Carlos Rodrigues Brandão - Os Caipiras de São Paulo

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OS CAIPIRAS

DE SO PAULO

Carlos Rodrigues Brando

Como a terra aqui abundante e toca a todos, esses


homens, a quem se chama no lugar, caipiras, cultivam a ferro
e fogo o torro que possuem e plantam milho, feijo e arroz.
Colhido o seu produto levam-no ao mercado onde o vendem
para comprar a roupa que lhes necessria.
Augusto Emilio Zaluar, Peregrinao pela Provncia de So
Paulo

Para Maria Isaura Pereira de Queiroz e Jos de


Souza Martins.
O CAMPONS CAIPIRA

Caapora, Caipora, Caipira

Campons, caboclo, caipira, roceiro, sertanejo, capiau... com que


nomes e smbolos reais ou ilusrios essa gente rural dos sertes de ontem e de agora
habita o seu imaginrio e o meu, leitor? Que homem caipira real existiu e existe ainda
hoje em So Paulo e que personagem dele h dentro de cada um de ns? O lavrador
rstico cuja lavoura substituiu a dos ndios? O Jeca Tatu? O povoador de sucessivas
reas de fronteira? Os tipos engraados de Mazzaropi e Alvarenga-e-Ranchinho?
Ora, de alguns anos para c o rdio e o disco, o cinema e a televiso multiplicam
tipos sertanejos que s vezes quase tornam modernos e acostumados com a cidade os
lavradores caipiras do passado. Entre Srgio Reis, Milionrio e Jos Rico e os velhos
violeiros de moda e cururu h uma distncia muito grande. Assim como a que, s
avessas, existe entre o relato apressado que viajantes e cronistas escreveram a respeito
dos habitantes rurais da Provncia de So Paulo e os estudos recentes que com menos
pressa e preconceitos procuram agora compreender no s os trabalhadores caipiras,
como tambm outros tipos de sujeitos subalternos de enxada e arado que primeiro os
acompanharam e, depois, comearam a substitu-los: o sitiante, o camarada, o colono, o
bia-fria.
Na primeira parte desta pequena viagem pessoa e ao mundo do lavrador caipira
de So Paulo, quero aos poucos recuperar a imagem que escritos do passado fizeram
dele, ao transport-lo de uma figura de sombra beira do caminho entre ndios e
senhores posio de ator subalterno de sua prpria histria. Na verdade, das primeiras
leituras pouca coisa sobra que recomende o nosso caipira. Saltando do verbete de alguns
dicionrios s impresses de viagem de Saint-Hilaire, sugiro que uma trajetria de
desvendamento da condio, da identidade e do modo de vida do caipira seja feita com
leituras que vo de Monteiro Lobato a Cornlio Pires. A Maria Isaura Pereira de
Queiroz, Jos de Souza Martins e Maria Sylvia de Carvalho, por exemplo. Trata-se
primeiro de corrigir uma imagem e, depois, de explicar que condies geraram uma
gente assim.
Quando este primeiro caminho estiver percorrido, podemos voltar aos mesmos
lugares de serto e rever o caipira com os nossos prprios olhos. Observ-lo atravs de
sua vida, no lugar onde ela existe no cotidiano. Que, ento, uma cultura caipira que
quase sempre conhecemos aos pedaos e atravs do que h nela de pitoresco aparea
atravs de como ela realmente feita. Atravs do trabalho com a terra e de como ele e
sua condio criam e recriam modos prprios, familiares e comunitrios de ser, viver,
pensar, crer e conviver.
J que mais do que tudo o nome a janela da Identidade, comecemos por ele. s
vezes num dicionrio poucas palavras chegam para definir o caipira:

Roceiro, matuto, acanhado, sem trato na cidade. (Bueno)

No mesmo dicionrio, campons aquele que habita ou trabalha no campo;


prprio do campo; rstico. (idem) Quando o dicionrio mais cuidadoso na escolha
dos nomes do caipira, em nada isso melhora a adjetivao de sua identidade. Assim, no
Aurlio, ele aparece da seguinte maneira:

Habitante do campo ou da roa, particularmente os de pouca instruo e de


convvio e modos rsticos e canhestros (sin.) sendo alguns regionais:
araruama, baba quara, babeco, baiano, baiquara, beira-corgo, beiradeiro,
biriba ou biriva, botocudo, bruaqueiro, caapora, caboclo, cabur,
cafumango, caiara, cambembe, camiso, cangua, canguu. capa-bode,
capiau, capicongo, capuava, capurreiro. casaca, casacudo, casca-grossa,
catatu, catimb, catrumano, chapadeiro, curau, curumba, groteiro, guasca,
jeca, mambira, mandi ou mandim, mandioqueiro, manojuca, maratimba,
mateiro, matuto, mixanga, mixuango ou muxuango, mocorongo, moqueta,
mucufo, p-dum, p-no-cho, pioca, piraguara, piraquara, quejeiro,
restingueiro, roceiro, saquarema. sertanejo, sitiano, tabaru, tapiocano,
urumbeba ou urumbeva ... (Ferre ira, Aurlio Buarque de Hollanda,
Pequeno Dicionrio Brasileiro da Lngua Portuguesa)

Dos dicionrios gerais para os especializados a mudana pequena- Assim, Lus


da Cmara Cascudo sugere que alm de tmido e despreparado, o caipira pode ser um
sujeito pouco confivel.

Homem ou mulher que no mora em povoao, que no tem instruo ou


trato social, que no sabe vestir-se ou apresentar-se em pblico (...)
Habitante do interior, canhestro e tmido, desajeitado, mas sonso...
(Cascudo, Lus da Cmara, Dicionrio do Folclore Brasileiro)

Saint-Hilaire, cuja viagem entre caipiras paulistas nos espera um pouco adiante,
ao descrev-los na cidade de So Paulo no consegue deles um retrato melhor. O
prprio nome que lhes do os homens da cidade caipiras seria injurioso e
possivelmente derivado de um nome semelhante, usado para chamar tipos de demnios
malfazejos.

Estes ltimos, quando percorrem a cidade, usam calas de tecido de


algodo e um grande chapu cinzento, sempre envolvidos no indispensvel
poncho, por mais fone que seja o calor. Denotam os seus traos alguns dos
caracteres da raa americana; seu andar pesado, e tem o ar simplrio e
acanhado. Pelos mesmos tm os habitantes da cidade pouqussima
considerao, designando-os pela alcunha injuriosa de caipiras, palavra
derivada possivelmente do termo curupira. pelo qual os antigos habitantes do
pas designavam demnios malfazejos existentes nas florestas... (Saint-
Hilaire, Augusto de, Viagem Provncia de So Paulo)

Entre todos os esforos vocabulares que encontrei para afinal dizer quem o
caipira, apenas em outros dois pesquisadores do assunto que tambm nos esperam
adiante h um esforo notvel para explicar a idia de caipira, seja ainda atravs da
anlise do nome, seja pela indicao de caractersticas prprias, ligadas localizao, ao
modo de vida e ao exerccio do trabalho agrcola. Um deles Cornlio Pires e o outro,
Antnio Cndido.

Por mais que rebusque o timo de caipira nada tenho deduzido com
firmeza. Caipira seria o aldeo; neste caso encontramos o tupi-guarani
capibigura. Caipirismo acanhamento, gesto de ocultar o rosto: neste
caso temos a raiz ca que quer dizer: gesto de macaco ocultando o rosto.
Capipiara, que quer dizer o que do mato. Capi, de dentro do mato: faz
lembrar o capiau mineiro. Caapi trabalhar na terra, lavrar a terra
caapira lavrador. E o caipira sempre lavrador. Creio ser este ltimo
caso o mais aceitvel, pois caipira quer dizer roceiro isto lavrador...
(Pires, Cornlio, Conversas ao P do Fogo)
A explicao de Cornlio Pires importante porque faz a fronteira onde a
palavra e a pessoa existem definidos por sinais de menos e o lugar onde outras razes,
como a do prprio trabalho de que provm, traam o nome e a identidade. De uma
primeira safra de nomes a respeito de quem , o caipira sai como o viu e pensou uma
gente letrada e urbana. Por isso, comparado com o cidado, o citadino livre do trabalho
com a terra, o caipira sai dito pelo que no e adjetivado pelo que no tem. Ele ponto
por ponto a face negada do homem burgus e se define pelas caricaturas que de longe a
cidade faz dele, para estabelecer, atravs da prpria diferena entre um tipo de pessoa e
a outra, a sua grandeza. Separado do trabalho e de uma cultura derivada de um tipo de
trabalho, o caipira paulista define-se primeiro por ser naturalmente do lugar onde vive: o
campo, a roa, o serto, a mata, o lugar oposto cidade. E quem no mora em
povoao e, portanto, aquele que no possui o preparo e as qualidades do homem da
cidade, o civilizador, de quem a seu modo o caipira escapa, tanto quanto o ndio, e mais
do que o negro. Se o seu lugar de vida o contrrio do da cidade e o seu trabalho
invisvel, por ser o oposto ao da cidade, o seu modo de ser e a cultura so o oposto do
que a cidade considera civilizao, civilizado. Por isso, a meio caminho entre o
bugre e o branco, o caipira, caboclo ignorante, sem trato, ou seja, sem aquilo
que, ao ver do tempo, apenas a distncia do cativeiro da terra pode atribuir ao homem
de trato, o senhor e seus emissrios.
Em um estudo sobre o dialeto caipira, Ada Natal Rodrigues traz o depoimento
de Antnio Cndido. Ele o vivente de um territrio indefinido com formas prprias
de fala e viso de mundo. (Rodrigues, Ada Natal, O Dialeto Caipira) O seu mundo
cobre um lenol de cultura caipira, com variaes locais, que abrangia partes das
capitanias de Minas, Gois e mesmo Mato Grosso. (Cndido, Antnio, Os Parceiros do
Rio Bonito)
Uma verdadeira civilizao caipira cobriu no passado reas extensas, segundo
Pascuale Petrone. Mais do que sujeitos e famlias indigentes, dispersos pelas beiras de
estrada onde os viajantes os viam, caipiras lavradores de frentes pioneiras de ocupao
do territrio paulista esparramaram bairros rurais e povoados maiores por

todo o litoral paulista (onde o caiara sempre um caipira); o Vale do


Paraba, as serras da Mantiqueira, de Quebra Cangalha. do Mar, de
Paranapiacaba; o planalto paulista; a zona bragantina; a depresso
perifrica paulista isto , a zona de transio entre os solos arqueanos e os
solos paleozicos, principalmente ao longo do Rio Tiet (englobando a zona
de Piracicaba. dos Campos Gerais etc.), a zona do antigo Caminho do
Mato, que levava ao Sul do pas e por onde vinham as tropas de muares
para serem vendidas na feira de Sorocaba; o planalto de Franca, caminho
para as minas de Gois e Mato Grosso (Queiroz, Bairros Rurais Paulistas)

Pois foi vindo de Minas e passando por Farinha Podre (Uberaba) que, ao entrar
na Provncia de So Paulo pelos lados de Franca, Augusto de Saint-Hilaire comeou a
ver caipiras pela estrada e a escrever sobre eles anotaes de passagem.

O homem que os outros viram

O primeiro captulo de Viagem Provncia de So Paulo contm uma descrio


geral da regio e a narrativa da histria da provncia. Ali o viajante francs convoca os
mesmos sujeitos que todos os outros cronistas de fora e da casa costumavam pr em
cena: conquistadores, religiosos e burocratas da Coroa; senhores de sesmarias e minas
de ouro; bandeirantes paulistas a respeito de quem Saint-Hilaire testemunha com
assombro a bravura e a violncia; naes de indgenas desaparecidos, aldeados ou ainda
livres; negros escravos ou forros.
Mas os homens livres e pobres do trabalho agrcola nunca aparecem em Saint-
Hilaire e raramente aparecem em outros viajantes seja como sujeitos da histria,
tal como governantes, senhores sesmeiros, missionrios e bandeirantes, seja como
sujeitos de uma cultura, como ndios e negros. Expulsos de uma coisa e da outra, no
so parte reconhecida da nao dos senhores e no so, como outros sujeitos dominados
da provncia ndios e negros naes de povos dali ou de fora, sujeitos de mundos
agora subalternos, mas donos de vidas e smbolos coletivos que atraem com respeito o
olhar do viajante.
Assim, o cronista transita entre senhores e emissrios, e tanto viaja cultura do
ndio quanto ao trabalho do negro. Mas entre lavradores caipiras ele passa. E como na
passagem no encontra entre eles nem o trabalho nem a cultura, ele os v como uma
gente, possivelmente a pior dos caminhos por onde viaja.

Enquanto descrevia e examinava as plantas, aproximou-se um homem do


rancho, permanecendo vrias horas a olhar-me, sem proferir qualquer
palavra. Desde Vila Boa at Rio das Pedras, tinha eu qui cem exemplos
dessa estpida indolncia, Esses homens, embrutecidos pela ignorncia, pela
preguia, pela falta de convivncia com seus semelhantes e, talvez, por
excessos venreos primrios, no pensam: vegetam como rvores, como as
ervas do campo. Obrigado pela ventania a deixar o rancho, fui procurar
abrigo numa das cabanas principais, mas admirei-me da desordem e da
imundcie reinantes na mesma. Grande nmero de homens, mulheres e
crianas desde logo rodeou-me. Os primeiros s vestiam uma camisa e uma
cala de tecido de algodo grosseiro; as mulheres, uma camisa e uma saia
simples. Os goianos e mesmo os mineiros de classe inferior vestem-se com
muito pouco apuro, mas pelo menos, so limpos; a indumentria dos pobres
habitantes de Rio das Pedras era to imunda quanto suas cabanas. A
primeira vista, a maioria deles parecia ser constituda por gente branca;
mas, a largura de suas faces e a proeminncia dos ossos das mesmas traa,
para logo, o sangue indgena que lhes corre nas veias, mesclado com o da
raa caucsica... Pode-se acrescentar, ao demais, que indolncia juntam
eles, geralmente, a idiotice e a impolidez... (Viagem Provinda de So
Paulo)

Mais adiante outros lavradores caipiras encontrados na viagem a caminho da


cidade de So Paulo acrescentam descrio de idiotice e grosseria um outro trao que,
aos olhos do homem da cidade, foi durante muito tempo o principal atributo do caipira:
a indolncia. Este o nome que traduz a inatividade do trabalhador livre e pobre dos
sertes, que vive do que caa e coleta e mistura com o pouco que planta para viver.

