento. A cidade moderna passou a ser uma personagem, tal como outros elementos no
argumento, ainda que numa viso pessimista, j que representada como intrinsecamente hostil
personagem principal, que vive num lugar que simbolicamente anuncia a expanso urbana de Lisboa.
O conflito mais evidente do filme o da corrupo da cidade, que Paulo Rocha filma to bem,
sempre discreta mas, justamente, mostrando esse bairro de Alvalade que vai empurrando os campos
para trs.3 Paulo Rocha filma as paisagens desoladas de uma Lisboa em construo, entre dois
espaos aparentemente contraditrios, e digo aparentemente porque ambos so periferias: uma
urbana, os bairros das Avenidas Novas, onde trabalham as duas personagens principais, e uma rural,
onde Jlio vive com o tio, lugar j ameaado pelo crescimento da cidade.
As personagens em Os Verdes Anos tm funes distintas na narrativa e todos representam um
diferente nvel de integrao na vida urbana. Ilda, a empregada domstica, vive fascinada pelos novos
movimentos, na msica e na moda, servindo de mediadora entre Jlio e Lisboa. Atravs dela, Jlio, um
sapateiro, descobre as novas avenidas, a nova cidade universitria, o novo aeroporto. Mas sem Ilda
conhece tambm o lado escuro da cidade, a decadncia e a bomia da vida nocturna, evidente na
sequncia em que se confronta com o tio no Texas Bar, mais tarde tambm filmado por Wim
Wenders, sendo Jlio salvo por um forasteiro que o leva pelas ruas e travessas escuras de Lisboa,
acabando a noite num bordel, cena que a censura evidentemente cortou.
Embora no haja referncias directas ditadura, o filme um retrato da difcil situao da populao
portuguesa de ento. Os Verdes Anos o filme que melhor retrata Lisboa e Portugal como espaos
de frustrao e claustrofobia, onde tudo agoniza numa morte lenta, sem qualquer sada4. Visto desse
ngulo, o retrato mais poltico de um pas que matava longamente. O ltimo plano do filme o
confronto entre Jlio e os carros de faris acesos, visto do alto de um desses grandes prdios da
cidade sobretudo a imagem de um animal acossado e perdido no labirinto de uma experincia
urbana absurda.5
Depois de Os Verdes Anos, em 1964, surge Belarmino, a longa-metragem de estreia de Fernando
Lopes. O filme foi igualmente produzido por Antnio da Cunha Telles, o produtor de quase todos os
filmes do Novo Cinema, ainda incutido do esprito empreendedor daqueles incios de sessenta que
rapidamente se desvaneceu. Belarmino o filme de um homem livre, que comea e acaba do lado de
fora das grades de uma priso simblica6: o primeiro plano apresenta as redes de um ringue de boxe
e o ltimo mostra a grade de uma varanda que aprisiona a imagem e os lisboetas. Dentro dessa
gaiola, que uma certa Lisboa, vive Belarmino e o filme a histria de um prisioneiro que se julga
livre, contada por um homem que tem conscincia de que certos horizontes risonhos no so mais do
que um muro de vergonha7. Cito Grard Castello-Lopes, amigo de Fernando Lopes, e um dos grandes
fotgrafos de Lisboa. Tal como Os Verdes Anos, o filme foi rodado inteiramente na capital e Belarmino
a personagem mimtica da cidade nos anos sessenta: pobre, derrotado, mas cheio de esperana.
Belarmino tambm a redescoberta da verdadeira Lisboa, do seu fascnio e da sua torpeza. O filme
quer retratar a cidade trabalhei uma figura humana como se trabalha uma cidade, disse Fernando
Lopes e quando hoje se v Belarmino, percebe-se a Lisboa daquele tempo. Nesse sentido, o filme
quase antropolgico, completando a parte da cidade que tinha ficado por filmar em Os Verdes Anos.
Ao dirigir o filme, tive a ideia de realizar uma pelcula que agarrasse na realidade e permitisse contar
Vasconcelos, Antnio-Pedro, Paulo Rocha. O Rio do Ouro, Cinemateca Portuguesa, 1996, p. 148.
Costa, Joo Bnard da, Histrias do Cinema, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, p. 120.
5
Prado Coelho, Eduardo, Vinte Anos de Cinema Portugus, 1962-1982, Biblioteca Breve, Vol. 78; Instituto de
Cultura e Lngua Portuguesa, Lisboa, 1983, p. 17.
6
Castello-Lopes, Grard, Fernando Lopes por C, Cinemateca Portuguesa, 1996, p. 109.
7
Idem.
4
242
a evoluo de um indivduo dentro da cidade e explicar at que ponto essa cidade influenciou esse
indivduo. Por isso, Belarmino uma pelcula lisboeta, toda rodada em dcors naturais.8
Belarmino a certeza de um novo cinema. Ao contrrio de Os Verdes Anos, que hesitava entre a
proposta de uma modernidade e a procura de uma tradio na qual se pudesse integrar, Belarmino
recusa conscientemente qualquer referncia desse tipo para se lanar em terreno desconhecido.9
Fernando Lopes soube, sem lhe sublinhar os efeitos, ultrapassar o assunto do filme: a vida lisboeta de
um boxeur falhado. O olhar que pousou em Belarmino passa para l deste e revela toda uma realidade
social. a vadiagem, lisboeta vadiagem, irresponsvel e ligeira, o que vemos em Belarmino, quando
este vagueia pela Barros Queirs, pela Sua, pela Avenida dos Restauradores e vai at porta do
den, olhar para as raparigas da alta e dar palmadas a outros rapazes que por ali matam o tempo. A
cena final do filme uma sublime e comovente confisso dessa vadiagem no so engenheiros
nem arquitectos que vo para o boxe, so homens como eu, vadios, diz Belarmino arrancada num
segundo de fraqueza e sinceridade, num dos mais belos momentos de todo o cinema portugus, com
esse espantoso Rossio final, retrato exactssimo de uma cidade triste10. Os movimentos quotidianos
de Belarmino, a beber e a lavar a cara numa nostlgica fonte Wallace, so a extenso dos que executa
no ringue, e em que ao clamor da multido no final do combate responde o marulhar da gua na
fonte. Como se toda a cidade, naquela manh fria, chorasse a desgraa daqueles que como ele
caminham num passo mido, sem ver as grades da priso que os encurralam. Em Os Verdes Anos e
Belarmino, os primeiros filmes (talvez os ltimos) que uma gerao ousou reivindicar, h dois mundos
que colidem, espacialmente, socialmente, economicamente, metforas de um pas fora do tempo,
que agonizava lentamente. So retratos sofisticados mas amargos, que lidam com temas como o
fracasso, a frustrao, a impossibilidade do amor, as dificuldades de adaptao vida na cidade e em
que o nico espao de liberdade era a noite.
A presena da cidade no tem em Domingo Tarde (1965), a primeira longa-metragem do arquitecto
Antnio de Macedo, a mesma relevncia que assume noutros filmes do Novo Cinema. Domingo
Tarde um filme voltado para os espaos interiores, planos e despidos, responsveis por uma
atmosfera perturbadoramente fria. No entanto, podemos dizer que se trata de um filme urbano, e a
prov-lo est o contexto em que se insere e que observamos da janela do hospital onde se passa parte
da aco inicial do filme. Mas, como se percebia em Os Verdes Anos, e at em filmes estrangeiros
como La Peau douce, que Franois Truffaut filmou parcialmente em Lisboa em 1964, h tambm em
Domingo Tarde um indcio de que o casal protagonista prefere refugiar-se no campo para os seus
encontros amorosos, como se a cidade quisesse expulsar os amantes. curioso verificar que nos
filmes referidos, a viagem de automvel para a periferia rural ganha quase sempre algum destaque.
No caso particular de Domingo Tarde, constitui uma das cenas mais importantes do filme, quando
Clarisse acelera exageradamente o automvel para que Jorge experiencie, tal como ela, o medo da
morte. Com outros filmes partilha tambm o entendimento da cidade consolidada como um lugar de
vcio, de perdio, de m vida, mas paradoxalmente livre. num desses bares nocturnos da Lisboa
antiga que Clarisse procura consolo aps tomar conscincia do seu grave estado clnico.
Perdido por Cem (1972) a estreia na longa-metragem de Antnio-Pedro Vasconcelos, que assistiu,
como crtico ou autor de curtas-metragens, ao nascimento de um cinema que prometia mudar o
panorama portugus. Talvez por isso o filme apresente um enorme entusiasmo em explorar as
temticas lanadas pela nova gerao e em experimentar as novas tcnicas (foi o primeiro filme
portugus com som directo), mas tambm a esttica da nouvelle vague francesa. A histria repete-se:
um jovem vindo da provncia no encontra o seu lugar na cidade de Lisboa, mais uma vez espao de
vcio e perdio, procurando conforto num amor obsessivo de final trgico. Porm, a personagem
principal de Perdido por Cem parece mover-se com maior destreza, apesar dos obstculos que vai
8
Lopes, Fernando, Semana do Novo Cinema Portugus, Cineclube do Porto, 1967, p. 42.
Seixas Santos, Alberto, Fernando Lopes por C, Cinemateca Portuguesa, p. 112.
10
Idem.
9
243
244
15
16
245
Peter Drucker, The Landmarks of Tomorrow: a report on the post-modern world (New York: Harper & Row,
1959).
2
Pierre Francastel, LUrbanisme de Paris et lEurope, 1600-1680 : travaux et documents indits, prsents par
Pierre Francastel (Paris: Klincksieck, 1969).
246
criaram uma conscincia prpria da problemtica urbana depois das antigas e ilustres perspectivas
historicistas do pioneiro que foi Lavedan3. Jos-Augusto Frana considerava j em 1992 que seria
um dia necessrio remover todo o fundo pombalino da B.N. [Biblioteca Nacional] para estudar, com
equipamento informtico, os milhares de processos de reconstruo [da Baixa Pombalina],
salientado ainda que seria trabalho de equipa, advertindo tambm no ser possvel um espao de
cidade ser estudado por uma pessoa s de cada vez, e finalizando com segurana sobre a sua
investigao afirmava supor que o seu resultado no iria alterar as concluses a que por
sondagem tinha chegado, apenas as bases seriam mais definitivamente seguras4. E porque
desejamos tal como o professor Jos-Augusto Frana uma histria sempre interrogativa,
universitariamente interrogativa5, propomos interrogar a cidade, divulgar a cidade e revelar o
passado activo de Lisboa.
Entrevista com Jos-Augusto Frana, Penlope. Fazer e Desfazer a Histria, Lisboa, 7, 1992, 87.
Entrevista com Jos-Augusto Frana, Penlope. Fazer e Desfazer a Histria, Lisboa, 7, 1992, 88.
5
Jos-Augusto Frana, Histria, que Histria ? (Lisboa: Edies Colibri, 1996), 11.
6
Manuel Castells, A era da informao: economia, sociedade e cultura, in A sociedade em rede (So Paulo:
Paz e Terra, 1999).
7
Klaus Frey, Desenvolvimento sustentvel local na sociedade em rede: o potencial das novas tecnologias de
informao e comunicao, Revista de Sociologia e Poltica, Curitiba, 21, Nov. 2003, 177.
8
Sharon Zukin, Paisagens Urbanas Ps-Modernas: mapeando cultura e poder, Revista do Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional, Rio de Janeiro, 24, 1996, 205-219.
9
Santiago Leon Puncel; Fernando Mendiola Gonzalo, ed. lit., Voces e imgenes en la historia: fuentes orales y
visuales. Investigacin histrica y renovacin pedaggica (Navarra: Ed. Universidad Navarra, 2008).
10
Justo Villafae; Norberto Minguez, Principios de Teoria General de la Imagen (Madrid: Ediciones Pirmide,
2002).
4
247
248
ficando os lugares que os edifcios occu//po lavados de aguada preta; as Igrejas dos Conventos,//
Freguesias e Ermidas vo sinaladas com aguada// de Carmim, e a divizo das Freguesia de cor azul,
[FONSECA, Pedro Gualter da; CUNHA, Francisco Pinheiro da], [1756], Direco de Infra-estruturas do
Exrcito Gabinete de Estudos Arqueolgicos da Engenharia Militar (2343-2-16-22 DSE).
Estes objectos/dispositivos teriam a capacidade de nos atrair visualmente no apenas pelos
caminhos narrativos e iconogrficos, mas tambm por caminhos de apropriao de cores e formas,
cuja apreenso esttica por vezes os aproxima de uma pintura. Segundo James Jerome Gibson, o
campo visual o resultado do hbito crnico de o homem civilizado ver o mundo como se fosse um
quadro11. Por outro lado, so objectos atravs dos quais nos confrontamos com o passado e, de
algum modo, o convite ao olhar feito pela cartografia, um convite investigao e
simultaneamente imaginao. A nossa imaginao a grande construtora do virtual, uma vez que
a captao de qualquer imagem pela nossa viso implica o desenvolvimento de uma actividade
mental12. A investigao em arquitectura e urbanismo pode ser definida como uma actividade
encaminhada para a soluo de problemas, cujo principal objectivo consiste em encontrar
respostas a perguntas, mediante o uso de processos cientficos13. Para tal ser necessrio trabalhar
em cooperao com especialistas na rea da semantic web publishing, contribuindo para a
optimizao dos processos de pesquisa e da recuperao de informao, alargando o mais possvel o
campo da pesquisa por parte dos utilizadores. Por um lado, avanamos no estudo das aplicaes das
novas tecnologias, por outro sistematizamos e divulgamos fontes e interpretaes acadmicas,
motores vitais para novas pesquisas, e finalmente captamos um pblico mais generalista que
ganhar seguramente uma maior conscincia patrimonial. Resulta na verdadeira associao do Homo
Faber tal como o concebeu Henri Bergson, em que a teoria da evoluo humana fundamentada e
instigada pelo impulso criativo, ao Homo Ludens tal como o concebeu Johan Huizinga, em que
valorizado o elemento do jogo como parte da Cultura.
Concluso
O uso das novas Tecnologias de Informao e Comunicao (TICs) contribui para a formao de uma
conscincia colectiva de patrimnio, atravs da revelao de uma histria da cidade em que se
articula de forma modelar a arquitectura e o urbanismo, confirmando que essa uma tradio
portuguesa. Esta ferramenta potencia tambm uma memria do passado que possa fundamentar
projectos contemporneos e futuros. Reconstruindo os possveis passados, reinventamos a paisagem
urbana do presente. A actualizao da Nova Histria articulada com as novas ferramentas que
desencadeiam novos raciocnios assumem na contemporaneidade o que designamos por Novas
Humanidades.
11
Citado em Ernst Gombrich, La imagen y el ojo: Nuevos estdios sobre la psicologia de la representacin
pictrica (Madrid: Alianza, 1987), 153.
12
Pierre Francastel, Imagem, Viso e Imaginao (Lisboa: Edies 70, 1987), 83.
13
Eugenia Mara Acevedo Salomao; Luis A. Torres Garibay, La investigacin en arquitectura (Michoacn:
Universidad Michoacana de San Nicols de Hidalgo, s.d.).
249
BIBLIOGRAFIA
250
Alguma historiografia veicula o dia 2 de Abril como a data da inaugurao. Documentao coeva
recentemente estudada por Alline Gallash Hall contraria esta data. O projecto de recriao foi realizado pela
ARCI (Beta Technologies) e coordenado por Alexandra Gago da Cmara, em 2005.
251
252
mais importantes eventos, como as procisses e as touradas2. O simulacro virtual da Lisboa barroca
ser ainda complementado por pequenas caixas de texto de contextualizao histrica que estaro
associadas aos edifcios e reas da cidade mais relevantes e podero ser abertas pelos visitantes. A
informao a contida dever ser directa e esquemtica e incluir a identificao da construo ou
rea assinalada, a datao, a autoria e a meno dos factos e personalidades que lhes esto
associados.
Na fase actual do projecto, procedeu-se actualizao formal da recriao da Real Casa da pera e
sua integrao no designado complexo palatino, com a reconstituio, no lado ocidental do Terreiro
do Pao, do Pao da Ribeira (incluindo um sobrevivente corpo quinhentista do palcio original), os
jardins do Palcio Real, a Praa da Patriarcal com a respectiva igreja e o Palcio dos Patriarcas, a
Ribeira das Naus e as vias de ligao de todo o conjunto (ver http://lisbon-pre-1755-earthquake.org/
e https://vimeo.com/lisbonpre1755) (Figs. 2 e 3).
O projecto implica a associao de duas abordagens cientficas, a da Histria e a da Realidade Virtual,
da a existncia de uma equipa transdisciplinar, reunindo investigadores da rea da Histria da Arte,
designadamente da Histria da Cidade, do Urbanismo, da Arquitectura e da Paisagem, e especialistas
na criao de mundos virtuais e na aplicao das novas tecnologias pesquisa e divulgao da
Histria. As principais entidades envolvidas so o CHAIA Centro de Histria da Arte e Investigao
Artstica da Universidade de vora (www.chaia.uevora.pt) e a empresa Beta Technologies
Architects of the Virtual World (www.betatechnologies.info). Apenas esta abordagem transdisciplinar
possibilitar o cumprimento do primeiro objectivo do projecto: uma visualizao da memria da
Lisboa desaparecida em Novembro de 1755.
Atravs da utilizao da tecnologia Second Life, o projecto adquire duas qualidades fundamentais,
uma tridimensionalidade interactiva e uma dimenso virtual imersiva. Esta ltima, pela via da
percepo, faculta ao ser humano a sensao de que a sua conscincia se expande alm dos limites
fsicos do seu corpo. Conjugadas, interactividade e imersibilidade permitem que o modelo de cidade
virtual proposto seja simultaneamente cientfico, pedaggico e ldico. As dimenses pedaggica e
ldica concretizam-se com o acesso directo dos utilizadores ao modelo atravs da criao de um
avatar (uma representao grfica do utilizador) (Fig.4).
Esta funcionalidade permite aos utilizadores integrarem a realidade urbana recriada virtualmente e
interagirem com ela, com outros utilizadores e com os prprios investigadores, o que no possvel
nas convencionais recriaes digitais 3D, mais rgidas e condicionadas a percursos preestabelecidos.
Assegura-se, assim, o maior nmero de benefcios em relao ao estudo, compreenso,
interpretao, preservao e gesto do patrimnio que a memria da cidade de Lisboa anterior
ao sismo de 1755, conforme estabelecido pelo sexto princpio da Carta de Londres, o documento
internacional que regula a prtica da arqueologia virtual3.
A dimenso cientfica consubstancia-se na recriao virtual que sendo imersiva disponibiliza no
somente a representao de uma sntese do estado do conhecimento acerca da Lisboa da primeira
metade de Setecentos, mas tambm a possibilidade de aplicar e testar as interpretaes da
documentao escrita (manuscrita e impressa) e iconogrfica disponvel nos arquivos, bibliotecas,
repositrios digitais e museus nacionais, de debat-las com outros investigadores e de actualiz-las
ou corrigi-las quando necessrio. Este processo implica uma anlise crtica e comparativa da
documentao supracitada que passa, inclusive, pelo cruzamento das descries de Lisboa (fontes
2
th
A. Gago da Cmara, H. Murteira e P. Rodrigues, City and Spectacle: a vision of pre-earthquake Lisbon, in 15
International Conference on Virtual Systems and Multimedia VSMM 2009 (Vienna: IEE Computer Society, 2009),
239-243.
3
O princpio 6 da Carta de Londres respeita acessibilidade das visualizaes do patrimnio cultural em
suporte computacional. The London Charter for the Computer-based visualization of Cultural Heritage. Version
2.1 (February 2009), 10-11 (http://www.londoncharter.org/downloads.html, consultada a 07/08/2012).
Lloyd P. Rieber, A Historical Review of Visualization in Human Cognition. Educational Technology Research
and Development, vol. 43, n. 1 (1995): 45-52.
5
Rieber, A Historical Review of Visualization in Human Cognition, 54.
6
Diana Favro, Meaning and Experience: Urban History from Antiquity to the Early Modern Period, Journal of
the Society of Architectural Historians, vol. 58, n. 3 (1999): 367.
7
Joseph Nechvatal, Towards an Immersive Intelligence, Leonardo, vol. 34, n. 5 (2001): 420.
8
Favro, Meaning and Experience: Urban History from Antiquity to the Early Modern Period, 370.
253
tecnologias dos mundos virtuais podem ser poderosos instrumentos de resoluo de problemas pela
capacidade de congregar as representaes internas ou mentais e as representaes externas
(objectos, imagens, grficos, vdeos, animaes, etc.)9. No projecto aqui apresentado, essa
capacidade verificvel na recriao do Pao Real, que cruza a iconografia coeva conhecida do
palcio a pintura de Dirk Stoop de cerca de 1662, a gravura de George B. Probst de 1707 e o
desenho a tinta-da-china atribudo a Francisco Zuzarte de cerca de 1752 (todas obras do acervo do
Museu da Cidade de Lisboa) (Fig. 5) e a sua descrio detalhada, que conhecemos por via
secundria, uma transcrio publicada pelo escritor Camilo Castelo Branco em 1874, na obra Noites
de insomnia, offerecidas a quem no pde dormir10.
A metodologia que tem sido usada no projecto Cidade e Espectculo: uma viso da Lisboa prterramoto demonstra que ao recorrer iconografia das cidades como fonte para a histria urbana,
esta tem estado na vanguarda da transdisciplinaridade, aproximando a histria da arte s histrias
social (no estudo da complexa inter-relao entre forma urbana e os vrios grupos sociais que
habitam a cidade), da cultura e das ideias, provocando a diluio das respectivas fronteiras
heursticas e a sua mtua colaborao na produo do conhecimento, em particular quando
necessrio relacionar forma urbana e arquitectnica com cultura e imagem11. Por exemplo, h que
analisar criticamente a iconografia urbana tendo em considerao que a representao de uma
cidade, a sua imagem figurada numa pintura, num desenho ou numa gravura poder ter sido
condicionada pelos interesses e pelas intenes dos encomendadores da obra, que podero ter
determinado o realce ou a anulao de determinados aspectos urbanos e/ou arquitectnicos. Muitas
vezes, em diferentes pocas, as sensibilidades e os preconceitos de patronos e at dos prprios
artistas favoreceram, nas representaes de cidades, as falsas narrativas histricas, a aparncia
pitoresca ou uma excessiva salubridade, em detrimento da expresso da realidade urbana, social e
poltica da poca12.
Por tudo o que descrevemos e afirmmos, a aplicao da tecnologia dos mundos virtuais,
designadamente da plataforma Second Life, ao conhecimento do passado das cidades, encaminhanos para o desenvolvimento de uma epistemologia computacional que pretende apurar a anlise da
histria urbana providenciando um mtodo de visualizao de ideias, de organizao e sntese de
factos, de identificao, entendimento, crtica, representao e transmisso da complexidade da
histria, apresentando-a com maior abrangncia e mais nitidez13 nas suas diversas manifestaes: na
arquitectura, no territrio ou no enquadramento social14.
9
Nechvatal, Towards an Immersive Intelligence, 417-418. Alexandra Cmara, Helena Murteira e Paulo
Rodrigues, City and Spectacle: a visiono f pre-earthquake Lisbon, in S. Hoppe e S. Breitling (eds.) Palatium
workshop Virtual Palaces, Part II Lost Palaces and their Afterlife. Virtual Reconstruction between Science and
Media. Munich: Ludwig-Maximilians-Universitt, 2012
(https://www.academia.edu/8268726/City_and_Spectacle_a_vision_of_pre-earthquake_Lisbon) (consultado a
12 de Outubro de 2012).
10
Camilo Castelo Branco, Noites de insomnia, offerecidas a quem no pde dormir (Porto: Livraria Internacional
de Ernesto Chardron, 1874), 10-11.
11
Favro, Meaning and Experience: Urban History from Antiquity to the Early Modern Period, 366-368.
12
Favro, Meaning and Experience: Urban History from Antiquity to the Early Modern Period. Ver ainda Boyer,
M. Christine, The City of Collective Memory: Its Historical Imagery and Architectural Entertainments
(Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1994) e Frugoni, Chiara, A Distant City: Images of Urban Experience
in the Medieval World (Princeton: Princeton University Press, 1991). Alexandra Cmara, Helena Murteira e
Paulo Rodrigues, City and Spectacle: a visiono f pre-earthquake Lisbon.
13
Sorin Hermon e Joanna Nikodem, 3D Modelling as a Scientific Research Tool in Archaeology, in Beyond
Illustration: 2D and 3D Technologies as Tools for Discovery in Archaeology, B.A.R. International Series 1805, ed.
B. Frischer et al. (Oxford: Archaeopress, 2008), 36-45.
14
Alfredo Grande and Vctor Manuel Lpez-Menchero, The implementation of an international charter in the
field of Virtual Archaeology, in XXIII CIPA Symposium Prague, Czech Republic 12/16. September 2011
Proceedings (http://cipa.icomos.org/index.php?id=69), f. 2 (consultado a 07/08/2012).
254
Fig. 2 Vista area do conjunto palatino da Ribeira. Modelao Second Life (2012)
255
256
257
258
BIBLIOGRAFIA
BOYER, M. Christine. The City of Collective Memory: Its Historical Imagery and Architectural
Entertainments. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1994.
BRANCO, Camilo Castelo. Noites de insomnia, offerecidas a quem no pde dormir (n. 8 Agosto).
Porto: Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1874.
CMARA, Maria Alexandra Trindade Gago da. Reconstruir a pera do Tejo, in Patrimnio e
Espectculo, Pedra & Cal, 33, 2007: 15-18.
CMARA, A. Gago da, H. Murteira e P. Rodrigues. City and Spectacle: a vision of pre-earthquake
Lisbon, in 15th International Conference on Virtual Systems and Multimedia VSMM 2009, Vienna, IEE
Computer Society, 2009: 239-243.
CMARA, Alexandra, Helena Murteira e Paulo Rodrigues, City and Spectacle: a visiono f preearthquake Lisbon, in S. Hoppe e S. Breitling (eds.) Palatium workshop Virtual Palaces, Part II Lost
Palaces and their Afterlife. Virtual Reconstruction between Science and Media. Munich: LudwigMaximilians-Universitt, 2012 (https://www.academia.edu/8268726/City_and_Spectacle_a_vision
_of_pre-earthquake_Lisbon) (consultado a 12 de Outubro de 2012)
FAVRO, Diana. Meaning and Experience: Urban History from Antiquity to the Early Modern Period,
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FRUGONI, Chiara. A Distant City: Images of Urban Experience in the Medieval World. Princeton:
Princeton University Press, 1991.
GRANDE, Alfredo, e Vctor Manuel Lpez-Menchero. The implementation of an international charter
in the field of Virtual Archaeology, in XXIII CIPA Symposium Prague, Czech Republic 12/16.
September 2011 Proceedings (http://cipa.icomos.org/index.php?id=69), f. 2 (consultado a
07/08/2012).
HERMON, Sorin, e Joanna Nikodem. 3D Modelling as a Scientific Research Tool in Archaeology, in
Beyond Illustration: 2D and 3D Technologies as Tools for Discovery in Archaeology, B.A.R.
International Series 1805, ed. B. Frischer e A. Dakouri-Hild, Oxford, Archaeopress, 2008.
(The) London Charter for the Computer-based visualization of Cultural Heritage. Version 2.1 (February
2009) (http://www.londoncharter.org/downloads.html, consultada a 07/08/2012).
MURTEIRA, Helena. Lisboa antes de Pombal: crescimento e ordenamento urbanos no contexto da
Europa moderna (1640 -1755), in Monumentos 21, 2004: 50-57.
NECHVATAL, Joseph. Towards an Immersive Intelligence, in Leonardo, vol. 34, n. 5, 2001: 420.
RIEBER, Lloyd P. A Historical Review of Visualization in Human Cognition, in Educational Technology
Research and Development, vol. 43, n. 1, 1995: 45 e 52.
259
2. Estado da Arte
Vrios tm sido os contributos metodolgicos para o processo de entendimento da cidade.
Destacamos em seguida trs grupos de autores pelos seus contributos metodolgicos na anlise da
cidade.
O primeiro grupo refere-se a um conjunto de autores que aplicam a sua investigao sobre o modo
de pensar a cidade atravs duma perspectiva histrica, mas tambm sociolgica, ao caso de estudo
da cidade de Lisboa. A pertinncia destes autores para a presente comunicao refere-se ao modo
como a cidade e a sociedade tm sido reflectidas e actualizadas por estes desde diferentes
disciplinas.
Este grupo inclui os seguintes autores: (i) Jos-Augusto Frana (1965) que a partir duma perspectiva
da histria da arte portuguesa contribuiu com uma abordagem inovadora para a actualizao da
histria da cidade; (ii) Paulo Simes Rodrigues (2005) que atravs duma aproximao da histria da
evoluo do conceito de patrimnio aplica-o ao caso de estudo da cidade de Lisboa, questionando a
construo da memria de Lisboa; e finalmente (iii) Isabel Guerra et al. (1999) que partindo de uma
260
perspectiva sociolgica contribuiu com um novo olhar sobre o processo de fazer cidade atravs de
propostas de estratgias de actores para a Baixa de Lisboa.
O segundo grupo refere-se a um conjunto de autores que contriburam para o processo de pensar e
fazer cidade atravs de propostas de abordagens metodolgicas de anlise da forma urbana,
aplicado ao estudo da Baixa de Lisboa. Nomeadamente (i) Mafalda Sampayo (2012) que prope um
mtodo de avaliao e quantificao do espao pblico aferindo as diferentes opes de desenho
urbano propostas para a construo da Baixa. Deste trabalho ressalta o contributo da avaliao do
espao pblico para projectos de interveno na cidade contempornea; (ii) Marat-Mendes,
Sampayo e Rodrigues (2011) propem um mtodo de quantificao do espao pblico da Baixa,
aplicado de forma comparativa entre 1650 e 2010; e finalmente (iii) Teresa Marat-Mendes (2002)
prope um mtodo de anlise comparativa da forma urbana aplicada a trs exemplos de espaos
urbanos planeados, incluindo a Baixa Pombalina. Este mtodo permite aferir comportamentos de
transformao e permanncia da forma urbana, permitindo antever processos de transformao do
tecido urbano da prpria cidade, informado por possveis constrangimentos sociais, econmicos e
polticos.
O terceiro grupo refere-se a um conjunto de intervenientes que directamente actuaram sobre o
processo de fazer e pensar a cidade de Lisboa, nomeadamente na zona da Baixa. Assim, destacamos
(i) Manuel da Maia (1677-1768), o autor responsvel pela dissertao que enunciou as regras para
a reconstruo da Baixa de Lisboa no sculo XVIII; (ii) tienne de Gror (1882-195?), o autor do Plano
de Urbanizao para Lisboa de 1948 e de uma proposta de renovao para a Baixa tambm de 1948
(MARAT-MENDES e SAMPAYO, 2010); e finalmente (iii) a legislao, atravs do Decreto n 95/78 de
12 Setembro, DR I srie, que classifica a Baixa Pombalina como Monumento Nacional.
3. Metodologia
A metodologia desta investigao seguiu as seguintes etapas:
(i) Anlise dos contributos dos diferentes intervenientes na Baixa de Lisboa (estado da arte);
(ii) Identificao e anlise de momentos especficos de pensar e fazer cidade, nomeadamente no
caso de estudo da Baixa (opes de desenho urbano na Baixa);
(iii) Avaliao da forma urbana da Baixa atravs da:
leitura da forma urbana dos desenhos propostos para a Baixa de Lisboa por meio duma recolha
de fontes primrias,
anlise da forma urbana dos diferentes planos atravs dum software de desenho assistido por
computador AutoCAD1,
261
Veja-se a carta cedida pelo engenheiro Manuel da Maia aos Oficiais Engenheiros e praticantes da Academia
Militar para servir de base s propostas de reconstruo da cidade (existente na Direco de Infra-estruturas
do Exrcito Gabinete de Estudos Arqueolgicos da Engenharia Militar, com a cota 2342-2-16-22 [DSE]).
Esta carta pode ser uma cpia da que D. Joo V ter ordenado executar em 1713 a Manuel da Maia (VITERBO,
1904, pp. 125-127), uma vez que existem poucas diferenas entre este levantamento e a carta conhecida de
Tinoco. D. Joo V encomendou em 1713 a planta de ambas as cidades de Lisboa occidental e oriental com
toda a indiuiduao de praas, pallacios, tempos, mosteiros, freguezias, hermitas, ruas e trauessas com os
nomes de todas estas couzas em to boa forma e to ajustada ao terreno que acreditou o seu estudo e
trabalho de sinco annos (VITERBO, 1904, p. 126). a este levantamento terminado em 1718 que Manuel da
Maia se refere quando inicia o plano de Lisboa ps-terramoto (AIRES, 1910, p. 40).
3
Antnio Carlos Andreas, Elias Sebastio Poppe, Eugnio dos Santos de Carvalho, Francisco Pinheiro da Cunha,
Joz Domingos Poppe e Pedro Gualter da Foncca.
262
Les dmolitions seront surtout faites lintrieur des lots et ne seront au possible que partielles, pour
pouvoir conserver les extrieurs des maisons et surtout les faades anciennes. (GROR, [s.d.], p. 26).
263
Informada por uma poltica de proteco do patrimnio existente impondo uma conservao da
estrutura urbana e edificada surge com o decreto de 1978 uma nova postura de pensar a cidade.
Procura-se a partir de agora dar valor ao passado como memria de um tempo que imprimiu
qualidades ao lugar, quer pela materialidade do construdo, quer pelas vivncias diversificadas que
aquele stio registou, enfatizando um sentido do patrimnio existente, reconhecendo-lhe um
carcter de monumento.
No entanto, agora com outras preocupaes, que so as da cidade moderna, onde o carro tem uma presena
muito forte. Assim suprime o logradouro original nos quarteires da rea central da Baixa e reformula-os
criando um vazio no interior destes que funciona como rea para estacionamento.
264
5. Concluso
Lisboa foi pensada por diferentes intervenientes no processo de projectar a cidade, de acordo com o
seu respectivo perodo histrico e as suas necessidades. Lisboa na Idade Mdia marcada por um
crescimento urbano espontneo; no sculo XVIII, pelas intervenes globais reguladas pela unidade e
geometria; no 2. quartel do sculo XX, pelas preocupaes de adaptao circulao do automvel;
e no 4. quartel do sculo XX, por um regulamento que pretende controlar o existente sem impor
novo desenho urbano.
As metodologias de interveno ao longo do tempo compreendem: a total liberdade de construo
(Idade Mdia), a interveno de carcter global (sculo XVIII), a adaptao do existente atravs de
novo desenho urbano (2. quartel do sculo XX) e a legislao no sentido de regular a manuteno
do desenho urbano da Baixa (4. quartel do sculo XX).
Regista-se assim uma continuidade no exerccio de desenho urbano na Baixa at ao 2. quartel do
sculo XX, contrria postura assumida em 1978 que legisla uma poltica conservacionista. A
classificao da Baixa como Monumento Nacional, embora valorize o plano pombalino, menospreza
a dinmica histrica do stio e das suas ocupaes registadas nas fontes coevas desde o final da Idade
Mdia, assim como o desenho urbano na contnua transformao da Baixa. Desta forma, importa
assim realar um exerccio que Frana j havia solicitado: preciso reinventar a Baixa (TOSTES,
2008, p. 224).
265
266
267
Fig. 4 Desenhos relativos ao plano de 1948. Desenhos vectorizados a partir da digitalizao de desenhos de
tienne de Gror. Plano Director de Lisboa de 1948. Saneamento dos quarteires e melhoramento da
circulao da Baixa (Fonte: Margarida Souza Lobo, Planos de Urbanizao: a poca de Duarte Pacheco, p. 97.
Porto: FAUP, 1995)
Tabela 1 Distribuio das reas de Espao Pblico, Quarteires e Vazios Residuais na rea de
implantao
MM*
1718
1756
1756
1756
1756
1756
[1758] 1948
Implantao/ha
45,54 45,38
45,02
44,37
45,71
45,75
48,82
55,2
55,2
Espao Pblico
29%
38%
35%
39%
39%
45%
33%
50%
47%
Espao
Construdo
60%
53%
54%
55%
61%
50%
61%
48%
51%
Vazios Residuais
12%
9%
11%
6%
0%
5%
6%
2%
2%
100%
100%
100%
100%
100%
100%
100%
100%
100%
Gror Hoje
BIBLIOGRAFIA
268
For further information on early artistic historiography in Portugal consult Jos-Augusto: Frana, Arte em
Portugal no sculo XIX (Lisboa 1990), vol. 1; Paulo Pereira, ed. Histria da Arte Portuguesa (Lisboa 1995).
2
Frana, Arte em Portugal, 393.
3
Count Raczynski stays over all an aristocrat, accustomed to be served, who knows how to delegate the work,
to collect the fruits of the research of others, attributing everybody in all fairness what belongs to them. in:
Sylvie Deswarte-Rosa, Luz e Sombra. Athanasius Raczynski au Portugal, 1842-48, Artis, 7/8 (2008-2009): 436.
4
The contribution of Raczyski in the history of art was a point of interest for many Portuguese, Polish and
German scholars since the XIX c. The most recent publications available in Portugal: Maria Danilewicz Zieliska,
Atansio Raczynski- 1788-1874. Um historiador de arte portuguesa, Belas-Artes (1981): 51-70; DeswarteRosa, Luz e Sombra., 426-466; , Paulo Simes Rodrigues, O Conde Athanasius Raczynski e a Historiografia da
Arte em Portugal, Revista de Histria da Arte 8 (2011): 264-275.
269
de LArt Moderne en Allemagne5 certainly gave him expertise and competence facilitating meeting
such an ambitious and complex challenge.6 He was well acquainted with the tradition of
connoisseurship and practice of attribution of art objects developed earlier in the eighteenth century
by, for example, Luigi Lanzi or Jonathan Richardson.7 At the same time he possessed intellectual
resources derived from the achievements of academic history of art emerging in German circles, to
which he was close. It is beyond doubt that he was familiar with the empirical method that can be
found in publications by Karl Friedrich von Ruhmor or Gustav Waagen.8 The awareness of the Counts
wide knowledge and his acquaintance with the nineteenth centurys research and writing practice
combined with attentive reading of his own publication is crucial for further examination because it
gives an opportunity to appreciate the actual original, unique and outstanding nature of the art
historical writing model proposed by him in Les Arts en Portugal, and place it in the context of the
crystallization of a scientific approach of early art history, not only in Portugal but also in a broader,
European setting.
As we learn from the introduction of his work, Raczyski was interested in the problem of art history
in Portugal from the very beginning of his stay in this country (his arrival to Lisbon is dated to 13th
May 1842). The book was written gradually, from December 1843 till 1845, in a form of
correspondence between Count Raczyski and members of the Berlins Artistic and Scientific Society
to satisfy their desire to identify history and the state of fine arts in distant Portugal. The original
recipients of the letters were associates of the Wissenschaftlische Kunstverein. 9 It was an elite
organization established in 1828, which united people profoundly and professionally interested in art
and art history. Among them we can find artists (e.g. P. von Cornelius, F. W. Schadow), art dealers (L.
Sachse), collectors (J. F. W. Wagener, A. Raczyski), museum administrators (G. Waagen, F. Ch.
Frster), etc. Customarily they gathered on the 15th of each month to discuss a wide range of topics
related to arts in Prussia as well as abroad. Each member was required to deliver a lecture at least
once a year, or, those who were staying outside Berlin were asked to send an annual communication
by mail.10 It can be presumed that Raczyskis Portuguese correspondence was presented during
those meetings. At the same time it is clear that in a general sense the form of the book relates also
to the well-known tradition of writing and publishing in print letters to artistic and scientific societies
and Academies, but as we are to see later, Raczyski used this convention to create a more
unorthodox and refined literary work.
It should be strongly emphasized that the deliberate decision to publish Les Arts en Portugal in the
original form of the 29 letters resulted in a complex, heterogeneous and fragmented literary
structure, enclosed in an epistolographic narrative model. In the author's awareness that
correspondence was to be a pretext and basis for extensive research, which in his intention, should
have led to further publications the Dictionnaire and a third, never released volume, in which
Raczyski wanted to summarize and present the final results of his research.11 In the first letter we
read: When I will exhaust the source of information, we will see what consequences we can draw
5
Histoire de LArt Moderne en Allemagne (1836-1842, 3 vol.) as well as both Raczyskis books on art of
Portugal were released by Jules Renouards publishing house in Paris.
6
For more information on Counts biography and artistic activities consult: Konstanty Kalinowski and Christoph
Heilmann, ed., Sammlung Graf Raczyski. Malerei der Sptromantik aus dem Nationalmuseum Pozna
( Mnchen 1992); Piotr M. Michaowski, ed., Atanazy Raczyski Gallery (Pozna 2005).
7
Carrol Gibson-Wood, Studies in the Theory of Connoisseurship from Vasari to Morelli, (PhD diss., Warburg
Institute, 1982).
8
Compare: Dan Karlholm, Art of Illusion. The Representation of Atr History in Nineteenth-Century Germany and
Beyond (Peeter Lang, Bern-Wien 2006).
9
Joachim Grossmann, Knstler, Hof und Brgertum : Leben und Arbeit von Malern in Preussen 1786-1850
(Berlin 1994), 94-100.
10
Karin Brommenschenkel, Berliner Kunst- und Kunstlervereine des 19. Jahrhundrets bis zum Weltkrieg, (PhD
diss., Humboldt-Universitt Berlin, 1942).
11
Joaquim de Vasconcellos, , Conde de Raczynski (Athanasius). Esboo biographico (Porto 1875), 14-15, 19-21.
270
from them. These preludes [the letters] will be probably well longer than the main piece, perhaps
they will also be more interesting, because I collect them and I do not report conclusions.12
When focusing on the text itself, it is easy to notice that Les Arts en Portugal is a block of twenty-nine
chapter-like letters which constitute closed, thematic units. Each of them contains a serial (ordinal)
number, a title and a daily date. The compositional arrangement of the consecutive letters was
primarily subordinated to the chronology of their creation. However, there are two exceptions the
letters number X (Peinture ancienne) and XX (Objets dart qui se trouvent en Portugal) were
placed in the structure differently to the principle. The introduction of such an irregularity was
probably justified by a desire to give greater clarity and consistency to the arrangement of described
issues. The organization of the letters according to the subject as a whole reflects the course of
research process carried out by Raczyski. The starting point of the study were priceless fragments of
Francisco de Holanda treaties on early modern art, followed by the authors considerations into
various artistic phenomena adopted in hierarchical order. Assuming a certain generalization, they
can be summarized as presenting problems from paintings of old masters, to which he devoted most
of his attention, contemporary artistic activities, academic education and collecting, to history of
architecture and decorative arts. The content of the book completes a number of reports from
Raczyskis research tours and journeys in Lisbon, its environs and across the whole country,
intended as an indispensable empirical base for the concluding observations.
It should not escape our attention that the thematic scope of the following letters is not always
connected among them. Often, one and the same subject is chaotically continued in many
paragraphs. This disorder explains why the Count did not miss a chance to place the table of contents
at the end of the volume, and also added a very accurate index of places and persons referred to on
the pages of the publication. Therefore, he provides readers with a tool helping them capture and
move through this comprehensive and multi-threaded text.13 Meanwhile this also opens up the
narrative of Les Arts en Portugal as a completed, published book, to a possibility of two independent
variants of reading. Firstly, the text can be read normally, from the beginning to the end, from the
first to the last letter. But, the reader is also encouraged to choose a different synchronous model.
Thanks to the subject-suggesting titles at the beginning of all the letters, it is possible to follow one
theme developed in various chapters, simultaneously supplementing and exploring chosen motifs
with information from the relevant headwords in Dictionnaire. In consequence, the Counts work
presents itself as a form of narration open to various ways of reception, as a complete
comprehensive text, but also as a fragmentary selective reference book.
Further analysis of Les Arts en Portugal allows us to see that the dynamism of this text is not limited
to the complication in thread continuity. Also, the form of letters makes up compositional units of
different, heterogeneous structures and manifests literary syncretism. It is fairly easy to identify
three altered types of narration: the first one is the author's writing, edited entirely by Raczyski
himself, the second rests on fragments transferred directly from his personal diary. The third type,
most frequent in this publication, is a compilation consisting of Raczyskis words supplemented with
a large number of appendixes. To get a right proportion between the main parts of the letters and
the supporting content contained in the appendixes, it should be noted that in the book of
approximately five hundred and thirty pages, the authors text takes only about two hundred, leaving
the remaining three hundred pages for additional appendixes. These appendixes or supplements
consist of varied elements. These are quotes from books (both old manuscripts and more recent
publications) and snippets of press releases, but above all communications and extracts from letters
from Portuguese informers and colleagues supporting Raczyski in queries and studies on specific
12
Atanazy Raczyski, Les Arts en Portugal. Lettres adresses la Societ Artistique et Scientifique de Berlin, et
accompagnes de documents (Paris 1846), 2.
13
On the historical problem of the development of scientific book indexing in modern era consult: Hans
Wellisch, Indexing from A to Z (New York 1991).
271
issues related to the art of Portugal. The book includes a considerable number of statements made
by other collaborating authors, among whom we should mention Alexandre Herculano, Ferdinand
Denis, Viscount de Juromenha, Viscount de Balsemo, Auguste Roquemont etc.14 Thus, Raczyskis
concept of art historical study seems to relate to the modern idea of a collective work, recalling the
notion of the nineteenth-century romantic presentation of knowledge that leaves place for a
polyphonic dialog seeking truth in a combination of multiple, independent, often contradictory
voices.
Considering the dynamism and polyphony inscribed in the structure of Les Arts en Portugal, we
should also contemplate the significance of the fragmentation of the composition and narrative into
clear, internal divisions. This fragmentation introduces a tension between an individual dimension of
a logically coherent content of each letter in relation to the book as a whole. Each letter is an
independent entity, documenting the state of knowledge and presenting a problem, but also it is a
part, a unit of a larger unity of Les Arts en Portugal as a complete text. A general and synchronous
analysis of the integrated text reveals the internal contradictions and inconsistencies present in the
content, which have been the most serious allegations pointed out by critics15. In fact, in the book we
can find all kinds of inaccuracies and omissions from the point of view of logic of reasoning and
relatively easily noticeable faults in statements. In different paragraphs of his work Raczyski returns
to certain topics, often undermining or even contradicting his own earlier findings. This is clearly
visible in the chapters devoted to the painter Vasco Fernandes. Accounts of investigations aiming to
establish veritable information about the life and the uvre of the famous Gro Vasco occupy almost
one fifth of the volume of the book. In the opening of letter XVI (the fifth from all six concerning
Vasco), based on new findings Raczyski directly rejects his previous theories and announces,
incidentally, in Portuguese: Fica revogada toda a legislao em contrario16, thereby rendering
erroneous his own earlier discoveries.
However, if we are sensitive to the fact that instead of erasing these kind of false information and so
called mistakes while preparing the book for publication, they were left by the author in the text
intentionally, such a concept of writing style may be perceived as a reflection and a distant echo of
the aesthetics of fragment. This poetic model introduced at the end of the eighteenth century in the
circle of German romantics, was founded on the break with the convention of continuity of a literary
text in order to combine many different, syncretic fragments of writing together.17 It opened
narration to new semantic qualities, thanks to continuous operations of understatement,
abandonment of thread, mixing conventions and genres. Similar attempts were proposed by Novalis
(pseudonym of Friederich von Hardenberg), whose unfinished collection of notes intended as
material for an encyclopedia was comprised of short essays, aphorisms, fragments and musings on
the science and nature of systematic knowledge.18 If possible inspiration by this perspective is taken
into account in the case of Les Arts en Portugal, its openness, anti-conclusiveness and apparent
chaos become a device to record a gradual accumulation of information and dynamic evolution of
views. In this context they serve a bigger purpose to capture the entire spectrum of elements
presenting the image of Raczykis investigations and accurately reproduce his hesitations and
constant struggle with tangled, often ultimately unsolved issues of Portuguese history of art.
14
272
Another important element which profoundly affects the analysis of the text Les Arts en Portugal
stems from its genre classification as an epistolary form of narration. The most distinctive feature
related to the inherent properties of a writing model of a letter is its polyvalent temporal and space
dimension. This ambiguity of an inter-narrative time frame is based on a strong concentration on a
present moment and place in which the very act of writing a letter occurs and is perfectly perceptible
through the dating of each epistle. It should be noted again that all of Raczyskis letters contain the
exact daily date and a stamp of place, even if the length and content of some of them suggest that
they were created in a longer time span. In epistolography, however, the exclusivity of the present
tense is broken by the simultaneous orientation to the future, caused by the necessity of a time
interval required for the existence of the real activity of reading the letter. To put it simply: the
letters written by Count Raczyski at a particular time and place could be presented to the members
of the Berlins Kunstverein after the time required for their sending and organizing of a relevant
meeting at which they could be read. This complication was even further complex by subsequent
changes introduced before the publication of the book. Raczyskis interference in this field was
based on the introduction of editorial footnotes and author's comments at the beginning or end of
some of the letters. These, obviously, were intended not for the original German addressees, but
only for the final readers of the book. This impossible present in a letter19 has serious
consequences for the interpretation of Raczyskis work. As a result, Les Arts en Portugal contains in
its structure a direct image of the temporal dimension of the whole process of its formation, defined
by the letters, which are components, determining specific moments of its course. While studying Les
Arts en Portugal, the reader becomes an observer and participant in Raczyskis research presented
and distributed in the inter-narrative time and space. The reader has the ability to analyze not only
the outcome, but also and most of all the process of investigation: exploration of the facts, their
descriptions, development of new ideas and evaluation and improvement of the final art historical
text, which is visible in the next easily noticeable editions and additions.
In the light of what has been herein stated, the broadly defined nature of the argument allows us to
interpret Les Arts en Portugal as a record of the dynamic process of studies on the problem of
Portuguese history of art. It is a concept which suggests that we are dealing with a kind of a
chronicle, a researcher's diary documenting the course of gradual accumulation of information,
formulating hypotheses and their continuous verification. As a result, Les Arts en Portugal goes
beyond a standard interpretation of an academic text as established in the nineteenth century,
alongside the development of history of art as a scientific discipline. The form of the analyzed book
opens further investigation to the possibility of observing the nature of the method and experience
of Raczyskis investigations, to follow his footsteps and observe the dilemmas with which he had to
contend, rather than simply appraise the authors final results and conclusions. Such perspective
allows to estimate hidden potential of Les Arts en Portugal as an alternative and original approach to
the art historical model of writing. Raczyskis book is not only a milestone in the development of
knowledge about Portuguese history of art, but also constitutes a previously unrecognized and
innovative contribution to the legacy of nineteenth century artistic historiography.
19
273
274
275
sculo XX e at aos inditos publicados sob organizao de Lima de Freitas em Ver, no esquecendo
as magnficas entrevistas, conduzidas por Antnio Valdemar, para o Dirio de Notcias1.
Refiro-me s entrevistas publicadas no Dirio de Notcias, Lisboa, entre 9 de Junho e 28 de Julho de 1960
(consultadas em microfilme, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1994).
2
Cf. Almada Negreiros, Charlie Chaplin, Artigos no Dirio de Lisboa, Obras Completas, vol. III, Lisboa, INCM,
1988, p. 26 e Almada Negreiros, O Livro, Inveno do Dia Claro, texto publicado no Dirio de Lisboa, 6 de
Julho de 1921, vide op. supracit., pp. 12-13.
3
De acordo com os horrios de aulas consultados no Colgio de Campolide, quando frequentado por, verificase uma carga lectiva forte em: Latim, Grego, Philosophia; tambm as disciplinas de Desenho, Mathematica
e Portuguez, correspondendo ao ensino secundrio e complementar actuais. Almada entrou no Colgio de
Campolide a 2.XI. de 1900, sendo-lhe atribudo o n. 64, com indicao de naturalidade S. Tom Vide Livro
d'Ouro dos alumnos do Collegio de Campolide 1849-1903, Lisboa, Ed. Colgio de Campolide, 1903. Obra
consultada na Biblioteca do Colgio das Caldinhas, Santo Tirso.
4
Eduardo Loureno, Almada, ensasta, Almada: Compilao das comunicaes apresentadas no Colquio
sobre Almada Negreiros, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian/ACARTE, 1985, p. 84.
5
Ado e Eva de Jaime Corteso, Artigos no Dirio de Lisboa, p. 38.
6
Idem, ibidem, pp. 38-39.
276
artista/autor que Almada exprimia tais convices, consolidadas ao longo de anos, reflexes e
experincias: Acabou-se o sgredo das escolas, a nossa imaginao milenria tem belo terreno para
edificaes ao lado das escolas. Diante de todos vamos edificar construes para que ns e os outros
fiquemos sabendo como se improvisar melhor.7
Do contacto com os Jesutas, Almada guardou memria que contribuiu para edificao da
personalidade artstica, porque focada numa pedagogia humanista, segundo testemunho do filho,
Arq. Jos de Almada Negreiros.8 As condies facultadas para desenvolvimento do seu dom para o
desenho traduziam antecipadamente uma conscincia pedaggica do director do Colgio, do que
viria a ser, mais tarde, o ensino para crianas sobredotadas.
Dentre os autores estudados, Baltasar Gracin, mestre de aforismos e argcia conceptual, exerceu
influncia inestimvel no jovem Almada. O autor do sculo XVII estipulou uma sabedoria conveniente
actuao tico-social e pessoal, reguladora de superior pragmaticidade, exigncia espiritual e
intelectiva. A agudeza de esprito educada pela Arte da Prudncia, pela Arte do Engenho, serviu
lacunas que Almada reverteu a seu favor. A fundamentao argumentativa, a elaborao do discurso
pblico, a escrita insinuosa no eram questes meramente estilsticas, antes proposta legitimadora
visando o estabelecimento de princpios convincentes. A premncia em estipular conceitos, recorria
a artifcios, saboreava o requinte da conscincia epistemolgica do gosto. Os tratados de Baltazar
Gracin9 foram definitivos para maturao, impulsionando especulaes e resguardando-o de
ataques intelectuais, propiciando-lhe rplica subtil, incisiva ou ironista
O conhecimento, na opinio de Almada, no se adquiria nas escolas, dito pelos mestres; resultava da
solido de cada um: Eu tenho ainda na boca o amargo das convices e das sinceridades. Eu aprendi
com os conselhos de Deus a estar s e inocente.10 Estar s, construir a sua educao era caso de
poucos, [s]er o prprio uma arte onde existe toda a gente e em que raros assinaram a obraprima!11.
As suas ideias encontraram fundamento e certeza nas estipulaes de Francisco de Holanda em Da
Pintura, vide os Capitolo IX Por onde deve aprender o Pintor e Capitolo X A segunda cousa
por onde deve d'aprender12, correspondendo os preceitos fundamentais praxis artstica:
no imitar qualquer mestre;
imitar-se a si mesmo;
servir como modelo de imitao a outrem, em consistncia da nova maneira de fazer.
277
Cf. da autora acima mencionada, Prisca pictura e antiqua novitas Francisco de Holanda e a taxonomia das
figuras antigas, comunicao in ARS (So Paulo), vol. 4, n. 7, So Paulo, 2006 disponvel in
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1678-53202006000100002&script=sci_arttext (consultado em Maio
2012).
14
Idem, ibidem, pp. 64-65.
15
Idem, ibidem, p. 69.
16
[] la fusin de los paradigmas ya apuntados se expresaba tambin a travs de una homologacin
terminolgica. El propio Leonardo, tan afecto siempre al naturalismo del Quattrocento, no encontraba
dificultad alguna en conciliar ambos magisterios. Vasari citado por ngel Gonzalz Garca, in Francisco de
Holanda, op. cit., nota 180, p. 75. A conciliao realizava-se atravs do desenho, para o qual ambos se
mostravam cmplices.
De assinalar o estudo de Sylvie Deswarte-Rosa, Francisco de Holanda, ou le Diable vtu litalienne, in Les
Traits de lArchitecture de la Renaissance, Actes du Colloque Tours, 1981. Paris, Picard Ed., 1988; Prisca
pictura e antiqua novitas Francisco de Holanda e a taxonomia das figuras antigas, comunicao in ARS (So
Paulo), vol. 4, n. 7, So Paulo, 2006 disponvel in http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S167853202006000100002&script=sci_arttext (consultado em Maio 2012).
17
Almada Negreiros, Dilogo entre Almada Negreiros e Fernando Amado, separata dos n.s. 5-6 da revista
Cidade Nova, p. 12.
278
18
Marsilio Ficino concede a primazia ao conceito de ideia como princpio esttico por excelncia e para a teoria
da arte, assunto acerca do qual se confronte Panofsky, Idea: contribucin a la historia de la teora del arte, pp.
52, 55 e 86-87. (Cf. M. F. Lambert, op. cit., vol. II, p. 59).
19
Francisco de Holanda, op. cit., p. 76.
20
Almada Negreiros, Arte e Artistas, Ensaios, p. 83.
21
Almada Negreiros, Vistas de SW, Textos de Interveno, p. 120.
22
O saber pouca coisa para quem conhece. O saber desencanta o mistrio. O conhecimento vive cara a cara
com o mistrio. Almada Negreiros, Prefcio ao livro de qualquer poeta, Poesia, p. 39.
23
Cf. Almada Negreiros entrevistado por Antnio Valdemar, Dirio de Notcias, 23.06.1960.
279
Fernando Guimares, Almada Negreiros, poeta, Almada: Compilao das comunicaes apresentadas no
Colquio sobre Almada Negreiros, p. 115.
25
Cf. Almada Negreiros, poeta, Almada: Compilao das comunicaes apresentadas no Colquio sobre
Almada Negreiros, p. 112.
26
Almada Negreiros, Poesia e Criao, Textos de Interveno, p. 167.
27
Almada, em Poesia e Criao, escreveu precisamente que o lugar que o homem passou a ter de encontrar,
o seu onde, decidiu-se inevitvel porque Tinha roubado o Fogo onde o Fogo estava no seu lugar. Leia-se
aqui mais uma referncia ao mito de Prometeu. Cf. Almada Negreiros, Textos de Interveno, p. 167.
28
Cf. Maria de Ftima Lambert, Fundamentos filosficos da Esttica de Almada Negreiros (Tese de
doutoramento), Braga, Faculdade de Filosofia, 1997, vol. II, p. 134 (pdf): porque do homem so no
domnio e consignao do antropolgico, na ordem de criao, realizvel no humano, por roubo do fogo
metafrico, para a obra de arte, para a obra de poesia.
29
Almada Negreiros, Poesia e Criao, Textos de Interveno, p. 166; segundo indicao do prprio Almada
neste texto, a verso que seguiu do livro de Heidegger foi uma traduo para castelhano de Emilio Estiu.
30
Almada Negreiros, Poesia e Criao, Textos de Interveno, p. 166.
31
Almada Negreiros, Poesia e Criao, Ensaios, p. 166. Tendo-se consultado a verso castelhana mencionada
por Almada Negreiros, transcreve-se o original castelhano da citao acima realizada: En la Introduccin a la
metafsica, Heidegger encuentra esta concepcin en el primer coro de Antgona, donde el hombre es
designado [...], lo ms pavoroso, el que inspira terror por su violencia. Emilio Estiu, Estudio preliminar,
Introduccin a la Metafsica, Buenos Aires, Editorial Nova, s/d, p. 29.
32
Prefcio ao livro de qualquer poeta, Poesia, p. 36.
33
Heidegger ultrapassou, numa das suas ltimas obras, o estado de deliberao sobre as posies metafsicas
anteriores sobre o ser. Como sucedeu em Almada, no realizou esse propsito de forma linear, simples e
directa, pois esforzarse por llegar a las cosas mismas, la filosofia no las facilita, sino que las agrava con
dificultades. [...] se substituyen las cosas por esquematismos abstractos, que alejan de la naturaleza de las
mismas, dificultar significar, sobre todo, retornar a la originario. Cf. Emilio Estiu, Estudio preliminar,
Introduccin a la Metafsica, p. 7.
34
Idem, ibidem, p. 14.
280
Nietzsche. Urgia recuperar a autenticidade dos conceitos e palavras, desviados do sentido originrio
devido s tradues latinas do grego na era crist.
No captulo Limitao do ser da Introduo Metafsica, o 1. Coro introduzido a propsito da
ciso entre ser e pensar. Heidegger aprofundou a questo, quanto aos termos do devir e da
aparncia pensamento oposto ao ser35; traando trs percursos interpretativos plausveis. O
primeiro36 constituir-se-ia como autntica substncia do poema, atravessando-o como todo.
Consigna o violento, o prepotente, como carcter essencial da predominncia do ser, constituindo a
potncia do ser. Assim, o homem realiza a violncia, vendo-se a sua razo nela exercida,
prevalecendo o aspecto decisrio do ser: Ao homem -lhe impossvel uma atitude passiva radical, j
que a prepotncia do ser o arrebata do conformismo consigo mesmo, evitando que seja como as
coisas so.37 O inquietante, a prepotncia projectam o homem fora da sua quietude; afastam-no do
ntimo, do habitual, do familiar, da segurana tranquila; auferem uma impositividade decisiva,
ordenadora de toda a sua vida.38
Actuando em violncia, os homens destacam-se na polis, solitrios, eminentes na sua
paradigmaticidade trgica; revelam-se criadores, homens de aco por excelncia: ils deviennent en
mme temps des hommes sans frontires, sans architecture ni ordre, parce que, comme crateurs,
ils doivent toujours d'abord fonder tout cel.39
2. percurso: acompanhamento das estrofes, ladeando o sofrimento do homem no desvelamento
que consiste em revelar, pela actuao, o mais inquietante. Enuncia-se o mar e a terra em sentido
cosmognico e matricial. A terra deidade suprema, predominncia indestrutvel. O homem, sobre
ela exercendo a sua violncia, perturba a calma da germinao. Leva maturao e prodigaliza, com
superioridade tranquila, o inesgotvel para alm de todo esforo. Como nos ciclos da natureza, o
ser do homem renova-se sempre sob vrias formas, mantendo-se numa via nica: enquanto vivo,
insere-se na predominncia do mar e da terra, impondo-lhes o seu jugo.40
A cronologia do Humano aconteceu pelo originrio: o mais inquietante e violento. Neste facto reside
a compreenso do carcter misterioso da origem, autenticidade e grandiosidade do conhecimento
histrico a mitologia. Nesta anlise de Heidegger coincide Almada. O ser descobre-se como
elemento primordial: mar, terra, animal. Pelo entendimento, nomeao das coisas e linguagem,
acrescenta-lhe fora, consolidando o domnio: a prepotncia exerce-se gerando a aco criadora, a
35
Heidegger, Introduction la Mtaphysique, Chap. IV La limitation de l'tre, III tre et penser, Paris,
Gallimard, 1967, p. 124. Necessariamente procurou ento o esboo potico do ser-homem nos gregos, a partir
da leitura precisamente do 1. Coro de Antgona.
36
Inquietante o assustador, o verdadeiramente terrvel, no dos pequenos medos, mas a potencializao do
prepotente, o que provoca o terror, o pnico, o violento. Cf. Heidegger, op. cit., p. 156.
37
Poesia e Criao, Ensaios, p. 166. Este excerto pertence ao Estudio preliminar de Emilio Estiu que segue:
Al hombre le es imposible una actitud pasiva radical, ya que la prepotencia del ser lo arrebata del
conformismo consigo mismo, evitando que sea como las cosas son. Emilio Estiu, Estudio preliminar,
Introduccin a la Metafsica, p. 29.
38
[...] tre ce qu'il y a de plus inquitant, c'est le trait fondamental de l'essence de l'homme, auquel les autres
traits doivent toujours tre rapports. Heidegger, Introduction la Mtaphysique, p. 158.
39
Idem, ibidem, p. 159.
40
Ao enunciar, descrever e ilustrar os diferentes campos de actividade e de comportamento, prprios do
homem, trata-se en ralit d'un projet potique de son tre partie de ses possibilits et de ses limites
extrmes. Cf. Idem, ibidem, p. 161. Heidegger no segue a opinio daqueles que nestas estrofes encontram
um canto que narraria a evoluo da humanidade, desde o caador selvagem, do construtor de pirogas at ao
construtor de cidades, enfim, ao homem civilizado.
281
fundao edificadora o acto potico exige um saber realizador, no que acha coincidncia ao estudo
sobre Prometeu, ddivas de Atena. Saber significa ser visto.41
A obra de arte s Obra quando feita, efectuando o ser no sendo. Efectuar significa operar, colocar
em obra: Kunstwerk, segundo Heidegger, considerada como das seiende Sein42, tudo o que aparece
como outro, significante e inteligvel. A arte saber realizador, adquirindo forma de sendo, em si,
ajustado forma apreensvel, inteligvel.
3. percurso diz respeito ao enfrentamento entre Seiend prepotente, em totalidade, e Dasein
exercendo a violncia do homem conducente delimitao extrema, runa.43 Escreve Almada:
Por necessidade est destinado ao desocultamento ontolgico. Os poetas e os pensadores
so os assinalados pelo signo da insatisfao: no se resignam a ficar dentro do j desoculto,
do familiar e do ordinrio.44
A essncia do homem, experimentada no acto de criao potica obra pela prepotncia exclui-o
da polis, levando-o para longe, deciso legitimada pelo Coro, voltando-se contra o inquietante: Un
tel tre-l ne peut pas tre vu dans le train de vie ordinaire, dans un comportement quelconque.45
Esta perspectiva heideggeriana, para onde conflui a indiferenciao, reencontro dos dizeres potico
e filosfico, interessou Almada quanto ao conceito metafsico de ser homem/pessoal, naquilo que
melhor expressa o institutivo do originrio. Pela poesia, pelo pensamento, pela criao achava-se um
povo, Heidegger dixit o povo grego. Almada vislumbrou no ltimo Heidegger a inteno em
aparncia afirmado por Emilio Estiu no estudo preliminar traduo castelhana: a suposta
contemporaneidade do arcaico.46
A aco violenta exercida pela palavra, em linguagem potica, atingia a insatisfao pela passividade;
exigindo o ser inquietante a aco, pois: el ser de los entes se le revela al hombre en cuanto ste
dice lo que son47. O poeta, o pensador, os mais pavorosos prepotentes ou inquietantes acham
a aco na obra feita. No deixam as coisas tais como so, nem esto. Nas palavras de Fernando
Guimares: o homem perde o essencial; pela poesia, procura reav-lo48, transposto Almada: O
homem perde-se e a linguagem faz-se.49 A poesia exige ocultamento do desoculto, acto esttico
individual, pois do poeta, condio para a criao que nica, pessoal e intransmissvel. Pela
prepotncia verificada no homem, atravs do acto criador, configura-se a individualidade do homem,
nos limites extremos que lhe impedem aquietar-se.
