A Ultima Mensagem de Hiroshima - Takashi Morita PDF
A Ultima Mensagem de Hiroshima - Takashi Morita PDF
A Ultima Mensagem de Hiroshima - Takashi Morita PDF
Sobre a obra:
Sobre ns:
PREFCIO
um A vida antes da
guerra
dois Abandonando
as brincadeiras
de criana
trs Experincias no
Exrcito
quatro Ingresso na
Polcia Militar
cinco O dia 6 de
agosto de 1945
seis O primeiro
ataque atmico
da Histria
dez Associao
Hibakusha
Brasil pela Paz
onze A histria de
Sadako e o
tsuru
EPLOGO
CARTA DE
AGRADECIMENTO
- PREFCIO -
Marcia Batista
Editora-chefe da Universo dos Livros
- um -
EU VE JO MINHA SOBRE VIV NCIA COMO UM MIL AGRE . Chegar aos 93 anos sofrendo o
que eu sofri, certamente, um privilgio que me foi concedido. Ao longo da
minha vida, estive diante dos piores atos que um ser humano pode cometer
contra um semelhante. Os momentos de maior angstia serviram apenas para
que eu compreendesse o que no desejaria nem a um inimigo. Ou melhor:
aprendi que nunca mais deveria pensar em algum como um inimigo. A lgica
da guerra no d espao para a dignidade humana.
Aps conseguir me retirar do ventre de minha me, o doutor Okamoto deu seu
trabalho como cumprido. O prprio mdico estava descrente de que eu poderia
sobreviver. Eu, entretanto, no entregaria os pontos to facilmente.
Como eu no respirava, o doutor Okamoto considerou que a criana tinha
nascido morta, me enrolou em um pano e me ps longe de minha me. Talvez eu
tivesse morrido ali. Foi nesse momento, porm, que algum salvou a minha vida.
Matsuemon Morita, meu pai, que tinha acompanhado o parto de seus outros
filhos nos E UA, queria saber do estado da esposa e conhecer o filho, ento entrou
de repente no quarto e foi at mim. Ao ver que eu no respirava, ele me pegou
pelos ps com uma das mos e com a outra deu palmadas no meu bumbum. E
eu, que at ento no respirava, chorei pela primeira vez. Nesse momento, a vida
mostrou que no havia desistido de mim. Ainda bem.
Assim era o meu pai: prtico em tudo. Ele era o quarto filho de um lavrador.
Ainda na adolescncia, como muitos japoneses aps a abertura do pas no incio
da Era Meiji, seguiu para os Estados Unidos para trabalhar, com o objetivo de
ajudar a famlia a juntar dinheiro e, ento, retornar para o Japo. Meu pai, assim
como outros, levou nas malas todos os seus sonhos e esperanas de uma vida
melhor. Fato que a vida pode se mostrar mais dura do que imaginamos.
Certamente, a vida que meu pai encontrou naquela terra longnqua no deve
ter sido to simples. Como muitos imigrantes, ele chegou aos Estados Unidos sem
saber nada da lngua que falavam ali, acostumado a uma cultura muito diferente
e sem ter uma profisso. Passou a realizar trabalhos braais e chegou a construir
ferrovias, ao lado de outros japoneses. Apesar das dificuldades e do ambiente
hostil, onde os japoneses sofriam intenso preconceito, meu pai aprendeu o ofcio
e trabalhou muito para enviar dinheiro famlia no Japo.
Tendo completado 27 anos, era chegado o momento de comear sua prpria
descendncia. Uma esposa deveria ser escolhida e aprovada por sua famlia e,
at o casamento, os noivos no deveriam se encontrar. Havia na poca o
shashinkekkon, o costume do casamento por fotografia, pelo qual a famlia do
rapaz interessado escolhe a futura esposa do herdeiro por meio de uma troca de
fotografias. Nessa prtica, o amor geralmente ficava em segundo plano, e o que
importava era o consentimento da famlia. O amor era reservado para quem
tinha sorte.
Para estabelecer matrimnio, Matsuemon enviou sua foto casa dos pais na
vila de Sagotani, decidido a casar. A pretendente escolhida pela famlia Morita foi
Torano Shintani, filha mais velha de uma famlia que havia exercido importantes
cargos pblicos na vila. Torano deveria, ento, seguir rumo aos Estados Unidos
para iniciar sua vida ao lado do marido que at o momento conhecia apenas por
foto.
Quando o navio ancorou em Los Angeles, a jovem Torano segurava, ansiosa, a
fotografia do futuro esposo, procurando seu rosto entre os que esperavam pelos
viajantes. Levou um tempo at reconhecer Matsuemon, pois a fotografia que
tinha nas mos era de um rosto bem mais jovem do que aquele que se
apresentava na sua frente. Estranhou tambm o aspecto queimado de sua pele.
Meu pai, Matsuemon, por sua vez, tambm estranhou aquela jovem baixinha que
seria sua noiva, afinal, j estava acostumado a conviver com as moas altas e
loiras norte-americanas.
Naquele dia, no falaram nada um para o outro sobre suas expectativas
frustradas. No entanto, muitos anos mais tarde eles me contaram rindo essa
histria. O fato que esse casal que iniciara sua vida estranhando um ao outro
construiu uma bela famlia e uma histria da qual nos orgulhamos.
Infelizmente, esse jovem casal no poderia imaginar que a guerra dividiria
seus filhos em dois pases que lutariam em lados opostos. Eles tambm no
poderiam imaginar, nem em seus piores temores, que um de seus filhos seria
testemunha da pior arma que o ser humano j produziu. Nos sonhos de um pai,
no existe a possibilidade de seu filho correr perigo de morte. simplesmente
inconcebvel.
Na poca de meu nascimento, meus pais j haviam vivido uns quinze anos de
idas e vindas entre os Estados Unidos e o Japo. Eu era o caula entre os meus
irmos: Toshiko, Masanori, Tamaki e Hiroshi, todos nascidos em terras norte-
americanas.
Vim ao mundo quando fazia pouco tempo que eles haviam voltado em
definitivo para o Japo, tendo de se adaptar novamente vida de lavradores.
Tiveram tambm um comrcio, que no prosperou pelo fato de a maioria dos
vizinhos ser composta de parentes e comprar fiado.
Eu era muito pequeno quando meu pai decidiu tentar uma vida melhor na
capital da provncia, na cidade de Hiroshima. No comeo, fomos morar em uma
vila habitacional perto de muitos parentes. Meu pai, entretanto, conseguiu um
novo emprego, o que nos permitiu mudar de casa.
Prximo a uma rea nobre de Hiroshima, havia uma Escola Missionria
Metodista Americana Jy ogakuin, cujos ensino mdio e superior eram
oferecidos somente para moas. Meu pai, por saber falar ingls e pelo fato de ter
trabalhado com maquinrio nos Estados Unidos, foi contratado para ser zelador
da escola. Por causa das necessidades do seu trabalho, passamos a morar dentro
do complexo escolar.
Eu tinha 4 anos e ficava encantado com o ambiente cheio de natureza daquela
bonita construo. Lembro que ficava fascinado observando os insetos,
especialmente a transformao das lagartas em borboletas. Como bela a
evoluo da vida e o crescimento dos seres vivos! Enquanto observava as
borboletas voarem, eu tambm crescia. Achava que poderia viver para sempre
naquela felicidade.
Meus irmos, j mais velhos do que eu, estavam construindo suas vidas.
Toshiko, a mais velha, havia terminado um curso de Educao Domstica e
seguia para os Estados Unidos para casar, apesar de estar apaixonada por outro
rapaz. Masanori, o mais velho entre os homens, trabalhava em uma fbrica de
tamancos japoneses, mas logo teve de ir para os Estados Unidos para trabalhar,
por ordens de meu pai. Tamaki havia sido adotada por uma irm de minha me e
seu marido, porque no tinham filhos. Hiroshi era o nico que frequentava o
colgio, mas antes de concluir seus estudos foi enviado pelo meu pai para os E UA,
a fim de trabalhar.