Os moradores das mesmas, provavelmente oriundos das raas africana,


americana e caucsica misturadas entre si, eram de feio aspecto e
excessivamente imundos; pela lividez da pele e pela extrema magreza
demonstravam servir-se de alimentao pouco substancial ou insuficiente;
muitos dentre eles eram desfigurados por enorme papo. As mulheres tinham
os cabelos desgrenhados e o rosto e o peito cobertos de sujeira; as crianas
pareciam enfermas e eram tristes e apticas; os homens eram abobados e
estpidos. Parece que esses infelizes tinham muita preguia para o trabalho,
s cultivando o estritamente necessrio satisfao das prprias
necessidades, e a seca do ano anterior levou ao cmulo a sua misria. Quase
por toda a pane me pediam esmola; desde que me encontrava no Brasil, no
presenciara em pane alguma tamanha pobreza. (Viagem Provncia de So
Paulo)

Eis o caipira que os primeiros cientistas descrevem. Em outros viajantes a viso


no diferente. Na cidade, alguns deles sequer falam sobre o lavrador livre e pobre;
uma populao biologicamente degenerada, seja pela descendncia de maus
cruzamentos raciais, seja pela associao da fome crnica com as doenas do serto.
Uma gente em quem a ausncia do trabalho produtivo no organiza a vida coletiva. No
entanto, se so ruins em quase tudo, pelo menos parecem humildes e mansos, sujeitos
desprovidos da maldade que Saint-Hilaire atribui a camponeses algumas regies da
Frana. O que falta a uma identidade completamente depreciada a violncia vai
surgir e sobrar em outras pginas do livro. Vindo de Minas Gerais, onde encontrou
lavradores pobres cujas virtudes de inteligncia, asseio e trabalho reconheceu
lavradores margem da histria, mas participantes de uma civilizao civilizadora,
inexistente em So Paulo de ento , o viajante compara o caipira de So Paulo e o
mineiro em So Paulo, atribuindo a este aquilo que falta quele.

j sabido que, desde alm da cidade de Santa Cruz, emigrados de Minas


Gerais vieram se estabelecer nos campos vizinhos da Estrada de Gois a So
Paulo, e que ali fundaram as aldeias de Farinha Podre e de Franca. Entre
esta ltima e a cidade de Mogi Mirim, a populao, muito escassa, apresenta
igualmente uma mistura de antigos habitantes com outros mais recentemente
ali chegados. Os primeiros, todos paulistas e, provavelmente, mestios de
indgenas com brancos em diferentes graus, so, como os agricultores de Rio
das Pedras, das vizinhanas de Pouso Alto etc., homens grosseiros, apticos
e sem nenhum asseio. Os segundos, nascidos em geral na comarca de So
Joo d El Rei, sem possurem as qualidades que distinguem (1816-1822) os
mineiros das comarcas de Ouro Preto, de Sabar e de Vila do Prncipe,
diferem, entretanto, muito e muito dos seus vizinhos. H limpeza em suas
residncias e eles so mais ativos, muito mais inteligentes, menos grosseiros
e mais hospitaleiros do que os verdadeiros paulistas instalados na regio;
entre eles so, em suma, encontrados todos os usos e costumes de seu torro
natal Minas Gerais. Ao passo que em Minas, ao menos nas regies mais
civilizadas da provncia, os homens, mesmo os das mais baixas classes
sociais, mantm entre si relaes de certa cordialidade, eu ouvia, desde que
atravessei a fronteira de So Paulo, falar-se, comumente, em matar, como em
qualquer outra parte se falaria em dar bengaladas. Chumbo na cabea, faca
no corao, eram as doces palavras que, constantemente, feriam meus
ouvidos. Os antigos paulistas faziam to pouco caso da prpria vida, como
da de seus semelhantes; possvel, porm, que na regio que se estende do
Rio Grande a Mogi, os descendentes desses aventureiros audaciosos tenham
um pouco mais de resguardo pela prpria vida do que os seus antepassados,
sem, entretanto, muito respeitar a do prximo. Como, de resto, poderiam
perder a rudeza hereditria? No recebem nenhum ensinamento religioso, os
maus exemplos dos malfeitores, foragidos de Minas e entre eles abrigados,
mais os excitam prtica do mal e, ademais, em regies to afastadas, as
leis de represso podem ser consideradas como no existentes. (Viagem
Provncia de So Paulo)

A apatia que, em geral, no se sente vontade entre repentes de bravura e violncia,


convive com ambas entre caipiras de So Paulo. margem do processo civilizatrio de
que os senhores de Roma e Lisboa so vistos como condutores, depravado
biologicamente por combinaes ruins de raas e sangues, exposto s ms influncias
dos fugitivos da lei nas Gerais, os surtos cotidianos que mesclam, na famlia e na
vizinhana, a violncia com outras estratgias do sobreviver so, aos olhos do viajante,
um modo degenerado de lidar com a vida e com o outro. O oposto do caipira so os
senhores de terras e, mais ainda, o bandeirante, em quem a violncia arbitrria sobre o
ndio, o escravo e o pobre justifica-se, no fim das contas, pela nobreza do esmo com que
exercida e a inteno legtima da conquista. Assim, quando os prprios bandeirantes e
donos de lavras do fim d4s tempos do ouro voltam a ser senhores de terras, conservam a
nobreza da origem, ainda que percam traos e atos guerreiros que foram neles a glria e,
nos caipiras, a vergonha. Saint-Hilaire fala sobre o acontecido.

Os terrenos aurferos tendo sido repartidos e a caa aos indgenas estando


severamente proibida, foram eles obrigados a renunciar aos seus hbitos de
mais de dois sculos. A agricultura foi o seu recurso: instalaram numerosos
engenhos de acar, e onde a natureza lhes oferecia pastagens, passaram a
criar gado cavalar e vacum. As ocupaes sedentrias, s quais foram
constrangidos a entregar-se, habituaram-nos vida de famlia. Suas antigas
lides se extinguiram e, pouco apouco, seus costumes tomaram -se mais
brandos. Sempre ufanos da glria de seus antepassados, no mais pensaram,
entretanto, em imit-los. Deviam perder, necessariamente, os defeitos dos
antigos corredores de desertos; nada os impediu, porm, de conservar as
brilhantes qualidades que distinguem esses homens extraordinrios. Tiveram
coragem sem crueldade, firmeza sem rudeza, franqueza sem insolncia.
(Viagem Provncia de So Paulo)

Quando na Provncia praticamente todos vivem da terra, t-la e trabalhar nela


divide os homens de So Paulo em senhores, lavradores livres, pequenos donos ou
agregados de fazendas e escravos. Os lavradores sem terra ou, por pouco tempo,
encostados em alguma terra de posse provisria so os mestios, que quase todo
cativo-livre da terra, que Saint-Hilaire, senhores, missionrios e outros viajantes viram.
Fcil compreender por que eram percebidos como uma gente dispersa, indigente,
indolente e ignorante. Porque, ademais de pobres e expropriados, como iremos ver mais
adiante, eram, simbolicamente, mais do que o ndio e o negro escravo, o oposto do
senhor de terras. Os caipiras, mesmo no sendo nunca percebidos atravs do seu
trabalho com a terra, so trabalhadores da terra e, portanto, homens a quem no sobram
nem o tempo nem condies para se cultivarem a si prprios. Cativos da terra, sem
serem escravos dos senhores de terra, esto, por isso mesmo, mais afastados de sua
cultura civilizadora do que os prprios ndios catequizados, ou do que os prprios
escravos civilizados. Eis um dos nicos momentos em que um viajante v o caipira
paulista atravs do trabalho: como um campons.

Esses mestios, relativamente inteligncia, esto muito abaixo dos


mulatos, e diferem inteiramente dos fazendeiros brancos da parte mais
civilizada da Provncia de Minas Gerais. Estes so homens mais ou menos
abonados, que possuem escravos e no cultivam a terra com as prprias
mos; nos colonos brancos, ou pretensos brancos, da pane da Provncia de
So Paulo de que me vou ocupando, no se podem ver seno verdadeiros
camponeses: no possuem escravos e so eles prprios que plantam e
colhem, vivendo, geralmente, em grande penria. Tm toda a simplicidade e
os modos grosseiros dos nossos camponeses, mas no possuem, seja sua
alegria, seja sua atividade. Se quinze camponeses de Frana se renem num
domingo, cantam, riem, discutem, os de que trato apenas falam, no cantam
e no riem e mantm-se to tristes depois de ter bebido cachaa, como
estavam antes da ingesto dessa bebida alcolica. (Viagem Provncia de
So Paulo)

Eis uma sntese da identidade que no s SaintHilaire, mas outros emissrios


letrados do pas ou de fora criaram para o caipira dos sertes de So Paulo. Eis um
mundo ao mesmo tempo privado de produo de cultura sobre a natureza (a agricultura)
e de criao de uma cultura na sociedade. Camponeses caipiras, social, cultural e
biologicamente uma gente entre o ndio e o branco, estariam envolvidos
absolutamente mas no organizadamente, como os ndios, nem civilizadamente,
como o bandeirante em uma natureza ainda em muito pouco conquistada e que, ao
mesmo tempo, os alimentava, vestia e abrigava ao nvel da indigncia, quando, em
contrapartida, os exilava do trabalho que o escravo do tempo era visto exercendo, e o
senhor, determinando.
Na verdade, este ltimo dos homens da provncia corresponde, na escrita do
cientista, ao tipo de sujeito social que os olhos do senhor quiseram ver, para roubar sem
culpa.
Desta curva do caminho em diante, leitor, podemos comear a rever, ainda com
os olhos dos outros, o campons caipira. Tomando como exemplos o testemunho de
Oliveira Vianna e Cornlio Pires, procuremos compreender como pessoas menos
apressadas na viagem entre uma cidade e outra, e menos o eco do olhar dos senhores,
souberam explicar a condio e a identidade da pessoa e da cultura do trabalhador rural
de quem falamos aqui.
H um momento em que os ndios os bugres, no dizer do caipira esto
mortos ou empurrados para longe, para outras provncias de uma repblica nascente. H
um momento em que os escravos esto mortos ou livres e passam de negros, segundo
suas naes de origem, a pretos com quem outros pobres e subalternos dividem o
cotidiano. Entre colonos europeus do caf e senhores empobrecidos do cafezal,
preciso buscar um tipo de gente prpria que, mesmo sem haver sido at ento habitante
reconhecida da histria de So Paulo, seja pelo menos uma das bases da identidade da
cultura paulista. Fora o bandeirante com cujos nomes til batizar as estradas e de cujas
faanhas necessrio povoar os livros de escola, So Paulo no produziu, como outros
estados, tipos-ritos de sujeitos locais, pobres e tpicos. Personagens sem nome, ora
hericos, ora pitorescos: baianas, seringueiros, gachos, jangadeiros. Entre os anos do
fim do sculo passado e, sobretudo, os do comeo deste, alguns estudiosos da cultura
paulista descobriram que o estado tinha como tipos o caipira e o caiara, que um
caipira do litoral. Foi ento que ele deixou de ser uma gente miservel de cultura
invisvel e se tornou o agente da cultura popular do estado. Visvel, ele emergiu a objeto
de estudo. Tinha virtudes, falava, usava um dialeto que era, na verdade, o poro da fala
de todos. De ndios e jesutas teria aprendido cantos e danas. Criou as suas. Era enfim
uma cultura a que alguns pesquisadores deram o nome de cultura caipira.
Pelos deuses, como que os viajantes de outrora no viram nele nenhuma das
quatro qualidades fundamentais que Oliveira Vianna encontrou no afinal caipira: a
fidelidade palavra dada, a probidade, a respeitabilidade e a independncia moral?
Traos de carter coletivo cuja influncia em nossa histria poltica imensa.
(Oliveira Vianna, F. 1., Populaes Meridionais do Brasil) bem verdade que, ao
distribuir estas e outras virtudes entre pessoas rurais de uma classe e outra, ele afirma
que, existindo difusas por toda a massa da populao, principalmente as duas
primeiras so uma caracterstica da nobreza fazendeira. A violncia desbragada que
assustou Saint-Hilaire torna-se o ato de fora a que obriga a honra.
H entretanto, certos sentimentos e certos preconceitos ndices infalveis
de nobreza moral que tm para esses desdenhados matutos uma
significao medievalmente cavalheiresca, O respeito pela mulher, pela sua
honra, pelo seu pudor, pela sua dignidade, pelo seu bom nome, por exemplo.
Ou o sentimento de pundonor pessoal e da coragem fsica que faz com que o
matuto, ferido na sua honra, desdenhe como indigno de um homem o
desagravo dos tribunais e apele, de preferncia, como nos tem - pos da
cavalaria, para o desforo das armas. (Populaes Meridionais do Brasil)

Durante muitos anos, mesmo na aurora da decadncia do caf, a nobreza rural


estvel em suas propriedades e, como outros tipos tnicos e de trabalhadores da terra,
o caipira quem migra de uma fazenda para a outra, ou de um lugar onde viveu e
trabalhou por algum tempo para um serto mais adiante. Explicando ainda o baixo
povo rural atravs dos olhos da nobreza rural, Oliveira Vianna no escapa de
identificar traos opostos de identidade entre sujeitos de um lado e do outro, que no
apenas servem para estabelecer a base das diferenas pessoais e coletivas, como servem
para explicar por que servos e senhores da terra ocupam ali posies sociais e polticos
diferentes. Um exemplo.

