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RESUMO: O texto aborda e problematiza aspectos da Histria do Brasil referentes aos africanos e afro-
-descendentes e sua cultura. Tambm valoriza o papel da Lei n. 10.639 na superao do preconceito racial e
na poltica inclusiva, que afeta o ensino de Histria.
[...] uma vergonha para a cincia do Brasil que nada tenhamos consa-
grado de nossos trabalhos ao estudo das lnguas e da religies africanas.
Quando vemos homens, como Bleek, refugiarem-se dezenas e dezenas de
anos nos centros da frica somente para estudar uma lngua e coligir uns
mitos, ns que temos o material em casa, que temos a frica em nossas
cozinhas, como a Amrica em nossas selvas, e a Europa em nossos sales,
nada havemos produzido neste sentido! uma desgraa.
Bem como os portugueses estanciaram dois sculos na ndia e nada ali
O alerta de Slvio Romero aos pesquisadores da poca nos informa sobre a negligncia
e a prtica discriminatria que adotavam com o africano e seus descendentes, demonstrando
que eles no tratavam essas populaes com a preocupao terica devida, pois no os viam
como parte da histria oficial da nao ps-abolio da escravatura, sobretudo porque estavam
fadados a desaparecer fsica e culturalmente, como anunciou Joo Batista de Lacerda em 1911.
A literatura havia contemplado essas populaes, seja com Cruz e Sousa, Castro Alves e
Lus Gama. Ela fazia a crtica refinada sociedade de ento, seus propsitos e seus problemas,
como fizeram Alusio de Azevedo, Machado de Assis e Lima Barreto, posteriormente impul-
sionados pelo movimento abolicionista. Esse alerta que veio da literatura motivou os estudos,
por exemplo, de Raimundo Nina Rodrigues, de Arthur Ramos, de Manuel Querino, de Oliveira
Vianna, de Gilberto Freyre e de Edison Carneiro nas primeiras dcadas do sculo XX.
Mas a histria dos africanos e da frica permanecia um grande silncio, uma lacu-
na perene na historiografia brasileira, estando sendo recomposta aos poucos pelos estudos
sociolgicos e antropolgicos. A maioria, ainda, embasada nos legados preconceituosos de
Nina Rodrigues, Arthur Ramos e de Gilberto Freyre, muitos desses estudos investigavam o
Candombl, a defasagem cultural e educacional e o branqueamento via miscigenao.
O primeiro grande trabalho sobre a histria dos africanos no Brasil foi escrita por Edi-
Somente nos anos de 1970, entramos em contato com a realidade africana. Este conta-
to foi feito por intermdio da literatura com a coleo de Autores Africanos publicada pela
editora tica que, em 1979, lanara, no Brasil, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, de
Jos Luandino Vieira, e Os Flagelados do Vento Leste, de Manuel Lopes. Essa coleo foi
publicada por vrios anos da dcada de 1980 e reunia diversos escritores africanos de pases
de lngua oficial portuguesa, francesa e inglesa, particularmente os da costa ocidental africa-
na. Ela foi extremamente importante em um perodo em que no se podia falar ou se reunir
para tratar de questes vinculadas aos interesses e reivindicaes da populao de afro-
-brasileiros no pas e, ainda, retratava a frica, seus pases, suas naes, etnias e problemas
advindos do colonialismo.
Com os debates na sociedade civil, com a criao de novos partidos polticos e com
o vigor dos movimentos sociais, particularmente do movimento negro, teremos em 1987 a
edio no Brasil de Fluxo e Refluxo: do trfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia
de Todos os Santos, de Pierre Verger, originariamente publicado em Paris (Frana) em 1968,
e em Ibadan (Nigria) em 1976. Este livro propiciou novas interpretaes nos estudos refe-
rentes s populaes africanas e afro-brasileiras.
Mas, foi apenas no decorrer da dcada de 1990 que muitos artigos e livros de historia-
dores, cientistas sociais e estudiosos de literatura africana foram publicados focando a frica.
Nessas obras, revelava-se que tanto a Europa e a sia, quanto a Amrica, particularmente o
Brasil, receberam influncias culturais e econmicas de algumas naes africanas. Eles, geral-
mente, demonstraram histrias de conexes, de continuidades, de permanncias, de rupturas
e de tradies permanentemente traduzidas. Constatamos isso em A enxada e a lana, de
Alberto da Costa e Silva (1992); Em Costas Negras, de Manolo Florentino (1997); O trato dos
viventes, de Luis Felipe de Alencastro (2000), e O Atlntico Negro, de Paul Gilroy (2001).