Quando chegou minha vez de estudar, ingressei em uma escola primria que
ficava no centro da cidade. A instituio se chamava Noboricho Shogakko. Desde
o colgio, ou melhor, desde a primeira educao que recebemos em casa e nas
escolas, aprendemos o Yamato Damashii, que o esprito japons. Fomos
ensinados desde cedo a honrar nossas origens, o que envolve o amor ptria, o
respeito hierarquia e tradio, alm da devoo irrestrita ao imperador, que
era visto como uma divindade pelo povo japons. Valores importantes nesse
sentido tambm eram a lealdade e a coragem, caractersticas associadas aos
grandes samurais.
Ensinado a honrar tais valores e a seguir modelos de tamanha grandeza, eu,
entretanto, me sentia como um menino frgil. J aos 2 anos, havia contrado
pneumonia. Havia tambm o fato de eu ser sempre o menor entre os meus
colegas de classe. No Japo, as aulas comeam em abril, e quem nasce nesse
ms deve ingressar no ano letivo posterior. Dessa forma, os nascidos em maro,
como eu, eram sempre os menores da turma. Por estar entre os mais jovens da
turma, eu sempre sentia dificuldades para aprender.
Lembro-me que, quando tinha reunio de pais e professores na escola, sempre
ficava ansioso pelo retorno de meu pai para saber sobre meu rendimento escolar.
Logo que ele chegava em casa, eu perguntava: E, ento, como estou?. Para
pregar peas em mim, meu pai sempre dizia que eu era o pior da classe. Aquilo
que para meu pai era uma simples brincadeira, para mim tinha um peso enorme.
Afinal, eu era apenas uma criana em busca de aprovao.
Outra lembrana da minha infncia que, certa vez, eu e um amigo
atravessamos o rio Ota de barco, pois queramos seguir meu irmo, Hiroshi.
Acabamos, porm, no o encontrando e percebemos que estvamos perdidos e
em outra cidade. Fomos levados para um posto policial em Osoga e ali, depois de
muitas tentativas, consegui comunicar, entre soluos, a escola em que meu pai
trabalhava. Aps vrias pesquisas e j ao anoitecer, o policial por fim conseguiu
fazer contato com minha famlia, e meu pai veio nos buscar em sua bicicleta.
Crianas preocupadas com seu rendimento escolar, crianas que se perdiam
em suas brincadeiras: esses eram os problemas que perturbavam a paz em
Hiroshima naquela poca. Por que no pudemos manter esse clima para
sempre? Por que tivemos de perder nossa paz? A guerra chegou para aterrorizar
toda uma populao que s sabia o que era ter uma vida tranquila. Infelizmente,
a populao de Hiroshima viria a descobrir que manter uma vida plena e feliz
nem sempre est em nosso alcance.
Durante o primrio, atravessando a dcada de 1930, quem me ajudou muito a
superar adversidades e a acreditar em mim foi o professor Toshiharu Dai. Ele
era um educador muito preocupado com seus alunos e sabia analisar os
sentimentos de cada criana. Percebendo minhas inquietaes, ele sempre me
incentivava e me ajudava nos estudos, o que surtia efeitos positivos.
Ainda naquela poca, o Japo se inclinava rumo a um expansionismo militar,
com o intuito de anexar territrios da sia Oriental para garantir sua expanso
econmica, segurana militar e liderana nos territrios. O povo japons, em
resposta, tendia cada vez mais ao militarismo e, tanto nas escolas como no
ambiente profissional, falava-se incessantemente do Pas de Deuses, do Divino
Imperador, do Lder da sia. Esses eram os pensamentos com que os japoneses
eram doutrinados e no havia como contest-los. Quando ainda era uma criana,
em 1931, houve a invaso e ocupao da regio da Manchria e, em seguida,
seria a vez da China.
Quando eu tinha 10 anos, meu pai decidiu sair do emprego na Escola
Missionria e fomos morar em Funairi. Havia ento mais dois membros na
famlia: Akira e a caula Emiko. Meu objetivo era continuar os estudos; meu pai,
entretanto, acreditava que era mais importante ter um ofcio. Dessa forma,
quando conclu o ensino bsico, aos 12 anos, fui mandado pelo meu pai para ser
aprendiz em uma relojoaria. Comeava ento uma nova etapa da minha vida.
Fiquei chateado por ter de abandonar meus planos, mas devia seguir as ordens
do meu pai. Mal sabia eu que esse problema seria muito pequeno perto do que
viria a acontecer no futuro.
- dois -
AOS 12 ANOS, como dito, meu desejo era continuar estudando para adquirir novos
conhecimentos. Trabalhar s mais tarde. Mas essa no era a vontade de meu pai.
Ele queria que meus irmos e eu tivssemos uma profisso. Naquele tempo, era
comum que os filhos trabalhassem desde cedo. Alm disso, meu pai havia
sofrido nos Estados Unidos por no ter um ofcio e no queria que seus filhos
passassem por isso.
Apesar de meu pai j me ver como adulto, eu ainda era uma criana.
Enxergava o mundo com olhos inocentes. Perdi a ingenuidade apenas no
Exrcito, quando vi e senti na pele o esprito da guerra, na qual mesmo os adultos
perdem sua sabedoria. No possvel ser sbio e destruir o inimigo. No h
espao para a conscincia.
Um dia, meu pai me disse: Agora voc vai aprender a ser relojoeiro. No
pude opinar na escolha da profisso; ela foi definida pelo meu pai. Na cultura
japonesa, o respeito hierarquia um valor muito forte. O pai decide o caminho
dos filhos.
Na cultura japonesa, o respeito hierarquia um valor muito forte.
O pai decide o caminho dos filhos.
Ele foi um mestre para mim. Hoje entendo como foi amvel. Na hierarquia
rgida do Exrcito, no h mestres amveis e pacientes. Eles querem se parecer
com nossos inimigos, para mostrar que no h espao para compaixo no
combate.
Na poca em que trabalhei na Relojoaria Mizutani, o Japo lutava contra a
China, e o pas estava mobilizado pelo esforo de guerra. Pelo contato que a
relojoaria tinha com o Exrcito, pude conhecer o sistema da corporao. Duas
horas por dia, das 18h s 20h, os soldados ficavam livres para frequentar um
centro de recreao, um lugar restrito a eles. Alm de servios de alimentao,
havia tambm os de relojoaria, pelo qual o senhor Mizutani era responsvel, e
muitas vezes me levava junto.
Conforme ia aprendendo, comecei a ir sozinho atender aos soldados e conheci
um pouco mais sobre seu modo de vida. No havia me alistado voluntariamente
para servir, mas sabia que isso aconteceria um dia. Afinal, todos no Japo
deveriam estar voltados para o objetivo comum. Todos estavam envolvidos no
esforo de guerra, e no seria diferente comigo. Mas isso no aconteceu de
imediato, e s mais tarde a impresso de tranquilidade que eu tinha da vida dos
oficiais mudaria.
Em 1940, ainda desejando aprender mais, decidi retomar os estudos na escola
Noboricho, na qual fiz o primrio. Havia a possibilidade de participar de um
curso matutino, que comeava bem cedo pela manh para que os jovens que j
trabalhavam pudessem estudar. Como tinha um bom relacionamento com meu
mestre relojoeiro e trabalhava bem, no houve impedimento.
Voltando para a minha antiga escola, tive uma boa surpresa: o meu querido
professor Toshiharu Dai uma figura importante da educao de Hiroshima
ainda estava l, mas ocupando o cargo de diretor. O professor Dai era uma figura
importante da educao em Hiroshima.
Alm de bom profissional, meu querido professor cultivava os valores da nossa
cultura. Em virtude das circunstncias, pelo fato de ser um educador japons,
ensinava aos jovens de Noboricho como ser bons exemplos de militares
japoneses. O militarismo, muito forte no pas, estava presente at nas escolas. O
professor Dai sempre fazia questo de ressaltar o que era ser um japons
autntico.