Esse sentimento de decoro pessoal peculiar alta classe agrcola. O


baixo povo rural no o possui. Ao contrrio do que acontece com os
camponeses peninsulares, pode-se dizer, de um modo geral, que no h,
entre ns, nos, campos, nas camadas inferiores, homens graves: o elemento
mestio que prepondera na plebe rural no prima de modo algum pela
respeitabilidade. O tipo de moleque perfeitamente caracterstico,
procedimento de moleque modo de moleque, ar de moleque so
expresses pejorativas, lanadas contra as pessoas de posio que no se
do ao respeito. (Populaes Meridionais do Brasil)

Nos primeiros anos do sculo ningum ter estudado o caipira de So Paulo


como Cornlio Pires, que entre contos e resumos de costumes dedicou a eles uma
notvel coleo de escritos. Ali, pela primeira vez o trabalhador caipira aparece avaliado
no apenas como um tipo de gente paulista, mas descrito tambm como uma categoria
de homem do trabalho. Cheio de um confessado amor pelo homem pobre dos sertes,
ele inverte a critica e agora a dirige aos preconceituosos cronistas anteriores, homens
sem conhecimento direto do assunto, que do corpo ao seu pessimismo, julgando o
todo pela parte podre, apresentando-nos o campons brasileiro coberto de ridculo,
intil, vadio, ladro, bbado, idiota e nhampam. (Conversas ao P do Fogo)
O caipira das primeiras pginas de Conversas ao P do Fogo a famlia de
lavradores cujo trabalho povoou recantos do serto ao lado das estradas por onde o
bandeirante passou e, assim, o verdadeiro colonizador das franjas pioneiras de
conquista do estado. o oposto do homem que Saint-Hilaire viu primeiro e Monteiro
Lobato, depois. Para este ltimo, o caipira paulista tpico um sujeito ainda mais
desgraado do que o de Saint-Hilaire. Ele coexiste com o atraso, de quem no vtima,
mas produtor, com a coivara, a doena e a absoluta ignorncia. Coexiste com o rancho
de sap aos pedaos e com a reproduo da misria. E um destruidor da natureza e este
parece a Monteiro Lobato ser o nico trabalho que ele realiza com proveito e eficcia.
(Lobato, Monteiro, Urups)

O caboclo uma quantidade negativa. Tala cinqenta alqueires de terra


para extrair deles o com que passar fome e frio durante o ano. Calcula as
sementeiras pelo mximo de sua resistncia s privaes, nem mais nem
menos. Dando pra passar fome sem virem a morrer disso, ele, a mulher e o
cachorro est tudo bem; assim fez o pai, o av, assim far a prole
empanzinada que naquele momento brinca nua no terreiro. (Urups)

Um longo trecho de Cornlio Pires deve ser transcrito aqui. No ser difcil
perceber como ponto por ponto ele reescreve o modo de vida e a identidade do caipira.
Pela primeira vez a condio de expropriao do trabalho sob o cativeiro da terra
apresentada tipos tnicos e, assim, sobre uma mesma categoria de sujeito de trabalho e
cultura camponesa, constitui desiguais segundo a raa ou a mistura delas: o branco, o
negro, o caboclo e o mulato. Feitas as contas, os tipos puros (branco e negro) so mais
coletivamente virtuosos do que os tipos mestios (mulato e caboclo). Assim, ao branco
ele reserva um modo de ser muito semelhante ao que pouco depois Oliveira Vianna ir
atribuir nobreza rural paulista. Depois constitui dois tipos intermedirios de
identidade e, finalmente, atribui ao caipira caboclo traos prximos aos que Saint-
Hilaire e Monteiro Lobato, entre tantos outros, descreveram no caipira em geral.
Vejamos como.
O caipira branco descende da melhor estirpe dos povoadores portugueses ou
de migrantes de outros cantos da Europa. E gentil e bem educado, preocupa-se com a
educao dos filhos, mesmo quando os pais so analfabetos. E, entre todos, o mais
inteligente quase um sbio rstico e o mais honrado. Fiel, hospitaleiro, bondoso,
paciente, solidrio entre iguais e bom amigo quando eventualmente patro de outros
camponeses caipiras. Com o mesmo cuidado e o mesmo empenho no trabalho cuida da
casa limpas da cozinha ao quintal e das terras de lavoura.
O seu oposto o caipira caboclo, um tipo prximo ao ndio, cujo sangue bugre
lhe corre nas veias, meio coletor da mata, meio mau lavrador, j no mais um ndio e
ainda longe do civilizado. Uma gente arredia tanto ao trabalho quanto educao, que
emprega as suas virtudes naturais a inteligncia viva. a coragem, a sade fsica
inigualvel, a agilidade para produzir maus frutos sociais. Para viver mais do prazer
da pesca e da caa do que do trabalho com a terra. Para ser velhaco e barganhador
como os ciganos, dado s mulheres, a brigas e desordens que o gosto pela cachaa
aumenta. Assim, a descrio anterior de misria e abandono que se fez sobre o caipira
deve ser atribuda a essa gente imunda e desleixada no corpo, na casa e na roa. Esses
caboclos caipiras que no so proprietrios e vivem do que dos outros.
A meio caminho entre o branco e o caboclo existem o negro e o mulato. O
caipira negro pode ser ainda dividido em dois tipos de sujeitos: os pretos velhos e os
negros jovens; os primeiros, doentes. escassos e decadentes, aps haverem sido,
quando escravos, o melhor brao de nossa lavoura. Prximos dos brancos, os negros
jovens so trabalhadores e progressistas, limpos, educados, alegres e dados ao canto e
dana, de que alguns so artistas invejveis. Sem ser to honesto e trabalhador quanto
brancos e negros jovens, muito melhor do que o caipira caboclo, o mulato o mais
vigoroso, altivo, o mais independente e o mais patriota dos brasileiros. Melhor do que
os pretos velhos, procura elevar-se pelo trabalho e, quando empregado, altivo e
fiel, prestando-se a todo tipo de trabalho. (Conversas ao P do Fogo)

O serto revisitado

Aos poucos e desde o lugar social e simblico de onde fala, a escrita que v o
caipira paulista faz sucessivas correes. O que de longe da beira da estrada e do
interesse do domnio parece ser uma vida aos farrapos, incapaz de ser livre por no
poder ser civilizada, de perto aparece como uma vida no margem, mas
marginalizada sob o poder de mecanismos que ao longo do tempo apenas fazem variar
processos de expropriao da terra de trabalho e de controle do trabalho na terra. Uma
vida coletiva pobre e, no entanto, ainda em equilbrio com a natureza, mesmo quando
no limiar de mnimos vitais, no interior de fraes externamente instveis e
internamente resistentes de uma ordem social e simblica cuja expresso na
comunidade, no bairro, no stio surpreendeu vrios estudiosos dos seus sistemas
de trabalho, de trocas vicinais, de criao artstica e atividade ritual.

O caipira preguioso estereotipado no Jeca Tatu de Monteiro Lobato


contrasta radicalmente com a profunda valorizao do trabalho entre
populaes caipiras do Alto Paraba, nas vizinhanas da mesma regio
montanhosa em que Lobato trabalhou como promotor pblico e fixou as
impresses que definiram esse personagem... As observaes desse autor
esto diretamente fundadas na valorizao do modo de vida urbano contra o
tradicionalismo agrrio, o que constitui um dos ncleos da ideologia via
modernizao, que se estrutura no pas ao menos desde o incio do sculo e
que veio a ser um dos componentes bsicos do extensionismo rural no
Brasil... No entanto, esse esteretipo do caipira tem procedncia mais
remota. Ele comea a surgir na documentao histrica, no que respeita
capitania de So Paulo, quando a poltica mercantilista de intensificao das
exportaes de produtos tropicais de qualquer natureza encontra seus
primeiros obstculos na baixa proporo do excedente comercializvel em
relao ao montante da demanda pela metrpole. A economia colonial o
fundo de contraste sobre o qual o capitalismo dependente esboa os
contornos do caipira, estabelecendo os fundamentos modernos de sua
estigmao. (Martins, Jos de Souza, Capitalismo e Tradicionalismo)

Como as condies de trabalho que sucessivas geraes de caipiras atravessaram


em So Paulo explicam um modo de vida que estivemos desfiando at aqui em
diferentes momentos de avaliao? Vamos inverter a direo do olhar e deixar que a
descrio das relaes de poder e trabalho entre a poltica mercantilista dos senhores de
terra e o tradicionalismo agrrio das populaes caipiras explique as razes do ser e da
vida do campons subalterno de So Paulo. Porque, ali onde viajantes e cronistas
encontraram o isolamento das influncias da civilizao senhorial, os efeitos malficos
do cruzamento entre raas ou, ainda, uma espcie de estupidez natural em certos tipos
de homens, pesquisadores do mundo rural brasileiro preferiram ver causas econmicas e
polticas que, com variaes no muito grandes ao longo da histria, geraram e
reproduziram situaes de expropriao e dependncia que fizeram do lavrador
campons do estado o seu campons caipira.
Ao narrar o povoamento de Rio Claro, Warren Dean faz aqui e ali referncias
aos primeiros lavradores pobres da regio nos tempos do amanhecer das grandes
lavouras paulistas de mercado: cana, algodo e caf, O que inicialmente caracteriza o
lavrador caipira ele ser produtor errante. Na verdade, ele, um lavrador obrigado a ser
errante, porque vive de ser empurrado de um serto que conquistou a um outro que vai
conquistar, at ser outra vez expulso. Se uma parte de sua vida nmade deriva de como
ele se relaciona com a natureza, a outra possivelmente mais importante deriva de
como ele se relaciona com os senhores rurais atravs do trabalho e de tratos sobre
questes de posse e uso da terra.
Para estabelecer o lugar do seu cultivo de mandioca, milho, feijo, abbora e
batata-doce, s vezes algum algodo, fumo e inhame, o lavrador pobre invadia matas
que desbravava a poder de fogo. No fim do perodo do inverno o caipira costumava
cortar das matas as lianas e os cips, que eram postos a secar. Mais perto do tempo das
guas ele ateava fogo a uma parte preparada da mata, limpava de alguns tocos o
terreno limpo e plantava ali sementes ou tubrculos. Depois de alguns anos
abandonava terras pouco frteis para a lavoura. Em outros casos, devido a tratos com o
dono, aps trs ou mais anos de lavoura, saa das terras, deixando um pasto
formado para o gado da fazenda.

Por uns cinco ou seis anos repetia-se a queimada antes da plantao. at


que o lugar era abandonado e o mato tornava a crescer. Esse tipo de
lavrador linha poucos investimentos a perder: um casebre construdo
precariamente de taipa, coberto de folhas de palmeira, de cho batido, mais
uma tulha de milho e um monjolo. (Dean, Warren, Rio Claro)

Esta, sim, uma diferena fundamental. Caipiras que os outros viram beirando a
misria eram sujeitos sem a posse legal da terra, moradores de favor em alguma
fazenda cuja propriedade por certo expulsara outros caipiras de suas terras, ou ento
ocupantes posseiros de uma franja de serto sem dono, de onde seriam um dia
expulsos tambm. Diferente o sitiante que, mesmo pobre, habita a sua terra e nela
trabalha, produzindo com o labor da famlia, ao longo de anos em um mesmo lugar, o
alimento caseiro e o excedente, cuja venda, inclusive, supriu as grandes fazendas de
trabalho escravo no passado. Ao lavrador nmade no compensava ocupar a terra com
mais bens do que os que pudesse levar nas costas ou no lombo de dois animais de carga.
No compensava ocup-la com o trabalho que, ademais da roa e do rancho,
acrescentasse benfeitorias que seriam perdidas pouco adiante.
Apenas nas regies onde interessou ao fazendeiro a proximidade de stios de
produo de alimentos, ou nas reas do estado cujas terras, antes ou depois da invaso
do caf, no interessaram mais a senhores de sesmarias ou donos de fazendas, foi
facultado ao campons pobre ser proprietrio legal e preservar, entre geraes, terras de
cultivo, a sua terra de trabalho. Onde quer que o jogo e os valores do mercado agrcola
gerassem negcios com a terra ou terras de negcio, o lavrador dono, posseiro ou
agregado era expulso, empurrado em direo a um oeste que durante muito tempo
existiu dentro das fronteiras de So Paulo e pareceu interminvel. Isto quando, perdida a
propriedade, a posse ou o direito de plantar, o lavrador no era reduzido condio de
agricultor parceiro, agregado ou outra qualquer categoria de trabalhador submetido a um
patro.
O processo de expropriao nem sempre chegava aos olhos da justia, de resto,
sempre mais inclinada ao senhor do que ao servo. Acontecimento corriqueiro e que
envolvia em pouco tempo toda uma regio anteriormente aposseada pelo caipira, era
mais fcil resolv-lo atravs da violncia que, mesmo quando armada, reclamava ser
legtima. Warren Dean narra o que ocorreu em Rio Claro.

Apesar de que os ocupantes originais tivessem conseguido um certo direito


s terras que cultivavam, a maioria foi sumariamente expulsa pelos
donatrios. Deix-los permanecer, mesmo que o novo dono no tivesse a
inteno de utilizar a terra imediatamente, teria colocado em questo o seu
prprio direito, alm de oferecer mau exemplo para os rendeiros que ele
pudesse ter instalado na propriedade. Os ricos em geral no recorriam aos
tribunais para resolver essas questes, o que dava trabalho e trazia implcita
uma desagradvel igualdade de direitos. Era mais fcil armar um capataz e
alguns rendeiros e mand-los atrs do morador, que depois era designado
como intruso. Ameaas de danos s plantaes em geral precediam uma
violncia maior, de maneira que a expulso quase sempre se processava sem
derramamento de sangue. (Rio Claro)

Um pouco mais em direo a Minas, em Itapira, onde estive pesquisando, as


relaes no foram diferentes. Ali tambm, como passo a passo por toda a Provncia de
So Paulo, o caipira sucedia o bandeirante e precedia o senhor de terras. A chegada de
um senhor de escravos a uma regio de bairros de situantes caipiras, at hoje se
guarda na memria das cidades paulistas como o momento do seu verdadeiro incio. O
bandeirante desbrava, o caipira ocupa, o senhor civiliza. Por isso, parece to legtimo ao
senhor expulsar das terras o lavrador pobre e ocupar o seu trabalho, quanto pareceu
legtimo ao bandeirante limpar do caminho os ndios e os aprisionar.
Quando chega ao bairro dos Macucos depois vila do Rio do Peixe e,
finalmente, Itapira o primeiro fazendeiro-comendador dono de escravos e lavouras
de caf, ele encontra lavradores caipiras criando porcos, cultivando lavouras de milho e
mandioca e vivendo em torno a uma capela de Nossa Senhora da Penha, que fizeram
edificar. Em 1864, por iniciativa do prprio comendador Joo Baptista de Arajo
Cintra, a cmara municipal da vila de ento emite um estranho atestado que traa a
diferena entre os povoadores pioneiros e o grande fazendeiro. Em linguagem do tempo
o documento ficou assim:

A Camara Municipal da Villa da... em Sesso de hoje resolvo que se


attestasse o o Suplicante Joo Baptista de Arajo Cintra seguinte que em
mil oito centos e quarenta mudou-se para o Destricto desta Villa que ento
hera Curato tendo meia dzia de casas insignificantes e construidas de
madeiras e. sem alinhamento, tendo elle j fortuna comeou a influir o povo
que applicava-se na criao de porcos. assim como para edificarem casas na
povoao, dando elle exemplo em construir casas de taipas, e de bom gosto
de modo que o augmento da povoao foi rpido e por isso foi logo elevada a
Freguesia e mais depois em mil oito centos e cincoenta e oito Villa.