41
Como nota Emilio Estiu, colocar em obra o ser, operacionaliz-lo como algo determinado, realizar o ente
especificamente em obra. Idem, ibidem, p. 165.
42
o ser, sendo, cf. Heidegger, op. cit., p. 166.
43
Or, l'homme est ncessit un tel tre-l, jet dans la ncessit d'un tel tre, parce que le prpotent
comme tel, pour apparatre dans sa prdominance, a besoin pour soi du site de l'ouverture au prpotent. E:
L'essence de l'homme ne s'ouvre nous que lorsqu'elle est comprise partir de cette ncessit par l'tre
mme. Idem, ibidem, pp. 168-169.
44
Almada Negreiros, Poesia e Criao, Ensaios, p. 166, citando Emilio Estiu, op. cit., p. 29: Por necesidad est
destinado al des-ocultamiento ontolgico. Los poetas y los pensadores son los sealados por el signo de la
insatisfaccin: no se resignan a quedar dentro de lo ya des-oculto, de lo familiar y de lo ordinario.
45
Heidegger, Introduction la Mtaphysique, p. 170. Almada cita, ainda, Estiu: Por isso constituem um perigo
para os amantes da estabilidade e eles como dizem as ltimas linhas do texto de Sfocles citado por
Heidegger no esto dispostos a conviver com semelhantes homens. Poesia e Criao, Ensaios, p. 166.
46
Emilio Estiu, Estudio preliminar, Introduccin a la Metafsica, p. 14.
47
Idem, ibidem, p. 29.
48
Fernando Guimares, Almada Negreiros, poeta, Almada: Actas do Colquio, p. 115.
49
Poesia e Criao, Ensaios, p. 167.
282
Fig. 1 Jos de Almada Negreiros - Auto-retrato, 1948. Desenho. Grafite s/ papel. CAM/FCG
In http://prosimetron.blogspot.pt/2009/09/auto-retratos-7.html
283
Veja-se, a este respeito, os diferentes pesos que as vrias acepes de crtica de arte tiveram no decurso dos
anos em Anna Mara Guasch (coord.), La crtica del arte: Historia, teora y praxis, Barcelona, Ediciones del
Serbal, 2003.
2
Nomeadamente por Rita Macedo, Artes plsticas em Portugal no perodo marcelista: 1968-1974. Dissertao
de mestrado em Histria de Arte Contempornea apresentada Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa, 1998, pp. 35-38; Fernando Rosa Dias, A nova figurao nas artes plsticas em
Portugal (1958-1975), vol. III, Doutoramento em Cincias e Teorias da Arte apresentada Faculdade de BelasArtes da Universidade de Lisboa, 2008, pp. 21-41; e Patrcia Esquvel, Anos 60, anos de viragem: o novo poder
da crtica, Margarida Acciaiuoli et al. (coord.), Arte & Poder, Lisboa, Instituto de Histria da Arte da Faculdade
de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2008, pp. 333-343.
284
imprensa ao longo dos anos) oferecem-nos uma ocasio privilegiada para compreender este
problema.
Em traos gerais, o ECAP organizou-se em quatro sesses: i) Histria, sociologia, esttica e crtica de
arte; ii) Funo e situao do crtico de arte; iii) Perspectivas da arte ocidental; e iv)
Perspectivas da arte e da cultura artstica em Portugal3, s quais se juntou, no ltimo dia de
trabalhos, uma mesa redonda sobre A situao da arte em Portugal4. Trs temas atravessam, com
peso desigual, as vrias sesses: o primeiro diz respeito s vias hermenuticas de abordagem ao
fenmeno artstico, e onde se destaca o repto articulao da crtica de arte com a teoria esttica,
por parte de Salette Tavares5, e o entendimento da obra de arte como uma expresso comunicativa,
responsvel e comprometida, em rompimento com a noo da arte enquanto explorao de
imaginrios solipsistas, por parte de Ernesto de Sousa6. O segundo tema ocupa-se (pouco) de
reflexes disciplinares e metodolgicas sobre a prtica da crtica, surgindo como consensual a
vantagem em reverter para ela mtodos historiogrficos e objectivistas na formulao de juzos
de valor7.
O terceiro tema liga-se a aspectos prticos do exerccio da crtica de arte. assim que, no decurso
das vrias sesses, se chama a ateno para a mltipla condio do crtico enquanto promotor
cultural, pedagogo e estudioso das condies concretas segundo as quais acontecem as obras de
arte (Ernesto de Sousa)8, se lamentam os constrangimentos associados actividade, desde a
invisibilidade da arte no espao pblico ao amadorismo dos textos de crtica (Rui Mrio Gonalves)9 e
se apela a apoios por parte das entidades competentes (FCG, SNBA, SNI, AICA e imprensa)
(Gonalves e Fernando Pernes)10. Este porventura o tema que melhor responde aos objectivos
delineados por Jos-Augusto Frana na abertura dos trabalhos, ao apresentar o Encontro como uma
ocasio para [d]iscutir problemas estticos e tcnicos relativos arte contempornea, as
possibilidades profissionais da crtica de arte em Portugal e chamar a ateno do pblico para um
servio cultural que lhe prestado11. Na realidade, a pragmtica funcional da actividade ocupou
uma parte considervel das sesses e contribuiu sem dvida para a consolidao de uma conscincia
de classe profissional que daria os seus frutos nos anos subsequentes.
O exacerbamento destas questes no deixou de se reflectir nalguma tibieza analtica perante
assuntos exigindo maior flego crtico. Por exemplo, no caso da discusso dos problemas relativos
arte contempornea e, em particular, dos motivos para a falta de reconhecimento no estrangeiro da
arte portuguesa. O debate sobre este assunto, na Mesa Redonda, preferiu concluir acerca da
inconsequncia das realizaes artsticas nacionais no quadro de um (hipottico) desenvolvimento
geral das artes12 e, sobretudo, no se coordenou na definio de causas mais concretas como a
3
Artes plsticas. I Encontro de Crticos de Arte Portugueses, Dirio de Lisboa, 24 Mar. 1967.
Jos-Augusto Frana, Ernesto de Sousa, Rui Mrio Gonalves, Fernando Pernes, A situao da arte em
Portugal, Jornal de Letras e Artes, Lisboa, Maio 1970.
5
Salette Tavares, Algumas questes de crtica de arte e de esttica na sua relao, Colquio Artes, n. 82,
Lisboa, Set. 1989.
6
Ernesto de Sousa, Oralidade, futuro da arte?, Colquio Artes, n. 81, Lisboa, Jun. 1989.
7
Rui Mrio Gonalves, O primeiro Encontro de Crticos de Arte Portugueses, Colquio Artes e Letras, n. 44,
Lisboa, Jun. 1967.
8
Jos-Augusto Frana, Ernesto de Sousa, Rui Mrio Gonalves, Fernando Pernes, A situao da arte em
Portugal [mesa redonda], Jornal de Letras e Artes, Lisboa, Maio 1970.
9
Rui Mrio Gonalves, Funo do crtico em Portugal, A Capital, supl. Literatura & Arte, Lisboa, 22 Out.
1969.
10
Jos-Augusto Frana, Ernesto de Sousa, Rui Mrio Gonalves, Fernando Pernes, A situao da arte em
Portugal [mesa redonda], Jornal de Letras e Artes, Lisboa, Maio 1970.
11
Iniciado o I Encontro de Crticos Portugueses, Jornal de Notcias, Porto, 29 Mar. 1967.
12
Jos-Augusto Frana, Ernesto de Sousa, Rui Mrio Gonalves, Fernando Pernes, A situao da arte em
Portugal [mesa redonda], Jornal de Letras e Artes, Lisboa, Maio 1970.
4
285
inexistncia crnica de massa crtica e de promoo internacional, factores nos quais os prprios
crticos de arte jogam um papel importante. Do mesmo modo, aspectos da comunicao de Rui
Mrio Gonalves, em torno do objectivo comum ao crtico e ao artista de conservar a funo
social da arte e de promover uma crtica da sociedade contempornea atravs do mtuo
interrogar sobre os seus prprios meios e fins13 quedaram-se num mbito demasiado genrico
quanto s perspectivas tericas acerca de um pensamento sobre o regime das imagens (nessa
mesma sociedade contempornea) e o respectivo aparato metodolgico.
Antnio Areal, que h muito investigava sobre o exerccio da crtica, participou da assistncia ao
Encontro e fez uma interveno, seguramente num dos perodos de debate posteriores s
comunicaes14. O texto tem o ttulo oportuno de Funo social da arte e averigua, de forma
impiedosa mas clara, alguns parmetros dessa funo social e tambm da desejvel relao entre a
obra de arte e a crtica. As suas ideias oferecem um contraponto interessante s ideias defendidas no
Encontro, porquanto partem tambm do estatuto profissional reivindicado para a crtica. Para Areal,
com efeito, uma discusso sobre este assunto deve comear por definir as finalidades do prprio
trabalho da crtica. E segue abordando as duas vias possveis:
a crtica tanto escolhe exercer-se no plano do servio da utilidade gregria, como poder
pelo contrrio exercer-se reconhecendo que se for verdadeiramente criadora ter que
encontrar a toda a hora contestados os seus direitos. Isto : se se dedica ao conformismo
esteticista, se adere prtica do bom gosto e do bom senso, se transige com os interesses
sociais que em nada se preocupam com a criao artstica seno ou como factor mundano ou
como propaganda essa crtica acadmica, e os seus direitos so os seus vcios. Pelo
contrrio, a crtica empenhada na vanguarda situar-se- to arriscadamente como os
prprios artistas: ver que a nica maneira de se exercer e de ser responsvel equivale
muitas vezes a ser subterrnea; ter a prova do acerto das suas opes na medida em que se
agravem as suas posies de incompatibilidade com o meio gregrio.15
No tom radical que lhe tpico, Areal s v duas possibilidades para o exerccio da crtica: ou ela se
realiza ao lado das prticas artsticas empenhadas no questionamento das suas prprias estruturas
ideolgicas de elaborao e do meio scio-institucional de que fazem parte, ou ento estabelece-se
como uma espcie de guardi oficial do gosto decorativo. No primeiro caso, trata-se de uma crtica
como moral de combate, ideolgica e por isso autolegitimadora, pois encontra o seu fundamento
na responsabilidade pblica das suas prprias convices; no segundo caso um servio de
utilidade gregria autenticado pelos outros agentes do meio (galeristas, coleccionadores, os
prprios artistas, etc.), num mtuo reconhecimento conforme aquisio de prestgio social.
Os textos que Areal publicou ao longo da sua vida, por entre ensaios, declaraes e manifestos,
reflectem com frequncia ideias similares, questionando os discursos de valor postos em circulao
pelo tecido institucional artstico atravs dos vrios desempenhos expectveis a cada um dos seus
protagonistas e dos resultados prescritivos das respectivas actividades. O desafio constante s
formas de legitimao da arte (a que se tem chamado, cmoda mas redutoramente, crtica
institucional) tambm evidente na sua obra, sobretudo a partir da dcada de 1960. Vejamos
alguns casos.
13
Rui Mrio Gonalves, Funo do crtico em Portugal, A Capital, supl. Literatura & Arte, Lisboa, 22 Out.
1969.
14
Antnio Areal, Sobre a funo da crtica, Textos de crtica e de combate na vanguarda das artes visuais,
Lisboa, ed. do autor, 1970, pp. 138-140. O texto de Antnio Areal est datado de 27 de Maro de 1967, um dia
antes do incio do Encontro, que decorreu entre 28 e 31 de Maro.
15
Antnio Areal, Sobre a funo da crtica, Textos de crtica e de combate na vanguarda das artes visuais,
Lisboa, ed. do autor, 1970, pp. 138-139.
286
Em 1964, Areal realiza as suas primeiras obras tridimensionais. De entre elas, Sem ttulo (1964)
uma pequena caixa em madeira pintada de branco e com crculos concntricos pintados a negro nas
vrias superfcies, nas quais esto colados puxadores, tambm negros, que no abrem para stio
algum. A construo em vez da modelao, as marcas geomtricas em vez dos gestos impulsivos, os
objectos sem funo e, sobretudo, a sugesto de um interior que se nega a revelar-se so alguns dos
aspectos que recusam a obra de arte enquanto expresso de sentimentos ou da sensibilidade. Pelo
contrrio, atravs da sua superfcie incongruente (e, por isso, tambm alheia especificidade
moderna do plano pictrico) que se entende a sua inteno discursiva de crtica no s da prpria
arte como dos comentrios em torno dela.
Em 1967, a srie de pinturas O fantasma de Avignon e a escultura-objecto Contribuies para a
actualizao de Picasso so dos poucos trabalhos de Areal com um contedo narrativo explcito. A
citao, a seriao e as cores esmaltadas planas e puras servem uma inteno iconoclasta que
procura resgatar o modernismo dos seus entusiastas mais acrticos e entend-lo como uma
assombrao que prende a contemporaneidade ao passado e a impede de buscar as formas de
significao mais adequadas ao seu prprio tempo. Note-se que Areal (como Nikias Skapinakis16),
um dos raros autores a ensaiar uma crtica aos discursos plsticos (e sobretudo tericos) gerados
pelas propostas modernistas do incio do sculo XX.
Por sua vez, os objectos-caixas de 1969 so um conjunto de dez caixas de madeira pintada de
cinza-escuro, com uma face em vidro. Todas elas esto vazias, excepo de duas, que contm um
pequeno paraleleppedo coberto com uma pintura abstracta e geomtrica. Alguns dos ttulos destas
caixas so Objecto muito circunstancial, figurando uma caixa na parede da Galeria Quadrante em
Lisboa. Em redor da caixa pode ver-se a galeria (ou seja, o espao onde estas obras foram mostradas
pela primeira vez), ou Paisagem: no primeiro plano uma casa numa colina. Ao fundo, no lado direito,
chove copiosamente, ou ainda Dois estetas bem penteados discutem problemas de tica. A ausncia
de elementos no interior das caixas, a tautologia, o desviar da ateno da obra para o espao onde
ela legitimada, os ttulos evocativos de algo que no est l e a aluso a debates fomentados no
interior da actividade da crtica da arte so algumas das suas caractersticas mais evidentes.
Gradualmente, no seu trabalho, Areal procura um tipo de objectividade que pretende resgatar a
imagem da ordem do indizvel (da sublimao idealista17) e projectar os sentidos da obra para fora
de si mesma, expondo-a como um veculo de comunicao que d legibilidade s condies de
representao visual e ideolgica em curso no meio artstico. Em 1958, Areal publicara um pequeno
livro intitulado Estrutura do sentido antecedida por Anlise e definio da poesia. Apesar de se
centrar na poesia e, concretamente, na palavra, as suas ideias so essenciais para compreender
como, para si, a expresso artstica, mais que uma esttica de contornos transcendentais, um
discurso baseado num esforo de comunicao que emancipa a experincia humana do seu
prprio autor e que tem, por isso, a qualidade de testemunho18.
A crtica que incidiu sobre a obra de Areal pouco ou nada se deteve sobre este universo de ideias
explorado no seu trabalho. Imersa nas suas prprias fragilidades tericas, teve dificuldades em
ultrapassar um mbito de apreciaes circunscrito ao neofigurativismo conceptual de filiao
dadasta e surrealista presente na obra do artista. Vejamos o caso de Rui Mrio Gonalves, o crtico
mais atento obra de Areal: integrou o jri que lhe atribuiu o Prmio Cidade do Funchal (1967)
organizou-lhe duas exposies na Galeria Buchholz (1967 e 1970) e elaborou as primeiras anlises
16
Nikias Skapinakis, Inactualidade da arte moderna, Lisboa, Seara Nova, [1958]. O texto resulta de uma
conferncia apresentada no contexto do 1. Salo de Arte Moderna, na SNBA, em Outubro de 1958.
17
Antnio Areal, Prospeces da historicidade, na defesa da pintura informalista, Textos de crtica e de
combate na vanguarda das artes visuais, Lisboa, ed. do autor, 1970, p. 79.
18
Antnio Santiago Areal, Estrutura do sentido antecedida por Anlise e definio da poesia, Lisboa, ed. do
autor, 1958, pp. 22-23 e 25.
287
sobre o seu trabalho (1969-1970)19. No obstante a sua valorizao das propostas de Areal, os
estudos por si promovidos pouco excedem noes oriundas da psicologia da forma, bem como um
certo existencialismo humanista herdeiro do imediato ps-guerra, e resolve-se num formalismo
simblico atento presena de discos, sis negros, caixas e esferas e sua articulao em
relaes de claro/escuro, orgnico/mecnico ou volume/plano/profundidade.
A inadequao entre as ideias veiculadas pela obra de Areal e a crtica sobre ela produzida tem
paralelo nos argumentos acerca do papel da crtica por parte, respectivamente, do prprio artista e
dos oradores do Encontro. Se Areal apenas vislumbrava eficcia numa crtica subterrnea e
exercida arriscadamente, o que acabaria por comprometer a sua eficcia pblica, os outros
mediavam a possibilidade de sucesso da crtica atravs das premissas antitticas de uma maior
especializao e do alcanar pblicos exteriores ao meio artstico. O cerne da questo,
eventualmente imperceptvel para ambos os lados, implica uma ideia de esfera pblica
indissocivel da formulao e circulao de juzos com uma ressonncia universal ideia essa em
falncia nas sociedades contemporneas, tal como assinala Terry Eagleton na sua obra sobre a
funo da crtica20.
Se, como diz este autor, a vitalidade da esfera pblica enquanto busca comum do juzo
verdadeiro que assegura a continuidade entre as expresses artsticas e a vida social; se tal implica
um exerccio crtico simultaneamente amador (ao alcance de todos) e desinteressado (porque diz
respeito a todos) que incide no apenas sobre o uso social da arte mas tambm sobre o seu grau
de verdade e de beleza abstracta; e se a especializao da crtica, contrri[a] ao discurso do
senso comum, contribuiu a seu modo para o desmantelamento da esfera pblica (que , na sua
origem, uma construo ideolgica dos primeiros tempos do capitalismo) ento no sobra
espao de manobra para exercer a crtica nos moldes em que, ao mesmo tempo que a esfera pblica,
ela foi forjada. Tal a contradio encerrada na disputa latente, no I ECAP, entre os oradores
convidados e Areal.
Entre os primeiros, que no viram o modo como as suas ambies numa pedagogia artstica
generalizada eram coarctadas por uma nfase na especializao que a radicava ao estrito meio
artstico, e o segundo, que defendia a problematizao da experincia artstica ao ponto de obrigar a
arte e a crtica de vanguarda a retrarem-se em si mesmas, parece difcil escolher. No entanto, para
Areal, a arte e a crtica potenciavam o aferir das relaes tecnolgico-materiais e sociopolticas dos
homens com as sociedades em que vivem. Indissociveis uma da outra, funcionavam para ele como
ndulos discursivos de uso social e promotores de sensos comuns por vir. Era a isto que se
referia, em 1958, quando falava das formas de expresso enquanto testemunho cuja finalidade,
podemos enfim afirmar, era contribuir para uma esfera pblica tambm ela por reconstruir.
19
Rui Mrio Gonalves, Desenhos de Antnio Areal (1), A Capital, Lisboa, 19 Nov. 1969; Desenhos de
Antnio Areal (2), A Capital, Lisboa, 26 Nov. 1969; Antnio Areal, Pintura & No, n. 6, separata de
Arquitectura, n. 114, Lisboa, Abr. 1970.
20
Terry Eagleton, The function of criticism [1984], London, Verso, 2005, pp. 69-84.
288
Fig. 1 Antnio Areal, Rui Mrio Gonalves, Manuel de Brito, Rosa Ramalho e Jlia Ramalho fotografados no
Labirinto de Espelhos da Feira Popular, Lisboa, c. 1962-1963. Fotografia: cortesia Galeria 111, Lisboa.
289
Dalton Sala, As Origens Histricas do Acervo do Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, in Acervo
Museu Nacional de Belas Artes Collection Museum of Fine Arts. (So Paulo: Banco Santos, 2002), 20.
2
Anexo C, in Relatrio do ano de 1888 apresentado Assemblia Geral Legislativa na 4a sesso da 20a
legislatura em maio de 1889. (Rio de Janeiro, 1889), 2.
290
Com efeito, cerca de um ano aps o golpe militar que deps o ltimo imperador brasileiro, Dom
Pedro II, foi efetivada, pelo Decreto n. 983, de 8 de novembro de 1890, uma ampla reforma na
Academia do Rio de Janeiro. A instituio foi ento renomeada como Escola Nacional de Belas Artes
(ENBA), e foram renovados, de maneira significativa, o seu quadro de professores e a sua orientao
pedaggica3. A partir da chamada Reforma de 1890, os responsveis pela Escola, tendo frente
artistas-administradores como Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amodo, implementaram, entre
outras aes, esforos visando abrir ao pblico e renovar as colees de obras de arte que a
instituio possua. J em 1891, a publicao de um Catalogo dos Quadros Expostos na Escola
Nacional de Bellas Artes evidenciava que a pinacoteca da instituio adquirira o carter de mostra
pblica, afastando-se do domnio privado do ensino, no qual se mantivera durante boa parte do
Imprio.
Com relao ampliao das colees da ENBA, alguns dos mais bem-sucedidos resultados foram
alcanados por aquilo que Zuzana Paternostro definiu como uma poltica visando ao preenchimento
das lacunas referentes coleo de pintura portuguesa, no que tange aos mestres em plena
atividade naquele tempo4. De fato, em mdio prazo, a Escola passou a contar com obras de pintores
que eram e ainda so dos mais destacados no panorama da arte portuguesa de fins do Oitocentos e
incio do Novecentos, como Antnio Carvalho da Silva Porto, Columbano Bordallo Pinheiro, Jos Jlio
de Souza Pinto, Jos Vital Branco Malhoa, entre outros.
Juntamente com grande parte das demais colees da ENBA, tais obras portuguesas foram
transferidas, em 1937, para o ento fundado Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro
(MNBA). No contexto dessa ltima instituio, o acervo foi analisado por pesquisadoras como a
citada Paternostro e Ecyla Castanheira Brando5, e informaes adicionais podem ser obtidas em
obras monogrficas sobre os artistas portugueses que compunham a pinacoteca da Escola. Com base
nessa bibliografia, em registros atuais do MNBA e, sobretudo, em documentos de poca, possvel
precisar, na maioria dos casos, quando e sob que circunstncias as pinturas portuguesas foram
incorporadas s colees da ENBA.
A primeira aquisio de uma pintura portuguesa moderna6 se deu em 1894, quando da realizao
da primeira Exposio Geral organizada pela ENBA. Tratava-se de Le rendez-vous (Fig. 1), de Souza
Pinto, artista que, no certame, recebeu a 2. medalha de ouro. O portugus fora, na verdade,
convidado a participar da exposio, como revela uma carta da legao brasileira em Paris, de 2 de
agosto de 1894, ao ento vice-diretor da ENBA, Rodolpho Amodo7. Sabemos, ainda, que Le rendezvous figurou no Salon da Socit des Artistes Franais de 1894, tendo merecido, inclusive, uma
reproduo em catlogo ilustrado desse certame. Considerando o convite ao artista e o relativo
prestgio da obra em Paris, presumvel que, antes mesmo de chegar ao Rio, j houvesse interesse
em sua aquisio para compor a pinacoteca da ENBA. Uma indicao expressa para tanto, feita por
Uma discusso da Reforma de 1890 pode ser encontrada em: Camila Dazzi, Por em prtica e Reforma da
antiga Academia: a concepo e a implementao da reforma que instituiu a Escola Nacional de Belas Artes
em 1890. (Tese de Doutorado, PPGAV/UFRJ, 2011).
4
Zuzana Paternostro, A pintura portuguesa no Museu Nacional de Belas Artes: O Incio da Coleo, in O
Grupo do Leo e o Naturalismo portugus. (So Paulo: Pinacoteca do Estado, 1996), 24.
5
Pintura Portuguesa: Acervo do MNBA. 2. ed. rev. e aum. Apres. Alcdio Mafra de Souza. Texto de Ecyla
Castanheira Brando. (Rio de Janeiro, 1990).
6
Na literatura artstica da 1. Repblica brasileira, o termo moderno se define em oposio a antigo, e
designa os artistas ainda em atividade ou recentemente falecidos. Cf., por exemplo, o uso do termo no
Catalogo da Exposio Geral de Bellas-Artes. (Rio de Janeiro: Typographia de J. Villeneuve & C., 1890).
7
Acervo Arquivstico do Museu Dom Joo VI EBA/UFRJ. Notao 6129 Correspondncias Recebidas 1894, 93.
291
Anexo P, Relatorio apresentado ao Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. Antonio
Gonalves Ferreira Ministro de Estado da Justia e Negocios Interiores em abril de 1895. (Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1895), 13.
9
Relatorio apresentado ao Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra Ministro
de Estado da Justia e Negocios Interiores em abril de 1903. (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1903), 225. O
colecionador , provavelmente, Joaquim Augusto da Cunha Porto, comerciante e escritor nascido na cidade do
Porto, em 1827, e falecido no Rio de Janeiro, em 1884.
10
SALDANHA, Nuno. Jos Malhoa: Tradio e Modernidade. (Scribe, 2010), 327.
11
Paternostro, A pintura portuguesa no Museu Nacional de Belas Artes, 25.
12
Acervo Arquivstico do Museu Dom Joo VI EBA/UFRJ. Notao 5107, 2.
13
Idem, 3.
292
At o momento, nos detivemos nas aquisies de obras de arte portuguesas feitas durante a
administrao de Rodolpo Bernardelli, entre 1890 a 1915, e que possuem alguma comprovao
documental. Existem, todavia, outras obras, cujas provenincias so ainda obscuras, como dois
esboos para painis de azulejo (Um acordo e O rompimento), de autoria de Rafael Bordallo Pinheiro,
que, segundo Paternostro, foram doados Pinacoteca da Escola pelo colecionador Cunha Porto em
190214. Alm disso, o interesse pela produo dos artistas portugueses modernos se manteve na
administrao do sucessor de Bernardelli, Joo Baptista da Costa, que foi diretor da Escola entre
1915 e 1926. Uma foto de 1920 (Fig. 4), que mostra parte da pinacoteca da instituio e na qual
Baptista da Costa aparece em frente s Ccegas de Malhoa, parece-nos reveladora da importncia
emblemtica que o acervo portugus ento possua, no contexto mais amplo das colees da Escola.
Acrscimos a esse acervo tambm continuariam a ser feitos. bastante provvel, por exemplo, que
as acima referidas aquarelas de Alfredo e Helena Roque Gameiro tenham sido incorporadas s
colees da ENBA em 1920, por ocasio de uma exposio que ambos fizeram no Gabinete
Portugus de Leitura do Rio de Janeiro. Sabe-se, alm disso, que, em 1926, a Escola recebeu, como
doao, parte da coleo de arte de Lus Fernandes15, na qual a presena de obras de artistas
portugueses de fins do sculo XIX e incio do XX era das mais representativas. Alm de novos quadros
de Columbano e Malhoa e de uma srie de pequenas manchas de Silva Porto, a doao de Lus
Fernandes continha um retrato feito por Adolfo Csar de Medeiros Greno.
Por seu carter fragmentrio, os dados acima elencados demandam o aprofundamento das
pesquisas. No obstante, cremos ser possvel afirmar que, embora o processo de constituio do
acervo de pintura portuguesa da ENBA tenha sido marcado por contingncias e pela confluncia de
mecanismos de aquisio heterogneos, ele revelador da manuteno de um interesse genuno
pela arte portuguesa moderna, por parte dos responsveis pela Escola, nas dcadas iniciais da
Repblica brasileira. Gostaramos de encerrar apresentando, a ttulo de hipteses, trs razes que
parecem estar por trs desse interesse.
A primeira razo relacionar-se-ia com o fato de que, j na passagem para a dcada de 1880,
portugueses e agentes brasileiros fundamentais na implementao da Reforma de 1890
estabeleceram, na Europa, laos de sociabilidade estreitos: isso teria possibilitado que jovens artistas
brasileiros, em seus estgios finais de formao no Velho Mundo, tomassem conhecimento direto da
produo lusitana coeva. A segunda razo diz respeito intensa circulao de artistas portugueses
pelo Rio de Janeiro, a partir dos anos finais do Imprio: esse fenmeno, motivado especialmente
pelo crescimento do mecenato local, teria tornado acessvel, na cidade, um montante significativo de
pinturas portuguesas de qualidade.
A terceira e ltima razo diria respeito relativa consonncia entre a esttica das obras portuguesas
e as orientaes pedaggicas implantadas na ENBA ps-Reforma de 1890. A aquisio de pinturas
portuguesas visaria, nesse sentido, promoo de modelos que, ao menos nos anos posteriores
reforma, eram julgados pertinentes para o desenvolvimento da arte brasileira. Uma anlise, ainda
que no exaustiva, das peas portuguesas adquiridas permite verificar que o principal desses
modelos foi a tendncia que, na historiografia lusitana de arte, se convencionou chamar
Naturalismo, que teria se afirmado em Portugal durante o quartel final do sculo XIX. Parece-nos
significativo que a absoluta maioria dos artistas portugueses cujas obras foram adquiridas pela ENBA
tenham participado, nos anos 1880, das Exposies de Quadros Modernos renomeadas, a partir de
1885, Exposies de Arte Moderna , promovidas pelo Grupo do Leo.
14
293
De fato, existem pontos de convergncia entre a esttica e intenes reconhecveis na fortuna crtica
dos chamados naturalistas portugueses e as orientaes pedaggicas que passaram a vigorar na
ENBA aps a Reforma de 1890. Embora no possamos, dentro dos presentes limites, aprofundar a
discusso desses pontos, gostaramos de, ao menos, indicar dois deles, que se deixam entrever, por
exemplo, no relatrio de Rodolpho Bernardelli ao Ministro da Instruo Pblica, Correios e
Telgrafos, em maio de 189116: (1) a exigncia de um compromisso moral com uma expresso da
Verdade da Natureza, vista e sentida atravs de temperamento individual do artista; (2) a exigncia
complementar de uma negao de quaisquer preconceitos estticos de beleza ou convenes
acadmicas, tanto na escolha de temas, quanto de tratamento pictrico. Em boa medida, as obras
dos naturalistas portugueses parecem afinadas com essa orientao esttica, propugnada pelo
ento diretor da ENBA. Especialmente por sua suposta capacidade de capturar o caracterstico dos
aspectos naturais e dos costumes humanos, tal orientao parecia apta a atender demandas
reiteradamente colocadas no campo artstico brasileiro, s voltas com a questo da constituio de
identidades visuais regionais e nacionais, cuja soluo usualmente resvalava no registro de paisagens
locais e de modos de vida rurais.
guisa de concluso: os tpicos que apresentamos parecem sustentar a hiptese de que, na
constituio do acervo de pintura portuguesa da ENBA, interveio, para alm das contingncias, um
desgnio deliberado. Embora a comprovao de tal hiptese demande o ulterior aprofundamento
das pesquisas, desde j parece possvel afirmar que a constituio desse acervo um objeto
privilegiado para a compreenso no s dos intercmbios artsticos estabelecidos entre Brasil e
Portugal, como tambm, de modo mais amplo, para uma tomada de conscincia das maneiras pelas
quais os modelos estticos europeus foram, na poca, recalibrados pelos valores do campo artstico
do Rio de Janeiro.
16
Anexo H, Relatorio do director da Escola Nacional de Bellas Artes, in Relatorio apresentado ao Presidente
da Republica dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. Joo Barbalho Ucha Cavalcanti Ministro de Estado dos
Negocios da Instruo Publica, Correios e Telegraphos em maio de 1891. (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1891).
294
295
Fig. 4 Aspecto da Pinacoteca da Escola Nacional de Belas Artes em 1920. Em primeiro plano est o ento
diretor, Joo Baptista da Costa; ao fundo pode-se identificar obras de artistas portugueses, como Ccegas
(1904), de Jos Malhoa, e Azinhaga em Benfica (1896), de Jos Velloso Salgado. Fonte: Adalberto Mattos, Uma
Visita Escola de Bellas Artes, Illustrao Brazileira, Rio de Janeiro, novembro, 1920, n/p.
296
297
298
In COUTO, Joo, My Fair Lady, in Ocidente, vol. LXVIII, n. 324, Abril, 1965, pp. 203-204.
Segundo referncia do seu neto, Carlos Couto S.C. (Sequeira Costa), Lisboa, 2011.
3
Neste perodo, Joo Couto trabalha fundamentalmente com as coleces de ourivesaria e de cermica,
aprende o manuseamento das obras e o trabalho de inventrio com AAG e o trabalho de campo com Verglio
Correia; doutro lado colabora e auxilia nas conferncias realizadas no museu pelos professores especializados
3
nas belas-artes, como Joaquim Teixeira de Carvalho , e frequenta inmeras tertlias no museu, na Escola Livre
das Artes do Desenho (onde Mestre AAG) e na Farmcia Rodrigues da Silva, de seu tio paterno, privando
assim com o meio intelectual conimbricense de ento.
4
COUTO, Joo, Residncia dos Patudos, in Ocidente, vol. LXVIII, n. 326, Junho, 1965, pp. 318-319.
5
Joo Couto, embora inscrito nas Conferncias de Madrid, constando da lista de participantes do posterior
tratado Musographie Architecture et amnagement des muses dart Confrence International dtudes
2
299
Madrid 1934, 2 vols., Madrid, Socit des Nations/Office International des Muses/Institut International de
Coopration Intellectuelle, 1935, vol. 2, p. 524), no chegou a comparecer nestas conferncias, conforme
refere Sofia Lapa, na sua comunicao Como se forma uma museloga? Contributos para o estudo de Maria
Jos de Mendona (Museu Nacional de Arte Antiga, 1933-1938, ao IV Congresso Internacional de Histria da
Arte Portuguesa, APHA, Lisboa: FCG, 21 Novembro 2012, CD, pp. 216-223, nota 8.
6
COUTO, Joo, Justificao do Arranjo de um Museu, in Boletim do Museu Nacional de Arte Antiga, vol. II,
fasc. 1, Janeiro-Dezembro 1948, Lisboa, ed. 1950, pp. 1-21.
7
COUTO, Joo, Uma Cadeira de Histria da Arte nos Liceus (Tese apresentada Escola Superior Normal de
Coimbra), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1921.
8
Ver nota 3.
9
COUTO, Joo, O professor Antnio Augusto Gonalves Fundador do Museu Machado Castro, in Antnio A.
Gonalves, Homenagem do Instituto de Coimbra, Coimbra, Coimbra Editora, 1946, pp. 49-59.
10
COUTO, Joo, A tcnica nas obras lavradas em ouro e prata, in Lngua Portuguesa, Lisboa, [s.n.], 1935;
. A contribuio das Oficinas na preparao do pessoal superior dos Museus da Arte, in Indstria
Portuguesa, rgo da Associao Industrial Portuguesa, ano 12, n. 139, Setembro, Lisboa, 1939, pp. 13-14;
. A aco dos Fsicos e dos Qumicos nos laboratrios dos Museus de Arte, in Gazeta de Fsica, vol. I, fasc.
6, Janeiro, Lisboa, 1948, pp. 161-167.
300
Contudo, de salientar tambm desde j que, por outro lado, embora durante esse perodo e meio
absorva os princpios museolgicos oitocentistas, a sua percepo do papel dos museus na educao
difere da de AAG, sendo j inovadora, como se infere das suas primeira publicaes, com manifesto
interesse pela Educao pela Arte, o que por sua vez influenciar a sua perspectiva da formao do
pessoal dos museus para a educao.11
Como j dito, desde os anos 1930, no MNAA, caber a Joo Couto a responsabilidade de orientar os
estgios de conservadores de museus, que tm o seu enquadramento jurdico na Lei n. 20.110,
Dirio do Governo, I Srie, n. 10, de 12 de Janeiro de 1933, do Ministrio da Instruo Pblica, que
regulamenta o estgio que os conservadores dos museus so obrigados a fazer no Museu Nacional
de Arte Antiga.12
Estes estgios decorriam em trs anos, no MNAA, com obrigao de relatrio(s) anual(ais) e
apresentao de tese final, posto o que, obtida a respectiva aprovao, os estagirios eram
nomeados conservadores-adjuntos do museu, com publicao no Dirio de Governo. So disto
exemplo os estgios dos conservadores tirocinantes Manuel Cayolla Zagallo, Augusto Cardoso Pinto e
Carlos Manuel da Silva Lopes (1932/3-34/35).13 Durante o tempo do estgio os candidatos
desenvolviam a prtica do trabalho de inventrio e estudo das coleces, e outros trabalhos
museogrficos quando solicitados, nomeadamente a orientao de visitas a grupos escolares ou
outros ao museu, enquanto a parte terica do estgio era provida pelos conservadores efectivos da
casa14.
Posteriormente, a Lei n. 39.116, Dirio do Governo, I Srie, n. 38 de 27 de Fevereiro de 1953, j do
Ministrio da Educao Nacional, reorganiza o estgio de preparao para ingresso nos lugares de
conservador dos museus e dos palcios e monumentos nacionais [], e desde essa data Joo Couto,
director do MNAA at 1962, assume as funes de Presidente do Conselho do Estgio para
Conservadores dos Museus, Palcios e Monumentos Nacionais.15
11
COSTA, M. Madalena G.F. Cardoso da, Museus e Educao no perodo do Estado Novo: o papel de Joo
Couto (1928-1968), in IDEARTE Revista de Teorias e Cincias da Arte, ano VII, vol. 7, Lisboa, 2011, pp. 21-22
(5-34): http://www.idearte.org/idearte-revista-de-teorias-e-ciencias-da-arte-ano-vii-vol-7-2011/ 26.11.2011:
11:30.
12
Esta lei veio articular-se com a Lei n. 20.985, de 7 de Maro de 1932, pela qual criado o curso preparatrio
dos conservadores dos Museus, dos Palcios e Monumentos Nacionais (COUTO, Joo, Conversas sobre
Museologia 2, in Ocidente, vol. LXV, n. 307, Novembro, 1963, p. 260; . Recenso bibliogrfica: elenco das
dissertaes dos conservadores estagirios dos Museus, in Ocidente, vol. LXV, n. 304, Agosto, 1963, pp. 101103).
13
A ttulo de exemplo, Manuel Carlos Almeida Cayolla Zagallo apresenta a tese em 1938, Augusto Cardoso
Pinto apresenta a tese a 21 de Maro de 1938 e nomeado conservador-adjunto a 25 de Maro de 1938,
Dirio do Govrno n. 73, 2. Srie, de 3 de Maro 1938, e Carlos Manuel da Silva Lopes apresenta a tese a 23
de Setembro de 1937, com a qualificao de Bom nomeado conservador-adjunto em 7 de Janeiro de 1938,
Dirio do Govrno n. 11, 2. Srie, de 14 de Janeiro de 1938 (Arquivo do MNAA: dossiers de estgio dos
conservadores referidos).
14
Tal dito explicitamente por Augusto Cardoso Pinto, no seu relatrio do 3. ano de estgio, de 1934/35,
onde feztrabalhos prticos [,] o de inventrio e descrio das obras de arte e outros servios museogrficos []
recebendo ao mesmo tempo um ensino terico que seria ministrado pelos snrs conservadores efectivos. Nesta
conformidade foram destinados dois dias por semana, as teras e quintas feiras, para reunies com os Snrs
Conservadores efectuarem palestras sobre os ramos das Belas-Artes a cujo estudo especialmente se dedicam.
Neste caso tratou-se de Lus Keil, para a cermica, as tapearias e os tecidos, e de Joo Couto para a pintura
portuguesa, em especial do sculo XVI, a produo e reparao da mesma, e a ourivesaria portuguesa.
Arquivo MNAA/Reservados do MNAA: dossier do estgio de Augusto Cardoso Pinto.
15
COUTO, Joo, Estgio de Preparao dos Conservadores dos Museus, Palcios e Monumentos Nacionais
comunicao ao I Congresso Nacional de Arqueologia, Dezembro de 1958, in Actas I Congresso Nacional de
Arqueologia, vol. II, Lisboa, 1970. Sobre os princpios orientadores deste estgio nesta lei, Joo Couto no
concorda inteiramente com eles, e prope-lhe alteraes na seco de Museologia do 1. Congresso Nacional
301
Em 1963, publica o elenco das teses dos conservadores de 1937 a 1962 na revista Ocidente, nas suas
Crnicas Artes Plsticas, num total de trinta dissertaes daqueles que orientou, muitos dos quais
viro a ser seus discpulos, e faz Recenses Crticas de diversos trabalhos publicados por estes
ltimos.16
Nos estgios e nos cursos dos conservadores no MNAA, Joo Couto tem como suporte terico da
histria e disciplina museolgica, da cadeira de Museologia que ministra 17, desde logo o esplio da
biblioteca do museu, constitudo por referncias dos autores franceses, do legado de Jos de
Figueiredo, mas tambm anglo-saxes, que Joo Couto segue de perto, como j referido,
nomeadamente dos Estados Unidos da Amrica (EUA), como Lawrence Coleman, ou o Boletim do
Museu Metropolitano de Nova Iorque para a educao (Fig. 2). Com influncia e formao dos seus
mestres, de AAG a Jos de Figueiredo, como j dito, no avano da bibliografia de museologia, na
portuguesa seguir tambm Mrio Gonalves Viana18. No domnio da museografia so no entanto
ainda, em primeiro lugar, os resultados das Conferncias de Madrid, publicados no tratado
Musographie, de 193519, os princpios orientadores dos estgios e cursos, nos campos da
inventariao das coleces, do inventrio fotogrfico do museu, que vir a ter projeco
internacional, do acondicionamento das reservas, da iluminao e da climatizao, do restauro, das
exposies temporrias e da investigao cientfica. Mais tarde ser o International Council of
Museums (ICOM), sucessor do OIM, criado no ps-guerra, em 1948, que, atravs do seu peridico, a
revista Museum, ditar o que de mais recente se far nos domnios referidos.
No plano terico ainda, a formao dos conservadores dos museus ento complementada com as
conferncias de historiadores e especialistas decorridas no MNAA, e j nos anos 60 de 1900, com os
cursos de Histria da Arte na Fundao Calouste Gulbenkian (FCG), leccionados por conservadores
diplomados como Mrio Tavares Chic, Flrido de Vasconcelos e o prprio Joo Couto, ou Artur
Nobre de Gusmo20, e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, por Mrio Tavares Chic21.
Alm do que ficou exposto, um outro meio auxiliar tornou-se o suporte fundamental das aulas dos
cursos de conservadores dos museus: o arquivo museolgico criado por Joo Couto no MNAA, nos
anos 50 do sculo passado (Fig. 3), do qual ainda hoje existem vestgios. Segundo Belarmina Ribeiro,
bolseira do Instituto para a Alta Cultura (IAC) e responsvel directa pela sua organizao, o arquivo
museolgico do MNAA constituiu ento e depois uma novidade nica no mundo, reunindo
documentao de um extensssimo nmero de museus, sobre exposio, iluminao, reservas,
arquitectura, acervos, educao, inventrios, etc., das mais diversas cidades e pases, dos cinco
continentes e teve funes muito concretas. Por um lado, impulsionou a permuta das fotografias dos
de Arqueologia, baseando-se na larga experincia que tinha adquirido; no entanto, mais tarde (anos 60), o
prprio refere que ao reler esse trabalho, diz que o mesmo j no corresponde ao seu pensamento sobre esta
questo; o que entende que os conservadores devem de preferncia ser escolhidos entre pessoas que
conhecem de longa data algumas das seces que os Museus comportam, e que um conservador tem de ser
um erudito e um prtico, in COUTO, Joo, Conversas de Museologia (2), in Ocidente, op. cit., pp. 260-262.
16
COUTO, Joo, Recenses Bibliogrficas: elenco das dissertaes dos conservadores estagirios dos Museus,
in Ocidente, op. cit., pp. 101-103; Recenses Bibliogrficas, in Ocidente, vol. LXV, n. 305, Setembro, Lisboa,
1963, p. 153.
17
COUTO, Joo, Conversas de Museologia, in Ocidente, vol. XIV, n. 306, Outubro, 1963, p. 197.
18
VIANA, Mrio Gonalves, Elementos de Museologia Museologia Geral / Museologia aplicada, [s.n.], Lisboa,
1953.
19
Musographie Architecture et amnagement des muses dart Confrence International dtudes
Madrid 1934, op. cit.
20
COUTO, Joo, Conferncias no Museu de Arte Antiga. As conferncias do Prof. Jirmounsky, in Ocidente, vol.
LXV, n. 303, Julho, 1963, pp. 48-49; . Curso de Histria de Arte da Fundao Calouste Gulbenkian, in
Ocidente, vol. LXV, n. 303, Julho, 1963, p. 46.
21
disto testemunho Abel Flrido Montenegro, director do Museu de Lamego durante trinta e seis anos, hoje
conservador de Museu aposentado, que o frequentou (Lamego, 2011).
302
museus, nos domnios indicados, entre museus nacionais e estrangeiros; por outro, procurou dar
resposta a especialistas e investigadores de todo o mundo; e, finalmente, para o tema que aqui se
trata, tornou-se no grande suporte exemplificativo das aulas de Joo Couto aos cursos de
conservadores dos museus, palcios e monumentos nacionais, mormente na diferente tipologia de
museus e natureza das suas coleces.22 Deste perodo, data a maioria das suas publicaes de
projeco internacional, designadamente na rea da conservao e restauro da pintura, mas
tambm sobre o MNAA, de que se destaca o texto publicado na revista Museum do ICOM. 23 Joo
Couto escreve ainda sobre a natureza do arquivo museolgico, que noticia como uma novidade, na
newsletter avant-la-lettre do ICOM, o Icomnews.24
Neste contexto e no da abrangncia do conceito de museu em Joo Couto, de salientar aqui que a
frequncia dos cursos de conservadores dos museus, palcios e monumentos nacionais, constituda
de incio pelos conservadores dependentes da tutela nacional, foi sendo alargada a conservadores de
outros museus de Lisboa e do pas, de tutelas pblicas e privadas, de fundaes, da Igreja, e a
museus de diferente natureza de coleces, ou acervo, designadamente na rea das cincias, para a
qual Joo Couto reconhece no ter a preparao adequada.25 Contudo, neste contexto ainda, ser
pertinente referir a realizao da 19. exposio temporria do MNAA, Museus de Lisboa, em 1958,
concebida por Maria Jos de Mendona, discpula de Joo Couto, sob influncia j do ICOM, mas por
aquele concretizada, que contou com a apresentao de Museus de Arte e de Histria, de
Arqueologia, Museu dos CTT, Museu Militar, Museus e Laboratrios Mineralgico, Geolgico e do
Jardim Botnico de Lisboa, para dar apenas alguns exemplos.26
Alm da formao do pessoal superior dos museus, deve-se a Joo Couto, que cria o primeiro
servio de extenso escolar no MNAA, em 1928-30, a formao da categoria profissional dos
monitores nos museus portugueses, constituda pelo pessoal dedicado ao trabalho de educao
nos museus, seguindo o modelo dos EUA, j dos anos 20 de 1900. Na formao dos monitores
realizada no MNAA, a quem o Dr. Couto dedica reunies de formao um dia por semana (2. feira),
e faz palestras complementares, e na organizao do servio de educao dos museus, o MNAA
torna-se Casa-me e modelo no panorama museolgico nacional.27
No plano da formao intelectual e profissional, no pode deixar de ser aqui ainda referido que, em
1953, Joo Couto, vogal da direco do IAC desde 1942, cria o Centro de Estudos de Arte e
Museologia, anexo ao MNAA, dependente daquele instituto. A criao do CEAM particularmente
significativa na evoluo da museologia portuguesa e na importncia que esta assume com ele,
director do MNAA e j muselogo de referncia, pelo facto de ter a sua sede no primeiro museu
nacional, e por estar dependente do IAC, a entidade cultural e cientfica vocacionada para as relaes
22
Arquivo do MNAA/Arquivo Dr. Joo Couto IAC: Dossier da bolseira Belarmina Ribeiro; RIBEIRO, Belarmina
A. Ferreira, O Arquivo Museolgico sua fundao e histria, in Boletim do Museu Nacional de Arte Antiga,
vol. IV, fasc. 3, Janeiro a Dezembro de 1960, Lisboa, 1962, pp. 29-31.
23
COUTO, Joo, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisbonne / Museu Nacional de Arte Antiga, Lisbon, in
Museum, vol. V, n. 2, Paris, ICOM/Unesco, 1952, pp. 141-142.
24
ICOMNews, vol. 10, n. 1, Paris, ICOM/Unesco, 1957, p. 9.
25
Joo Couto diz mesmo para os quais ter menos possibilidades de adiantar conceitos e apresentar exemplos
das matrias [apresentadas nas lies do curso, do inventrio iluminao ou ventilao] referentes aos
museus impropriamente chamados de cincia. E o que prope aos conservadores destas reas que
frequentam os cursos a leitura de bibliografia da especialidade, sobretudo estrangeira, a qual indica
extensivamente, e as visitas de trabalho aos museus em questo. (COUTO, Joo, Curso de Museologia III, in
Ocidente, vol. LXVIII, n. 322, Maro, 1965, pp. 161-163).
26
COUTO, Joo, Apresentao, in [19.] Exposio Temporria Museus de Lisboa, Lisboa, Museu Nacional
de Arte Antiga, 1958, pp. 3-5.
27
COSTA, Madalena Cardoso da, op. cit., 2011; COUTO, Joo, Monitores para o Servio de Extenso Escolar,
in Ocidente, vol. LXIII, n. 295, Novembro, 1962, pp. 269-270; . Palestras num Curso de Monitoras, in
Ocidente, vol. LXVI, n. 311, Maro, 1964, pp. 150-152.
303
externas de mbito universitrio e cultural, durante o perodo do Estado Novo. Sero inmeros os
bolseiros do IAC, dedicados a diferentes reas de trabalho no MNAA, com viagens de estudo ao
estrangeiro, e apresentao de relatrios publicados pelo CEAM.28 Ser tambm neste contexto, e
como delegado do Governo, que Joo Couto representar o pas, desde o final dos anos 40, em
viagens de estudo, dando conferncias e na superviso de leitorados, em Leiden, Bruxelas e Londres,
em Paris, onde participa na I Conferncia Geral do ICOM, em 1948, e em Roma na comisso do ICOM
para o restauro das obras de arte, nos anos 50.
O legado de Joo Couto na formao do pessoal dos museus vs. na museologia portuguesa do sculo
XX, com aspectos de continuidade e de ruptura, de inovao e de restries, com crticas e
propostas, disciplinarmente diversificado, intelectual, cientfica e humanamente amplo, e
geogrfica e cronologicamente extenso, pelo que procurar sintetiz-lo aqui seria quase uma
pretenso. Todavia, para concluir, enunciam-se quatro planos directamente relacionados com o
tema que aqui se trouxe, em que o mesmo se traduziu, a saber: o seu discipulado, a realizao das
reunies dos conservadores dos museus, palcios e monumentos nacionais, a expresso legislativa
coeva, e a referncia sua obra publicada.
Dos cursos de conservadores dos museus saem diplomados os seus inmeros discpulos, nos
domnios da conservao, da educao e da direco dos museus, dos anos 30 aos anos 60, e aqueles
que desempenharo essas mesmas funes nos museus portugueses at aos anos 70 e 80 de 1900. 29
As reunies dos conservadores dos museus, palcios e monumentos nacionais, promovidas por
Joo Couto, que decorreram de 1960 a 1965, com a sua presena at 1964 (Fig.4), consistiram em
reunies anuais entre profissionais, para apresentao de trabalhos no mbito do tema museolgico
de cada encontro, discusso e reflexo, sendo representativas do associativismo profissional, com
particular relevo no contexto sociopoltico do Estado Novo, estando na origem da Associao
Portuguesa de Museologia, criada em 1967. 30
Na legislao da museologia nacional, refere-se aqui o Decreto-Lei n. 46.758, Dirio do Governo n.
286, de 18 de Dezembro de 1965, que, embora no tenha j sido redigido por Joo Couto, mas por
discpulos ou conservadores da sua formao, foi escrito sobre o seu pensamento. Neste documento
destaca-se a sua extensa introduo acerca do papel dos museus na sociedade, numa viso
cabalmente moderna do sculo XX, a formalizao da profissionalizao do pessoal superior dos
museus31 e a institucionalizao do Laboratrio Jos de Figueiredo.
28
Belarmina Ribeiro, j referida, que organiza o arquivo museolgico, Maria Alice Beaumont, que estuda a
coleco de desenho e gravura do MNAA e a responsvel pelo Gabinete de Estampas e Desenhos, Madalena
Cabral e Maria Helena Sensfelt, Adriano de Gusmo, com viagens de estudo e trabalho sobretudo no domnio
da educao nos museus, Glria Guerreiro, Armando Vieira Santos e Manuel Rio-Carvalho, entre muitos outros,
dos quais o Centro publica os seus trabalhos (Arquivo do MNAA/Arquivo do Dr. Joo Couto: Dossiers dos
bolseiros do IAC).
29
A ttulo de exemplo, so alguns dos seus colaboradores e discpulos os seguintes: Augusto Cardoso Pinto
(director do Museu dos Coches), Maria Jos de Mendona (directora do Museu dos Coches, do Museu da FCG e
do MNAA), Abel de Moura, Antnio Manuel Gonalves (director do Museu de Aveiro), Manuel Estevans
(Biblioteca Nacional), Maria Alice Beaumont (directora do Museu-Biblioteca dos Condes de Castro Guimares),
Glria Firmino (Museu da Cidade), Glria Guerreiro (Museu dos CTT), Maria Teresa Gomes Ferreira (FCG), entre
outros(as).
30
As reunies de conservadores dos museus, palcios e monumentos nacionais realizaram-se em 1960 no
Museu Gro Vasco, Viseu, em 1961 no MNAA, Lisboa, em 1962 no Museu Nacional Soares dos Reis (MNSR),
Porto, em 1963 no Museu Machado de Castro (MMC), Coimbra, em 1964 no Museu de Aveiro, Aveiro, tendo
sido esta a ltima reunio a que Joo Couto assiste e qual preside. Seguidamente, realizou-se ainda uma
reunio em 1965, no Museu Alberto Sampaio, em Guimares.
31
A categoria profissional dos monitores dos museus efectivamente s regulamentada mais tarde, na
carreira tcnico-profissional, pelo Decreto-Lei n. 45/80 de 20 de Maro, Dirio da Repblica,1. Srie, n. 67 de
304
Finalmente, muito embora Joo Couto no deixe escrita nenhuma smula terica, em jeito de
tratado de museologia, a sua obra publicada durante cinquenta anos (1921-1971) s por si seria
significativa. Desde 1921, defende o pensamento da sua primeira rea de aco e sempre constante,
a Educao pela Arte e o seu papel nos museus; nos anos 40 defende no II Congresso
Transmontano a formao do pessoal superior dos museus32; nos anos 50 escreve sobre os
fundamentos para a histria dos museus em Portugal, e apresenta o trabalho realizado pelo CEAM
no mbito do Servio de Educao Artstica do IAC que preconiza33; e nos anos 60, na revista
Ocidente, expe de forma quase sistemtica o seu pensamento sobre as questes museolgicas
subjacentes a esta formao, em Conversas sobre Museologia (1) a (8), e em Um Curso de
Museologia e Curso(s) de Museologia II e III34; por ltimo, deixa uma abordagem da museologia
em Portugal, tema da sua comunicao V Reunio dos Conservadores e a ltima a que assiste e que
preside, realizada no Museu de Aveiro, em 1964, publicada ainda no Boletim do MNAA, de 1966.35
Por tudo quanto ficou dito, sob a direco de Joo Couto, o MNAA mostrou ser uma ampla escola
de formao, no panorama museolgico portugus da segunda metade do sculo XX. Maria Joo
Baptista Neto di-lo, doutro modo:
Joo Couto [] era o responsvel pelo Estgio para Conservadores de Museus, Palcios e
Monumentos Nacionais, no Museu das Janelas Verdes. Deve-se-lhe a criao do laboratrio
de investigao cientfica para o exame das obras de arte e a transformao do Museu
Nacional de Arte Antiga num instituto de arte portuguesa, onde se formou uma gerao de
peritos e defensores do patrimnio artstico nacional.36
Sendo o primeiro museu nacional, designado Museu Normal, o MNAA lidera assim a evoluo da
museologia nacional neste perodo (Fig. 5). 37
1980, que [r]eestrutura os servios e os quadros de pessoal dos museus dependentes da Direco-Geral do
Patrimnio Cultural (pp. 493-501).
32
COUTO, Joo, Congressos e Conferncias do Pessoal Superior dos Museus de Arte (Tese apresentada ao II
Congresso Transmontano, Lisboa, [s.n.], 1941.
33
COUTO, Joo, As Exposies de Arte e a Museologia, Lisboa, [s.n.], 1950; Servio de Educao Artstica,
Lisboa, Instituto para a Alta Cultura, 1951.
34
COUTO, Joo, Conversas acerca de Museologia (1 a 8), in Ocidente (vol. LXV, n. 306, Outubro; vol. LXVI, n.
313, Maio), 1963-1964; . Um curso sobre Museologia, in Ocidente, vol. LXVIII, n. 321, Janeiro, 1965, pp.
51-56; . Curso de Museologia (II), in Ocidente, vol. LXVIII, n. 322, Fevereiro, 1965, pp. 101-104 e . Curso
de Museologia (III), in Ocidente, op. cit., pp. 162-169.
35
COUTO, Joo, Aspectos do Problema Museolgico Portugus (comunicao apresentada V Reunio dos
Conservadores dos Museus e dos Palcios e Monumentos Nacionais, Outubro de 1964, no Museu de Aveiro),
in Boletim do Museu Nacional de Arte Antiga, vol. V, n. 2 (1963/64), Lisboa, 1966, pp. 3-5. Este tema e ttulo
fora j objecto de uma nota de Joo Couto, no n. 296, de Dezembro de 1962, da revista Ocidente, conforme
refere neste texto posterior publicado no Boletim do MNAA, na p. 3.
36
NETO, Maria Joo Baptista, Memria, propaganda e poder: o restauro dos monumentos nacionais, 19291960 (Dissertao de doutoramento em Histria da Arte, apresentado Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa, 1996), Porto, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 2001, Cap. 2, (O ensino da
Histria da Arte e a produo historiogrfica nacional, pp. 182-189), p. 184, com notas 125-126.
37
GOUVEIA, Henrique Coutinho, A Evoluo dos Museus Nacionais Portugueses: Tentativa de Caracterizao.
Lisboa: IPPC/FCSH-UNL, 1993, p. 183.
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311
2. Enquadramento
A criao de um curso de Estgio de Conservador de Museus, em Portugal, no incio da dcada de
1930, deve ser enquadrada no contexto museolgico internacional, o qual, sobretudo a partir dos
meados da dcada anterior, vinha sendo organizado em rede e conhecendo uma especializao
profissional crescente frutos da discusso alargada das boas prticas e da partilha de competncias
especficas. Desde os finais do sculo XIX que a prtica do associativismo profissional marcava o meio
museolgico anglo-saxnico (Bather 1929; [no assinado] 1929). Foi, porm, Paris, a cidade que at
ao eclodir da II Guerra Mundial constituiu a plataforma internacional de referncia para a museologia
praticada nos principais museus da Europa continental. A este meio estava tambm ligado Jos de
* Em conformidade com as normas de edio destas atas, na presente verso do texto apresentado ao CHAPAPHA sintetizaram-se e omitiram-se vrias notas da verso original disponvel no CD do congresso e em
academia.edu
https://www.academia.edu/2311215/Como_se_forma_uma_muse%C3%B3loga_Contributos_para_o_estudo_
de_Maria_Jos%C3%A9_de_Mendon%C3%A7a_Museu_Nacional_de_Arte_Antiga_1933-1938_
1
Maria Jos de Mendona deu por finda a sua colaborao direta com a Fundao Calouste Gulbenkian (FCG)
em agosto de 1960, a transferncia da coleo ficou concluda no final desse ano. (Fundao Calouste
Gulbenkian 1960: 7).
312
Figueiredo (1871-1937), diretor do Museu das Janelas Verdes, entre 1911 e 1937. Acompanhando o
que de mais atual era debatido relativamente museologia e histria da arte, Figueiredo introduziu
uma nova montagem expositiva nas salas de pintura e de artes decorativas do MNAA; programou um
novo edifcio para o MNAA; adquiriu para a biblioteca deste museu, e reuniu na sua biblioteca
pessoal a qual, por testamento, legaria ao MNAA , um grande nmero de publicaes na rea da
histria da arte e dos museus de arte.2 Foi investigador e grande divulgador da pintura portuguesa
dos sculos XV e XVI quer em congressos e em publicaes quer atravs de exposies,
apresentadas em Portugal3 e no estrangeiro4 devendo-lhe ns, ao seu trabalho em parceria com o
pintor restaurador Luciano Freire, a primeira campanha exaustiva de preservao desse corpus,
essencialmente museolgico. Ainda na rea da programao de exposies fora de Portugal,
Figueiredo participou nos circuitos internacionais de circulao de obras de arte antiga, cedendo
temporariamente peas fundamentais da coleo do MNAA.5 Em novembro de 1934, esteve em
Madrid, acompanhado pelo arquiteto Guilherme Rebelo de Andrade6, na magna reunio do Office
International des Muses, participando com outros diretores, conservadores, arquitetos, e demais
especialistas, na reflexo sobre o conjunto de temas ento considerados axiais na problematizao
da museografia de museus de arte. 7
Figueiredo teve uma responsabilidade direta na autoria do texto dos diplomas que constituram o
primeiro enquadramento legal para a formao de conservadores de museus em Portugal. Fora
responsvel pelo texto do regulamento do MNAA (publicado em 1916), no qual, relativamente
exigncia do processo de candidatura8 e s competncias pedidas a um conservador do MNAA9, se
anunciava o essencial do que veio a ser estipulado em relao ao estgio para conservadores
tirocinantes de museus criado pelo Decreto-Lei n. 20.985, de 7 de maro de 1932, e
regulamentado pelo Decreto-Lei n. 20.110, de 12 de janeiro de 1933, decretos de que Figueiredo foi
signatrio10. Ao ser legalmente regulamentado, o processo de formao dos conservadores de
2
A biblioteca era considerada uma rea essencial vida do museu. O Art. 10. do regulamento do MNAA
(1916) previa que um dos conservadores, para esse efeito designado pelo Diretor, [tivesse] especialmente a
seu cargo a biblioteca do Museu. Regulamento do Museu Nacional de Arte Antiga, Suplemento do D.G., n.
51, 1. Srie, de 16 de maro de 1916 retificado no D.G., n. 71, 1. Srie, de 12 de abril de1916.
3
Pontes 1999: vol. 1, 111-120.
4
Destacamos, no museu Jeu de Pomme, em 1931: Exposition Portugaise de lpoque des Grandes Dcouvertes
jusquau XXme.
5
Joo Couto, no seu longo artigo de homenagem a Figueiredo, refere oito exposies internacionais ocorridas
durante a dcada de 1930, em que figuraram obras do MNAA. (Couto 1938; Pontes 1999: vol. 1, 111-120).
6
Vd.: Memria descritiva e justificativa do projecto do Muzeu Nacional de Arte Antiga, In Manaas 1991: vol. 2,
Doc. 14, p. 8.
7
Embora o nome de Joo Couto conste da lista dos 50 membros inscritos (Vd.: Office International des Muses
1935: vol. 2, pp. 524-526) sabemos que no participou nesta magna reunio. Vd.: MNAA, Arquivo, Arquivo de
Secretaria: Correspondncia remetida. janeiro a dezembro 1934, (processo n. 13/57, 5., 1077): Ofcio dirigido
por Jos de Figueiredo DGESBA, 1934, 12 de maro, 1 pg. datilografada.
8
Segundo este regulamento, os candidatos a conservadores do MNAA tinham de realizar um exame pblico,
avaliado por um jri. Aceites os candidatos, estes teriam que estagiar, como conservadores adjuntos, por um
perodo de dois anos, aps o que, mediante avaliao, poderiam passar a conservadores efetivos do MNAA
(Regulamento do Museu Nacional de Arte Antiga, 1916).
9
Captulo IV Conservador de Museu, Art. 11., Regulamento do Museu Nacional de Arte Antiga, 1916.
10
Teresa Pontes divulgou uma carta de Figueiredo, datada de 28.01.1933, na qual o diretor do MNAA,
referindo-se ao Art. 4. do D.L. 22.527, lembra a sua tutela de que: A criao sucessiva de museus regionais e
de tesouros artsticos e o futuro dos Museus Nacionais, especialmente o do MNAA, impunham a ampliao e a
regulamentao do estgio [...] porque s assim que se pode vir a constituir um ncleo de tcnicos onde se
possa ir mais tarde buscar os conservadores e diretores de todos esses museus [...]. Um conservador de um
museu no pode ser apenas um erudito, embora toda a erudio lhe seja necessria [...]. Tem de ser alm disso
um expert, isto pessoa capaz de julgar a obra de arte. [...] Por ter reconhecido tudo isto que o signatrio
tomou a iniciativa da proposta de que resultou o presente decreto. (Pontes 1999: vol. 1, 108; e vol. 2, O 38 e O
55).