Um dos valores ensinados pelo meu professor era a resilincia. A habilidade de
lidar com situaes extremas muito importante em tempos de guerra e, como o
Japo estava no meio de um conflito, essa qualidade tinha de ser bem
desenvolvida nos jovens japoneses.
Certa vez, o professor Dai mandou que eu e outros alunos mergulhssemos no
rio Ota sem roupa durante um frio congelante para que rezssemos pela vitria
do Japo e demonstrssemos nossa lealdade pelo imperador. Lembro-me da
gua fria na minha pele e de como tentava imaginar o que um soldado tinha de
enfrentar nas frentes de batalhas.
Estando ali, nosso dever era obedecer. ramos treinados para entender que
apenas a ptria, o regime e o imperador importavam. Mais tarde, quando me
candidatei Polcia Militar do Exrcito Imperial, esse aprendizado foi muito til e
fez de mim um bom exemplo para a sociedade japonesa, digno de representar
esse importante exrcito de elite. Hoje, entretanto, percebo como alguns
posicionamentos resultaram em duras perdas para os japoneses. O problema de
valorizar a ptria acima de tudo que, s vezes, os valores humanos so deixados
de lado. Enquanto o Japo se preparava para expandir suas aes militares, a
Segunda Guerra Mundial j acontecia entre os pases da Europa desde setembro
de 1939, quando a Alemanha nazista invadiu a Polnia. Com o mesmo objetivo
de expandir seus territrios, Japo, Itlia e Alemanha se aliaram um ano mais
tarde. Conhecido como Pacto Tripartite, a aliana do Eixo foi estabelecida em
Berlim, no dia 27 de setembro de 1940. Os oponentes do Japo seriam
oficialmente os Estados Unidos, a Frana e a Gr-Bretanha.
O esforo de guerra foi intensificado e, j na escola, os futuros militares
comearam a ser preparados. O desastre se tornava iminente, e o Japo no
sairia ileso. Muito sofrimento estava por vir.
Hiroshima era uma importante base militar, especialmente pela indstria
blica que havia na cidade. Prevendo ataques de foras inimigas, foi construda
uma base area de observao, localizada na prefeitura da cidade. Toda a
populao deveria se mobilizar em prol da guerra, e os jovens foram chamados
a trabalhar nas fbricas de armamentos. Escolhido para servir no Primeiro Posto
de Vigilncia Area de Hiroshima, fui liberado do trabalho nas fbricas.
Apesar de ter de trabalhar 24 horas seguidas a cada cinco dias, esse foi um
momento de alegria para mim. Desde jovem, tomei gosto por avies. Senti-me
muito honrado por ter sido escolhido para essa atividade, porque era um posto
cobiado entre os jovens. Mais uma vez o professor Dai demonstrava a estima
que tinha por mim, pois foi ele quem me indicou para essa posio.
Durante esse tempo, me dividi entre as trs atividades: escola pela manh,
trabalho na relojoaria durante o resto do dia e, a cada cinco dias, um dia
dedicado ao Japo, que se preparava para os ataques. Realmente estava me
esforando para fazer o melhor que pudesse. Lembro que noite, quando meu
mestre ia dormir, ainda ficava consertando relgios para adiantar o trabalho e
aprender cada vez mais.
Alm do trabalho nas fbricas de armamentos, muitos estudantes eram
convocados para participar de construes em Hiroshima. Assim aconteceu com
o estdio poliesportivo, que seria inaugurado no dia 7 de dezembro de 1941. Era
uma importante construo para a cidade, e algumas autoridades estariam
presentes na inaugurao: o governador da provncia, senhor Yoshinaga; o
secretrio de Educao, senhor Hasegawa; e o prefeito, senhor Fujita.
Mais uma vez o professor Dai me escolheu para uma importante tarefa. Ele
declarou: Voc vai ser o representante dos estudantes e vai fazer o discurso de
inaugurao. Na hora do convite, apesar da distino, fiquei muito receoso de
falar na frente de tantas pessoas. Logo, entrei em um dilema: no queria aceitar
a incumbncia, mas tambm no queria decepcionar o professor Dai.
O professor, mesmo percebendo minha hesitao, no deixou de acreditar em
mim. Takashi, ele disse, no se preocupe! Todos so pessoas como voc, todos
vo ao banheiro, no h o que temer. Encorajado pelo incentivo bem-humorado
do meu professor, aceitei o desafio e no permiti que o medo me paralisasse.
No dia 7 de dezembro, eu estava diante de centenas de pessoas, incluindo um
grande nmero de estudantes que vinham de outros bairros, pois todos os
estudantes da cidade de Hiroshima haviam sido convocados para esse importante
evento. Apesar do frio na barriga ao subir no palanque para fazer meu discurso,
lembrei-me do que o professor Dai me disse e fiquei mais tranquilo. No final, me
senti feliz e aliviado por ter cumprido o meu papel. Esse foi um breve momento
de alegria, insignificante perto do que enfrentaramos em nossa cidade.
Eu no sabia naquele momento, mas na plateia havia uma estudante que viria
a se tornar minha esposa. Ay ako Orishige observava com admirao o rapaz que
falava, tambm sem imaginar o que aconteceria no futuro. Mesmo em um
perodo to duro, ainda haveria espao para o amor. Muito bonitos so alguns
acontecimentos do destino, no ?
Foi ento que tudo se concretizou. Um dia aps a inaugurao do estdio, em 8
de dezembro de 1941, o Japo atacou a base naval norte-americana em Pearl
Harbor, dando incio infeliz Guerra do Pacfico. Nesse momento, iniciavam-se
os acontecimentos que trariam tristeza e tragdia ao Japo.
Esse foi um ataque estratgico para o Japo, pois a base seria importante para
possveis avanos dos norte-americanos na regio do Pacfico. Os Estados
Unidos, em contrapartida, j temiam o avano territorial japons. Por isso,
haviam adotado diversas medidas ofensivas: anularam acordos comerciais que
tinham com o Japo, iniciaram um embargo ao petrleo e a matrias-primas
essenciais para a indstria de guerra e tentaram expulsar os japoneses de suas
ocupaes na China e na Indochina, o que se revelou improdutivo. Infelizmente,
a guerra era inevitvel, e o ataque a Pearl Harbor ratificou apenas o anncio
formal do conflito.
O militarismo que at ento vinha sendo ensaiado se tornou a realidade do pas.
Lembro que nesse dia as rdios anunciavam sem parar: A nossa Tropa Imperial
entrou em combate com as foras norte-americanas e inglesas a oeste do
Pacfico. Ocorreu tambm uma marcha militar confirmando a importncia do
momento. Agora estvamos todos divididos entre a tenso e a euforia. Apesar do
receio, no tnhamos dvida sobre a vitria do Japo. Afinal, nosso exrcito era
muito admirado pela populao e tido como invencvel, pois havia acumulado
conquistas na sia.
Nenhum desperdcio era tolerado, nada que pudesse atrapalhar o desempenho
do Japo na guerra. Todos estavam focados na vitria e isso parecia natural.
Quando um povo ensinado a ver seu imperador como um representante da
divindade, suas ordens so inquestionveis.
Com a guerra em curso, continuei com minhas atividades, como se vivesse
uma iluso. Em 1943, cheguei a participar do Campeonato dos Observadores
Areos do Oeste do Japo. Eu e minha equipe, representando a provncia de
Hiroshima, fomos consagrados campees da disputa, que consistia em identificar
avies inimigos mais rapidamente. Como prmio, pudemos desfrutar dois dias
agradveis nas termas de Beppu. Foi um grande prazer naquele momento
podermos nos distanciar, mesmo que rapidamente, do clima de guerra.
Mas o conflito continuava e ficava cada vez mais desfavorvel para o Japo. A
guerra, que se iniciou com vitrias japonesas arrasadoras em terra e no mar,
equilibrou-se com o passar do tempo. Perdemos o domnio areo e o martimo,
houve cortes de abastecimento, os ataques areos sobre as cidades japonesas se
intensificaram e j se falava em combates em territrio japons. Agora era o
momento de construir abrigos subterrneos e se preparar para o pior.