Muitos anos depois, em 1977, um colunista de jornal da cidade relembra o


comendador Cintra ...aparecendo mais tarde na tmida histria caipira, mostrando aos
basbaques penhenses como que se plantava caf, como que se criava porcos, como
que se construa casas de taipa, como que se enriquecia. O fato que poucos anos
depois de chegar & Atibaia a Itapira, o comendador-fazendeiro constri com o trabalho
dos seus escravos uma igreja, urna cadeia e uma casa de cidade. Ele manda demolir a
capela dos povoadores caipiras, transfere para a igreja dos fazendeiros a imagem de
Nossa Senhora da Penha e reclama a elevao de Penha do Rio do Peixe condio de
vila. Lavradores caipiras perdem suas terras, mas nem todos. Alguns, os mais
prsperos, mantm posses e stios e produzem agora tambm para a subsistncia das
fazendas de trabalho escravo e para a da cidade, que cresce com o caf e a estrada de
ferro. Muitos so forados a vender as suas posses, quando no as tiverem antes
usurpadas por grandes proprietrios que chegavam regio com ttulos de terras nas
mos. Dentre os caipiras sem terras do bairro dos Macucos, alguns migram para um
outro oeste. Outros so absorvidos pelas fazendas, como moradores, agregados,
trabalhadores diretos ou parceiros, a quem foi permitida ainda, durante alguns anos
mais, a posse precria de pores pequenas de terra para o plantio das roas de
comida. Quando a memria do trabalho agrrio lembra hoje que as grandes fazendas
do passado foram, como os bairros rurais, unidades quase autnomas de produo e
beneficiamento dos seus bens de alimentao, vesturio e moradia, em boa parte sobre
o trabalho cotidiano de famlias de camponeses expropriados que se est falando.
Quando depois de 1888 os escravos saram em massa das fazendas, os
moradores caipiras trabalharam lado a lado com colonos italianos que haviam chegado
regio de Itapira antes mesmo da Abolio. Nos anos sucessivos a 1880, quando pouco
a pouco o valor do caf e, logo depois, o da cana, tornou vantajoso o uso exclusivo de
toda a terra para plantios de mercado, esses caipiras livres, depois revestidos como
agregados, colonos, camaradas, comearam a ser expulsos das fazendas de caf que
anos antes expulsaram os seus pais e avs de suas prprias terras. Voltariam a elas, aps
a decadncia do caf, primeiro como camaradas e, bem mais tarde, como os
trabalhadores volantes de hoje A pequena histria de trocas e conflitos entre moradores
pioneiros e senhores tardios na antiga Penha do Rio do Peixe pode ser multiplicada pelo
nmero de quase todos os municpios de So Paulo, alguns antes, muitos depois. Pois
em sucessivos momentos da ocupao dos sertes de So Paulo, donatrios de
sesmarias, bandeirantes e seus descendentes, revertidos condio de agricultores,
senhores de grandes posses, ocuparam pela fora, ou com a fora de direitos senhoriais
sempre negados aos lavradores pioneiros, as extenses maiores das melhores terras da
provncia, desde onde empurravam famlias e levas de lavradores caipiras sertes
adentro.
Eis o que foram, anos a fio, os camponeses da provncia: uma fronteira mvel de
ocupao de territrio que antecedia uma segunda fronteira, mais lenta, mais poderosa,
de senhores e escravos. Uma franja de fazendas que os seguia, expulsava e ocupava
territrios conquistados pelo caipira atravs & um duplo servio no-reconhecido ao
senhor de terra e gente. Como os sertes frente estavam quase sempre ocupados por
ndios, parte das tarefas do lavrador livre era lutar contra eles uma luta menos
herica, mas mais eficiente que a do bandeirante e limpar de bugres regies de
futura lavoura. Por outro lado, derrubando matas, abrindo picadas e estradas (os
tropeiros de So Paulo tm a uma importncia muito grande) e preparando com a roa
de toco o limpo da lavoura da fazenda, o caipira deixava prontas para ela reas
imensas de ocupao para o caf, a cana e o algodo, mais tarde para o gado.
Quero voltar a depoimentos de Warren Dean.

Os donatrios das sesmarias, portanto, tomaram conta dos melhores solos


em Rio Claro sem necessidade de recorrer a muita violncia. Mesmo quando
se retiravam, os caboclos prestavam um servio ao regime das grandes
lavouras. Ao se deixarem empurrar sempre mais no sentido das terras
virgens que ficavam entre os aborgines e as fazendas, os caboclos
desempenhavam a funo de inestimvel valor ainda que no reconhecida
de manter os ndios distncia. As lavouras de Rio Claro no eram
atacadas por eles, ainda que a isto estivessem expostas, se no fossem
protegidas pela milcia. Somente os caboclos sofriam represlias pela
tomada das terras dos indgenas. Alm disso, os grandes proprietrios
ficavam a salvo da hostilidade dos caboclos, pois estes descarregavam suas
frustraes em cima do mais acessvel de seus inimigos, e desprezavam os
ndios tanto quanto os fazendeiros os desprezavam. (Rio Claro)

Durante boa parte da colonizao dos oestes paulistas, os caipiras que no


migravam em famlia para um serto mais frente ficavam entre cercos de fazendas.
Aparentemente livres e at autnomos em sua pobreza, na verdade a pessoa, a famlia e
a comunidade caipira mantinham laos estreitos de trocas de servios com sitiantes em
melhores condies econmicas e com fazendeiros. Sitiantes proprietrios e, no raro,
alfabetizados abasteciam cidades e fazendas, votavam e, portanto, serviam
politicamente aos grandes proprietrios. No limite faziam parte da reserva armada de
fazendeiros a quem se aliavam, no raro por laos de amizade dependente e compadrio.
Caipiras, quando gente da fazenda, agregados ou serviais, passavam a viver de
favor nas terras de um patro e, em troca, viviam a seu servio.
Fora casos de provisria exceo, famlias e comunidades de caipiras existiram
poltica, econmica e culturalmente como uma frao constitutiva de um sistema social
agrrio mais amplo. Um sistema que teve em uma de suas pontas a cabana queimada do
indgena morto e, na outra, a manso colonial da fazenda de caf. Que determinava no
seu interior a posio inevitavelmente marginal do mundo de vida e trabalho do caipira.
Esta marginalidade imposta no um acidente margem da prpria vida caipira. Ao
contrrio, o que a constitui.
Subalterno a todas as dimenses de sua organizao, o lavrador caipira no
existiu fora da economia agrria colonial e, depois, capitalista. Empurrado, cercado ou
posto margem, ele um dos produtores essenciais da riqueza da provncia e, depois,
do estado. No pensa s o serto e nem habita o passado. Pensa a cidade, o mercado
para onde leva o que colhe da roa de toco e do quintal e de onde traz os produtos e as
idias que o artesanato e o imaginrio caipira no conseguem produzir. A partir de
quando existe cercado, o lavrador caipira produz, vive e pensa em funo deste cerco,
porque, trabalhando no interior dos seus espaos aparentemente mais margem, ele
existe integrado na ordem que o cerco gera e impe. Jos de Souza Marfins sintetiza
admiravelmente esta idia.

A vida material, social e cultural do caipira parece, por isso, organizar-se e


desenrolar-se como se estivesse cumprindo um ciclo natural, margem do
mundo de abstraes construdo pela atividade humana acumulada ou
como se frutificasse de uma relao homem-natureza no mediada pelos
resultados acumulados da atividade fora da economia do excedente. Ao
contrrio, porm, o excedente procede a uma excluso integrativa do caipira
na sociedade capitalista: justamente porque no produzido como uma
mercadoria, no implica necessariamente a interdependncia e as relaes
implcitas na diviso social do trabalho, mas porque demandado como
mercadoria necessria, sob essa forma de produo sem custos
(especialmente monetrios).
O excedente uma forma de mercadoria que se diferencia das outras na
medida em que a sua comercializao, isto , a sua efetiva realizao como
mercadoria, depende das condies do mercado e no da organizao e da
atividade deliberada do produto. O excedente, alis, no caracteriza apenas
o mundo caipira, mas tambm a categoria mais geral que o engloba, bem
como a outros mundos com algumas singularidades culturais, que o
mundo rstico. (Capitalismo e Tradicionalismo)

A extrema violncia gratuita que Saint-Hilaire viu entre os caipiras da provncia,


na verdade existia institucionalmente por toda parte e, como sempre acontece, pesava
sobre o lado mais fraco, ou seja, sobre eles. Perodos de conquista do territrio paulista
foram sangrentos. Depois de lutarem por muitos anos contra os ndios, senhores da
provncia lutaram com as suas milcias entre si e lutaram contra lavradores posseiros,
pela posse das melhores terras. A aparente calma que hoje reina entre as fronteiras
agrrias do estado quer a custo esquecer que cada palmo de terra foi muitas vezes
passado de mo em mo atravs das armas.

O sistema social das grandes fazendas era de extrema violncia. A expulso


dos posseiros, a defesa dos limites imprecisos das propriedades, a superviso
da fora de trabalho escravizada, o controle social dos que no tinham
terras, tudo exigia o emprego da fora. Agregados eram recrutados como
capangas, uma polcia particular que guardava as divisas e executava
qualquer ato violento que o fazendeiro lhes ordenasse, inclusive assassinatos.
(Rio Claro)

Todos os elementos integradores do sistema social da conquista e consolidao


de fronteiras agrrias so de algum modo atravessados pela violncia. As relaes com a
natureza, entre parentes, vizinhos, companheiros de trabalho, empregados e patres,
senhores e escravos, oscilam entre estratgias de poder e violncia e estruturas, s vezes
muito frgeis, de controle social da violncia. Assim, ao estudar a vida social do homem
livre da ordem escravocrata em So Paulo, Maria Sylvia de Carvalho Franco revela
modos diferenciados de um exerccio rotineiro da violncia, cuja principal caracterstica
ocultar, sob a aparncia da gratuidade, o seu papel de reguladora e controladora das
relaes de trocas sociais e simblicas de todas as categorias de pessoas da regio, logo,
de todo o seu sistema de organizao da vida e do trabalho.

Essa violncia atravessa toda a organizao social, surgindo nos setores


menos regulamentados da vida, como as relaes ldicas, e projetando-se at
a codificao dos valores fundamentais da cultura. (Franco, Maria Sylvia
de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata)

No interior da frao de classe de que parte e dentro do espao social e


geogrfico de que o rancho, a roa e o bairro so o lugar da vida e os seus smbolos
mais amados, os caipiras dos sertes de So Paulo souberam desenvolver um modo de
vida regido por cdigos estreitos de trocas entre eles e com os outros. Cdigos
extremamente criativos de relaes baseadas no trabalho, no respeito mtuo, nos valores
da f religiosa do catolicismo campons, na honra e na solidariedade. A violncia e o
controle social da violncia no destroem os valores de honra e solidariedade que so a
condio da identidade e da existncia do campons. Acabam sendo parte da vida e, por
isso invadem o cotidiano de trabalho, os dias de festa, as modas de viola, os rituais
devotos dos mundos do serto. Atravessam os domnios da vida de uma gente que afinal
precisou aprender lies de ataque e defesa para sobreviver fsica, social e
simbolicamente: a bravura, o desafio permanente, a honra macha que se lava com
sangue, o aparente pouco valor sua vida e dos outros. Este o caminho pelo qual,
no que faz, fala e canta, a gente caipira de So Paulo misturou a coragem pessoal
mansido, de tal sorte que no miolo da imagem que a cultura caipira faz de si prpria, a
sua pessoa oscila sem custo entre uma hospitalidade humilde, de portas abertas, e
repentes de bravura e atos de violncia.
Assim, o conflito por aparente pouca coisa, o desafio presente nas sombras da
fala e do gesto, a resposta explosiva ao que ataca a vida ou ameaa a honra so os atos
prprios que costuram os valores do cdigo social da moralidade caipira. Um cdigo de
regras e princpios de conduta entre iguais onde todas as leis vindas de fora falharam,
a no ser quando definiram a legitimidade do poder e da violncia do senhor sobre o
pobre.

Em um mundo vazio de coisas e falto de regulamentao, a capacidade de


preservar a prpria pessoa contra qualquer violao aparece como a nica
maneira de ser conservar intocada a independncia e ter a coragem
necessria para defend-la so condies de que o caipira no pode abrir
mo, sob pena de perder-se. A valentia constitui-se, pois, como o valor maior
de suas vidas. (Homens Livres na Ordem Escravocrata)
De vidas que adiante, leitor, veremos entretidas com o trabalho, no domnio da
famlia e em mutires solidrios.

O TRABALHO DA TERRA

Os tempos e os dias: ciclo do trabalho agrcola

Quando difcil Compreender quem o caipira, ajuda ouvi-lo falar de si mesmo.