313
museus complexificou-se e alongou-se. O tirocnio passou a constar de um estgio de trs anos com
apresentao de tese final condies para se ser aceite como conservador adjunto. Aps a
aprovao da tese seguia-se um perodo de trabalho de durao varivel, at que, surgindo vaga
para conservador (efetivo) ou diretor de museu regional, podia o conservador adjunto apresentar-se
a provas pblicas, habilitando-se assim a ser nomeado, pelo Governo, para a vaga a concurso. O I, o
II, o III e o IV cursos de estgio para conservador de museus tiveram incio sob a direo de Jos de
Figueiredo.11 Logo em 1933, ao primeiro curso, foram aceites cinco candidatos, dos quais apenas trs
o concluram: Carlos Manuel da Silva Lopes, Manuel Carlos de Almeida Zagallo e Augusto Souza
Pinto. Ao segundo curso, iniciado em janeiro de 1934, foram aceites dois candidatos. Apenas um o
concluiu: Maria Jos de Mendona. Ao III curso foram aceites seis candidatos, dos quais apenas um o
concluiu: Mrio Tavares Chic. Ao IV curso, iniciado em 1936, foram aceites cinco candidatos. Destes,
apenas um concluiu o estgio: Jos da Silva Figueiredo. Assim, dos dezassete candidatos aceites aos
quatro primeiros cursos de estgio para conservadores, apenas seis concluram o tirocnio.12
Num outro ofcio da autoria deste diretor, que julgamos poder relacionar diretamente com o processo de
elaborao do decreto de regulamentao do estgio de conservadores de museus, Figueiredo defendia que a
proposta de conservadores-tirocinantes, pertence exclusivamente ao Diretor deste Museu [Nacional de Arte
Antiga], e o tirocnio tem de ser feito aqui. In MNAA, Arquivo, Arquivo de Secretaria: Correspondncia
remetida. janeiro a dezembro 1932 e 1933 (processo n. 322, 5.): Ofcio de Jos de Figueiredo para o DiretorGeral do Ensino Superior e das Belas-Artes, 1932, 28 de maro, 1 pg. datilografada.
12
Para os temas das dissertaes que escreveram para os exames finais os conservadores estagirios, entre
1937 e 1962, num total de 31 conservadores, vd.: Couto 1963a: pp. 101-102 e Couto 1963b: p. 153.
13
Universidade de Lisboa, Certificado de Habilitaes de Maria Jos de Mendona, 22 de maro de 1934, 1 pg.
datilografada. In Processo individual n. 3950 de Maria Jos de Mendona, CMLSB / 6RHU/01/10949, Arquivo
Municipal do Arco do Cego.
14
Tal como ficara estipulado pelo D.L. n. 15.216, de 22 de maro de1928 (Art. 36. e tabela anexa ao
decreto).
15
Maria Jos de Mendona e Carlos Augusto Bonvalot tomaram posse a 30.12.1933. (D.G., n. 299, 2. Srie, de
23 de dezembro de1933).
16
O processo de Maria Jos de Mendona est arquivado na caixa dos processos dos seis candidatos aceites ao
III curso, decorrido entre 1934/35 e 1937/38. In CAIXA: Estgio para Conservadores. II. Anos e Nomes: 19331934-1935-1936. Maria Jos de Mendona. III. Anos e Nomes: 1934-1935-1936-1937. Mrio Tavares Chic; Lus
Ortigo Burnay; Teresa Bandarra.
17
Devido s suas viagens e estadas no estrangeiro, Jos de Figueiredo foi vrias vezes substitudo
interinamente na direo do MNAA. Entre 1933 e 1937, no perodo do tirocnio de Mendona, Lus Keil assumiu
por alguns meses a direo interina do museu. Vd.: Pontes 1999: vol. 1, 82 (Quadro: Direo MNAA. 19111937) e 83 (Quadro: Viagens de Jos de Figueiredo [1911-1937]).
314
processo, na qual foram sendo anotadas as sucessivas fases do estgio; os relatrios do trabalho que
Maria Jos de Mendona desenvolveu ao longo dos trs anos de estgio; os originais de treze
trabalhos escritos realizados um no primeiro ano; cinco no segundo; e sete no terceiro ano ; e o
enunciado dos pontos para a tese apresentada para concluso do estgio.
Apresentando-se ao servio a 2 de Janeiro de 1934, no seu primeiro ano de estgio, Maria Jos de
Mendona contou 85 presenas. Numa progressiva aquisio de competncias museolgicas,
atravs de trabalhos nas reas do inventrio e da catalogao diretamente associada exposio,
esta tirocinante foi tendo contacto direto com a coleo do Museu das Janelas Verdes. O seu
primeiro trabalho consistiu na elaborao dos verbetes de um lbum de desenhos de A.J. Noel
(publicado em Frana, no sculo XVIII)18. Em fevereiro, o diretor encarregou-a da reordenao da
biblioteca do museu19. Seguiu-se um perodo de cerca de um ms de trabalho, sob orientao do
conservador Joo Couto, dedicado elaborao de um guia das peas de ourivesaria expostas20,
trabalho este interrompido, por determinao do diretor, para que, ao longo de abril e maio, Maria
Jos de Mendona o pudesse apoiar na elaborao do catlogo da exposio de arte francesa,
resultante do comissariado partilhado entre o diretor dos museus Jeu de Paume e LOrangerie e o
diretor do MNAA, inaugurada em junho desse ano, na SNBA (Fig. 1). Nesse mesmo ms, Maria Jos
de Mendona recomeou o trabalho de organizao da biblioteca, e por estar muito ocupada nesta
tarefa no participou na organizao da exposio temporria de arte francesa que Figueiredo
preparou e apresentou no MNAA21, em simultneo com a exposio da SNBA.
Ainda em junho de 1934, por orientao de Jos de Figueiredo e por conta da Junta de Educao
Nacional foi-lhe concedida uma bolsa de estudo para viajar a Madrid e a Paris,
fundamentalmente para estudar bibliotecas de arte.22 E assim, ao longo de cerca de dois meses,
entre os princpios de Agosto e os princpios de Outubro de 1934, visitou bibliotecas e museus em
Paris, Londres, Bruges, Gant, Anturpia e Bruxelas. Madrid fora retirada do itinerrio definitivo. Em
Frana, seguindo a orientao de Figueiredo, frequentou a Biblioteca de Arte e Arqueologia da
Universidade de Paris (ento instalada no antigo Htel Salomon Rothschild, rue Berryer), sobre a qual
desenvolveu um estudo23, elogiando-lhe o funcionamento.24 Visitou o Louvre que foi o museu que
menos boa impresso [lhe] causou, [considerando] estranho que, sendo Paris um centro de vida
artstica, o maior Museu de Frana, e o mais rico do mundo, para o estudo da evoluo da Pintura,
esteja organizado dentro de processos to retrgrados e viva alheio s mais elementares regras da
Museografia moderna. A grande Galeria, verdadeiro crime de lesa-arte, continua ainda kilomtrica e
18
Em 1940, Mendona publicaria, no Boletim dos Museus Nacionais de Arte Antiga, um artigo sobre este lbum
(Mendona 1940).
19
Seguindo o critrio que presidira sua primitiva ordenao sem deixar de ressalvar que ao tomar esta
orientao ps de lado os mtodos rigorosamente cientficos , Mendona distribuiu os cerca de 2.000
livros por trs Seces: a Seco Estrangeira, a Seco Portuguesa, e a Seco Mista (Enciclopdias e
Dicionrios). Deste trabalho d conta no Esquema de reordenao da Biblioteca do Museu Nacional de Arte
Antiga anexo ao relatrio do primeiro semestre do primeiro ano do curso. Vd.: Maria Jos de Mendona,
Relatrio de Maria Jos de Mendona Conservador-tirocinante do Museu Nacional de Arte Antiga, [no
datado], [relatrio final do segundo semestre do 1. ano do curso] [Final de 1934] [Anexo].
20
Tratava-se de um guia para a Sala de Ourivesaria com montagem da autoria dos conservadores Lus Keil e
Joo Couto (Associao Portuguesa de Museologia 1967: [18]).
21
Tratou-se de uma exposio de peas pertencentes a colees portuguesas, pblicas e privadas. (MNAA;
Figueiredo 1934).
22
Segundo o seu plano da bolsa, deveria estudar a organizao das bibliotecas de arte, especialmente a
Biblioteca de Arte e de Arqueologia da Universidade de Paris, antiga Fundao Doucet, bem como dos
museus de Madrid e de Paris. In Maria Jos de Mendona, Relatrio de Maria Jos de Mendona
Conservador-tirocinante do Museu Nacional de Arte Antiga, [no datado], [relatrio final do segundo semestre
do 1. ano do curso] [Final de 1934], p. 4.
23
Vd.: Idem, ibidem, pp. 17-19.
24
Vd.: Idem, ibidem, pp. 17-19.
315
com filas de quadros sobrepostas, num caos de Escolas e de pocas. A preocupao de conservar
intactas as coleces legadas origina a disperso de obras da mesma Escola. A Pintura francesa do
sculo XIX, por exemplo, est instalada nos dois extremos do Louvre, e quem quiser ver o Fifre de
Manet, e em seguida o Djeuner sur lherbe do mesmo artista obrigado a andar um quarto de
hora dentro do Museu. Em Londres, alm de estudar a organizao da biblioteca do Victoria &
Albert Museum, principal objetivo da sua ida a Inglaterra25, visitou, alm deste: a National Gallery, a
Tate Gallery, a Wallace Collection e o British Museum museu este que considerou ter uma
organizao, dum modo geral, inferior dos outros Museus de Londres, sendo que, no seu
entender: No se podem considerar os museus londrinos como museus estruturalmente modernos.
H neles deficincias de ordenao e sobretudo de instalao que no lhes permite termo de
igualdade, com alguns dos Museus da Holanda, da Alemanha e da Amrica, de cuja organizao
perfeita, sob o aspecto esttico e didctico, nos falam as revistas de museografia. Acrescentando,
porm: Mas se em Londres no encontrei o prottipo do Museu moderno, encontrei, sem dvida,
belas galerias de Arte, onde muito se aprende e plenamente se pode admirar. O Museu londrino
uma clula viva, na existncia quotidiana da capital. A sua organizao tem, como finalidade
primacial, chamar o pblico s suas galerias de exposio e ensinar-lhes a compreender e a apreciar
as obras de arte. Dentro das suas instalaes actuais, todas elas deficientes [se] comparadas com os
grandes Museus modernos, a ordenao das obras , na generalidade, a melhor possvel; a sua
conservao exemplar; as confrences-promenade dirias e a organizao dos catlogos
excelente. De todos os museus que visitei, foram os de Londres aqueles que me deram a impresso
de melhor cumprirem a sua misso educativa. Em Londres, e certamente em toda a Inglaterra, o
Museu de facto aquilo que constitui a sua razo de ser, um elemento de primeira importncia para
a cultura de um povo. De seguida, Maria Jos de Mendona viajou para a Blgica. Dos museus
belgas, relata: O nico Museu que vi organizado, segundo a Museografia moderna, foi o Museu de
Bruxelas. As instalaes so antigas, mas dentro delas, o seu Director Sr. L. van Puyvelde conseguiu
dar s obras expostas uma organizao simultaneamente esttica e didctica, do maior interesse e
utilidade. O Museu consta de trs seces nitidamente separadas. Numas, esto expostas as obrasprimas, noutra as de valor documental e na terceira, aquelas que apenas podero interessar os
estudiosos. Foi a primeira vez que entrei num Museu assim organizado, e de facto a simples
passagem pelas suas galerias constitui, no s uma grande lio de arte, como tambm, um intenso
prazer espiritual. Pena que nos restantes museus da Blgica que conheci, no seja seguido o
mesmo critrio de organizao. O Museu de Bruges recente, mas acanhado e medocre de
propores para as admirveis obras que encerra; o Museu Real de Belas Artes de Anturpia, devia
ter sido em tempos um bom Museu, mas encontra-se hoje antiquado e abandonado. Desagradalhe, profundamente, o modo como esto expostos na catedral de Bruges o Retbulo do Cordeiro
Mstico (dos irmos Van Eyck), e na catedral de Anturpia, a Descida da Cruz (de Rubens)26. Conclui
este seu relatrio, afirmando: Nesses museus, limitei-me a estudar, bastante deficientemente, mas
tanto quanto o tempo me o permitiu, as escolas Primitivas. [...] no posso deixar de afirmar, quanto
essa minha rpida passagem por alguns dos melhores museus da Europa me foi proveitosa, e quanto
o contacto com os grandes ncleos de arte me parece elemento indispensvel ao bom
aproveitamento do estgio para conservadores de Museu.
No segundo ano do estgio, entre outubro de 1934 e junho de 193527, Maria Jos de Mendona
trabalhou, sobretudo, na organizao da biblioteca.28 E assistiu s sesses tericas, nas quais Lus Keil
tratou de Artes Decorativas, e Joo Couto de assuntos de museografia e de Pintura Portuguesa do
sculo XVI. Refletindo essas aprendizagens nos seus trabalhos escritos, Maria Jos de Mendona
25
316
317
4. Concluses
A formao de conservadores foi uma preocupao central do trabalho de Jos de Figueiredo, tendo
este sido signatrio quer da legislao que antecipou quer da que criou e regulamentou, durante
vinte anos, o primeiro curso de estgio de conservadores de museus, em Portugal. Maria Jos de
Mendona que se considerava discpula de Joo Couto (Mendona 1971: 109) pertence
primeira gerao de conservadores portugueses com uma slida e estruturada formao de base,
terica e prtica, coordenada por profissionais experientes que, alm de manterem ligaes de
trabalho com o meio museolgico internacional, promoveram, na orientao dos estgios dos
conservadores tirocinantes, o fortalecimento dessas ligaes: atravs de viagens de estudo a
instituies de referncia e de contactos diretos com especialistas dos principais museus e outros
centros de investigao. Os relatrios de estgio de Maria Jos de Mendona constituem
documentos fundamentais, desde logo, para uma histria da biblioteca do MNAA, durante a direo
de Jos de Figueiredo; testemunham tambm a sua primeira ligao coleo do Museu dos Coches
e, j por orientao de Joo Couto, ao estudo da pintura portuguesa do sculo XVI. Relativamente ao
nosso tema de tese, esta documentao, produzida trinta anos antes da entrada de Maria Jos de
Mendona para a FCG, vem reforar a importncia de uma das linhas de programao inicial do
Museu Gulbenkian defendida por Maria Jos de Mendona: a da valncia fundamental da biblioteca
de arte para a investigao da coleo museolgica. Um outro aspeto, mais geral, e que ganharia um
peso fundamental com a sua ulterior experincia como conservadora adjunta e efetiva, o da
similitude existente entre vrios ncleos da coleo do Museu Calouste Gulbenkian e outros da
coleo do MNAA (a ourivesaria, a pintura, os txteis, a cermica, o mobilirio...), no seio da qual
Maria Jos de Mendona aprendeu a ser conservadora, cedo desenvolvendo um trabalho de
programao expositiva.
37
318
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STAATLICHE MUSEEN BERLIN. Lucas Cranach D.A. und Lucas Cranach D J. Berlim, 1937.
322
323
Infelizmente, por questes de tempo, os arquiplagos dos Aores e da Madeira no foram contemplados. J
na fase final da redaco da tese de doutoramento surgiram ainda mais quatro edifcios com grgulas, que
tambm no tivemos tempo de incluir, ficando para um estudo posterior.
2
Neste mbito, uma das contribuies mais recentes data da nossa investigao era o de Ruth Mellinkoff,
Averting Demons. The protective power of medieval visual motifs and themes (Los Angeles: Ruth Mellinkoff
Publications, 2 vols., 2004).
3
Ver Janetta Rebold Benton, Holy Terrors: Gargoyles on Medieval Building (Abbeville Press, 1997).
4
Michael Camille, Images dans les marges. Aux limites de lart mdival (Gallimard, 1992).
324
Trabalho editado j postumamente: Michael Camille, The Gargoyles of Notre-Dame: Medievalism and the
Monsters of Modernity (Chicago: University of Chicago Press, 2009).
6
Longe da vista, enegrecidos [] raro atraem as atenes e o interesse do estudioso as goteiras das grgulas
da Batalha, em cuja representao no existe sistema definido, fauna subordinada a um tipo dominante, mas,
ao contrrio, variedade de concepo, figuras disformes de animais reais, figuras humanas de pesadelo,
criaes em que sobrevivem reminiscncias do fantstico pago e do infernal cristo. Sob o ponto de vista
artstico esses monstros estilitas, espessos e frios, caem por completo nos domnios da arte popular. Virglio
Correia, Monumentos de Portugal: Batalha II. (Porto: Litografia Nacional Edies, 1931) 59.
7
Com valor meramente decorativo como so os monstros pousados em vrios pontos das catedrais, alguns
distribudos pelo rebordo das galerias superiores, e, alm destes, os que formam as grgulas, goteiras salientes
irrompendo debaixo da cimalha e por onde se escoa a gua dos telhados. Alguns tm a aparncia de demnios,
com a face angulosa fincada nas garras, outros so embiocados como bruxas de sabbat, outros ainda tm a
aparncia de pssaros fantsticos, misto de aves de rapina e de palmpedes. Joo Barreira, Histria de uma
catedral. (Lisboa: Seara Nova, 1937) 42.
8
Este historiador, a propsito das grgulas da Matriz das Caldas da Rainha: Aves e quadrpedes associam-se a
uma figura feminina e masculina, de cariz licencioso, que, em conjunto, emprestam a essa zona do edifcio uma
temtica fundamental para a compreenso do imaginrio da poca. Jos Custdio Vieira da Silva, A Igreja de
Nossa Senhora do Ppulo das Caldas da Rainha. (Caldas da Rainha, 1985) 38.
9
Para o autor, as grgulas so smbolos da desordem e do caos, recuperando motivos legados pelo romnico e
tendo uma importante funo: [...] grgulas descomunais e inslitas, drenando a sujidade ou escorrendo
guas pela boca ou pela cauda. So um dos exemplos mais caractersticos de marginalia e de fantasia, e deste
modo representam como que um antibestirio. Nelas era dado curso livre imaginao dos lavrantes que
aproveitam estes lugares no fiscalizados pelos programadores para imporem uma espcie de revolta
semntica. Desempenhavam funes complementares pois o seu mau-olhado era simultaneamente gerador
de fascnio, mas tambm detinha valores apotropaicos, pois afastava o mal, espantando-o. Paulo Pereira, A
simblica manuelina. Razo, celebrao, segredo in Histria da Arte Portuguesa. (Lisboa: Crculo de Leitores,
1995, vol. II) 119-122.
10
Elementos profanos abundam no imaginrio delirante dos monstros representados nas grgulas das
cimalhas do templo. Mas o seu sentido integrado e apocalptico e, por isso, claramente religioso [...] As
grgulas representam um dos casos mais interessantes desse discurso ortodoxo. Na sua variedade,
predominam os monstros marinhos e infernais, bem como figuraes humanas [...] de grande sentido burlesco
[...] testemunho da iconografia tradicional do Ocidente para a representao dos vcios e pecados mortais.
Sal Gomes, Vsperas Batalhinas. (Leiria: Edies Magno, 1997) 70 e 158.
11
Este historiador tece algumas consideraes sobre grgulas, quimeras e outros seres grotescos e destaca o
facto de as grgulas adquirirem significados e simbolismos especficos [...] que ainda hoje permanecem mal
conhecidos. Lus Urbano Afonso, Quimeras, Grgulas e Figuras Grotescas, in Contacto n. 10, Outubro de
2002 [Consultado em Maro 2003]. Em linha: www.revista-temas.com/contacto/Newtiles/Contacto10html.
325
estudo abrangente e comparativo. De referir o trabalho iniciado por Ana Patrcia Alho12 que deve
trazer contributos importantes ao estudo das funes hidrulicas das grgulas nos edifcios.
Esta investigadora, numa recente edio dedicada exclusivamente anlise das grgulas do j referido
mosteiro, tambm as vincula arte popular: O conjunto de grgulas que compem o Mosteiro de Santa Maria
da Vitria so fruto da arte popular, seguem a tpica representao medieval, exibindo humanos em atitudes
burlescas, monstros e animais inslitos. Ana Patrcia Alho, As grgulas do Mosteiro de Santa Maria da Vitria.
Funo e Forma. (Batalha: Edio do Municpio da Batalha, 2010) 91.
326
por ano e com o estabelecimento de regras para moralizar a conduta comportamental dos membros
do clero. Estas medidas tiveram um impacto directo na prtica catequtica junto das populaes e
em particular no incremento da literatura confessional, que j vinha dos sculos V/VI e da qual
faziam parte os penitenciais que deram origem aos manuais de apoio aos confessores.
O Liber Poenitentialis e a Summa de casibus poenitentiae foram obras que circularam em Portugal,
chegando at ns alguns exemplares provenientes dos mosteiros de Alcobaa e de Sta. Cruz de
Coimbra. Da lavra do scriptorium alcobacense temos ainda um tratado sobre os pecados, Summa de
vitiis, cpias que se inserem num leque cronolgico que vai desde os finais do sculo XIII ao sculo
XV. Sobre as obras referidas, todas em latim, fica atestado o interesse dos monges cistercienses no
assunto, que no ficou por aqui esgotado: cpia do mesmo scriptorium o Penitencial de Martim
Prez13 vertido para portugus, do qual se conhecem trs exemplares. O Penitencial da autoria de
um religioso castelhano e fazia parte do Livro das Confisses, de onde foram tiradas estas poucas
palavras com as explicaes detalhadas dos pecados e indicao das respectivas penitncias. Estas
variavam consoante o tipo de pecador, leigo ou religioso. Apesar de incompleto, este texto teve
divulgao em mbito de corte: o rei D. Duarte tinha dois exemplares e o seu irmo D. Fernando
pediu a Alcobaa para lhe copiarem um.
Neste mbito sucedem-se outras obras como o Tratado da Confissom14 impresso em Chaves em 1489
e o O Cathecismo pequeno15 redigido a pedido de D. Manuel e impresso em 1504, da autoria de D.
Diogo Ortiz, bispo de Viseu, num panorama que no se esgotou por aqui, pois no 1. tero do sculo
XVI um nmero significativo de textos de apoio confisso circulou entre ns, na sua maioria
impressos.
Este tipo de obras fornece aos investigadores indicaes importantes: em primeiro lugar, porque
atestam uma grande preocupao, quase uma obsesso, por parte da Igreja, acerca da conduta do
corpo. Em segundo, porque o comportamento do corpo em vida tinha repercusses na alma, aps a
morte, nos lugares do alm para onde iria repousar na eternidade: Cu, Purgatrio ou Inferno,
dependendo da quantidade e qualidade dos pecados praticados. Por fim, outro dado que se pode
extrair das leituras destes livros sobre que pecados recaram as maiores preocupaes da Igreja e
do clero: quando em comparao com os outros, a luxria foi o pecado que reuniu um nmero
significativo de menes e um pouco mais esmiuado pelas obras referidas. Em paralelo, quando
analisados sob uma perspectiva estatstica, os peccata carnalia foram dos pecados mais
representados nas grgulas, seguidos da gula e da ira, outro indcio de uma origem comum entre
textos e programas de grgulas.
A relao entre os manuais de confessores e as grgulas est igualmente patente no
desenvolvimento paralelo de ambos ao longo do sculo XV e no seu apogeu nas primeiras dcadas
da centria seguinte e ainda no facto de uma boa poro de grgulas presentificar os pecados: como
j vimos, as preocupaes da Igreja estiveram na base do desenho dos programas de grgulas, em
articulao com as mentalidades.
O caso de vora constitui um interessante ncleo em termos temticos, menos do ponto de vista
plstico, porque o granito e talvez a pouca experincia da equipa dos imaginrios originaram
grgulas marcadas por uma grande sntese formal, podamos at dizer, do ponto de vista plstico,
ligadas escultura do perodo romnico. O ncleo eborense a que nos referimos constitudo pelas
grgulas da Ermida de S. Brs e pelas da Igreja de S. Francisco, realizadas em simultneo ou quase,
13
Martim Prez, O Penitencial de Martim Prez em Medievo-portugus. Introduo, leitura e notas de Mrio
Martins. (Lisboa: Separata da Lusitnia Sacra, 2, 1957).
14
Tratado de Confissom (Chaves, 1489). Edio Semidiplomtica, Estudo Histrico, Informtico e Lingustico
coord. por Jos Barbosa Machado. (Braga: APPACDM, 2003).
15
D. Diogo de Ortiz, O Cathecismo pequeno de D. Diogo Ortiz Bispo de Viseu. Edio crtica de Elsa Maria Branco
da Silva. (Lisboa: Edies Colibri, 2001).
327
datveis aproximadamente dos finais do sculo XV. Ambos os ncleos apresentam um programa que
partiu da presentificao dos pecados mortais: esto representados nas grgulas das duas igrejas a
gula, a avareza, a ira ou sanha, a preguia, etc. sob a forma de figuras humanas e animais, na maior
parte dos casos a meio corpo ou busto. Estas grgulas revelam muitas semelhanas no modo como
determinado pecado foi presentificado do ponto de vista formal e at plstico, o que lana pistas
sobre uma possvel colaborao entre os imaginrios dos dois estaleiros.
Esta coerncia de programas entre dois edifcios de uma cidade com a importncia que vora teve no
panorama tardo-medieval vem confirmar uma preocupao de cariz moralizante, mas tambm a
eficcia pedaggica das grgulas enquanto exempla, cumprindo funes didcticas junto das
populaes alentejanas. O facto de termos duas igrejas muito prximas e com o mesmo programa
constitui um indcio de que, junto das populaes, existia uma profunda ignorncia doutrinal e
comprova a necessidade de uma maior educao religiosa, papel assegurado pelo clero. O
desconhecimento doutrinal do povo era, em parte, resultado da incria por parte dos membros do
clero, ignorantes tambm eles: alguns elementos do baixo-clero desta poca no sabiam ler, ou
sabiam mal, outros no dominavam o latim e evidenciavam uma grave incultura religiosa, situaes
que eram detectadas pela Igreja no mbito das visitaes, e que tinham visibilidade junto das
populaes. Ou seja, o pblico-alvo das grgulas acabava por ser tambm o clero, hiptese que se
confirma pela sua representao, sob a forma de crtica comportamental: crtica ignorncia,
negligncia clerical e, em grande nmero, ao comportamento pouco adequado sua condio e aos
seus votos. Destacamos a sua associao luxria: frades e freiras nus perante os olhares do pblico,
envergando somente o capuz do hbito religioso, num jogo de (des)ocultao dos genitais, ou freiras
que exibem o fruto do pecado a espreitar por debaixo das vestes na Igreja de Nossa Sr. da
Conceio, Beja (Fig. 1), um exempla constante da literatura moralizante da poca. Os manuais de
confessores previam este tipo de pecados por parte do clero, exultando ao arrependimento e
discriminando as respectivas penitncias.
Os pecados mortais estavam directamente conotados com os cinco sentidos, numa ligao que j
remontava a Sto. Agostinho embora carecendo da sistematizao que vai caracterizar
posteriormente os manuais de confessores. Cada homem era um pecador em potncia e nenhum,
clrigo ou leigo, mendigo ou rei, estava livre de tentaes. Os penitenciais esclareciam acerca do que
se constitua ou no como um pecado, ou at que ponto os sentidos se volviam contra o prprio
corpo no intuito de o fazer pecar. Para alm do perigo dos olhos, havia os pecados de orelhas, da
lngua, do tanger de mos, dos ps, do gostar, do cheirar: todos pecados ligados luxria e ao uso
indevido dos sentidos na obteno de prazer. Deste modo, a Igreja, em colaborao com os
imaginrios, percebeu rapidamente que uma das formas de presentificar os pecados nas grgulas era
ligando-os aos sentidos, atravs do exagero e da acentuao plstica dos rgos ligados aos mesmos:
no invulgar vermos grgulas com os olhos, as orelhas e o nariz aumentados, a par de uma boca
bem escancarada (com ou sem a ajuda das mos) e das mos a tanger (tocar) os rgos genitais ou
a bater no peito como contrio (Fig. 3).
Os pecados de orelhas, decorrentes do uso imprprio do sentido da audio, esto presentificados
numa das interessantes grgulas de Sta. Maria da Vitria (Fig. 2) que parece ilustrar o ditado popular
Palavras loucas, orelhas moucas: a figura masculina um clrigo, mas do hbito s enverga o
capuz, exibindo o corpo nu e os genitais, enquanto tapa as orelhas com as duas mos. No Penitencial
de Martim Prez temos uma referncia a este pecado, com a indicao da respectiva penitncia: Se
ouvyo cantar cantares vaos. Se ouvyo palavras torpes ou mentiras ou palavras ouiosas e vaos
dizer....16
NO Cathecismo pequeno, o bispo de Viseu recupera a importncia dos sentidos, sublinhando que a
salvao depende de como os mesmos so usados, logo cabia a cada um vigiar atentamente os maus
16
328
usos dos sentidos e exageros: Os cinco sentidos, scilicet, cinco potecias pra ouvir, veer, cheirar,
gostar, tocar ou palpar for neessarias pra sermos animales semsives, e servem ao entedimeto
pra aver sciencia acquisita, e som cinco des significados [] Mais arremos ho ouvido aas
murmuraes, detraes e todo o mal dizer e a palavras vas e provoctes a mal, e os olhos pra n
ver cousas ilicitas e ocasies pra mal. 17
Embora o apogeu da colocao de grgulas tenha ocorrido entre os finais do sculo XV e as primeiras
trs dcadas do sculo XVI, a sua colocao nos edifcios religiosos em Portugal estendeu-se muito
para alm do fim das orientaes artsticas ligadas ao tardo-gtico ou manuelino, num fenmeno
decorativo persistente que se estendeu a todo o reinado de D. Joo III at D. Sebastio. Importante
referir que o nmero significativo de grgulas lavradas neste perodo resultado no s da
continuidade dos estaleiros (temos um nmero considervel de edificaes iniciadas no reinado de
D. Manuel que, embora ficassem concludas no reinado D. Joo III, so manuelinas em termos
artsticos), como tambm do seu papel moralizante e catequtico desempenhado junto das
populaes e de algumas comunidades religiosas. Esta permanncia constitui mais um indcio da sua
validade pedaggica, que legitimou a sua presena em estruturas de inspirao renascentista e
mesmo maneiristas: o seu valor didctico foi posto ao servio de princpios clssicos, embora as
grgulas figurativas fossem s por si elementos anticlssicos. Em alguns ncleos como o Claustro da
Manga (Figs. 4 e 5), os programas tornaram-se ainda mais complexos e eruditos do que nos reinados
anteriores, o que atesta a validade discursiva das grgulas num perodo de mudana, num fenmeno
relativo persistncia pedaggica e valor de exempla versus a mudana de paradigma esttico e
artstico a que se assiste neste perodo. Noutros, as grgulas adaptaram-se e transformaram-se em
motivos clssicos, sob a forma de seres mitolgicos, como podemos ver na Igreja Matriz do Crato
(Fig. 6).
Por outro lado, surgiram alguns casos de arcasmos formais, da responsabilidade de imaginrios
locais, que em termos plsticos estavam mais relacionados com a escultura romnica do que com as
tendncias artsticas dos meados do sculo XVI, um fenmeno que atesta a pouca tradio
escultrica entre ns no que concerne a localidades rurais, afastadas dos grandes centros
cosmopolitas e tambm de mecenas eruditos.
Neste mbito, vale a pena referir um outro edifcio, cujo programa de grgulas parte da sua validade
enquanto exempla junto das populaes, num programa construdo em torno da presentificao dos
pecados mortais. o caso da Matriz de Torre de Moncorvo (Fig. 7): apesar de as suas grgulas
estarem muito sujas e pouco legveis do ponto de vista formal, pode verificar-se que o complexo
programa das grgulas partiu ainda da ilustrao dos pecados e dos sentidos, embora datem j da 2.
metade do sculo XVI. Em torno de tpicos como os cinco sentidos e os pecados mortais que deles
derivam, o programa constri-se com novas iconografias: grgulas que exibem atributos ligados
vanitas (a segurar um espelho) e fortuna (os panejamentos e a exibio de jias). Os cinco sentidos
aparecem presentificados pelo menos uma vez cada um, bem como os pecados: pecados de orelhas,
a gula, o tangimento de membros, a luxria, a par de outras grgulas que ilustram a melancolia, a
vaidade e a cobia.
Em jeito de notas finais, a vocao pedaggica das grgulas foi explorada pela Igreja em Portugal at
Trento como uma forma de materializar os confrontos entre o corpo disciplinado, exemplar e o
corpo transgressor, pecador, imoral e por isso condenvel, mas passvel de salvao atravs da
contrio e da penitncia como afirmavam os manuais de confessores que serviram de fonte de
inspirao para algumas grgulas.
17
329
Fig. 1 Grgula freira da Igreja do Convento de N. Sr. da Conceio de Beja (note-se a cabecinha de beb,
tambm de mos postas, a espreitar por debaixo do hbito)
Fig. 2 Grgula frade a tapar as orelhas com as mos enquanto exibe os genitais, Capelas Imperfeitas, Sta.
Maria da Vitria, Batalha
Fig. 3 Grgula frade das Capelas Imperfeitas do Mosteiro de Sta. Maria da Vitria, Batalha
330
331
BIBLIOGRAFIA
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Mrio Martins. Lisboa: Separata da Lusitnia Sacra, 2, 1957.
SILVA, Jos Custdio Vieira da. A Igreja de Nossa Senhora do Ppulo das Caldas da Rainha. Caldas da
Rainha, 1985.
Tratado de Confissom (Chaves, 1489). Edio Semidiplomtica, Estudo Histrico, Informtico e
Lingustico coord. Jos Barbosa Machado. Braga: APPACDM, 2003.
332
Vejam-se os estudos mais recentes: Francisco Pato de MACEDO e Maria Jos GOULO, Os Tmulos de D.
Pedro e D. Ins, in Paulo PEREIRA (dir.), Histria da Arte Portuguesa, vol. 1, Temas e Debates, Lisboa, 1995, pp.
443-453; Jos Custdio Vieira da SILVA, O Panteo Rgio do Mosteiro de Alcobaa, IPPAR, Lisboa, 2003; Lus
Urbano AFONSO, O Ser e o Tempo, as Idades do Homem no Gtico Portugus, Caleidoscpio, Vale de Cambra,
2003.
2
Francisco Pato de MACEDO e Maria Jos GOULO, idem, p. 447.
3
Verglio CORREIA, Trs Tmulos, 2. edio, in Obras, vol. V, Por Ordem da Universidade, Coimbra, 1978, pp.
130 e 133.
333
334
autntico rendilhado de pedra, numa sensibilidade pelas superfcies vazadas prpria do trabalho dos
metais7.
Em ambos os tmulos, as edculas estreitas prolongam-se at ao cimo das arcas por meio de
contrafortes fenestrados, terminando em pinculos, igualmente cogulhados, cortando o friso
superior das arcas, numa soluo vulgar na escultura tumular europeia.
Os pares de edculas estreitas ritmam as superfcies maiores das arcas, ladeando as edculas largas, e
no tmulo de D. Ins, pela diversidade da microarquitectura, estabelece-se uma ausncia de
repetio. No s a arcaria muda de edcula para edcula, como as rosceas ou, mais significativo, a
relao entre os elementos arquitectnicos (Fig. 3). Desta forma, encontramos neste tmulo, em
contraste com o tmulo de D. Pedro, em que se optou pela relao constante entre gablete e
roscea, uma diversidade de solues na microarquitectura que exprime bem o gosto pela
variedade, prprio da sensibilidade medieval. Esta diversidade na construo de uma arquitectura
imaginria possvel na medida em que no encontramos a os problemas estruturais da
arquitectura construda, facilitando a integrao das diferentes figuras em estruturas
arquitectnicas, realidade vulgar na arte gtica, revelando a importncia crescente da
microarquitectura.8
Na arca do rei importa igualmente destacar um aspecto que tem sido ignorado: a total ausncia de
arcos ultrapassados, elemento arquitectnico abundante no tmulo de D. Ins de Castro (Fig. 4).
Certamente que quem concebeu o programa iconogrfico das duas arcas no ter comunicado, aos
mestres das oficinas, o uso de cada elemento arquitectnico especfico, significando este facto que o
programa de imagens transmitido aos pedreiros deixaria liberdade para a realizao de elementos de
carcter decorativo. Seria a sua abundncia um sinal da qualidade do encomendador e,
simbolicamente, a expresso de um autntico relicrio em pedra, realidade possvel pelo papel do
desenho arquitectnico para a circulao de microarquitectura para diferentes suportes.9
A anlise do tmulo de D. Pedro permite verificar, igualmente, a singularidade de diferentes solues
entre o trabalho das duas faces maiores, expresso no facto de numa delas se optar por edculas
estreitas associadas a uma roscea, mais largas que as empregadas tanto na outra face (Fig. 5) como
no tmulo primeiramente realizado, destinado a D. Ins de Castro. possvel que esta diferena
signifique alteraes na oficina que trabalhou na arca do rei, tendo, no entanto, utilizado artfices
anteriores. Estas mudanas na microarquitectura possuem claro paralelo no trabalho escultrico no
interior dos nichos, apresentando o tmulo de D. Pedro imagens narrativas e figurao em que o
movimento e o tratamento das pregas revelam outras mos.
No tem sido destacado, quanto riqueza e complexidade da representao arquitectnica, a
existncia de trabalho escultrico de menor qualidade, patente na representao da Jerusalm
terrestre, ou mesmo na Jerusalm Celeste, ambos no tmulo de D. Ins.10 Em qualquer dos casos, na
representao de conjuntos urbanos no interior de imagens narrativas e em cenas de particular valor
simblico seria de esperar particular cuidado no trabalho escultrico.
Certamente que todo o interesse dos mestres estaria centrado na estruturao das arcas por meio
de elementos arquitectnicos, e na realizao das personagens intervenientes nos vrios episdios,
7
Sobre as relaes com o trabalho dos metais ver Franois BUCHER, Micro-Architecture as the idea of gothic
theory and style, in Gesta, vol. XV, tt. 1 e 2, ICMA, Nova Iorque, 1976, pp. 71-89.
8
Para a importncia da microarquitectura, Michael CAMILLE, Le monde gothique, Flammarion, Paris, 1996, pp.
37-38.
9
Ver Jean WIRTH, LImage l poque gothique (1140-1280), Cerf, Paris, 2008, p. 177 e ss.
10
Sobre a microarquitectura como representao da Jerusalm celeste, ver Carla Varela FERNANDES, Poder e
Representao: Iconologia da Famlia Real Portuguesa Primeira Dinastia, Sculos XII a XIV, Tese de
Doutoramento, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, 2004, cap. 5.9.
335
destinando-se, nestes casos, a feitura das imagens da arquitectura integrada em imagens narrativas a
artfices de menor qualidade, tendo como resultado esculturas de menos rigor parecendo, por vezes,
como nos exemplos apontados, incompletas. Estas diferenas na produo escultrica indiciam a
existncia de algum trabalho especializado, com artfices a realizar os elementos arquitectnicos e
outros a figurao. Esta diviso no trabalho pode ser uma explicao para as divergncias de um
padro entre as duas arcas, decorrentes no da vontade de quem as concebeu, mas das mudanas
na mo-de-obra especializada num tipo particular de motivos.
A complexa estruturao da superfcie dos tmulos com linguagem arquitectnica permite originar
hierarquias no espao, conceber lugares aptos a receber imagens simblicas e narrativas, criar
complexas formas circulando de uns suportes para outros. Esta realidade visual permite tambm
colocar hipteses sobre esse mundo pouco conhecido do trabalho da pedra, das suas hierarquias e
especializaes, cujo resultado ainda hoje constitui motivo de fascnio.
Nota final: agradeo ao Igespar e ao Mosteiro de Alcobaa, nomeadamente ao seu director, Doutor
Jos Pereira de Sampaio, a autorizao concedida para a realizao de fotografias.
336
337
BIBLIOGRAFIA
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FERNANDES, Carla Varela. Poder e Representao: Iconologia da Famlia Real Portuguesa Primeira
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WIRTH, Jean. LImage l poque gothique (1140-1280). Paris: Cerf, 2008.
338
Esta investigacin se incluye en el proyecto del Plan Nacional I+D+i Arquitectura Tardogtica en la Corona de
Castilla: Trayectorias e Intercambios (ref. HAR2011-25138).
2
Bernaldez, Memorias del reinado, 380.
3
Los detalles y las consecuencias artsticas del viaje analizadas en Alonso Ruiz, Emmanuelis iter in Castellam.
4
Resende, A entrada del Rey, 299.
5
La comitiva portuguesa viaj desde Lisboa con unos papagayos, quiz como regalo para los monarcas
castellanos. Archivo General de Simancas, Valladolid (en adelante AGS), Casas y Sitios Reales (CSR), Leg. 1, fol.
86.
6
Este viaje se relaciona con la llegada de resabios mudjares al espritu y la ornamentacin de las nuevas salas
y los jardines de los palacios reales portugueses como ya escribieran Verglio Correia, Reinaldo dos Santos,
Lambert, Lozoya, Tavares Chic, Serrao, Das o Caamao. Ms all de las diversas interpretaciones, mocrabes,
azulejos y arcos de herradura son los elementos que identifican esta arquitectura manuelina mudjar,
elementos que pudo ver don Manuel en los techos de palacios nobles en los que residi durante este viaje,
desde las casas de Toledo a la Aljafera de Zaragoza. La va de trasmisin an se nos escapa pero estara en
relacin con el medio profesional encargado de materializarlas, posiblemente de origen castellano (Alonso
Ruiz, Emmanuelis iter in Castellam).
339
Al da siguiente deba producirse el juramento en las cortes aragonesas7. De esa fecha es el comienzo
de los gastos documentados de la comitiva en la ciudad8. Mientras, el juramento se complicaba;
Resende nos informa de que el rey Fernando encontr la oposicin de ciudades como Barcelona y
Valencia que no juraran a doa Isabel como heredera sin conseguir nuevos privilegios. Por su parte
Zurita aade que Mas hubo en esto gran altercacin: as porque se entendi que nunca en Aragn
haba sido jurada princesa, y hubo algunas sustituciones de los reyes pasados que lo prohiban, como
en el haber de jurar al rey don Manuel9.
Estando as las cosas, se precipit el fatdico final; Zurita escribe que no permiti Nuestro Seor, que
fuese ella la primera, que haba de ser jurada en este reino10. El 23 de agosto, tras dar a luz al
prncipe don Miguel, con la consiguiente alegra en la ciudad y en el reino, la reina de Portugal mora
a las pocas horas en brazos de su padre el rey Fernando11.
El dolor de nuevo invada la corte12. Numerosas muestras de condolencia y dolor partieron de las
ciudades castellanas que se vistieron de luto13, y la literatura no fue ajena a todo ello como
evidencian obras como el Panegrico de Diego Guilln de vila o las coplas que Francisco de vila
dedica al recin nacido y a su madre en el Vergel de discretos publicado en 150814.
Pronto se iniciaron los duelos y procesiones; todas las parroquias zaragozanas con sus cruces
acudieron a la Seo, desde donde sali la comitiva hacia el monasterio franciscano, hoy desaparecido,
de Nuestra Seora de Jess, y elebraron una missa con grande aparato y musica15. Estaba el
cuerpo de la Prinessa en un tumulo muy sumptuossamente adrezado dentro del rexado de la capilla
mayor de la iglesia de Santa Maria de Jessus con 12 hachas ardiendo16.
Durante esos ltimos das de agosto la documentacin castellana recoge nminas de pagos por
gastos ocasionados por la muerte de la Reina. Del da 27 es el mandamiento de pago a Palacios
moro de la cantidad de 1.800 maravedes por el ataud e candeleros de madera que se emplearon
en las exequias de la princesa castellana17. El 31 de agosto el rey de Portugal firma una nmina para
que el contador Martn de Salinas pague al Licenciado Vzquez, el fsico de la reina, al boticario, as
como gastos de trompetas, velas, terciopelo negro, la fechura de unas tablas de oro pa(ra) los
corporales y a mallol platero de fechura de vn candelerio e de una guarnyion de oro pa vn libro
340
de la reyna la cantidad de 6.151 maravedes18. Ese mismo da el rey Manuel ordenaba a Martn de
Salinas que emplee toda la plata blanca que ha recibido de Ins de Albornoz, camarera de la reina de
Portugal, para cumplir con las deudas y cargos de la difunta19. Al respecto, las cuentas tambin
incluyen pagos a los miembros de la casa de la princesa-reina, como los 10.000 maravedes
entregados a Felipe pintor y un capelln portugus20, o los 50.000 maravedes que se entregaron a
Sarmiento veedor que fue de la reyna princesa para la costa de las damas que se enviaron a
Portugal21. El 12 de septiembre, la reina catlica libraba 10 cuentos de maravedes a Martn de
Salinas, el secretario de la reina de Portugal, para el gasto de su servicio y de otras cosas referentes al
servicio de su difunta hija de los ltimos cinco aos, en referencia a los pagos de los sueldos de los
oficiales de su casa22. Tiempo despus, las cuentas siguen recogiendo pagos pendientes a miembros
de la casa de la reina difunta; en 1499 se paga a Alfonso Patio por el tiempo que estuvo en Portugal
al servicio de la reina como su contador23 o a los plateros Montemayor y Juan de Valladolid24.
Mientras, las exequias seguan su curso y se bautizaba al pequeo heredero de todos los reinos
peninsulares25. Ese mismo da los jurados de Zaragoza fueron a dar su psame al rey de Aragn,
quien les manifest su deseo de que las honras a su hija se realizasen en el Monasterio de Santa
Mara de Jess26. El cabildo catedralicio reclam entonces su derecho a realizar tales exequias27. Al
da siguiente se solucion el conflicto, acordando hacerse en el monasterio por cumplir el deseo del
monarca, pero sin perjuicio de los derechos de la Seo, que finalmente dio su autorizacin, por lo que
el 6 de septiembre continuose el acto funeral con todo el aparato y solemnidad que en funerales
Reales se acostumbraba, hizo el obispo el offiio. En la ceremonia de la capilla ardiente jug un
destacado papel el pao de brocado que fue custodiado por los jurados de la ciudad hasta que fue
18
AGS, CSR, Leg. 1, fol. 93a. 31 de agosto de 1498. Nmina de pagos ordenada por el rey don Manuel. En fol. 94
la misma nmina es ordenada por los Reyes Catlicos.
19
AGS, CSR, Leg. 1, fol. 93b.
20
AGS, CSR, Leg. 1, fol. 95. El pintor es Felipe Mauros Picardo, documentado desde 1496 (coincidiendo con la
estancia de la Corte en Burgos para los esponsales del prncipe don Juan) al servicio de la princesa como
iluminador, tarea por la que recibir un salario de 15.000 maravedes anuales hasta la muerte de la princesa,
pasando a trabajar para su madre la reina catlica (en AGS, Cy SR, Leg. 1, fol. 26). En octubre de 1499 consta ya
al servicio de Isabel la Catlica (Domnguez Casas, Arte y etiqueta, 127-28).
21
De la Torre, Cuentas de Gonzalo de Baeza, t. 2, 398. Nmina del 10-IX-1498.
22
De la Torre, Cuentas de Gonzalo de Baeza, t. 2, 408-409, 419. Los pagos a otros miembros de la casa siguen
recogindose en las cuentas mucho tiempo despus: al maestro Ampudia, a varias criadas de la difunta, etc. En
De la Torre, Cuentas de Gonzalo de Baeza, t. 2, 458, 471, 478, 479, 485, 489, 511, 575, 612 y 657.
23
AGS, CSR, Leg. 1, fol. 108. Aos despus, se siguen tomando cuentas a Patio; destaca la de 18 de mayo de
1520 en que el entonces comendador daba cuenta de 383.839 reales gastados en Medina del Campo quiz con
motivo de la preparacin de la recmara de la novia rumbo a Portugal: objetos de plata, bordaduras de oro
para la reina de Portugal, sedas, telas, cintas, pao para la cama, almohadas, y 30 arcas para trazer a recamara
desde Medina del campo at estes nossos reinos. Braamcamp Freire, Cartas de quitacio, 204.
24
Al primero por la hechura de unos abanicos de horo que hizo pa(ra) la reyna y princesa en varcalona.
Fernando Llnez de Montemayor ser el platero que mantenga una relacin ms larga con lsabel, trabajando
para ella incluso cuando sta se encontraba en Portugal. Existe una relacin hecha en Lisboa y vora del ao
1498 dando cuenta de lo que hizo Montemayor para la reina difunta. Vase Cruz Valdovinos, Platera en la
poca de los Reyes Catlicos, 246. La referencia al segundo est en relacin con el encargo del prior del
monasterio de San Juan de Jerez para las ymajenes que yo hago a su alteza que santa gloria aya que son san
jorge y san juan evangelista. AGS, CSR, Leg. 1, fols. 98 y 113.
25
El 4 de septiembre fue bautizado don Miguel en la Seo; el cronista Espes aade que la ceremonia se realiz
en la capilla Parrochial de San Miguel que fundo el Arobispo don Lope Hernandez de Luna de rico y
sumptuosso edifiio y dotada de grandes Prebendas.
26
Lop Otn, El convento de Nuestra Seora de Jess.
27
Argumentaban que haer capelarden es insignia Real y que no se puede haer si no en la metropoli porque
el Jurar coronar y haer honras del rey todo se ha de haer en el asseo y que nunca se ha visto lo contrario en la
cassa y Reyno de Aragon y assi que no entienden ni deliberan oyr en dar licencia no llamar las Parrochias por
ser notable perjuizio de las preeminencias de la metropolitana. Espes, Historia ecclesiastica, fol. 725 vto.
341
entregado a la reina doa Isabel. A finales de mes se ordenaba el pago de todas las costas para la
sepultura e obsequias de la Reyna e princesa nuestra muy cara e muy amada hija que aya gloria en el
monasterio de santa maria de hiesus, as como pagar a los plateros que se encargaron de tasar la
plata y oro de la cmara y capilla de la princesa, y gastos en llevar ornamento al monasterio de
Monserrat en Barcelona28.
No se ha localizado hasta la fecha el testamento de doa Isabel. Sabemos, sin embargo por Garca de
Resende y por el historiador Tarsicio de Azcona que la reina dej redactada su ltima voluntad y el
traductor castellano del Carro de las Donas (obra dedicada a doa Isabel e impresa en Valladolid en
1542 por Juan de Villaquirn) tambin referir la existencia de ese documento al escribir: E como
ella hera tan christiansima dex su testamento hecho, y mand que lo que pariesse si fuesse fijo le
pusiessen Miguel, e si fuesse hija, Ana. Mandse enterrar en el hbito de sant Francisco y que la
llevassen a enterrar al devotssimo monasterio de santa Ysabel de Toledo de la orden sancta Clara, la
qual est alli sepultada.29
Como sus testamentarios actuaron sus padres, Fernando e Isabel, y as consta en las cartas que
emitieron en 1499 concediendo la libertad a los esclavos de la reina portuguesa, en cumplimiento de
lo dispuesto por sta30. Poco ms sabemos de sus ltimas voluntades, con la excepcin de una nota
que parece autgrafa de la princesa, sin fechar ni firmar, en la que se recogen las cantidades que
haban de darse a diversas personas y monasterios portugueses31. En este documento se citan
donaciones al monasterio de Jess de Setbal32, a Odivelas, para el coro de Santa Mara de Gracia33,
para el dormitorio de la crcel de Veja34 y para San Benito de Lisboa.
Si volvemos a lo ocurrido en Zaragoza, reunidas las cortes, el 22 de septiembre era jurado como
heredero de Aragn el pequeo prncipe en la Sala Real del edificio de la Diputacin35. Por entonces
se comienza a ordenar la marcha de la comitiva portuguesa36. Don Manuel llegaba a Lisboa el 9 de
octubre37 y el 15 de ese mes los castellanos abandonaban la ciudad del Ebro rumbo a Toledo, donde
en diciembre se llamaba a los procuradores en cortes para jurar al prncipe don Miguel como
heredero al trono castellano38.
28
342
Ya en Lisboa, las cuentas portuguesas recogen referencias a pagos a oficiales de la casa de la reina
difunta en consideracin a los servicios prestados39. Contina Espes que En Prinipio del mes de
octubre fue lleuado el cuerpo de la Prinesa a sepultar al monasterio de religiosas de Santa Isabel de
la Ciudad de Toledo que fundaron el Rey y la Reyna en las casas que fueron de Doa Ines de Ayala
madre de Doa Marina de Cordoba primera mujer del Almirante don Fadrique que fue madre de la
Reyna doa Juana muger segunda del Rey don Juan y aguela del Rey catlico40. Como era su deseo
fue enterrada en el coro, en un espacio incorporado por entonces a los pies de la iglesia. Era
entonces un convento en obras; en torno a estas fechas se proceda a la reconstruccin de la
cabecera del templo anexionndose la antigua iglesia de San Antoln y unas antiguas casas llamadas
de la reina. Para todo ello se haba dado permiso en agosto de 1497 y la obra estaba terminada en
154341. En la portada principal an podemos contemplar junto a las armas de Castilla, restos de la
antigua fachada de los palacios de la abuela del rey sobre los que se fund el monasterio (Fig. 2).
Aos ms tarde, la reina Isabel la Catlica en su testamento (fechado el 12-X-1504) declara su
intencin de que le acompae a la Capilla Real de Granada el cuerpo de su querida hija: luego que
mi cuerpo fuere puesto e sepultado en el monasterio de Sancta Isabel de la Alhambra de la ibdad de
Granada, sea luego trasladado por mis testamentarios al dicho monasterio el cuerpo de la reyna e
prinesa doa Ysabel, mi hija que aya sancta gloria42. Es as, que la reina de Portugal, doa Isabel de
Castilla, deba reposar en la Capilla Real de Granada, donde se encuentra el cuerpo de sus padres, su
hijo y su hermana Juana junto a su esposo. Sin embargo, hoy lo cubre una moderna tarima de
madera en el coro de las monjas, sin lpida ni recuerdo alguno hacia esa mujer cuya vida fue
fundamental para el destino de los reinos peninsulares.
En Toro (Zamora) el 5 de marzo de 1505 se toma el cargo a Juan de Velzquez, testamentario de la
reina Isabel la Catlica difunta, de unas arcas que quedaron en posesin de la reina y que haban
pertenecido a su hija Isabel43. Junto al resto de los bienes de su madre difunta, el contenido de estas
arcas es subastado en almoneda excepto la ropa en que muri la infanta, razn por la que no se tasa
ni se vende. Se trata de un interesante conjunto de ajuar domstico, libros devocionales e imgenes
religiosas que se tasan y se venden, como una tabla de la Vernica que se vendi a Mara de Velasco
en 3.000 maravedes, un San Juan Bautista que inclua la imagen del rey Fernando y el prncipe don
Juan que fue regalado a Pero Garca, una tabla pintada de la Salutacin, un lienzo con la Quinta
Angustia y la Madgalena, otro lienzo de la muerte de la Virgen, cuatro imgenes de oro que son de
las de Daroca, etc. A esta lista se aaden adems tapices y retablos (algunos tasados por Felipe
Morras, identificado con Mauros Picardo), as como joyas, relicarios de oro, cuentas de mbar, jarras,
rosarios, portacartas, cofrecillos, patenas y un arca de libros manuscritos y de molde, en general de
temtica religiosa (como varios con los sermones de San Agustn). Otro de estos cofres fue enviado a
la entonces nueva reina de Portugal, hermana de la difunta. Otra nmina de libros de la reinaprincesa fueron vendidos aparte; segn una relacin hecha en Arvalo el 11 de junio de 1505 se
apreciaron 21 libros de la difunta entre los que se citan varios libros de mano. Destaca un
Regimiento de Prncipes historiado en su primera hoja con la imagen de los Reyes Catlicos, todo de
intercambiaron para negociar las alianzas matrimoniales de los hijos de los reyes. De hecho, parece que al
menos hizo dos retratos de la reina de Portugal (Alonso Ruiz, Emmanuelis iter in Castellam).
39
A Joao Afonso de Beja, a Fernando Brandao, criados de la reina, a Isabel de Sosa, su camarera mayor, a Joao
de Meneses su mayordomo mayor, a Pedro de Castro, veedor de su hacienda, etc. Arquivo Nacional Torre do
Tombo (Lisboa), Chancelaria de don Manuel I, livro 41, fol. 73 vto., documentos n. 720, 721, 724, 731, 734,
740.
40
Espes, Historia ecclesiastica, fol. 728.
41
Sobre este convento vase AA.VV., Arquitecturas de Toledo, vol. I, 180-192.
42
Torre y del Cerro, Testamentara de Isabel la Catlica, 88.
43
Id., 262-271, en AGS, Contadura Mayor de Cuentas, 1 poca, Leg. 192, fol. 51.
343
letras azules, coloradas y verdes, as como libros de molde de temtica religiosa (un sacramental, un
libro de los sermones de San Agustn y otro con sus obras)44.
*******
Este trabajo saca a la luz donaciones a construcciones portuguesas realizadas por la reina Isabel de
Portugal, a la vez que reconstruye los ltimos das de vida de esta infanta, princesa y reina. La
realidad artstica y material de este ltimo viaje de la hija primognita de los Reyes Catlicos refleja
la importancia de los objetos suntuarios y artsticos entre las lites cortesanas de finales del siglo XV,
a la vez que revela una destacada carga devocional. Si la reina Isabel La Catlica fue una de las
promotoras artsticas ms importantes de su tiempo, consciente de la utilidad del lenguaje artstico
como smbolo de poder, su hija primognita no vivir ajena a ese mundo artstico si bien la presencia
de artistas a su servicio (Felipe Mauros, pintor iluminador, plateros, etc.) fue considerablemente
menor a los de su progenitora y destacando en ella un fuerte componente devocional que le aleja del
papel jugado por su madre.
44
344
345
BIBLIOGRAFIA
346
347
Referidas sobretudo em trabalhos de mbito monogrfico, e como tal numa perspectiva isolada e
essencialmente descritiva, os paos do concelho ou casas da Cmara tm despertado nos ltimos anos um
interesse renovado. Aos trabalhos das autoras deste texto, desenvolvidos com enfoques e cronologias diversos,
soma-se a recente investigao de fundo de Carlos Caetano. A sua recolha exaustiva possibilita, pela primeira
vez, uma viso global do conjunto de edifcios dedicados gesto concelhia em todo o espao nacional, entre
os sculos XIV e XVIII. Veja-se Caroline Almeida Arago Cabral, Casos de Cmara do sc. XV ao sc. XVIII: Uma
anlise da evoluo (Prova Final de Licenciatura, Universidade de Coimbra, 2003); Lusa Trindade, Urbanismo
na composio de Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidad de Coimbra, 2013 (1. ed. de 2009); Carlos
Caetano, As Casas da Cmara dos Concelhos Portugueses e a Monumentalizao do Poder Local (Sculos XIV a
XVIII), (tese de doutoramento, Universidade Nova de Lisboa, 2011); Lusa Trindade, Casas da Cmara ou Paos
do Concelho: espaos de poder na cidade tardo-medieval portuguesa, in Evoluo da paisagem urbana:
sociedade e economia, ed. Arnaldo Sousa Melo e Maria do Carmo Ribeiro, (Braga: Citcem, 2012), pp. 209-227;
Caroline Almeida Arago Cabral, Casos de Cmara. Quatro Paos na Consolidao de um Modelo, (dissertao
de mestrado, Universidade de Coimbra, 2012).
2
Jos Custdio Vieira da Silva, Paos medievais portugueses, (Lisboa: Instituto Portugus do Patrimnio
Arquitectnico, 2002), pp. 89-90.
3
Jorge Rodrigues, Os Paos medievais de Avis, in Carlos Alberto Ferreira de Almeida: memoriam, coord. M.
Barroca, (Porto: FLUP, 1999), pp. 303-307.
348
corredor/galeria a uma vasta sala. Em ambos os casos a ligao faz-se por um portal ladeado por
janelas duplas num esquema similar ao das salas capitulares monsticas e catedralcias onde o
dispositivo portal-dupla janela se rasga sobre uma das naves ou galerias do claustro. Como se,
quando confrontados com a necessidade de criar um espao prprio para as suas reunies, os
homens-bons tivessem procurado inspirao nas salas do captulo, funcionalmente idnticas e j
amplamente testadas, por eles prprios, alis, que a elas tantas vezes recorriam por emprstimo.
Nos claustros, como agora nas casas da Cmara, a soluo de galeria associada a uma sala rasgada
por uma srie de janelas respondia a duas exigncias principais: fazer preceder o espao de reunio
de um espao de espera capaz de albergar um nmero considervel de pessoas; criar, entre um e
outro, e logo entre os membros que renem no interior e os que aguardam e observam do exterior,
uma relao visual e auditiva permitindo diferentes nveis de participao4.
Reduzido ao salo, mas desenvolvendo at a permeabilidade entre interior/exterior, o edifcio de
Bragana surge rasgado em todas as faces por arcaria contnua. Na ausncia de outros testemunhos
materiais saliente-se como a recorrncia a solues vazadas arcarias, galerias, prticos ou simples
alpendres amplamente reforada pela documentao, bastando para tal lembrar o Pao em
arcos, do Porto5, ou as castras de vora6 e Montemor-o-Novo7.
Esta opo tipolgica foi, alis, comum a toda a zona de influncia mediterrnica. Da Lombardia
Pennsula Ibrica, as laubia, loggeas ou lonjas tornaram-se um trao identificativo dos edifcios
camarrios. A fortuna do modelo justifica-se por uma longa associao entre espaos porticados e
duas prticas concretas: o exerccio da justia8 e o desenrolar de atividades comerciais9. Ora qualquer
destas duas funes ocupou um lugar central na gesto concelhia.
Era em prticos trreos que os monarcas ou os seus representantes exerciam a justia. A justia
concelhia, ela prpria um brao da justia rgia, adoptaria o mesmo esquema. Associada funo
judicial, a utilizao da Casa da Cmara para atividades comerciais ter sido, porventura, at mais
determinante. Os Paos concelhios acolhiam no seu interior, ou na sua proximidade imediata, o
monoplio de determinadas transaes. Por necessidade de controlo e fiscalizao, a venda de
cereais e carnes recaa sob a sua alada direta, pelo que fangas e aougues ocuparam
frequentemente o piso trreo dos edifcios camarrios. E tambm para tal as arcadas surgiram como
a resposta mais adequada. Viana do Castelo ( poca Viana da Foz do Lima), Guimares, Braga, Vila
do Conde, Leiria, Coimbra e Setbal so alguns exemplos de uma lista interminvel.
Em sntese, tudo parece concorrer para a adopo de estruturas vazadas nos edifcios destinados
gesto urbana: a possibilidade de reunir de forma mais ou menos alargada consoante os assuntos em
debate; o exerccio e visibilidade da justia; a acessibilidade nas trocas comerciais, so aes que
explicam a associao entre espaos fechados e outros que estabelecem uma relao aberta com a
envolvente urbana.
4
Lusa Trindade, Urbanismo na composio de Portugal, pp. 631-634. Sobre a casa do captulo cabea do
claustro e sua configurao, veja-se Heidrun Stein-Kecks, Claustrum and capitulum: some remarks on the
faade and interior of the chapter house, in Der mittelalterliche Kreuzgang: The medieval cloister le clotre
au Moyen ge, architektur, funktion und programm, (Regensburg: Schell-Steiner, 2003), pp. 157-160.
5
Artur de Magalhes Bastos, Notas e comentrios: os diversos paos do concelho da cidade do Porto, in
Vereaoens, anos de 1390-1395. O mais antigo dos Livros de Vereaes do Municpio do Porto existentes no seu
Arquivo, (Porto: Cmara Municipal, 1937), pp. 252-258.
6
Gabriel Pereira, Documentos histricos da cidade de vora, (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
fac-smile da edio de 1885, 1998), p. 144.
7
A. Banha de Andrade, Breve Histria das runas do antigo burgo e concelho de Montemor-o-Novo, (vora:
Grupo dos Amigos de Montemor-o-Novo, 1977), p. 15.
8
Jos Custdio Vieira da Silva, Paos medievais portugueses, pp. 216-217.
9
Logge e/y Lonjas. I luoghi del commercio nella storia della citt. Los lugares para el comercio en la Historia de
la ciudad, a cura di Giancarlo Cataldi e Roberto Corona, (Firenze: Alnea, 2002).
349
Na segunda metade de Quatrocentos, testado e apurado o programa, parece estar definida uma
estrutura tipo. Para esta poca contamos com um nmero muito superior de casos, mesmo que
alguns apenas por registo grfico ou escrito. A explicao para tal reside no surto construtivo que, de
norte a sul, varreu todo o reino, atingindo o auge no governo de D. Manuel. nesta poca que
expresses como um bom e fermoso pao do concelho no milhor e mais nobre lugar da uila
ganham todo o sentido. O crescimento generalizado das vilas e cidades aliado vontade poltica de
configurar uma nova centralidade10, concentrando nas novas praas fora de portas os principais
equipamentos urbanos e os smbolos tangveis de um estado centralizado, cria a oportunidade ideal
para a reedificao das sedes concelhias, agora com uma maior visibilidade e um marcado impacto
urbanstico.
Insistentemente, as vereaes reclamam novos edifcios, mais condizentes com a nobreza do burgo,
mas tambm com a nobreza a que essas mesmas elites se pretendem guindar. Estas aristocracias
urbanas mimetizam os cdigos e valores da aristocracia de sangue. Vestem-se maneira da nobreza,
habitam nas melhores ruas, rodeiam-se de criadagem. Desfilam nas procisses e nos cortejos em
montadas ricamente ajaezadas e envergando vestes e joias ricas e deslumbrantes, entram na igreja
com grandes comitivas e ocupam os lugares mais honorveis. Enfim, ostentam a riqueza, o poder e
a honra. Em vida e na morte11.
No admira, por isso, que na consolidao do modelo arquitectnico da sua sede de atuao poltica
seja igualmente detetvel uma aproximao deliberada imagem do pao nobre. No se trata
apenas das arcadas cuja presena se justifica (tambm) por questes funcionais, embora esse seja j
um primeiro ponto de contacto. Referimo-nos apropriao de elementos da iconografia pa, como
os coroamentos ameados, as pedras de armas ou a adopo da torre.
Da conjugao destes elementos resulta uma tipologia que, sobretudo a norte, revela uma
consistncia invulgar: surpreendente a proximidade entre as casas da Cmara de Barcelos, Viana,
Guimares, Freixo de Espada Cinta, Braga ou Vila Real.
Trata-se, em todos os casos, de um edifcio isento de volumetria rectangular, com arcada trrea
ocupando toda a fachada principal e parcialmente as laterais, piso nobre rasgado por amplas janelas
e coroado por ameias.
Remetem para a composio do corpo joanino do Pao de Sintra, do Pao de Belas ou da Casa
Cordovil, em vora. Alis, de que a arquitetura nobre era um paradigma conscientemente
mimetizado pelas vereaes, so testemunho os modelos escolhidos pelos homens-bons portuenses
para a torre que erguiam em 144312: uma escada idntica do Pao do Senhor Bispo, que vai para a
sua Cmara; um tecto para a sala de reunies, feito pela guiza que Nosso Senhor El-Rei mandou
fazer a sala do castelo de Lisboa ou doutra guisa melhor ainda13.