Apesar de temer o futuro, o povo japons mantinha sua lealdade e acreditava
nas informaes fornecidas pelos meios de comunicao do governo. A censura
proibia qualquer comentrio pessimista. Alm disso, as famlias eram obrigadas
a oferecer todos os objetos de metal disponveis em suas casas em prol da
guerra.
EXPERINCIAS NO EXRCITO
Assim como o resto do pas, minha famlia tambm foi afetada pela guerra.
Meu irmo Akira, de apenas 17 anos, havia se alistado no grupo do Exrcito
conhecido como kamikaze. Esse era um grupo suicida, composto de pilotos de
avio que deveriam lanar-se contra os navios inimigos.
A palavra kamikaze significa vento divino em japons. Esses pilotos partiam
com apenas o combustvel necessrio para chegar at seus alvos. Apesar de ser
considerada uma causa nobre morrer pela ptria e pelo imperador, eu no ficava
tranquilo com a possibilidade de nunca mais ver meu irmo menor.
Tempos de guerra so tempos de absurdos, e o pior que pode acontecer ao ser
humano ver o absurdo como algo normal. Isso nos priva de nossas maiores
virtudes: amar e sentir compaixo.
Meus irmos mais velhos que nasceram nos E UA e l viviam tambm sofreram
com a guerra. Meu irmo Hiroshi e sua esposa Mitsue haviam se casado no
Japo e logo em seguida embarcaram para os Estados Unidos. Enquanto
viajavam, foi declarada a guerra entre os dois pases, o que lhes tirou a paz.
Assim que chegaram em terras americanas, foram levados para campos de
recolocao. Soube, por meio do relato de uma de minhas sobrinhas, que foram
separados e conduzidos para locais diferentes, sendo mantidos ali durante algum
tempo. Imagino como eles se sentiram, recm-casados e separados.
Assim que o conflito foi oficializado, os Estados Unidos ficaram temerosos
com possveis retaliaes por parte dos milhares de imigrantes japoneses, agora
tidos como inimigos. Para resolver a situao, o pas tomou uma medida drstica:
em 19 de fevereiro de 1942, o Congresso norte-americano, apoiado pelo ento
presidente Franklin Roosevelt, aprovou a Ordem Executiva 9.066. Ela estabelecia
que os cidados de origem japonesa deveriam passar a viver em zonas militares.
Assim como os judeus foram expulsos de suas casas pelos nazistas e enviados a
campos de concentrao, os japoneses deveriam ser conduzidos para as
chamadas zonas de evacuao ou campos de recolocao.
Enquanto tudo isso acontecia com a minha famlia, eu seguia de trem para
Hamamatsu, a fim de servir como soldado raso. Sabia que minha vida estava
mudando e me perguntava o que encontraria como integrante do Exrcito
japons.
Muitos jovens foram convocados para trabalhar no desenvolvimento de armas,
cada vez mais escassas no Japo. No meu caso, fui convocado especificamente
como tcnico em aviao, pela experincia que adquiri como membro do Posto
de Vigilncia Area em Hiroshima e pelo conhecimento de engrenagens e
mecnica que obtive como relojoeiro.
Quando cheguei estao de destino, em Hamamatsu, outros soldados do
regimento em que eu serviria j me aguardavam, para me acompanhar at o
local em que passaria a viver. Logo percebi que a vida ali no seria fcil, pois fui
recebido com a frieza que nosso papel impunha.
No local, fui direto procurar a cama que continha meu nome, que seria o meu
espao naquele novo lugar. Cansado da viagem, pude descansar nesse meu
primeiro dia no peloto. A vida dura chegaria com o raiar da manh seguinte.
O peloto ao qual fui designado era composto de 52 membros. Desse total,
havia 44 recrutas, alm de 7 cabos, que deveriam comandar os recrutas. O chefe
do peloto era o sargento Mizuno. Dentre os cabos, havia o Okada, que era de
origem coreana. Nessa poca, muitos coreanos viviam no Japo, por causa da
ocupao japonesa no territrio coreano, iniciada em 1910. O domnio do Japo
sobre a Coreia s teve fim aps a Segunda Guerra Mundial.
No Exrcito havia uma rgida hierarquia. Os veteranos detinham o poder e o
respeito. Eu, que era apenas um soldado raso, recm-chegado da minha vida
como relojoeiro, no era mais que um contingente intil aos olhos deles.
Em pouco tempo, os veteranos comearam a se aproveitar de mim e a me
destratar, apesar dos meus esforos. No entendia o motivo, mas parecia ser
odiado pelos que chegaram antes de mim. Eles me culpavam e puniam por tudo
o que acontecia. Com frequncia ouvia algum gritar Morita, voc! e em
seguida era agredido pelos veteranos.
Havia no peloto uma msica que era uma espcie de hino dos recrutas. No
posso dizer a raiva que aquela cano me despertava! S de ouvi-la, me sentia
indignado. Lembrando daquela msica, muitas vezes me pus a chorar durante a
noite. Perguntava-me at quando o sofrimento que a guerra me causava iria
durar.
Apesar de conhecer o sistema do Exrcito desde muito jovem, jamais me
passou pela cabea a extenso da brutalidade que havia na corporao. Parecia
estar vivendo uma vida que no era minha, e desde o comeo fui contra essa
violncia. A raiva que o treinamento despertava nos soldados certamente era
utilizada como combustvel para o conflito e a violncia. No havia permisso
para erros ou sentimentos bons no corao.
Outro fato que me deixou muito surpreso foi a condio de vida ali. Por conta
da guerra, todo o pas vivia em racionamento. A comida se tornava cada vez
mais um artigo de luxo. Achei que no caso do Exrcito a situao seria diferente,
afinal, seus membros eram respeitados pela populao e estavam honrando a
ptria. Alm disso, preciso fora fsica para lutar. No foi essa, entretanto, a
situao que encontrei no peloto de Hamamatsu.
Comamos mal e muitos de meus companheiros estavam desnutridos. As
provises eram escassas e pouco variadas, e vivamos base de um ensopado
com um pedao de batata-doce e alguns gros de arroz. Alm de tudo, tnhamos
de suportar a fome. No me surpreenderia se ela nos matasse antes de a guerra
terminar. Tudo isso eu aguentava em silncio, e penso que muitos de meus
companheiros tambm. nesses momentos de dificuldade que o ser humano
descobre sua verdadeira fora.
Para que pudssemos lutar contra os Estados Unidos, era necessrio tambm
desumanizar os inimigos, ttica utilizada por todos os exrcitos. mais fcil
matar quando no vemos o outro como ser humano. Aos jovens japoneses
chegavam informaes sobre os selvagens e impiedosos norte-americanos que
nos chamavam de macacos amarelos e queriam acabar com nosso pas. Era
incutida na sociedade a crena de que o Japo deveria conquistar o mundo e
trazer ordem ao caos. incrvel como objetivos de guerra podem ser distorcidos
como algo positivo.
Aps algum tempo, juntou-se ao peloto um grupo que tinha a funo de
recolher e confirmar informaes pessoais, alm de verificar quem estava
interessado em prestar o exame para a Polcia Militar do Exrcito Imperial,
conhecida como Kempeitai. Espcie de polcia secreta, como a Gestapo e a KGB ,
a Kempeitai era a polcia mais respeitada e temida de todas as foras do imprio.
Criada em 1881, seu objetivo era manter a ordem pblica no Japo. A
Kempeitai tinha mais autoridade que o prprio Exrcito na poca e podia prender
at mesmo oficiais, o que gerava muito temor na populao japonesa.
Por se tratar de uma polcia secreta, pouco se sabia sobre a extenso de suas
aes e poder. Atualmente sabido que essa diviso cometeu muitos atos
condenveis, especialmente nos pases invadidos pelo Japo.