Assim, ainda, estamos com a perspectiva exposta anteriormente por Ki-Zerbo, despre-
zando as sociedades aparentemente sem escrita. Essas sociedades e grupos sociais, tnicos,
sexuais e religiosos precisam ser estudados, pois tm histria e esto no centro dela.
Esses debates continuam a existir, na medida em que a histria, ainda, uma cincia
estruturada para ser a dos conquistadores, dos homens, dos brancos, dos cristos e das so-
ciedades detentoras de poder. Assim, no estudamos a frica, mas a Europa e a Amrica
anglo-sax, ou seja, a histria daqueles que possuem o poder e a possibilidade de difundir
seus conhecimentos atravs da escrita, colecionando documentos, registros e fazendo seus
monumentos e esttuas (LE GOFF, 1990).
Muitos so aqueles que concebem o continente africano destitudo de escrita, mas isto
no verdadeiro, muito embora essa seja uma marca das sociedades subsaarianas. A frica
tambm legou humanidade a escrita, a partir do Saara e do Sudo. Os sistemas de escrita
dos Akan e dos Manding originaram a escrita egpcia e merotica. Hoje, est comprovado
que a escrita dos faros veio do Sudo (NASCIMENTO, 1996, p. 42).
Em 1787 quando foi decifrada a pedra Rosetta, uma inscrio com hierglifos egpcios
e outras lnguas antigas conhecidas, comprovou-se que quase todo o conhecimento cient-
fico, religioso e filosfico da Grcia antiga teve origem no Egito (frica). Elisa Nascimento
(1996) informa que Scrates, Plato, Tales de Mileto, Anaxgoras e Aristteles estudaram
com sbios africanos. Verifica-se, com isso, que o saque e a destruio da biblioteca de
Alexandria encobriram um processo de apagamento e de descrdito dos conhecimentos afri-
canos, tornando-os exticos, msticos e mticos. Ela tambm menciona a citao do conde
Constantino Volney, membro da Academia Francesa:
Parece irrefutvel o fato de que as culturas e cincias africanas deram uma grande
contribuio a toda civilizao ocidental europeia. Mas nossos professores raramente falam
da frica com este sentido, nem dizem que o Egito, por exemplo, um pas africano.
Essas informaes geram surpresas na maioria de nossos docentes e alunos de todos
[...] o termo etope vem de aitr que significa ar que queima, perto do sol.
Aitiops aquele que vive nesses ares queimados. Evidente que a palavra
foi criada a partir do ponto de vista dos povos de clima mais frio e pele
mais clara, e j contm um tom pejorativo, como aparece nos textos de Ho-
mero (Ilada 1, 423-7 e Odissia 1, 21-3) onde os etopes so relacionados
com a idia de relaxamento moral, ociosidade, falta de seriedade e senso
de festividade.
No latim, Etipia [...] ficou com sentido de vil, de abjeto. Tanto que Ambrsio diz:
O que mais vil do que o nosso corpo? O que mais parecido com a Etipia, que negra
pelas trevas do pecado?. Orgenes, ao comentar o Cntico dos Cnticos 1, 4-6, afirma que
[...] negra pela ignomnia da raa, mas formosa pela penitncia e pela f ... a alma se tornou
negra porque desceu. Mas quando comea a subir, ela se torna branca e cndida: rejeitando
a negrido ela comea a irradiar a verdadeira luz.
Remontando pela gradao, chegamos enfim ao europeu branco, que, sendo o mais
afastado da criao animal, pode por isso mesmo ser considerado o produto mais belo
da raa humana. Ningum por em dvida a superioridade de sua potncia intelectual.
(WHITE, 1799 apud POLIAKOV, 1974, p. 135).
No somente sua cor os distingue, mas diferem dos outros homens por todos os traos
de seu rosto, dos narizes largos e chatos, dos grossos lbios e da l no lugar dos cabelos,
que parecem constituir uma nova espcie de homens. Se nos distanciamos do Equador
para o plo antrtico, o negro clareia, mas a feiura permanece: igualmente este povo
feio que habita a ponta meridional da frica. (DIDEROT; DALEMBERT, 1772 apud
POLIAKOV, 1974, p. 145).
Afer niger significa astuto, preguioso, negligente [...] negro, fleumtico [...]
governado pela vontade arbitrria de seus senhores (LINN, 1793 apud PO-
LIAKOV, 1974, p. 145).