Chaves, Mono, Pvoa do Varzim, Vila Flor ou Guarda seguem o modelo embora simplificando-o,
prescindindo, por exemplo, do renque de ameias. Demostram igualmente a fortuna do modelo ao
10
Walter Rossa, A Cidade Portuguesa, in Histria da Arte Portuguesa, dir. Paulo Pereira, (Lisboa: Crculo de
Leitores, 1995), vol. 3, pp. 260-263.
11
Maria Helena da Cruz Coelho, O Estado e as Sociedades Urbanas, in A Gnese do Estado Moderno no
Portugal Tardo-Medievo (Sculos XIII-XV), (Lisboa: UAL, 1999), p. 284.
12
Alm do edifcio de Estremoz, assinado pelo mestre Anton, nada sabemos da autoria dos restantes. Note-se,
todavia, que os equipamentos concelhios, no caso dos aougues, mereceram frequentemente uma ateno
acrescida por parte das autoridades que, para a sua edificao, recorreram a arquitetos de renome e com
provas dadas ao servio da Coroa: o de Coimbra, entregue por D. Manuel a Diogo Boutaca; o de Beja, mandado
edificar, em meados do sculo XVI, pelo Infante D. Lus, supostamente com traa de Diogo de Torralva; o de
Elvas, erguido sob orientao de Francisco de Arruda.
13
Artur de Magalhes Bastos, Notas e comentrios: os diversos paos do concelho da cidade do Porto, pp.
252-258.
350
longo de todo o sculo. Facto que agora corroborado pelo Pao de Guimares, um dos mais
emblemticos deste grupo e at agora datado dos anos imediatos a 1516, quando os vereadores
diziam ser necessria uma nova casa do concelho como cumpria vila, porque a que tinham era a
pior do reino e muito desbaratada.
Nova documentao, todavia, obriga a reequacionar os tempos de construo. Trata-se do
levantamento de Guimares de 1569, recentemente identificado na Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro14 e do Tombo de 161215. O rigor do primeiro aliado ao pormenor do segundo confirma que o
edifcio, na feio que hoje lhe conhecemos, s poder ter sido erguido entre essas duas datas,
nunca antes. A credibilidade do levantamento quinhentista, aferida no registo do Castelo, do Pao
dos Duques, dos arruamentos ou na configurao dos quarteires, no permite pr em dvida a
realidade representada no local onde hoje se situa o Pao do Concelho, nem to pouco a sua relao
com a praa de S. Tiago, ento muito diferente. Efetivamente, em vez do pao retangular, de fachada
paralela ao largo da Oliveira, surgem claramente desenhados dois topos de edifcios estreitos, lado a
lado. J no Tombo, redigido meia centena de anos depois, descreve-se minuciosamente uma
configurao que, nas suas linhas gerais, facilmente se identifica com a atual: um edifcio que alberga
a cmara e audincia no piso superior, assente sobre arcos onde vendem as hortalias16.
Em Castelo Branco, Vila do Conde, Castelo Novo, sobretudo em vora ou nos j mais tardios edifcios
de Angra do Herosmo e Palmela as janelas do piso nobre do lugar a varandas, dispositivo de
enorme referencial simblico, palco e cenrio dos principais atos da gesto concelhia a partir de
onde a vereao v e vista. E tambm aqui no difcil encontrar as principais referncias:
composies de fachadas conjugando arcarias trreas sobrepujadas por varandas, encontravam-se
no emblemtico Pao da Ribeira, no Pao rgio de Coimbra17, no Marujal18 (Montemor-o-Velho), na
Bacalhoa (Azeito), no palcio dos Condes de Basto (vora) ou no Pao de Arcos (Oeiras), para referir
apenas alguns exemplos.
14
351
neste tipo que se inclui o desaparecido pao quinhentista de Setbal. Erguido na praa noua,
identificada como o milhor e mais nobre lugar da uila, com projeto debuxado na corte e assinado
por Bartolomeu de Paiva, o pao descrito ao pormenor em documentao coeva. A partir de um
primeiro exerccio de desenho, em alado e planta, onde se conjuga toda a informao veiculada
pelos diferentes documentos, entrevemos um edifcio de grande porte, com fachada rasgada em
dupla arcaria, formando a do piso trreo um alpendre e a superior uma varanda.
Ao carcter funcional do alpendre trreo, onde se encontrava o pao do trigo, o aougue e a cadeia,
contrapunha-se o carcter nobre do piso superior, destinado a cmara e sala audincias, com
varanda solhada de castanho, dotada de peitoril e arcos de sarapanel [...] assentes em colunas
com noo na metade laurado darte dos noos que fez as culunas do Mestre nosso senhor na uaranda
das suas casas. Note-se, de novo, a eleio de um pao nobre como modelo.
Coroavam o edifcio duas grinhas com suas bolas de cobre e bandeyras e auitos de samtiago. Em
1534, em visita obra, D. Joo III ordenava que os arquos que aviam de ser sarapanees se fezessem
Redomdos. Verdadeiro dispositivo retrico de representao e poder, o beneficio e melhoria que
trazia vila pelo nobresjmento que a se fez foi aproveitado por D. Joo III para obrigar todos
quantos vivessem na praa ou das suas janelas a avistassem a participar nos custos. A obra foi dada
por terminada em 1537.
No mesmo ano iniciava-se a Nobilissima Caza da Camera de Vila Real, que hoje s conhecemos por
descrio. Mas uma descrio pormenorizada onde todos os parmetros atrs enumerados saem
reforados:
Depois de augmentada a povoaam extramuros se fes nova caza da Camera, vista das
portas principais da muralha formada sobre seis arcos que tem por tres lados. Em sima dellas
fica huma baranda com suas colunas de pedra he esta caza, grande, quadrada e muy
levantada, cujas paredes sam coroadas de ameeyas em tal forma que representa hum grande
castello; entre as jenellas estam gravadas as armas reais como se pratica, douradas e
pintadas19.
Como se pratica, sublinhamos. No apenas as pedras de armas mas o partido geral. Da sua
expanso, geogrfica e temporal, do conta os edifcios concelhios erguidos em Baaim, na ndia, e
Angra do Herosmo, nos Aores, para recorrer apenas a dois exemplos.
A verdade que, no decorrer de Quinhentos, o Pao do Concelho torna-se um dispositivo retrico de
prestgio e afirmao social compensando, pelo poder da imagem, a perda efetiva de poder que um
estado progressivamente mais centralizado e atuante inevitavelmente significava para as elites
locais.
19
Fernando de Sousa e Silva Gonalves, Memrias de Vila Real, (Vila Real: Arquivo Distrital Cmara Municipal,
1987), 1. vol., p. 204.
352
Fig. 1 Antigos Paos do Concelho de Estremoz (1 e 2), Bragana (3) e Monsaraz (4, 5 e 6)
Fig. 2 Paos do Concelho de Barcelos, Viana do Castelo, Guimares, Braga, Freixo de Espada Cinta e Chaves
(os trs ltimos desaparecidos)
353
Fig. 3 Reconstituio hipottica das Casas da Cmara de Barcelos, Viana da Foz do Minho (do Castelo) e
Guimares
Fig. 4 Paos do Concelho de Mono, Pvoa do Varzim, Vila Flor, Castelo Branco, Vila do Conde e Castelo
Novo
354
Fig. 5 Pao de Sintra, Pao de Belas (Sintra) e Casa Cordovil (vora). Pao do Marujal (Montemor-o-Velho),
Quinta da Bacalhoa (Azeito) e Palcio dos Condes de Basto (vora)
Fig. 6 Reconstituio hipottica da planimetria da Casa da Cmara de Setbal (piso trreo e piso nobre)
355
356
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. Urbanismo na composio de Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013.
358
Primeiro trabalho apresentado sobre os Claustros Portugueses do Renascimento, depois continuado no artigo
publicado na Portuguese Studies Review, vol. 22, n. 2 (2015).
2
Vide Quadro 1 em anexo.
359
capitis compsitos e os ngulos cortados das galerias do claustro. Importa, no entanto, fazer notar
que enquanto no ptio de Urbino a colunata assenta diretamente no pavimento, em Viseu ainda se
mantm o murete (herana medieval) que separa as galerias do ptio e, por outro lado, o segundo
piso de Viseu data do incio do sculo XVIII.
Esta composio-tipo nunca fora divulgada na tratadstica at data de 15283 (quando comearam
as construes no claustro da S de Viseu) e apesar de j circularem em Portugal diferentes edies
de Vitrvio (de Fra Giocondo, 1513 e 1522; de Cesare Cesariano, 1521) (Fig. 2) e a edio lionesa de
1523), alm dos tratados de Luca Pacioli (1494 e 1509) e de Diego de Sagredo (1526), Frommel (p.
14) j esclareceu que a composio de Brunelleschi ultrapassa Vitrvio e s seria a posteriori
justificada no De re aedificatoria escrito pelo aluno de Brunelleschi4, concluindo-se que a importao
das formas do palcio ducal de Urbino s pode ter sido realizada por via da cultura visual do
arquiteto que o desenhou segundo as concees estilsticas renascentistas, que tomavam no
Portugal de Quinhentos a designao de ao romano.
As semelhanas de composio arcaria no piso inferior e colunata arquitravada no superior e
correspondncia das pilastras ou botarus dos dois pisos , entre o claustro do Convento de Nossa
Senhora da Graa (1532) em vora (Fig. 3) da autoria de Miguel de Arruda (?-1563) e Nicolau
Chanterene (c. 1470-1551) e o claustro de Santa Maria della Pace (comeado em 1500) em Roma da
autoria de Donato Bramante (1444-1514) so notrias. Contudo, note-se que na obra bramantesca a
cada arco de volta perfeita, emoldurado por pilastras jnicas adossadas, corresponde no piso
superior a dois pilares na mesma direo das pilastras, com uma nica coluna entre ambos, o que
acentua a verticalidade, cria simetria, ritmo e harmonia atravs do complexo jogo equilibrado de
foras verticais e horizontais. Em vora as propores so diferentes: a cada dois arcos geminados de
volta perfeita, intervalados por um botaru, correspondem trs vos definidos por quatro colunas
emolduradas por um botaru, na continuidade do que vem do piso inferior. Apesar de as
semelhanas entre os dois claustros ser relativa, o modo ao romano de todo convento eborense
revela o conhecimento da linguagem clssica e do que os grandes artistas do Renascimento, desde
Bramante a Miguel ngelo, estavam a fazer, e neste caso o tratado de Diego de Sagredo (Fig. 4) pode
ter tido um papel mais relevante do que o modelo apontado. vora era um dos polos onde fervilhava
o humanismo, os debates em torno de escavaes arqueolgicas e do conhecimento terico da
arquitetura clssica, nomeadamente da parte dos dois protagonistas Chanterene, considerado um
dos responsveis pela introduo do Renascimento em Portugal, e Miguel de Arruda, mais conhecido
pelas obras de arquitetura militar, mas no nos podemos esquecer de que era cunhado do arquiteto
cuja obra mais revela a erudio da tratadstica Diogo de Torralva e com o qual poderia ter
trocado informaes, experincias e imagens.
No entanto, existe outro claustro, quanto a ns, cuja composio muito mais prxima do de Santa
Maria della Pace do que o dos Meninos da Graa: o claustro do Convento de S. Gonalo (15451586) em Amarante, da autoria de Frei Julio Romero (traado?) e Mateus Lopes (arquiteto ativo
durante o perodo de construo do claustro). Neste, a nica diferena face ao claustro romano
que as pilastras adossadas foram substitudas por botarus e estes correspondem, no piso superior, a
duas colunas e no a pilares. At cerca de meados do sculo XVI, circulavam em Portugal mais
algumas edies de Vitrvio, como a veneziana de Durantino de 1535, a francesa de Jean Martin de
1547 e a lionesa de Guillaume Philandrier de 1552; vrias de diferentes livros de Sebastiano Serlio
(de 1537, de 1544 e trs de 1551) e outras de Leon Battista Alberti (com certeza adquiridas a
3
Data em que, segundo Frommel, foi divulgada numa edio de Vitrvio. Cf. Frommel, 2007, p. 14.
Vide Ana Duarte RODRIGUES, The circulation of art treatises in Portugal between the XV and the XVIII
centuries: some methodological questions, in Tratados de Arte em Portugal/Art Treatises in Portugal, Lisboa:
Scribe, 2011, pp. 21-42. de notar que no se sabe a provenincia do exemplar do De re aedificatoria de Leon
Battista Alberti de 1485, e neste caso at de supor que tenha sido comprado depois do Renascimento,
conforme dito no texto supracitado.
4
360
posteriori). de chamar a ateno para o facto de, em 1542, o livro Medidas del Romano de Diego de
Sagredo ter conhecido duas edies em Portugal, e o De re aedificatoria de Alberti ter sido traduzido
em 1551 pelo famoso humanista Andr de Resende o que sintomtico da importncia e fama
alcanadas pela tratadstica em terras lusas. Como questiona Mario Carpo (2001) How do you
imitate a building that you have never seen? Ter de ser baseado numa descrio ou desenho
trazido de Roma, que pode ser complementado in loco com o uso dos tratados de ordens para o
desenho de colunas e capitis e definio das propores. Mas o modelo parece ter efetivamente
circulado em Portugal porque o claustro da portaria do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaa5
muito semelhante ao de Santa Maria della Pace.
Em Portugal, a divulgao de modelos poderia ser realizada atravs da troca de experincias entre os
arquitetos e, foi assim que, provavelmente, o claustro de Nossa Senhora da Graa em vora se
tornou modelo para uma srie de claustros, nomeadamente o da Hospedaria no Convento de Cristo
(1541) em Tomar, de Joo de Castilho; o claustro de Nossa Senhora da Assuno (1543) em Faro, de
Afonso Pires; e o claustro de Nossa Senhora da Graa (1544-48) em Coimbra, da autoria de Diogo de
Castilho: em todos eles os arcos geminados de volta perfeita emoldurados por botarus
correspondem a uma colunata arquitravada igualmente ritmada por botarus que acentuam a
verticalidade.
A semelhana entre o claustro do Mosteiro de Santo Agostinho da Serra (c. 1570) (Fig. 5) em Vila
Nova de Gaia6 e o ptio do palcio de Carlos V adjacente ao Alhambra (1527) da autoria de Pedro
Machuca evidente. Porm, a planta circular, mesmo depois de ser considerada a mais perfeita das
formas e utilizada por Bramante em 1502 na conceo do claustro circular de S. Pietro in Montorio,
que apesar de nunca concludo, foi divulgado por Sebastiano Serlio no Il Terzo Libro (1540), era muito
rara. Depois de a planta do Tempietto ser divulgada por Serlio, exemplos de plantas circulares de
claustros divulgados pela tratadstica s voltam a aparecer no tratado de Pietro Cattaneo. O nmero
de colunas completamente diferente: o claustro da Serra do Pilar tem 36 colunas jnicas enquanto
o projeto bramantesco s teria 16, por isso difcil consider-lo como fonte para o claustro da Serra
do Pilar. Curiosamente, constata-se que em Vila Nova de Gaia, numa baliza cronolgica apertada,
vrias plantas circulares so traadas: a igreja e o claustro do Mosteiro da Serra do Pilar e a igreja do
Convento do Corpus Christi7.
Investigaes recentes8 reavaliaram o envolvimento no projeto do claustro da Serra do Pilar de dois
dos mais eruditos e atualizados arquitetos portugueses: Joo de Ruo (at. 1510-1572) e Diogo de
Castilho (finais do sculo XV-1574), que durante vrias dcadas trabalharam em parceria. Ainda
assim, antes deste claustro Joo de Ruo j tinha trabalhado no Claustro da Manga e tinha feito a
Porta Especiosa em Coimbra (na qual usara como fonte de inspirao a fachada do palcio ducal de
Urbino, confirmando-se a ideia de que as obras de Francesco di Giorgio Martini eram conhecidas em
Portugal). Diogo de Castilho, filho de Joo de Castilho o grande arquiteto da capela de Nossa
Senhora da Conceio em Tomar, inspirada na edio de Cesare Cesariano de Vitrvio , realizar o
5
Agradeo a chamada de ateno a Andr Varela Remgio por me ter falado deste claustro da portaria do
Mosteiro de Alcobaa quando assistiu conferncia por o reconhecer no seio da famlia dos claustros que a
eram apresentados.
6
Mais conhecido como Mosteiro da Serra do Pilar, como daqui em diante nos referiremos a ele. A localizao
onde o encontramos atualmente no a original, pois foi deslocado para este stio na transio para o sculo
XVII. Cf. Joaquim Jaime Ferreira Alves, Ntula para a histria do Mosteiro de Santo Agostinho da Serra, p.
297.
7
No tratado de Pietro Cataneo (1554, data da primeira edio a circular em Portugal) so divulgadas vrias
plantas circulares, alm do claustro de S. Pietro in Montorio (Roma), mas sobretudo de outras igrejas e, no que
arquitetura civil diz respeito, nas plantas de palcios aparecem os ptios, cujas plantas lembram as dos
claustros, sendo que propostas de claustros para se fazerem outros claustros nunca aparecem.
8
Vide Ana Duarte RODRIGUES, Renaissance Cloisters in the Iberian Peninsula and the American Colonies: the
circulation of meanings and forms, in Portuguese Studies Review, no. 22, vol. 1, 2014 (no prelo).
361
claustro do Colgio de Nossa Senhora da Graa em Coimbra, sendo certo que estaria familiarizado
com a tratadstica e o seu uso na criao de arquitetura. Pois mesmo sendo o ptio de Pedro
Machuca de 1527 o modelo para este claustro difcil imaginar o seu projeto sem o recurso a uma
cultura terica e livresca que informasse e estimulasse o conhecimento da gramtica clssica.
Por outro lado, deve ter-se em conta a erudio dos encomendantes e as bibliotecas existentes
nestes conventos e mosteiros. No existindo um estilo de Ordem, no deixa de ser surpreendente
como a Ordem dos Agostinhos (ou, melhor dizendo, da famlia agostiniana) se destaca na
encomenda de mais claustros ao romano: o Claustro da Manga do Mosteiro de Santa Cruz, da
Ordem dos Agostinhos e um dos mais ricos do pas; o de Nossa Senhora da Graa em vora, dos
Agostinhos Calados; o da Serra do Pilar e o de S. Salvador do Grij, da Ordem dos Agostinhos; o do
Colgio de Nossa Senhora da Graa em Coimbra, dos Eremitas de Santo Agostinho; e o claustro Novo
do Colgio, dos Agostinhos em Coimbra. Para os Agostinhos trabalharam assim arquitetos como Joo
de Ruo, Miguel Arruda, Nicolau Chanterene, Diogo de Castilho, Francesco Velasquez e Filipe Terzi,
num arco cronolgico de cerca de 70 anos (c. 1530-1600). Que ilaes se podem tirar daqui? Desde
logo, h que dizer que se trata de uma das Ordens mais ricas em Portugal, com mosteiros como
Santa Cruz em Coimbra e So Vicente em Lisboa. Em segundo lugar, a reforma da Ordem no sculo
XVI pode explicar em parte o surto construtivista, pela vontade de mudana que essas iniciativas
encerram. O facto de ser entregue a obra claustral a arquitetos de primeira gua prova a importncia
que o espao do claustro desempenhou na vontade de renovao da famlia agostiniana.
Finalmente, Kubler j tinha demonstrado que o Claustro Grande do Convento de Cristo (Fig. 6)
desenhado por Diogo de Torralva (1500-1566) se inspirara na conjugao de vrios mdulos, todos
eles retirados do tratado de Sebastiano Serlio, Il Terzo Libro (1540). O arco do mdulo inferior
claramente retirado da imagem do Teatro de Marcelo (Serlio, Il Terzo Libro, p. 46) e o mdulo em si
semelhante a uma loggia fatta a Belvedere nei giardini del Papa (p. 138); o mdulo superior
parece-nos retirado da Priso de Orlando (p. 61), substituindo apenas os nichos por vos
retangulares, cujo desenho nos parece ter inspirado no s a fachada, mas a sua volumetria tambm
se parece repercutir na espessura dos mdulos que constituem o claustro. A relao entre os dois
pisos tambm deve ter sido inspirada pelas loggie do Belvedere (p. 141) (Fig. 7).
O Claustro Grande do Convento de Cristo em Tomar torna-se modelo para outros claustros,
sobretudo por via do arquiteto filipino Filipe Terzi (1520-1597), que a trabalhou numa fase final e
leva a soluo do criptoprtico, fechando no entanto os vos quadrangulares, para criar o mdulo do
piso trreo do claustro do Colgio dos Agostinhos de Coimbra (1593). Mais tarde um dos seus
discpulos, Diogo Marques Lucas, vai inspirar-se nesse mdulo mas substituindo as colunas por
pilastras no claustro de So Bento da Vitria no Porto (1608-1728).
Enquanto a passagem do modelo nestes casos claramente explicada pela presena do mesmo
arquiteto de forma direta ou indireta, as poucas semelhanas ao nvel dos mdulos com o ptio do
palcio dos duques de Feria em Zafra (Fig. 8) explicar-se-o, provavelmente, por via do uso do
tratado de Serlio e no por inspirao no Claustro Grande do Convento de Cristo em Tomar, que tem
uma escala e complexidade de desenho muito superiores ao ptio do palcio ducal de Zafra.
A linguagem internacional dos claustros portugueses do Renascimento na 1. metade do sculo s se
explica com uma enorme vontade de atualizao e erudio dos nossos arquitetos, num tempo em
que um tratado, um desenho ou uma simples descrio tinham um valor nico.
362
363
Fig. 4 Diego de Sagredo, Medidas del Romano agora nuevamente impressas Y anadidas de muchas
pieas e figuras muy necessrias alos officiales que quieren seguir las formaciones delas basas, colunas,
capiteles, y otras pieas de los edifcios antguos, (Lisbona: imprimido por Luis Rodrigues, 1542), s.p. [p.80].
(reproduo autorizada por Biblioteca Nacional de Portugal, RES. 6082 P.)
364
Fig. 5 Claustro do Mosteiro da Serra do Pilar. Imagem cedida pelo Exrcito Portugus.
365
Fig. 7 Teatro de Marcelo, in Sebastiano Serlio, Il Terzo Libro de Sebastiani Serlii Bononiensis de
Architectura Libri quinque, quibus cuncta fer architectonicae facultatis mysteria doct perspicu...,
Venetiis: apud Franciscum de Franciscis. Senesem & Joannem Chriegher, 1569 [1540]), p. 116.
(autorizado por Biblioteca Nacional de Portugal, RES. 2106 A)
Fig. 8 Ptio do Palcio dos Duques de Zafra. Imagem autorizada por Parador de Zafra.
366
Quadro 1
Nome do
claustro/localizao
Ordem do Convento
(quando se aplica)
ou outro
Data
Arquiteto
Claustro de Afonso V do
Mosteiro da Batalha
Ordem dos
Pregadores/Ordem
Dominicana
C. 1450
Ferno de vora
Claustro do Convento do
Varatojo em Torres Vedras
1470-c.
1490
Claustro do Convento de
Jesus em Aveiro
Dominicanas
1462-1490
Claustro do Mosteiro da
Pena
Ordem dos
Jernimos
Incio 1511
Ordem dos
Jernimos
1517-1519
Joo de Castilho
Claustro da S de Viseu
Igreja secular
1528-1530
Francesco da Cremona
Claustro da Micha do
Convento de Cristo em
Tomar
Ordem de Cristo
1528-1543
Joo de Castilho
Ordem de Cristo
1533
Joo de Castilho
Claustro da Manga do
Mosteiro de Santa Cruz em
Coimbra
1533-1535
Joo de Ruo
Claustro do Convento de
Nossa Senhora da Graa em
vora
Ordem dos
Agostinhos Calados
1532
Miguel Arruda/Nicolau
Chanterene
Claustro da Hospedaria do
Convento de Cristo
Ordem de Cristo
1541-1542
Joo de Castilho
Claustro do Convento de
Nossa Senhora da Assuno
em Faro
Ordem de Santa
Clara
1543
Afonso Pires
Claustro do Colgio de
Nossa Senhora da Graa em
Coimbra
1544-1548
Diogo de Castilho
367
Quadro 1 (cont.)
Ordem dos
Pregadores/Ordem
Dominicana
1545-1586
Frei Julio
Romero/Mateus Lopes
Ordem de Cristo
1558
Diogo de
Torralva/Francisco
Lopes/Filipe
Terzi/Pedro Fernandes
de Torres (fonte)
Claustro do Mosteiro da
Serra do Pilar
Ordem dos
Agostinhos
1570-1580
Claustro do Mosteiro de S.
Salvador em Grij
Ordem dos
Agostinhos
1572/1581
Francesco
Velasquez/Gonalo Vaz
(fonte)
Claustro do Convento de
Nossa Senhora da Esperana
em Abrantes (j
desaparecido)
Dominicanos e
depois Franciscanos
1576-1621
Claustro do Convento da
Cartuxa
Ordem da Cartuxa
1587
Filipe Terzi/Frei
Giovanni Vincenzo
Casale
Ordem dos
Agostinhos
1593
Filipe Terzi
Claustro do Convento de
So Bento da Vitria no
Porto
Congregao
1608-1728
Claustro do Convento de
Santos-o-Novo em Lisboa
Comendadeiras da
Ordem de Santiago
1609
Baltasar
lvares/Mateus do
Couto
Beneditina
368
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370
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p. 272; Cf. FEBVRE, Lucien; MARTIN, Henri-Jean, O Aparecimento do Livro. Lisboa: Fundao Calouste
Gulbenkian, 2000, p. 118.
2
FURTADO, Jos Afonso, O Livro. Lisboa: Difuso Cultural, 1995, pp. 49-50.
3
CHARTIER, Roger, Histria Cultural: Entre Prticas e Representaes. Lisboa: Difel, 1988, p. 139; IDEM
Introduo, in CHARTIER, Roger (dir.), As Utilizaes do Objecto Impresso. Algs: Difel, 1998, p. 9.
4
DIAS, Eva Sofia Trindade, A Tratadstica Italiana e Francesa: a confluncia de influncias na obra de um artista
portugus do sculo XVIII, in Populao e Sociedade, vol. 20. Porto: CEPESE / Edies Afrontamento, 2012, pp.
25-26.
371
372
10
Vide Quadro 2.
Vide Quadro 3.
12
Vide Quadro 4.
13
ADB, Index da Bibliotheca do Mosteiro de S. Martinho de Tibaens, 1798, Ms. 950 [Disponvel no Arquivo
Distrital de Braga, Braga, Portugal]. RAMOS, Maria Teresa C.F. de Oliveira, A Biblioteca de S. Martinho de
Tibes no sculo XVIII, in Bracara Augusta, vol. LV, n. 110 (123). Braga: Cmara Municipal de Braga, 2007, pp.
268-269.
14
DIAS, Eva Sofia Trindade, A Tratadstica Italiana e Francesa, 2012, pp. 30-35; IDEM, A obra de Frei Jos
de Santo Antnio Ferreira Vilaa na igreja do antigo Mosteiro do Couto de Cucujes, in IV Seminrio
Internacional Luso-Brasileiro A Encomenda. O Artista. A obra. Porto: CEPESE, 2010, pp. 190-191; IDEM,
Memrias do antigo Mosteiro do Couto de Cucujes na poca Moderna: Artistas e Obras (Sculo XVII a XIX).
Dissertao de mestrado em Histria da Arte Portuguesa apresentada Faculdade de Letras da Universidade
do Porto. Porto: Edio do autor, 2010, pp. 157-159; SMITH, Robert C., Frei Jos de Santo Antnio Ferreira
Vilaa: Escultor Beneditino do Sculo XVIII. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1972, vol. 1, pp. 132-149.
15
ADB Tibes. Livro de Rezam do Irmo Fr. Joz de Santo Antonio Villaa natural de Braga do Terreiro de S.
Lazaro, pera nele assentar os defuntos que falecem e tudo o que devo, ou me devem, da mesma sorte o que
inpresto, ou me inprestam, e onde estiver pg. h que est satisfeito ou do que inpresto, ou do que me
inprestam, n. 728 [Disponvel no Arquivo Distrital de Braga, Braga, Portugal].
16
RAMOS, Maria Teresa, A Biblioteca de S. Martinho de Tibes, 2007, pp. 268-269.
Vide Grfico 1. Sobre dados complementares relativos aos tratados existentes na biblioteca do Mosteiro de So
Martinho de Tibes, vide Grficos 2 e 3.
11
373
Compraro-se mais dez tomos do Padre Feyo o Artefato Cemetrial; o Vitrubrio de Arquitetura; e os Bullarios
encadernados, que custaro quatorze mil cento e oitenta reis []. ADB, Congregao de So Bento de
Portugal, Estados do Mosteiro de So Miguel de Refojos de Basto, 1755-1758, n. 132 [Disponvel no Arquivo
Distrital de Braga, Braga, Portugal], fol. 16v.
18
ADB, Index da Bibliotheca do Mosteiro de S. Martinho de Tibaens, 1798, Ms. 950 [Disponvel no Arquivo
Distrital de Braga, Braga, Portugal].
374
dos chafarizes dos claustros. A anlise das estruturas retabulares revela o cruzamento, bem
conseguido, de influncias do tratado de Pozzo com a tratadstica francesa. A obra do padre jesuta
repercute-se essencialmente nos elementos estruturais dos retbulos, como pedestais, colunas e
coroamentos, nos sacrrios e em alguns motivos decorativos, como flores tripartidas ou tarjas. A
tratadstica francesa deixou a sua marca sobretudo em termos decorativos, destacando-se a
influncia dos tratados de Aviler, o Livre Nouveau e o De la distribution des maisons, ambos de
Jacques-Franois Blondel, em pequenos motivos como flores, folhas tripartidas, folhas esvoaantes,
combinaes de ramos com folhas e bagas, fitas, formas em C, simples ou interligadas entre si. No
entanto, no de descurar a forma presente em gravuras destes tratados que influenciou, no s
recortes de retbulos e nichos, mas tambm o recorte de vos de iluminao de algumas fachadas. O
tratado de Briseaux apresenta gravuras com fechos de arcos decorados com folhas de parra, uvas e
espigas que constam da porta de um sacrrio e algumas predelas, gravuras com recortes de nichos
para camas e decorao das paredes laterais do coroamento de chamins cujos motivos e formas
inspiraram os artistas ao servio dos beneditinos. Menos significativa foi a influncia do tratado de
Abraham Bosse, em que as fitas so um elemento recorrente nas diversas portadas existentes na
parte final do tratado. Praticamente nula revelou-se a influncia do tratado Architecture Franoise,
de Blondel. Por constituir essencialmente um manual de Arquitectura, ter fornecido pouca
informao visual s obras analisadas.
Concluso
A abordagem aos reflexos da tratadstica na arte beneditina permitiu-nos verificar que, entre as
casas monsticas analisadas, o mosteiro de Tibes destacou-se como o mais activo no
enriquecimento da sua biblioteca com tratados de Arte e Arquitectura. Este facto justificvel por
esta constituir a casa-me da Congregao, uma das que dispunha de maior capacidade econmica
no contexto beneditino portugus, elementos que nos levam a identific-la como plo irradiador das
principais linhas europeias que influram e nortearam a renovao artstica nos mosteiros
beneditinos. Os tratados, italianos e franceses, constituram um importante meio de que lanaram
mo os monges negros para promoverem a transformao das unidades monsticas. A tratadstica
italiana foi procurada essencialmente pelos modelos arquitectnicos que forneceu, enquanto a
tratadstica francesa revelou-se fundamental em termos decorativos. A combinao destas duas
matrizes distintas demonstra a preocupao dos beneditinos pela orientao das suas opes
construtivas e decorativas com o que de mais actualizado circulava ao nvel europeu. O resultado
final deixa transparecer o brilhante cruzamento da linguagem erudita internacional com a excelncia
de execuo do gnio criativo dos artistas que trabalharam para a Congregao de So Bento de
Portugal.
375
376
Quadro 1
Valores destinados pelo Depsito s bibliotecas dos mosteiros beneditinos portugueses
Distrito
Aveiro
Braga
Porto
Viana do
Castelo
19
Mosteiro
19
Sculo XVII
Sculo XVIII
Sculo XIX
So Martinho de Cucujes
12$000/18$000
36$000
Salvador de Palme
12$000/18$000
36$000
12$000/36$000
36$000/72$000
So Joo de Arnia
12$000/18$000
36$000
So Martinho de Tibes
12$000/36$000
36$000/72$000
18$000/36$000
72$000
12$000/36$000
72$000
Salvador de Travanca
12$000/36$000
72$000
12$000/36$000
72$000
Santo Tirso
12$000/36$000
72$000
So Bento da Vitria
12$000/36$000
36$000/72$000
So Joo de Alpendurada
12$000/18$000
36$000
So Miguel de Bustelo
12$000/18$000
18$000/36$000
Salvador de Ganfei
12$000/18$000
36$000
12$000/18$000
36$000
18$000
36$000
So Joo de Cabanas
18$000
36$000
So Romo do Neiva
Quadro 2
ndices elaborados nas bibliotecas dos mosteiros beneditinos portugueses
Distrito
Aveiro
Mosteiro
So Martinho de Cucujes
Data
-
Salvador de Palme
1770-1773
1743-1746
So Joo de Arnia
1719-1722
Braga
1743
So Martinho de Tibes
1787 (2)
1796
1798
1792-1795
Salvador de Travanca
Santo Tirso
1740-1743
1786-1789
Porto
1725-1728
So Bento da Vitria
1743-1746
1786-1789
So Joo de Alpendurada
1798-1801
So Miguel de Bustelo
1780-1783
1798-1801
Viana
do
Castelo
20
Idem.
Salvador de Ganfei
So Joo de Cabanas
So Romo do Neiva
20
377
Quadro 3
Contedo temtico dos livros das bibliotecas beneditinas portuguesas
21
(segundo a diviso de Frei Francisco de So Lus, para a biblioteca do Mosteiro de Tibes)
Contedos Gerais
Contedos Particulares
Teologia
Jurisprudncia
Cincias e Artes
Literatura
21
ADB, Index da Bibliotheca do Mosteiro de S. Martinho de Tibaens, 1798, Ms. 950 [Disponvel no Arquivo
Distrital de Braga, Braga, Portugal].
378
379
Quadro 4
Provenincia dos livros das bibliotecas beneditinas portuguesas (referncias documentais)
22
Outros
pases
Portugal
Mosteiro
Lisboa
Coimbra
Porto
Braga
Frana
1783-1786
1719-1722
So Martinho de Tibes
1740-1743
1783-1786
1795-1798
1728-1731
Santo Tirso
1758-1761
1770-1773
1773-1776
1770-1773
1725-1728
So Joo de Alpendurada
1786-1789
So Miguel de Bustelo
1801-1804
1731-1734
So Bento da Vitria
22
Grfico 1
Tratadstica presente na biblioteca do Mosteiro de
Tibes
10
8
6
4
2
0
Tratados italianos
Tratados franceses
Grfico 2
Perodo de edio dos tratados da biblioteca do Mosteiro
de Tibes
10
8
6
N de Tratados
4
2
0
Sculo XVI
Sculo XVII
Sculo XVIII
Grfico 3
Lngua de edio dos tratados da biblioteca do Mosteiro
de Tibes
10
8
6
N de tratados
4
2
0
Espanhol
Francs
Italiano
Latim
380
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SMITH, Robert C. Frei Jos de Santo Antnio Ferreira Vilaa: Escultor Beneditino do Sculo XVIII. 2
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381
Tanto Costa como Monteiro figuran en la documentacin catedralicia como vecinos de Villanueva. Si a esto
se aade que Lameira sita al segundo de ellos en Vila Nova de Portimo en 1683, el origen de ambos queda
perfectamente claro. Vase LAMEIRA, Francisco: A talha no Algarve durante o Antigo Regime, Faro, 2000, p.
253.
2
SERRO, Vtor: Andr de Padilha e a pintura quinhentista entre o Minho e a Galiza, Lisboa, 1998.
3
El 30 de octubre de 1694 se abonan al entallador Jos Domnguez Bugarn 100 reales por hazer las hestadas
para dorar el retablo del altar mayor. El 5 de agosto de 1695 el obispo fray Anselmo Gmez dona 7.700 reales
para el retablo de la capilla mayor, que se suman a otros 3.000 aportados en 1694 por su predecesor fray
Simn Garca Pedrejn, para aiuda de dorar el retablo del altar mayor. Archivo Histrico Nacional (AHN),
Clero, libro 10.383, fols. 134v, 138r y 146r.
4
El montante principal asciende a 11.000 reales, remunerados en 1695, a los cuales se aaden ese mismo ao
250 reales que se le adeudan a Monteiro por la pintura de la Patrona y otros 2.000 reales, pagados al mismo
autor, por razn de lo que se le est debiendo por dorar el retablo de la capilla mayor. En 1696 se salda una
deuda de 300 reales contrada con los pintores que doraron el retablo. AHN, Clero, libro 10.383, fols. 139r,
140v, 153v y 158r-v.
5
Tales reconocimientos se abonan a los peritos el 31 de julio y 2 de diciembre de 1695 y el 13 de enero de
1696. Tras el primer examen se efecta una entrega de 60 reales a los pintores que reconoscieron la pintura
del altar mayor, y transcurrido el segundo se desembolsa idntica cantidad a los pintores que uinieron a
reconoer el retablo (AHN, Clero, libro 10.383, fols. 139r y 152r). Los maestros que hacen la segunda
valoracin proceden de la parroquia de Santiago de Tortoreos, pudiendo ser uno de ellos Domingo Pereira
(PREZ COSTANTI, Pablo: Diccionario de artistas que florecieron en Galicia durante los siglos XVI y XVII,
Santiago, 1930, 425-426), vecino de esta feligresa y coetneo de los autores portugueses referidos. El ltimo
examen le cuesta al cabildo 24 reales y recae en Benito de Paredes Salgado (AHN, Clero, libro 10.383, fol. 153r).
6
En el Libro de Fbrica correspondiente se consignan veinte ducados cobrados por el pintor a travs de dos
recibos, de 10 de diciembre de 1696 y de 25 de abril de 1697, por quenta de treinta ducados que haua de
hauer dicho pintor y en que con l estaua conertado pintar el rgano nueuo, que con reziuos del sobredicho
se aran buenos. AHN, Clero, libro 10.383, fol. 181r.
382
Con el cambio de siglo irrumpen en escena otros tres artfices llegados del pas vecino, incorporando
al rea tudense la explosin de oro, color y motivos inherente a la policroma portuguesa7: el
genovs Giovanni Battista Mangino, procedente tericamente del Algarve, y los bracarenses Joo
Fagundes y Estvo da Silva. Sirva el presente trabajo como introduccin documental a la produccin
catedralicia de tales artistas, dejando para ms adelante el estudio pormenorizado de las tcnicas, el
cromatismo y los motivos decorativos.
En la bibliografa sobre este tema hay que diferenciar entre los estudios clsicos, elaborados desde la ptica
de la historia del arte, y los ms recientes, surgidos del mundo de la restauracin. Los primeros han sido
escritos fundamentalmente por Natlia Alves, esencial para el conocimiento de la policroma barroca del Norte
de Portugal (A arte da talha no Porto na poca barroca. Artistas e clientela, materiais e tcnica, 2 vols., Porto,
1989; A actividade de pintores e douradores em Braga nos sculos XVII e XVIII, IX Centenrio da dedicao da
S de Braga. Actas do congresso internacional, II, 2, Braga, 1990, 355-369; y O douramento e a policromia no
Norte de Portugal luz da documentao dos sculos XVII e XVIII, Revista da Facultade de Letras. Cincias e
Tcnicas do Patrimnio, 3, 2004, 85-93). Entre los segundos, que pese a su vocacin tcnica no descuidan el
desarrollo histrico de los colores, procedimientos y motivos, destacan los de Carlos Monar (Policromia da
talha barroca do Noroeste de Portugal, Porto, 2007), Carolina Barata (Caracterizao de materiais e de
tcnicas de policromia da escultura portuguesa sobre madeira, Lisboa, 2008) y, como coordinadora, Myriam
e
e
Serck-Dewaide (Les Techniques utilises dans l'art baroque religieux des XVII et XVII sicles au Portugal, en
Espagne et en Belgique, en Policromia. A escultura policromada religiosa dos sculos XVII e XVIII. Estudo
comparativo das tcnicas, alteraes e conservao em Portugal, Espanha e Blgica, Lisboa, 2004, 119-155).
8
LAMEIRA, Francisco: Elementos para um dicionrio de artistas e artfices que trabalharam a madeira em e
para a cidade de Faro nos sculos XVII a XIX, Anais do Municpio de Faro, XVI, 1986, pp. 127 y 155, y LAMEIRA,
Francisco: A talha no Algarve, op. cit., pp. 255 y 317-318.
9
Las actas de las reuniones del cabildo hacen mencin al pintor jenous que se halla en esta ciudad,
aludiendo quizs a la condicin itinerante de Mangino. Archivo Catedralicio de Tui (ACT), Libro 12 de Actas
capitulares (1712-1722), fol. 139v.
10
ACT, Protocolos notariales, Juan de nsua y Valdivieso, 1716, fols. 63r-65r.
11
Ibdem, fols. 63v-64r.
383
es talla dorado, la cornija y friso dorado y lo liso de color, la coronacin dorada y los santos
estofados12.
El retablo de la capilla mayor ya se haba dorado, pero restaba el trabajo de pincel, para el cual se
usarn los colores que hubiere menester, como tanbin las cajas de los santos y de la custodia,
estofando de todo ello lo preiso13. Es tambin el momento de jaspear con mucho primor el
pedestal de piedra del retablo maior sobre el jaspe que tiene14. La empresa prosigue por las dos
verjas lignarias del presbiterio, dorando las coronaiones, estofando los santos que tubieren, la talla
dellas, colorinos y contrarios que tubieren, los frizos y cornijas y los claros de un buen color
correspondiente15.
La policroma de la rega de fierro, puertas y plpitos de la capilla mayor se plantea del siguiente
modo:
todos los valastros de dicha reja y plpitos de verde, los colorinos y ms orlas dorados, los
frisos y cornijas dorados, y los lisos destos de color, los sombreros de los plpitos pintados y lo
que se neesitare dorado, la coronain dorada y las figuras estofadas16.
Al pedestal grantico de esta ltima cancela se le proporcionar una apariencia de jaspe muy rico,
teniendo adems que asumir, sin mayor coste, los deseos de futuro del cabildo:
si se hiieren otros sombreros en dichos plpitos o se aadiere obra a los que ay se han de
dorar conforme pidiere la escultura, y ansimesmo la coronazin nueba que se hiiere sobre la
reja del Santo Christo17.
Este contrato nos descubre a un profesional alejado del clich del pintor-dorador, con una formacin
ms completa, vindose en la obligacin de trasladar a las bvedas de la capilla mayor un exigente
programa figurativo:
an de pintar y dorar la vueda del presbiterio segn lo demuestra, que es todas las aristas de
los arcos, estrellones y algunos yntermedios dorados, los claros de la vueda de azul, como el
que tienen mejor, con las figuras que dichos seores Den y Cauildo mandaren. El medio
can que est sobre la entrada de dicha capilla maior y media luneta de sobre el Santo
Christo le han de pintar como demuestran, que es la Gloria, Purgatorio e Ynfierno, con figuras
muy proporcionadas, y sobre dicha luneta florones o lo que dichos seores mandaren18.
12
384
de coste20 (Figs. 2-3). En 1728 lo reclama de nuevo el cabildo para proponerle una empresa de
primer orden dentro del panorama artstico gallego: la policroma del retablo de la Virgen de la
Expectacin, costeada por el obispo Fernando de Arango y Queipo (Figs. 4-5). La dimensin de la
encomienda y la exigidad del plazo, fijado en medio ao, obliga al pintor a establecer contactos en
el medio local en busca de avales y ayudantes, presentando como tales a Ignacio lvarez de Lara,
Juan Antonio y Francisco Roln de Santa Cruz y Jos de Montemayor. El instrumento de concierto
pone nfasis, de nuevo, en la calidad del oro, el ms uien batido y de ms subidos quilates21. Al
basamento de cantera sobre el que descansa el mueble se le dar un color jazpeado a leo para su
manutenzin, mientras que el banco
a de ser dorado todo l con sus fondos, y en los fondos que se allaren en l el color que le
diere enzima del oro a de ser un verde estilado, sin que entre otro color alguno, menos que si
se allaren entre la talla de l algunas flores, sas las estofar22.
El cuerpo de este artefacto lignario presenta dos partes perfectamente diferenciadas, por un lado el
camarn de la Virgen encinta, ubicado en el centro, y por otra
los estpites que se allan en dicho retablo, con su cornisamento y dos tableros, que se
compone de los misterios gozosos, historia de medio rellebe, stas juntamente se an de dorar
y estofar segn los misterios que cada una representa, y en los dos tableros que reziuen dichas
historias, y pilastras de los estpites y fondos que en todo ello se hallaren le a de dar el color
berde estilado como queda referido, menos en los estpites, que por bariar de color en los
agallones que tienen como junquillos y quarta bosel le dar un color de carmn enzima del
oro23.
La policroma reservada al camarn no es distinta a la administrada a la predela y al resto del cuerpo,
salvo que los nios que le reziuen han de ser encarnados al pinzel, que es lo natural de las
encarnaziones, extendindose esta prctica a las otras figuras o ngeles que se allaren desnudas en
dicho retablo24. El respaldo de la hornacina se cubre con una especie de grutesco multicolor sobre
fondo blanco, mientras que el cascarn que la cobija escusa dorarse sino darle un color que sea
dezente con su berniz por enzima25. A ambos lados de esta estructura turriforme se disponen cuatro
profetas, que an de ser estofados con los colores correspondientes que pidiere cada uno26. Como
de costumbre, las flores de talla que se allaren en dicho cuerpo an de ser estofadas conforme cada
una sealare su figura27.
El tico, que adopta forma de cuarto de esfera, se compone de pedestal, quatro estpites, una
cercha de talla mui realzada en la rosca del arco y una cartoncha en la clave. En el centro se ubica
una caxa de abanze con su medio can, en que est representada la historia de la Santsima
Trinidad, con su trono de serafines a los pies28. En el fondo de la misma se fingirn a punta de pincel
unos reflexos de gloria29, situndose a ambos lados nueve imgenes de bulto: Adn y Eva, pintados
al pinzel, y siete nuevos profetas, que sern estofados segn los colores que cada uno pidiere30.
20
385
Los fondos, como ya es habitual, an de ser del color berde estilado enzima del oro como ba
referido31, y las flores talladas y los estpites segn los dems que ban nombrados32.
Estvo da Silva es, probablemente, discpulo de Fagundes, o al menos pertenece a su crculo ms
estrecho de colaboradores. Trabajan juntos en la matriz de Mateus33 y le abre, presumiblemente, las
puertas de la clientela tudense. En 1742 se formaliza ante notario la obra de policroma de la sillera
coral catedralicia, operacin que asciende a 3.000 reales34 (Figs. 6-7). El procedimiento es el
siguiente:
esplanar todo, darle un bao de ajo y cola, otro de albayalde y negro a lio, otro tambin de
negro y a lio y sobre todos dichos baos le ha de dar el ltimo de charol lustroso. Con
respecto a las dos tergetas que se allan sobre las puertas trauiesas de dicho coro, con los
nombres de Jess y Mara, ha de dorar estos nombres, coronas y el balo de adentro35.
La fe del cabildo en el maestro luso es inslita, pues retribuye su trabajo al contado y le exime de la
obligacin de presentar avales y concluir la obra en un plazo estricto, conminndole simplemente a
que la remate lo ms presto que pudiere36.
La misma escritura de contrato refiere que cuando asume la encomienda de la sillera coral estaba
ocupado con la obra de San Thelmo37. Se trata del dorado y coloracin del retablo-relicario
catedralicio, ejecutado en 1735 y ubicado en la cabecera de la remodelada capilla de San Telmo,
patrn de la ciudad y dicesis de Tui, un trabajo que, amn del oro y la policroma de la parte visible,
destaca por los estampados florales de los espacios ocultos, es decir, las paredes de los relicarios y el
interior de las puertas que los cubren (Fig. 8).
31
En el propio escrito se advierte, no obstante, que los colores que ban expresados se an de dar en dicho
retablo sobre el oro en las partes sealadas no a de pasar dicho maestro a ponerlos asta entanto que dichos
seores resuelban si conuiene o no se den para la ermosura y conforme arte, y resolbiendo que conuiene dar
dichos colores a de ser obligado a darlos sin por ello repitir ms cantidad de la que ba menzionada. ACT,
Protocolos notariales, Juan de nsua y Valdivieso, 1728, fol. 96r.
32
Ibdem, fol. 96r.
33
Vase OLIVEIRA, Eduardo Pires de: Andr Soares e o Rococ do Minho, III, Porto, 2011, pp. 339-343.
34
ACT, Protocolos notariales, Juan Antonio Garca de Soto, 1742, fol. 102r.
35
Ibdem, fol. 102r
36
Ibdem, fol. 102r.
37
ACT, Libro 15 de Actas Capitulares (1741-49), fol. 23r-v.
386
Fig. 1
Fig. 3
Fig. 2
Fig. 4
387
Fig. 5
Fig. 6
388
Fig. 7
Fig. 8
389
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Mendona (ed.). Lisboa: Academia Portuguesa da Histria, 2006: 157-175.
390
claro que, por vezes, a opinio pblica manifestou uma posio contrria a D. Maria Brbara de
Bragana e ao seu crculo portugus vejamos as proclamas contra Musicos y Portuguesas. Porm,
acho importante reconstruir as redes do partido portugus que eventualmente ho-de mostrar a
influncia que D. Joo V, por intermdio da sua filha D. Brbara, exerceu na corte de Madrid e
como que as relaes diplomticas com Portugal foram via de comunicao para ideias estticas,
informao artstica e at regalos de arte.
No entanto, o objectivo geral descobrir, estudar e dar a conhecer as ideias estticas da rainha
espanhola Brbara de Bragana (1711-1758). Mas convm, antes de mais nada, salientar a sua
influncia na conduo da poltica cultural ou artstica do seu esposo, El-Rei, e o respeito pela
introduo do gosto rococ na corte (Martn Gonzlez 1973, 383-384).
Alm disso, pretende-se colocar o foco de ateno sobre as relaes artsticas entre as cortes
espanhola e portuguesa em meados do sculo XVIII um perodo fundamental para a histria do
espao ibrico. A historiografia e a historiografia da arte dos nossos pases tm-se, no h muito,
interessado por este velho tema, e acumulado vasta informao. Felizmente, o interesse da
historiografia espanhola por fontes portuguesas est a aumentar; e j comea a ser superada a
tendncia dos investigadores de ambas as disciplinas para o isolamento das respectivas
investigaes.
Descripcin a la Muerte de la Reyna Nra. Seora en las siguientes [Dcimas]. Em: Papeles curiosos
manuscritos [Tomo 8], S. XVIII (h. 1759), fls. 132r. (138r.) e 133r. (139r.), MSS/10893 Biblioteca Nacional de
Espaa (BNE). Trata-se de uma coleco de pasquins abertamente crticos ao reinado e s pessoas de Fernando
VI e de Maria Brbara de Bragana, em relao ao partido de Isabel de Farnsio/Carlos de Bourbon, rei de
Npoles e da Siclia, na corte.
391
No que diz respeito ao desenho da planta da igreja e da sacristia (B 9072), este , sem
dvida, obra de F. Carlier3. [Fig. 2]
Chueca Goitia (Chueca Goitia 2001, 590) susteve e com razo, penso eu o carcter
francs ou franco-italiano da arquitectura e da tipologia da igreja muito mais francesa que
italiana , assinalando uma possvel influncia da Chapelle de la Sorbonne, de Jacques
Lemercier. No obstante, com a ajuda dum grande professor de arquitectura do sculo XVIII,
Trata-se de um risco de quatro modelos de mesas de altar (B 9074), propostos por F. Carlier rainha
escreveu sobre um deles a palavra este , como se v, alm disso, na inscrio deste desenho, com data de
28 de Novembro de 1755: S. M. La Reyna en vista de estos quatro diseos se ha dignado resolver, que las
mesas de los quatro Altares de la Iglesia del Real Monastrio de la Visitacion se hagan segun el que est
sealado de su real mano con la palabra este, assinado por D. Andrs Gmez e de la Vega, que era o
Intendente da Real Obra. Em: Delfn Rodrguez Ruiz, Cuatro proyectos de mesas de altar para la iglesia del
Monasterio de la Visitacin (Salesas Reales) en Madrid, in Dibujos de arquitectura y ornamentacin de la
Biblioteca Nacional, Siglo XVIII, ed. Isabel Clara Garca-Torao Martnez (Madrid: Biblioteca Nacional de Espaa,
2009), n. 422, 325.
3
Delfn Rodrguez Ruiz, Planta del pavimento de la iglesia y de la sacrista del monasterio de la Visitacin
(Salesas Reales) en Madrid, in Dibujos de arquitectura y ornamentacin de la Biblioteca Nacional, Siglo XVIII,
ed. Isabel Clara Garca-Torao Martnez (Madrid: Biblioteca Nacional de Espaa, 2009), n. 420, 322-323.
392
Jacques-Franois Blondel, Architecture franoise, ou Recueil des plans, lvations, coupes et profils des glises,
maisons royales, palais, htels & difices les plus considrables de Paris..., vol. 2. Paris: Charles Antoine
Jombert, 1752, 202, n. XIV, pl. 1: Plan de lglise de la Sorbonne.
5
Fr. Joo de S. Jos do Prado, Monumento sacro da fabrica, e solemnissima sagrao da Santa Basilica do Real
Convento, que junto Villa de Mafra dedicou a N. Senhora, e Santo Antonio Lisboa: Na Officina de Miguel
Rodrigues, Impressor, 1751, sig. 1-6-384, A Corua, Biblioteca del Real Consulado del Mar (Fundacin Pedro
Snchez Bahamonde).
393
No entanto, h outro exemplo, associado Roma Lusitana de Carlo Gimac (1651-1730), isto , a
igreja de Santa Anastasia Alle Radici [Fig. 7]. Ao examinar cuidadosamente os pormenores do
projecto de Francisco Carlier, tenho achado espantosa a semelhana que h com aquela que a
obra-mestra do malts bem publicitada pela arte da imprensa romana6. Foi dada a conhecer ao
grande pblico atravs de Lhistoria della basilica di S. Anastasia (1722)7, de Giovanni Mario
Crescimbeni, membro fundador da Academia da Arcdia (Delaforce 1993, 59). Um texto referente ao
mecenato do importante e influente eclesistico portugus cardeal D. Nuno da Cunha de Atade e
Melo (1664-1750), o inquisidor-geral do Reino de Portugal (1707-1750), nomeado cardeal-presbtero
a 16 de Junho de 1721, com o ttulo de Santa Anastsia.
Dona Brbara de Bragana seguramente conheceu de perto o cardeal Cunha de Atade, mas o livro
no consta do ndice de la Librera que tiene la Reyna Nuestra Seora Doa Mara Brbara , em
17498. Por outro lado, este interesse por livros est relacionado com a rainha Maria Brbara, que
continuou a cultivar na corte espanhola o seu gosto pela leitura. No entanto e ao que sei , a
historiografia espanhola pouca ateno lhe prestou.
o caso de uma gravura Chiesa Di Santa Anastasia Alle Radici Del Palatino Verso Il Velabro. Architettura del
Cau. Gio. Lorenzo Bernini. / Gio Batta Falda dis. et fece. / Per Gio. Iacomo Rossi in Roma alla Pace co priv del
S.Pont (c. 1680.), em Giovan Battista Falda, Il nvovo teatro delle fabriche, et edificii, in prospettiva di Roma
moderna... Roma: [s.a.], pl. 28. Tambm Giovanni Giacomo De Rossi, Insignium Romae Templorum prospectus...
Roma: De Rossi, 1683, pl. 43, e Giovanni Giacomo De Rossi, Studio d'Architettura Civile Roma: De Rossi, 1721.
7
Giovanni Mario Crescimbeni, Lhistoria della basilica di S. Anastasia, titolo cardinalizio / scritta da Gio. Mario
Crescimbeni. Roma: per Antonio de Rossi..., 1722 um livro sem ilustraes; Filippo Cappello, Brevi notizie
dellantico, e moderno stato della chiesa Collegiata di S. Anastasia di Roma Roma: nella Stamperia di Pietro
Ferri, 1722. Antonio Maria Bonucci, Istoria di S. Anastacia vergine e martire romana... Roma: nella Stamperia
del Komarek, 1722.
8
ndice de la Librera que tiene la Reyna Nuestra Seora Doa Mara Brbara hecho por Don Juan Gmez,
librero de Cmara del Rey Nuestro Seor, 1749, sig. MSS/12710 (BNE) [Manuscrito].
394
Trata-se de uma srie de noventa e quatro esttuas de reis da Espanha o conjunto mais
ambicioso da histria moderna , que encimavam as quatro fachadas desde su primer rey
Ataulfo [] y seguir desde all toda la serie hasta dar la vuelta a don Luis I [o filho
primognito de Felipe V, rei de Espanha apenas entre Janeiro e Agosto de 1724]; e presidiam
os padres do rei, Felipe V e Maria Lusa de Sabia, sua primeira esposa, com Fernando VI e
Brbara de Portugal.
Ento, de quem que foi a disparatada ideia de envolver os monarcas portugueses Afonso
Henriques e Joo V nessa ltima srie?
O padre Sarmiento queria uma genealogia a rigor. Escolheu os monarcas espanhis que
foram pais de reis, de tal maneira que estes levaram na mo esquerda um escudo com o
retrato das suas esposas e mes dos futuros monarcas. Alm disso, o beneditino queria pr
em relevo algumas monarquias e soberanos da historia ibrica que no tinham podido ser
includos no remate das fachadas. Mas a eleio das personagens no foi neutral: excluindo
os condes de Barcelona recorde-se os episdios da Guerra de Sucesso espanhola , ou
colocando dois reis suevos; porm surpreende, ainda mais, a ideia de incluir dois monarcas
portugueses D. Afonso Henriques e D. Joo V , que nada tinham de ali estar
nomeadamente D. Joo V de Portugal, uma clara homenagem de D. Brbara de Bragana.
Esta esttua e as restantes do piso principal foram aprovadas no Vero de 1751 e dadas a
fazer aos melhores discpulos de J.D. Olivieri e Felipe de Castro. Em Dezembro de 1753, a
srie estaria quase terminada e a ser colocada.
No que diz respeito aos reis de Portugal, posicionados no ngulo noroeste, tambm
surpreende a qualidade e elevada taxao da escultura de O Magnnimo10, uma obra de
Lus Salvador Carmona, sob a direco de Olivieri, tendo recebido a livrana de 18.500 reales
a nica que ultrapassa a cota dos 15.000 reales(Plaza Santiago 1975, 218).
Frei Martn Sarmiento, Sistema de adornos de escultura, interiores y exteriores, para el nuevo Real Palacio de
Madrid [manuscrito], sig. 725.171 (BNE). Em: Frei Martn Sarmiento, Sistema de adornos del Palacio Real de
Madrid, editado por Joaqun lvarez Barrientos, Concha Herrero Carretero. Madrid: Sociedad Estatal de
Conmemoraciones Culturales, 2002.
10
Para a escultura, disse Frei Martn Sarmiento que habr muchos retratos originales que copiar, e
certamente foram utilizados como modelos medalhas e gravuras, como por exemplo a de Guilherme F.L.
Debrie Joannes V. Portugalliae Rex, do Gabinete de Dibujos y Estampas, El Prado, assinado G.F.L. Debrie
sculptor Regius inv. et sculpsit 1743, em: Francisco J. de la Plaza Santiago, Investigaciones sobre el Palacio Real
Nuevo de Madrid. Valladolid: Universidad de Valladolid, Departamento de Historia del Arte, 1975, 214.
395
A rainha Brbara de Bragana muito devota de seu pai 11, empreendeu uma renovao de
modelos e de programas na corte. Desta forma, quis seguir os passos de D. Joo V, o rei
constructor. Vale a pena ressaltar que ele viveu no palcio do Terreiro do Pao, rodeado de uma
coleco fascinante de grandes modelos de edifcios de Roma (Delaforce 1993, 61-62), onde houve
uma notvel exposio de seus palcios e igrejas e inmeros projectos de arquitectura, pinturas e
desenhos que Brbara de Bragana com certeza, penso eu , teve de conhecer antes da sua vinda
para Espanha.
Assim sendo, Roma torna-se o verdadeiro locus communis da arquitectura joanina e da arquitectura
cortes do reinado de Fernando VI (1746-1759). Tambm a escola barroca romana e os seus
arquitectos Filippo Juvara, Nicola Salvi, Luigi Vanvitelli , pelo menos virtualmente, se converteram
em suporte para as relaes artsticas entre as cortes espanhola e portuguesa.
11
O respeito e a devoo de Brbara de Bragana por seu Pai mostra-se em cada uma das cartas que ela lhe
escreveu, e cujos originais se conservam no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Tal o caso de uma carta de
22 de Outubro de 1746 onde escreveu: a sua graa [diz ela ao Pai] he o meu unico bem, e s o seguro sobre q
a
a
de
te
posso contar p. m. consolao; e creya V. Mag. q. he assim certam. porq em tudo o mais no tenho
e
a
e
de
satisfao de segurid. alg. nem de firmeza e verdadeira cordialidad. e asim meu amado Pay V. Mag. he s o
meu nico bem e amparo despois de Ds. e s de quem me fio e comfio., em: Joo V, Correspondncia de Joo
V e D. Barbara de Bragana, Rainha de Espanha (1746-1747), ed. Joo A. Pinto Ferreira. Coimbra: Liv.
Gonalves, 1945, 40.
396
397
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400
Abstract
This paper will discuss two unpublished sketchbooks by the Portuguese painter Joo Glama
Strberle, who trained in Rome under the tutorship of Marco Benefial (1684-1764) and Agostino
Masucci (1690-1768), focusing on his apprenticeship at the Academy of St. Luke and Joos copies
from Benefial.
As revealed by the religious treasury assembled in the Museo de San Roque and by the commission
of the church of St. Antonio dei Portoghesi in Rome, political and artistic ties between Lisbon and
Rome were particularly strong in this period, culminating with the declaration of Portugal as a
sovereign state in 1748, by Pope Benedict XIV (Lambertini, 1740-58).
On one side my paper will thus cast light on the development of a classicizing style in Portugal under
the reign of King Joo V (o Magnnimo, 1689-1750), through the Roman education of Portuguese
painters in direct contact with the academy and inspired by the poetics of Roman ruins.
On the other side, the paper will set Joos education and early practice as landscape painter in
relation to contemporary experiments by other foreign artists residents on their training in Rome,
such as Caspar van Wittel (1653-1736), and Hubert Robert (1733-1808), inquiring on the
development of this particular vein in his work, at various stages, after his return to Portugal.
401
402
um feminino, e em cada um dois rostos imperiais e um de pessoa comum ou retrato privado. Desejase, deste modo, contribuir para ilustrar, com exemplos da Lusitnia, o percurso do retrato escultrico
na Antiguidade Clssica e Tardia. Confiamos que demonstraro a riqueza do tema, pois so
numerosos, variados, sugestivos e de grande potencial os Rostos com que a Lusitnia fita.
403
404
mas servir a vrios. Este aspecto desvaloriza o corpo na identificao global da personagem e
contribuiu para centrar no rosto o essencial da identificao subjacente a um retrato. Por outro lado,
os romanos reutilizavam os rostos. A pedra trabalhada preciosa e, por isso, constantemente
reutilizada e adaptada. Apagam-se caractersticas especficas, cabelos e traos expressivos e passa-se
a outra pessoa. A prtica da damnatio memoriae precisamente a prova da importncia do rosto
como perpetuao da individualidade, da sua presena na memria. Hoje em dia, possvel detectar
nos rostos essas etapas que os transformam em autnticos palimpsestos18.
A escultura de retrato romana confere uma grande importncia a componentes constituintes do
rosto. O cabelo um elemento de grande cuidado e determinante na identificao. O penteado
identifica a personagem. Sabemos, por exemplo, que o imperador Augusto tem um determinado tipo
de penteado que lhe cai sobre a fronte e que o acompanha do incio ao final da sua vida.19 Mesmo
quando a expresso muda e o envelhecimento revela as suas marcas, o penteado no deixa margem
para dvidas. A presena ou ausncia de barba nos homens identifica costumes e pocas. No caso
feminino, o penteado tem ainda mais atractivos pois tem a vantagem de reproduzir a moda.
Em Roma, como na Grcia Antiga, a escultura pintada20. Os nossos olhos habituaram-se, desde o
Renascimento, aos tons sbrios do branco. No entanto, este seria coberto de vibrantes cores. A
utilizao da cor na escultura leva-nos a reconsiderar aspectos que tommos como assentes sobre a
produo artstica da Antiguidade21e que dizem mais sobre a nossa prpria esttica do que sobre a
dos nossos antepassados.
2. Os Rostos da Lusitnia
O primeiro grupo de retratos escultrios seleccionados o masculino (Fig. 1 Trptico22) (pg. 547),
integrando os bustos do imperador Octvio Csar Augusto, do imperador Galieno e um rosto de
atribuio desconhecida encontrado na muralha de Beja. Uma sntese dos elementos a considerar
encontra-se no Quadro 1 (pg. 547). O segundo grupo de retratos escultricos o feminino (Fig. 2
Trptico23) (pg. 548) integrando dois membros da famlia real, Agrippina Maior e Agrippina Minor e
um rosto desconhecido. As informaes fundamentais sobre estes rostos esto reunidas no Quadro 2
(pg. 548). A figura 3 (pg. 549) reporta-se ao imperador Galieno numa viso de 360o24.