Tendo em vista a importncia da Kempeitai durante a guerra, era muito difcil
ingressar na corporao. Querendo mostrar que eu era capaz, dei o melhor de
mim e me inscrevi com a convico de que passaria no exame. Enquanto me
inscrevia, pensei no professor Dai, no que havia aprendido com ele e em toda a
confiana que ele depositara em mim. Foi com esse pensamento que ignorei os
olhares que os veteranos me dirigiam, certamente incomodados com a ousadia
de um recruta.
Essa, entretanto, era uma deciso perigosa, que colocava a minha vida em
risco. Aqueles que no passavam no exame para a Kempeitai eram enviados
logo em seguida para o Sudoeste Asitico, para as frentes de batalha. Essa era
praticamente uma sentena de morte, mas estava disposto a me arriscar.
Eu no era mais um menino fraco e inseguro. Acredito que os ensinamentos
que recebi no colgio com o professor Dai, alm do difcil treinamento no
Exrcito, haviam me preparado para enfrentar desafios. O sofrimento e a dor
nos fazem mais fortes, e o que passei como recruta no peloto me proporcionava
ainda mais fora para me superar.
Chegou, enfim, o dia do exame que mudaria o rumo da minha vida. As provas
seriam no quartel da Polcia Militar de Hamamatsu, ento todos os candidatos
tiveram de se deslocar at l. Dos cerca de sessenta membros do meu peloto,
vinte se candidataram. Olhando aqueles rostos que competiam pela mesma vaga
que eu, todos me pareceram excelentes soldados. Minha confiana se abalou um
pouco com a proximidade do momento de definio.
Na hora marcada, os aplicadores do exame entraram na sala. Logo
comearam as explicaes sobre a avaliao. As disciplinas eram Japons,
Matemtica e Conhecimentos Gerais. Afirmaram que, mesmo que tivssemos
boas notas, ainda assim haveria uma rgida pesquisa sobre a vida dos candidatos e
sua linhagem familiar. Para integrar a respeitada Kempeitai, era imprescindvel
ser um japons exemplar. Ouvindo isso e percebendo a rigidez do processo
seletivo, meu nervosismo s aumentava.
Apesar da tenso inicial, consegui terminar as provas. Eu me senti mais
confiante medida que percebi que os conhecimentos exigidos no me eram to
estranhos. Mais uma vez, fui grato ao que aprendi at aquele dia. Logo que
acabei, retornei ao regimento e informei ao chefe de seo que havia concludo
a prova. Pude perceber que ele ficou surpreso com a informao.
Posteriormente, tambm notei alguma mudana em seu comportamento
comigo. Havia mais respeito.
Agora que tinha realizado o exame, s me restava esperar. Minha sorte havia
sido lanada, mas s com os resultados oficiais eu saberia o que seria do meu
destino. Com a ansiedade da espera, no poderia deixar de temer a possibilidade
de estar em uma frente de batalha, mas, na situao em que me via, no sabia o
que seria melhor ou pior. Em todos os lados havia sofrimento e violncia. Essa
no era uma poca para sonhadores.
Enquanto aguardava o resultado, minha rotina no peloto permaneceu a
mesma. No sabia at ento, mas os oficiais da Polcia Militar j estavam
investigando minha linhagem familiar. Meu pai me contou posteriormente que
ficou muito assustado quando viu diversos jipes da Kempeitai chegando sua
casa na vila de Sagotani. Seu primeiro pensamento na poca foi: O que ser que
meu filho aprontou?. Chegou a perguntar aos policiais o que eu havia feito, mas
a resposta o tranquilizou: Ele no fez nada. O Takashi passou no exame para ser
policial militar e estamos investigando se ele realmente est apto para o cargo.
Ainda bem que ele no resolveu brincar com os oficiais, como fazia quando
retornava das reunies com meus professores.
Nesse perodo, chegaram novos recrutas ao peloto. Eu j no era mais um
novato. Para recepcionar os novos membros, todos os antigos recrutas ficaram
enfileirados no ptio. O Japo seguia recrutando jovens de todo o pas para tentar
reverter a derrota iminente.
Nesse mesmo dia, no final da manh, pudemos ver brilhando no cu, a 8 mil
metros de altitude, o bombardeiro norte-americano de longa distncia B-29. Era
um sinal de que os ataques ao nosso territrio estavam comeando. O
bombardeiro passou voando sobre ns com um enorme barulho.
Era difcil no admirar a tecnologia dos norte-americanos. Quem j havia
estado nas terras inimigas sabia do seu potencial e o quanto seria difcil uma
guerra contra uma nao com tantos recursos. No entanto, ns, japoneses,
seguamos acreditando cegamente na vitria do nosso pas. No era permitido
transparecer dvidas. Alm disso, havia lendas de que o Japo se sobressairia
mesmo nas situaes mais difceis. Quando soframos alguma derrota
considervel, o governo contornava a situao afirmando s pessoas que tudo
estava dentro do planejado e que a vitria estava encaminhada.
Os Estados Unidos, que j dominavam o mar e os ares, agora nos atacavam
diariamente. A populao estava cada vez mais em estado de alerta com os
ataques de metralhadora e os bombardeios. Os avies vinham em esquadres e
era possvel ver os cachecis dos pilotos conforme se precipitavam em voos
rasantes para nos metralhar e lanar as bombas antes de retomar a altura.
Esse era um momento em que eu precisava utilizar minhas habilidades em
favor da ptria. Por causa da minha experincia como observador, ficava muitas
vezes fora do abrigo para informar meus companheiros de qualquer sinal de
perigo. Mesmo assim, nossos avies eram descobertos e destrudos um aps
outro.
O inimigo demonstrava cada vez mais seu poder. Acabamos sendo atacados
tambm: uma parte das instalaes do peloto foi atingida em um dos ataques
norte-americanos. Esse ataque resultou na perda de suprimentos essenciais para
a nossa sobrevivncia.
A alimentao, que j era escassa, foi reduzida a quase nada. Restavam-nos
apenas gros de arroz para sobreviver. Muitos soldados caram doentes. Era
difcil suportar a fome e ainda lutar na guerra. Infelizmente, o sofrimento estava
longe do fim. Estvamos nos acostumando com ele e a poca de paz agora
parecia um sonho distante.
Para socorrer e tratar dos doentes, uma escola da vizinhana foi transformada
em hospital. Lembro-me do desespero que era estar ali naquele momento:
jovens que eram fortes e sadios agora mal tinham fora para sobreviver. Muitos
tremiam de frio estendidos em colches no cho. Eu olhava essas cenas e me
perguntava com temor quando seria a minha vez, at quando iria aguentar.
Parecia um pesadelo. Mal sabia que em pouco tempo as coisas se tornariam
ainda piores.
Consegui resistir por um tempo, mas enfim adoeci e tive de ser transferido
para o hospital, que era um local totalmente improvisado. No tinha nenhuma
estrutura para tratar de doentes em estado grave como os que estavam ali. A
providncia do hospital era dar aos doentes uma vez por dia p de ossos
queimados de bois doentes. No havia mdico ou medicamentos, e qualquer
ferimento acabava infeccionando por falta de antibiticos.
A providncia do hospital era dar aos doentes uma vez por dia p
de ossos queimados de bois doentes. No havia mdico ou
medicamentos, e qualquer ferimento acabava infeccionando por falta
de antibiticos.
Em Hiroshima todos ficavam cada vez mais desconfiados com o fato de ainda
no terem ocorrido bombardeios. Era preciso se preparar para o pior, e o pior
que imaginvamos eram mais ataques com bombas incendirias.
Dessa forma, pensando que cedo ou tarde enfrentaramos esse tipo de ataque,
comeamos a demolir construes de modo a evitar o alastramento de incndios.
Toda a cidade se mobilizou: o exrcito demolia as construes, os alunos do
ensino mdio e parte da populao que vivia nos arredores da cidade eram
convocados para fazer a limpeza das reas centrais. No restou nada que no
fosse para uso militar. Hiroshima historicamente j possua grande importncia
estratgica militar e se preparou em definitivo para a guerra.