Os europeus que passaram pelo Brasil, no sculo XIX, basearam suas anotaes no
O discurso universitrio medieval feito para o povo foi adaptado, apreendido, a partir
da concepo filosfica do Isl, impondo-se sociedade crist (Libera, 1999). Essa maneira
de ensinar e aprender sem uma edificao, mas com diversas experincias e observaes que
no cabem em uma sala de aula, vem de uma herana legtima dessa frica desconhecida
e negada por muitos de ns e que ocupou, islamizou e civilizou a pennsula Ibrica por 700
anos (sculos VII-XIV), sem desconsiderar as influncias afro-arbicas nas pores sul da
Frana e da Itlia.
Voltando quela piada, constatamos que ela objetiva mostrar que o afro-brasileiro, difi-
cilmente, frequenta a escola para estudar. Mas no informa que essas dificuldades foram ge-
radas, ainda, no perodo escravista e que continuam a se refletir em nossos dias via racismo.
Henrique Antunes Cunha, militante negro, ilustra essa situao entre negros e
brancos na sala de aula, na dcada de 1920 (apud FONSECA, 1994, p. 227):
F. Fernandes baseia-se nas aes da Frente Negra Brasileira (FNB). Ela buscava, por
meio da educao, superar e tambm demonstrar que a denncia de que os cidados de
cor sofriam discriminaes e marginalizaes no mercado de trabalho porque no eram
instrudos, no era to simples. A FNB, com essa postura integracionista, deixava ntido que,
por mais esforos e preparo que o negro fizesse ou tivesse, ele no era aceito nos locais de
trabalho, pois havia um requisito sutil a superar o cdigo da boa aparncia.
A referida lei tambm foi decretada pelo governador do estado de So Paulo, como
parte do programa de aes afirmativas deste estado, que passo a transcrever:
O Governador Geraldo Alckmin assinou, no dia 14 de novembro, o decreto sobre
poltica de aes afirmativas para afrodescendentes do Estado de So Paulo.
Artigo 6 - A Secretaria da Educao dever:
I no exerccio das prerrogativas fixadas no artigo 24, IX e 1 a 4, da Cons-
tituio Federal, desenvolver um plano de ao para capacitao dos docentes
e incluso, no currculo das escolas da rede pblica estadual, do ensino sobre
Histria e Cultura Afro-Brasileira, na forma da Lei Federal n 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, com a alterao prevista na Lei Federal n 10.639, de 9 de
janeiro de 2003, e legislao correlata;
II desenvolver o Programa So Paulo: Educando pela Diferena para a Igual-
dade Capacitao dos professores das reas de Educao Artstica, Literatura
e Histria a ser discutida com os representantes da Comunidade Negra.
Pargrafo nico: O Secretrio da Educao criar, mediante resoluo, comisso
para o desenvolvimento do programa a que se refere o inciso II deste artigo.
As leis e artigos do o tom e o teor das disposies dos governos federal e estadual
em resolver essas demandas sociais, polticas e histricas. Essas medidas visam retirada
do entulho colonialista e escravista que permaneceu nas portas das escolas e das mentes de
educadores, artistas e demais agentes sociais.
O processo educacional que ocorre na sociedade, atravs das oficinas culturais e dos
cursos de formao, tem na escola o centro difusor desta medida poltica. A escola deve ser
um veculo para a superao da discriminao tnico-racial e social auxiliada pelas enti-
dades do movimento negro, pelos ncleos de estudos afro-brasileiros das universidades, a
fim de se constituir em um ambiente que respeita e que busca intervir de maneira positiva e
afirmativa na promoo da igualdade e da isonomia social; sabendo lidar com as particula-
ridades culturais e regionais.
As escolas devem construir um projeto de cidadania, organizando e transmitindo co-
A implementao dessa lei coloca alguns desafios e impasses para todos envolvidos;
poucos so os docentes das diversas universidades que tratam desta temtica e um nmero
menor ainda, proporcionalmente falando, de professores das redes pblicas e privadas do
ensino fundamental e mdio que possuem conhecimentos da temtica referida pela lei.
A lei trata de um tema transversal que deve estar articulado s disciplinas e aos conte-
dos programticos, prioritariamente das disciplinas de Histria, Literatura e de Educao
Artstica. Neste quadro, cabe algumas consideraes:
Esses so alguns dos desafios mais contundentes colocados para a implementao com
qualidade dessa lei. Isso no requer recuos, mas, ao contrrio disso, devemos possibilitar
propostas assentadas na busca de uma melhor qualificao profissional e acadmica dos
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