Ajuda, por exemplo, escutar velhas modas de viola, ouvir a letra das voltas da Funo
de So Gonalo, das carreiras do cururu. No entanto, talvez por se ver simblica
mente no espelho com que o homem da cidade reflete sua pessoa, a sua cultura, o
lavrador caipira nega na fala e nega na msica que canta a sua prpria condio. Desde
o passado at hoje, a msica caipira, depois msica sertaneja, evita falar do cotidiano
de trabalho campons. Os personagens que o lavrador canta so quase sempre no-
lavradores. So outros homens do campo, mais errantes, mais aventureiros: vaqueiros,
pees de boiadeiros, domadores. No h por que falar dos sujeitos e do trabalho
rotineiro da lavoura, feito em famlia, s vezes em equipes ampliadas de vrios
trabalhadores. Santos, viventes sub ou supranaturais, bichos do pasto ou da mata, tipos
humanos de identidade aventureira, casais de enamorados so os agentes dos assuntos
dos versos das msicas e das falas costumeiras.
Justamente a face negada do lavrador caipira a do trabalho agrcola que, a cada
ano, rege a sua vida dentro de ciclos interminveis de plantar, tratar, colher, comer.
Ciclos que criam o ritmo que move todas as outras faces reais ou imaginadas do seu
mundo. A rotina do trabalho recorta as outras da vida pessoal, familiar ou comunitria e
domina o arranjo: 1) das situaes de trocas entre o caipira e a natureza com a qual
ele sempre se v atravs da mediao do trabalho de coleta na caa e na pesca, na
cata de mel, de frutas e razes, de ervas medicinais, de madeira; 2) das situaes e
estruturas de relaes entre familiares, parentes, vizinhos, companheiros de trabalho,
outras categorias de iguais pobres do lugar ou de fora (colonos, tropeiros, mascates,
oficiais e artesos dos ofcios de criao e construo roceira); 3) das situaes e
estruturas com o mundo dos outros (fazendeiros e outros senhores, homens da cidade,
autoridades); 4) dos arranjos do calendrio e das formas de trocas simblicas com o
sagrado, nas crenas e cultos pessoais, familiares e comunitrios,
O trabalho com a terra no como o que se faz na cidade, na fbrica, por
exemplo, ou na oficina. Ele no obedece apenas ao voleio da vontade dos homens, ou
aos jogos das relaes de mercado de bens e do trabalho, O labor da lavoura lida
diretamente com os mistrios da vida que reproduz. No depende, portanto, apenas das
leis naturais do ciclo vital de cada tipo de planta com que lida, mas da dana anual do
tempo e dos seus efeitos sobre todos os seres vegetais e animais com que o lavrador
lida, Durante o ano, depende da variao regida pelos perodos opostos de tempos de
seca e das guas (que alguns chamam inverno) e que determina a alternncia de
momentos de trabalho e de vacncia. Entre eles, o lavrador caipira realiza um
trabalho cclico, descontnuo. Principalmente no passado, em tempos de conquista do
territrio, todos os anos a famlia caipira enfrentava as mesmas tarefas do lavrar e, de
tempos em tempos, quando viajava para outras terras, acrescentava novas e mais rduas
tarefas; invadir franjas de mata e transform-las em reas de lavoura; preparar o solo
conquistado para o plantio; plantar a semente, a rama ou o tubrculo sob a terra
preparada; zelar do que foi plantado carpindo o terreno semeado entre as ruas dos
vegetais j crescidos; realizar a colheita, de uma s vez, como no caso do feijo ou do
algodo, vrias vezes, como no caso do milho (colhido em parte verde e em parte
seco) ou da mandioca; tratar do que colheu, cuidando da armazenagem do que vai ser
consumido ao longo do ano ou vendido no mercado, transformando os produtos que,
como o milho e a mandioca, podem ser beneficiados e convertidos em formas diversas
de alimentos (descascar, pilar, bater, moer, torrar e muitas outras operaes);
comercializar o excedente colhido ou transformado no quintal da casa.
Durante quase o seu ciclo de vida, a famlia faz e refaz todas ou quase todas
estas tarefas agrcolas, artesanais e mercantis. A elas se somam muitas outras, de tal
modo que, parecendo existir fora do trabalho durante a vacante, a famlia caipira
realiza pequenos trabalhos o tempo todo. No passado, a caa, a pesca e a coleta nos
campos e matas. Hoje, quando essas rotinas primitivas diminuem, elas concorrem com
as atividades de artesanato rstico da casa e do quintal, Muito embora tambm muitas
delas tenham perdido o seu tempo ou a sua importncia, com elas que a mulher, o
marido e os filhos ocupam o tempo que sobra, seja da labuta da roa, seja dos
cuidados da cozinha, O trato das criaes; aves, porcos, o pouco gado que algumas
famlias possuem. Os cuidados da horta, algumas vezes, do pomar. Os reparos dos
objetos de montaria ou de trabalho com a terra. A criao do artesanato costumeiro:
roupas de algodo, leo de mamona, esteiras de palha, pequenos objetos de couro ou de
barro.
Na lavoura, a cada momento do ano a famlia pode estar realizando um ou mais
tipos diferentes de servio junto a qualquer uma das qualidades de plantas com que
trabalha. A colheita de uma roa pode coincidir com a limpa de uma outra, ou
mesmo com o incio do preparo do terreno para uma terceira. Todo o conjunto de
atividades roceiras divide-se em formas tambm muito diversas de aplicao de
tecnologias rsticas. Ao contrrio do que imaginam os olhos da cidade, o saber do
trabalho do caipira extremamente complexo e diferenciado, e o que pode parecer um
trabalho fcil e montono de um mesmo curvar-se sobre o solo com a enxada envolve
um sem-nmero de pequenos arranjos e segredos de conhecimento coletivo onde a
eficcia do uso rstico consagra a norma do fazer do campons caipira.
Caminhemos, leitor, durante algum tempo, com dois paulistas que souberam
estudar a fundo a rotina da vida do caipira de So Paulo: Alceu Maynard Arajo e
Antnio Cndido.
O preparo da terra para a lavoura, que no passado obrigava a queimada do
mato ou do capoeiro, hoje em dia cada vez mais dispensa essa coivara. Expulsos
da mata, tanto quanto da terra; os camponeses caipiras que plantam ainda esto livres do
exerccio pesado de preparar a mataria para o fogo, de queim-la, de lidar com as
sobras do fogo e destocar pores da terra limpa. No entanto, fora terras lavradas j
h algum tempo e onde o problema passa a ser a reduo da fertilidade; fora reas cada
vez menores reservadas ao poisio o descanso peridico da terra cultivada os
lugares de campo ou de capoeira fina exigem um tempo longo de preparo entre a
roada e a arao.
Tanto quanto a bateo de pasto, um alqueire de lavoura exige uma semana de
trabalho de um homem, ou pelo menos seis dias de roada da capoeirinha fina.
Depois de seca a ramagem roada, em poucos minutos ela se queima, mas a mesma
poro de terra requer at cinco dias para ser arada por um homem e uma junta de bois.
O trabalho da terra comea com o seu preparo para receber semente,
variando conforme o relevo e a vegetao. Na zona em apreo no h mais o
problema de queimar a mata virgem; planta-se em terra de capoeira ou de
capinzeiro duro. No primeiro caso, deve-se distinguir o capoeiro e a
capoeirinha fina, o primeiro requerendo machado e deixando tocos que
impedem a arao, devendo a terra ser revolvida a enxada. A segunda, mais
freqente na zona, requer foice, como as terras de capinzeiro. (Os
Parceiros do Rio Bonito)

Isto acontece na maior parte das terras onde trabalham hoje em So Paulo os
herdeiros dos camponeses tradicionais. O tempo dedicado ao plantio varia muito. Um
lavrador caipira trabalhando sozinho pode levar seis dias para plantar milho no risco,
no quadrado de um alqueire de cho; dois dias para riscar e um para semear. O mesmo
lavrador solitrio gastar at vinte dias para semear um alqueire de feijo no risco, ou
dezesseis dias para plantar o mesmo feijo na cavadeira. Mais difcil, uma quarta de
arroz (a quarta parte de um alqueire) consumir em mdia dezessete dias de trabalho
no risco e dez na cavadeira. (Os Parceiros do Rio Bonito)
Sada ao sol, a planta exige cuidados contnuos. O caipira realiza na roa o
trabalho de carpir, de livrar os ps de cultura da proximidade das ervas daninhas.
Faz o trabalho de fofar a terra ao redor de cada p ou de cada touceira de planta
semeada. At perto do tempo da colheita, o milho e o feijo exigem uma limpa a cada
vinte e dois dias. Menos, quando a terra, j mais cansada, d at menos praga. Este
tambm o espao para a carpio da batatinha, enquanto o arroz vai precisar de trs
ou quatro limpas, uma a cada vinte dias, at ser colhido, dependendo do tipo de solo
onde foi semeado.
O tempo dedicado colheita e o tipo de trato posterior dado aos gros ou
tubrculos colhidos variam muito. Mas a regra que o trabalho da safra seja feito em
ritmo muito mais veloz do que todas as operaes de trabalho agrcola anteriores.
Cada tipo de planta que habita o mundo do caipira tem o seu ciclo de vida.
Algumas so quase permanentes, como o caf e a maioria das grandes fruteiras. Outras
so temporrias, permanecendo vivas de menos um pouco de um ano a um pouco mais,
como a cana e a mandioca. Outras so francamente sazonais, como o algodo, o milho,
o arroz e o feijo. Em regime de policultura rstica, cada uma delas obriga a famlia
caipira a executar, em momentos cruzados ou seqentes, as mesmas tarefas de cada
rotina completa, desde o preparo do solo colheita e beneficiamento.
Esquecido de horscopos (os nicos astros importantes na vida de trabalho do
campons tradicional so o Sol e a Lua) e distante do calendrio civil que a cidade
reinventa a cada ano, o ano do caipira regido pelo entrecruzamento das seqncias
do trabalho com os tempos das festas da religio.

Em agosto faz-se a queimada do mato, aps o preparo do aceiro. Este


consiste de um trecho limpo a enxada em tomo da roada para que o fogo
no salte no mato, feito no perodo da vagante. Espera-se 1 uma chuva
para semear o milho. Tanto faz plantar em agosto, setembro, outubro ou
novembro, que sempre se colher na mesma poca, porque at fim de junho
forosamente estar seco. Quanto mais tarde for plantado, mais depressa
florescer e secar. s vezes chegam a atrasar tanto que o plantam em
dezembro, quando arriscado perder tudo. Planta-se do quarto crescente em
diante, para nascer na minguante, para evitar a broca. Bicha e cai a cana do
milho, quando d broca. O milho A colocado numa casca de tatu e vai-se
tirando dali os gros para a semeadl4ra. Mata-se o tatu e colocam -se ento
as sementes na sua casca, para que os outros tatus no comam milho-
Mistura-se milho com querosene para proteg-lo contra o tatu. Outros fazem
o milho ficar de molho na gua. para. quando plantado. nascer mais
depressa e evitar que o tatu coma. (Arajo. Alceu Maynard de, Ciclo
Agrcola. Calendrio Religioso e Magias Ligadas Plantao. Revista do
Arquivo Municipal, n CLIX)

Desde tempos antigos lavradores caipiras lidam com dois tipos de feijo: o das
guas que se planta entre setembro e novembro e pode ser colhido trs meses depois, e
o da seca que se planta entre fevereiro e a primeira semana de maro e colhido entre
abril e maio. A mandioca, que completa a trilogia da comida essencial do caipira,
pode ser plantada em qualquer poca do ano. Quando isto acontece durante os meses
das guas a rama logo brota. Quando plantada na seca, espera pelas primeiras
chuvas para brotar. Em geral colhida entre um ano e meio e dois anos aps o plantio.

Dizem outros: em outubro no presta plant-la porque a terra est muito


encharcada dgua. Ela prefere sempre terra seca e tambm tempo seco. O
dia de picar rama de mandioca para plantar precisa estar bonito, com
bastante sol para secar o leite da rama, porque seno no d raiz. Planta-se
na lua nova. (Ciclo Agrcola...)

A cana-de-acar leva em mdia de um a um ano e meio para madurar. E


costume plant-la entre novembro e dezembro. Ela tambm pode ser plantada em outros
perodos do ano, mas o que vai de fins de junho a comeos de setembro evitado por
causa da seca.

Quem tem lavoura de cana no descansa como os outros nos meses de maio
a junho, pois nessa poca que se fica ocupado nos engenhos; em maio
comea a colheita. (Ciclo Agrcola...)

Ora, leitor, se pudermos imaginar que uma famlia de camponeses tradicionais


de So Paulo no cultivava e no cultiva ainda, quando pode menos do que trs
ou quatro das culturas enunciadas aqui, fora as outras que, em pequenas roas ou em
cantos do quintal so tambm roas comuns em seu mundo, difcil acreditar na
possibilidade de que a famlia caipira possa passar a maior parte dos meses do ano
desocupada do trabalho. No entanto, como entre os tipos de lavouras mais usuais h
algumas correspondncias ao longo do ano, a rotina do trabalho campons tradicional
oscila entre perodos de mais e menos atividade agrcola. Sabemos que o lavrador
trabalha mais intensamente durante os dias de preparo do terreno, de plantio e de
colheita. Trabalha menos quando a planta, plantada, exige apenas a limpa, o exerccio
roceiro de carpir o solo com a enxada. Trabalha menos ainda durante tempos de
vagante, entre a colheita da ltima roa e o comeo de um novo ciclo de plantio,
com um novo preparo do terreno, da derrubada e queima do mato (onde isto ainda
feito) arao.
O trabalho e a vaga ou vacncia se alternam. A grande vagante vem
depois da colheita. Custa chover, pouco se ajusta camarada em julho ou
agosto. Faz-se aceiro em setembro. Queima-se campo em outubro ou
novembro. Roa -se para plantar em agosto e queima-se em setembro. Aps a
queimada espera -se uma chuva para molhar a terra. Ento lana- se a
semente. E o plantio que sempre deve comear em setembro, mas quando as
chuvas tardam, ser em outubro. Em fins de dezembro, comeo de janeiro, h
uma pequena vaga. (Ciclo Agrcola...)
Alceu Maynard Arajo desenhou o ritmo de trabalho do lavrador dos sertes ao
longo do ciclo anual do trabalho caipira, apresentado no Grfico 1.
Dentro de um calendrio agrcola que comea em setembro e termina em
outubro do outro ano, atividades de trabalho na roa alternam-se com perodos de menor
ocupao com a lavoura. Entre setembro e novembro ocorre o tempo de plantio mais
intenso de feijo e milho, assim como de outras roas menos comuns. Entre fevereiro
e maro so feitas as colheitas do grande plantio. Mas entre fins de abril e comeo de
agosto (mais raro) acontece o grande perodo de colheitas que antecede o tempo da
vagante maior, que ocupa os meses de agosto, parte de setembro e uma frao de
outubro, na dependncia de quando comeam as chuvas.
Antnio Cndido resumiu o ciclo agrcola em uma regio caipira de So Paulo
conforme apresentado na Tabela 1.
Em regies tradicionais do estado, onde uma agricultura caipira decadente divide
terras e o tempo dos homens com a pecuria leiteira, o ciclo agrcola sofre algumas
modificaes, de modo que, como disse um lavrador de Catuaba, em So Lus do
Paraitinga, querendo, o homem do campo tem trabalho o ano todo.
Para que o ciclo do trabalho do lavrador de Catuaba se aproxime daquele a que
estamos acostumados o do calendrio civil sigo a ordem natural dos meses e
observo o depoimento de dois lavradores da regio. Em janeiro se comea a colher o
feijo das guas e o milho verde, com que se fazem pamonhas, curaus e outros
derivados. Em fevereiro alguns comeam a plantar o feijo da seca. Em maro planta-
se ainda o feijo, fazem-se os canteiros de cebola e se comea o plantio do alho, que
deve estar concludo at a Semana Santa. Terminadas as atividades mais intensas de
plantio, vrios lavradores so recrutados para a bateo de pasto - Esta atividade de
limpeza dos morros, onde pasta o gado leiteiro dos donos de fazendas ou de outros
terrenos, pode ser efetuada durante todo o ano. Mas ela intensa apenas nos meses
entre abril e julho, quando as chuvas diminuem, os pastos comeam a querer secar e o
trabalho com o plantio e o preparo da terra menor. Este tambm o tempo dos
mutires de bateo em toda a regio. Em maio se colhe o milho seco e se comea a
colheita do feijo da seca. Em junho e julho ainda se colhe o feijo da seca com
menor intensidade. Alguns lavradores preparam os seus terrenos de propriedade ou
arrendo para os plantios dos meses seguintes. Quando as chuvas chegam cedo, j em
agosto se planta o feijo das guas, o milho, a mandioca e a cana para o gado,
Setembro e outubro so meses de plantio e, quando as chuvas atrasam um pouco, ele se
realiza intensamente em outubro, podendo invadir novembro e at dezembro. Mas a
regra que estes dois ltimos meses do ano sejam j de limpas dos terrenos
plantados.
O calendrio dos ciclos agrcolas entremeia outros: o das festas religiosas do
campesinato e de sua vida social dentro e fora do mbito de uma comunidade, de um
bairro rural, por exemplo. No apenas se relaciona com eles, de tal sorte que as grandes
festas, romarias e visitas entre parentes ocorrem com mais freqncia nos perodos de
vagantes, mas, de certo modo, determina a variao dos ciclos da vida social.
H muitos anos o mesmo Alceu Maynard Arajo relacionou em grfico as
alternncias dos ciclos da vida caipira (ver Grfico 2).