Enquanto isso, na Europa, a Alemanha j havia se rendido, em maio de 1945.
Durante a Conferncia de Potsdam (Brandemburgo, Alemanha), realizada para
definir o destino da Alemanha e das outras naes aps a Segunda Guerra
Mundial, foi enviado em 26 de julho um ultimato ao Japo, solicitando a rendio
do pas para evitar maiores destruies. Ultimato que o primeiro-ministro
japons, Kantaro Suzuki, declarou que seria ignorado. Essa deciso do governo
custou muito caro para o pas.
DIFCIL E XPRE SSAR O QUE E U E TODA A CIDADE DE HIROSHIMA passamos nesse dia.
Mesmo assim, farei o meu melhor para contar como foi viver um acontecimento
to triste para toda a humanidade. Hoje, aos 93 anos, s vezes chego a me
perguntar se tudo aconteceu de verdade, mas as marcas que trago na memria,
os problemas de sade e as imagens da cidade totalmente devastada me
comprovam que foi tudo real. Infelizmente, no foi apenas um pesadelo.
Naquele 6 de agosto, a cidade de Hiroshima acordava para viver um lindo dia
de vero: crianas se arrumavam para ir escola, trabalhadores se preparavam
para o trabalho e aqueles empenhados no esforo de guerra seguiam com sua
tarefa de demolir os edifcios. Ningum esperava ter sua rotina interrompida de
maneira to drstica.
Nesse momento, eu j nutria um sentimento de frustrao com a guerra. Para
mim, no fazia sentido o que estvamos sofrendo. Pensava nas vidas
desperdiadas e naqueles que eram obrigados a viver em funo do conflito e
no conseguia encontrar algo pelo que valesse lutar. Mas o dia estava apenas
comeando e eu precisava mais uma vez ignorar meus sentimentos e cumprir o
meu dever. Agora era um policial militar e deveria exercer o cargo com a
determinao que ele exigia. Estando o Japo em guerra, ramos extremamente
necessrios para manter a ordem e ajudar na segurana da populao.
A cidade de Hiroshima um delta cortado por sete rios. Alm disso, a regio
cercada por montanhas. Logo que retornei, uma das atividades dos policiais
militares era construir um abrigo antiareo nas colinas. O objetivo desse abrigo
era proteger os artigos essenciais ao nosso trabalho, e nossa sobrevivncia, de
possveis ataques norte-americanos. Nesse dia eu deveria seguir para a rea do
abrigo e continuar ajudando no que fosse necessrio.
Sa do quartel s 8h da manh, acompanhado por mais dois kempeis e doze
ajudantes, todos liderados por mim. Para chegarmos ao local da obra, pegamos
um bonde em frente ao alojamento e descemos pouco depois, na terceira
parada. amos em direo sada da cidade, atravessando a ponte de Yokogawa.
Tanto no bonde como nas ruas, as pessoas pareciam mais leves e alegres pelo
dia ensolarado. Bem cedo pela manh havia soado o alarme antiareo para que
as pessoas pudessem se proteger de possveis ataques. O alarme soou por conta
de um avio que sobrevoava Hiroshima. Como no houve ataque, meia hora
depois, as pessoas foram liberadas para seguir sua rotina. Eu tambm continuei
com minha misso; no achei que aconteceria algo pior naquele momento. Foi
ento que tudo aconteceu.
Toda a cidade foi envolvida por essa luz do terror. Quando fui
atingido, estava a uma distncia de 1,3 quilmetros do epicentro da
bomba atmica.
Andar pela cidade com o fogo se alastrando se mostrou um desafio. Por alguns
lugares no era possvel passar, ento tive de utilizar todo o conhecimento que
tinha sobre Hiroshima para voltar ao centro. Decidi seguir em direo ao sul da
cidade para contorn-la e encontrar algum lugar por onde pudesse passar.
Escolhia sempre as vias mais largas para que, caso acontecesse alguma coisa,
pudesse escapar com maior facilidade. Atravessei diversas pontes, sempre
contra o fluxo das pessoas que estavam tentando se salvar.
Cheguei ao antigo prdio da Associao Comercial de Hiroshima, que havia
sido transformado na Escola de Armas do Exrcito. Ali tambm me deparei com
vrios soldados feridos e precisando de cuidados mdicos. No havia como fazer
curativos. Encontrei ento uma farmcia deserta, onde peguei faixas e remdios
para dar aos feridos. Eu ainda no sabia, mas essa era a farmcia Orishige, do
pai da minha futura esposa, Ay ako. Mais uma vez, o destino encontrava uma
forma de nos conectar.
Aps sair da farmcia, fui em direo parada do bonde para seguir rumo ao
norte da cidade. De repente, outra senhora me puxou pedindo ajuda: Senhor
soldado, um beb est nascendo!. Havia mesmo uma mulher em trabalho de
parto, e solicitei s mulheres que estavam por ali, observando, que a ajudassem,
pois eu precisava continuar. Soube no futuro que o trabalho de parto fora bem-
sucedido, e a criana nascera bem.
ANT E S DE CONT INUAR , DE VO E XPL ICAR AL GUNS FATOS sobre a primeira vez em que a
bomba atmica foi usada. Na verdade, no h como negar que a bomba a
outra personagem principal desta histria. Afinal, ela se tornou meu maior
pesadelo, assim como de todos aqueles que foram afetados por ela.
Infelizmente, nada do que relatei at aqui fruto da minha imaginao, e tudo
se repetiu em Nagasaki apenas trs dias depois, em 9 de agosto de 1945, sob o
pretexto de terminar a guerra. Aps a segunda detonao, o Japo finalmente se
rendeu, depois de ter duas cidades praticamente arrasadas de seu territrio. A
rendio foi anunciada em 15 de agosto de 1945, mas o documento oficial s foi
assinado em 2 de setembro de 1945, a bordo de um navio norte-americano que
se encontrava na baa de Tquio.
Como era vero, grande parte das pessoas estava com roupas leves e a pele
descoberta. Eu, por ser oficial da Polcia Militar, usava no momento da queda da
bomba uma pesada farda, que me protegeu. A parte da pele que estava
descoberta, a nuca, foi onde tive uma sria queimadura. Acredito que o fato de
estar de farda foi um dos principais fatores para minha sobrevivncia. Muitos no
tiveram a mesma sorte. No momento da detonao, cerca de 80 mil pessoas
morreram, e dezenas de milhares ficaram feridas. Muitas morreriam mais tarde
pelos efeitos da radiao.
Aqueles que sobreviveram no puderam seguir uma vida tranquila, pois sua
sade foi severamente impactada. Dias depois, pessoas comearam a ter
manchas roxas pelo corpo, queda de cabelo e vmitos incessantes. Muitas
morreram desse efeito, que no tinha cura. O desespero tomou conta daqueles
que ainda estavam vivos.
Como o Japo no se rendeu, ainda houve outro trgico ataque, dessa vez
cidade de Nagasaki. Nagasaki no era o alvo principal dos norte-americanos
nessa segunda ofensiva; seu alvo era a cidade de Kokura. Nesse dia, entretanto, o
tempo em Kokura no estava favorvel para a misso. Isso aconteceu para a
sorte de Kokura e o azar de Nagasaki.
No dia 9 de agosto de 1945, aps ter seu alvo alterado, a bomba Fat Man,
composta de plutnio, foi detonada acima de Nagasaki s 11h02. O efeito foi o
mesmo que o observado em Hiroshima: pessoas instantaneamente carbonizadas,
pessoas queimadas e com a pele se descolando do corpo, pessoas morrendo pelos
efeitos da radiao. Houve dezenas de milhares de vtimas, a maioria composta
de mulheres e crianas, como em Hiroshima, porque grande parte dos homens
estava nas frentes de batalha.
Nagasaki uma cidade crist. Talvez a mais adepta do Cristianismo no Japo.