Cada grupo d-nos um conjunto vlido de informaes e de precaues. Em primeiro lugar, verificase que a escultura de retrato imperial desempenha um papel de relevo neste tipo de representao
escultrica, a escultura de vulto, e a presena de bustos de imperadores na Provncia da Lusitnia
no despicienda. Alm dos bustos de polticos, o retrato escultrico trabalha rostos para ns
desconhecidos. Entre a representao do rosto de Augusto de Mrtola (sculo I) e a de Galieno
(sculo III) passaram-se sensivelmente duzentos anos. As diferenas so profundas. A cabea de
18
Um exemplo a escultura de retrato do imperador Augusto de Mrtola. Alguns autores consideram que o
seu rosto foi uma reelaborao de um rosto de Calgula, sujeito a damnatio memoriae. Justino Maciel, O
retrato na Antiguidade Clssica:_ O exemplo do Augusto de Mrtola, 27 e 31-32;
19
Justino Maciel, A Arte da poca Clssica in Histria da Arte Portuguesa. Vol. I, Crculo de Leitores, Lisboa,
1995, p. 97;
20
Ver a Exposio The Paiting of an Empire: http://english.scuderiequirinale.it/categorie/categoria-52; AA.VV.,
Anna Gramiccia (coordenao editorial), I Colori del Bianco, De Luca Editori dArte, Roma, 2004; AA.VV., El color
de los Dioses, Museu Arqueolgico Nacional, Madrid, 2010;
21
A cor na escultura de retrato romana uma rea de investigao com grande potencial a desenvolver nas
peas encontradas no actual territrio portugus;
22
Origem das fotografias: Vasco de Souza, op. cit. Figuras 10, 127 e 8;
23
Origem das fotografias: Vasco de Souza, op. cit. Figuras 32, 121 e 125;
24
Fotografias da autora. Museu Municipal Dr. Jos Formosinho, Lagos. Agradecemos a autorizao para
fotografar o busto do imperador Galieno, Agosto 2012;
405
Augusto, apesar de danificada e de revelar traos de uma certa dureza na expresso do rosto25,
possui o penteado em caracterstica garra sobre a fronte tornando a identificao indesmentvel. Os
olhos so lisos sem marcao da ris. A apreciao global do rosto dota-o de um idealismo ao gosto
helnico. O rosto de Galieno est, pelo contrrio, repleto de pormenores de expresso e de
identificao. O nariz aquilino, a boca firme e estreita como uma linha, a barba rala definindo o
formato do rosto, o cabelo em madeixas fartas espalhadas pela testa, o franzir do sobrolho saliente
em duas linhas curtas perpendiculares s sobrancelhas ilustram a proximidade pessoa real. Os
olhos demonstram a principal evoluo, a marcao da ris e da pupila levemente levantados e
voltados para a esquerda do observador completam a direco em que o rosto olha. No conjunto de
vrias tendncias que se plasmam na escultura de retrato romana, o sculo III, dealbar da
Antiguidade Tardia, acentua pormenores realistas de identificao do modelo relembrando a no
esquecida tradio republicana26. O retrato de Galieno revela uma personalidade (Fig. 3). A
intensidade do olhar27 uma tendncia crescente na Antiguidade Tardia, fazendo dos olhos a janela
da alma, o ponto de emanao de uma fora interior que, no se podendo desligar da influncia da
filosofia platnica, ser uma ideia muito do agrado do Cristianismo.
O rosto privado desconhecido apresenta linhas de idealismo na suavidade de um rosto sem barba e
numa cabea quase completamente calva. Laivos de expresso identificativos na convico dos
lbios, na ruga de idade que marca a bochecha entre o nariz e o queixo e nas linhas de expresso sob
as orelhas.
A escultura de retrato feminina compe-se de um idealismo generalizado conferindo ao rosto da
mulher um cariz intemporal. No entanto, no se pode afirmar que a representao feminina, no
geral, seja sempre tendencialmente jovem28. A representao de Agrippina Maior e Agrippina Minor
ilustra o idealismo conferido pela sobriedade da expresso. Os olhos no apresentam marcao de
pupila ou ris. O busto de Agrippina Minor no se limita ao rosto mas estende-se ao nvel do peito.
No se destina a encaixe num corpo mas constitui em si mesmo um todo com um pequeno apoio. O
rosto privado insere-se tambm num conjunto maior com uma representao abaixo do nvel do
peito. Este tipo de escultura de retrato desenvolve-se a partir do sculo II. Neste caso, a marcao de
pupila e ris j visvel. Os trs exemplos femininos apresentam penteados caractersticos de poca,
auxiliares precisos para atribuio cronolgica.
3. Consideraes finais
Este trabalho props-se ser uma iniciao ao retrato escultrico na Antiguidade Clssica e Tardia a
partir de uma amostra de rostos encontrados na provncia romana da Lusitnia.
Embora o conceito actual de retrato no seja completamente consensual (e, provavelmente, muita
da sua riqueza temtica perder-se-ia ento), as formas que a sua representao pode revestir
convergem na proximidade ao modelo. para o rosto que se concentram os esforos identificativos
e, com efeito, no rosto que se d o encontro do geral humano e do particular indivduo.
A retrospectiva sobre a escultura de retrato na Antiguidade Clssica e Tardia ilustra um momento
histrico e artstico no qual o conceito e a sua prtica j existem antes da formulao da prpria
palavra-sntese, retrato. A poca helenstica consegue, no seio de um desequilbrio de sensaes,
25
406
407
BIBLIOGRAFIA
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SOUZA, Vasco de. Corpus Signorum Imperii Romani. Coimbra: Instituto de Arqueologia da Faculdade
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408
Para uma sntese desta questo, veja-se Maria de Lurdes Rosa. A morte e o Alm. In Histria da Vida
Privada em Portugal, dir. Jos Mattoso, 402. [s.l.]: Crculo de Leitores e Temas e Debates, Setembro 2010.
409
Representar graficamente algum traz para primeiro plano, durante a medievalidade, um conjunto
de valores que no correspondem necessariamente, na ntegra, aos requisitos habitualmente
associados noo do que a retratstica, mas que encontram perfeita harmonia com a sociedade
que concebe e acolhe tais representaes. Inicialmente, a efgie no retrato.2 Ser? No, pelo
menos, no sentido mais imediato ou simplista que podemos dar ao conceito. No na concepo que
foi despoletando dvidas e afirmaes menos pertinentes como o paradigmtico comentrio de
Cordeiro de Sousa a propsito do estrabismo da rainha Santa Isabel revelado pelo seu jacente3, ou
outros ainda, acerca do gigantismo de uma personagem histrica como D. Pedro, conde de Barcelos,
ou o tpico pescoo de inglesa de D. Filipa de Lencastre. Numa perspectiva mais alargada, contudo,
falando de retratar enquanto acto de representar algum, de lhe construir uma imagem
determinada (fiel ou no fisicamente ao sujeito), o jacente no deixa de ser, afinal, um modo
honesto e verdadeiro, mesmo que prprio, de o fazer. Assim, olhar o jacente medieval obriga, antes
de mais, a ter presente aquilo que ele no : moderno, realista (pelo menos na maioria dos casos e
at certo momento, que aquele que aqui nos ocupa), inteiramente laico, de apreenso imediata.
Depois, a reconhecer a dupla natureza que o retrato neste contexto assume: a natureza social, que
se traduz na configurao de uma imagem-tipo para determinados grupos e na primazia dada a
elementos e figuraes que identifiquem inequivocamente o indivduo com uma famlia, linhagem ou
categoria social; a natureza religiosa, no contexto da qual importar ter em conta as expectativas
de salvao e a certeza da ressurreio vigentes no perodo em anlise; portanto, o suporte espiritual
do discurso que o jacente constri e que, no limite, diz muito da condio humana e da relao que
individualmente cada um estabelece com o sagrado. Dimenso terrena e projeco celeste esto,
por isso, em estreita associao nesta forma de retratstica, harmonizando-se no contrariando-se
em todas as suas componentes. De resto, esses mesmos exemplares de jacentes, to
representativos da valorizao de uma existncia fsica concreta, podem ser vistos como o
testemunho inequvoco da importncia atribuda materialidade na concepo que no Ocidente
cristo imperou sobre a pessoa humana mesmo para alm da ressurreio ou num puro plano de
divindade e prova da relao dominantemente despudorada com a representao fsica e muitas
vezes antropomorfizada daquilo que sobrenatural.
Uma vez trazida para o debate aquela dimenso social que o jacente comporta4, importar continuar
a problematizar em torno da prpria concepo de retrato que neste contexto se realiza, procurando
deslindar a carga de individualidade e o grau de conscincia de si mesmo, que pode conter uma
representao inteiramente codificada ou fiel a cdigos sociais pr-estabelecidos. Em ltima
instncia, tendo presente a complexa noo de indivduo que impera na mentalidade crist medieva,
a busca de uma absoluta manifestao de individualidade revelar-se- anacrnica. Referimo-nos
concretamente ao facto de que, participando de mltiplas redes de solidariedades materiais e
espirituais, o indivduo na Idade Mdia dificilmente se revela em isolamento total (na sua inteira
singularidade), ao mesmo tempo que a ligao ntima que mantm com a divindade, atravs da alma
por ela criada e que para ela se encaminha, lhe nega a percepo de uma solido absoluta. Um
exemplo muito claro para apenas citar um das mltiplas possibilidades que neste contexto se
criam para uma particular afirmao individual e de como a mesma pode desenvolver-se com
recurso aos mecanismos da pertena comunitria, verifica-se no uso da herldica, em que a escolha
das armas ou o modo de as distribuir pelo sepulcro podem dar azo a fortes declaraes de
personalidade. este o caso de D. Isabel de Arago, atravs da colocao das armas do seu reino de
Maria Jos Goulo. Figuras do Alm: A escultura e a tumulria. In Histria da Arte Portuguesa, dir. Paulo
Pereira, vol. II, 164. Lisboa: Crculo de Leitores, 1995.
3
J.M. Cordeiro de Sousa. Os Jacentes da S de Lisboa e a sua Indumentria. Revista Municipal (48): 7.
4
Para esta abordagem do jacente como retrato social pode considerar-se pioneiro o estudo de Jos Custdio
Vieira da Silva. Memria e Imagem: Reflexes sobre Escultura Tumular Portuguesa (sculos XIII e XIV). Revista
de Histria da Arte 1, (2005): 47-81.
410
No remate do Calvrio (facial da cabeceira), na cena da elevatio animae (reverso do baldaquino). A mesma
chamada de ateno para as escolhas iconogrficas de D. Isabel de Arago foi anteriormente feita por
Francisco Pato de Macedo e Giulia Rossi Vairo; v. Francisco Pato de Macedo. A Capela Funerria da Rainha D.
Isabel de Arago. Santa Clara-a-Velha de Coimbra: Singular Mosteiro Mendicante. Tese de doutoramento,
Universidade de Coimbra, 2006, 641-698; Giulia Rossi Vairo. Alle origini della memoria figurativa:
SantElisabetta dUngheria (1207-1231) e Isabella dAragona, Rainha Santa de Portugal (1272-1336), a
confronto in uno studio iconografico comparativo. Revista de Histria da Arte 7 (2009): 221-235.
6
Sobre a tumulria da S de Lisboa, veja-se: Carla Varela Fernandes. Memrias de Pedra: Escultura Tumular
Medieval da S de Lisboa. Lisboa: IPPAR, 2001.
7
A este propsito veja-se: Maria Helena da Cruz Coelho e Leontina Ventura. Vataa: uma dona na vida e na
morte. In Actas das II Jornadas Luso-Espanholas de Histria Medieval, vol. I, 159-193. Porto: Centro de Histria
da Universidade do Porto / Instituto Nacional de Investigao Cientfica, 1987.
8
No momento em que o naturalismo ganha terreno e at um certo realismo comea a ser valorizado como
podemos apreciar claramente nalguns jacentes quatrocentistas, a comear pelos de D. Joo I e D. Filipa de
Lencastre no porventura de um maior grau de individualismo que devemos falar pois esta uma noo
que, sempre articulada com o conceito de comunidade, indispensvel compreenso do jacente, desde a
sua origem ; antes de um seu entendimento e configurao segundo novos valores estticos, aqueles que
imperaro em definitivo posteriormente; v. Jos Custdio Vieira da Silva e Joana Rama. O Retrato de D. Joo
I no Mosteiro de Santa Maria da Vitria. Revista de Histria da Arte 5 (2008): 77-95.
9
Referimo-nos concretamente aos seguintes jacentes: rainha D. Beatriz (?) (Mosteiro de Santa Maria de
Alcobaa); D. Margarida de Albernaz (S de Lisboa); D. Isabel de Arago, a Rainha Santa (Mosteiro de Santa
Clara-a-Nova de Coimbra); infanta D. Isabel (Mosteiro de Santa Clara-a-Nova de Coimbra); D. Vataa (S de
Coimbra); D. Maria de Vilalobos (S de Lisboa); infanta de Portugal e de Manuel (S de Lisboa); D. Domingas
Sabachais (Capela dos Ferreiros, Oliveira do Hospital); D. Sancha Pires (Mosteiro de S. Domingos do Rossio,
Lisboa); D. Ins de Castro (Mosteiro de Santa Maria de Alcobaa); dama annima (S de Lisboa). Para uma
anlise geral do panorama da tumulria medieval feminina portuguesa, veja-se: Rosa Pomar. Memria
Tumular de Rainhas, Infantas e Fidalgas em Portugal (1250-1350). Revista da Faculdade de Letras. Histria II
Srie, vol. XV-2 (1998): 1509-1530; Carla Varela Fernandes. Fama y memoria: Los enterramientos portugueses
de reinas y mujeres de la nobleza en el siglo XIV. Grabkunst und Sepulkralkultur in Spanien und Portugal / Arte
funerario y cultura sepulchral en Espaa y Portugal, eds. Barbara Borngsser, Henrik Karge, Bruno Klein, 207224. Madrid: Iberoamericana, 2006; Joana Rama Melo. Listening to Women through Funerary Art and
Practices: an Overview of the Feminine Agency in Portuguese Church Monuments of the Fourteenth-Century.
In Monuments and Monumentality in Medieval and Early Modern Europe, ed. M. Penman, 117-128. Shaun
Tyas: Donington, 2013.
411
corporal, a uma perfeita idealizao do defunto. Para a problematizao deste facto no nos parece
despiciendo ter em mente a noo do corpo aperfeioado que pensadores como Santo Agostinho
entendem ser aquele que se configura na ps-ressurreio10 momento em que se imprime11, na
matria que o corpo, final e verdadeiramente a imagem renovada da perfeio de Deus, perdida
aps a Queda e recuperada pelos justos depois da morte, o que torna os eleitos semelhantes aos
santos e a Cristo12. O problema da ressurreio e da salvao da alma , assim, inquestionavelmente
central para a compreenso das caractersticas e da evoluo do fenmeno tumular e da efgie a ele
associado, embora no esgote em si as dinmicas de funcionalidade dos mesmos, nem as aspiraes
do encomendante neles plasmadas. Se assim fosse dificilmente explicaramos a existncia desses
moimentos em perodo anterior difuso da crena no Purgatrio (portanto, da f no poder das
intercesses levadas a cabo nos momentos subsequentes morte, para as quais os recursos
individualizadores das arcas visam contribuir). Nestes casos, e continuando pelos de poca posterior,
a preservao de uma memria especfica (com outros propsitos para alm do salvfico) constitui
um (ou o) aspecto vital, uma funo na qual os epitfios comeam por desempenhar a funo
principal13 e que no deixa de estar profundamente impregnada pelos valores espirituais. Esta ,
assim, uma dupla condio e necessidade as duas dimenses encontrando-se solidamente
interligadas que preciso ter presente no estudo do monumento funerrio medieval; do mesmo
modo que devemos articular os mesmos dois aspectos (social e religioso; espiritual e laico) no
entendimento da funo retratstica que o jacente concretiza. Nos jacentes femininos portugueses, o
vesturio e os atributos (a par da herldica e das inscries patentes nas arcas), constituem, ao longo
de toda a centria de Trezentos e mesmo na passagem para a seguinte, os principais dados de
identificao da pessoa representada portanto, de construo de uma memria do indivduo e
aqueles que, simultaneamente, contribuem para expressar as virtudes com que cada dama se
apresenta na sua imagem derradeira e mais duradoura.
Da observao daqueles jacentes transparece a ideia de uma feminilidade em idade ideal, difcil de
determinar com preciso e, sobretudo, de um estado de integridade fsica que, em muitas situaes,
no se coaduna nem com a faixa etria nem com o aspecto que aquelas personagens histricas
deveriam ter apresentado no momento da sua morte. No se trata, portanto, de projectar no
exterior da tampa, como em espelho, o corpo mortal e perecvel que sob ela se guarda, nem por isso
10
A discusso gerada em torno deste tpico apresentada de forma sumria, mas rica e estimulante, por
Jrme Baschet, que se refere a uma obsesso quase manaca dos cristos com a integridade dos corpos dos
bem-aventurados depois da morte fsica; v. Jrme Baschet. me et corps dans lOccident mdival: une
dualit dynamique, entre pluralit et dualisme. Archives de sciences sociales des religions 112 (OutubroDezembro 2000). Posto em linha a 19 de Agosto de 2009. URL: http://assr.revues.org/20243.
11
A partir do final do sculo XI, a metfora do selo e da semelhana imprimida, usada com frequncia num
discurso de reflexo teolgica para explicar a articulao entre o ser interior e o exterior do indivduo (tal como
o selo se compunha de um retrato e de uma inscrio com o nome) e a conformidade do indivduo com o
grupo social a que pertence (os selos correspondendo a retratos categorizados, replicveis a partir de uma
matriz), acompanha a difuso do uso deste recurso entre os homens livres; v. Michel Pastoureau. Les Sceaux
et la fonction sociale des images. In LImage : fonctions et usages de limage dans lOccident mdival, ed. J.
Baschet, J.-C. Schmitt, 275-308. Paris: Le Lopard dOr, 1996.
12
V. Thomas E.A. Dale. The portrait as imprinted image and the concept of the individual in the romanesque
period. In Le Portrait: la reprsentation de lindividu, coord. Agostino Paravicini Bagliani, Jean-Michel Spieser,
Jean Wirth, 91-116. Firenze: Sismel Edizioni del Galuzzo, 2007. A este propsito ser igualmente interessante
reflectir sobre a semelhana fsica existente entre as imagens criadas pelos escultores de Trezentos para uns e
outros, simples mortais e figuras santas.
13
O verdadeiro regresso do epitfio, depois de um perodo de perda de interesse pela personalizao dos
sepulcros e a identificao do defunto na sociedade hispano-visigtica, ocorre ao longo do sculo XII (entre
1151 e 1200). A partir de 1282, as inscries funerrias passam a representar regularmente entre 50% e 60%
do total de epgrafes conhecidas. Estes dados baseiam-se no estudo de Mrio Jorge Barroca. Memrias. In
Histria da Vida Privada em Portugal, dir. Jos Mattoso, vol. 2 A Idade Mdia, coord. Bernardo Vasconcelos e
Sousa, 437-438. Crculo de Leitores e Temas e Debates, Setembro 2010.
412
de cristalizar o instante da morte na sua vivncia terrena; antes, pelo contrrio, de consumar uma
certa ideia de incorruptibilidade do corpo, reservada aos santos e virtuosos. Trata-se, sim, de uma
imagem ideal de eternidade e bem-aventurana que se confunde (e nos confunde), sem
preconceitos, com a prpria imagem terrena do ser humano, no pleno exerccio das suas
prerrogativas mundanas. Domina a representao de uma mulher jovem (pela ausncia das marcas
de envelhecimento)14, na maturidade do seu ciclo biolgico (pela configurao de um corpo
assumidamente assexuado), dotada de uma genrica e abstracta formosura (reflexo das suas
qualidades intrnsecas e virtudes interiores), consciente da sua idiossincrasia e assumida intrprete
das suas especificidades, que mais tm que ver com o gnero e, sobretudo, com a classe a que
pertence do que com a fase da vida em que faleceu15. Este ltimo aspecto -nos revelado
eloquentemente pelos exemplos de infantas mortas antes de atingirem a idade adulta (Coimbra e,
possivelmente, Lisboa), cuja menoridade apenas perpassa na menor dimenso dos respectivos
tmulos (consequentemente tambm das efgies), no vislumbre dos cabelos e no colo descoberto
dos jacentes, em tudo o resto mulos dos retratos das casadas e mesmo das vivas, falecidas em
estgios bem diversos das suas vidas e da realizao feminina muitas delas tendo j cumprido, de
resto, os deveres da maternidade, funo primordial da existncia feminina, mas que no encontra
traduo visual na generalidade dos programas tumulares16. Se para o universo tumular masculino, a
idade ideal de representao (portanto de apresentao de si mesmo, na sua dignidade mxima)
parece genericamente corresponder fase de plenitude que , por norma, identificada nos
esquemas relativos s idades do homem com a meia-idade17, ser interessante ponderar, tendo em
conta o carcter no inclusivo do sexo feminino de grande parte dessa reflexo medieva elaborada
em torno do ciclo da vida, qual a idade considerada perfeita para as mulheres que estes seus
jacentes podero reflectir. Se nem os autores medievais, nem os seus comentadores se debruaram
sobre esta variao entre sexos, o domnio tumular parece expressar diferenas apreciveis18. Tais
divergncias relacionam-se, antes de mais, com a necessidade de criar uma imagem adequada ao
quadro de valores que se espera ver plasmado no comportamento de cada um dos gneros e, neste
caso, das mulheres, a comear por um sentido de pureza (associada, por excelncia, a uma
determinada fase da vida), que necessariamente afasta estas representaes daquelas que so mais
14
Tal como os efeitos fsicos da morte sobre o corpo humano, tambm os efeitos do envelhecimento esto
genericamente ausentes da configurao dos jacentes trecentistas portugueses. De facto, no contexto
medieval, particularmente entre as mulheres, dificilmente se entende a representao de uma idade avanada
como reflexo de um estatuto mais nobre ou de um qualquer incremento de poder enquanto no caso dos
homens, alguns traos de maturidade, como a barba, tendem, a partir do sc. XII e a exemplo da prpria
evoluo iconogrfica cristolgica, a constituir sinais da sua dignidade senhorial; v. Jean Wirth. Limage
lpoque gothique (1140-1280), 163. Paris: Les ditions du Cerf, 2008.
15
Curiosamente, este tambm um elemento que se revela coerente com um dos aspectos que diferencia o
epitfio medieval do paleocristo: mesmo quando regista os elementos cronolgicos (o ano, por vezes o ms e
o dia do bito), nunca indica a idade da pessoa; v. Mrio Jorge Barroca. Memrias. Op. cit., 438-439.
16
Este apagamento da funo materna parece ser, alm do mais, consentneo com o carcter
eminentemente espiritualista e tipificado da maioria dos jacentes femininos portugueses (extensvel, alis, ao
programa das arcas), para no dizer das efgies medievais lusas no geral.
17
A inventus, como lhe chama Santo Isidoro de Sevilha, decorrida entre os meados dos 20 e os meados dos
40, o que, por outra parte os situa na proximidade dos 33 anos cristolgicos, tomados por alguns telogos (que
interpretam letra as palavras de S. Paulo aos Efsios) como a idade que assume o corpo ressuscitado. Sobre a
reflexo medieval elaborada em torno das idades do homem, aplicado a concretizaes iconogrficas
portuguesas de mbito tumular, veja-se: Lus Urbano Afonso. O ser e o tempo: As idades do homem no gtico
portugus. Casal de Cambra: Caleidoscpio, 2003.
18
Para uma leitura sugestiva sobre esta matria veja-se: Kim M. Philipps. Maidenhood as the Perfect Age of
Womans Life. In Young Medieval Women, ed. Katherine J. Lewis, Nol James Menuge, Kim M. Phillips, 1-16.
United Kingdom: Sutton Publishers, 1999. No dispomos de espao para aprofundar o tema mas pretendemos,
em publicao futura, explorar este tpico de reflexo.
413
pertinentes no universo masculino. Esta poder constituir, quanto a ns, uma das matrias para as
quais o olhar atento sobre os jacentes dever trazer novas leituras19.
Do ponto de vista iconogrfico, os jacentes femininos do sculo XIV manifestam uma absoluta
conformidade com o modelo de virtudes proposto comunidade feminina a partir do sculo XIII20: o
temor a Deus (perante quem a mulher se apresenta em toda a sua virtude, visando receber
misericrdia); a domesticidade (representada pelos pequenos ces de companhia que algumas
apresentam); a castidade (seja atravs de uma verdadeira ode virgindade, como no caso da infanta
D. Isabel, seja da afirmao mais subtil, de uma conteno simbolicamente representada pelo vu
que oculta em absoluto a cabeleira); o exerccio da vida espiritual como principal dimenso
autorizada de uma prtica activa (cristalizando, nalguns casos, a imagem de uma absorta dedicao
leitura das oraes ou dos salmos); a orao, portanto, como rito central de estruturao do
quotidiano feminino; a relao controlada com um corpo que se adorna mas que se contm em
gestos de grande suavidade; a caridade (materializada nas bolsas que algumas trazem cintura), acto
religioso e de marcao social.
As divergncias fundamentais que podemos observar, entre os jacentes femininos portugueses, na
configurao dos diferentes rostos, tm, por outro lado, muito mais que ver com o trabalho prprio
de cada escultor e com a regio oficinal a que as efgies pertencem do que com qualquer tentativa de
eternizar a imagem fiel que estas damas apresentariam em vida. Analisando estes rostos em
sucesso cronolgica, constatamos, para alm do apuramento tcnico que alguns mestres e oficinas
lograram alcanar (com exemplo mximo nos jacentes de D. Maria de Vilalobos e de D. Domingas
Sabachais), a introduo significativa de um leve sorriso (em substituio do lbio invertido que os
exemplos mais precoces o da rainha D. Beatriz (?), em Alcobaa21, e o de D. Margarida de Albernaz
ostentam), nota de mudana transversal na escultura gtica, cujas valncias ideolgicas e
espirituais foram j sobejamente exploradas. No contexto tumular, esta alterao diramos
coaduna-se na perfeio com a mudana de paradigma no que ao processo de salvao diz respeito:
19
Parece-nos central para esta discusso lanar um olhar atento sobre os tmulos de infantas de Coimbra e de
Lisboa, nos quais o problema se articula com uma reflexo acerca da concepo medieval sobre a criana.
Neste contexto, chamamos somente a ateno para o contraste existente entre a representao dos dois
irmos, Dinis e Isabel, rapaz e rapariga, mortos sensivelmente com a mesma idade e, contudo, figurados
(respectivamente, em Odivelas e Coimbra) segundo esquemas perfeitamente diversos: a figura masculina
numa clara aproximao a uma imagem imberbe e infantil; a figura feminina num perfeito acordo com uma
maturao corporal incompatvel com um desenvolvimento de pouco mais de um ano. Outros dados devero
cruzar-se na justificao desta discrepncia de critrios (passando pela prpria divergncia de tempos e
oficinas), mas talvez a diferena de gneros no seja, mais uma vez, neste caso completamente alheia
situao. Sobre a identificao do jacente de Odivelas com o infante D. Dinis veja-se: Giulia Rossi Vairo. O
mosteiro de S. Dinis, panteo rgio (1318-1322). In Encontro do CITCEM: Famlia, Espao e Patrimnio (26-27
de Novembro de 2010), coord. Carlota Santos, Actas, 6-11. Guimares: Sociedade Martins Sarmento, 2012.
20
Para uma sntese destes modelos comportamentais veja-se: Carla Casagrande. A mulher sob custdia. In
Histria das Mulheres, dir. Christiane Klapisch-Zuber, vol. 2 A Idade Mdia, 99-141. Porto: Edies
Afrontamento, 1990.
21
Na nossa tese de doutoramento dedicmos um extenso captulo discusso em torno da identificao da
rainha sepultada em Alcobaa. Por uma srie de elementos que integrmos numa reconstruo histrica da
encomenda e das biografias de ambas as personagens associadas a esta representao D. Urraca e D. Beatriz
pudemos reforar a probabilidade de se tratar de uma pea associada segunda personagem e situada na
dcada de 90 do sculo XIII. V. Joana Rama Melo. O Gnero Feminino em Discusso. Re-presentaes da
mulher na arte tumular medieval portuguesa: projectos, processos e materializaes. Tese de doutoramento,
Universidade Nova de Lisboa, 2012, Parte II, Cap. 1. Recentemente voltmos a tomar a questo,
problematizando e complexificando esta atribuio: Joana Rama Melo. Ser rainha e ser presente, ser mulher
e ser potente: o suposto primeiro jacente rgio portugus e as dvidas geradas em torno da pertena a D.
Urraca (1187-1220) ou D. Beatriz Afonso (1244-1300). In Reginae Iberiae: El poder regio femenino en los
Reinos Medievales Peninsulares, ed. Miguel Garca-Fernndez, Silvia Cernadas Martnez. Santiago de
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420
El estudio pionero de su accin como mecenas se debe a Rudolph WITTKOWER, Il Marchese di CastelRodrigo ed il Borromini, en Studi sul Borromini: Atti del Convegno promosso dallAccademia Nazionale di San
Luca, Roma, Accademia di San Luca, 1967, vol. I, 40-43. La ms actual visin de esta faceta de su personalidad
es la de Santiago MARTNEZ HERNNDEZ, Don Manuel de Moura Corte Real, marqus de Castelo Rodrigo:
propaganda, mecenazgo y representacin en la Monarqua Hispnica de Felipe IV, en Oliver N. WOOD y otros,
Poder y saber: Bibliotecas y bibliofilia en la poca del conde-duque de Olivares, Madrid, CEEH, 2011, 97-120,
con bibliografa previa.
2
David GARCA CUETO, Mecenazgo y representacin del marqus de Castel Rodrigo en Roma, en Carlos Jos
HERNANDO SNCHEZ (director), Roma y Espaa: Un crisol de la cultura europea en la Edad moderna, vol. II,
695-716. Cre entonces que el retratado podra ser el padre de don Manuel, el I marqus don Cristbal de
Moura, pero a la vista de nuevos retratos de ste, resulta harto improbable que sta sea la identidad del
personaje.
3
Vase al respecto Santiago MARTNEZ HERNNDEZ, Fineza, lealtad y zelo. Estrategias de legitimacin y
ascenso de la nobleza lusitana en la Monarqua Hispnica: los marqueses de Castelo Rodrigo, en Manuel
RIVERO RODRGUEZ (ed.), Nobleza hispana, nobleza cristiana: La orden de San Juan, Madrid, Polifemo, 2009,
vol. II, 913-960.
421
extrao por tanto que la inscripcin que acompaa este retrato fuese apcrifa, o incluso un aadido
de poca contempornea.
El avance de los estudios sobre los marqueses de Castel Rodrigo ha permitido conocer una serie de
tres grabados, todos flamencos, en los que se representa con seguridad a don Manuel de Moura. Dos
de ellos presentan al marqus con levsimas diferencias entre s, salvo por su inversin especular,
identificando al retratado de forma inequvoca en sus respectivas inscripciones. El primero (Fig. 2)
fue grabado por Antoine van der Does e impreso por Peter de Jode II en Amberes, mientras en el
segundo (Fig. 3) figura el excudit de Frans van der Wyngaerde (1614-1679)4. El mismo retrato que
reproducen ambos grabados, aunque con variaciones algo ms apreciables, fue utilizado en una
composicin alegrica de exaltacin de la casa de Castel Rodrigo, centrada por la figura de don
Francisco, el III marqus, y acompaada por la su padre don Manuel y su abuelo don Cristbal, el I
(Fig. 4). Tan notable calcografa se debi a Erasmo y Huberto Quellinus, y sali igualmente de las
prensas antuerpienses. Se ha afirmado en diversas ocasiones que la efigie de don Manuel en estos
grabados parta de un retrato hecho por Rubens, aunque este extremo parece harto complicado por
haber muerto el pintor en 1640, por tanto antes de la llegada del II marqus a Centroeuropa como
embajador extraordinario en la Dieta de Ratisbona.
Partiendo de la certeza de este modelo de retrato representado en los tres grabados, resulta posible
reconocer a don Manuel sin dudas en un lienzo subastado en fechas recientes5 y que se halla ahora
en el mercado anticuario lisboeta (Fig. 5, 122 x 97 cm). Aparecen en l las armas de su ttulo,
mostrando el retratado la cruz de la orden de Cristo y la llave de mayordomo mayor, as como una
inscripcin que le identifica. El parecido fsico con los grabados en este caso es incuestionable. Pese a
su apreciable calidad, no es posible por el momento proponer una autora para el mismo, aunque es
probable que se deba a algn taller madrileo. Ambos retratos, el que sirve de base a los grabados
flamencos y el pintado sobre lienzo, hubieron de hacerse en un momento avanzado de la vida del
marqus, como pone de manifiesto no slo su aspecto fsico, sino tambin la llave de oro que luce en
el cinto, smbolo del cargo de mayordomo mayor, el cual le fue concedido por Felipe IV en 1649.
Tambin su padre don Cristbal goz de semejante distincin, mostrando por igual la llave en varios
de sus retratos conocidos.
Al elenco de efigies de don Manuel ha de aadirse una ms. Se trata de un singular busto en bronce,
que procedente de las colecciones artsticas de sus herederos en Madrid se conserva hoy en Italia en
manos privadas (Fig. 6). En este caso, el marqus aparece con armadura, luciendo un colgante con la
insignia de la orden de Cristo.
Vistos cules son los retratos hasta ahora conocidos del personaje, puede procederse a un intento de
identificarlos en las fuentes documentales relativas a los bienes artsticos de los Castel Rodrigo. A
falta de localizar un inventario de las obras de arte atesoradas por don Cristbal y don Manuel en su
impresionante residencia lisboeta, es posible remitirse a un documento de 1630 referido al
patrimonio del ltimo. Cuando Felipe IV encomend al II marqus hacerse cargo de la embajada de
Roma, ste condujo desde Lisboa hasta Madrid una parte de sus pertenencias ms preciadas,
principalmente plata de mesa y valiosas joyas. En aquella ocasin, fueron tambin transportados
quatro Retratos de Su Excelencia y de sus hijos chiquillos6. Parece no obstante que el grueso de las
pinturas que los Castel Rodrigo posean por entonces incluyendo obviamente los dems retratos de
familia se qued en Lisboa. Ninguno de estos retratos de juventud ha sido por el momento
localizado.
4
Sobre la obra grfica de su autor, vase Jeroen DE SCHEEMAKER, Dutch and Flemish Etchings, Engravings and
Woodcuts, 1450-1700: Joachim Wtewael to Frans van der Wyngaerde, Rotterdam, Sound and Vision, 2000.
5
Fue subastado en Christies Londres el 29 de octubre de 2010, venta 5493, lote 48.
6
Archivo Histrico Nacional, Madrid (AHN), Consejos, Libro 636, fols. 128 y ss, Relacion de la plata labrada,
joyas de diamantes, colgaduras y otras cossas que el Marqus de Castel Rodrigo a quien Su Magestad ha
nombrado por embaxador en Roma trae de Portugal, noviembre de 1630.
422
Es ms que probable que durante su larga embajada en Roma y durante sus aos de servicio en
Viena y Bruselas, don Manuel se hiciese retratar en alguna ocasin. An as, no se tiene constancia
documental de este extremo, ni tampoco se conoce por ahora ningn retrato que pueda relacionarse
sin reservas con aquellas etapas de su biografa. Resulta bastante significativo que su hijo y heredero,
don Francisco de Moura, el III marqus de Castel Rodrigo, declarase en 1651, pocos meses despus
del fallecimiento de don Manuel, no poseer ms que un retrato de su padre, que adems no era
muy excelente. Prometa entonces al marqus de la Fuente, embajador de Espaa en Venecia y a
quien declaraba no tener ms que este retrato de don Manuel, hacerle una copia del mismo para
remitirle a V.E. haciendo yo mucho aprecio de la memoria que conserva7.
Pero tal caresta de retratos de su progenitor habra sido paliada a lo largo de las siguientes dcadas,
en las cuales los Castel Rodrigo lograron recomponer holgadamente su hacienda tras el secuestro de
sus bienes portugueses en 1640. As lo manifestaba la esplndida villa suburbana que don Francisco
posey en Madrid, La Florida, sin duda una de las residencias ms suntuosas de la aristocracia
madrilea en la segunda mitad del siglo XVII8. All, a la muerte del III marqus de Castel Rodrigo en
1675, se inventari una importantsima coleccin de pinturas, en la que se encontraban numerosos
retratos de la estirpe9. Se contaban en la coleccin pictrica de La Florida un total de cinco retratos
de don Manuel, siendo as el miembro de la familia con mayor protagonismo en aquella pinacoteca.
Cuatro de ellos presentaban un formato anlogo, de vara y media de alto por vara de ancho (unos
120 x 83 cm), estando tres de los mismos sin enmarcar10. Resulta tambin de gran inters constatar
cmo sus familiares siguieron una tradicin de notable arraigo en la corte espaola, por ms que no
era privativa de ella, la de hacerle retratar ya fallecido en el lecho de muerte o antes del sepelio11.
Este quinto retrato tena, como el asunto representado exiga, un formato ms reducido y apaisado
que los dems. Las estimaciones de estos cinco retratos oscilaron entre los 40 y los 110 ducados,
siendo mucho ms bajas que las merecidas por algunos lienzos de asuntos mitolgicos de la misma
coleccin, que llegaran a alcanzar incluso varios miles de ducados.
Por desgracia, el inventario de las pinturas de La Florida es muy parco en descripciones de los
retratos, por lo que no incluyen ningn elemento que permita una segura identificacin entre sus
distintos registros y los retratos hoy conocidos. Tampoco hay, en ningn caso, menciones a los
autores de los mismos. No obstante, es ms que probable que el lienzo en el mercado anticuario
lisboeta fuera uno de los inventariados en La Florida tras la muerte de don Francisco, siendo adems
7
Fernando BOUZA, Por qu pintado: Usos intencionales de las imgenes en la Alta Edad Moderna, en Actas
de la XI Reunin Cientfica de la Fundacin Espaola de Historia Moderna: Ponencias y conferencias invitadas,
Granada, 2012, 27-44, en especial p. 38. La carta se conserva en AHN, Estado, Libro 115. Viena, 11 de
noviembre de 1651.
8
Mara Teresa FERNNDEZ TALAYA, El Real Sitio de la Florida y la Moncloa. Madrid, Fundacin Caja Madrid,
1999, especialmente en las 371-382, donde la autora publica cuidadosamente el inventario de los bienes
artsticos de don Francisco de Moura. Sobre el edificio y las dems promociones arquitectnicas de los
marqueses, vase Paulo VARELA GOMES, Arquitectura, religio e poltica em Portugal no Sculo XVII: A planta
centralizada. Porto, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 2001, en especial 173-197, y del
mismo autor Damnatio Memoriae. A arquitectura dos marqueses de Castelo Rodrigo, en Jos Luis COLOMER
(dir.), Arte y diplomacia de la Monarqua hispnica en el siglo XVII. Madrid: Fernando Villaverde, 2003, 351-376.
9
Jos Luis BARRIO MOYA, Las colecciones de pintura y escultura de don Francisco de Moura, tercer marqus
de Castel Rodrigo (1675), Academia, 82, 1996, 295-332.
10
FERNNDEZ TALAYA, op. cit., 371-382: Otra sin marco del mismo tamao [vara y media de alto y vara de
ancho] del seor Marques don Manuel de Moura en 8 ducados 88 reales; Otra del marqus don Manuel de el
mismo tamao [vara y media de alto y vara de ancho] en 4 ducados 40 reales; Otra pintura del dicho
Marques don Manuel de una bara de ancho y bara y media de alto sin marco en 8 ducados 88 reales; Una
pintura del seor Marqus de Castel Rodrigo Don Manuel sin marco ni bastidor de vara y media de alto algo
menos de ancho en 10 ducados 110 reales.
11
Ibidem, Otra pintura del Seor Marques de Castel Rodrigo don Manuel muerto de tres quartas de ancho y
mas de media vara de alto en 8 ducados 88 reales.
423
sus medidas del todo coincidentes. Entre los varios retratos de personajes no identificados en esta
villa del III marqus se encontraba uno inventariado como Otro de un biejo con cuello de pliegues y
avito de Cristo sin marco de vara y media de alto y vara de ancho en 36 reales. Tal registro muy
probablemente se refera a la supuesta efigie del marqus recordada al principio de este trabajo (Fig.
1), que seguramente haba de representar a algn miembro de la familia de tiempos de don
Cristbal.
El III marqus de Castel Rodrigo se hizo rodear en su residencia de La Florida de los mayores lujos
existentes en el Madrid de su tiempo. Al mismo tiempo, la instalacin de las obras de arte que posea
revisti en algunos casos un claro sentido de exaltacin dinstica, como ocurra en el cuarto del
marqus. En l dispuso ocho retratos en busto vaciados en bronce, que fueron tasados en su
testamentara en 32.000 reales12. Cinco de ellos, que representan a don Cristbal y su esposa doa
Margarita, a don Manuel el antes recordado (Fig. 6), don Francisco y el rey Felipe IV se conservan
en una coleccin privada italiana13. Un sexto figuraba al emperador Carlos V14, y los otros dos habran
de ser ms miembros de la familia Castel Rodrigo, posiblemente las consortes de don Manuel y don
Francisco, desconocindose el paradero de estos tres ltimos bustos. La factura de stos,
tcnicamente correcta pero dura de modelado, remite con gran probabilidad a los talleres flamencos
de mediados del siglo XVII. Ha de tenerse en cuenta que don Francisco pas largos aos de su vida al
servicio de la corona en Centroeuropa, primero en la corte de Viena, adonde acudi en 1648, y aos
ms tarde, desde 1664 hasta 1668, en los Pases Bajos espaoles, donde fue gobernador y capitn
general. En estos territorios reuni un considerable nmero de pinturas y tapices, y bien podra
tambin haber encargado all esta interesante y original serie escultrica.
Don Francisco concedi en efecto gran importancia a la representacin y difusin no slo de su
propia imagen, sino tambin a la de su padre y su abuelo, contribuyendo as a la continuacin de la
estrategia legitimadora de su familia. La reivindicacin que hizo de la figura paterna hubo de estar
justificada, al menos en parte, por el deseo de limpiar las manchas que sobre don Manuel se
vertieron en la dcada de 1630, cuando fue acusado desde las altas instancias de la monarqua de
sodomita y traidor15. Don Manuel sali indemne de aquel humillante proceso, pero su prestigio
habra quedado, al menos en la rbita cortesana, seriamente daado. Puede que en un deseo de
rehabilitar la memoria paterna, don Francisco hiciera difundir desde Flandes algunos de los retratos
grabados del II marqus antes considerados, que le mostraban ostentando el prestigioso cargo de
mayordomo mayor.
La imagen de don Manuel de Moura fue forjada dentro de un proyecto dinstico, por lo que present
unos apreciables rasgos de continuidad de la que haba exhibido su padre don Cristbal. Al mismo
tiempo, busc exaltar su prestigio cortesano en el entorno de Felipe IV, mostrando una cierta
emulacin de la imagen de su ms acrrimo rival, el conde-duque de Olivares, quien ya se hizo
representar en la dcada de 1620 de forma anloga a como lo hara aos ms tarde don Manuel
(recurdese por ejemplo el importante retrato del conde-duque debido a Diego Velzquez que
conserva el Museo de Bellas Artes de So Paulo).
12
Ibid., 95.
Ibid., 95-97.
14
BARRIO MOYA, op. cit., 304.
15
Santiago MARTNEZ HERNNDEZ, Aristocracia y anti-olivarismo: el proceso al marqus de Castel Rodrigo,
embajador en Roma, por sodoma y traicin (1634-1635), en Jos MARTNEZ MILLN y otros, La Corte en
Europa: Poltica y Religin (siglos XVI-XVIII), Madrid, Polifemo, 2012, vol. II, 1147-1196.
13
424
Los retratos del II marqus de Castel Rodrigo fueron un elemento ms en una amplia campaa de
propaganda de su persona y su estirpe16, tanto en el contexto del Portugal de los Felipes como en la
Espaa posterior a la Restauracin portuguesa. Sirvieron adems para mostrar su identidad hbrida,
portuguesa y castellana a la vez. Fueron igualmente, despus de su muerte, un eficaz medio para
exaltar a una familia que no abandon el servicio de Felipe IV en la ms difcil encrucijada de la
Monarqua hispnica durante el siglo XVII.
16
Se refiere a esta campaa Fernando BOUZA, El pintor en la luna: Un episodio de la fama de Rubens en la
cultura internacional del barroco, en In sapientia libertas: Homenaje al profesor Alfonso E. Prez Snchez,
Madrid/Sevilla, Focus Abengoa, 2007, 349-352.
425
426
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427
428
And there is of course one level on which this picture is obviously about art.4 O actor Garrick
encontra-se entre os gneros da tragdia e da comdia, gneros antagnicos, representativos e
demarcados de diferentes personagens-tipo e ensinamentos. Estas esto personificadas em duas
mulheres, musas, distintas pela aparncia e pelos valores que representam. Mannings escreve: The
contrast between the two muses is both formal and iconographic.5 Cada uma sua maneira tenta
persuadir o actor, e no um actor qualquer, a juntar-se a si. Garrick encontra-se na posio
impossvel, mas gloriosa, de escolher. Este tema da escolha entre duas altas personagens remete
para a histria mitolgica da Escolha de Hrcules, episdio tratado na literatura clssica grecoromana, tema igualmente popular entre pintores.
Segundo leituras de composio do quadro de Reynolds, o tema mitolgico aliado representao
real de Garrick parece no respeitar as normas da conveno desse tempo. Segundo Mannings:
Now one of the striking things about Reynolds's own allegorical portrait of Garrick is that while he
retains and even deepens the mock-heroic quality he decisively rejects the principle of Shaftesburian
truth or consistency, and places his subject in an unreal situation in the company of entirely
imaginary beings, where he performs an action symbolizing an aspect of his own character or
personality.6
A expressividade e sucesso deste retrato depreendem-se no resultado gerado do encontro, e das
intenes, tanto do pintor como do modelo. No incio de 1760 as imagens de Garrick j circulavam
bastante, contudo este retrato assume um estatuto de excelncia na disseminao da imagtica, e
da arte do actor. Garrick ento pintado por um grande artista, este retratista de personalidades
ilustres da sociedade inglesa da poca. O tratamento do tema e a composio da representao, por
Reynolds, so cruciais. O retrato ganha ainda mais projeco devido sua temtica simblica, ao
evidenciar o conflito da posio de Garrick, este representado como protagonista, no centro da
composio. Com este trabalho Reynolds eleva a imagem do actor: Here Reynolds sought to go
beyond the standard portrait depiction of Garrick in character in order to encapsulate the unique
qualities that had caused him to effect a revolution on the British stage, namely his naturalistic acting
style and the extraordinary versatility that allowed his to take on comic and tragic roles with equal
facility.7
Condies de produo
O sucesso da representao de Garrick passava inevitavelmente por ser realizada por um artista
famoso, bem relacionado, com reputao e fama. Nesta estampa, em particular, suspeita a autoreflexibilidade entre o pintor e o actor. No verso encontra-se a inscrio: This subject was one of
Reynoldss famous pictures, and in it he paid the most charming complement to his friend Garrick.8
Nesta altura Garrick era presena habitual no crculo de relaes de Reynolds, como Martin Postle
escreve: By now Reynolds and Garrick socialised together frequently, sharing interest in art,
literature and intellectual company.9
A relao social dos dois influenciou seguramente a produo e o resultado da encomenda em
questo, sendo mesmo difcil diferenciar quando estes se encontravam para socializar ou para
sesses de pintura, como escreve David Mannings: In general it is difficult to connect references to
4
David Mannings, Reynolds, Garrick, and the Choice of Hercules, Eighteenth-Century Studies, Vol. 17, No. 3
(1984): 263.
5
David Mannings, Sir Joshua Reynolds: A complete catalogue of his paintings (London: Yale University Press,
2000), 210.
6
Mannings, Reynolds, Garrick, and the Choice of Hercules, 267.
7
Martin Postle, ed., Joshua Reynolds: The creation of celebrity (London: Tate Publishing, 2005), 230.
8
Zarrilli et al., Case Study: Theatre iconology and the actor as the icon: David Garrick, 172-73.
9
Postle, Joshua Reynolds: The creation of celebrity, 148.
429
Garrick in the Pocket Books with particular pictures and in many cases impossible to know which
were sittings as opposed to social calls. And there may well have been sittings which were not
entered at all.10 Mannings aponta o incio da composio do quadro no ano de 1759. Durante os
anos de 1760 e 1761 Reynolds regista bastantes marcaes com Garrick, estas provavelmente
sesses de trabalho. Em 1762 a obra exibida na Society of Artists em Londres com o ttulo Mr
Garrick, between the two muses of tragedy and comedy.
Pode-se entender a produo deste retrato como um marco na vida dos dois protagonistas um
encontro e expresso de duas personalidades fortes, ambiciosas e dispostas a vencer: He [Garrick]
also possessed, like Reynolds, a genius for self-promotion.11 Martin Postle completa: Throughout
his career, Reynolds, too, was alive to the possibilities that theatre offered him, not so much in terms
of re-creating actors in character, but in capitalising upon their status.12 No mesmo sentido
Mannings acrescenta que a representao de Garrick uma projeco do prprio Reynolds: Garrick
is Reynolds himself. By varying the ways in which he has painted Tragedy and Comedy he is able to
make his own personal point about contemporary styles.13
Desta forma Reynolds, pintor e esteta, personalidade bastante influente em meados do sculo XVIII,
foi um dos fundadores e, em 1768, primeiro presidente da Royal Academy of Arts. Assim mostrou-se
comprometido para com o desenvolvimento da pintura inglesa em direco a um estilo formal e
retrico de influncia continental. Philip Hagreen escreveu: Whatever the merits of Reynolds and
his followers they are totally different from those of the rest of the English painters. This difference is
not only of vision and of technique but also of point of view towards painting as an art.14 Reynolds
destaca-se na pintura de retratos sendo popular entre famlias nobres e pessoas de sociedade. A sua
obra ajudou mesmo, no sculo XVIII, propagao da ideia de celebridade entre elites.
O caso da produo e proliferao de imagens de David Garrick ideal para descrever uma afinidade
que o teatro e a pintura desenvolveram no sculo XVIII. O panorama teatral ingls reagia a mudanas
estticas quer no reportrio de textos, quer no estilo de interpretao dos actores. A Inglaterra
tentava libertar-se da esttica francesa dominante na Europa continental. Garrick captou a ateno
do pblico ao reavivar as tragdias histricas de Shakespeare com o seu estilo de representao de
conduta natural e informal. O actor reforava a ideia de observao e imitao da natureza humana,
mais do que a cpia de expresses de outros actores.
Garrick conhecia bem as tendncias na pintura inglesa do sculo XVIII, as quais versavam bastante o
tratamento da paisagem natural, e estas influenciavam a sua literacia visual. importante notar que
Garrick manteve sempre fortes laos com a pintura e os pintores como exemplo a estampa em
questo. Ele foi retratado pelos maiores pintores da poca, entre eles: William Hogarth, Joshua
Reynolds, Philip James de Loutherbourg, Johann Zoffany, Benjamin Wilson. O actor tinha mesmo a
sua coleco privada de arte e era tido como um conhecedor coleccionador.
Em 1777 Garrick contrata Philip James de Loutherbourg, um hbil pintor vindo de Paris, para dirigir
todos os aspectos do desenho de cena dos seus espectculos: David Garrick was, as Baugh argues,
the supreme delegate for the eighteenth-century audience; an audience not just for the theatre but
for all the product of his age and his collaboration with Loutherbourg brought together: Several
aspects of shifting audience taste landscape, topography, the picturesque, history and the exotic
10
430
and the creation of a practical stage machine which could flexibly and speedily show his audience
aspects of its own experience.15
15
Glen McGillivray, The Picturesque World Stage, Performance Research, Vol. 13, No. 4 (2008): 135.
Martin Postle, Sir Joshua Reynolds: The subject pictures (Cambridge: Cambridge University Press, 1995), 32.
17
Zarrilli et al., Case Study: Theatre iconology and the actor as the icon: David Garrick, 232.
18
Zarrilli et al., Case Study: Theatre iconology and the actor as the icon: David Garrick, 172.
19
Zarrilli et al., Case Study: Theatre iconology and the actor as the icon: David Garrick, 232.
20
Postle, Joshua Reynolds: The creation of celebrity, 271.
16
431
uma crescente classe mdia e burguesa, o negcio das estampas de teatro encontrou uma
oportunidade de mercado.
Esta oportunidade de mercado pode ser traduzida numa cadeia de aces entre interesses e
interessados quem encomenda, quem produz, quem vende e distribui, e, muito importante, quem
compra. A produo de gravuras de retratos de actores um produto que resulta de vrios factores:
dos actores que querem visibilidade, dos pintores que procuram novos temas e sujeitos, da imprensa
em crescimento, de uma classe da sociedade que as pode comprar. As estampas de teatro do sculo
XVIII so assim excelentes para avaliar o contexto cultural e econmico que as gerou. O teatro
procura converter-se em imagens fixas e consegue colocar-se no meio da comunicao imagtica da
altura. Este o produto de um fenmeno maior: Not only the painting or print itself, but the
circumstances of its production and distribution also can tell us what cultural work it was doing.21
Outro aspecto da ideia de negcio nos bastidores das estampas a relao deste com os
antepassados dos meios de comunicao social: The press began its long love affair with actors in
the eighteenth century. In addition to theatre reviews and manuals, actors pictures appeared in
printed plays, in theatre almacs and books of anecdotes, and in engravings and illustrations by
famous artists, where they usually were shown in an evocative moment of their most characteristic
role. Soon after the press began to use actors, actors found ways to use the press to puff their
latest roles, to create printed programs that boosted their reputation, and to write articles and
memoirs that shaped the record of their performances. Without the actor-press mutual
administration society, theatrical stars could not have been born.22
O actor David Garrick usou o seu retrato como princpio do uso da imagem de uma celebridade
aliado aos meios acessveis de proliferao das imagens em diferentes meios numa estratgia de
marketing pessoal nunca antes vista. O prprio encomendava vrios retratos de si mesmo e tratava
da sua distribuio. Em 1764 fez uma digresso a Paris para a qual encomendou com urgncia vrias
estampas para distribuir entre amigos e admiradores. O merchandising da sua imagem estendia-se a
objectos to distintos como: pratos de porcelana, latas de ch de prata, caixas de esmalte,
medalhes ou mesmo bustos.
A par da proliferao da sua imagem enquanto actor Garrick preocupava-se em revelar a sua imagem
enquanto indivduo. Para tal encomendava retratos destitudos de elementos iconogrficos que o
ligassem ao teatro: He also commissioned portraits of himself in his off-stage role of the natural
gentleman, a role that straddled old and new ideas of class.23 Este momento foi crucial para o fim de
vrios estigmas contra os actores e a profisso. No sculo XVIII a disseminao destas imagens
influenciou directamente a percepo e aceitao que a sociedade tinha da classe teatral. A
sociedade passou mesmo a ver os actores como embaixadores do pas e de valores nacionais, e
aceitou a propagao das imagens como veculo para essa diplomacia. Garrick era visto como
homem virtuoso e bem-sucedido, capaz de invocar valores morais e nacionais, sendo um consagrado
representante da Inglaterra na Europa. Este sculo resume-se como de mudana de paradigmas o
tempo de uma redefinio da identidade inglesa da passagem de uma histria de monarquias
absolutistas para uma monarquia mais liberal, em que os valores da classe emergente, os burgueses,
preservavam o civismo e a virtude pessoal. Garrick era o exemplo vivo desta nova ordem.
21
Zarrilli et al., Case Study: Theatre iconology and the actor as the icon: David Garrick, 233.
Zarrilli et al., Case Study: Theatre iconology and the actor as the icon: David Garrick, 174.
23
Zarrilli et al., Case Study: Theatre iconology and the actor as the icon: David Garrick, 231.
22
432
Notas conclusivas
Esta gravura continua a levantar questes interminveis e intemporais, pois afirma-se como vestgio
e testemunha viva de uma viso e leitura do teatro, estas em constante transformao e
reinterpretao. A abordagem ao tema e as referncias simblicas revelam-se fascinantes. Imagens
assim so testemunhos de uma arte que passa tanto pela sua materialidade e apresentao como
pelo seu imaginrio pessoal e colectivo. O teatro vive e alimenta-se dessas imagens. Do ponto de
vista dos Estudos Teatrais o contributo desta imagem, e de Reynolds, revelador e alimenta uma
viso do teatro, do fazer teatro, do imaginrio do teatro. O tributo que faz ao amigo Garrick resulta,
mais do que num objecto de arte, numa representao icnica: underlining Garricks enduring fame
and, of course, the excellence of Reynolds image24. Um grande pintor retrata um grande actor com
mestria, conhecimento do meio e sagacidade (wit) o objecto resultante to vlido e intrigante
quer para a Histria da Arte, quer para os Estudos Teatrais. um objecto que diz respeito tanto ao
teatro como pintura, e remete para as condies de produo da altura.
Com o reconhecimento do sucesso da receita de Garrick, muitos outros actores seguiram a sua
estratgia de promoo da imagem. Hoje em dia encontramos em museus e coleces privadas
inmeras imagens e objectos dessa procura de materializar imagens do teatro em estampas,
pinturas, e todo o tipo de memorabilia referente a um ou mais actores, pocas, estilos, etc. O teatro
d aqui um passo gigante na creditao do seu estatuto enquanto arte, na sua crescente visibilidade
e circulao, aceitao da classe trabalhadora e mesmo na subida do seu valor de mercado.
Fig. 1 Garrick between Tragedy and Comedy. Joshua Reynolds (pintor), Edward Fisher (gravador).
1762. Imagem digitalizada, cortesia das Coleces do The Centre for Performance Research,
Universidade de Aberystwyth.
24
433
BIBLIOGRAFIA
HAGREEN, Philip. The English School of Painting I. Music & Letters, Vol. 1, No. 3 (1920): 269-78.
MANNINGS, David. Reynolds, Garrick, and the Choice of Hercules. Eighteenth-Century Studies, Vol.
17, No. 3 (1984): 259-83.
. Sir Joshua Reynolds: A complete catalogue of his paintings. London: Yale University Press, 2000.
MCGILLIVRAY, Glen. The Picturesque World Stage. Performance Research, Vol. 13, No. 4 (2008):
127-39.
POSTLE, Martin. Joshua Reynolds: The creation of celebrity. London: Tate Publishing, 2005.
. Sir Joshua Reynolds: The subject pictures. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
WICKHAM, Glynne. A History of the Theatre. London: Phaidon Press, 1992.
ZARRILLI, Phillip B. et al. Theatre Histories: An Introduction. London: Routledge, 2006.
Este trabalho foi desenvolvido no mbito do Centro de Estudos Artaldo Arajo (uID 4041 da FCT)
sendo financiado por Fundos Nacionais atravs da FCT Fundao para a Cincia e Tecnologia no
mbito do projecto estratgico PEst-OE/EAT/UI4041/2011.
434
Em O Retrato na Arte Portuguesa, Jos-Augusto Frana afirma que os retratos surrealistas de Antnio
Pedro produzidos nos anos de 1940 lanaram um desafio [] ao retrato portugus que dificilmente
ento o poderia aceitar, e que s mais de trinta anos depois novas geraes se atreveram a dar s
imagens um tratamento heterodoxo1. esta dimenso heterodoxa do retrato na arte
contempornea portuguesa que o presente ensaio pretende inquirir. Para o efeito, escolhemos
aprofundar um caso, entre outros2, mencionado por este historiador de arte no citado livro: as
sombras de pessoas que Lourdes Castro apresenta, durante a dcada de 1960, em telas, em recortes
tridimensionais de plexiglas e em lenis bordados.
Jos-Augusto Frana, O Retrato na Arte Portuguesa (Lisboa: Livros Horizonte, 1981), 93.
Jlio Pomar, Noronha da Costa, Helena Almeida, Jos de Guimares, Costa Pinheiro e Nikias Skapinakis so os
outros autores apontados.
3
Roland Barthes, Cmara Clara (Lisboa: Edies 70, 1998), 71.
2
435
de ser um signo, passando a ser a prpria coisa. , at certo ponto, uma emanao do referente.
Como no referente fotogrfico no h uma coisa facultativamente real que remeta para uma
imagem ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada num determinado lugar e de
uma determinada forma (entre um foco de luz e uma superfcie) sem a qual no poderia haver uma
sombra. A linha que decalca o contorno de uma sombra, realmente projectada num determinado
plano, confere esta dimenso de certificao existencial. Tradicionalmente, a pintura combina signos
que tm, normalmente, referentes, mas esses referentes podem ser (e na maior parte das vezes sono mesmo), quimeras, devaneios, delrios, fantasia...4 Ao contrrio dessas representaes, no
processo de decalque das Sombras de Lourdes Castro nunca posso negar que a coisa esteve l.
Aquilo que Lourdes Castro intencionaliza numa sombra tirada do real a Referncia, esta a ordem
fundadora do seu valor indicitico5, a garantia de um Isto-foi barthiano, ou seja, Lourdes Castro
dir sem dvida: aquilo que vi (e que tu vs agora) esteve l; a silhueta de algum preciso e
identificado (ou foi naquele momento) assim6. A imagem do Outro reduzido ao contorno da sua
sombra destituda de uma das mais poderosas iluses da pintura de entre as muitas existentes: ela
despojada do sentimento de presena em favor da sua certeza. Do ponto de vista da renovao do
gnero, a proposta de Lourdes Castro surge-nos como estgio reactivo perante dois anteriores. Do
retrato como espelho do real o discurso da mimsis , enquanto teoria da representao que
remete para a Antiguidade Clssica continuada pela tradio acadmica, passando pelo retrato como
transformao do real que o discurso do cdigo e da desconstruo com a intruso da lgica
antimimtica da vanguarda, Lourdes Castro apresenta o retrato como vestgio do real atravs do
discurso do ndice e da referncia. Esta concepo distingue-se nitidamente das duas precedentes,
porque implica que a imagem indicitica seja dotada de um valor singular, ou particular7,
determinado unicamente pelo seu referente e s por ele. O fulgor pela pura indicialidade surgida
na arte dos anos 1960 conceptualizada por Rosalind Krauss, no famoso texto de 1976-77 Notes on
the Index8 , porque constitutivo de um novo paradigma, ter inevitavelmente as suas repercusses
na teoria e na prtica do retrato. So algumas dessas repercusses gerais que devemos referir, muito
rapidamente, uma vez que o estatuto do ndice, onde se insere o decalque da sombra, implica, se
quisermos sintetizar neste ponto os ensinamentos de Charles Peirce, que a relao dos signos
indiciais com o seu objecto referencial seja sempre marcada por um qudruplo princpio, de conexo
fsica, de singularidade, de designao e de testemunho.9
2. sobretudo devido ao seu carcter indicitico que um bom nmero de usos e de valores aqui
atribudos aos decalques de Lourdes Castro se podem explicar valores e usos fsicos, contingentes,
biogrficos, quotidianos, at ntimos e amorosos , usos sempre considerados nos jogos do desejo e
4
Ver a diferena essencial que Rosalind Krauss estabelece entre as prerrogativas do pictrico e do fotogrfico.
Rosalind Krauss, Duchamp ou le champ imaginaire, in O Fotogrfico (Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2002),
pp. 76-93. Publicado originalmente em Degrs, Nova Iorque, n. 26-27 (Primavera 1981).
5
A respeito do carcter indicitico da marca do corpo, ver Charles S. Peirce, crits sur le signe. Textos
compilados, traduzidos e comentados por Grard Deledalle (Paris: Seuil, 1978), 158 (cit. p. R. Krauss, O
Fotogrfico (Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2002), 17, nota 1).
6
Por isso, Lourdes Castro utiliza sempre um modelo. Diz: Eu fao sempre directamente as sombras pelos
modelos ou objecto, ou planta, ou pessoa, e nunca tento modificar nada. Escolho a sombra. Lusa Soares
de Oliveira, Teatro de Sombras: Pea em vrios actos, Artes & Leiles 15 (Junho-Setembro 1992): 15.
7
Ser interessante cotejar a teorizao que, a partir de Charles S. Peirce, Philippe Dubois desenvolve em O Acto
Fotogrfico (Lisboa: Vega, 1992), 66, com a seguinte passagem: O mundo de Lourdes Castro o mundo de So
Tom: o da constatao realista (Pierre Restany, Lourdes Castro: A Presena da Ausncia, in Lourdes Castro:
Alm da Sombra [cat. exp.] (Lisboa: FCG/CAM, 1992), 37. Originalmente publicado no catlogo da exposio
Lourdes Castro, Munique: Galeria Buchholz, 1965).
8
Rosalind E. Krauss, Notes on the Index: Seventies Art in America, October, vol. 3 (Spring 1977), 68-81.
9
A respeito do qudruplo sentido do ndice, ver P. Dubois, idem, onde esta questo amplamente
desenvolvida.
436
da morte e que tendem todos a atribuir s sombras projectadas de Lourdes uma fora particular de
objecto de crena ou de fetichizao. Seguramente, o que confere um tal valor s sombras
decalcadas de Lourdes Castro, anlogo ao dos lbuns de famlia10 (no por acaso que a artista
compila referncias e meditaes pessoais sobre a questo da sombra num conjunto de cadernos
que levaram esse nome), no so tanto os contedos representados nem as qualidades plsticas ou
estticas da composio, nem to-pouco o grau de semelhana ou realismo da imagem11, mas sim
uma dimenso pragmtica, o seu estatuto de ndice, o seu irredutvel peso referencial, o facto de se
tratar de verdadeiros vestgios fsicos de pessoas singulares que estiveram ali e tm (ou tiveram)
relaes particulares, ntimas12 com aquele que fixou e guardou a sua imagem13. S isso explica o
culto de que so objecto, a sombra de entes queridos, o que faz destas imagens uma espcie de
monumentos de famlia. Se cada sombra projectada de Lourdes Castro pode ser considerada como
memento mori, tambm, por si mesma, um sinal de momento vivido, e, por conseguinte, um
relicrio de emoes por remeter, ainda que secretamente, para uma vivncia acontecida no
tempo. Lourdes Castro quando empreende tal empresa, maneira do retrato privado, f-lo porque
os factos que espera preservar das destruies do tempo so antes de tudo de ordem psicolgica.
3. Segundo a tradio do mito de Plnio, o Velho, a origem da pintura identifica-se com a origem do
retrato. O que essa narrativa conta no seno a origem da cermica e do desenho, o que se leva a
depreender facilmente o princpio de que a pintura nasce do desenho, mas ainda que aquela nasce
tambm do contorno da sombra.14
Ao utilizar tambm a terra, o ceramista Butades de Sycione foi o primeiro a descobrir a arte de
modelar os retratos em argila; passava-se isto em Corinto, e ele deveu a sua inveno sua
filha que se tinha enamorado por um rapaz; como este ia partir para o estrangeiro, ela
contornou com uma linha a sombra do seu rosto projectada na parede pela luz de uma
10
De modo mais trivial, toda a prtica do lbum de famlia vai no mesmo sentido: para l das poses, dos
esteretipos, dos clichs, dos cdigos datados, para l dos rituais de ordenao cronolgica e da inevitvel
escanso dos acontecimentos familiares (nascimento, baptismo, comunho, casamento, frias, etc.), o lbum
de famlia no deixa de ser um objecto de venerao, cuidado, cultivado, mantido como uma mmia [...] abrese com emoo, numa espcie de cerimonial vagamente religioso, como se se tratasse de convocar os
espritos (P. Dubois, idem, 74).