Este o momento de retomarmos alguns passos j andados, para lembrar que


toda esta atividade de roa e pasto entremeada com servios familiares que vo da
cozinha ao comrcio e atravessam processos de beneficiamento, circulao e venda de
produtos rsticos de comer, usar e comercializar. Produtos trazidos da mata, dos
campos, da lavoura grossa ou da lavoura fina dos cantos do quintal. Produtos que,
algumas vezes, quando chegam ao mercado de So Lus do Paraitinga passaram por
vrias operaes sbias que a tradio consagrou. Como o trabalho familiar que mi a
cana e faz a garapa e dela faz o melado, a rapadura, o acar e a pinga, e que de tudo
faz ainda o leo de cana, que remdio. Coisas com que o trabalho caipira lida e
depois usa para comer e beber, para curar, para vender, para o prazer.
O que fica da matana de um capado exige preceitos artesanais diferentes
conforme se lide com o couro, com a carne, com a banha, com o toicinho ou com os
midos. A pequena oficina familiar se apossa da leitoa morta e em poucas horas a
transforma na banda de carne que leva como prenda de leilo, enfeitada na festa da
padroeira, transforma-a na banha, na lingia e em outros subprodutos do sangue, da
carne e da gordura.
Uma outra situao familiar de trabalho artesanal do campons caipira a da
feitura e conservao de objetos de uso duradouro e pessoal, como a roupa, ou de
instrumentos de trabalho na casa, no quintal e na lavoura. Coisas que vo desde um
simples cabo de enxada ou de penado que no se faz de qualquer madeira, nem de
qualquer maneira at os apetrechos de secagem do feijo (andaime), de fabrico de
farinhas de milho ou de mandioca, de transformao da cana e de outras colheitas. Que
vo tambm criao da arte caipira: objetos e instrumentos de tecelagem da palha e do
algodo; objetos de madeira e couro, alguns para o uso pessoal, outros para o trabalho
domstico, quase sempre to teis quanto belos, como o pilo e o monjolo.
Assim, a famlia caipira, que durante muitos anos participa do abastecimento de
bens s cidades, trouxe muito pouca coisa dela, sobretudo no passado. Um dos
pequenos orgulhos de todo velho caipira situante (dono de um terreno, um stio)
enumerar o rol de produtos coletados, colhidos e transformados em casa ou na
comunidade, ao lado das poucas coisas compradas na rua: o sal, o querosene, alguns
tecidos, algum remdio.
Uma terceira situao de trabalho criativo quase se confunde com a segunda.
Mas enquanto l a famlia faz as ferramentas, os instrumentos e os objetos de uso
cotidiano da pessoa ou da famlia, s vezes da prpria comunidade, como no caso de
uma ponte, aqui ela cria os inmeros objetos de arte de uso em rituais. Instrumentos de
msica, dana e devoo que, entre cerimnias familiares ou do bairro, fazem a festa
dos intervalos da vida de trabalho. Fora alguns instrumentos musicais comprados no
mercado mais raros no passado, mais comuns hoje em dia todos os recursos
costumeiros do acompanhamento das cerimnias e festas do caipira eram de fabrico
local ou regional. Assim, uma pequena festa de padroeira feita todos os anos em cada
bairro rural rene, nos mais tradicionais, um nmero muito grande de objetos de arte
criados na roa, ou adaptados l.
Um bom exemplo poderia ser o dos festejos do Divino Esprito Santo nas
regies tradicionais do Vale do Paraba, entre Cunha e So Lus do Paraitinga, mas a
mesma coisa acontece tambm em uma pequena festa de santo de fundo de quintal,
como numa Folga de So Gonalo, nos bolses caipiras da regio de Atibaia. O
adufe, a angia, o basto de moambique, a buzina, as matracas, a caixa (tambor
rstico), o pai, o cavaquinho, as violas sertanejas (e seus incontveis modos de as
afinar), o reco-reco, os diferentes e misteriosos tambores do jongo, as bandeiras de
Reis ou do Divino, os estandartes de congos e moambiques, as imagens de santos,
as capelinhas rsticas, os mastros de festa, as mscaras de folias e cavalhadas, os rojes
(foguetes roceiros), as comidas de festa, as vestimentas e fantasias dos grupos rituais.
A no ser em tempos ou em situaes de extrema penria nem sempre raros
a famlia caipira trabalha de sol a sol durante muitos dias no ano. Como iremos ver
a seguir, todas as pessoas do grupo domstico trabalham no servio de algum fazer
durante quase toda a vida. Dificilmente o trabalho comea to cedo e termina to tarde,
entre meninos e velhos, como entre as famlias do campesinato tradicional de So
Paulo. Dois depoimentos.
No perodo de vacncia no quer dizer que o lavrador fique de papo para
o ar. Seus dias de folga so, alguns, preenchidos com o conserto de cercas,
limpeza de crregos, pequenos servios caseiros. E tambm na vacncia que
saem para as romarias, que as festas tm ocasio e se intensificam as
visitas. (Cicio Agrcola, Calendrio Religioso e Magias Ligadas
Plantao)

hbito geral em Laranjeiras dedicar um dia de servio inteiro a uma


nica tarefa, algumas vezes sem subdiviso da manh ou da tarde. H o dia
de trabalho na roa, o dia de preparar a/esta, o dia de fazer farinha, o dia de
ir venda para as compras, etc. No h horrio de trabalho; o dia mais
longo ou mais curto segundo a tarefa a desempenhar. Fazer farinha, por
exemplo, exige que a famlia se levante por volta de trs horas da madrugada
e inicie imediatamente o trabalho. Este /eito ininterruptamente at s
dezessete, dezoito horas, e s vezes se prolonga pela noite adentro. Faz-se
assim, num dia, a proviso para duas, trs semanas, at mais. (Fukui, Lia
Freitas Garcia, Serto e Bairro Rural)

A casa, o quintal, a roa e a mata: lugares de trabalho

Cedo na vida crianas camponesas iniciam, com os pais e os irmos mais velhos,
o aprendizado dos ofcios caipiras do rancho, do terreiro, da roa e da mata. Por volta
dos cinco ou seis anos uma menina comea a ajudar a me nas rotinas da casa. Um
pouco mais tarde ela lava a roupa, cuida das criaes e ajuda a me nas alquimias
dirias da cozinha. Com menos de dez anos mistura a escola quando vai escola
com os cuidados da casa, sempre que a me e as irms mais velhas vo para a roa nos
tempos de trabalho mais intenso na lavoura. Cedo tambm o menino cuida com o pai de
assuntos do quintal e leva pros homens a comida diria, quando a roa longe do
rancho. Um pouco mais tarde meninos aprendem, no oficio do trabalho, os segredos do
lavrar e trabalham com os pais, tios, padrinhos e outros mais velhos nos diferentes
servios do lavrador. Na idade em que algumas meninas da cidade comeam a largar
de lado as bonecas, algumas moas da roa podem estar comeando a carregar o
primeiro filho. Ao longo da puberdade a famlia e a comunidade da vizinhana esperam
que ela conhea boa parte do que uma mulher caipira precisa saber para casar. Para
tocar por conta prpria um rancho e uma famlia. Jovem ainda um lavrador caipira
um homem preparado para tocar sua roa e responder pela sua famlia.
Quando, alguns passos atrs, leitor, eu fazia com Antnio Cndido, com alguns
lavradores de Catuaba e com Alceu Maynard Arajo, a medida dos dias e dos espaos
de trabalho do caipira, tomava como indicador dos tempos gastos em cada operao
agrria os servios roceiros de um s lavrador no eito. Na prtica cotidiana isto nem
sempre real. Lavradores tradicionais no so obrigados a trabalhar em equipes, como
os lavradores volantes, os bias-frias. Mas nem sempre os homens trabalham
sozinhos. Na verdade, uma das caractersticas principais do trabalho campons
tradicional que a unidade domstica o grupo de familiares tambm uma
unidade de produo. Isto significa que o trabalho campons essencialmente um
trabalho em famlia. Sob a direo de um pai-e-marido os familiares ora trabalham
reunidos, como nos dias apressados do plantio, ou nos dias ainda mais apressados de
uma colheita, ora se dividem, entre o rancho e a roa, em diferentes tipos de servios.
Os caracteres do campesinato continuam os mesmos, conforme mostram
diversos autores. A famlia constitui sempre a unidade social do trabalho e
de explorao da propriedade, sendo que os produtos, via de regra,
satisfazem s necessidades essenciais da vida; as tarefas do trabalho se
dividem entre todos os membros d grupo domstico, em funo das
faculdades de cada um, formando assim uma equipe de trabalho. A famlia
assegura a subsistncia de todos os membros; a combinao famlia-empresa
agrcola faz com que se estabelea uma comunidade de posse e uma
comunidade de consumo, alm da comunidade de trabalho, sob a autoridade
de um membro, que o pai de famlia. Comunidade autrquica, a famlia
camponesa tambm em geral autoritria. Por outro lado, o grupo
econmico autnomo constitudo pela famlia camponesa tem tendncia a
uma forte centralizao, procurando se perpetuar por meio de uma ligao
vigorosa com seus meios de subsistncia (isto , com o patrimnio a ser
transmitido aos descendentes), e para tanto negando aos seus membros o
direito de dela se apartar para criar situaes scio- econmicas distintas.
(Queiroz. O Campesinato Brasileiro)