A parte que foi atingida pela bomba estava repleta de monumentos histricos e
religiosos. As fotos que mostraram a destruio de Nagasaki chocaram o mundo
ocidental, pois mostravam imagens de smbolos catlicos danificados.
No consigo aceitar o fato de tudo isso ter acontecido por causa da guerra. Por
que essas pessoas tiveram de sofrer tanto, ou mesmo morrer, para que a guerra
acabasse? No havia outra forma que no a destruio de duas cidades inteiras?
Finalmente, aps a destruio de Hiroshima e de Nagasaki, foi anunciado
oficialmente o fim da Segunda Guerra Mundial. Outras cidades do mundo, como
as famosas fotos em Nova York registram, celebravam com muita alegria o fim
desse conflito sangrento e que parecia nunca chegar ao fim.
Havia terminado a guerra para o Japo tambm, como eu h muito esperava.
Mas, para mim e para todos em Hiroshima e Nagasaki, no havia motivo para
comemorao. Tudo pelo que poderamos esperar era sobreviver mais um dia.
No sabamos como reconstruir nossas cidades.
Mais de setenta anos depois, ainda no se sabe ao certo todos os efeitos da
radiao na sade. Todos os que, como eu, tiveram sorte de sobreviver, tm o
medo constante de descobrir novas consequncias. Tememos cada exame de
rotina, pois no sabemos o que esperar.
O PIOR DIA DA MINHA VIDA HAVIA ACABADO, mas a paz ainda estava distante. Era
preciso reconstruir a cidade e encontrar uma maneira de lidar com a perda dos
entes queridos. Alm de tudo, os problemas de sade comearam a aparecer.
Havia muitos desafios por vir.
Os dias seguintes aos da bomba foram caticos. Assim como a vspera, o dia 7
de agosto de 1945 tambm amanheceu bonito e ensolarado. Eu, como oficial da
Polcia Militar, no poderia descansar e me recuperar da queimadura que havia
sofrido na nuca, tampouco do impacto psicolgico causado por tudo o que
presenciei. Havia um longo trabalho pela frente e o meu cargo exigia dedicao
pela cidade.
Sa bem cedo do quartel, pronto para zelar pela segurana da populao. As
cenas tristes infelizmente no haviam acabado. Caminhando pela cidade me
deparei com os mesmos escombros do dia anterior. Havia fumaa por toda a
parte, pessoas feridas e muitos cavalos com os corpos inchados e as patas para
cima. Eu olhava ao redor e me perguntava se algum dia seria possvel olhar para
Hiroshima e ver novamente uma bela cidade.
Havia tambm a necessidade de juntar os cadveres para que pudessem ser
enterrados ou cremados, pois era preciso eliminar o terrvel odor que
impregnava a cidade. A extenso da destruio em Hiroshima era incomparvel
com o que vi em Tquio.
Foi uma visita agradvel no s para mim, mas para os outros que
estavam internados: meu pai trouxe alimentos frescos da lavoura e
leite, que ajudariam na recuperao dos doentes.
Foi uma visita agradvel no s para mim, mas para os outros que estavam
internados: meu pai trouxe alimentos frescos da lavoura e leite, que ajudariam na
recuperao dos doentes. Trouxe tambm ch de folhas de caqui, que diziam ser
bom para os sobreviventes. Dividi os mantimentos com os outros e todos ficaram
contentes por apreciar uma comida saborosa novamente.
Meu pai, minha me e minha irm permaneceram algum tempo em minha
companhia. Depois, retornaram para a vila de Sagotani dizendo que voltariam a
me visitar em breve. Ainda no sabia por quanto tempo ficaria internado, pois
minha ferida exigia muitos cuidados. Senti falta deles assim que partiram, mas
me alegrei com a certeza de que os reencontraria em breve. A guerra arrasou a
cidade de Hiroshima, mas no conseguiu tirar minha famlia de mim. ramos
todos sobreviventes.
Como mencionei, o dia 9 de agosto trouxe mais notcias terrveis. Do hospital,
soubemos que a cidade de Nagasaki tinha recebido um ataque de bomba atmica
tambm. No podia acreditar no quanto meu pas estava sendo destrudo.
Temendo o pior, imaginei que, caso a guerra no terminasse, iriam detonar
bombas atmicas em todo o Japo.
No hospital chegavam mais e mais soldados feridos, e a capacidade de
atendimento, que j era precria, ficava cada vez mais sobrecarregada, pois
estvamos ficando superlotados e no havia perspectiva de melhora. Como no
havia recursos para atender a todos, a populao ficou entregue prpria sorte.
Foi ento que o fantasma da bomba atmica voltou a nos assombrar. Apesar das
dificuldades, aqueles que estavam nos hospitais j se consideravam sobreviventes
e pensavam que o pior havia passado. Mas estavam enganados.
Como os dias continuavam quentes e ensolarados, eu ficava no ptio tomando
sol com outros soldados. Num desses dias, um soldado chamou o mdico que
estava passando e disse: Senhor mdico, olhe como o meu cabelo cai. Ao dizer
isso, passou a mo pela cabea e tirou um chumao de cabelo. Fiquei assustado
ao presenciar essa cena, pois no era pouco cabelo e saiu sem dificuldade.
Perguntei-me se perderia meu cabelo tambm. O mdico, mesmo que tivesse
ficado preocupado, no demonstrou naquele momento: Fique tranquilo, seu
cabelo vai crescer novamente.
Esse foi o primeiro indcio de que algo terrvel estava acontecendo com quem
havia sido afetado pela radiao. Em poucos dias, os soldados que tiveram queda
de cabelo precisaram ficar de cama. Agora, os sintomas que apresentavam
eram mais alarmantes: inchao, manchas roxas por todo o corpo, sangramento
na gengiva e diarreia.
Apesar do esforo das enfermeiras para tratar essas pessoas, logo elas
comeavam a vomitar sangue e ento faleciam, aps muito sofrimento. Os casos
de doena da bomba atmica, doena de pika-don, comearam a se alastrar
pelo hospital e por toda a cidade. No havia o que fazer, restava a elas apenas
aguardar a morte.
Diante do que via ao meu redor, temi ser afligido por essa doena. Afinal,
ningum sabia o que a causava ou se todos aqueles que sobreviveram bomba
estariam condenados a morrer desse jeito. Era como virar uma ampulheta e
ficar aguardando a prpria morte chegar. A ansiedade era nunca saber ao certo
quando seria. Quando esse sofrimento teria fim? No sabia se algum dia voltaria
a viver minha vida em paz, sem o fantasma da bomba atmica me assombrando.
Apesar disso, mais uma vez estaria de volta a Hiroshima, minha cidade, que
parecia no querer se desapegar de mim. L, precisaria reconstruir minha vida,
assim como a prpria cidade teria de se reerguer. Sobretudo, ainda teria de lidar
com as incertezas quanto minha sade.
- oito -
ERA PRE CISO RE COME AR e buscar novos objetivos de vida. A cidade de Hiroshima
j comeava a encontrar certa ordem em meio ao caos, mas ainda havia muito
a ser feito. Toda a populao tentava seguir adiante com os recursos disponveis.
Ainda assim, eu me perguntava se um dia poderia olhar para a cidade sem ver os
vestgios de destruio. Minha mente e os sentimentos que trazia em mim me
diziam que no.
No incio de fevereiro de 1946, retirei os meus queridos instrumentos de
relojoeiro da caixa na qual os havia guardado com todo o cuidado. Agora, eles
iriam comigo a Hiroshima para recomear minha carreira. Esses instrumentos
representavam a esperana de uma vida nova e prspera.
Quando ainda estava no interior, morando com meus familiares, meu pai e eu
descobrimos que havia em Hiroshima uma propriedade da famlia que, embora
afetada pela radiao, estava em bom estado. Ela ficava no bairro de Funairi,
Kawaguchicho, e abrigaria a Relojoaria Morita e meu novo lar. Foi com boa
expectativa que pendurei a placa na frente da casa, indicando o novo comrcio
que se iniciaria ali.
