O LIXO Luís Fernando Veríssimo
O LIXO Luís Fernando Veríssimo
O LIXO Luís Fernando Veríssimo
O LIXO
Lus Fernando Verssimo
Encontram-se na rea de servio. Cada um com seu - Eu, graas a Deus, nunca fumei.
pacote de lixo. a primeira vez que se falam. - Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de
- Bom dia... comprimido no seu lixo...
- Bom dia - Tranquilizantes. Foi uma fase. J passou.
- A senhora do 610. - Voc brigou com o namorado, certo?
- E o senhor do 612 - Isso voc tambm descobriu no lixo?
- . - Primeiro o buqu de flores, com o cartozinho,
- Eu ainda no lhe conhecia pessoalmente... jogado fora. Depois, muito leno de papel.
- Pois ... - Desculpe a minha indiscrio, mas tenho - , chorei bastante, mas j passou.
visto o seu lixo... - Mas hoje ainda tem uns lencinhos...
- O meu qu? - que eu estou com um pouco de coriza.
- O seu lixo. - Ah. - Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu
- Ah... lixo.
- Reparei que nunca muito. Sua famlia deve ser - . Sim. Bem. Eu fico muito em casa. No saio
pequena... muito. Sabe como .
- Na verdade sou s eu. - Mmmm. Notei tambm que - Namorada?
o senhor usa muito comida em lata. - No.
- que eu tenho que fazer minha prpria comida. E - Mas h uns dias tinha uma fotografia de mulher no
como no sei cozinhar... seu lixo. At bonitinha.
- Entendo. - Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
- A senhora tambm... - Voc no rasgou a fotografia. Isso significa que, no
- Me chame de voc. fundo, voc quer que ela volte.
- Voc tambm perdoe a minha indiscrio, mas tenho - Voc j est analisando o meu lixo!
visto alguns restos de comida em seu lixo. - No posso negar que o seu lixo me interessou.
Champignons, coisas assim... - Engraado. Quando examinei o seu lixo, decidi que
- que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos gostaria de conhec-la. Acho que foi a poesia
diferentes. Mas, como moro sozinha, s vezes sobra... . - No! Voc viu meus poemas?
- A senhora... Voc no tem famlia? - Vi e gostei muito
- Tenho, mas no aqui. . - Mas so muito ruins!
- No Esprito Santo. - Se voc achasse eles ruins mesmo, teria
- Como que voc sabe? rasgado. Eles s estavam dobrados.
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Esprito Santo. - Se eu soubesse que voc ia ler...
- . Mame escreve todas as semanas. - S no fiquei com eles porque, afinal,
- Ela professora? estaria roubando. Se bem que, no sei: o lixo
- Isso incrvel! Como foi que voc adivinhou? da pessoa ainda propriedade dela?
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de - Acho que no. Lixo domnio pblico.
professora. - Voc tem razo. Atravs do lixo, o particular se torna
- O senhor no recebe muitas cartas. A julgar pelo seu pblico. O que sobra da nossa vida privada se integra
lixo. com a sobra dos outros. O lixo comunitrio. a
- Pois ... - No outro dia tinha um envelope de nossa parte mais social. Ser isso?
telegrama amassado. - Bom, a voc j est indo fundo demais no lixo.
- . Acho que... - Ontem, no seu lixo...
- Ms notcias? - O qu?
- Meu pai. Morreu. - Me enganei, ou eram cascas de camaro?
- Sinto muito. - Acertou. Comprei uns camares grados e
- Ele j estava bem velhinho. L no Sul. H tempos descasquei.
no nos vamos. - Eu adoro camaro.
- Foi por isso que voc recomeou a fumar? - Descasquei, mas ainda no comi. Quem sabe a gente
- Como que voc sabe? pode...
- De um dia para o outro comearam a aparecer - Jantar juntos?
carteiras de cigarro amassadas no seu lixo. - .
- verdade. Mas consegui parar outra vez. - No quero dar trabalho.
- Trabalho nenhum. fora.
- Vai sujar a sua cozinha? - No seu lixo ou no meu?
- Nada. Num instante se limpa tudo e pe os restos