11
Ao instaurar a referncia por meio do trao, o ndice d origem a um tipo de signos que pode ou no se
parecer com aquilo que representa. Assim, embora determinadas classes de ndices apresentem semelhanas
com o seu referente, como as sombras projectadas, rastos de passos ou os anis circulares deixados pelos
copos gelados numa mesa, a semelhana no ser pertinente para outros ndices como sintomas mdicos, por
exemplo. R. Krauss, idem, 82-83.
12
Guy Brett, Um conto de duas cidades, in Lourdes Castro e Manuel Zimbro, luz da sombra [cat. exp.]
(Porto: Fundao de Serralves / Lisboa: Assrio & Alvim, 2010), 21.
13
Situao anloga do retrato fotogrfico privado: A mesma coisa ainda, o desejo espalhando a pulso de
morte, pode ser dito da fotografia amorosa, dessas imagens queridas que cada um detm na carteira que
transporta no bolso do casaco, perto do corao. sempre a lgica do ndice que confere imagem esta fora
sentida violentamente sem cessar. O desejo nasce mais por contiguidade do que por semelhana (P. Dubois,
idem, 75-76).
14
Plnio, o Velho, Histria Natural, XXXV, 151 (cit. p. Jos Gil, Retrato, in A Arte do Retrato: Quotidiano e
Circunstncia [cat. exp.] (Lisboa: MCG, 1999), 12. Sobre este assunto, interessa-nos particularmente o que
refere Hubert Damisch, no prefcio que escreve para o livro de Rosalind Krauss, O Fotogrfico (Barcelona:
Editorial Gustavo Gili, 2002), 9: A lenda clssica da origem da pintura contada por Plnio o traado, realizado
pela filha de um oleiro de Sicione, da sombra do seu amante desenhada numa parede assinala o seu
irredutvel componente indicial. Pois uma sombra projectada (no h sombra sem corpo, como no existe
fumaa sem fogo) um ndice, no sentido atribudo por Peirce: ndice, mas que no deixa qualquer trao
permanente, a no ser que possa ser circunscrito e fixado.
437
lanterna; o seu pai aplicou a argila sobre o esboo, e fez um relevo que ps a endurecer ao fogo
com o resto das suas cermicas, depois de o ter secado.15
O mais interessante a referir neste contexto o facto de o mito sugerir, tal como Jos Gil nos d to
bem conta, uma relao ntima entre a sombra, o perfil e a histria de amor, por um lado, e a
pintura, por outro.16 O caso de Lourdes Castro verdadeiramente um retorno, citao e refinamento
do desenho por calco da sombra do amante no quarto iluminado por uma fogueira. Mas j no sculo
XVIII se tinha explorado o uso do decalque da silhueta como forma de retrato. Philippe Dubois
aborda-o, atestando-lhe uma relao explcita lgica do ndice, nas formas da impresso e do calco
da sombra humana. A fisionotracia (tcnica de desenhar silhuetas) precede assim a fotografia no seu
dispositivo, j que aquela introduz a independncia entre modelo e cpia, permitindo uma rpida
reprodutibilidade do esquema. Assim, Lourdes Castro, tal como um fotgrafo, essencialmente
testemunha da sua prpria subjectividade, isto , da forma como ela prpria se coloca como sujeito
em face de um objecto. E, de facto, como testemunha, uma testemunha do que j no existe.
Mesmo que o retratado continue vivo, o que foi decalcado pela artista foi um momento do sujeito e
esse momento passado. Isso remete forosamente para o enorme traumatismo que fustiga a
humanidade, a respeito do qual Roland Barthes nos d to bem conta em A Cmara Clara.17 Pois,
cada contacto com uma Sombra decalcada de algum implicitamente, enquanto forma recalcada,
um contacto com o que no existe, e assim, com a morte.18 Creio que deste modo que se deve
abordar a potencialidade das sombras de Lourdes em serem retratos: como uma espcie de enigma
fascinante e fnebre, justamente se levarmos em conta a sua componente de protesto contra o
desvanecimento do Ser no tempo.
Surge a questo da relao afectiva, de amor, entre o retratado e o retratista, no seu caso entre
homem-mulher (entre Lourdes Castro e Brtholo19, seu marido poca), de amizade (com Christo20
ou Costa Pinheiro21, por exemplo, seus companheiros do grupo KWY), ou familiar (entre a artista e a
sua me22). No ser de todo descabido encarar as sombras de Lourdes Castro como discurso
amoroso maneira de Barthes. Ela apresenta a figura do ente querido enquanto objecto de um
desejo esteticamente conservado. Desse modo, ela poder dizer: Nesta sombra de verdade, o ser
que eu amo, que amei, no est separado de si mesmo: ele coincide. Ou seja, parafraseando
Barthes, por uma lgica do singular, o sujeito apaixonado apercebe-se do outro como um Todo23. De
um mesmo modo Lourdes Castro parece dizer-nos que no necessrio efectivamente o todo, que
basta um fragmento24 ou um simples vestgio (como na relquia de um santo25), para que a imagem
dele ressurja.
15
438
4. Ao propor o retrato como mera sombra projectada, apresentando o mnimo como conservao
das caractersticas de algum26, marcada pela ausncia de pormenores de reconhecimento
fisionmico e de identificao iconogrfica, Lourdes Castro constri a teoria do que poderemos
designar de retrato projectivo ou em potncia27. Enquanto a imagem fotogrfica plena, carregada
no h lugar vago, no se pode acrescentar-lhe nada , nas Sombras de Lourdes Castro o espectador
pode projectar tudo aquilo que a sua memria-imaginao lhe sugere naquele campo aberto ou
inacabado. como se Lourdes Castro nos colocasse no papel de algum que vai completar a obra
que deixou a meio. Segundo Gombrich, o padro de estmulo na retina no a nica coisa que
determina a nossa viso do mundo exterior. As suas mensagens so modificadas por aquilo que
sabemos sobre a forma real dos objectos.28
Pouco importa se aquele vulto se sinta continuamente reduzido ao silncio (uma sombra no pode,
pois, comunicar com os olhos, ou com as expresses faciais, porque no lhe permitida a sua
apario). O que em cada um ressoa o que cada um conhece (ou conjectura) daquele corpo:
qualquer coisa de tnue ou de agudo desperta bruscamente desse corpo que, entretanto, adormecia
no (des)conhecimento de uma qualquer situao especfica tirada do real. Perante aquele gesto,
aco, postura, pormenor, como um corte de cabelo ou simples objecto que segura nas mos, o
nosso interior pe-se a vibrar. Aquelas pessoas vm mente, regressam do passado. A partir de um
(quase) nada, forma-se todo um discurso da recordao e da morte que nos arrasta: o reino da
memria, arma da ressonncia.
5. Referimo-nos a uma das mais importantes fbulas clssicas que nos narram histrias de sombras
a pintura (e o retrato) teriam nascido no dia em que o homem teve a ideia de desenhar os contornos
de uma sombra projectada sobre uma superfcie. Vimos qual o papel do ndice que estava em jogo.
Insistimos na equao entre a relao amorosa e o desejo de conservar vestgios fsicos de uma
presena votada a desaparecer. Mas no caso de Lourdes Castro o decalque j no um molde, ele
a imagem final. Assim, rompendo com a disciplina tradicional do retrato ao nvel da produo, uma
pergunta se impe: qual a distncia entre o fazer e o registar? Pois Lourdes Castro desloca a
autoria do produtor para a de simples testemunha. Preparou as condies para projeco do corpo
em sombra a luz, o ngulo, a imobilidade do modelo, a escolha da superfcie , quis que o seu
interlocutor pudesse sentir a intensidade emocional, fsica e psicolgica dessa aventura, qual est
associada aquela necessidade irresistvel de relatar das testemunhas oculares, aquela necessidade de
dar a ver aquilo que in loco, ou em primeira mo, se viu. O importante a reter que Lourdes Castro
decreta que notvel aquilo que ela decalcou, fixou no tempo (como que por magia o que ficou
fixado no tempo existe e no existe ao mesmo tempo). Com o decalque de uma sombra, a artista
arranca uma parte de um continuum mais amplo: o passado, como um Monumento, passa a ser uma
espcie de eterno passado no presente. No obstante, ao contrrio do desgnio do retrato (tal como
26
O contorno o Menos que posso ter de alguma coisa, de algum, conservando as suas caractersticas.
Lourdes Castro, Sombras projectadas e contornos (1963), fragmento citado sem referncia bibliogrfica, in
Lourdes Castro: Alm da Sombra [cat. exp.] (Lisboa: FCG-CAM, 1992), 51.
27
Sobre a noo de retrato em potncia (projectivo ou conjectural), proposta a partir das sombras projectadas
de Lourdes Castro, encontra-se por ns amplamente desenvolvida em Bruno Marques, Para o estudo da crise
do retrato nos anos 60 em Portugal (Dissertao de mestrado em Histria de Arte Contempornea, FCSH-UNL,
2004): 237-249. Filipa Oliveira parece seguir esta direco, com novas implicaes afectas problemtica do
gnero masculino/feminino: A aparente neutralidade sexual dos retratados (s nos apercebemos do sexo do
modelo atravs de pequenos detalhes na silhueta como o estilo de cabelo, as pestanas) induz o espectador a
construir a prpria verso daquele corpo especfico. Filipa Oliveira, Lordes Castro: A procura da sombra,
Margens e Confluncias, 11/12 (Dezembro 2006): 158-166.
28
E.H. Gombrich, Arte e Iluso: Um estudo da psicologia da representao pictrica (So Paulo: Martins Fontes,
1995), 321.
439
6. Tudo o que se adiantou aqui sobre o abandono das prerrogativas clssicas do retrato a propsito
das sombras de Lourdes Castro implica caracterizar uma crise31 ou descontinuidade que tem uma
amplitude mais lata, por no dizer respeito apenas ao retrato, mas falncia de todo um
paradigma de longa durao (o Humanismo Clssico) com o qual aquele dispositivo fazia sistema.
Alegamos que esta crise polariza-se nos anos 1960, mediante a estruturao de todo um novo
campo de saberes, teorias ou conhecimentos que afecta noes como as de Sujeito, Representao,
Arte ou Gnero. Para esta falha epistmica concorre todo um conjunto de mutaes estruturantes: o
anti-subjectivismo que a morte do homem estruturalista transporta32; a diluio das fronteiras
entre arte e vida; a crise da representao em nome de um regresso do real33; a inactualidade
da manufactura; a arbitrariedade radical do signo (com a Neofigurao); e a disrupo dos gneros
artsticos (como aposta radical nas trans e interdisciplinaridades). Os anos 1960 corporalizam o
momento em que, de modo programtico, se pe em causa a prtica e a teoria das estruturas
binrias (masculino/feminino; centro/periferia; alta/baixa cultura; arte/no-arte), da outreidade e
dos modelos racionais da diferena, acentuando as zonas fronteirias mistas34. A Teoria do Gnero
teria de inevitavelmente sofrer com a fragmentao de posies, a celebrao do hibridismo e da
29
Ver Andr Rouill, clipses du visage, La Recherche photographique. Dvisager 14 (Printemps 1993), 4, ou
Didi-Huberman, La Grammaire, le chahut, le silence: pour une anthropologie du visage, in Visage Dcouvert
(Paris, Fundation Cartier/Flamiron, 1992), 27.
30
Cf. Jean-Luc Nancy, Le Regard du portrait (Paris: Galile, 2000), 54 ou Jos Gil, que refere o seguinte: O
retrato suspende o tempo, torna presente a ausncia, 'ressuscita' o modelo morto, porque o fixa numa imagem
'viva'. (J. Gil, idem, 13).
31
Sobre a problematizao da crise do retrato no mbito da arte moderna e contempornea ver, por
exemplo, Pierre Francastel, Renovacin y decadncia: siglos XIX y XX, in Galienne e Pierre Francastel, El
Retrato. (Madrid: Ctedra, 1978), 212-228; os textos de Gilbert Lascault, Alain Buisine e Claude Fournet que
figuram no catlogo Le Portrait dans l'Art Contemporain 1945-1992 (Nice: Muse d'Art Moderne et d'Art
Contemporain, 1992); Pablo Jimnez Burillo, El artista frente a s mismo, in El autorretrato en Espaa: De
Picasso a nuestros dias [cat. exp.] (Madrid: Fundacin Cultural Mapfre Vida, 1994; Jos Gil, Retrato, in A Arte
do Retrato: Quotidiano e Circunstncia [cat. exp.] (Lisboa: MCG, 1999); A.W. Ewing, The Faces in the Mirror,
in About Face: Photography and the Death of the Portrait [cat. exp.] (Lausanne: Muse de lElyse, 2003);
Bruno Marques, Para o estudo da crise do retrato nos anos 60 em Portugal (Dissertao de mestrado em
Histria de Arte Contempornea, FCSH-UNL, 2004); Francisco Calvo Serraller, Los Gneros de la Pintura
(Madrid: Santillana Ediciones Generales, 2005), 365; Bruno Marques, O Retrato de D. Sebastio: Costa
Pinheiro ou a Desmitificao da Retratstica Histrica Oficial, Revista de Histria da Arte 5, IHA/FCSH-UNL,
2008, 188-207 [http://iha.fcsh.unl.pt/uploads/RHA-5-10.pdf]; ou Jos Gil e Bruno Marques, Entrevista com
Jos Gil, Revista de Histria da Arte 5, IHA/FCSH-UNL, 2008, 8-17 [http://iha.fcsh.unl.pt/uploads/RHA-5ent.pdf].
32
Michel Foucault, As Palavras e as Coisas: Uma arqueologia das cincias humanas (Lisboa: Edies 70, 1998).
33
Hal Foster, The Return of the Real (Cambridge, Massachusetts & London: MIT Press, 1996).
34
Cf. Germano Celant, 1968: Em direco a uma diversidade global, in Circa, 1968 [cat. exp.] (Porto:
Fundao Serralves, 1999), 183-191.
440
35
441
Entre eles destacam-se Hans Belting com a sua abordagem antropologia da imagem; Georges DidiHuberman ao recuperar para o debate cientfico a obra de Warburg ou W.J.T. Mitchell com os seus estudos
de cultura visual.
2
BOURDIEU, Pierre Les Rgles de lart. Gense et structure du champ littraire. Paris : ditions du Seuil, 1998.
3
Segundo a concepo bourdieusiana: BOURDIEU, Pierre O poder simblico. Lisboa: Edies 70, 2011.
4
Cf. BELTING, Hans La Vraie image: croire aux images?, Paris: Gallimard, 2007; e BELTING, Hans Pour une
anthropologie des images. Paris: Gallimard, 2004.
5
Sobre este conceito, ler o Posfcio: HEINICH, Nathalie; SHAPIRO, Roberta Quand y a-t-il artification? in
HEINICH, Nathalie; SHAPIRO, Roberta De lartification. Enqutes sur le passage lart. ditions de Lcole des
Hautes tudes en Sciences Sociales: Paris, 2012.
442
Temos como um dos exemplos as Constituies synodaes do Bispado de Coimbra feitas & ordenadas em
synodo pellosr Dom Affonso de Castel Brco bispo de Coimbra, cde de Arganil. e por seu mandado impressas.
Coimbra: per Antonio de Mariz, 1591, p. 127 e VELASCO, Luis Advertencias espirituaes para mais agradar a
Deos Nosso Senhor: c hum exercicio mui proveitoso pera despois da Sagrada Comunho. traduzido em lingoa
Portuguesa, & acrecentado por Luis Alvrez dAndrade. Lisboa: Antonio Alvarez [Edio de autor], 1625.
7
Sobre este tema consultar: ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira Ementao das Almas. Rezes de Ceia. Porto:
Separata da Revista de Etnografia n. 5, 1963.
8
BRAGA, Teophilo Atravs de pequenos cnticos populares que referem a obrigao de orar pelos mortos a
partir de parbolas. Cancioneiro de musicas populares contendo letra e musica de canes, serenatas, chulas,
danas, descantes, cantigas dos campos e das ruas, fados, romances, hymnos nacionaes, cantos patrioticos,
canticos religiosos de origem popular, canticos liturgicos popularisados, canes politicas, cantilenas, cantos
maritimos, etc. e canonetas estrangeiras vulgarisadas em Portugal. Porto: Typ. Occidental, 1893-1899.
9
As ddivas per anima j so um costume medieval desenvolvido na poca moderna. Para melhor
compreender a importncia dos testamentos para a salvao da alma, consultar: CHIFFOLEAU, Jacques La
Comptabilit de l'au-del: les hommes, la mort et la religion dans la rgion d'Avignon la fin du Moyen Age vers
1320 vers 1480. Rome: cole Franaise de Rome, 1980 e RODRIGUES, Maria Manuela B. Martins Morrer no
Porto durante a poca barroca: atitudes e sentimento religioso. Porto: Tese de mestrado em Histria Moderna
apresentada na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1991.
443
Alberto Ferreira de Almeida (1934-1996), ter sido, pelas suas vrias expresses, um dos mais
significativos elementos para determinar a personalidade-base das gentes do Noroeste peninsular10.
Em relao aos vestgios da cultura material, o arqutipo que age sobre a matria pode assumir a
forma de retbulos, presentes do sculo XVII ao sculo XX, e de alminhas, das quais temos
testemunhos desde o sculo XVIII at aos nossos dias. Poder-se- questionar o peso que a variao
formal e topogrfica do mesmo arqutipo tem na percepo e aco dos sujeitos. At onde o
mtodo iconogrfico/iconolgico, muitas vezes difundido na histria da arte como a soluo para
compreenso do sentido das imagens, poder ser eficaz na compreenso de imagens de origem
menos erudita?
As razes do mtodo iconogrfico/iconolgico desenvolvido por Erwin Panofsky vo buscar aos
documentos e formas eruditos as suas principais fontes11. Contudo, na crena e doutrina do
Purgatrio, nem mesmo o Conclio de Trento, que funcionou como fixador de frmulas de
religiosidade, definiu a sua iconografia. Pensa-se que a (re)produo iconogrfica do Purgatrio
definiu-se na associao dos elementos distintos, ligados ao seu imaginrio teolgico - fogo e almas -,
que se encontram em Sermes, pequenos livros de devoo e oraes. Por outro lado, pode-se
perceber uma apropriao imagtica de parte da iconografia dos Juzos Finais medievos, em que o
Inferno era representado como um local de penas e fogo onde as almas sofriam o castigo final. No
entanto, h um elemento que faz divergir o fogo do Inferno do fogo do Purgatrio, que apesar de to
doloroso como o do Inferno temporrio e purificador: as almas que se encontram no Purgatrio
so vulgarmente representadas em gestos de orao ou prestes a serem salvas por anjos, o que
concede s imagens um elemento de esperana, essencial manuteno desta devoo. Em vrias
entrevistas realizadas durante o trabalho de recolha etnogrfica pode-se constatar que a esperana
na salvao e o Purgatrio esto relacionados12. A reproduo cumulativa das oraes pela salvao
da alma quase quantitativa e obsessiva, como refere Jacques Chiffoleau - mobilizada pela
esperana na salvao que este lugar oferece.
O confronto entre as imagens do Purgatrio e as do Inferno permite questionar o prprio papel da
iconografia no imaginrio, relacionando-a com a temporalidade das imagens. Ainda hoje nas igrejas
se cultuam os retbulos dos sculos XVII e XVIII com almas em orao com a Virgem, Cristo, ou
santos e anjos em auxlio das almas. Aos olhos de um historiador da arte ou de um connaisseur esta
imagem , pelas suas componentes iconogrficas, uma representao do Purgatrio. No entanto, em
entrevistas recolhidas junto de crentes, ouve-se, por vezes a referncia ao altar do Inferno,
comprovando os limites da leitura iconogrfica per se. Mesmo nos documentos da poca moderna,
por vezes, encontram-se frases dbias, onde o Purgatrio parece ser confundido com o Inferno,
numa amlgama conceptual talvez criada pelo fogo estar presente nos imaginrios de ambos os
lugares. Pode-se questionar o papel da sociabilizao prvia dos agentes na compreenso/percepo
dos imaginrios e das imagens. A vivncia da cultura material est ligada reproduo oral de
crenas locais fundidas com fragmentos doutrinrios, j previamente adaptados13.
Cada sujeito tem um habitus14 ligado a uma estrutura simblica de crenas e prticas, em que a
(re)produo um elemento fundamental. Nesse sentido, do mesmo modo que Panofsky definiu o
10
ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de O Culto a Nossa Senhora, no Porto, na poca Moderna: Perspectiva
antropolgica in Histria do Centro de Histria da Universidade do Porto. Vol. II, Porto: Centro de Histria da
Universidade do Porto, 1979.
11
PANOFSKY, Erwin O significado nas Artes Visuais. Lisboa: Editora Presena, 1989.
12
Visto a sua crena basear-se na ideia de que quanto mais sufrgios se fizessem per anima, mais depressa esta
sairia dos tormentos do Purgatrio. Ou seja, os agentes poderiam ter algum controlo sobre o tempo de
(ex)purgao.
13
CABRAL, Joo de Pina Filhos de Ado, filhos de Eva: a viso do mundo camponesa do Alto Minho. Lisboa:
Publicaes Dom Quixote, 1989, p.162.
14
A partir do conceito bourdieusiano.
444
15
PANOFSKY, Erwin Architecture gothique et pense scolastique. Trad. et posf. de Pierre Bourdieu. Paris:
ditions Minuit, 1967.
16
WARBURG, Aby Le Rituel du serpent: rcit d'un voyage en pays Pueblo. Paris: Macula, 2003.
17
SEVERI, Carlo Le Principe de la chimre: une anthropologie de la mmoire, Paris: d. Rue d'Ulm (Muse du
Quai Branly), 2007.
18
VELASCO, Luis Advertencias espirituaes para mais agradar a Deos Nosso Senhor: c hum exercicio mui
proveitoso pera despois da Sagrada Comunho e agora acrescentado por Lucas Andrade Capelo de sua
Magestade e capelo de Villaverde seu filho. traduzido em lingoa Portuguesa, & acrecentado por Luis Alvres
dAndrade natural de Lisboa, & impresso a sua custa: dedicado ao conde de Odemira [sic]. Em Lisboa: por
Antonio Alvarez, 1656.
19
VELASCO, Luis Advertencias espirituaes para mais agradar a Deos Nosso Senhor : c hum exercicio mui
proveitoso pera despois da Sagrada Comunho e agora acrescentado por Lucas Andrade Capelo de sua
Magestade e capelo de Villaverde seu filho. traduzido em lingoa Portuguesa, & acrecentado por Luis Alvres
dAndrade natural de Lisboa, & impresso a sua custa: dedicado ao conde de Odemira [sic]. Em Lisboa: por
Antonio Alvarez, 1656, pp. 143-145.
20
Sobre este tema consultar: MAUSS, Marcel Ensaio sobre a Ddiva. Lisboa: Edies 70, 1988 e, para uma
leitura relacionada com a reversibilidade de mritos entre vivos e mortos na cristandade: LAUWERS, Martin
La Mmoire des anctres, le souci des morts: morts, rites, et socit au Moyen Age: Diocese de Lige, XIe-XIIIe
sicles. Paris: Beauchesne, 1997.
21
Todas as alminhas analisadas contm esmolrios.
445
apresentada pelos agentes para a realizao dos rituais foi a sua antiguidade e a (re)produo do que
tinham visto fazer desde jovens em frente s imagens ou durante uma encomendao das almas.
Diante dos retbulos observaram pais e avs orarem pelos seus mortos, e muitas vezes chorarem
pelo medo do Inferno/Purgatrio. Diante das alminhas viam as pessoas que por elas passavam
oravam e tiravam o chapu, em respeito e lembrana pelos defuntos. Neste processo apreenderam
as prticas, as ladainhas e os gestos que agora (re)produzem frente ao mesmo suporte ritual onde
viram fazer. Esta agencialidade mnemnica e ritual da imagem est de acordo com as teorias de
Aby WARBURG e Carlo SEVERI, que vem a imagem como mnemnica de rituais e portadora de uma
memria social.
O papel da cultura escrita, particularmente quando se refere s imagens, tem de ser (re)questionado.
A (re)produo social das estruturas desenvolve-se na articulao das prticas dos sujeitos, em que
tanto os objectos como as imagens, e tambm os texto e a cultura oral, so operativos conforme o
habitus que cada agente possui.
Por outro lado, a importncia da teologia e doutrina, enquanto construo racional e mental, quando
os sujeitos j tem o habitus incorporado. At que ponto o rito e o culto s imagens significa
verdadeiramente uma crena coesa, ou estas prticas so apenas uma (re)produo fsica e
automatizada que j se desprendeu do possvel sentido?
Para os agentes os objectos estticos podem conter significados que os distanciam totalmente do
campo artstico, em que os acadmicos e o mercado os tentam inserir. Independentemente da sua
catalogao dentro do discurso cientfico, a arte tem muitas vezes funes muito semelhantes a
outros objectos considerados menos dignos de anlise pela historiografia da arte: reflexo que
disciplinas dos ltimos trinta anos como os visual studies, com W. J. T. Mitchell e a histria das
imagens com autores como Jean-Claude Schmitt tem vindo a completar. Cabe cada vez mais ao
acadmico/investigador esbater estas diferenas, embora para melhor compreender o seu objecto
de estudo precise antes de mais de reflectir sobre o habitus do campo onde ele prprio se insere.
22
Nos testamentos, o nmero de donativos de cera significativo. Da o papel das velas (iluminao) e a
importncia dada manuteno da sua luz, o que demonstra a importncia da sinalizao do
acompanhamento dos mortos no seu caminho post mortem.
446
447
Jos-Augusto Frana, Da poesia plstica notas sobre a pintura de Antnio Pedro, Antnio Dacosta,
Fernando Azevedo, Vespeira, Fernando Lemos e Vieira da Silva, in Cadernos de Poesia (Lisboa: Imprensa
Libnio da Silva, 1951).
2
Jos-Augusto Frana, Balano das Actividades Surrealistas em Portugal, in Cadernos do Surrealismo (Lisboa:
Imprensa Libnio da Silva, 1948), 10.
3
Jos-Augusto Frana, Perspectiva, Prospectiva, Retrospectiva, Colquio/Letras, Julho 50, 1979, 60.
4
Jos-Augusto Frana, Arte, viso, previso (1982), in (In)definies de Cultura (Lisboa: Editorial Presena,
1997), 135.
448
se] a pintura5; e de, no mesmo lugar, a respeito de Antnio Dacosta, apontar a ambivalncia da sua
imaginao potica, visual e verbal, [que] lhe permit[ia] pintar telas ou escrever poemas distintos e
exemplares ambos6, que faz Frana? Abre a srie de pequenos escritos que dedica, em seguida, a
um conjunto de artistas portugueses seus contemporneos com um longo excerto de Gaston
Bachelard sobre a imaginao.7
A escolha da passagem para epgrafe no fortuita. Antes, deve ser tomada como determinante, j
que tem a virtude de situar os apontamentos que lhe seguem num horizonte crtico preciso,
orientando, ainda que de modo subtil, a sua leitura. Ao citar o texto de Bachelard, que equipara
Pintura e Poesia valorizando o movimento em direco imaginao e a sua capacidade de
aspirao/antecipao de imagens novas contra a especificidade do objecto-pintura ou do objectopoema, o autor ancora o que dir adiante, concretamente sobre Antnio Pedro e Antnio Dacosta,
num entendimento amplo da poesia como acto (e facto) imaginativo, imaginante. Considerados do
ponto de vista do impulso potico e da eficcia da imagem, pintura e poemas tornam-se afins, no que
a designao hbrida poesia plstica, para alm de referencialidade, adquire significado e espessura
conceptual.
Escreve: Leitores de poesia literria ou espectadores de poesia plstica so necessariamente os
mesmos. Ai de uns e de outros se no o entendem.8 Reconduzindo a afinidade entre cada medium a
uma afinidade de princpio ou de fora, desloca o valor da obra para o plano da intensidade da
inveno e do gesto criativo que lhes estaria na origem ou para o acontecimento anlogo de um
efeito singular sobre o leitor-espectador. Por isso quando Frana, na nota preliminar que serve de
prefcio s restantes, nomeia a excepcionalidade do surrealismo corrente artstica em que
enquadra os casos sobre os quais se detm , percebemos que para ele est em causa no s uma
alterao das maneiras de ver, mas [das] maneiras de pensar [...]9.
O interesse deste ensaio de 51 reside principalmente na preponderncia dada imaginao e ao
substrato de pensamento implicado nas imagens ambivalentes que ela potencia, produzidas ora pela
literatura ora pela pintura. importante que, de acordo com o proposto, o conceito encontrado por
Frana para descrever essas imagens, poesia plstica, possa assumir uma dimenso reflexiva. Mas
sobretudo relevante que o autor reserve o termo poesia para nomear indiscriminadamente as duas
prticas mencionadas. Tanto mais que, muito posteriormente, em 1979, revendo o Balano das
Actividades Surrealistas de 48, vir a referir, de modo semelhante, um desembara[o] pelo lado das
metforas escritas ou pintadas, atravs das obras de alguns poetas [...] e pintores [...]10.
Infelizmente Frana no chega a radicalizar estas formulaes, que mereciam a nosso ver ter sido
tratadas com outro flego e demora. Delas no extrair as consequncias nem lhes dar grande
continuidade, deixando-as em estado incipiente. Nisso se perdeu algures a hiptese de constituio
de uma teoria da imagem independente, que, devedora da iniciao surrealista, soubesse entretanto
florescer mediante a incorporao da semitica, do estruturalismo, da psicologia da percepo, ou,
5
449
Jos-Augusto Frana, Sobre histria (sociolgica) da arte (1982), in (In)definies de Cultura, 113.
Ibidem, op. cit.
13
Op. cit., 114.
14
Jos-Augusto Frana, O facto artstico na sociologia da arte (1974), in (In)definies de Cultura, 104.
12
450
Op. cit., 103. Tambm adiante, na pgina 104, l-se a propsito: No seria, porm, possvel ignorar que a
comunicao oral desde a noite dos tempos se juntou comunicao visual, correspondendo a imagem
escrita. no entanto significativo que um socilogo da comunicao como McLuhan tenha falado de galxia de
Guttenberg (mesmo para a fazer rebentar e substituir pela de Marconi) e jamais tenha feito referncia a uma
qualquer galxia de Lascaux, ou mesmo de Picasso ou de Lumire mesmo que votada a idntico
rebentamento e substituio hertziana.
16
Frana, Sobre histria (sociolgica) da arte, 118.
17
Jos-Augusto Frana, Histria e imagem (1987), in (In)definies de Cultura, 120: Porque, tal como existe
um pensamento escrito, h um pensamento visual, e se h um pensamento literrio, existe tambm um
pensamento plstico. Isto , um pensamento definido em sistemas de imagens visuais. E com o seu uso se
pratica igualmente a Histria, ou se realiza a Historiografia.
18
Por exemplo, em Sobre histria (sociolgica) da arte, 118, Frana alerta: [] preciso termos conscincia de
que nos movemos no reino das imagens, recorrendo a Chastel para explicar: [] Uma imagem no formula
proposies mas rene todos os factores de maneira a levar aquele que a olha a elaborar in petto a proposio
implcita. Um texto ainda recente de Andr Chastel (1978) chama-nos razo.
451
19
Frana, Histria e imagem, 121. E ainda, ibidem, op. cit.: A especificidade do fenmeno artstico no campo
visual um elemento maior a considerar []. ele tambm que nos defende do erro de certas e abusivas
relaes mecanicistas, que por facilidade se comprazem no conceito da Arte produto das sociedades. ele,
finalmente, que nos leva a acreditar o seu valor informativo.
452
BIBLIOGRAFIA
453
454
Damisch, Hubert. Semiotics and Iconography. (1975) The Art of Art History: A Critical Anthology. Ed. Donald
Preziosy. Oxford: Oxford University Press, 2009: 236.
7
Keith Moxey quem levanta esta questo, embora reportando-se concretamente ao tipo de interpretao
historiogrfica do conceito de iconologia de Panofsky. Veja-se supra, nota 4. Cf. Moxey, Keith. Panofskys
Concept of Iconology and the Problem of Interpreting in the History of Art. New Literary History, Vol. 17, No.
2, Interpretation and Culture (Winter, 1986): 266.
8
Didi-Huberman, Georges. Op. cit.: Preface to the English Edition: The exorcist: xvxxvi.
9
Donald Preziosi aponta duas razes para este interesse: a burgeoning of attention within the discipline to
explicitly theoretical and semiotic questions, and an increasing concern about the disciplinary history of art
history. The motivations for these interests are varied, but at base all part of a general reaction within the
discipline to the impact of aspects of semiological theory on contemporary disciplinary practice. Preziosi,
Donald. Rethinking Art History: Meditations on a Coy Science. New Haven: Yale University Press, 1989: 111 e
nota 142.
10
Veja-se a este respeito Moxey, Keith. Op. cit.: 265266.
11
Michael Ann Holly, numa obra que dedica a Erwin Panofsky, contesta a ideia de que atribuiria mais
importncia ao significado, desconsiderando a forma. Refora os seus argumentos com o obiturio que Ernst
455
456
conhecimento extrnseco obra de arte, porque lhe interessa que o que a imagem no sucumba
perante a interpretao excessiva ou explicao textual.
Partindo do exemplo de Judite com a cabea de Holofernes de Francesco Maffei, elabora acerca das
potencialidades do dilogo do visual face transformao de motivos e assuntos entre obras,
oferecendo uma viso mais dinmica do que a que geralmente lhe reconhecida. Acresce que a
noo de estilo contribui para a classificao da obra, mas a obra age sobre essa mesma histria da
transmisso, acrescentando-a e renovando-a, numa relao afinal dialgica e no exclusivamente
como reflexo do mundo.
Panofsky desenvolve, tambm neste texto, um engenhoso dilogo filosfico com o livro de
Heidegger sobre Kant acerca do problema da interpretao, reivindicando, porm, limites internos
que a faam escapar arbitrariedade. Se, no texto de 1955, manifestar uma espcie de crena nas
capacidades do historiador da arte como agente do processo interpretativo, aqui caracteriza-o como
por demais subjectivo.
Note-se que a publicao do texto na Logos, uma revista de filosofia, pe, desde logo, em evidncia a
articulao entre a histria da arte e o pensamento sobre imagem, conceptualizado e filosfico,
observvel tambm ao longo do texto. A prtica iconogrfica/iconolgica tem perdido relevncia
crtica justamente por excluir esta reflexo terica, matricial na primeira proposta de Panofsky. No
obstante as diferenas entre si, certo que tanto o texto de 39 como o de 55 so menos eloquentes
sob este ponto de vista. Remeto, neste particular, para os estudos de Ja Elsner e Katharina Lorenz
que sugerem que a simplificao da proposta de 39 que vai implicar na final, de 55 se deve no s
ao facto de ter resultado de palestras dadas no Bryn Mawr College, em 1937-1938, a alunos recminiciados no tema, como ainda a razes polticas, de reaco ascenso do III Reich18.
II. Em Bild-Anthropologie19, Hans Belting refere que a histria da arte falhou como Bildwissenschaft,
porque nunca confrontou os media modernos; a iconologia ter-se-ia tornado essa Bildwissenschaft se
Panofsky no tivesse encapsulado o mtodo nos estudos da alegoria renascentista. Esta posio,
problemtica quanto ao desempenho de Panofsky, indicia, de acordo com Horst Bredekamp, uma
viso que se foi progressivamente generalizando20. E permite, em todo o caso, enunciar a estreita
associao entre os desenvolvimentos da disciplina na ustria e Alemanha de 1900, e um interesse
generalizado no estudo sobre as imagens, em vrios suportes artsticos, compreendendo para tal o
envolvimento da histria, mas tambm da filosofia, implicando, desde incio, preocupaes
epistemolgicas. , ainda, esclarecedora quanto ao debate e s dificuldades conceptuais que
persistem na ligao entre histria da arte e estudos visuais, no caso alemo Bildwissenschaft, e ao
papel de Erwin Panofsky nessa tradio de cincia histrica das imagens ou, na viso de Belting, falta
dele matria relevante para vencer o seu fechamento na iconografia e iconologia, embora carea
de discusso mais alargada do que a que se oferece.
Face emergncia e desenvolvimento das tcnicas de reproduo visual, e da introduo da
fotografia e slide nas universidades alems, estala o Facsimile Debate: discusso em torno da
legitimidade esttica e pedaggica das reprodues de escultura. Este debate, depois de uma
exposio em Hannover21, galga para polmica sobre a pertinncia da fotografia como novo suporte
18
Cf. Elsner, Ja; Lorenz, Katharina. The Genesis of Iconology. Critical Inquiry, Vol. 38, No. 3 (Spring 2012):
489490.
19
Belting, Hans. Bild-Antrophologie Entwrfe fr eine Bildwissenschaft. Munique, 2001: 15; 17.
20
Bredekamp, Horst. A Neglected Tradition? Art History as Bildwissenschaft. Critical Inquiry, Vol. 29, No. 3
(Spring 2003): 418428.
21
Original und Reproduktion, ttulo da exposio levada a cabo em Hannover, apresentava originais,
reprodues e falsificaes lado a lado, indistintamente, tendo iludido connoisseurs da poca. Cf. Luke, Megan
457
458
a lecture there yesterday afternoon by Dr. Erwin Panofsky.31 O que leva um acadmico de renome
ao seio da cultura popular, proferindo uma palestra intitulada The Motion Picture as an Art32?
Panofsky, apreciador e consumidor de cinema, envolve-se com Alfred Barr (recm-designado director
do MOMA) no estabelecimento de um novo campo que resultar na famosa MOMA Film Library.
Mais tarde apresenta um texto, On Movies, em Princeton, com o propsito de apoiar a iniciativa e
dar-lhe suporte acadmico e, em 1936, publica-o no Departamental Bulletin. Ao levar o assunto do
cinema como arte a Princeton, e no s, Panofsky imprimiu um cunho intelectual (ligado histria da
arte) e cultural (de certa forma continental), ao empreendimento pioneiro do MOMA de estabelecer
um centro de estudos, de arquivo, e de preservao da histria do cinema.
On Movies publicado em 1947 numa edio desenvolvida: Style and Medium in the Motion
Pictures33 e , at hoje, considerado um dos textos fundacionais da histria crtica e terica do
cinema. Neste artigo, demonstra uma vez mais o seu interesse no que reconhece como nico e
prprio ao cinema: These unique and specific possibilities can be defined as dynamization of space
and, accordingly, spatialization of time. Prossegue elaborando acerca dessas especificidades como
som, luz, magnificao, etc. e, conceptualmente, sobre espao e tempo. Contudo, apesar de todo o
interesse na materialidade, no ser art for the sake of art. Para Panofsky, o cinema como medium
artstico s relevante na sociedade em que se encontra. Importa para o cinema o contexto social do
seu aparecimento e desenvolvimento (folk art), pois defende que ser a nica arte a acontecer from
the bottom to the top, em lugar do inverso, envolvendo e implicando alteraes na sociedade.
Panofsky no perde de vista uma dimenso simultaneamente antropolgica e sociolgica do cinema,
colocando no centro do seu interesse o potencial comunicacional (e social) que dele dimana. Dir,
por isso, que esta uma das nicas artes visuais inteiramente vivas, visto que procede dessa ligao:
Today there is no denying that narrative films are not only art not often good art, to be sure, but
this applies to other media as well but also, besides architecture, cartooning and commercial
design, the only visual art entirely alive.34 O que no impede, claro, que leia as formas de contar
histrias como alegorias iconograficamente. Todavia, funda essa necessidade tipolgica no seio da
eficcia comunicacional. Para ele, a representao (acting) no cinema mudo assenta em personagens
tipo que protagonizam gestos exagerados. No entanto, esse conjunto de operaes convencionadas,
cuja lgica fora definida internamente respondendo s ao que do domnio do cinema do mesmo
modo implica, note-se, o desmembrar da relao natural (mimtica) entre o assunto e o
representado , serve um propsito comunicacional. De incio, diz, necessrio criar legibilidade,
quando a audincia se familiariza, o cinema abdica dessa tipificao. Exemplo esclarecedor, de resto,
quanto ao potencial dinmico dos fenmenos culturais e suas implicaes sociais e histricas.
Creio, enfim, ser possvel reconhecer nos escritos sobre slides, fotografia ou cinema, e no estudo
fundacional da iconografia/iconologia, uma preocupao com a materialidade e, mais
extensivamente, com a visualidade, que problematiza a ideia da completa subsuno das
singularidades imagticas a um significado. No artigo Acerca do problema de descrever e interpretar
obras das artes visuais, o prprio Panofsky quem procura salvaguardar as qualidades e
caractersticas visuais constitutivas das obras de arte face autoridade do texto, ou a convenes
31
Levin, Thomas Y. Iconology at the Movies: Panofskys Film Theory. The Yale Journal of Criticism, Vol. 9, No.
1 (Spring 1996): 2755.
32
Questo primeiramente colocada por Thomas Levin, veja-se supra, nota 29.
33
Horst Bredekamp considera esta verso desenvolvida do texto uma resposta amigvel, mas profundamente
discordante, ao texto de Walter Benjamin: A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Tcnica. A ser assim,
tratar-se- de um singular exemplo (talvez o mais antigo) da recepo deste autor antes da dcada de 1960.
Bredekamp, Horst. Op. cit.: 427.
34
Panofsky, Erwin. Style and Medium in The Motion Pictures. Ed. Braudy, Leo, Cohen, Marshall. Film Theory
and Criticism: Introductory Readings. London: Oxford University Press, 1974: 152.
459
(decorrentes de uma perspectiva judicativa da forma), que perturbem a sua legibilidade embora
esta, sim, no seja posta de parte.
No defendo, de todo, que haja linhas sistmicas e coerentes na obra de Panofsky que contrariem as
crticas de que tem sido alvo, muitas das quais relevantes e fecundas. No entanto, para debater as
falncias da anlise panofskiana preciso ir mais alm da introduo dos Estudos de Iconologia ou do
Significado nas Artes Visuais. A discusso beneficiaria de uma recuperao de outros textos que
redigiu e que, como vimos, revelam uma figura que se inscreve sem esforo numa linha de cincia de
conhecimento e reflexo sobre a imagem (Bildwissenschaft); e, por outra parte, de um estudo
compreensivo e transversal das duas verses do texto sobre iconografia/iconologia e do texto A
Histria da Arte como Disciplina Humanstica (como no se fez aqui), para pensar nas suas
sucessivas modulaes, supresses e aditamentos, no crescente tom normativo, nas razes de tudo
isto e respectivas consequncias historiogrficas.
Finalmente, penso que parte da natureza problemtica da sua obra tambm radica no estreitamento
progressivo da leitura de uma produo que , na verdade, vasta e plural, mas sobretudo no
empobrecimento do exerccio de um mtodo (aplicado amide sob a crena de frmula de sucesso
que garante a priori a anlise e entendimento de uma obra de arte, independentemente da poca,
independentemente das caractersticas), que deve muito mais prtica historiogrfica do que
propriamente a Erwin Panofsky.
460
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461
No clebre texto The Pictorial Turn (1994), Mitchell assinala os sintomas de um deslocamento
histrico da ateno da Filosofia do modelo lingustico para o campo visual, uma transformao
complexa que estaria a atingir diversos campos das Cincias Sociais e a esfera pblica da cultura em
geral. No processo desta transformao, decorrente, entre outros fatores, da rutura do pacto
mimtico entre as palavras e as coisas (Foucault), o dizvel e o visvel (Wittegenstein), foi crucial a
tomada de conscincia da descontinuidade da viso nos regimes escpicos da modernidade.
Do Renascimento em diante, a era moderna ter sido dominada pelo sentido da viso de uma forma
que a diferencia dos seus antecessores, sendo a cultura ocidental considerada a partir da como
resolutamente ocularcntrica1. A questo que Martin Jay apresenta em Regimes Escpicos da
Modernidade (1988) se existe realmente um nico/verdadeiro olhar moderno, uma espcie de
complexo de teorias e prticas integradas harmoniosamente ou se, pelo contrrio, o campo
percetivo da modernidade no ter sido um territrio contestado pelas subculturas visuais
concorrentes entre si, entre as quais aquelas colocadas em confronto por Jay: o perspetivismo
cartesiano, a arte de descrever (Alpers) da pintura holandesa do sculo XVII e a viso barroca.
Segundo Gombrich,2 desde Vasari que as mudanas de estilo so consideradas no apenas como um
aperfeioamento de habilidades, mas como o resultado de modos diferentes de ver o mundo. Se a
arte fosse unicamente a expresso de uma viso pessoal, no poderia haver histria da arte, ou
segundo a expresso de Wolfflin, uma histria do ver em histria da arte. No poderamos assumir
1
Para o pintor medieval, efetivamente, a imagem pictrica ainda objeto precioso de devoo, enquanto para
o pintor renascentista a pintura viso. Esta nova conceo da pintura como viso prevalecer at ao
impressionismo e ao advento da Arte Moderna, quando a contingncia da luz se tornar uma organizao
sistmica da perceo, com uma nova funo. No entanto, a Grcia clssica j havia privilegiado a vista sobre
todos os sentidos, ao contrrio do seu competidor hebraico, que privilegiou a orientao verbal. Tanto a
filosofia como a religio e a arte gregas oferecem amplos motivos para essa generalizao.
2
Estes dois pargrafos so inteiramente baseados nos ensinamentos de Gombrich em Arte e Iluso (1986), que
consideramos altamente pertinentes para a compreenso do conceito de regime escpico. As referncias
obra baseiam-se na Introduo sobre A Psicologia e o Enigma do Estilo e nas trs primeiras partes do livro:
Os Limites da Semelhana, Funo e Forma e A Participao do Observador.
462
que existem semelhanas de famlia que nos permitem assimilar o tema de um quadro com o seu
estilo, e ver uma paisagem chinesa aqui, uma holandesa acol, distinguir um vaso grego de um outro
sumrio, porque nem tudo possvel em todos os perodos (Wolfflin)3.
A nossa capacidade de decifrar imagens uma espcie de processo de transmisso em cdigo. O
reconhecimento de identidades depende do ajustamento de recetores afinados a um determinado
cdigo. Por esse motivo, o contacto com uma nova notao pode implicar um choque para os nossos
olhos/crebro, seguido ou no de um novo ajustamento. Toda a comunicao depende de uma
interao deste tipo, entre expectativa e observao, gratificao e desapontamento, conjeturas
acertadas e jogadas em falso. Por outro lado, a coexistncia de uma multiplicidade de percees
contraditrias, que caracterizam a psicologia humana, acompanha a coexistncia de distintos modos
de ver. Jamais aconteceu uma prtica visual ter apagado completamente a anterior. Com frequncia,
os velhos hbitos vm tona, na vida como na arte, quando menos se espera.
463
Limites da Visualidade
A era ps-moderna a era do vdeo e da tecnologia ciberntica, em que a reproduo eletrnica
atingiu poderes antes inimaginveis. Porm, como o prprio Mitchell (1994: 15) salienta,
paradoxalmente, a ansiedade e o medo que se vivem hoje perante o poder das imagens so to
antigos quanto a sua criao. Na querela das imagens, a diviso criada entre a imagem e o signo foi
um dos atos polticos para insurgir os signos contra o poder das imagens (Belting, 2007: 1). A
idolatria, o iconoclasmo, a iconofobia ou o feiticismo no so fenmenos unicamente ps-modernos.
O que especfico do nosso tempo , precisamente, esse paradoxo.
Tudo indica que a recente exploso de interesse pela cultura visual se fez acompanhar pelo triunfo
do relativismo cultural em termos visuais, o qual toma o conhecimento como um produto puramente
social. Esta premissa assume que todo o regime escpico pode apenas reproduzir os cdigos da
cultura visual da qual emerge. Porm, a prpria literacia das imagens mostra-nos a impossibilidade
de reduzir as imagens inteiramente aos textos, ou a experincia fisiolgica da viso inteiramente s
suas mediaes culturais, como defende Jay (2002: 274). As imagens pornogrficas, as cenas de
violncia e as imagens de sofrimento humano so descodificadas transculturalmente. A pintura de
Caravaggio ou a emergncia do filme mudo, que rapidamente transcenderam os limites da cultura da
qual surgiram, so exemplos da capacidade da arte para extrapolar restries culturais e lingusticas.
Voltando prtica artstica em desuso, um estilo, tal como um clima de opinio, cria um horizonte de
expectativas. Ao anotar relaes, a mente regista tendncias e desvios a essas tendncias. O que os
artistas inovadores fazem expandir os limites de uma escala7. a conscincia da presso psicolgica
que nos move para a repetio que nos permite reconhecer aqueles que conseguem quebrar o
encanto de determinados modos de ver e realizar ruturas construtivas.
Segundo Foster (1988, prefcio), embora o termo viso sugira o sentido da vista como uma
operao fsica, enquanto visualidade indica um facto social, as duas noes no se opem como
natureza se ope a cultura. A viso tambm social e histrica, assim como a visualidade no
pode deixar de envolver o corpo e a psique. A diferena entre viso e visualidade assinala a diferena
7
Para chegar a uma nova posio, o inventor tem de reagrupar os seus componentes atravs de um
discernimento intuitivo que transcende (mas inclui) as posies precedentes (Kubler, 1998: 93).
464
entre os mecanismos da viso e a evoluo tcnica dos dispositivos ticos; entre os dados da viso e
as determinaes dos seus discursos uma diferena entre aquilo que vemos e a forma como nos
permitido ver, ou somos levados a ver o que vemos; entre o que podemos ver e o como pensamos o
nosso prprio ver, ou concebemos o que nos invisvel. Mas como a prpria arte nos tem mostrado,
nem todas as luzes da nossa mente se acendem culturalmente.
Concluso
A distino entre o que vemos realmente e o que inferimos atravs do intelecto parece ser to antiga
quanto o pensamento humano sobre a perceo (Gombrich, 1986: 12).
Embora o mecanismo tico da viso se conhea desde Kepler, a forma exata da sua traduo em
imagens significativas na mente ou, por outras palavras, os processos fisiolgicos e psicolgicos que a
leem corretamente permanecem desconhecidos. No obstante todos os avanos da cincia
relativamente viso humana, a relao entre as perturbaes oftalmolgicas e os estados
depressivos ou traumticos, ou a relao entre as nossas imagens mentais e a leitura que fazemos do
mundo, so questes, entre outras, que atestam a complexidade da viso, o nosso reduzido
conhecimento sobre ela e, inevitavelmente, os limites da visualidade.
No pretendendo alegar qualquer naturalismo anacrnico a um olhar inocente, a explorao que os
estudiosos do Visual Turn tm feito sobre a viso e a visualidade mostra-nos como justificar o
relativismo visual na alegada incomensurabilidade cultural no convincente. Concordamos com Jay
(2002: 271) quando alerta para o perigo de a cultura visual se reduzir a uma filial dos estudos
culturais aglomerados, uma vez que a especificidade da experincia visual transcende largamente os
limites culturais.
No obstante ter-se tornado comum dizer-se que estamos na idade do espetculo (Guy Debord),
da vigilncia (Foucault) e de uma imensido de imagens que permeia toda a nossa existncia, como
salienta Mitchell (1994: 13), ainda no sabemos exatamente o que so as imagens, qual a sua relao
com a linguagem ou que efeitos tm sobre ns e o mundo; de que forma a sua histria deve ser
entendida e, inclusivamente, o que suposto fazermos com elas.
O que parece dar sentido ao Pictorial Turn no , segundo Mitchell, a capacidade da representao
visual poder passar a ditar os termos de uma teoria cultural relativista, mas o facto de as imagens
constiturem um problema aparentemente irresolvel numa ampla gama de disciplinas. A imagem
emergiu nos dias de hoje como um tema central de discusso nas cincias humanas, da mesma
forma que a linguagem o havia feito antes, como uma espcie de figura de reflexo para outras
coisas (incluindo a figurao em si mesma). Para os gregos, maravilhar-se era o primeiro passo no
caminho da sabedoria. Desde ento, as imagens ainda no deixaram de nos surpreender.
465
466
467
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468
469
programas colegiais que se deveriam submeter a uma formulao comum, derivada sobretudo da
arquitectura civil (tratar-se-iam de paos), com alguma concesso arquitectura monstica (na
referncia s celas).
Como se sabe, e mais de cem anos volvidos, o desejo de dotar a Universidade de uma rede efectiva
de colgios de apoio foi uma das razes determinantes para a sua transferncia de Lisboa para
Coimbra, em 1537, realizada por D. Joo III.4
O estabelecimento do Colgio Real de So Paulo, pela mo de D. Joo III e do reitor Frei Diogo de
Mura, veio colmatar a falha que se registou no sistema colegial de Coimbra logo aps a extino
precoce dos colgios de So Miguel e de Todos-os-Santos, quando da integrao destes dois edifcios
na obra do colgio das Artes, em 1547. Essa falha traduziu-se na falta de um colgio secular oficial
que desse apoio e guarida a estudantes leigos e graduados (com o curso preparatrio das artes) da
universidade.
Por outro lado, a fundao do colgio rgio correspondeu a uma segunda fase do projecto joanino de
instalao e renovao da Universidade portuguesa em Coimbra. A Universidade instalava-se agora,
e definitivamente, na cidade Alta, ainda que em imvel emprestado o Pao Real da Alcova
quando num primeiro momento se havia previsto a sua instalao na cidade Baixa, junto recmaberta Rua de Santa Sofia e ao convento de Santa Cruz. 5
Destinou-se ao novo colgio de So Paulo o terreno e as runas do antigo Estudo Geral dionisino
junto do Pao Real. A construo ter comeado em 1548 ou 1549, pois em Abril deste ano j estava
edificada a dependncia do novo refeitrio.6 Aps um processo construtivo algo demorado foi o
colgio inaugurado, com pompa e circunstncia, a 2 de Maio de 1563.7
Os estatutos, de 1559, previam a residncia de vinte e dois colegiais de vria condio, nmero que
foi reduzido para doze (quatro de Teologia, trs de Cnones, trs de Leis e dois de Medicina) antes da
abertura do colgio, aos quais se juntariam um capelo e seis familiares, ou fmulos, que
conciliavam o estudo com o servio no colgio.8
Embora o edifcio colegial tenha sido demolido em finais do sculo XIX, subsiste uma descrio
escrita relativamente detalhada publicada por D. Jos Barbosa em 1727.9 tambm conhecido um
levantamento grfico da segunda metade da dcada de 1750 ou de princpios da dcada seguinte,
realizado pelo arquitecto italiano Giacomo Azzolini10, que inclui as plantas e os alados do edifcio,
que sofrera danos importantes por ocasio do terramoto de 1755.11 O colgio conformava um bloco
4
Veja-se Jos Sebastio da Silva DIAS, A poltica cultural da poca de D. Joo III, Coimbra, 2 vols., 1969 (vol. I, p.
569 e seguintes).
5
Sobre a evoluo do projecto universitrio de D. Joo III veja-se Walter ROSSA, Divercidade: urbanografia do
espao de Coimbra at ao estabelecimento definitivo da Universidade, Tese de doutoramento, Coimbra, 2001,
pp. 663-665 e Antnio Filipe PIMENTEL, A Morada da Sabedoria: O Pao Real de Coimbra das origens ao
estabelecimento da Universidade, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 82-91.
6
Maria Margarida BRANDO, O Colgio de S. Paulo, 1973, Coimbra, pp. 59 e 71.
7
Antnio de VASCONCELOS, Os Colgios Universitrios de Coimbra, 1938, Coimbra, Coimbra Editora, p. 81.
8
Maria Margarida BRANDO, O Colgio, pp. 152-154. Os estatutos guardam-se na Biblioteca Geral da
Universidade de Coimbra, Ms. 995.
9
D. Jos BARBOSA, Memrias do Collegio Real de S. Paulo, Lisboa, 1727, pp. 5-13. Porm como o escritor
teatino, que nem sequer estudara ou vivera em Coimbra, no procedeu a quaisquer investigaes nos arquivos
da cidade, limitou-se a basear as Memorias do Collegio Real de S. Paulo [], nas informaes fornecidas por
quem lhe encomendara o trabalho. Maria Margarida BRANDO, O Colgio, p. XIII.
10
Azzolini residiu em Coimbra entre 1755 e 1766, cidade onde exerceu a actividade de arquitecto, concluindo a
obra do seminrio. Pedro GOMES, De Perpetuo Seminrio: O Seminrio de Jesus, Maria e Jos de Coimbra,
Prova final de licenciatura, Coimbra, FCTUC, 2002.
11
Museu Nacional de Machado de Castro (MNMC), desenhos DA 55-60 (duas plantas e quatro alados).
470
quadrangular (posto que irregular) de dois pisos, que se organizava em torno de um ptio central.
Existem dois desenhos que sintetizam numa nica representao sobreposta as plantas do piso
trreo e do piso superior (mostramos um desses desenhos na Fig. 1), o que torna difcil a leitura
independente de cada nvel. Redesenhmos as plantas de cada piso separadamente para melhor
entendimento da distribuio dos espaos colegiais, adaptando a planta do imvel ao contorno
registado na planta topogrfica de Coimbra de 1873-74 (Figs. 2 e 3).
O colgio tinha entrada a eixo do alado norte (Fig. 4). Marcava-a um portal clssico sobreposto das
armas reais. O trio-corredor de acesso desaguava no ptio, passando sob um prtico de cinco arcos
(1+3+1) que sustentava uma varanda, a cada lado do qual arrancava uma escada de acesso ao piso
superior. As restantes dependncias do piso trreo da ala norte serviam de residncia aos
familiares do colgio12 ou seriam utilitrias, denunciadas por pequenas janelas elevadas no alado
exterior. A ala poente, direita de quem entra, era totalmente ocupada pela capela colegial e pela
sacristia. A ala sul incorporava o refeitrio e a cozinha, a aula ou casa da sapincia13 e um trio de
acesso comum a esta ltima dependncia e capela. A ala nascente era ocupada por mais casas dos
fmulos14 ou familiares. Ocupavam o piso superior as dependncias dos colegiais, que abriam para o
exterior e que eram servidas por quatro longos corredores, face interna de cada ala. No sculo
XVIII, e de acordo com as plantas, alguns colegiais dispunham de dois espaos (um para dormir e
outro para receber e estudar), outros apenas de um. No primeiro caso estariam os porcionistas
(estudantes mais abastados que pagavam a sua alimentao), nas alas poente e sul; no segundo caso
os colegiais normais, na ala norte.15 Existia ainda uma biblioteca colegial no primeiro andar de casas
anexas por detrs do colgio, acessvel por um passadio a partir da ala sul.16
Situao que logo salta vista desta organizao a falta de uma galeria coberta em redor do ptio.
Deste modo no era possvel aos colegiais descerem dos quartos e passarem capela ou ao
refeitrio sem se molharem em dias de chuva ou sem evitarem o sol abrasador dos dias quentes de
Vero. O mesmo sucedia ao passarem da capela ou da aula ao refeitrio e vice-versa.17 O nico
espao coberto era o prtico da varanda, a eixo da entrada colegial, que era, de resto, uma estrutura
de meados de Seiscentos.18
12
471
Este tipo de ptio sem galerias em redor remete, a nosso ver, para os ptios de alguns paos e casas
nobres de planta quadrangular da primeira poca moderna. Veja-se, por exemplo (e no muito longe
de Coimbra), os ptios do Pao dos Comendadores em Ega (Condeixa-a-Nova)19 ou do Pao dos
Vasconcelos em Santiago da Guarda (Ansio).20 Formalmente, os dois edifcios so diferentes entre
si, e diferentes do nosso colgio, mas interessa-nos destacar o conceito do ptio central sem galerias
que organiza a disposio destes imveis.
Este paralelismo com algumas estruturas pas compreende-se em funo dos destinatrios
preferenciais do novo programa colegial: estudantes seculares, sobretudo aqueles provenientes de
boas famlias.21 As dependncias em redor destinavam-se, agora, a novas funes: uma capela
colegial, uma aula, um refeitrio, alm de oficinas e casas dos familiares. A distribuio destas
funes quotidianas e residenciais pelas vrias alas do colgio implicava, assim, as descontinuidades
funcionais e de acesso a que j aludimos.
No piso superior ficavam os quartos dos porcionistas e colegiais, ao modo de celas, abertos
mundividncia externa. Os corredores que serviam os quartos tero sido, muito provavelmente, dos
primeiros aplicados a um edifcio de arquitectura civil em Portugal.
ainda de notar que o anterior edifcio do Estudo Geral dionisino teria, aparentemente, um pequeno
claustro, noo que foi dispensada para o novo colgio. Esta opo, aparentemente consciente, de
recriar o ptio do pao ou casa nobre protomoderna, desprovido de galerias, implicava ainda, a
nosso ver, uma distino clara face ao claustro dos colgios religiosos. De facto, parece ter radicado
no bloco quadrangular (melhor adaptado nova malha urbana da Alta conimbricense) e no ptio
sem galerias a opo arquitectnica de base na concepo do novo colgio, secular, de So Paulo.
Notemos ainda as ameias da cerca colegial que contornava os terrenos e casas anexas atrs do
colgio (Fig. 5), uma outra reminiscncia da casa nobre, ameias que eram, em Espanha, o smbolo da
autonomia jurisdicional dos edifcios colegiais e universitrios.
Por outro lado, importa lembrar que o colgio de So Paulo no foi o primeiro colgio secular a ser
erguido em Coimbra. Recordemos, desde logo, os j desaparecidos colgios de So Miguel e de
Todos-os-Santos, implantados no arranque da Rua da Sofia e pertencentes ao convento de Santa
Cruz, cuja extino precoce o colgio de So Paulo pretendeu suprir. Destinavam-se a alunos leigos,
tanto pobres como abastados, que no residissem em Coimbra. Se para o colgio de So Miguel se
definiu uma infra-estrutura hoje irreconhecvel e depois adaptada a prdios de rendimento,
reservou-se para o de Todos-os-Santos um lote apertado e irregular, recuado em relao rua. Este
colgio era um bloco relativamente compacto, dotado de um pequeno ptio de planta trapezoidal22,
cuja fachada se compunha de um portal clssico ao centro e de uma fiada de janelas sobre o piso
nobre23, que em tudo antecipava a fachada do colgio de So Paulo.
de abobeda na porta principal da banda de dentro no pateo do ditto collegio, 20 de Agosto de 1662, AUC,
Inventrio do Fundo Documental Universitrio, Colgio de So Paulo, Est. 7, Tab. 1, n. 29.
19
Pao quadrangular de dois pisos em grande medida resultante de uma campanha de obras da primeira
dcada do sculo XVI. Pedro DIAS, A Arquitectura de Coimbra na Transio do Gtico para a Renascena,
Coimbra, Epartur, 1982, pp. 278-280.
20
Casa nobre com torre medieval e acrescento habitacional de um piso (c. 1544) que configura os quatro lados
de um ptio. Jos Custdio Vieira da SILVA, Paos medievais portugueses: Caracterizao e evoluo da
habitao nobre (sculos XII a XVI), Tese de doutoramento, Lisboa, FCSH-UNL, 1993, pp. 259-263; Lusa
TRINDADE, Um sedimento, uma runa, um projecto: O Pao dos Vasconcelos, em Santiago da Guarda,
Monumentos, n. 25, Lisboa, 2006, pp. 214-217.
21
No sculo XVIII os colegiais eram sobretudo filhos das primeiras famlias e casas desta Corte, in Aviso pelo
qual S. Mage. Manda recomendar algumas cousas aos trs colgios mayores, 21 de Abril de 1780, AUC,
Inventrio do Fundo Documental Universitrio, Colgio de So Paulo, Est. 7, Tab. 1, n. 8, p. 309.
22
Plantas da Inquisio de Coimbra, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
23
Gravura do antigo Largo de Sanso, de Jos Carlos Magne, 1796 (MNMC, DA 133).
472
Numa primeira fase de instalao dos colgios na Rua da Sofia, verificaram-se algumas fundaes
seculares da iniciativa de prelados do reino, os casos dos colgios da Conceio (pelo bispo do Porto,
D. Baltasar Limpo) ou do Esprito Santo (pelo arcebispo de vora, o futuro cardeal D. Henrique). A
radicao da Universidade na cidade Alta e do ensino das artes na Baixa (at 1565) levou cedncia
destes estabelecimentos a diversas ordens religiosas (em fases mais ou menos adiantadas da
construo) e converso destes colgios de seculares para regulares.
Fisicamente, sobreviveu o colgio do cardeal D. Henrique reconvertido para a Ordem de Cister da
qual o infante era abade comendatrio. O edifcio, levantado entre 1541 e 1550 e que ainda hoje
subsiste, posto que bastante alterado, era desprovido de igreja externa e conformava um bloco
rectangular organizado em redor de dois ptios, um dos quais limitado por galerias de arcadas
contnuas apoiadas em pilares, sobrepostas de janelas de avental e recorte clssico, da autoria muito
provvel de Miguel de Arruda.24 possvel que a capela interna se situasse entre os dois ptios a
julgar pelo colgio do mesmo tipo que o Cardeal Infante haveria de levantar nos anos seguintes em
vora, e que seria o embrio da nova universidade da capital alentejana.25
No troo final da Rua da Sofia, do lado poente, levantou-se o j desaparecido colgio de So Toms.
Este colgio regular, pertencente aos dominicanos, no seguiu o tipo de colgio-convento (com igreja
independente a um lado) dos seus congneres da Graa ou do Carmo, como seria expectvel, antes
ostentando uma fachada civil. Esta situao particular tem a sua provvel explicao no facto do
colgio se erguer junto da obra do novo convento dominicano de Coimbra dotado de magnfica igreja
prpria, infelizmente nunca concluda. Deste modo o colgio conformava um bloco quadrangular
autnomo, de dois pisos, com capela interna e dotado de um claustro central. Importa notar que as
datas de construo do colgio26 so paralelas s do colgio de So Paulo e que no colgio
dominicano se optou por preencher o espao central com um claustro de dois pisos, da autoria de
Diogo de Castilho (que ainda subsiste27), em tudo semelhante aos dos outros colgios regulares da
Sofia, certamente por se julgar mais adequado comunidade religiosa que servia.