As palavras de Maria Isaura Pereira de Queiroz, adequadas ao campesinato


proprietrio o situante, sitiante em So Paulo servem, com algumas variaes,
para caracterizar tambm a famlia caipira do passado, desprovida de terras de
propriedade. Hoje, tanto no caso do campesinato tradicional proprietrio de terras
quanto no dos ltimos lavradores tradicionais de trabalho familiar sobre terras de
arrendo, algumas modificaes muito significativas esto acontecendo. E difcil a
preservao da unidade familiar em tempos de aguda expropriao da propriedade
fundiria em muitas regies do estado.
Mesmo que isto no ocorresse, as sucessivas reparties de propriedades
originais por direito de herana tornam invivel o trabalho comum de vrios filhos-
herdeiros por muito tempo. Esta apenas uma das razes pelas quais o destino de filhos
de antigos caipiras tende a ser, cada vez mais, a escola, mais do que o trabalho. Bairros
rurais de vrias regies de So Paulo so lugares de velhos e crianas. Adultos e. mais
ainda, jovens migram para regies de trabalho agrrio assalariado, ou para a cidade e o
trabalho urbano.
Mas voltemos ainda ao mundo do lugar de vida e trabalho do campons
tradicional. Se verdade que o pai caipira o patro dos familiares e o dono das
poucas posses familiares, tambm verdade que o seu poder de mando proporcional
ao investimento de seu prprio trabalho. Na lavoura, dele que a famlia espera mais
trabalho e, no raro, um lavrador caipira diz que ele trabalha e os familiares apenas
ajudam. Muitas outras atividades so, vimos, desigualmente distribudas, de tal sorte
que nenhuma rea necessria de servios deixe de ser coberta por algum da famlia.
Marido, esposa, filhos mais velhos e filhos crianas repartem entre si o
trabalho cotidiano de acordo com preceitos consagrados. Isto faz com que, sendo quase
todos os membros da famlia capazes de executar quase todas as operaes, algumas
delas sejam comuns e possam ser indiferentemente executadas por qualquer um; outras
sejam preferencialmente atribudas de acordo com o sexo, a idade e a posio da pessoa
na constelao familiar; e outras, finalmente, sejam atribuies exclusivas desta ou
daquela categoria de membro do grupo domstico. Homens e mulheres, adultos, jovens
e at meninos podem cuidar das criaes de quintal. O trabalho da lavoura
preferencialmente masculino e as equipes de trabalho se completam com a rama
feminina da casa apenas nos momentos mais difceis. Finalmente, um homem que
saber fazer sua comida durante uma jornada de pesca com companheiros
dificilmente lidar com assuntos de cozinha em casa. Por outro lado, exceo a mulher
lidar seja com o gado, seja com as atividades brutas do trabalho da roa. Mulheres
ajudam no plantio, na limpa e na colheita. No participam das atividades de derrubada
de mato, de queima e, principalmente, de comercializao dos produtos da lavoura.
O comrcio (a rua, a cidade, os lugares longe do rancho ou do bairro rural),
a mata e a lavoura so os espaos sociais do homem, logo, o domnio do marido. E raro
que uma mulher caipira v a um destes lugares sozinha e por conta prpria. Ali, em
geral, a esposa acompanha o marido e apenas complementa, com a sua presena e o seu
trabalho, mundos e atividades considerados como de homens: o marido, os filhos mais
velhos que com ele trabalham, os filhos menores que levam comida do rancho roa, as
equipes masculinas de trabalho ampliado, as grandes e festivas equipes dos mutires
caipiras. Assim, mais do que em outro qualquer lugar onde o campons vive o
cotidiano, as quartas ou os alqueires de roa so locais de iniciativa e trabalho
masculino. Ele determina sempre o que vai ser plantado, quando e como. Ele convoca
como ordem, mais do que como pedido outros familiares, quando precisa de fora
suplementar de servios, e distribui o trabalho de cada um. Mulheres e filhas mais
velhas abandonam a lavoura assim que podem ser dispensadas, ao contrrio de filhos
mais velhos que podem compor com o pai uma pequena equipe familiar estvel de
trabalho caipira.
As diferenas de aplicao da fora de trabalho estabelecem o solo das
desigualdades familiares. Mesmo quando uma mulher uma exmia lavradora o que
no nada raro ela nunca pessoa de lavoura, mas de casa. Por outro lado,
enquanto o menino aprende desde cedo com o pai para ser no s um seu companheiro
eficiente de equipe mas um futuro profissional do ramo, as meninas aprendem assuntos
do lavrar pro gasto, assim como aprendem profissionalmente os assuntos de
mulher, distribudos entre a casa e o terreiro. Do mesmo modo como acontece com o
menino na roa, medida que cresce a menina divide mais e mais com a me os
cuidados de seus domnios.
Entrando cedo no batente, o menino cedo aprende com os mais velhos os
segredos mltiplos dos trabalhos caipiras. Aprende a transitar de um tipo de fazer a
outro trabalhando ao lado do pai e sob a sua superviso. No raro que um filho
adolescente ou jovem passe de um lavrador familiar-empregado do pai a um trabalhador
associado. Aos poucos os filhos so convocados para resolver com o pai as questes
relativas aos homens da casa. Depois, se for uma famlia situante, o pai deixar que os
filhos reservem pores de terra para plantar as suas prprias roas. Quando a famlia
vive em terra alheia e planta na meia ou no arrendo, um primeiro sinal de
autonomia a conquista do direito de um filho tocar a sua rocinha por conta prpria,
mesmo quando, por dever de obrigao e por necessidade, ajude o trabalho do pai
sempre que chamado.

As mulheres e os homens participam da faina, havendo, porm, cena diviso


sexual do trabalho. Assim que elas manejam todos os instrumentos, mas
no o arado, privativo dos homens. A limpa do milho feita por homens e
mulheres, a colheita apenas por eles. No feijo uns e outros plantam, limpam
e colhem; mas a malhao feita por eles. Uns e outros plantam, limpam e
cortam o arroz; ainda aqui, porm, a malhao tarefa masculina. No
algodo, no caf, na horta, no tratamento da criao, as tarefas so comuns.
Nas roadas, geralmente as mulheres s trabalham nas glebas fceis. (Os
Parceiros do Rio Bonito)

No extremo oposto, a casa o espao mais interior do mundo do caipira. Todos


habitam o rancho e tambm ali h trabalho para todos. Mas ele um domnio da
mulher. Ainda que submissa por direito costumeiro s ordens do marido, a mulher de
certo modo domina o cotidiano, porque o seu trabalho domstico que, na prtica,
dirige as atividades de produo da comida, do vesturio, do cuidado dos filhos. O
prprio trabalho que o marido realiza no rancho serve aos interesses da esposa: fazer o
rancho e consertar o que precisa reparos nele, construir o fogo de lenha e o forno
rstico no quintal, inventar pequenas prateleiras e outros mveis, montar os
instrumentos e engenhocas do artesanato caipira.
Enquanto a esposa e as filhas trabalham plenamente na casa, depois de pronta
ela , para o marido e os filhos homens, o lugar do descanso do trabalho na roa, ou o
lugar dos servicinhos. Enquanto ele o espao onde as mulheres cansam o corpo,
para os homens o lugar de cuidar dele: comendo, lavando e repousando. Na porta do
rancho e esta uma imagem mil vezes lembrada em modas e toadas de viola os
homens cismam na boca da noite, entre a msica, alguns goles de pinga e um cigarro
de palha.
A meio caminho entre o terreno da roa e o domnio do rancho, o quintal o
terreiro rene homens e mulheres em atividades cotidianas comuns ou, outra vez,
separadas. Entre um lugar e outro, aquele o espao onde ainda se planta e j se
cozinha. Por isso, um lugar de vida e trabalho repartidos entre todos da famlia e sem
um domnio profissional marcado de um dos sexos. No terreiro, homens e mulheres
racham a lenha catada no mato ou nos campos, as mulheres assam bolos no forno
caipira, lavam e estendem a roupa ou vo beira dos riachos, quando no h gua
perto. Uns e outros, s vezes a famlia inteira, num intenso dia de pequeno mutiro
domstico, convivem com os inmeros servios de transformao do que veio do mato,
do campo ou da roa: secar, torrar e moer o caf, fazer da mandioca e do milho a
farinha, transformar a cana em acar, pilar no monjolo ou no pilo o milho e o arroz,
bater o feijo, consertar instrumentos de montaria, de trao animal ou de trabalho
com a terra, criar objetos de artesania rstica com barro, madeira ou palha.
Tambm no terreiro a mulher planta as misturas da comida e, mais raro, uma
horta. Ali o lugar do pomar caseiro e da criao dos bichos da casa. As sobras da
comida das pessoas servem para alimentar ces, gatos, aves e porcos. Assim, se nos
espaos de natureza conquistada que vo da mata roa o caipira realiza o seu trabalho
essencial e obtm o sustento e a mercadoria de que a famlia vive e se reproduz, nos
domnios prximos, entre a casa e o quintal, a famlia, para ser consumidora, antes
artista e artes. Tudo que se panha, mata, cria e colhe preparado para ser comido,
vestido, usado ou vendido nos lugares de trabalho do rancho e do terreiro. So lugares,
portanto, de notveis pequenas oficinas de inveno caseira cotidiana e de preservao
de uma cultura caipira que vai da mesa ao Mito o que se come e o que se conta
enquanto se come e da roupa ao rito o que se veste e o que se faz com a roupa
vestida.
Entre a casa e o quintal, pessoas da cultura camponesa tradicional vivem quase
toda a sua vida pblica. No eram raras as famlias de caipiras cujas mulheres e filhos
menores viajavam do stio ou do bairro na verdade no mais do que um lugar de
casas rsticas prximas, s vezes com alguma capelinha e uma venda, mas com uma
intensa vida social a um povoado mia uma cidade uma s vez ao ano, por ocasio da
festa da padroeira.
Assim, a casa rstica, o quintal e a periferia prxima o bairro, a vizinhana
acabam no sendo apenas os lugares do trabalho familiar, mas igualmente os espaos de
quase toda a vida social e simblica do caipira paulista. Ali as pessoas convivem entre
parentes, cumpadres e vizinhos. Ali festam nos batizados, casamentos e mutires.
Ali praticam em famlia ou no bairro quase toda a vida religiosa: a pequena reza de
tero que rene volta de um oratrio caseiro as pessoas da famlia, os parentes e
vizinhos de residncia prxima; as festas familiares de devoo coletiva, que obrigam
reunio de grupos maiores para a devoo ou o cumprimento de um voto vlido,
com comida, reza, canto e dana, de que os festejos roceiros dos santos juninos ou de
So Gonalo so bons exemplos.
Nestes pequenos espaos de vida as pessoas entram nela, so socializadas
mesmo quando no bairro j h escola , passam por rituais que lhes tornam legtima a
chegada ao mundo social dos vivos, que lhes atestam mudanas pessoais e sociais
importantes, como no casamento, ou que os ajudam a sair, com msica e sem susto, do
meio dos vivos, como num velrio ou em uma encomenda de almas.
Por isso, ao lavrador tradicional sem terras prprias, a progressiva perda dos
direitos de usar em seu proveito pores de roa de uma fazenda pareceu o comeo do
fim do mundo. Por isso, na cabea de velhos camponeses tradicionais migrados do
serto para a na e obrigados ao trabalho urbano ou ao trabalho volante, viver em
uma casa de periferia onde at mesmo o quintal mal comporta a roupa que a mulher lava
nas segundas-feiras, a idia de que o fim do mundo no anda longe viva e real.

O mutiro: trabalho solidrio

A no ser em casos de exceo, quando o caipira plenamente sertanejo e vive


em um serto isolado de outros mundos, as famlias vivem em comunidade e vivem
dela. Sabemos, leitor, que a prpria idia de uma sociedade e uma cultura caipira
isoladas falsa, tanto quanto a idia de que a economia caipira sempre foi de
subsistncia e existiu margem de economias agrcolas escravocratas e, depois,
capitalistas. Voltemos a uma expresso frtil de Jos de Souza Martins: tanto
economicamente quanto social e culturalmente, o caipira existiu em uma situao de
excluso integrativa. Posto margem como um excedente indispensvel e, portanto,
integrado, o caipira viveu e trabalhou no interior de mundos sociais mais amplos que
sucessivamente dominaram as condies de reproduo de sua vida de trabalhador livre.
Sabemos tambm que no interior de seu mundo mais imediato, entre eles e com
os sujeitos intermedirios de suas trocas econmicas, os camponeses tradicionais vivem
uma vida coletiva intensa. Cada grupo domstico mora em seu rancho, mas, entre
parentes e amigos, esto sempre passando e pousando uns nos ranchos dos outros, para
momentos de trabalho, de festas familiares ou de festejos do bairro. Vivem nos seus
bairros, mas, por distantes que sejam, esto sempre em movimento. Vo periodicamente
a locais de comrcio, vo a outros bairros, novamente por questes de trabalho, de visita
ou de rituais. Uma, duas vezes por ano, renem grandes grupos e partem em romaria a
algum centro paulista de peregrinao. Trabalham em suas terras, em terrenos
arrendados ou como empregados de donos e, quanto mais sem terra, tanto mais so
uma gente sem pouso.
Os momentos mais intensos nos servios da lavoura exigem por vezes um
acrscimo suplementar de fora de trabalho. Alguns parentes e vizinhos podem ser
chamados a um adjutrio. Quando h condies, um camarada pode ser ajustado
para alguns dias de servio. Em alguns casos, dois sitiantes vizinhos podem
estabelecer entre eles uma troca de dia. Trabalha um na terra do outro e, depois, o
outro na terra do um e, assim, se pagam com igual trabalho o acrscimo provisrio de
trabalho necessrio.
A ajuda mtua funciona entre os habitantes do bairro do Taquari
principalmente por ocasio das colheitas, quando todo mundo se queixa da
escassez da mo-de-obra, apesar de recorrerem aos volantes da cidade. A
ajuda mtua se exprime em troca de dias de servio: o proprietrio que
necessita de mo-de-obra pede auxlio dos vizinhos, mas fica tacitamente
comprometido a ajud-los quando solicitado; compromisso de honra este, e
mesmo que o lavrador esteja ocupado com sua prpria colheita, abandona-a
quando convocado, a fim de retribuir os dias que recebeu. (Queiroz,
Bairros Rurais Paulistas)

Quando o trabalho muito e o momento permite, um campons com preciso


pode combinar com parentes e vizinhos, s vezes at com amigos de longe, de outros
bairros, um mutiro, um muchiro. Este o momento em que a lida da lavoura passa de
familiar a comunitria e o puro trabalho campons torna-se um ritual de troca e
solidariedade atravs do trabalho.

O muchiro no propriamente um socorro, um ato de salvao ou um


movimento piedoso; antes um gesto de amizade, um motivo para a
folgana, uma forma sedutora de cooperao para executar rapidamente um
trabalho agrcola. (Ayrosa, Plnio, Muchiro)

O mutiro uma troca de dias muito ampliada. Tradicionalmente ele


realizado em duas situaes, quando as pessoas descobrem que s com a soma de
muitos braos ser possvel realizar um servio urgente e necessrio. A primeira
quando o trabalho coletivo aplica-se sobre a construo ou o reparo de algum bem de
uso comunitrio, como um caminho vicinal, uma ponte ou uma capela de bairro. Aps
uma enchente no povoado de Catuaba, presenciei dois momentos de pequeno mutiro
para a reconstruo de duas pontes levadas pelas guas do ribeiro do Chapu. A
segunda quando o trabalho de parentes e vizinhos realiza-se nas terras ou na roa de
algum para as quais pouco suficiente o trabalho da famlia. Mas no raro que um
sitiante escolha a alternativa de um mutiro da companheirada mesmo quando ele
pode pagar, por menor preo do que o que ter com os gastos de comida e festa, alguns
camaradas para que faam ali o seu servio por dia. Os convidados ao mutiro
sentem- se obrigados a ele. No ir implica, em algum momento, apresentar os motivos.
Todos vo para trabalhar, embora durante o mutiro o trabalho seja tambm uma festa e
termine como um festejo. , portanto, uma forma voluntria de trabalho entre iguais
entre si obrigados por princpios do direito costumeiro do campesinato tradicional.

O mutiro difere fundamentalmente da cooperao que aparece nas formas


modernas de organizao do trabalho, as quais trazem implcitos o controle
e a disciplina. Em sua forma pura, o mutiro baseado na prestao
voluntria e gratuita de servios, entre pares. Seus membros renem-se de
modo espontneo e independente de uma estrutura formal. De acordo com as
interpretaes correntes, a fluidez das relaes estritamente pessoais em que
se baseia o trabalho de mo comum, e a ampla esfera de arbtrio que
permitem, estaria corrigida por normas assentadas na tradio, que
garantiriam a regularidade de sua ocorrncia, sua obrigatoriedade e seu
carter restitutivo. (Homens Livres na Ordem Escravocrata)

Descrevo nas linhas seguintes um mutiro de que participei no stio de Z Leite,


no bairro de Santa Cruz do Rio Abaixo, municpio de So Lus do Paraitinga. Em
alguns momentos recorro a observaes de um mutiro de que Antnio Cndido
participou muitos anos antes de mim e com muito mais sabedoria.
Dias antes do sbado marcado para a mo comum de bateo de pasto, Z
Leite mandou avisos a parentes e vizinhos, assim como a moradores amigos de outros
bairros de So Lus do Paraitinga, Lagoinha e Cunha. Dois dias antes j as mulheres da
casa sorte dele ter esposa disposta e cinco filhas moas preparavam a comida do
dia do mutiro: almoo e janta. Dentro da casa, na cozinha, e no terreiro ao lado, foges,
fornos e fogueiras preparavam de vspera as comidas mais difceis: carne de porco e os
apetrechos do afogado. No sbado de manh os moradores de perto chegaram cedo.
Eles eram recebidos alegremente por Z Leite. Levados cozinha da casa eram servidos
de caf preto em canecas de lata. Alguns dissolviam nele farinha de milho ou um
biscoito duro, prprio para a mistura. Depois de comer subiam em equipe morro e pasto
acima (todos os pastos da regio so em morros) com os seus empenados na mo e a
pedra de afi-los no bolso de trs da cala. Iam para o trabalho, mas em festa. Mexiam
uns com os outros. No pasto dividiam-se em pequenas equipes, em linhas de bateo.
No havia chefias do trabalho e mesmo Z Leite, que a cavalo e sem trabalhar distribua
pinga e caf aos lavradores, mais brincava com uns e outros do que lhes dava ordens.
Um pouco mais tarde chegaram as equipes de Lagoinha, Cunha e Catuaba. Entre os
trabalhadores destas ltimas levas havia notveis cantadores de bro.
O bro um canto sem instrumentos que se entoa durante o trabalho do mutiro.
Sempre cantado em dupla, exige que seus artistas trabalhem juntos para que, a todo
momento, se renam e, descansando do trabalho com a enxada, realizem um trabalho
com a voz. Duplas diferentes espalham-se pelo lugar da bateo e entre si cantam,
saudando-se e se jogando linhas. A linha contm um enigma. Algo que se supe os
outros cantadores, com alguma dificuldade, podero decifrar cantando tambm. Jogar a
linha propor cantando uma primeira quadra com o enigma e seguir, depois, cantando
outras, onde os seus termos so reapresentados, sobretudo quando a linha difcil, para
ajudar aos que a tm que desmanchar. Desmanchar a linha significa descobrir o seu
enigma e cantar a sua resposta.
Antes de subirmos ao pasto, Z Leite uniu-se a outro cantador e, na porta do
stio, recebeu os companheiros cantando:

Recebo meus companheiros


Com alegria, com amor,
Vocs aqui na minha casa
Trouxe luz e resplendor

Quadra que completaram, assim que Z Leite criou uma seguinte e, baixinho, a
segredou ao companheiro.

Se amanh algum perguntar


Quem foi que cantou aqui,
Que diga que foi dois amigos
Que cantou pra divertir.

Surpreendidos com o cantorio de boas-vindas, Pavo, um dos de Catuaba, e seu


companheiro cantaram em resposta, anunciando a chegada e falando de alegrias:

O patro cantou primeiro


Satisfez o meu corao
Ai oi, ai ai,
Satisfez o meu corao
ai.
Vou fazer minha chegada
Com licena do patro
ai oi, ai ai,
Com licena do patro
ai.

Patro como Z Leite ser chamado durante todo o dia, muito embora no
mantenha vnculos de servios com ningum e, no fim do dia, no pague a nenhum pelo
servio feito. Os outros se tratam por amigo, companheiro. As falas do bro so
inicialmente de chegada, de saudao ao patro e a todos, de lembranas de saudade e
da alegria de se estar ali, no trabalho. Formadas as linhas do bro, enquanto batem o
pasto as duplas cantam por todo o dia, durante o almoo e atravs da noite.
Subimos o pasto do morro entre 20 e 30 homens armados de penados. Sobre
dois de longe, que no trouxeram os seus instrumentos de trabalho e a quem, na falta de
empenados, Z Leite entregou enxades, ferramenta inadequada para a bateo,
recaem as atenes de outros dois cantadores. Saberemos adiante por qu.
Na chegada do morro onde cerca de 30 lavradores j trabalhavam, Z Leite
saltou do cavalo e cantou com um outro companheiro, gente da casa:

Quero ver a voz de todos


E do Alcides Marciano
Quero ver a voz do Gusto (Augusto)
E do Alcides Marciano,

O Alcides e o Agenor
E o Pavo aqui chegou,
Ai, essa turma de amigos
De to longe aqui chegou.

Pavo e seu companheiro, recm-chegados, entoam outra moda de bro antes de


comearem a foiar:

Vou fazer minha chegada,


Nessa hora abenoada,
Ai oi, ai ai,
Ai nessa hora abenoada,
ai,
O patro na minha frente
E a nossa autoridade
ai oi, ai ai,
Ai, ele a nossa autoridade.

Outras duplas cantam saudando, algumas chegantes se anunciam, fazem a


chegada. As equipes se distribuem e em linha atacam o mato do pasto. No encontrei
em Rio Abaixo uma ordem formal de trabalho. Comeando de baixo para cima os
lavradores estendiam linhas do eito e subiam juntos limpando o pasto. Em alguns
momentos distribuam-se em pequenos grupos, deixando sempre juntas as duplas do
bro que se alternavam no cantorio. Antnio Cndido registrou formas mais ordenadas
de trabalho.

Imaginemos, para exemplo, uma quadra de cho no muito grande: menos


de 1/2 alqueire, ou seja, 60 X 40 braas (132 X 88 m) onde trabalham seis
roadores 1, II, III, IV, V e VI). A primeira providncia dividir
(virtualmente) a quadra em trs partes (eitos) de 20 braas (44 m) cada uma,
que devem ser atacadas sucessivamente.
Alinham -se os foiceiros, devendo as extremidades ser ocupadas por dois bem
habilitados um do lado de fora (1), outro do lado de dentro (VI), lindando
com o prximo cito a limpar (sujo). VI cortador, ou mestre; 1 beiradeiro.
Peno daquele fica o contracorte. ou contramestre (V).
A tarefa do cortador a mais rdua, pois deve alinhar pelo sujo,
permanecendo na reta e orientando o rumo dos demais, enquanto o
beiradeiro guia pelo lado do limpo, que serve como ponto de referncia do
alinhamento.
Corta-se da esquerda para a direita e o cortador, ajudado pelo contracorte,
mantm o progresso da marcha em linha reta. A parte em que trabalham os
roadores II, III e IV, enquadrados pelos outros, se denomina encontro do
meio. Cada roador deve conservar-se a uma distncia mais ou menos de
5,50 m, ou 21/2 braas do outro, no caso imaginado; da a largura de cada
parcela a desbastar (eito) depender do nmero de trabalhadores. Durante o
trabalho levam-se em conta os de menor capacidade, devendo o cortador
moderar o ritmo a fim de no for-los. Se o eito muito estreito, h outras
distribuies de trabalho, vindo, por exemplo, um foiceiro da outra
extremidade encontrar o cortador no meio da tarefa. (Os Parceiros do Rio
Bonito)

Logo depois do cantorio de Z6 Leite e da chegada de Pavo, uma dupla de


lavradores do bairro da Santa Rita, em Lagoinha, cantou saudando o patro:

Ai nosso patro viemos


De Santa Rita viemos aqui,
Viemos aqui, ai, ai.
Viemos matar uma saudade
Ai, ai, ai, ai
Ai que ns temos de ti,
Temos de ti, ai, ai.

Duplas de bro interrompem a todo momento o comeo do trabalho no pasto e


cantam saudaes. Gente de bairros diferentes, perguntam uns pelos outros pelo nome.
Falam da saudade que a distncia provocou e da alegria que o encontro no trabalho
comum proporciona. Mas depois que os trabalhadores que cantam se anunciaram e
saudaram, algumas duplas firmam o seu ponto. Cantam quadras que so em parte o seu
enigma e, em parte, um cantorio sempre repetido com palavras iguais. De todas as
linhas propostas uma delas se impe. Eis os seus primeiros versos, cantados pelos dois
lavradores velhos do bairro de Santa Rita:

Eu viesses dois boizinhos Esta aparte do enigma, ser sempre


modificada para introduzir novos dados
No meio de uma novilhada
que ajudem decifrao.

No serto adonde eu moro Esta aparte ser sempre repetida.


Onde os passarinhos cria
Ai morena,
No tenho mais alegria.

Ao que uma outra dupla ir completar, cantando:

Se o senhor compra essa juntinha


Minha roa aumenta mais.
Ai adeus morena, ai ai,
Adeus que eu j vou embora.

E uma terceira completa:


Parte mvel que, como outras, a dupla canta
Pois senhor Mano Evaristo comentando o enigma ou perguntando a seu
Essa junta foi criada na terra minha, respeito.

A terra onde eu nasci Parte fixa que a dupla cantar muitas


Foi bem no meio do estado vezes ao longo do dia.
A visita dos amigos
Foi pra matar minha saudade.

Costumes que aos poucos se perdem entre lavradores tradicionais. Por exemplo,
aquele que termina em primeiro lugar a sua parte de trabalho recebe o nome de
salmora ou salmoeiro. E dele a honra de entoar primeiro o canto do bro.
Terminada a sua tarefa, o salmora pode dedicar-se a ajudar o caldefro, o mais lento
de todos, a concluir sua parte do servio. Se, acaso, um ou dois grupos de lavradores
concluem a sua parte antes do grupo de que, porventura, o patro faz parte, eles
podem ir em seu auxlio. A isto se d o nome de vivrio.

No vivrio todos cantam as suas linhas de bro. Ficam no eito, cantando


em dueto e trabalhando. uma extensa linha de trabalhadores... Cantam
seus bro em forma de demanda ou de perguntas. Costumam chamar fazer
linha quando esto fazendo perguntas. Geralmente cantam na mesma toada,
isto , msica, desde o primeiro verso do bro at o ltimo. (Caldeira,
Clvis, Mutiro, citando texto de Alceu Maynard Arajo)

Houve um momento, pouco antes do almoo, que se repetiu pouco antes da


janta. Vrias turmas de trabalhadores voluntrios terminaram uma parte ou todo o seu
trabalho. Muitas pessoas sentaram em um mesmo recinto do morro do pasto e durante
bastante tempo os cantores de bro cantavam entre si os seus versos, propondo quadras
ou procurando decifrar as de outras duplas. O patro insistia em que todos descessem
para a casa. Descemos juntos e pelo caminho, com os penados s costas, duplas de
cantadores seguiam o bro, que no se interrompeu nem mesmo quando chegaram ao
lugar da casa onde todos almoaram e, mais tarde, comeram a janta.
At a noite ningum havia decifrado a linha dos dois lavradores de Santa Rita.
Eles propuseram um enigma que o tempo todo falava de dois bois, dois boizinhos,
uma junta de bois. Dois bois do patro, que ele no vendia por preo algum e que
no meio da novilhada eram os dois apareado (aparelhados). Durante todo o dia outras
duplas, cantando de entremeio ao trabalho, fizeram perguntas sobre os dois boizinhos.
Terminado o trabalho veio a resposta, mais na conversa entre todos do que no cantorio.
Os dois bois eram os dois companheiros de trabalho. Trabalhavam juntos, eram
apareado e diferentes de todos, sendo, como todos, do patro, porque eram tambm
homens de seu servio. Diferentes porque entre todos eram os nicos que trabalhavam
com enxades e no com empenados.
Depois do almoo voltamos ao trabalho, que somente se interrompeu quando a
noite comeava a cair sobre o pasto agora totalmente batido. Terminada a janta as
duplas do bro cantaram ainda muito tempo no quintal e, depois, dentro de casa, em
louvor das mulheres. Os jovens, alheios ao trabalho e aos cantos caipiras, esperavam o
forr que comearia pouco depois. Mais tarde, aos poucos as turmas de lavradores
foram indo embora, as mais de perto a p, outras a cavalo, as de mais longe em carros e
caminhonetes. Z Leite a todos saudava com gratides e alegrias. Quando conversei
com ele sobre os gastos da festa do trabalho concordou comigo em que sairia ganhando
se o trabalho fosse fora de festa e pago a camaradas. Mas ele quis o mutiro pra
que tudo fosse em nome de festa, da alegria.

Na carreira do divino

Faz alguns anos uma equipe de teatro da UNICAMP, O Pessoal do Vtor,


encenou uma pea sobre a vida e a cultura do caipira de So Paulo, Na Carreira do
Divino. Tomando por mote a toada tradicional, os nomes e os temas do cururu paulista,
este rarssimo momento em que a cultura urbana do estado produziu coletivamente um
documento sobre o campons antigo da regio desfia na estria de uma famlia
errante e o destino de uma gente. A Toada do Paiolo o tema da primeira parte. A
famlia de caipiras canta e dana, come e festa. Os frutos do trabalho foram abundantes
e no h por que no serem felizes. Pobres, no so os miserveis de beira de estrada
que alguns viram. Dominados, podem se sentir livres. A Toada do Anticristo o tema
da segunda parte da pea. O velho pai lavrador canta as coisas que ho de vir.

...esse nosso tempo bo


Nunca mais vai ser visto
Pois tudo vai transmudar...
Ai, quando o dia chegar

O que vai se ver isto:


Mantimento vai faltar
E na terra vai ser visto
Tudo vai mudar de lugar...

No final da pea, expulsos por artimanhas de negcios com a terra que sequer
compreendem, fogem em direo a uma outra terra que no sabem se ainda existe.
Fogem perguntando at onde, at quando.
Hoje em dia no h no Estado de So Paulo mais do que alguns bolses de vida
e de cultura de caipiras. Trabalhadores de enxada dos sertes de So Paulo, poderiam ter
sido sucedidos por outros sujeitos da roa, agora verdadeiramente livres. Sitiantes
donos familiares ou coletivos de suas terras de trabalho. Donos tambm de seu prprio
destino, assistidos pela lei e pelos recursos que aprenderam atravs do tempo a
imaginar como coisas criadas e desejadas um dia por um Deus para todos, mas depois
tornados direitos e propriedades dos homens ricos do campo e da cidade.

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