A partir da segunda metade do sculo XVI, passaram basicamente a existir dois colgios seculares em
Coimbra, o de So Paulo e o de So Pedro, cujos colegiais se envolveriam em famosas disputas sobre
a preeminncia dos seus institutos.28 Este ltimo, que comeara como fundao do canonista Ruy
Lopes de Carvalho, na Sofia, seria transferido (em 1574) para a ala nascente do Pao Real da
Alcova, por ordem de D. Sebastio, ala que foi prolongada no incio do sculo XVIII. Tinha capela
interna, biblioteca e marcava a sua entrada um portal setecentista, lado a lado com a porta frrea da
Universidade.29
Paralelamente, em vora, o cardeal D. Henrique empreenderia a construo de um novo colgio que
inaugurou, em Portugal, o programa do seminrio ps-tridentino. O colgio da Purificao comearia
a edificar-se em 1577 para se terminar (anos depois do falecimento do Cardeal) em 1605.30 Ganhou
forma de bloco rectangular de dois pisos, com ptio interno alongado, rodeado por arcarias sobre
24
Rui LOBO, Santa Cruz e a Rua da Sofia: Arquitectura e urbanismo no sculo XVI, Coimbra, Edarq, pp. 147-156.
Rui LOBO, O Colgio-Universidade do Esprito Santo de vora, vora, CHAIA, 2009. A antiga capela colegial a
actual sala de actos da universidade. Os ptios (ao contrrio do ptio do colgio de Coimbra) teriam colunas e
no pilares.
26
Incio em 1546, incio do claustro em 1549, concluso em 1566. Antnio Nogueira Gonalves, Inventrio,
pp. 39-140.
27
Integrado no actual Palcio da Justia.
28
Veja-se Maria Margarida BRANDO, O Colgio, pp. XI-XVIII.
29
Veja-se Antnio de VASCONCELOS, Os colgios, pp. 51-60, e Antnio Nogueira GONALVES, Inventrio
Artstico de Portugal: Cidade de Coimbra, Lisboa, ANBA, 1947, pp. 113-114.
30
Rui LOBO, O Colgio-Universidade, pp. 50-52.
25
473
pilares e dividido por uma passagem-varanda central. Para Baltasar Teles, cronista da Companhia de
Jesus, era, em matria de edifcio para colegiais, o mais grandioso que h em todo o Portugal.31
Uma outra contribuio eborense para a consolidao de um tipo nacional de colgio secular foi a de
um instituto, iniciativa de um casal da cidade, para apoio a jovens estudantes da Universidade local.
Nasceu assim o colgio da Madre de Deus, levantado entre 1595 e 1608, cujo edifcio ainda hoje se
preserva.32 Trata-se de uma construo de raiz, implantada em pleno casco urbano, conformando um
bloco quadrangular de dois pisos, disposto em torno de um ptio central. O ptio rodeado de
arcarias sobre colunas e de galerias e tem portas de sacada ao nvel do primeiro andar. A capela
ocupava toda a ala sul do quadrngulo colegial, sem autonomia volumtrica, ainda que com acesso
prprio, posto que discreto, desde o exterior.
Em jeito de balano, poderemos afirmar que o colgio de So Paulo, juntamente com os eborenses
da Purificao e da Madre de Deus, foram as expresses mais evidentes do tipo arquitectnico de
colgio secular em Portugal, sem galerias em redor do ptio o primeiro, com galerias, os dois ltimos.
Novamente em Coimbra, destaquemos o j desaparecido colgio dos Militares, das ordens militares
de Avis e Santiago, iniciado em 1627, para o qual se adoptou o tipo arquitectnico do colgio-palcio,
ainda que o projecto tenha sido, apenas parcialmente, completado.33 No sculo XVIII, por estar
adstrito s ordens militares, era considerado um colgio maior, a par dos de So Paulo e de So
Pedro.34
Outras contribuies para o tipo arquitectnico do colgio-palcio foram alguns institutos das ordens
religiosas de estabelecimento mais tardio na cidade, implantados por entre a malha urbana da Alta
universitria ao longo dos sculos de Seiscentos e Setecentos. So eles os colgios dos Lios, dos
Grilos (Santa Rita), dos Franciscanos da Provncia de Portugal (So Boaventura) ou dos Eremitas da
Serra de Ossa (So Paulo Eremita), que dispensaram o esquema de colgio-convento, com igreja de
volumetria autnoma, para apadrinharem o modelo (ainda que com variantes) do palcio urbano.35
Referiremos, finalmente, o projecto setecentista de reconstruo do colgio de So Paulo, (afectado
pelo terramoto, como dissemos), da autoria do arquitecto bolonhs Giacomo Azzolini, que tentou
restabelecer o tema colegial, duzentos anos volvidos, em novas bases. De acordo com o projecto
nunca realizado,36 provia-se o novo ptio colegial com galerias de arcadas sobre pilares quadrados,
ainda que interrompidas pela caixa da escada de trs lanos que se abria sobre o trio de entrada
(Fig. 6). A capela colegial situava-se sobre o eixo de simetria e de entrada do colgio, do lado oposto
do ptio, repetindo o esquema genrico do Collegio di Spagna, de 1365-67, primeiro prottipo de
edifcio colegial europeu, que Azzolini certamente conheceria da sua Bolonha natal. Cabe ainda
apontar, revelia do colgio medieval bolonhs, a expresso volumtrica praticamente inexistente
da capela face sua insero no interior de um permetro edificado perfeitamente geomtrico e
regular. Em sentido inverso, ganhava importncia a biblioteca que ocuparia o corpo central e elevado
da fachada (Fig. 7) sobre a entrada colegial.
31
Baltazar TELES, Chronica da Companhia de Iesu na Provincia de Portugal, 1645, vol. I, p. 364.
Foi at h pouco tempo o Hospital Militar de vora. Veja-se Tlio ESPANCA, Inventrio Artstico de Portugal:
Concelho de vora, Lisboa, ANBA, 1966, vol. I, pp. 91-92 e Antnio Pina CABRAL, O Colgio da Madre de Deus
em vora, IV Centenrio da Universidade de vora: actas do congresso, Coimbra, 1967, pp. 161-171.
33
Pedro DIAS, As obras de construo do colgio conimbricense das ordens militares, durante o sc. XVII, in
Alta de Coimbra: Histria-Arte-Tradio. Actas do 1. Encontro sobre a Alta de Coimbra, Coimbra, 1988, pp.
231-245.
34
Veja-se a nota 21.
35
Rui LOBO, Os colgios, pp. 41-42.
36
Museu Nacional de Machado de Castro, desenhos DA 50-54 (duas plantas, um corte e dois alados,
publicados em Rui LOBO, Os colgios, pp. 42-43).
32
474
Fig. 1 Plantas sobrepostas (r/c e primeiro andar) do colgio de So Paulo, Giacomo Azzolini,
incio da segunda metade do sculo XVIII (MNMC, DA55).
475
476
477
478
479
N. 1, vol. I, 9 de setembro de 1829; peridico fundado em Londres, entre outros, por Almeida Garrett, Paulo
Midosi e Ferreira Borges no exlio liberal; primeiro nmero sado na impresso de G. Greenlaw, em 1829.
2
O prncipe, titulado da Beira, nasceu em 21 de agosto de 1761 na Real Barraca construda no stio de Nossa
Senhora da Ajuda. O casamento foi muito celebrado e o aparecimento da descendncia ao trono revelou-se um
tpico mais uma vez glosado: Principe Soberano, Augusta espoza,/ Cresa em Vs sempre a palma
triunfante,/E de Vs nasa a Planta Magestoza., in MENDES, Antnio Flix; VALE, Jos Pedro (1777), Nas reaes
nupcias do Serenissimo Senhor D. Joz, principe da Beira com a Serenissima Senhora infanta D. Maria Francisca
Benedicta. Lisboa: na Officina de Joo Antnio da Silva, 1777, p. 7. A perpetuidade da unio era para colocar
no Templo da Memoria humas ellevadas Estatuas do Nome de V. Alteza, e da Princeza Nossa Senhora in
MELLO, Antnio M.L. Pacheco Malheiro e (1777), Panegyrico Gratulatorio que ao senhor Dom Jos Nosso
Senhor principe do Brazil na occazio dos seus felices desposorios. Lisboa: Na Regia Officina Typografica, 1777,
p. 11.
480
convenincias de estado, segundo o juzo de Falco Trigoso, frequentador da sua corte, autor de um
elogio histrico da princesa3. O voto comemorativo que a rainha-me formulou quando do
nascimento do prncipe para a edificao da Baslica da Estrela, consagrada ao Sagrado Corao de
Jesus, teve de aguardar cerca de vinte anos para o lanamento da primeira pedra do venervel
estabelecimento4. Com D. Maria I no trono o elenco de obras colocadas em prioridade deram relevo
construo desta monumental igreja e convento.
A educao do prncipe foi tutelada por Frei Manuel do Cenculo (1724-1814)5, seu confessor,
nomeado em 1768 (depois bispo de Beja e arcebispo de vora), mas entretanto viu-se afastado com
a morte do rei em 1777. No corpo de pedagogos encontravam-se ainda reputados mestres: o
matemtico veneziano Miguel Franzini, o mestre de francs Manuel Nonato Ballester, o mestre de
escrita Feliciano Marques Perdigo, no campo da msica o organista Joo Cordeiro da Silva e o
compositor Joo de Souza Carvalho e ainda o sargento-mor Antnio Ferreira-Monte, mestre de
picaria6. As regras sobre o enquadramento pedaggico que devia seguir surgem num momento
anterior e o rei D. Jos que as faz promulgar (da que na unio de sua filha tivesse tido a sua
determinante influncia), configurando um instrumento que refletia a ideologia pombalina: Tornavase necessrio impor uma disciplina severa de modo a repartir as horas para viver com mtodo, que
em to altas pessoas se faz indispensvel, segundo as entretanto sadas Instrues e Ordens que Sua
Magestade foi servido dar para se observarem no quarto do Principe nosso senhor7.
O Gabinete de Instrumentos Cientficos montado na Real Barraca, que articulava com o Museu de
Histria Natural, constitua um complexo de divises com um bom aparato de objetos, apreciados
por Beckford, segundo ele prprio confessou ao prncipe. A sucediam-se, num alinhamento
provavelmente definido por Miguel Franzini, um aposento designado de Sala de Artilharia e depois a
Sala dos Instrumentos de Artilharia e dos Uniformes (e ainda a Sala dos Modelos de Hidrulica). O
embaixador de Frana, marqus de Bombelles, deixou registo de uma visita que a, igualmente,
efetuou tendo realizado a sua comparao com aqueles que lhe foi dado a observar na Universidade
de Coimbra8 (conjunto este que o marqus de Pombal fez deslocar do Colgio dos Nobres). Na Sala
de Artilharia, segundo a sua narrativa, dispunham-se as maquetas e representaes de fortificaes,
conjunto que fora adquirido em Turim, provavelmente atravs de Sousa Coutinho, embaixador junto
do reino do Piemonte entre 1779 e 1796.
Assim o prncipe dispunha de um ambiente de natureza museolgica suscetvel de cultivar e
estimular o conhecimento das disciplinas em que mais se concentrava. O jogo militar que foi
impresso em 1770 por Guillaume Dadet O descanso e alvio dos discpulos de Marte, ou novo jogo
3
MORATO, F. de Arago Trigoso (1836), Elogio Historico da Princeza D. Maria Francisca Benedicta. Escripto em
Fevereiro de 1834. Paris: Chez Paul Renouard, 1836, p. 7.O prncipe, ao que parece, esteve para casar com a
princesa francesa Isabel, irm de Lus XVI, o que se percebe pela iniciativa do 1. marqus de Pombal tomada
em 1777, v. VILA e BOLAMA, Marqus de (1916), A Marqueza dAlorna: algumas noticias []. Lisboa: Imp.
Manuel Lucas Torres, 1916, p. 94.
4
SALDANHA, Sandra da Costa (2008), A Baslica da Estrela: Real Fbrica do Santssimo Corao de Jesus. Lisboa:
Livros Horizonte, 2008.
5
FERRO, Joo Pedro (1989), Um Prncipe Iluminado (1761-1788). Lisboa: Edies Lcifer, 1969, pp. 38-69.
6
BOMBELLES, Marquis de (1979), Journal dun Ambassadeur de France au Portugal 1786-1788. Paris: FCGPresses Universitaires de France, 1979, p. 271.
7
SILVA, Maria Beatriz Nizza da (1982-83), A educao de um prncipe no perodo pombalino, in Revista de
Histria das Ideias, vol. IV, O Marqus de Pombal e o seu tempo, tomo I, Faculdade de Letras, Instituto de
Histria das Ideias, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1982-83, p. 379. CAEIRO, Francisco da Gama (1959),
Frei Manuel do Cenculo: Aspectos da sua Actuao filosfica. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1959, pp. 85-89,
que cita o manuscrito de vora: BPE, CXXIX/1-17, fols. 231-237.
8
BOMBELLES, Marquis de, op. cit., p. 271. Nous y avons trouv des gens du prince qui nous ont fait voir son
cabinet de physique. Les machines sont moins nombreuses qua Coimbra y sont galement bien ranges et
faites avec le plus grand soin.
481
militar9 pode tambm ser indicador deste seu interesse pelos assuntos militares. As visitas que fazia
regularmente a quartis e o interesse pela reedio das obras do conde Shaumburg Lippe refletem o
seu empenho em alavancar a reorganizao do Exrcito.
Beckford, que com ele teve um encontro meio clandestino, perto de Sintra, a 19 de outubro de 1787,
comentou a impresso positiva que este lhe deixou, mau grado as censuras contra a poltica
inglesa10. Mas, parece, quereria visar a sua heterodoxia religiosa, que designou de poltica fradesca,
vislumbrando um recorte manico no discurso anticlerical, na pretenso, por certo, de atingir o
arcebispo de Tessalnica11. A conversa foi transmitida a este confessor da rainha que ter ficado
desconfortvel com tais alinhamentos ideolgicos, os quais transmitiu de imediato soberana. A
verso oficial e corrente sobre a morte do prncipe de que foi causada por varola, mas a ligao
entre aquele libelo antibritnico e o seu desaparecimento no de descartar12.
BNP, E. 62 R.
BECKFORD, William (1901), A Crte da Rainha D. Maria I Correspondncia de W. Beckford. Lisboa: Livraria
Editora Tavares Cardoso e Irmo, 1901, p. 153.
11
BECKFORD, William (1983), Dirio de William Beckford em Portugal e Espanha. Introd. e notas de Boyd
Alexander; trad. e prefcio de Joo Gaspar Simes, 2. ed. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1983, p. 26. MARQUES,
Antnio H. de Oliveira (1989), Histria da Maonaria em Portugal Das origens ao futuro, vol. I. Lisboa:
Editorial Presena, 1989, p. 53, menciona um depoimento, de 1792, que no permite tirar uma concluso:
Disse-se at que o prncipe D. Jos, a quem outrora o Marqus de Pombal visara como sucessor imediato de
seu av, em detrimento de D. Maria, era o Protector e Gro-Mestre da Maonaria em Portugal.
12
Tefilo Braga no escamoteia a ligao entre aquela entrevista denunciada com perfdia por Beckford a
Tessalnica e a morte do prncipe (v. Joo Gaspar Simes, no prefcio citado p. 10; v. ainda a anotao do
capelo dos Marialvas, Frei Joo Gaspar do Esprito Santo, sempre bem informado: Muito se disse sobre a
morte de Sua Alteza [], in COSTA, Jlio de Sousa e (1940), Memrias do Capelo dos Marialvas [Frei Joo do
Esptito Santo], []. Lisboa: Joo Romano Torres, p. 206; apud FERRO, Joo Pedro, op. cit., pp. 79-89.
13
HERCULANO, Alexandre (1838), Hospital Militar de Runa, in O Panorama, n. 72, setembro 15, 1838, pp.
293-294.
10
482
Grenelle. E ainda o hospital de Chelsea, uma iniciativa do reinado de Carlos II14. Estes marcos foram
importantes para a definio de uma voga construtiva de hospitais militares no contexto poltico
enquadrado pelo Iluminismo. Se bem que o referente doutrinrio mais divulgado, porque baseado
na investigao sobre redes hospitalares (nomeadamente em Inglaterra), seja o realizado por Tenon,
cirurgio e membro da Academia das Cincias, estabelecida depois do violento incndio do muito
clebre Hpital-Dieu, que remontava ao sculo VIII. Equaciona propostas sobre teorias do
higienismo, que a poca consagrava, segundo quatro tpicos fundamentais: On a rassembl autant
quil a t possible, les rgles de distribution de les divers Hpitaux15.
Esta pesquisa foi acompanhada pela apresentao, em 1785, de dois modelos de estabelecimentos,
da autoria de Bernard Poyet, depois Contrleur des Btiments de la Ville de Paris: um desenvolvia
uma morfologia circular, similar in same ways to Benthams later Panapticon16, outro desenvolvia
uma morfologia organizada por dois grandes retngulos subdivididos, de modo a definir quatro subblocos, igualmente separados com alguma autonomia, numa estrutura designada de pavilhionar17. A
planta foi reproduzida no Rcueil et parallle des difices de J.-N.-Louis Durand (1800) e veio a
influenciar a construo dos principais hospitais fundados at final do sculo XIX18.
A encomenda
1792 um ano importante para Jos da Costa e Silva porque se v contemplado com o projeto para
o Real Teatro de So Carlos, obra marcante no quadro do impulso de requalificao urbana da
capital, em que a governao mariana apostava.
Nesse ano -lhe pedido para apresentar os riscos para o novo Hospital Militar de Invlidos de Runa,
cuja primeira pedra lanada logo a 18 de junho.19O modo de obteno da encomenda no se
encontra clarificado, mas a sua recente nomeao para riscar uma obra de cariz idntico, ou seja, o
Errio Rgio, em 1789, cujo controverso partido construtivo estava ainda na ordem do dia, dever ter
forosamente contribudo para sinalizar as suas capacidades. Mas com a prestigiante encomenda de
So Carlos, cujas obras arrancam neste mesmo ano de 1792, ganharia grande visibilidade e coloc-loia sob a ateno dos centros decisrios, mas, ainda assim, no conhecido quem ter aconselhado a
princesa na sua escolha. No ser forado admitir que o intendente Pina Manique possa ter tido
14
Este constitui como que um prottipo em que vai entroncar o Hospital Naval de Greenwich (1789), destinado
ao corpo de militares que tivessem servido na Marinha inglesa. V. COOKE, John; Maule, John (1789), An
Historical Account of the Royal Hospital for Seamen at Greenwhich. Londres: [s/n], 1789.
15
TENON; Jacques-Ren (1788-1792), Mmoires sur les hpitaux de Paris. Paris: De
LImprimerie de Ph.-D. Pierres, 1788-1792, p. XLI; v. tb. apud CABANIS, Pierre J.G. (1790), Observations sur les
hpitaux de Paris. Paris, 1790. Este autor era mdico e deputado da Conveno. Sobre este assunto, Tenon
escreveu: ensuite je dressai un Mmoire de questions sur la distribution, le service des Hpitaux civils,
persuad quune comparaison de leur tat prsent, non-seulement nous guideroit dans la construction, mais
encore perfectionneroit les Hpitaux faits, les uns par les autres. Ce Mmoire fut rpandu dans toute lEurope.
TENON, J.R., op. cit., Paris: Doin/Assistance Publique-Hpitaux de Paris, 1998, p. XII.
16
BERGDOLL, Barry (2000), European Architecture, 1750-1890. Londres: Oxford University Press, 2000, pp. 9596.
17
SUMMERSON, John (1986), The Architecture of the Eighteen Century. Londres: Thames & Hudson, 1986, pp.
130-131.
18
DURAND, J.-N.-Louis (1800), Recueil et parallle des difices de tout genre, anciens et modernes [...]. Paris:
LImprimerie de Gill Fils, 1800; Kaufmann, Emil (1966), Architecture in the Age of Reason: Baroque and Post
Baroque in England, Italy, and France. Cambridge University Press, 1966, p. 214.
19
MORATO, F. de Arago Trigoso (1836), op. cit., p. 7 diz-nos que a princesa mandou tirar a planta do edifcio
pelo habil Architecto Jos Maria da Costa e Silva, a qual ella mesmo corregiu e aperfeioou; e no dia 18 de
Junho de 1792 deu principio obra.
483
alguma intermediao, tendo em conta que a recente fundao da Real Casa Pia de Lisboa visando a
regenerao social de rfos, pobres e vadios comungava destes princpios assistenciais20.
O patrocnio filantrpico de D. Maria Francisca Benedita determinado e os meios disponveis
bastante expressivos, o que veio a dar folga ao projeto. Segundo Trigoso de Arago Morato, vemos
que o edifcio hum quadrilatero regular de ordem Toscana, e de tres andares; tem de
comprimento na frente 450 palmos craveiros, em cada hum dos lados 280, e de altura no meio da
fachada 6021, significa ento que a sua fachada principal media cerca de 100 m, considerando que o
p craveiro, antiga medida linear, tinha o equivalente a 22 cm. Tendo uma escala aprecivel, que
veio alis a dificultar o seu acabamento, ainda assim cerca de metade do tamanho do Hospital de
Santo Antnio do Porto, estimado em 176 m, o qual teve um desenho do arquiteto escocs John Carr
(1723-1807), e cujas obras arrancaram em 177022.
Sem resposta ficou tambm quem fixou o programa para este hospital, e do que se sabe at esta
altura Costa e Silva no tinha riscado qualquer equipamento desta natureza. S cinco anos depois
que vir a dar um parecer sobre o Real Hospital da Marinha, cuja conceo aquele Rodrigo de Sousa
Coutinho, j regressado a Lisboa, entregara a Francisco Xavier Fabri, em 179723. Ainda que no
tivesse levantado questes de fundo, as reservas estabelecidas sobre a salubridade do ar, os circuitos
de comunicao que interferiam na comodidade dos doentes e do pessoal, a questo dos esgotos, do
escoamento das guas pluviais, tpicos que escrutinava com particular acuidade, demonstram que a
experincia de Runa lhe fora til.
Entre ns o referente terico mais consistente sobre a construo de edifcios de dimenso pblica,
mais conotados com a sade num enquadramento urbano, disponvel at ento, era o Tratado de
Ribeiro Sanches publicado em 175624. O mdico denunciava uma prtica que parece no obedecer a
um princpio higienista que se focasse prioritariamente na conservao da sade dos povos25. Mas
devemos considerar que remota a possibilidade de Costa e Silva ter tido contacto com este
conjunto de preceitos, sendo de admitir que os princpios vitruvianos bebidos tambm atravs de
Andrea Palladio lhe fornecessem referncias sobre regras a observar no projeto fosse o captulo IV
do Livro I sobre a salubridade das localizaes ou o captulo IV do Livro VI sobre os aspetos
particulares das divises, recomendando que as casas de banho sejam orientadas a poente para
aproveitar a luz do pr do sol26.
Tambm os autores citados, que intervieram na definio tipolgica de polticas de sade e tcnicas
assistenciais, no os tero consultado. Na sua biblioteca no de encontram averbados e s Pina
Manique estaria em condies de lhe dar alguma ajuda nesta problemtica, como mencionmos.
Teria de resolver delicadas questes com o programa e as funcionalidades ento requeridas:
enfermarias, sala de cirurgia, farmcia, salas de convalescena, casas de banho, refeitrios, cozinhas,
20
Neste ano de 1792 foi criada a Real Casa Pia do Porto, que veio a ser extinta em 1837.
MORATO, F. de Arago Trigoso (1836), op. cit., p. 7; FRANA; Jos-Augusto (1966), A Arte em Portugal no
Sculo XIX, vol. I. Lisboa: Bertrand, 1966, p. 51: O todo tem uma forma de rectngulo de 99 por 61 metros,
comportando trezentas divises, e a igreja ocupa o centro da Fachada principal.
22
TAYLOR; Ren (1960), John Carr e o Hospital de Santo Antnio do Porto, in Revista e Boletim da ANBA, 2.
srie, n. 15. Lisboa: Academia de Belas-Artes, 1960, pp. 32-38.
23
ANRJ, Negcios de Portugal, Caixa 620.
24
SANCHES, Antnio Nunes Ribeiro (1756), Tratado da Conservao da Saude dos povos: Obra util, e
igualmente necessria aos Magistrados; Capitaens Generais, Capitaens de Mar, e Guerra, Prelados,
Abbadessas, Medicos, e Pays de Famlias: com hum appendix. Paris: Pedro Gendron, 1756. Antnio Nunes
Ribeiro Sanches, Obras, Vol. II [Universitatis Conimbrigensis Studia Ac Regesta]. Coimbra: Universidade de
Coimbra, 1966.
25
PROVIDNCIA, Paulo (2000), A Cabana do Higienista. Coimbra: Edarq, 2000, p. 3.
26
Vitrvio (1997), Los diez libros de Arquitectura, introd. por Delfn Rodrguez Ruiz. Madrid: Alianza Editorial,
1997, pp. 75-78 e 241.
21
484
A morfologia do edifcio
A secura da composio assinalvel na sua afirmao claramente simtrica donde foram banidos os
recursos ornamentais, investindo primacialmente no jogo das volumetrias com subtil projeo do
corpo central. Aqui se abrem trs vos de volta perfeita, que trazem memria a soluo encontrada
para So Vicente de Fora, soluo longamente glosada.
Parece ser mais razovel admitir que a influncia de Palladio foi determinante pela sua escolha do
motivo da serliana, e do recurso ao uso de plintos para sobrelevar as pilastras, que se dimensionam
numa caracterizao de ordem gigante. O despojamento minimalista, prprio da ordem toscana,
conjuga com a rgida geometrizao do fronto triangular. Aquela soluo da entrada tem
proximidade com o risco que Palladio props para a Villa Godi, sob encomenda dos irmos Girolamo,
Pietro e Marcantonio Godi, naturais de Lonedo, datada de 1537-1542.
A fenestrao define outro princpio morfolgico de conteno e regularidade severa, que no ritmo
criado valoriza a planimetria e que em Runa se expressa igualmente de modo taxativo, assim como
nesta Villa, do mesmo modo, se observa.
Foi j salientada a subtileza do seu desenho, que as referncias clssicas ajudam a acentuar, tendo
modernizado o esquema pombalino, tomando um semblante mais palaciano que religioso27.
485
civil, mas alguns palcios em forma de templo foraram-no a tomar contacto com esta tendncia
compositiva.
A sintaxe espacial da capela gera-se com a simbiose de uma planta centralizada e de uma outra
longitudinal, dir-se-ia uma pseudoplanta cruz latina, porque o transepto que deixa inscrever o altarmor rematado em baldaquino comprime o espao e anula esse intuito de distenso. Significa que a
tribuna colocada na retaguarda (a poente) avana, em sentido contrrio, reforando o esbatimento
longitudinal. A organizao dos alados tira partido das absides semiesfricas potenciando esse valor
agregador de incidncia geomtrica. A cpula circular dialoga com os elementos curvos situados
inferiormente e propicia uma verticalidade atinente a um vetor de ponto de fuga.
Na fenestrao de aberturas termais29 reequacionou-se a remisso para outros projetos do fim da
vida de Palladio, instalado j em Veneza, traduzidos nas duas igrejas que nesta cidade construiu, ou
seja: San Giorgio Maggiore (1565) e Il Redentore (1577). Sobretudo desta ltima a memria da
justaposio volumtrica, operando a condensao espacial exprime o compromisso com a
imposio da planta longitudinal, imperativo programtico das regras tridentinas e com a planta
central, evocada da arquitetura basilical romana. A iluminao desempenha aqui um papel
instrumental para a clareza que os princpios vitruvianos requeriam, na difcil articulao da cpula
com a nave longitudinal, como diz Ackerman: The light does more than illumine; in the Redentore,
its different quality in each of the three major spaces underlines the individuality so distinctly
established in plan; it separates the diffusely lit nave from the amply lit tribune from the brilliantly lit
monk's choir; but, in so doing, it really unifies, because the white blaze of the choir, against which the
columns in a hemicycle are silhouetted and become immaterial, attracts one as if to a supernatural
goal. The spiritual implication is reinforced by a physical rise in the level of the crossing and choir, as
the nave is above the ground level of the exterior. Clearly defined sequences of self-sufficient spaces
in the Redentore represent Palladio's intellectual resolution of the problem of joining a domed
crossing to an extended nave.30
A princesa interessava-se pelo andamento dos trabalhos que se arrastavam inexplicavelmente e
assim, em 1794, estando nas Caldas, vai visitar o estaleiro distinguindo o arquitecto que tambem se
achou em Runa, durante o tempo em que Sua Alteza ali se demorou31.
J depois do regresso do Brasil, em 1821, no sentido de acelerar a concretizao das obras, que
haviam estado paradas ou com avanos insignificantes: Alli ia passar hum, ou mais mezes de cada
anno para afervorar os trabalhos que ordenava: alli teve a satisfao de ser visitada por El-Rei D. Joo
VI, que augmentou a dotao do estabelecimento com um quantiosa commenda32.
Conseguiu que fosse inaugurado com pomposa cerimnia somente em 25 de julho de 1827, data do
seu aniversrio natalcio, no ano em que perfazia oitenta e um anos de idade.
29
V. a magnfica janela termal, encimante do portal, na fachada da igreja de San Francisco della Vigna, Veneza;
encomenda entregue a Palladio (1562) por intermediao do seu amigo Daniele Barbaro, tradutor e editor do
tratado de Vitrvio em italiano, Dieci Libri dellArchitettura di M. Vitruvio (1562), para o qual aquele arquiteto
realizou as ilustraes.
30
ACKERMAN, James S. (1967), Palladio. Baltimore, Maryland: Penguin Books, 1967, p. 158.
31
LOBO, Roque Ferreira (1826), Panegyrico em louvor da Serenissima Princeza do Brazil a Senhora D. Maria
Francisca Benedita pela sua fundao de hum Hospital para Militares Invalidos, na sua Quinta do Lugar de
Runa, termo de Torres Vedras. Lisboa: Regia Tipografia Silviana, 1826, p. 16.
32
MORATO, F. de Arago Trigoso (1836), op. cit., pp. 8-9.
486
Fig. 1 Prospecto do Hospital para invlidos que Sua Alteza a Serenssima Senhora Princeza do Brasil Dona
Maria Francisca Benedicta manda edificar no stio de Runa, por Jos da Costa e Silva
487
488
489
490
De italiano a suo
Em Do Palcio de Belm, colectnea de estudos editada em Novembro de 2005 (Mendona 2005),
registmos j que o futuro director da Aula de Desenho e Estuque no nascera na capital da
Lombardia, mas na rea da cidade de Como, conforme consta dos assentos de baptismo dos seus
filhos Francisco Xavier, Justina e Joo Alexandre3. Mais concretamente, na parquia de S. Maurcio
de Bioggio, na margem sua do lago de Lugano, que at ao sculo XIX pertenceu diocese de Como.
A aldeia de Bioggio, a curta distncia de Lugano, a capital do actual canto suo do Ticino, situa-se
no centro de uma regio que, da Alta Idade Mdia ao princpio do sculo passado, foi alfobre de
sucessivas geraes de mestres construtores (pedreiros, canteiros, estucadores e arquitectos) que
espalharam as suas artes e o seu saber pelos quatro cantos da Europa, das ilhas britnicas aos Balcs
e de S. Petersburgo Pennsula Ibrica (Fig. 1, p. 550).
Localizada com preciso a origem de Grossi, a confirmao surgiu no arquivo paroquial da
localidade4. No livro de baptizados de S. Maurcio, a 7 de Outubro de 1715, est registado o
nascimento de Giovanni Maria Theodoro (Fig. 2, p. 550), filho de Pietro Grossi e de Marta nomes
que j sabamos serem dos pais, pois assim o declarou o prprio estucador no seu assento de
casamento, lavrado em Lisboa em 17645.
Grossi era pois suo, nascido no seio de uma famlia do patriciato local, em que no faltavam vrios
estucadores, designadamente do lado materno6. Foram seus padrinhos o tio materno Martino
Taddei, de Fulmignano, e Ana Rossi (ou de Rubeis, no latim do registo), de outra famlia patrcia de
Bioggio, ainda aparentada dos Grossi.
O padre que redigiu o assento registou ainda um pormenor curioso: Giovanni Grossi teve um irmo
gmeo, que chegou a ser baptizado como Francesco Antonio, mas parece ter morrido nascena,
num parto que se adivinha laborioso. Giovanni Maria Theodoro teve ainda, pelo menos, mais dois
irmos e cinco irms, que viram a luz entre 1704 e 1721, sendo o penltimo da fratria7.
Ambos os progenitores eram naturais do Ticino. Pietro Grossi era filho de Giorgio Grossi, de quem
apenas se sabe que ter nascido cerca de 1620 e falecido antes de 1696, sempre em Bioggio. No se
2
Arquivo da igreja do Loreto, Lisboa (AL), Livro da Dezobrigao do Perceito Annual da Quaresma da Nao
Italiana (1739/44), fl. 70v; Idem (1745/51), fls. 11 e 21v; Livro Segundo dos Baptizados, fls. 5, 25, 35v, 66 e
101v.
3
AL, Livro Segundo dos Baptizados. Registos de 14 de Janeiro de 1767, fl. 25, de 28 de Junho de 1770, fl. 66, e
de 28 de Abril de 1773, fl. 101v.
4
Archivio Parrochiale di San Maurizio di Bioggio, Bioggio (APSMB), Libro dei Battesimi, ad annum, no
paginado.
5
Torre do Tombo (TT), Arquivo Distrital de Lisboa (ADL), Livro de Registos de Casamentos, Freguesia das
Mercs, livro C3, cx. 21, fl. 49.
6
O estatuto social dos artistas e construtores da regio dos lagos talo-suos no comparvel ao dos seus
confrades portugueses da mesma poca. Designadamente, havia numerosos estucadores em quase todas as
principais famlias de Bioggio e das demais localidades do lago de Lugano, a par de pessoas que, em Portugal,
teriam um status bem diverso juristas ou oficiais superiores, por exemplo.
7
O nmero de irmos de Grossi est ainda por determinar com exactido. Dos stati animarum da parquia de
S. Maurcio, que poderiam fornecer indicaes preciosas sobre a composio da famlia, s so conhecidos os
referentes a 1696 e 1717.
491
conhece a actividade de Giorgio nem do filho Pietro, nascido cerca de 1674, embora este
comparecesse regularmente no cartrio do notrio local, figurando como testemunha em diversas
escrituras e assessorando o tabelio em alguns actos, pelos quais cobrava honorrios (inventrios,
nomeadamente8). Faleceu com avanada idade, j vivo, em 7 de Janeiro de 17639.
A me, Marta Maria Taddei, provinha de uma conhecida famlia de estucadores e engenheiros
militares originria de Gandria, na orla do lago de Lugano, que depois se espalhou por outras
localidades vizinhas, como Castagnola e Fulmignano, hoje contguas da cidade de Lugano. Marta
nasceu em Castagnola e faleceu em Bioggio a 2 de Novembro de 1753, com cerca de 70 anos10,
sendo sepultada no pequeno cemitrio da aldeia, junto da antiga igreja de S. Maurcio, onde
baptizara os filhos (Fig. 3, p. 551). Era filha de MarcAntonio Taddei, o capomastro responsvel pela
obra do Hospital de Santa Maria de Lugano. O irmo, Martino, padrinho de Grossi, seguiu as pisadas
do pai, reconstruindo em 1741 a cpula do mesmo hospital (Brentani 1939)11.
Uma possibilidade em aberto a de que Joo Grossi tenha efectuado a sua aprendizagem como
estucador e modelador junto de familiares da sua linha materna, eventualmente at o prprio
padrinho, sendo de presumir que tivesse recebido qualquer formao como escultor ou estucador
antes de chegar a Lisboa. Essa formao, quando no acontecia no mbito estritamente familiar,
durava normalmente quatro ou cinco anos e era antecedida de um contrato pactum ad artem
firmado entre o pai do jovem aprendiz (o garzone) e o mestre encarregue de lhe transmitir os
conhecimentos da sua arte. Sabemos hoje que muitas destas famlias de artistas e artesos da regio
dos lagos de Como e de Lugano estavam organizadas como pequenas empresas oficinais, em que os
elementos mais jovens realizavam o seu tirocnio antes de partirem, como muitas vezes sucedia, para
regies mais distantes (Dubini 1991; Bianchi 2010)12.
Archivio di Stato del Cantone Ticino, Bellinzona (ASCTi), Archivio Notarile Staffieri di Bioggio (Pietro Francesco
Staffieri da Domenico).
9
APSMB, Registro dei defunti, ad annum, no paginado.
10
APSMB, Registro dei defunti, ad annum, no paginado.
11
A 16 de Janeiro de 1693 MarcAntonio foi eleito perito da obra do Ospedaledi Santa Maria de Lugano pelo
Conselho da Irmandade da Imaculada; em 1701 dirigia a obra (Docs. 557 e 620 em Brentani 1939). A cpula do
mesmo hospital foi recuperada em 1741 sob a direco de Martino Taddei (Doc. 573 em Brentani 1939).
12
O artista mais famoso da famlia materna de Grossi ter sido Carlo Giuseppe Taddei (1702-1770), engenheiro
e estucador, que trabalhou com os filhos Francesco Antonio e Michelangelo sobretudo no Schleswig-Holstein,
mas tambm deixou obra documentada na sua Gandria natal e em igrejas da capital do Ticino. Brentani
reproduz um interessante contrato de aprendizagem entre Carlo Giuseppe Taddei e Antonio Soldati, de Porza,
em que este se compromete a ensinar o ofcio de estucador ao filho do primeiro, Michelangelo, durante quatro
anos (Doc. 960 em Brentani 1941).
13
Arquivo da igreja paroquial de Santa Isabel, Lisboa, Rol dos Confessados da freguesia de Santa Isabel, Livro
6. (1765 e 1766, fls. 169 e 255v), Livro 7. (1767 e 1768, fls. 82v, 328 e 328v) e Livro 8. (1769, fl. 97). A partir
de 1770, a Praa dos Fabricantes passou a estar integrada na freguesia de S. Mamede.
492
nmeros 31 e 32 habitou a famlia Grossi, segundo os registos das dcimas do mesmo perodo,
conservados no arquivo do Tribunal de Contas14.
Joo Paulo da Silva15, que viria a tentar suceder ao mestre como director de uma nova Aula de
Desenho e Estuque16, ter decerto ouvido falar em casa do percurso de vida de Grossi, mas no
estaria necessariamente seguro das datas, sobretudo quando se tratava de acontecimentos
anteriores ao seu nascimento, em 1751 (e tambm anteriores ao nascimento do prprio Cirilo, em
1748).
As recordaes do memorialista, ou as informaes que colheu, t-lo-o induzido em erro ao datar a
pitoresca chegada de Grossi a Portugal. provvel que tivesse realmente passado por Espanha e at
possvel que chegasse at ns travestido de lavadeira, mas o perodo sugerido por Cirilo (entre
1746, ano da acesso ao trono de Fernando VI em Madrid, e o incio das obras do tecto da igreja dos
Mrtires) que certamente no est correcto. Como correcta no dever estar, tambm, a
informao de que o tecto da igreja dos Mrtires foi a sua primeira obra em Portugal.
Com efeito, Joo Grossi j se encontrava em Lisboa pelo menos desde a Pscoa de 1743, altura em
que nos surge a cumprir as suas obrigaes como catlico, confessando-se na parquia italiana do
Loreto17.
Morava ento, ainda solteiro e apenas com 27 anos de idade, na freguesia de S. Sebastio da
Pedreira. Este pormenor sugere, tambm, a sua ocupao na altura. muito possvel que, naquela
freguesia ento extramuros e relativamente afastada do centro da cidade, estivesse empregado,
como vrios outros estucadores seus patrcios e at parentes, nas obras do palcio do provedor dos
armazns, Fernando de Larre18.
Arquivo do Tribunal de Contas (ATC), Dcimas da Cidade, freguesia de Santa Isabel (DC501, 1765, fl. 214v;
DC503AR, 1769, fl. 47; DC504AR, 1770, fl. 46v; DC504AR, 1771, fl. 48; DC507AR, 1774, fl. 42v; DC508AR, 1775,
fl. 43v). Joo Grossi pagava de renda anual 96$000, 48$000 por cada uma das casas, e recebia 600$000 de
ordenado por ano. Estava isento do pagamento da dcima por ordem de Sua Magestade (Mendona 2009).
15
Joo Paulo da Silva iniciou a sua aprendizagem na Aula de Desenho e Estuque a 23 de Agosto de 1767 (Cf. TT,
Real Fbrica das Sedas, Livro 508, Livro das Matrculas dos Aprendizes das Fbricas de Fora que teve princpio
em 28 de Mayo de 1771) e recebeu carta de oficial em Novembro de 1776 (Ibidem, Livro 421, fl. 64).
16
Idem, ibidem, Livro 427, fl. 143.
17
AL, Livro da Dezobrigao do Perceito Annual da Quaresma da Nao Italiana (1739/1744), fl. 70.
18
A obra de estuques do palcio de Fernando de Larre, no largo de S. Sebastio da Pedreira, referida por
Cirilo, nas suas Memrias: No tempo do Architecto Larre estivero aqui Salla, e Bill, que fizero alguns
estuques no seu palcio chamado vulgarmente do Provedor: fazio ornato, e figura. Depois veio o Plura que
estucou huma casa na torre da plvora, e huma Ermida ao p da S. Francisco Gommassa, mero ornatista
tambm trabalhou em casa do Provedor, e fez a fachada da Ermida dos Soldados em Alcntara (Machado
1823, 269). Ao referir Grossi, Cirilo afirma: Fez tambm huma casa no Palcio de Cintra, outra em casa do
Provedor dos Armazns, que o introduzio com o Marquez de Pombal. Este o occupou nas suas casas da rua
Formosa, e das Janelas verdes (Machado 1823, 270). muito provvel que Grossi tenha tambm trabalhado
nos estuques do palcio de Fernando de Larre no centro da cidade, na Calada do Combro (Fig. 4, p. 551)
(Mendona 2014).
493
Durante a dcada de 1740 encontrmos no rol dos confessados da igreja do Loreto dois estucadores
naturais da regio dos lagos: Carlo Sebastiano Staffieri e Giovanni Francesco Righetti. O primeiro era
primo de Grossi e, como ele, natural de Bioggio, onde nasceu em 1694. conhecida a sua actividade
na Dinamarca, onde esteve em 1731 e em 1738 ao servio da corte19, e julga-se que ter trabalhado
em Itlia entre 1736 e 1738. Em 1740 tinha j regressado a Bioggio, mas a partir da as fontes locais
perderam-lhe o rasto (Grandjean 1962, 153-164, Staffieri 1971, 155-165).
Ter vindo com Grossi para Portugal? Em 1743 aparecem ambos no rol dos confessados do Loreto20.
Mas dois anos mais tarde, a 19 de Abril de 1745, Staffieri morreu prematuramente em Lisboa,
ficando sepultado na igreja dos italianos21.
Giovanni Francesco Righetti, que em Portugal ficou conhecido como Joo Francisco Riquete ou
Requete, nasceu em Aranno, uma povoao nas imediaes de Bioggio. Aparece nos registos do
Loreto entre 1744 e 178422, ano da sua morte, sendo tambm sepultado nessa igreja23. Righetti teve
uma actividade continuada como estucador na capital portuguesa e parece ter tencionado transferirse para o Brasil, o que aparentemente no chegou a acontecer24. Encontrmo-lo em 1783, portanto
pouco antes de falecer, integrado na equipa de mais de vinte estucadores, portugueses e talosuos, que entre Julho e Novembro trabalharam na obra de estuque da Casa da Msica, junto
Real Barraca da Ajuda25.
Na mesma altura trabalhava em Lisboa Domenico Maria Plura, natural de Lugano, onde nasceu na
freguesia de S. Loureno26, mais conhecido entre ns como escultor27. Trata-se muito provavelmente
do mesmo Plura que Cirilo refere nas suas Memrias a trabalhar nos estuques do palcio de
Fernando de Larre em S. Sebastio da Pedreira. De facto, quando casou em segundas npcias com
Teresa Maria, em 16 de Junho de 1744, Plura morava na freguesia de S. Sebastio da Pedreira, em
casa do tenente-coronel Jos Antnio de Macedo e Vasconcelos, escrivo dos Armazns Reais e
colaborador prximo de Fernando de Larre, que testemunhou o acto28.
Na Quaresma de 1747 aparece pela primeira vez no rol de confessados do Loreto um outro
estucador, Sebastiano Toscanelli, referido por Cirilo nas suas Memrias apenas pelo apelido,
colaborando com Grossi nos estuques ainda existentes na igreja dos Paulistas (Fig. 5, p. 551) e na
capela da Ordem Terceira de Jesus (Fig. 6, p. 552) (Machado 1823, 270).
19
Integrou uma equipa de conhecidos estucadores da sua regio, liderada por Giovanni Andreolli, de Vico
Morcote, da qual faziam parte Carlo Fossati, de Meride, e Carlo Maria Pozzi, de Lugano. Infelizmente,
desapareceram os estuques por eles realizados nos palcios de Hirschholm, na Dinamarca, e de Drage, no
Holstein (actualmente em territrio alemo).
20
AL, Livro da Dezobrigao do Perceito Annual da Quaresma da Nao Italiana (1739/1744), fls. 70 v e 78v.
21
Idem, Livro Primeiro de bitos (1669/1776).
22
Idem, Livro da Dezobrigao do Perceito Annual da Quaresma da Nao Italiana (1739/1744; 1745/1751;
1752/1769; 1770/1788).
23
Idem, Livro Segundo de bitos (1777/1846), fl. 26.
24
Nos fundos notariais do arquivo de Bellinzona, na Sua, encontrmos referncia a uma procurao que
Giovanni Francesco passou em 1751 ao irmo, Carlo Maria, junto do notrio apostlico em Lisboa, Giovanni
Carlo Romagnoli, dando-lhe poderes para o representar no processo de partilhas por morte de um outro irmo
de ambos. No processo surge uma referncia suposta ausncia de Righetti em terras da Amrica: ac nunc
temporis commorantis America, no confirmada nos registos do Loreto. ASCTi, Archivio Notarile Rusca della
Cassina dAgno (Angelo Maria di Carlo Antonio), scatola 1372.
25
TT, Casa Real, Cx. 3129. Da Casa da Msica resta hoje apenas a Sala dos Serenins, onde ainda permanecem
alguns dos estuques realizados em 1783.
26
A naturalidade de Plura referida no registo de baptismo do seu filho Jos Antnio. Cf. TT, ADL, Livro
Terceiro de Baptizados. Freguesia de S. Sebastio da Pedreira, fl. 166.
27
Por volta de 1733 realizou as esculturas de oito Virtudes e de quatro anjos para a sacristia nova do Colgio de
Santo Anto, pelo montante de 6.246$000 (Martins 1994, vol. II, pp. 114-115).
28
TT, ADL, Livro Segundo de Casamentos (1702/1748), Freguesia de S. Sebastio da Pedreira.
494
Toscanelli nascera em Sonvico, a norte de Lugano, no canto do Ticino, e aparece no rol do Loreto
em 1747, 1760 e 176129..Em 1747 residia na freguesia de S. Sebastio da Pedreira e nos dois ltimos
anos na freguesia de Santa Catarina do Monte Sinai, na zona da Bica, com dois familiares,
provavelmente seus filhos: Giovanni Antonio Toscanelli, de 15 anos, e Giuseppe Toscanelli30. A sua
permanncia em Madrid, referida por Cirilo (Machado 1823, 270), ter eventualmente ocorrido
entre 1747 e 1760.
Cirilo alude ainda a outros dois estucadores, parentes de Grossi e seus colaboradores nos estuques
da igreja dos Paulistas e da capela da Ordem Terceira de Jesus, que identifica como Pedro
Chantoforo e Agostinho Guadri (Machado 1823, 270)..
Fomos encontrar o primeiro no rol dos confessados do Loreto, referido como Pedro Cristoforo
Agustini ou ainda como Pedro Christvo Agostinho, aportuguesamentos de Pietro Cristoforo
Agustini. Natural de Agno, prximo de Bioggio, pertencia a uma famlia aparentada com os Grossi.
Antes de vir para Portugal, iniciou a sua actividade por volta de 1749 com o irmo mais velho,
Francesco Antonio Agustini, na oficina do conhecido estucador Donato Poli, em Nuremberga. Daqui
mudou-se para Gotha, onde realizou os estuques do palcio de Friedenstein e da orangerie do
palcio de Friedrichsthal. As fontes alems perderam-lhe o rasto em 1754, ano em que ainda
identificado em Dresden (Niedersteiner 1991). Est seguramente em Lisboa entre 1760 e 1788,
cumprindo assiduamente as suas obrigaes de catlico pela Quaresma31. Em Outubro e Novembro
de 1783 encontrmo-lo colaborando com Righetti na Casa da Msica, apenas designado como
Pedro Agostinho32. Regressou sua terra natal, onde veio a falecer em 1793 (Niedersteiner 1991).
Quanto ao terceiro colaborador de Grossi na obra dos Paulistas e dos Terceiros de Jesus, Agostinho
Guadri, Cirilo refere concretamente que, antes de vir para Portugal, viajou pela Alemanha, Prssia e
Holanda, de onde trouxe o mtodo de trabalhar o estuque em fresco e lustr-lo misturando-lhe
cola (Machado 1823, 270).
possvel que o nome pelo qual Cirilo o refere, Guadri, seja afinal Quadri. Nesse caso, poder
tratar-se de um estucador da conhecida famlia com esse apelido, da povoao de Agno, a terra natal
dos Agustini, tambm aparentada com os Grossi33.
Os registos do Loreto ainda nos reservaram mais uma novidade. Na Quaresma de 1768 aparece pela
primeira vez na lista dos confessados Giovanni Battista Falcone, natural de Arogno, uma povoao a
sul do lago de Lugano, prximo de Itlia34. Estava acompanhado da mulher, a veneziana Anna Maria
Nardi, com quem casara j em Portugal, na ermida de Santo Andr da Ameixoeira (termo de
Lisboa)35.
Ora, Falcone no outro seno o estucador Falco, referido por Cirilo como ajudante de Grossi na
obra do Colgio dos Nobres (Machado 1823, 217). J tnhamos identificado este estucador, que se
julgava ser portugus, em obras da Casa Real: em 1777, realizando os estuques dos tectos do viveiro
dos pssaros, nos jardins do palcio de Belm, e em 1783, acompanhado pelo seu filho e ajudante
29
AL, Livro da Dezobrigao do Perceito Annual da Quaresma da Nao Italiana (1745/1751) e (1752/1769).
Idem, Ibidem e ainda o livro referente aos anos de 1752 a 1769.
31
Idem, Livro da Dezobrigao do Perceito Annual da Quaresma da Nao Italiana (1745/1751) e (1752/1769),
e ainda o livro referente aos anos de 1770 a 1788.
32
TT, Casa Real, Cx. 3129.
33
Tratar-se-ia de Antonio Quadri, referido em fontes alems como activo em Budapeste, que trabalhou com
Francesco Antonio Agustini, o irmo de Pietro Cristoforo (Niedersteiner 1991)? Ter Cirilo, ao referir Pedro
Chantoforo, logo seguido de Agostinho Quadri, confundido o apelido do primeiro, Agustini, com o nome de
baptismo do segundo?
34
AL, Livro da Dezobrigao do Perceito Annual da Quaresma da Nao Italiana (1752/1769).
35
Conforme consta dos registos de baptismo dos vrios filhos do casal: Joo (1768), Antnio (1769), Andr
(1770), Peregrino (1772) e Andr Filipe (1773). Cf. AL, Livro Segundo dos Baptizados, ad annum.
30
495
Joo Carlos Falco, restaurando os estuques do Ninfeu, a casa de fresco situada debaixo do terrao
do mesmo palcio (Mendona 2005). Nesse ano colaboraram ambos nos j mencionados estuques
da Casa da Msica36 e em 1785 na obra de estuque da Casa do Laboratrio do Jardim Botnico da
Ajuda, igualmente da Casa Real (Mendona 2008).
No so conhecidas as circunstncias da vinda de Falcone para Portugal, mas provvel que esteja
relacionada com Grossi, que foi padrinho do seu filho Joo, nascido a 24 de Janeiro de 176837. Joo
Baptista Falco viria a morrer em Lisboa, a 25 de Novembro de 1793, na idade de settentoito para
oitenta annos, como indicou o proco do Loreto no registo de bito que ento lavrou, amortalhado
do hbito de S. Francisco38.
Quanto a Grossi, ter sido o provedor dos armazns, Fernando de Larre, que, ainda segundo Cirilo (e
aqui no h razes para dele duvidar), deu mais tarde o impulso fundamental na sua carreira, ao
notar a qualidade do seu trabalho e ao apresent-lo a Sebastio Jos de Carvalho e Melo. O futuro
marqus de Pombal no se limitou a confiar-lhe a decorao do seu palcio na Rua Formosa e da
quinta de Oeiras, mas angariou-lhe outros trabalhos, geralmente bem pagos, criou para ele a Aula de
Desenho e Estuque, concedeu-lhe benefcios fiscais (estava isento da dcima por ordem de Sua
Majestade l-se no registo respectivo de 177539) e, finalmente, proporcionou-lhe uma noiva com
direito ao tratamento de dona, Rosa Bernarda, da famlia Costa Velho, de Guimares, protegida da
irm de Sebastio Jos, abadessa perptua do convento de Santa Joana.
Foi precisamente neste convento que Grossi, dispensado de banhos, celebrou o seu casamento em
24 de Novembro de 1764 perante o proco das Mercs, a quem o futuro marqus ordenara por
escrito a incumbncia. Foram testemunhas duas figuras da antiga nobreza, o conde de So Paio,
genro de Sebastio Jos, e D. Cristvo Manoel de Vilhena40 (como de resto sucedeu nos baptizados
dos cinco filhos do casal, sempre apadrinhados por figuras de destaque, nomeadamente o prprio
conde de Oeiras e vrios dos seus familiares41).
Tudo correu bem para o estucador de Bioggio at morte de D. Jos e queda do marqus em 1777.
A partir da, porm, foi o descalabro. O novo governo deixou de reconhecer as benesses concedidas
no anterior regime e Grossi teve de travar uma intensa batalha para conservar a famlia nas casas da
Praa das Amoreiras42. Cegou entretanto e, privado de rendimentos, ter empobrecido at
misria. Quando faleceu, em 26 de Janeiro de 1780, j perdera as casas das Reais Fbricas e habitava
num casebre aos Arciprestes, em S. Mamede onde ficaram a viver a pobre viva e os quatro filhos,
ainda crianas, que sobreviveram ao pai. Morreu sem testamento s 7 da manh e jaz no Loreto,
amortalhado com o hbito de S. Francisco43 (Fig. 7, p. 552).
36
496
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FCSH da UNL e Fundao Ricardo do Esprito Santo Silva, 2014, pp. 175-201.
NIEDERSTEINER, Christoph. Donato Polli 1663-1738. Uno stuccatore ticinese a Norimberga. Muzzano:
Comune di Muzzano, 1991.
RACZYNSKI, Conde Athanasius. Dictionnaire historico-artistique du Portugal. Paris: Jules Renouard,
1846.
497
498
499
A direco tcnica da revista A Construco Moderna era formada pelo engenheiro civil Jos Maria de Mello
de Matos (1856-1915) e pelo arquitecto Rozendo Carvalheira (1863-1919).
2
Marieta D Mesquita Publicaes de Arquitectura entre a Monarquia e a primeira Repblica. Viva a
Repblica. Separata de Jornal Arquitectos, n. 241 (OutubroNovembroDezembro 2010), p. 9.
3
Seralocsenum A Casa portugueza. Revista de Turismo (20 Agosto 1916), p. 28.
500
silhres de castanho, nos seus caracteristicos bancos espaldados, na graa lve e to portugueza das
suas cadeiras de palmatoria.4
As salas de jantar apresentavam caractersticas comuns: lambrins formados por almofadas
rectangulares frequentemente dispostas no sentido vertical, cornijas salientes que rematavam os
prprios lambrins ao mesmo tempo que cumpriam a funo de prateleira; vos almofadados em
madeira envernizada semelhana dos lambris e tectos; guarda-portas; tectos em caixotes ou de
forro com os vigamentos apoiados em cachorros; cadeiras em couro lavrado e de espaldar baixo que
incorporava muitas vezes uma arcaria; mesas apoiadas em arcarias idnticas s anteriores e colunas
com as suas caneluras e acantos.
As cadeiras com os seus suportes nascidos da justaposio de rosrios, discos, cubos ou balastres,
ou ento com espaldar de remate trilobado, remetem-nos mais para um primeiro Barroco. Contudo,
esta Renascena aproximava-se mais dos modelos ingleses e exemplo disso so o lambril da sala de
jantar do Grmio Literrio que cobre a parede at altura das portas, os frisos e bandeirolas com o
seu trabalho elegante de arabescos, as pilastras que assumem a funo de ombreiras das portas. A
relao ntima entre as solues de mobilirio e os apainelados evidente no caso da sala de jantar
de D. Jos Pessanha e a sua soluo modular munida de quadrados envidraados replicada no
biombo, em que os seus planos so separados por apoios estriados, simulando o fuste de uma
coluna, e levemente ritmados por arcos abatidos.
Raul Lino teria vivenciado certamente o reavivar do chamado estylo Renascena enquanto realizou
os seus estudos na Alemanha e alguns dos seus projectos revelam uma reinterpretao sintetizada
do lxico renascentista intersectado com algumas solues de um primeiro Barroco ainda contido na
sua ornamentao. A capacidade de (re)inventar evidenciava-se em cada projecto: O que nas cousas
antigas aprendo, to bem como em muitas obras modernas e estrangeiras, a maneira como se
pode tirar partido dos elementos de que se dispe para produzir obras que correspondam s
variadssimas condies dos meios e fins a que se destinam.5
Na casa de Manuel Emegidio, quer os lambris almofadados quer o mobilirio apresentam
vocabulrio renascentista. A soluo de mobilirio desenhada especificamente para o plano entre as
portas pintadas de branco, integra uma otomana ladeada de dois corpos mais altos que
acompanham o alinhamento dos lambrins e apresenta apainelados rectangulares, formas elpticas,
colunas de capitis jnicos e cornija. O espao preexistente humanizado atravs de intervenes
pontuais. No batente de uma das portas pintadas de branco e munidas de uma tradicional bandeira
em vidrinhos, Lino inseriu uma segunda porta, mais prxima escala humana, soluo que se reveste
da maior originalidade. Uma outra porta da sala revela-nos uma prateleira superior que se destinava
exposio de cermicas e que fazia que a bandeira assumisse uma funcionalidade semelhana do
que acontecia no Barroco.6
Na casa do conselheiro Joo Arroio (1861-1930), evidenciam-se espaos como o hall inglesa,
recuperando-se a sua multifuncionalidade: Antes de consideramos o hall na casa moderna,
necessrio retornar sua forma primitiva, quando a prpria casa era o hall e servia qualquer funo
da vida domstica. Era a que a famlia cozinhava e fazia as suas refeies. Era l que falavam. E
Um artista. Illustrao Portugueza. 2. Srie, n. 260 (13 Fevereiro 1911), pp. 220-221.
Um grande artista decorador: Raul Lino. Illustrao Portugueza. 2. Srie, n. 228 (4 Julho 1910), p. 18.
6
Na grande maioria das nossas casas so suficientes as portas de um s batente quando tenham uma boa
largura (nunca menos de 0.80m). To-pouco se justificam a exagerada altura das portas e o uso das grandes
bandeiras de madeira ou envidraadas. Nunca se consegue um aspecto de conforto onde os vos tm um tal
predomnio sobre os lanos da parede.Apndice I. Excertos do livro A Nossa Casa captulo IV. In Raul Lino
Casas Portuguesas: Apontamentos sobre o arquitectar das casas simples. 11. ed. Lisboa: Cotovia, 1992, p. 89.
5
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quando a noite chegava, era no seu cho coberto de esteiras que dormiam.7 O espao em causa
apresenta um lambril almofadado, que contribui para a integrao de solues de mobilirio. Este
fogo de sala apresenta uma coifa piramidal tambm ela revestida a apainelados mas agora
dispostos de modo desencontrado, apontamento subtil que funciona como acentuao na
composio do espao. Joo Arroio trocava, nesta altura, o seu cargo parlamentar pela viticultura,
constituindo, semelhana de Jos Relvas, um caso de retorno vida do campo que se reflectia no
carcter mais funcional e de menor aparato da casa.8
Quer Lino quer Korrodi, arquitecto suo contratado pelo governo portugus para leccionar no ensino
industrial, foram fundamentalmente influenciados pelos modelos anglo-saxnicos e a vontade de
compreender os nossos valores culturais levaria a que engrandecessem o design de interiores
domsticos. Acompanharam certamente o percurso do design na Alemanha para o qual teriam sido
determinantes Ruskin, Morris e Baillie Scott (1865-1945). Korrodi assinava revistas da especialidade,
nomeadamente a Academy Architecture and Annual Architectural Review (1895-1922).9
Por ltimo, adoptaram no s o lxico de movimentos internacionais, como uma organizao interna
que se afasta das hierarquias vigentes. Este sentido de modernidade faz-se notar, de modo
particular, na obra de Ernesto Korrodi. Exemplo disso ser a Casa do Cnego (1918), situada em
Cortes (Leiria) e encomendada por Manuel Ricardo dos Santos. Uma antecmara antecede o hall de
duplo p-direito, evitando a sua exposio directa s intempries e salvaguardando a sua
privacidade, preocupaes que j se adivinhavam na obra de Raul Lino: Ao entrarmos em qualquer
casa interessante e agradvel sentir que no estamos em lugar pblico, []. Por isso to
aprecivel que haja casa de entrada, vestbulo ou pelo menos bom guardavento que obrigue quem
entra a um compasso de espera, evitando que o lar seja facilmente devassado.10
Um silhar de azulejaria formado por acantos11 evoca uma tradio barroca e a porta de rua destacase devido s linhas orgnicas da sua serralharia artstica. Os mosaicos hidrulicos do pavimento,
formam contornos quadrilobados que circunscrevem uma composio formada por folhas de parra e
trevos, motivos cinza que se destacam sobre o fundo branco. As formas polilobadas so alternadas
com rosa-cruzes envoltas em folhagens azuis. Nas restantes dependncias, exceptuando a cozinha ou
o WC, Korrodi optaria pelos pavimentos em solho inglesa encabeirado. O hall repensado como
espao gerador do programa domstico e o seu tratamento decorativo parece evocar princpios de
composio presentes na Arte Nova internacional.
Todo o espao encontra-se metricamente determinado por alinhamentos e o ornamento, executado
a stencil, submete-se a esta lgica, aparecendo integrado em molduras que compartimentam de
modo rtmico o lambril e a parede, figurando em certas sobreportas. A geometrizao destes
mesmos faz lembrar certos pormenores visveis em obras da Glasgow School e da Secesso vienense:
7
Before considering the hall in the modern house it is necessary to return to the most primitive form of plan,
when the house itself was the hall and served for every function of the domestic life. It was there the family
cooked and ate their food. It was there they talked. And when night came it was on its rush-strewn floor that
they slept. Baillie Scott Houses and Gardens. London: George Newnes Limited Southampton St. Strand,
1906, p. 17.
8
Ao bulicio das salas do palacio do Telhal, cheias de lacas, de estofos, de pinturas, de faianas, de
preciosidades, sempre abertas aos raouts e aos jantares, succedeu a quietao patriarchal do solar de
Almoageme, mobilado praticamente e simplesmente inglesa. O conselheiro Joo Arroyo compositor.
Illustrao Portugueza. 2. Srie, n. 12 (4 Maio 1906), p. 355.
9
Luclia Verdelho da Costa Ernesto Korrodi, 1889-1944: Arquitectura, ensino e restauro do patrimnio. Lisboa:
Editorial Estampa, 1997, p. 302.
10
Raul Lino Casas Portuguesas: Apontamentos sobre o arquitectar das casas simples. 11. ed. Lisboa: Cotovia,
1992, p. 25.
11
Faiana estampilhada em azul e amarelo, proveniente da Fbrica de Loia de Sacavm. N. 375, Des-2141.
Arquivo da Fbrica de Loia de Sacavm.
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caules lineares; quadrados que se inscrevem numa bordadura castanha mais larga de forma
alternada em relao a outros de natureza igualmente abstracta; botes de rosas, ladeados de
acantos e festes sintetizados. As paredes e tecto de fundo creme compensam o maior peso visual
do lambril, semelhana do que Christopher Dresser (1834-1904) aconselhava poca.12 O desenho
das portas almofadadas remete-nos de novo para o movimento Arte Nova, devido ao arco invertido
que separa a base do plano envidraado. O tecto apresenta uma estrutura recticulada de madeira,
sobre a qual assentam as rguas de madeira dispostas ortogonalmente e que, ao longo da moldura
envolvente, apresenta trelias entrecruzadas que evocam um sistema do tipo enxaimel inglesa. A
estrutura enfatizada, desempenhando a dupla funo de suportar e ornamentar. O exemplo
internacional do hall da Villa Stiller revela precisamente este sentido de unidade entre os
ornamentos orgnicos que ocupam o tecto e os das paredes.
A sala de jantar situada no ngulo poente/sul apresenta um tecto em caixotes cujo plano central,
estucado e de forma cruciforme, integra uma cercadura composta por acantos e flores que se
assemelham a flores de ltus, dominada por uma paleta cromtica que incide no ocre, castanho e
verde. Uma das paredes de topo apresenta uma sequncia de arcos reentrantes que assumem um
papel estruturante ao nvel espacial. Um dos nichos recebe a porta e os outros destinam-se
contextualizao de peas de mobilirio. A lareira apresenta uma cantaria em lioz e o nico
apontamento decorativo resume-se a um plano central em u invertido que antecede a cornija e do
qual pendem gotas, ornamentos sediados na tradio clssica. A caracterizao mais intensa desta
dependncia reflecte a importncia hierrquica que esta continuava a assumir como diviso
representativa sobretudo da autoridade masculina, aspecto que se repercutia na solidez das opes
seguidas ao nvel dos acabamentos e mobilirio.13
Orientada a norte e esquerda da entrada, situa-se a cozinha, acessvel por um pequeno vestbulo
que conduz ainda ao WC social ou sala de jantar e do qual partem dois lances de escadas, um que
desce em direco porta de rua e outro de acesso ao piso superior.
Assim que subimos a escadaria principal aberta para o hall, deparamo-nos com um amplo vo em
arco de volta perfeita pintado de branco, mas aqui o peitoril surge revestido com a mesma azulejaria
de padro do vestbulo, pormenor que garante uma continuidade formal entre dependncias ou
zonamentos distintos. Evidencia-se o tecto de masseira, de seco octogonal, que cobre a escadaria
e que integra uma composio de duas molduras: uma exterior composta por caules e folhas
entrelaadas que sugerem ramos de uma videira; outra dominada por um motivo central, uma folha
centralizada com o respectivo caule. Na guarda do varandim, pintada de branco, assistimos,
semelhana do que acontece no da Villa Stiller, a uma alternncia rtmica entre intervalos
constitudos por balastres, intercalados com cubos e decorao plana recortada e padronizada.
O quarto dos donos, situado no gaveto, era iluminado por duas amplas janelas e uma janela de
sacada centralizada que d acesso loggia, similares s tipologias do piso inferior, nomeadamente
do terrao. Um nicho destinava-se a receber a cama. Baillie Scott sugeria que esta fosse, sempre que
possvel, colocada num recesso, ou pelo menos numa posio em que parecesse uma parte
12
A room of a slightly more decorative character would be produced by making the lower three feet of the
wall of a different colour (by forming a dado) from the upper part of the wall: thus, if the other parts of the
room were coloured as in the example just given, the lower three feet might be red (vermilion toned to a rich
Indian red with ultramarine blue) or chocolate (purple-brown and white, with a little orange-chrome).
rd
Christopher Dresser Principles of Decorative Design. 3 ed. London, Paris & New York: Cassel Petter & Galpin,
1930, p. 85.
13
Rachel Rich Designing the Dinner Party. In TAYLOR, Mark; PRESTON, Julieanna Intimus Space: Interior
nd
Design Theory Reader. 2 ed. West Sussex: John Wiley & Sons Ltd., 2008, p. 293.
503
integrante do quarto.14 Este recesso surge ladeado de duas portas: uma de acesso ao corredor e
outra que conduziria a uma antecmara ou toilette.
Por ltimo, programas como este so reveladores das preocupaes higienistas e relativas
comodidade das habitaes. A casa de banho completa dava resposta s novas exigncias
higienistas, integrando loias sanitrias, eventualmente mais tardias, produzidas pela companhia
britnica Twyfords (1680-1982). Nesta altura, como constata Hermann Muthesius (1861-1927),
diplomata na Embaixada alem em Londres entre 1895 e 1903, eram visveis as transformaes
profundas sobretudo sentidas em Inglaterra, onde a presena das casas de banho era assegurada
inclusivamente nos novos cottages dos trabalhadores.15 O lavatrio encastrado numa pea de
mobilirio dava lugar ao lavatrio fixo, encostado parede e assente em braos ou suportes
metlicos verticais ou ento a uma soluo (de seco ovide) que era considerada a mais eficaz na
medida em que era acessvel lateralmente.16 A madeira que revestia as banheiras ou as prprias
paredes fora praticamente banida pois a cermica apresentava vantagens evidentes em termos de
limpeza. A banheira passa a elevar-se numa altura suficiente para que o pavimento seja limpo
diariamente ou ento ocupa os cantos (como acontece na Casa do Cnego) e o seu bordo cermico
mais ergonmico.17 Muthesius conclua que este era um estilo distinto, artstico no melhor sentido
da palavra: Se os acessrios ornamentais, que sempre destroem a aparncia geral de uma casa de
banho, forem realmente afastados, um carcter verdadeiramente moderno ser alcanado.18
As mudanas sentidas no espao domstico no decorrem, portanto, apenas de experimentaes no
mbito da linguagem19 mas tambm nos mbitos tipolgico, funcional, hierrquico, construtivo e
tecnolgico. Estamos perante espaos interiores, por um lado mais pragmticos sob o ponto de vista
da sua funcionalidade e relaes hierrquicas, por outro, reveladores do papel estruturante e
unificador assumido pelo ornamento e mobilirio. Os projectos revelariam a gnese do design de
interiores enquanto aplicao prtica de conceitos e pressupostos espaciais, correspondendo em
alguns casos a antecipaes da modernidade.
14
M.H. Baillie Scott On the choise of simple furniture. Studio. London: The Studio. Vol. 10 (April 1897), p. 154.
Hermann Muthesius The English House [Das English Haus. Berlim: Wasmuth, 1904]. London: Frances Lincoln
Publishers, 2007, p. 235.
16
Hermann Muthesius Ibidem, p. 237.
17
Hermann Muthesius Ibidem.
18
[] if ornamental accessories, which always destroy the general appearance of a bathroom, are really kept
out, a truly modern character will be achieved. Hermann Muthesius Ibidem, p. 237.
19
O assunto e a ocasio determinavam o estilo.Manuel Rio-Carvalho A Arte Nova, Modernidade
domesticada, sentimentalidade projectada. In Esttica do Romantismo em Portugal: Actas do Colquio. Lisboa:
Grmio Literrio, 1974, p. 251.
15
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505
506
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507
508
Texto feito com base em PINTO, Paulo Tormenta. Cassiano Branco (1897-1979): Arquitectura e Artifcio. Casal
de Cambra: Caleidoscpio, 2007;
2
FRANA, Jos-Augusto. Cassiano por Paradoxo in AA. VV. - Cassiano Branco: uma obra para o futuro, ed.
Cmara Municipal de Lisboa, Pelouro da Cultura. Lisboa: Edies Asa 1991;
3
SRGIO, Antnio. O Reino Cadaveroso. Obras Completas Ensaios, Tomo II. Lisboa: Livraria S da Costa
Editora, 1926;
4
FRANA, Jos-Augusto. Cassiano por Paradoxo in AA. VV. - Cassiano Branco: uma obra para o futuro, ed.
Cmara Municipal de Lisboa, Pelouro da Cultura. Lisboa: Edies Asa, 1991;
509
Vinha e do Vinho (1941), atravs de um telhado piramidal, interceptado por um arco ao centro e
coroada por grandes pinculos, ao gosto barroco. Os outros dois corpos mais baixos, de cobertura
amansardada, apresentavam um ritmo de vos constante, enquanto ao nvel da Avenida uma galeria
contnua de arcadas marcaria o ritmo da arquitectura para os pees, sendo o ingresso localizado no
eixo de simetria do edifcio.
A Avenida da Liberdade seria uma vez mais palco para uma das realizaes de Cassiano. Desta vez a
Avenida receberia o gigantismo de um arranha-cus que (apenas com 16 andares) romperia a
pacata crcea do boulevard. O projecto de Cassiano, tal como O Avejo Lrico de Antnio Pedro,
pressupe uma estranha pea teatral onde os actores se movem num palco limitado por um cenrio
de pequenas dimenses. O arranha-cus de Cassiano, moderno pelo programa, apresenta-se arcaico
e historicista em termos compositivos. Em Antnio Pedro o gigante Avejo tem mos que apesar de
grosseiras adquirem a leveza de asas de pssaro, sendo a figura do temerrio gigante contrastada
com a cndida flor que, delicadamente, transporta. No imaginrio de Antnio Pedro os gigantes,
cruis, violentos, plenos de humor, de carne e sexo, so recusados pelo prprio exagero da sua
necessidade fsica5. Uma metamorfose to trgica como a de Cassiano, que igualmente luta contra
um espao e um tempo irremediveis, que colocam na mesma cena os homens e os fantasmas da
sua prpria existncia.
Cassiano apresentava esta audaciosa proposta com a inteno de publicar um livro cujo ttulo seria
Lisboa do Presente e do Futuro, uma obra que visava antecipar os sculos futuros, um escrito, tal
como explicava o arquitecto, para abordar o problema da construo habitacional em Lisboa, um
livro que falaria da ausncia de mecanismos de controlo urbanstico na cidade, afirmando que aquilo
que existia eram apenas linhas gerais, esquemticas, sem o menor valor tcnico, e umas tentativas
de pormenor de algumas ruas e praas6. Cassiano Branco afirmava-se como um defensor da classe
mdia que, segundo ele prprio, assistia ao aumento dos preos dos imveis sem que tivesse acesso
habitao nos edifcios de grande porte que se estavam construindo em Lisboa. Chegava mesmo a
dizer que dentro em breve com esses grandiosos e desabitados edifcios a cidade dar-nos- o
aspecto dum admirvel cenrio para uma pea como Electra e os seus Fantasmas7 .
Ainda assim a resposta da Cmara Municipal de Lisboa, pela mo do seu director dos Servios de
Urbanizao e Obras, Eng. Frederico Ulrich, no se fez tardar, repudiando as afirmaes de Cassiano
Branco, bem como a ideia de construir um arranha-cus em Lisboa. A Cmara considerava que Lisboa
no tinha as mesmas necessidades que algumas cidades da Europa e Amrica, que haviam
experimentado aquele modelo tipolgico, e deste modo rejeitava terminantemente qualquer ideia
semelhante, que iria destruir a crcea da Avenida.
Apenas uma dcada depois, Cassiano Branco consegue dar corpo ideia de construir um arranhacus em Lisboa. O alto edifcio foi erigido, em 1951, na Praa de Londres, caracterizando-se pelo
balco imperial do primeiro piso e por uma esguia cobertura de quatro guas, encimada por uma
esfera armilar. Este arranha-cus de 11 andares representa a fuso da inspirao barroca joanina da
a cultura americana dos edifcios em altura.
Numa espcie de contracorrente em relao ao curso da histria, Cassiano Branco invertia, em
definitivo, o rumo intenso da sua arquitectura dos anos 1930. A arquitectura de Cassiano Branco que
havia entrado em cena, estabelecendo um dilogo com a cultura internacional, da Citt Nuova de
SantElia s villas de Mallet Stevens, aos armazns de Mendelsohn, ou a Hilversum de Dudok,
sucumbia numa profunda intriga quase to-somente com a cultura nacional do passado, atravs da
evocao dos mitos que esto presentes na identidade portuguesa. Os pujantes ensaios
5
Ver FRANA, Jos-Augusto. A pintura do Avejo Lrico de Antnio Pedro in Da Poesia Plstica, Lisboa, 1951;
AA.VV. Lisboa do Futuro Projecta-se a Construo dum Arranha-Cus na Avenida da Liberdade in Dirio de
Lisba, 15 de Maro de 1943;
7
Idem;
6
510
vanguardistas, realizados por Cassiano Branco nos inmeros prdios de rendimento dos anos 1930,
que se diluam no crescimento da cidade moderna ao longo das novas avenidas, transformavam-se
agora em protagonistas da cena urbana, ostentando fragmentos formais de um passado
arquitectnico inspirado na cultura portuguesa.
A arquitectura de Cassiano Branco, desta poca, no se materializava apenas numa procura estilstica
do passado, caracterizava-se tambm por uma justaposio de elementos, todos eles
redimensionados. Esta superao realista da obra de Cassiano Branco visvel na desmesura da
chamin do arranha-cus da Praa de Londres, nas espessas cantarias que emolduram as janelas, na
improbabilidade dos pinculos que encimam a construo, na delicadeza da esfera armilar que
remata o telhado pontiagudo. A revista Arquitectura Portuguesa e Cermica e Edificao (Reunidas)
n 165, de 1951, dedicava um extenso artigo ao Arranha-cus da Praa de Londres, edifcio
promovido pela Sociedade Industrial de Construes, Lda., que com os seus 60 metros de altura era
o mais alto at poca construdo em Portugal. A dimenso multifuncional do edifcio permite
conjugar, depois da cave onde se situa a habitao do porteiro e as arrecadaes, reas destinadas a
comrcio no piso trreo, com um requintado programa habitacional que se desenvolve de acordo
com o permetro da torre e dos corpos mais baixos situados na Praa de Londres e Avenida de Roma.
Os ltimos pisos contemplam espaos destinadas a escritrios, estdios e gabinetes de trabalho
para arquitectos, engenheiros, etc.8. A variao programtica que vai ocorrendo no
desenvolvimento vertical do edifcio transforma-o numa espcie de cidade em altura, contida e
delimitada por uma membrana temtica que relaciona a construo com a cidade em geral.
O tematismo de Cassiano Branco vai alm de uma simples produo de inspirao nacionalista, a
enfatizao de determinados momentos do projecto promove um outro entendimento da sua obra.
A pretenso de uma aco conciliadora entre modernidade e tradio, que, como sugeria Thomaz
Ribeiro Colao, deveria ser procurada numa fico portuguesa, implacavelmente portuguesa, dentro
da qual os aperfeioamentos do moderno fossem conquistas9, surge em Cassiano Branco em
composies que agigantam a escala dos elementos rebuscados ao passado. Um super-realismo
informa a leitura dos seus edifcios deste perodo ou, eventualmente, um involuntrio surrealismo.
Ibid.;
COLAO, Thomaz Ribeiro. Elogio a Lisboa Antiga in AAVV A Arquitectura Portuguesa e Cermica e Edificao
(Reunidas), 3. srie, n. 3, Junho de 1935;
9
511
A experincia do Portugal dos Pequenitos galga os muros do parque de Santa Clara e assume-se
como discurso retrico da arquitectura de Cassiano, afirmando-se como possibilidade estilstica.
tambm este o entendimento que orienta o edifcio da Junta Nacional da Vinha e do Vinho, de 1941,
situado na esquina da Rua Mouzinho da Silveira com a Rua Rosa Arajo. Neste edifcio Cassiano
Branco elabora uma arquitectura aparentemente nacionalista, em que o edifcio se adapta
morfologia do quarteiro, tendo elegido a esquina para realizar a marcao do ingresso. A
experincia de observao deste projecto no local convida a uma anlise particular da proporo das
formas, aquilo que aparentemente teria a simples leitura de uma justaposio de elementos
estilizados da arquitectura portuguesa de outros tempos, apresenta-se como uma mescla de
fragmentos dspares de proporo encorpada. A inspirao barroca, presente no edifcio da Praa de
Londres, surgia igualmente nesta construo visvel no desenho da cobertura e na afirmao dos
pinculos que pontuam os limites do edifcio. O contraste desta aportao joanina d-se na
conjugao com os vos, rasgados horizontalmente e emoldurados em espessas cantarias,
lembrando a arquitectura apalaada do Norte de Portugal. Simetricamente em relao ao ingresso,
duas enormes aberturas so tratadas com um sistema de grelhas inspirado em construes
vernculas do Alentejo. Alm destes elementos, um enorme escudo de Portugal sustm a obra como
construo do Estado. O lettering moderno que, tal como uma poesia visual, identifica o edifcio pesa
sobre a porta (estreita e de pequena dimenso em relao restante construo), aparecendo
colocado entre duas pequenas janelas. O gigantismo desta obra torna-se ambguo, pela espessura
corpulenta e baixa da edificao. Esta arquitectura que se constri sobre uma esttica que
aparentemente se referencia no orgulho nacional, acaba por assumir-se pelo excesso como uma
ironia da prpria condio portuguesa.
O que atribui especificidade obra de Cassiano Branco o modo como trabalha os dados recolhidos,
isolando a sua obra em relao dos seus contemporneos. Na obra de Cassiano os dados do
passado so reconvertidos num dimensionismo10 que lhes amplia a evidncia. este o processo
que lhe permite ajustar ao tempo presente uma arquitectura formulada atravs do collage do
passado. A pesquisa sobre a arquitectura portuguesa que Cassiano inicia com o Portugal dos
Pequenitos permite-lhe elaborar, atravs da historia, recortes de erudio que, remontados, se
tornam de fcil apreenso pelas massas.
A cidade, em particular Lisboa, emerge como campo de aco de Cassiano Branco, a sua arquitectura
implanta-se na estrutura da cidade pr-delineada, sendo na relao que os factos arquitectnicos
estabelecem entre si que Cassiano monta o enredo urbano. Foi este processo que lhe permitiu, em
sucessivos momentos, deixar a sua marca, quer na dcada de 1930, em abstractos jogos de
plasticidade, que qualificam longos eixos urbanos a Avenida Antnio Jos de Almeida, a Avenida
Pedro lvares Cabral ou a Rua Nova do Arco de So Mamede , quer depois da dcada de 1940, na
densidade de edifcios como o da Junta Nacional da Vinha e do Vinho, o arranha-cus da Praa de
Londres ou a esquina da Avenida Fontes Pereira de Melo, n. 25 (de 1948).
Se na dcada de 1930 as sries de edifcios de acompanhamento exploravam as cambiantes de uma
observao em movimento, a partir dos anos 1940, o ambguo monumentalismo de expresso
nacionalista das operaes pressupe uma outra relao, de maior permanncia. Os edifcios
emergem no contexto da cidade lanando pistas para um outro quadro de relaes. isso que
acontece entre o arranha-cus da Praa de Londres e o prdio da Avenida de Roma, n. 54 (de 1951),
este ltimo encimado por um elemento escultrico representando um pedreiro, ou construtor.
10
FARIA, Dutra. De Marinetti aos Dimensionistas. Conferncia lida na I Exposio dos Artistas Modernos
Independentes, em 20 de Junho de 1936, Edio Imprio, Lisboa, 1936. Ver o manifesto redigido por Charles
Siriato, conhecido por dimensionismo que contm as assinaturas de Antnio Pedro, Moholy-Nagy, Arp, Robert
Delaunay, Marcel Duchamp, Picabia, entre outros.
512
A figura escultrica parece controlar toda a Avenida de Roma, sobretudo quando se analisa desde o
topo norte. Acima da silhueta dos prdios irrompe a escultura do grande construtor e ao longe, o
telhado aguado do arranha-cus da Praa de Londres. Estas duas realizaes marcam o recorte da
Avenida com o cu.
No cenrio urbano, uma personagem to antagnica entre o trolha pintado por Jlio Pomar (em
1947) e a evocao manica parece observar do alto os movimentos da cidade, coroando o prdio
e relacionando-se distncia com o ornamentado building da Praa de Londres. Neste particular
momento de remate da cidade com o cu revela-se a cidade de Cassiano Branco, que acontece no
fugaz mapeamento que podemos construir sobre o planeamento das avenidas.
A cidade de Cassiano edifica-se numa base geogrfica imersa na Lisboa cannica, estabelecendo um
quadro de relaes prprias que o arquitecto emoldura numa efabulao narrativa que paira sobre
as ruas e avenidas, tal como O Avejo de Antnio Pedro.
513
Fig. 3 (a) Cassiano Branco: Seco Metropolitanas, Pavilho da Provncia da Estremadura, 1944 [Esplio
Cassiano Branco, Arquivo Municipal de Lisboa/PT/AMLSB/CB/01/12/07]
Fig. 3 (b) Cassiano Branco: Ninho dos Pequenitos de Sta. Clara. Sntese de Coimbra, ptio, 1940.
[Esplio Cassiano Branco, Arquivo Municipal de Lisboa/ PT/AMLSB/CB/01/01/09]
514
515
516
(com Jos Daniel Santa-Rita). A partir dos anos 1970, Manuel Vicente evolui no sentido de uma
abordagem cada vez mais literria e anti-racionalista, que implica o uso da colagem, da rplica, da
ampliao, do uso da cor e de uma saturao da geometria. O resultado um espao denso,
labirntico, electrizado. Macau um territrio disponvel para este projecto. Um recorrente uso de
grelhas geomtricas, com base no quadrado, formula a ordem que escapar sempre. No so
traados reguladores mas dispositivos fsicos que permanecero na previsvel runa dos edifcios.
Ou que, num uso hiperblico, produzem o efeito contrrio ordem: no Arquivo Histrico, a grelha
quadrangular utilizada como um vrus em propagao, um geometrismo que esconde a sua lgica,
criando um espao labirntico e saturado. A interveno na Casa dos Bicos uma transposio
directa da teoria e da prtica de Macau para um edifcio patrimonial em Lisboa, e significa, em
qualquer contexto, um excesso da forma e do no correspondente significado. O desenho das
molduras das janelas, na fachada reconstituda, feito por Antnio Marques Miguel, em evocao
livre do manuelino, acrescentando ao edifcio ainda outra camada ficcional.
Antnio Marques Miguel outro arquitecto que nos interessa mapear. O Hotel do Cabrestante
(Funchal, 1986), um projecto no realizado, a demonstrao de um formalismo exuberante, onde a
arquitectura carregada nos seus extremos. A obra de Marques Miguel remete para um demasiado
arquitectnico, onde at o acidente geometrizado. A obsesso pela geometria tem tambm aqui
uma presena que supera qualquer veleidade ordenadora; transborda para um subconsciente
activado pelo projecto.
Regressando aos anos 1960/70, para fecharmos este ciclo, Marcelo Costa um arquitecto com uma
motivao plstica e grfica que est para l do exerccio racionalista ou orgnico da corrente
moderna. No Navio Azul (Funchal, 1969-74), faz uma obra pop, ao aparentar o edifcio com a
figurao de um barco. Mas a coreografia de um barco permanentemente em terra, construdo na
avenida marginal do Funchal, tem tambm uma inscrio surrealista, que possvel reencontrar na
sua produo, nomeadamente no projecto para o Auditrio Kodak, em Los Angeles.
Em Mapping the Postmodern, Andreas Huyssen escreve: o ps-modernismo dos anos 60 era
caracterizado por uma imaginao temporal que exibia um poderoso sentido de futuro e de novas
fronteiras, de ruptura e descontinuidade, de crise e conflito generalizado, uma imaginao
reminescente de antigos movimentos vanguardistas continentais como o Dada e o surrealismo.
Nesse sentido, propomo-nos ainda entender o ps-modernismo como um surrealismo avanado
com a incluso do pop do final de sculo.
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518
gabinetes centrais, obra pblica onde regras e programas nacionais se adaptam a circunstncias
locais. Olhando para o Algarve, as relaes entre as correntes modernista e regionalista foram
analisadas num contexto concreto, perante condicionantes especficas e em negociao com
costumes enraizados, procurando adoptar uma perspectiva deslocada dos modelos tericos
construdos sobre o tema, em sedes metropolitanas, ento e em momentos posteriores. O Algarve,
com caractersticas e tradies arquitectnicas que capturaram a ateno de uma mirade de
posies e tendncias ao longo do sculo das mais conservadoras s mais progressistas , surge
como um caso especialmente pertinente para um estudo desta natureza.
Partindo de uma amostra ampla de objectos desenhados e/ou edificados quotidianamente e da
anlise dos contextos sociais e culturais, das tradies prevalecentes e ultrapassadas e do papel de
diferentes intervenientes no mbito construdo, quis-se assim ampliar o universo habitual de
referncias cannicas da histria e cultura arquitectnicas portuguesas, contribuir para a integrao
de objectos e fenmenos pouco considerados em narrativas assentes nas melhores obras dos
autores j consagrados, e reiterar a importncia que a arquitectura de todos os dias tem enquanto
expresso de perodos, prticas e correntes locais, nacionais e internacionais. Tomando inspirao
das palavras de Summerson e do seu sentido, este ensaio pe em relevo a arquitectura bread-andbutter que preenche cidades, vilas e lugares de Portugal atravs do exemplo da habitao de
promoo pblica no contexto algarvio.
Quando o foco de estudo transferido das obras constituintes do cnone para os objectos
quotidianos, um efeito secundrio torna-se aparente: as primeiras, solidamente enraizadas na
cultura arquitectnica dominante e ento revisitadas, mostram-se mais tal como elas so e menos
como essa mesma cultura os construiu e, eventualmente, revelam-se elas prprias objectos feitos
de pragmatismo e circunstncia, ditados por imperativos bread-and-butter. Despidos da carga e do
simbolismo que as grandes narrativas estabelecidas lhes outorgam, e suspensas estas por um
momento, tais objectos ganham novos estratos de significado e a nossa leitura sai enriquecida,
permitindo-nos rectificar distores resultantes de uma certa cristalizao caracterstica das grandes
narrativas, por vezes acentuadas pelo efeito de distncia entre o objecto e o nosso olhar.
De entre o universo relativamente extenso de exemplos possveis para ilustrar este argumento, este
texto explora o caso dos bairros de habitao operria e econmica projectados e/ou construdos
para/em Olho entre a terceira e quinta dcadas do sculo. Sucede que um destes projectos, o
Bairro Municipal de Carlos Chambers Ramos (1897-1969), erguido em cone pela cultura
arquitectnica portuguesa mas nunca realizado, veio por via deste processo de canonizao a
ensombrar a histria, e a existncia mesma, de uma srie de outros projectos, esses sim realizados e
exemplares de um dos eixos da arquitectura bread-and-butter a que se referia Summerson: a obra de
encomenda pblica para realizao em grande escala. Arquitectos e engenheiros portugueses
estiveram, ainda desde a Primeira Repblica mas especialmente no perodo fascista, em grande
medida dependentes desta encomenda, tanto enquanto servidores pblicos como enquanto
profissionais liberais. No se tratava da pequena encomenda do promotor ou construtor civil (o grau
mais quotidiano literalmente desta arquitectura no excepcional), mas sim da obra que, a partir
da definio de tipos optimizados para aplicao nacional, foi ajustada a circunstncias locais e
preencheu malhas urbanas inteiras, substancialmente ampliando os centros urbanos.
Suspendendo a narrativa comummente adoptada pelo discurso histrico para descrever e
compreender o Bairro Municipal, investigando o seu contexto e inserindo-o numa cronologia
alargada, o projecto despido da sua aura historiogrfica e ganha textura real. Ele forma parte de
uma srie de operaes econmicas, pragmticas, lanadas em resposta a exigncias concretas e
consideraes de ordem material e tecnolgica: uma leitura que recupere estas dimenses
quotidianas dar, sugere-se aqui, outra consistncia a obras por vezes reduzidas ao papel de
estampa ilustrativa de determinado conceito. As qualidades reais da prtica de todos os dias da
Arquitectura do Ganha-po podem enriquecer a vida histrica das obras icnicas.
519
1925
Olho era, na dcada de 1920, um importante centro piscatrio e conserveiro do Algarve, cujo
relativo progresso industrial se reflectia negativamente em condies habitacionais deficientes,
densidade excessiva e salubridade inexistente. O mesmo tecido urbano que despertava o interesse
de autores locais, nacionais e estrangeiros enquanto sntese de traos exticos (mouros) e
modernistas, com os seus volumes puros em crescimento piramidal era causa de ansiedade
poltica, de degradao fsica e moral, e um cenrio perfeito para conspiraes operrias e
actividades ilcitas (p. ex. o contrabando, cf. Brando 1924).
Os industriais conserveiros, ainda no perodo republicano, instalam trabalhadores em armazns
adaptados e improvisadas ilhas que baptizam com seu nome e perpetuam deficincias (Rodrigues
1997, 243). Alguns vo mais longe: Cndido do Ventura (1893-1968), industrial e figura local, pediu
ao seu cunhado Carlos Chambers Ramos, tirocinante em arquitectura, que desenhasse um conjunto
de 15 casas para os seus operrios. O chamado Bairro Operrio Lucas & Ventura construiu-se junto
fbrica da sociedade, em 1924-1925, e foi uma operao modesta de habitao mnima e
equipamento colectivo sumrio (sanitrios e lavadouro), que respondia a problemas recorrentes da
habitao olhanense, como a falta de iluminao e ventilao naturais: um layout em redans em
torno de uma rua interna multiplicava as paredes exteriores, replicando solues tpicas em
habitao operria do virar-do-sculo. Empreendedor, Ramos publicou a obra em publicaes
lisboetas, como valiosa etapa nas artes decorativas nacionais, pela sua estilizao e pela sua
maravilhosa adaptao s necessidades regionais (Ann. in Europa 3, 1925: 15). Esta foi, contudo,
um exemplo de pragmatismo e resposta s circunstncias locais. O prprio autor descreveu como,
embora tentado a conservar o carcter cubista da maioria das construes [de Olho, foi] levado,
por um critrio de conjunto, a cobrir esta srie de pequenas casas por coberturas vulgares, tendo no
entanto o cuidado de empregar na sua construo materiais exclusivos da regio (Ramos in
Arquitectura 9, 1927: 133). Entre a experimentao arquitectnica combinando influncias
estrangeiras com formas populares protomodernistas, e a resposta discreta a uma encomenda
modesta, prevaleceu a segunda. Grandes superfcies caiadas, telhados de quatro guas e volumosas
chamins evocam o carcter de um Sul genrico, comedido e abstractamente regional, mais do que
as apregoadas qualidades plsticas especficas da casa olhanense. O pragmatismo construtivo e
econmico de Ramos possibilitou a realizao da obra, que resistiu cinquenta anos at dar lugar, em
1988, a edifcio de habitao para rendimento em altura (Olho-CMO/SOPM-760/1987). sua
eliminao fsica correspondeu a eliso historiogrfica: como j foi sugerido, o carcter conservador
da proposta de 1924-1925 liga mal com a reputao histrica de Ramos como pioneiro do
modernismo em Portugal (Pinto 2010, 344). O Bairro Lucas & Ventura, primeira obra, objecto
pragmtico, realizado e vivido, quase desapareceu como referncia de estudo, substitudo que foi
nesse papel pelo Bairro Municipal.
1930
Casado com uma olhanense, Ramos continuou entretanto a projectar e a construir em Olho nos
anos 1920: o Asilo para a Velhice de 1925 (Almeida 1986) ter sido realizado em 1926-1928 (Nobre
1984, 127-128) segundo as linhas regionais escolhidas para o Bairro Lucas & Ventura. Laos
familiares tero estado igualmente por trs da encomenda do celebrado Bairro Municipal, em data
desconhecida: com efeito, sobre este projecto icnico, referncia constante em estudos e
publicaes, resulta afinal difcil encontrar dados pormenorizados. Entre 1930 e 1931, Ramos fez uso
do projecto na divulgao da sua prtica: exibiu-o em Lisboa no I Salo dos Independentes e
publicou-o em Espanha e na Alemanha, aproveitando os seus contactos internacionais. Aparentando
cumprir o objectivo falhado em 1925, anunciou na revista alem que o bairro se integraria no
evidente carcter rabe de Olho, a vila cubista par excellence (Ramos in Wasmuths
Monatshefte. Baukunst & Stdtebau, Junho 1931: 327). Nove anos e muitas citaes depois, tambm
Ramos empregava a analogia pictrica lanada em 1922 por Antnio Ferro na Ilustrao Portuguesa
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521
522
Notas finais
1. O presente artigo foi escrito entre Agosto e Setembro de 2012, para apresentao pblica em
Outubro do mesmo ano. Na reviso final para efeitos de publicao em rede das actas do IV
Congresso de Histria da Arte Portuguesa, em Outubro de 2014, o autor decidiu proceder apenas a
alteraes mnimas e exclusivamente relacionadas com o cumprimento de requisitos editoriais
(nomeadamente limite de palavras), por acreditar que todos os textos tm um tempo e um local
prprios.
2. Este texto resulta em parte de investigao financiada pela Fundao para a Cincia e a Tecnologia
(Portugal) e desenvolvida pelo autor no mbito da dissertao de doutoramento em Histria e Teoria
da Arquitectura na The Bartlett School of Architecture, University College London, orientada pelo
Prof. Adrian Forty e intitulada Regionalism, Modernism and Vernacular Tradition in the Architecture
of Algarve, Portugal, 1925-1965 (2013). A tese recebeu no Reino Unido o prmio Royal Institute of
British Architects Presidents Award for Outstanding PhD Thesis 2013 e est na base do livro Algarve
Building: Modernism, Regionalism and Architecture in the South of Portugal, 1925-1965, a publicar
pela editora Ashgate em 2015.
3. Os equvocos historiogrficos em redor dos bairros de habitao econmica de Olho foram j
discutidos pelo autor em outros textos, embora sob perspectivas distintas: vejam-se Ricardo Agarez,
Lisboa em Olho / Olho em Lisboa. Histria e Fbula em Trs Bairros de Habitao Econmica,
desde 1925. Monumentos 33 (2013); Metropolitan Narratives on Peripheral Contexts: Buildings and
Constructs in Algarve (South Portugal), c. 1950. In Peripheries, ed. Ruth Morrow e Mohamed Gamal
Abdelmonem. London: Routledge, 2013, 209-24; e Olho, Modern Vernacular and Vernacular
Modernism. In First International Meeting EAHN European Architectural History Network, 128-35.
Guimares (Portugal): European Architectural History Network and Universidade do Minho Escola
de Arquitectura, 2010.
4. O autor agradece em especial ao Sr. Arquitecto Carlos Manuel Ventura Ramos (em homenagem
pstuma), ao Sr. Engenheiro Jos Peres e Sra. D. Ceclia Alves (Cmara Municipal de Olho), pela
colaborao dispensada.
523
BIBLIOGRAFIA
524
. Plne und Entwrfe eines Portugiesischen Architekten von Carlos Ramos, Lissabon. Wasmuths
Monatshefte. Baukunst & Stdtebau, Junho 1931, 325-27.
RIBEIRO, Orlando. Geografia e Civilizao: Temas Portugueses, Espao e Sociedade. Lisboa: Livros
Horizonte, 1979 [1961].
RODRIGUES, Joaquim Manuel Vieira. A Indstria de Conservas de Peixe no Algarve (1865-1945).
Universidade Nova de Lisboa, 1997.
SEGURADO, Jorge. A Arquitectura no 1. Salo dos Independentes, Lisboa. Arquitectura 12, n.
136 (1930): 230-35.
SUMMERSON, John. Bread & Butter and Architecture. Horizon. A Review of Literature and Art VI,
no. 34 (1942): 233-43.
525
Jos-Augusto Frana
Casa de franceses. Dirio de Lisboa, 24/6/1971 (Folhetim artstico de Jos-Augusto Frana)
Intrito
Uma dcada depois do fim da ditadura do Estado Novo (1933-1974), surgiu em Portugal uma
polmica veiculada pela imprensa nacional, centrada nas casas construdas no pas natal pelos
portugueses que nos anos 1960 tinham emigrado para a Europa e sobretudo para Frana (10% da
populao portuguesa em dez anos). Classificadas de no portuguesas, dizia-se das casas dos
franceses que elas desvirtuavam a paisagem. A sua rpida proliferao foi vivida pelas elites
diplomadas portuguesas como uma autntica insurreio esttica, na acertada expresso de
Alfredo Margarido (2001). Perante a ausncia geral de regras de urbanismo (corpo legal que apenas
viria a ser constitudo nos anos 1980/90), a transformao da paisagem rural portuguesa atravs das
casas construdas por emigrantes sem instruo nas suas aldeias de origem operava de baixo para
cima e despoletava a virulncia dos discursos das elites urbanas ao poder das quais escapavam,
ento, a preservao e/ou a construo dessa paisagem.
Se assumirmos que o nosso olhar sobre a paisagem em certa medida a prpria paisagem, que ideia
de paisagem vai no olhar de quem encara as casas dos emigrantes como uma ameaa de destruio?
A questo particularmente sensvel no Minho (noroeste de Portugal), regio de importantes fluxos
emigratrios ao longo da histria. Considerado o bero da Nao e smbolo da identidade
526
nacional, o Minho verdejante tambm visto como o jardim de Portugal. A leitura da memria,
das imagens, dos discursos, das representaes produzidos sobre o jardim de Portugal, nos planos
artstico e literrio, e do(s) (sucessivos) modelo(s) ideolgico(s) que lhe subjazem entre os sculos XIX
e XX, esclarece diversas expresses do actual (no-)discurso sobre a paisagem portuguesa.
Existe uma extensa literatura sobre a noo e a histria da paisagem francesa, italiana, holandesa,
alem ou sobre a paisagem americana. Em Portugal, em contrapartida, a histria da paisagem
encontra-se ainda praticamente por fazer, neste sculo XXI, em que a Paisagem debatida dentro do
contexto da globalizao/mundializao (em 2000, assinava-se, em Florena, a Conveno Europeia
da Paisagem ratificada por Portugal em 2005) e se colocam questes sobre a sua qualidade e a
nossa prpria qualidade de vida.
527
A alegria de uns a tristeza de outros. Alm de levantar a questo dos excessos ou da ausncia de
legislao em contextos nacionais diferentes, este episdio responde algo ironicamente aos
detractores das casas de sonhos (Villanova et al., 1995) (Fig. 1) geralmente elementos da sociedade
bem pensante citadina que, face construo empreendida pelos emigrantes europeus durante
as dcadas de 1960/70, de casas novas, singulares e surgidas na austeridade de um mundo rural
pobre, pretendiam fazer recuar o problema, legislando e impondo a definio, na construo, de
formas, linhas, volumes, revestimentos e cores que no polussem esteticamente a paisagem.
Como se, sem estas casas, a restante construo realizada, ento, no pas obedecesse a uma
legislao desta natureza.
sabido que as casas de Brasileiros construdas pelos poucos emigrantes que, no sculo XIX,
voltavam muito ricos do Brasil, tambm foram criticadas pela sociedade bem pensante de ento,
antes de a patine do tempo as nobilitar ao ponto de hoje pertencerem ao patrimnio arquitectnico
nacional. Da se conclui que aquilo que, a um sculo de distncia, ulcera as elites do pas o carcter
subversivo que assumem as casas desses estrangeirados. As casas dos portugueses que imitam ou
fazem lembrar o estrangeiro e que, por isso, so designados por Brasileiros, Franceses,
Suos, Americanos por quem no foi obrigado a emigrar , projectam alto e forte no territrio
nacional a subverso das relaes sociais existentes, entre classes dominantes e classes dominadas.
A habitao unifamiliar cristaliza a memria de comportamentos, de usos e de relaes
sociofamiliares, laos esses que asseguram a nossa vida quotidiana. Ao construrem casas novas,
slidas, espaosas, com formas complexas e um jogo inesperado de materiais e de cores, os
emigrantes rejeitam as casas antigas e, in fine, o sistema de relaes que as sustm (Fig. 2). Esta casa
nova para um homem novo surgido do confronto entre dois mundos o mundo rural que deixou e as
terras estrangeiras por onde andou a constituir um peclio que lhe permitisse concretizar o seu
sonho traduz claramente os efeitos de um percurso que, num primeiro tempo, passa pela
construo e pela assumpo da sua prpria pessoa. Num segundo tempo, a casa que o emigrante
ergue na terra natal materializa e inscreve no territrio nacional esse processo de autoconstruo ao
mesmo tempo que rompe com o estatuto que lhe cabia dentro da sociedade fortemente
hierarquizada que deixou.
Pelo carcter omnipresente que revestem as casas construdas pelos emigrantes europeus a partir
dos anos 1960/70 no territrio continental portugus, pode considerar-se que, na especfica situao
portuguesa, foi atravs deste vector que se assistiu formao, em larga escala, dos cnones visuais
modernos. Pela sua evidente liberdade de explorao das formas que, em boa parte, se tornara
possvel devido ausncia de legislao em matria de urbanismo, a casa do emigrante constituiu
um laboratrio formidvel de experimentao e de inovao da construo, onde o importante
considerar a sua capacidade de envolvimento e de ddiva, que poder ser julgada em termos de
intensidade do desejo e de capacidade de o cumprir, e no como qualitativo do tipo de gosto. Como
disse o Homem que gostava de cidades (Dias, 2001), os exemplos de bom gosto so-no tambm de
gosto fraco, de coisa frouxa, de capacidade de risco nula, de aventura nenhuma, de imaginao
embotada (Fig. 3). A capacidade de expresso das casas de sonhos indicia o desvio em relao
norma ou, melhor ainda, a capacidade de enamoramento de quem esteve, durante anos,
involuntariamente afastado do pas que ama e para o qual convergiam, dia aps dia, os seus
melhores pensamentos, os projectos e o peclio amealhado, fruto de rduo labor.
528
suscitava no seio da sociedade portuguesa em finais do sculo passado e que parecem manter-se.
Volvidos quinze anos, seria do maior interesse actualizar esta investigao mediante novo inqurito.
Relativamente regio mais emblemtica do imaginrio nacional, o Minho, bero da Nao,
jardim de Portugal e regio de forte emigrao, interessante apresentar estas questes numa
perspectiva cultural e histrica que remonta ao sculo XIX. No apogeu do nacionalismo, em Portugal,
durante o Estado Novo, muitos dos tpicos propostos pelos idelogos nacionalistas na passagem do
sculo XIX para o sculo XX no s foram amplamente revisitados como reformulados au got du
jour da ideologia do regime. Identificar grandes espaos sociais como estados, naes ou regies
sempre um projecto que se serve de processos expeditos (Medeiros, 2007). Entre a lista elementar
desses recursos para dizer uma nao com eficcia encontra-se o reconhecimento de uma paisagem
(arque)tpica, produzida por descries literrias, fixada em telas famosas, tornada amvel e
suscitando a frequncia de um nmero crescente de cidados que, por via desses meios,
nacionalizam as suas referncias culturais. Deste modo se produzem a nacionalizao de referncias
culturais e a sua explorao, ao mesmo tempo que se escamoteiam realidades sociais e econmicas,
que comprometem o mito/ideal que se pretende veicular. Ea de Queirs dizia de Jlio Dinis que
quando este desenhava a realidade o fazia com a pena toda molhada no ideal. Poder aplicar-se o
mesmo ao naturalismo, em pintura. Dentro desta perspectiva, as imagens de paisagem que
vingaram, vindas do sculo XIX, e que foram sendo transmitidas constituem uma maneira que idlica
e idealmente se fixou e para a qual nos habitumos a olhar idlio/ideal esse que os emigrantes
vieram perturbar e, mais do que isso, romper, com as suas casas reais e gritantes de desejo pelo
lugar onde as implantaram.
O Minho que os emigrantes abandonam nos anos 60 do sculo XX tem pouco que ver com a
provncia que se perfila em Portugal: brevirio da ptria para os portugueses ausentes, essa obra,
concebida e realizada com patritica inteno, publicada em 1946 pelo Secretariado Nacional da
Informao de Antnio Ferro e pensada como sntese das especficas realidades da Nao; ou com
a provncia que se desenha ao longo da antologia de textos O Minho, publicada pelo jornalista e
escritor lisboeta Lus Forjaz Trigueiros, em 1958 (Fig. 4); ou ainda com as descries da provncia no
quarto volume do Guia de Portugal, sobre o Entre-Douro-e-Minho, da autoria de SantAnna Dionsio,
editado pela Fundao Calouste Gulbenkian em 1965. O pitoresco, delicioso, imenso e formosssimo
jardim, retalhado em canteiros irregulares, esse idlio rural, poro de cu e de solo mais
vibrantemente viva e alegre, mais luminosa e cantante que proporciona uma lufada de bem-estar
e vive nos seus campos, como os seus campos vivem nele num apertado convvio do solo e do
homem, encerra, do ponto de vista das elites, uma populao activa e remexida que mostra
tanto de religioso como de comerciante e onde a mulher a grande obreira e tem um lugar de
relevo, sendo ela quem mais se v. No fundo, as imagens sobre o Minho veiculadas durante o
Estado Novo repercutem um mundo em vias de extino, que persiste como discurso e por isso
tem valor poltico e ideolgico. Serve toda esta imagtica para ocultar realidades como a dos
impressionantes surtos de emigrao clandestina fomentados pela poltica ambgua de Salazar
(Pereira, 2007), que atingiram a provncia e cujos efeitos (de boomerang) as classes dirigentes
receavam no conseguir controlar. O discurso oficial e oficioso no admite a correlao evidente que
existe entre uma agricultura deficiente, uma indstria ainda incipiente e a emigrao, preferindo os
vrios autores referir quando a reconhecem a emigrao intensa como uma sangria do povo
que, no Minho e mau grado esta realidade, no cessa de arrotear novos bocados de bravio e de
fabricar novos cortelhos e quintalrios (Guia de Portugal, 1965). O povo aparece, assim, como o
heri de uma gesta que, nos anos 1960, continua a ocupar 42% da populao portuguesa activa.
Este fundo de imagens mantm-se vivo na memria colectiva at finais do sculo XX, a despeito de
uma realidade que os dados estatsticos h muito teimam em desmentir cruelmente: o Minho verde
e permanentemente em festa foi sempre pouco produtivo e, por conseguinte, a principal regio
produtora e exportadora de gente. Ora do ponto de vista de todos aqueles que gostariam de manter
intacto o prespio de Portugal, o primeiro grande golpe desferido contra esta Arcdia foi a
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construo de novas casas empreendida pelos prprios camponeses emigrados, na esteira das ditas
casas de brasileiros e que Hans Magnus Enzensberger (1988) qualificou de as casas mais feias do
mundo, acrescentando: Os emigrantes vingaram-se de uma forma terrvel do pas que no havia
conseguido aliment-los. Alfredo Margarido (2001) falaria, mais justamente, de uma autntica
insurreio esttica, ao que acrescentaremos que ela opera do campesinato versus a burguesia
urbana local e nacional, uma vez que aquilo que est em causa a subverso do prprio sistema de
relaes sociais que a referida insurreio esttica exprime de um modo radical (Fig. 5).
Camponeses de boina, carros de bois chiando pelas quelhas, mooilas cantando nas desfolhadas,
arvoredos, passarinhos, sinozinhos das igrejas dos lugares, hortazinhas, moinhos, eiras, solares,
antepassados, rios, lugares, arados (Mnica, 2001) as descries estetizantes, tingidas de
nacionalismo, da dura realidade vivida pelo campesinato de um Minho investido como smbolo
nacional, no apenas de um ponto de vista histrico, mas tambm paisagstico e humano, numa
espcie de enaltecimento unnime das qualidades da provncia, so lugares-comuns sempre
repetidos desde o sculo XIX, mas mais do que nunca por um regime que faz do campo e da famlia a
sua base ideolgica. Alvitrmos, na ltima parte, considerada exploratria, da nossa dissertao de
doutoramento que o olhar idlico sobre a paisagem do Minho veiculado pelas elites literrias do pas
decorre daquilo que Manuel Villaverde Cabral (1974) em tempos designou como o medo do
proletrio: as representaes poticas, imaginrias, irreais, do jardim de Portugal escondero, por
ventura, o propsito no declarado (involuntrio?) do mantimento distncia das classes populares,
fechando-as no seu papel de incansveis, sempre alegres, bem-dispostos e festivos trabalhadores da
terra, ao mesmo tempo que se refuta a sua dura realidade e a soluo de sobrevivncia que
encontraram, a emigrao. O Estado Novo levaria este velho fundo semntico at s suas ltimas
consequncias, de forma declarada, construda e conceptualizada: a Lio de Salazar, ilustrada por
Martins Barata, um exemplo do controlo exercido sobre as classes populares.
530
Fig. 2 Maquete e reproduo de uma casa de brasileiro, integrada na exposio Terra longe, Terra
perto, organizada pelo Museu da Presidncia da Repblica, 2007
531
Fig. 3 Uma casa de sonhos perto de Melgao, com torre de menagem integrada
inspirada na torre do castelo vizinho, dcada de 1980-90 ( Isabel Lopes Cardoso).
532
533
BIBLIOGRAFIA
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2
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3
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4
Octvio Lixa Filgueiras, A Escola do Porto (1940/69) in Carlos Ramos (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian,
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5
Srgio Fernandez, Percurso: Arquitectura Portuguesa 1930/1974 (Porto: Edies da FAUP, 1988 [1985]).
6
Manuel Mendes, Os anos 50, RA Revista da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (ano I, n.
0, Outubro, 1987).
7
Ana Tostes, Os Verdes Anos na Arquitectura Portuguesa dos Anos 50 (Porto: FAUP, 1997 [1994]).
535
Genealogia do Inqurito
Dez anos aps a publicao de Arquitectura Popular em Portugal, Frana14 analisa o Inqurito num
texto em que pela primeira vez delineada a histria do problema da casa portuguesa,
estabelecendo a relao entre ambos15. Mais tarde, o mesmo autor16 clarifica o enquadramento
8
Arquitectura Popular em Portugal (Sindicato Nacional dos Arquitectos, Lisboa, 1. edio, 1961; 2. edio:
Associao dos Arquitectos Portugueses, 1980: 3. edio: Associao dos Arquitectos Portugueses, 1988; 4.
edio: Centro Editor Livreiro da Ordem dos Arquitectos, 2004)
9
Joo Leal, Etnografias Portuguesas (1870-1970), Cultura Popular e Identidade Nacional (Lisboa: Publicaes D.
Quixote, 2000).
10
Rodrigo Ollero, Letter to Raul Lino. Cultural Identity in Portuguese Architecture. The Inqurito and the
Architecture of its Protagonists in the 1960s (Tese de doutoramento, University of Salford, School of
Construction and Property Management, 2001).
11
Vd. Alexandra Cardoso, Joana Cunha Leal e Maria Helena Maia, ed., Surveys on Vernacular Architecture: Their
Significance in 20th Century Architectural Culture. Conference Proceedings (Porto: CEAA, 2012).
12
Pedro Vieira de Almeida, Dois Parmetros de Arquitectura Postos em Surdina: O propsito de uma
investigao (Porto: CEAA, 2010); Maria Helena Maia, Alexandra Cardoso e Joana Cunha Leal, Our Project: The
Popular Architecture in Portugal. A Critical Look. Intercalar results of a research Project in Surveys on
Vernacular Architecture: Their Significance in 20th Century Architectural Culture. Conference Proceedings
(Porto: CEAA, 2012).
13
Vd. Alexandra Cardoso e Maria Helena Maia, Tradition and Modernity: The Historiography of the Survey to
the Popular Architecture in Portugal (Comunicao aceite[Dezembro de 2010] para publicao in Approaches
to Modernity (Porto: CEAA, no prelo).
14
Jos-Augusto Frana, Raul Lino, 106-08.
15
Esta relao foi posteriormente aceite por vrios autores com diferentes pontos de vista.
16
Jos-Augusto Frana, A Arte em Portugal no Sculo XX (Lisboa, Bertrand, 1974).
536
537
Filgueiras oferece uma descrio do ambiente cultural existente naquela altura na ESBAP, cujo
director, Carlos Ramos, estava incumbido de escolher os membros das equipas afectas a estas zonas.
Nessa altura, o gegrafo Orlando Ribeiro assegurou uma srie de master classes naquela escola, e
acompanhou os estudantes numa viagem destinada a demonstrar no terreno o contedo das
mesmas. Mais tarde, os mesmos estudantes participaram em trabalho de campo e levantamentos no
Norte do pas, e tambm colaboraram com a equipa de Jorge Dias, trabalhando sobre o material por
ele recolhido.
neste contexto que se tem de compreender a influncia de Orlando Ribeiro e do seu Portugal, o
Mediterrneo e o Atlntico datado de 1945, que segundo alguns autores contribuiu directamente
para o estabelecimento dos limites das seis zonas geogrficas em que o pas foi dividido para o
levantamento25, leitura que os testemunhos dos intervenientes vm contrariar. Efectivamente, so
os prprios autores que na Introduo de 1961 assumem formalmente uma certa arbitrariedade
na delimitao das zonas, por questes operativas na distribuio das tarefas entre as equipas,
apesar de enquadradas tanto quanto possvel adentro de uma certa unidade regional, ou ento em
tom mais informal comentar que elas foram traadas um bocado a rgua e esquadro26. Alis, o
estudo comparado dos limites geogrficos com os do Inqurito levou-nos j a defender que a
influncia do gegrafo foi sobretudo de ordem cultural27.
Por outro lado, Filgueiras28 testemunha que foi consequncia directa do contacto com a geografia e a
antropologia o facto de, pela primeira vez, uma dissertao em teoria da arquitectura ter sido aceite
para obteno do grau de arquitecto. Trata-se do seu prprio CODA, intitulado Urbanismo: um Tema
Rural29, trabalho que acabou por levar a que fosse escolhido para coordenar a equipa da Zona 2,
Trs-os-Montes. Seguiu-se-lhe Arnaldo Arajo30, outro membro da mesma equipa, com um CODA
dedicado s Formas do Habitat Rural Norte de Bragana: Contribuio para a estrutura da
comunidade.
baseado neste trabalho que Vieira de Almeida e Maia31 chamam a ateno para o facto de ser
precisamente Arnaldo Arajo que, em conjunto com Viana de Lima, Fernando Tvora e O. L.
Filgueiras, vai lanar um estudo integrado para uma comunidade agrcola em Trs-os-Montes,
apresentado pela equipa CIAM Porto32 no CIAM X, em Dubrovnik, no ano de 1956. Por sua vez,
Tostes33 destaca o forte contributo deste trabalho, directamente ligado com o Inqurito ento em
25
538
539
as equipas terem partido para o terreno militantemente dispost[as] a ler a diversidade, tudo o que
no territrio nacional resulta desuniforme, desconexo41. esta atitude que o prefcio 2. edio
da Arquitectura Popular em Portugal legitima historicamente atravs da deliberada e circunstancial
estratgia de contrariar uma alegada interpretao oficial.42.
A questo metodolgica
A questo metodolgica um dos aspectos problemticos do Inqurito e tambm um dos que tem
recebido menor ateno. Efectivamente, a maioria dos textos que se debruam sobre o tema limitase a descrever aspectos factuais da realizao do Inqurito e a analisar os seus antecedentes e
consequncias.
Vieira de Almeida43 o primeiro autor a concentrar-se no Inqurito em si, destacando o problema de
uma total ausncia de uma metodologia comum entre as equipas. Isto ser confirmado mais tarde
por Teotnio Pereira44, lder de uma das equipas, no prefcio 3. edio da Arquitectura Popular em
Portugal.
Por outro lado, embora reconhecendo a diversidade dos resultados, Tostes45, baseando a sua
argumentao num alegado documento escrito por Keil do Amaral, defende a existncia de um plano
prvio e de directrizes comuns para todos os grupos, de modo a assegurar a unidade do trabalho.
Estas directrizes teriam sido baseadas na ateno a vrios aspectos: ocupao do territrio, []
estruturao urbana, [...] expresso e valor plstico dos edifcios e dos aglomerados urbanos, []
materiais e processos de construo, [] influncias do clima, [] condies econmicas, []
organizao social, [] costumes e hbitos das populaes46.
Mais tarde, Ollero faz referncia a outro documento que, segundo este autor, foi tambm escrito por
Keil. O documento consistiria no esboo de uma carta, escrita para as equipas do Norte, que, no seu
entender, revela um mal-entendido entre as equipes do norte e do sul acerca de como o trabalho
deveria ser feito, especialmente sobre a dimenso e capacidade do que eles tinham que fazer, de
uma maneira muito diferente do que acabou por ser feito47.
Na verdade, j Mendes48 defendera que o trabalho das equipass do Norte foi diferenciado por uma
abordagem cuidadosa de valores espaciais, embora tenhamos dvidas quanto a saber se foi
realmente uma deciso tomada pelas equipas, ou se essa a prpria interpretao do autor.
Uma anlise mais detalhada da metodologia do Inqurito, ou da falta dela, foi realizada
recentemente, deparando-se com a real impossibilidade de realizar uma leitura do conjunto a partir
dos quadros publicados, o que obrigou a uma sua reelaborao49.
41
Pedro Vieira de Almeida, Apontamentos para uma Teoria da Arquitectura (Lisboa: Livros Horizonte, 2008),
110
42
Pedro Vieira de Almeida, Apontamentos.
43
Pedro Vieira de Almeida, Carlos Ramos:Uma estratgia de interveno in Carlos Ramos (Lisboa: Fundao
Calouste Gulbenkian, 1986).
44
Nuno Teotnio Pereira, Prefcio 3. edio de Arquitectura Popular em Portugal (Lisboa: Associao dos
Arquitectos Portugueses, 1988 [1987]).
45
Ana Tostes, Os Verdes Anos.
46
Keil do Amaral apud Rodrigo Ollero, Letter to Raul Lino.
47
Rodrigo Ollero, Letter to Raul Lino.
48
Manuel Mendes, Os Anos 50.
49
Vd. Pedro Vieira de Almeida, Dois Parmetros; e Maria Helena Maia, Alexandra Cardoso e Joana Cunha Leal,
Our Project.
540
Nuno Teotnio Pereira, Reflexos Culturais do Inqurito Arquitectura Regional in J-A (n 195, Maro/Abril
2000).
51
Nuno Portas, Arquitecto Fernando Tvora: 12 anos de actividade profissional, Arquitectura (3. srie, 71,
Lisboa, Julho, 1961).
52
Nuno Portas, Arquitecto Fernando Tvora.
53
Nuno Portas, A Evoluo, Ana Tostes, Os Verdes Anos.
54
Ana Tostes, Modernizao e Regionalismo 1948-1961 in Arquitectura do Sculo XX. Portugal, editado
porAnnette Becker, Ana Tostes e Wilfred Wang (Portugal-Frankfurt 97, 1997), 41-53.
55
Srgio Fernandez, Percurso; Pedro Vieira de Almeida e Maria Helena Maia, As dcadas.
56
Manuel Mendes, Porto: The School and its Projects 1940-1986 in Architectures Porto (Brussels: Pierre
Mardaga, 1990).
57
Nuno Portas, A Evoluo.
58
Srgio Fernandez, Percurso.
59
Pedro Vieira de Almeida e Alexandra Cardoso, Arnaldo Arajo.
541
poeta oriundo tambm da ESBAP, exerceu uma influncia cultural unanimemente reconhecida,
tendo j sido colocada a hiptese de que esta abordagem multifuncional com razes antropolgicas
e etnogrficas tenha influenciado a implementao e desenvolvimento das aldeias comunais em
Moambique60.
De facto, j no seu CODA, Arnaldo Arajo entendia que era no esforo para a anlise e deteco de
necessidades concretas das populaes concretas, bem como de empenhadas propostas locais de
interveno que poderia vir a estabelecer-se a base de um novo regionalismo61. E ao concluir
sublinha que o arquitecto portugus, sem ter de abandonar ou diminuir (e sem poder faz-lo) as
suas relaes com as linhas universais (tcnicas e estticas) da arquitectura moderna, mais se
aproximasse das realidades do seu povo, se fizesse intrprete das suas virtualidades, construsse uma
radicada arquitectura portuguesa, universal pois.62.
Por outro lado, Teotnio Pereira63 observa que uma das consequncias mais imediatas do Inqurito
foi a sua contribuio para a expanso da noo de patrimnio arquitectnico para a arquitectura
popular e para os assentamentos rurais, sendo indiscutvel que o Inqurito Arquitectura Regional
constitui um importante registo de uma realidade rural que quase desapareceu de imediato.
Mas a recolha fotogrfica que foi publicada forneceu um renovado repertrio formal de elementos
arquitectnicos uma verdadeira Bblia nas palavras de Vieira de Almeida64 e de Siza Vieira65, que
teve como consequncia inesperada o serem apropriados para empreendimentos tursticos,
especialmente em muitas das construes tpicas da rea costeira do pas, pervertendo o efeito
crtico originalmente pretendido.
Contexto internacional
O interesse pela arquitectura popular que caracteriza o Inqurito tem tambm as suas razes em
processos similares levados a cabo noutros pases, se bem que este tema s muito recentemente
tenha vindo a ser aprofundado na historiografia da arquitectura nacional.
De entre as referncias at h pouco estabelecidas, conta-se o caso do grupo avant-garde catalo
GATEPAC que nos anos 30 publicou vrios exemplos de arquitectura vernacular na sua revista A.C.
Documento de Actividade Contempornea66.
Toussaint67, chama a ateno para o facto de tanto o Inqurito como a sua publicao terem
antecedido a famosa mostra no MoMA e o livro/catlogo Architecture without Architects (1964),
concebido por Bernard Rudofsky, e da Arquitectura Popular em Portugal estar presente nas
referncias bibliogrficas de obras importantes como House Form and Culture (1969) de Amos
Rapoport.
60
542
ainda conhecida a influncia deste trabalho nos cinco volumes da Arquitectura Popular Espanhola
(1973) de Carlos Flores68
Recentemente, tem vindo a ser levantada a possibilidade de a ideia do Inqurito ter partido da
influncia exercida por Lcio Costa, quando das suas visitas a Portugal com o objectivo expresso de
conhecer a arquitectura regional portuguesa, em 1926, 1948, 1952 e 1961, e sobretudo a partir do
texto Documentao Necessria publicado em 193769.
Outras influncias tm tambm vindo a ser detectadas, como o caso da influncia espanhola,
nomeadamente do trabalho de Mercadal e Sert70, ou das influncias culturais do racionalismo
italiano, concretamente do levantamento da arquitectura rural italiana realizado por Pagano em
1936 e das suas consequncias71.
Este trabalho foi realizado no mbito do projecto A Arquitectura Popular em Portugal: Uma Leitura
Crtica, financiado por fundos FEDER atravs do Programa Operacional Factores de Competitividade
COMPETE (FCOMP-01-0124-FEDER-008832) e por Fundos Nacionais atravs da FCT Fundao para
a Cincia e Tecnologia (PTDC/AUR-AQI/099063/2008).
68
Esta relao frequentemente referida por muitos dos que lhe so contemporneos, como o caso de
Pedro Vieira de Almeida ou lvaro Siza, que em diferentes testemunhos orais a referiram.
69
Madalena Cunha Matos e Tnia Beisl Ramos, Um Encontro, Um Desencontro: Lcio Costa, Raul Lino e Carlos
Ramos in O Moderno j Passado. O Passado no Moderno. Reciclagem, requalificao, rearquitectura, Anais do
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72
Nuno Teotnio Pereira, Prefcio 3. edio.
73
Pedro Vieira de Almeida et al., Candidatura do projecto A Arquitecturta Popular em Portugal: Uma leitura
crtica apresentado FCT em Fevereiro de 2009.
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em Arquitectura, Faculdade de Cincia e Tecnologia da Universidade de Coimbra Departamento de
Arquitectura, Julho 2011, anexo.
544
545
546
Quadro I
Aspectos a
considerar
Imperador Augusto
Imperador Galieno
Identificao Desconhecida
Cronologia
Pode atribuir-se ao
incios do reinado deste
imperador (sculo III);
ano 260 d. C. (2)
Provenincia
Mrtola
Muralha de Beja
Conuentus pacensis
Conuentus pacensis
Conuentus pacensis
Tipo de busto
Rosto de encaixe
Rosto de encaixe
Elementos
identificativos do
rosto
Penteado
Notas
1.
2.
3.
4.
Justino Maciel, op. cit., p. 32; Lus Jorge R. Gonalves, op. cit., vol. II, p. 71.
Vasco de Souza, op. cit., p. 71, n. 127; Lus Jorge R. Gonalves, op. cit., vol. II, p. 103.
Vasco de Souza, op. cit., p. 67, n. 8; Lus Jorge R. Gonalves, op. cit., vol. II, p. 161.
O afastamento das tpicas expresses de Augusto tem sido explicado pela reelaborao do rosto a partir de
um rosto de Calgula ou pela elaborao do mesmo em poca tardia, nomeadamente, a poca de Cludio.
Justino Maciel, op. cit., p. 31-32.
5. Lus Jorge R. Gonalves no assinalou a pupila e/ou ris. Op. cit., pp. 161-163.
547
Fig. 2
Quadro 2
Aspectos a
considerar
Famlia imperial:
Agrippia Minor
Identificao Desconhecida
Cronologia
Atribuvel poca de
Calgula ou de poca Cludia
(sculo I) (1)
Obra de grande
qualidade artstica. Do
tipo Milo-Florena.
poca de Cludio (3)
Provenincia
Aeminium
VILLA de Milreu
Balsa
Conuentus scalabitanus
Conuentus pacensis
Conuentus pacensis
Rosto de encaixe
Busto at ao peito.
Tipo de busto
Penteado
Sem marcao de iris (2)
Modelao dos lbios
Penteado; Sem
marcao de iris;
Modelao dos lbios;
Marcao dos msculos
do pescoo em V.
Notas
1. Vasco de Souza, op. cit., p. 68, n. 32; Lus Jorge R. Gonalves, op. cit., vol. II, p. 84.
2. Vaso de Souza, op. cit., fig. 32; Lus Jorge R. Gonalves, op. cit., vol. II, pp. 84-86; este autor refere-se ao
olhar frontal.
3. Vasco de Souza, op. cit., p. 71, n. 121; Lus Jorge R. Gonalves, op. cit., vol. II, p. 88.90.
4. Vasco de Souza, op. cit., p. 71, n. 125; Lus Jorge R. Gonalves, op. cit., vol. II, pp. 184-187.
548
Fig. 3
549
Fig. 2 O assento de baptismo de Giovanni Maria Theodoro, filho de Pietro Grossi e de Marta Taddei, e do
seu malogrado irmo gmeo, Francesco Antonio, a 7 de Outubro de 1715 (Arquivo paroquial de Bioggio,
Sua, Livro de Baptizados, ano de 1715).
550
551
Fig. 7 Registo de bito de Joo Grossi, a 26 de Janeiro de 1780. Arquivo do Loreto, Livro Segundo dos bitos
(1777/1846), fl. 10.
552
NDICE DE AUTORES
Adelaide Miranda, 208
Alexandra Cardoso, 535
Alicia Migulez Cavero, 323
Alicia Snchez Ortiz, 175
Ana Claro, 87
Ana Duarte Rodrigues, 359
Ana Margarida Silva, 208
Andr Guilherme Dornelles Dangelo, 9
Andr Varela Remgio, 188
ngela Ferraz, 200, 217
Antnio Candeias, 87
Antnio Joo Cruz, 225
Antnio Jos Candeias, 225
Antnio Nunes Pereira, 16
Antonio Trinidad Muoz, 274
Arthur Valle, 290
Begoa Alonso Ruiz, 339
Bruno Marques, 435
Camila Dazzi, 290
Carlos Moura, 188
Caroline Arago Cabral, 348
Catarina Fernandes Barreira, 324
Catarina Rosendo, 284
Ctia Teles e Marques, 98
Cristina de Sousa Azevedo Tavares, 134
Cristina Dias, 87
Cristina Montagner, 208
David Garca Cueto, 421
Diogo Sanches, 200
Dorota Moliska, 269
Elisabete Correia Campos Francisco, 82
Emlia Pinto Almeida, 448
Eva Sofia Trindade Dias, 371
Filomena Limo, 402
Francisco Javier Novo Snchez, 382
Francisco Teixeira, 333
Gerbert Verheij, 36
Helder Carita, 122
Helena Elias, 46
Helena Murteira, 251
Ins Marques, 46
Ins Pais Gonalves, 111
Isabel Lopes Cardoso, 526
Isabel Mayer Godinho Mendona, 490
Ivn Rega Castro, 391
Joana Rama Melo, 409
Joo A. Lopes, 208
Joo Paulo Martins, 298
Joo Pedro Veiga, 188
553
APOIOS
mecenas
com o apoio
554