O que mais tocou Ay ako foi a histria de uma senhora ali presente:
aps a detonao da bomba, sua filha ficou presa sob os escombros.
Enquanto pedia ajuda, o fogo se espalhou pelo local. A filha dessa
senhora, sem esperanas de sobreviver, pediu-lhe que fugisse com seu
marido e seu filho.
No dia seguinte, Ay ako se refugiou em uma colina, ainda sem notcias de seus
familiares. Passados alguns dias e decidida a saber o que havia acontecido com
eles, retornou para a casa onde havia se abrigado aps a queda da bomba.
Finalmente, no dia 10 de agosto, o irmo de Ay ako descobriu onde ela estava e
foi ao seu encontro. Soube por meio dele que a famlia estava na farmcia no
momento da detonao. Felizmente ningum perdeu a vida, apenas ficaram
muito feridos.
Essa era uma experincia que certamente nos conectava. Ay ako compreendia
meu sofrimento, assim como eu compreendia o dela. Cada vez mais nos
afeiovamos um ao outro, ento tomei coragem e decidi pedi-la em casamento.
Era da vontade dela se casar comigo, mas sua famlia no aprovou no incio. Sua
madrasta logo se ops ao nosso matrimnio: Ay ako, com tantos pretendentes em
melhor situao, para que voc quer se casar com um relojoeiro?.
Ay ako, aborrecida com a recusa de sua famlia, protestou silenciosamente
deixando de comer. Ela sempre fora uma filha obediente e respeitava as decises
da famlia, entretanto, quando o amor acontece, no h nada que possa impedi-
lo.
Alm da minha sade, que no estava sendo favorecida pelo clima, Hiroshima
e Nagasaki ainda enfrentavam graves problemas de segurana, que me
causaram grandes transtornos: a relojoaria foi roubada novamente e trinta
relgios de clientes foram levados. Esses relgios haviam sido deixados para
conserto, ento tivemos de ressarcir os proprietrios. Alm disso, nossa loja
acabou sendo includa na rea de desapropriao para um novo planejamento
urbano e fomos obrigados a nos mudar.
Comecei a ficar desanimado com a situao e com o desamparo em que nos
encontrvamos. Haviam-se passado anos desde aquele fatdico 6 de agosto e
ainda no ocorria nenhuma iniciativa por parte do governo japons para auxiliar
os sobreviventes. Sentia-me abandonado, como se tivssemos cometido um
crime e pagssemos por ele. Durante a guerra fomos leais ao imprio,
trabalhamos pelos objetivos do pas e, no entanto, quando mais precisvamos,
haviam nos virado as costas. Pensei se no era o momento de recomear em
outro lugar, bem longe de qualquer lembrana relacionada bomba atmica.
Durante a guerra fomos leais ao imprio, trabalhamos pelos
objetivos do pas e, no entanto, quando mais precisvamos, haviam nos
virado as costas. Pensei se no era o momento de recomear em outro
lugar, bem longe de qualquer lembrana relacionada bomba atmica.
Essa, entretanto, no era sua verdadeira vontade. Logo depois de minha visita,
ele ligou para a Farmcia Orishige para falar com a madrasta de Ay ako. Sua
inteno era a de que a famlia de minha esposa conseguisse nos convencer a
ficar. Ele disse madrasta: Veja bem, o Takashi est falando que quer ir para o
Brasil, mas faa tudo para impedir. No entanto, ele no teve sucesso.
Logo, a senhora Orishige e a irm de minha esposa vieram nossa casa para
tentar nos dissuadir. Elas disseram: Seu pai nos informou sobre a partida e disse
tambm que no quer que vocs vo. Por favor, desistam! Restaram apenas
mulheres na famlia, Takashi; voc o nico homem adulto, nossos filhos ainda
so pequenos. Mas eu tambm estava mordido pelo orgulho, ento recusei seus
apelos. Disse que iramos embora sim, uma vez que meu pai havia consentido na
minha presena. E que voltaramos em dez anos. Elas foram embora de casa aos
prantos.
No era apenas por teimosia que estava decidido a embarcar com minha
famlia em direo a uma terra desconhecida. Pensava que o destino estava me
dando um sinal tambm, pois recebi a carta-convite do senhor Settai no mesmo
dia em que aconteceu a missa de um ano do falecimento do meu sogro. Isso me
mostrava como a vida era fugaz e que a qualquer momento eu poderia no estar
mais neste mundo. Como sobrevivente de uma arma to poderosa, cujos efeitos
no eram totalmente conhecidos, sabia muito bem da minha condio.
Outro fato, a Guerra da Coreia estava em curso. O Japo parecia estar se
envolvendo no combate, agora ao lado dos norte-americanos. Realmente no
queria mais saber de guerra.
Enfim, decidi que partiramos para o Brasil. Estava entusiasmado com essa
nova perspectiva que havia abraado, apesar de saber que minha famlia no
partilhava dela. Fui inflexvel ao tomar a deciso; no considerei a opinio dos
outros membros da famlia.
O RECOMEO NO BRASIL
Deixamos Los Angeles e o navio seguiu seu itinerrio. Pudemos ver o canal do
Panam, paramos em Caracas, na Venezuela, e finalmente chegamos ao Brasil,
no Estado do Par. Alguns passageiros desceram em Belm para seguir rumo
cidade de Manaus, no Amazonas. Ainda lembro do grupo que desceu do navio e
foi enfrentar o desafio da Floresta Amaznica. Cogito muitas vezes qual foi o
destino deles. Em Salvador, ficamos muito curiosos para conhecer a cidade e
descemos do navio para ver alguns de seus pontos tursticos, como o Elevador
Lacerda.
Outro lugar que tambm estvamos ansiosos por conhecer era a cidade do Rio
de Janeiro, famosa por sua beleza. Formamos um grupo de doze passageiros e
descemos do navio. Imaginem a confuso: doze japoneses passeando pelo Rio de
Janeiro sem saber uma palavra da lngua local!
As dificuldades j comearam no primeiro lugar que decidimos visitar: o
Cristo Redentor. No grupo, havia um senhor que j estivera no Brasil, ento
confiamos em seus conhecimentos de portugus. Acontece que esse senhor s
sabia contar at dez em portugus, e ns precisvamos de doze ingressos. Para
resolver o impasse, aps inmeras tentativas de se comunicar conosco, o
funcionrio que vendia as entradas teve de sair do seu posto e contar quantas
pessoas havia no grupo para determinar a quantidade certa de ingressos.
EM 1984, E U E STAVA PRE ST E S A COME AR UMA BATAL HA RDUA: trazer aos hibakushas
residentes no Brasil os benefcios que o governo japons prestava aos que
residiam em territrio nipnico. Afinal de contas, todos ns fomos vtimas da
mesma tragdia, todos sobrevivemos s bombas atmicas de Hiroshima ou de
Nagasaki.
Durante nossa permanncia de trs meses, lutamos para obter nossas carteiras
de sobrevivente e tentamos divulgar a nossa associao para conseguir algum
tipo de auxlio. Fomos a diversos rgos oficiais, nos quais recebamos sempre a
mesma resposta: Vocs deixaram seu pas natal, portanto no podem mais
esperar o auxlio do Japo. Sugiro que recorram ao governo brasileiro, ele que
deve ajud-los!. Vocs podem imaginar a nossa indignao diante dessa
resposta. Ainda tentvamos dizer que ramos japoneses, no brasileiros; mas no
adiantava. Era muito frustrante ver o descaso dos rgos governamentais
japoneses, que se recusavam a nos reconhecer como cidados japoneses.
Estando em territrio nipnico, no foi difcil conseguirmos nossas carteiras de
sobrevivente. Eu tinha sido comprovadamente policial militar do Exrcito
Japons, e tinha pessoas que podiam servir de testemunha para provar que eu
estava em Hiroshima no dia 6 e nos subsequentes. Minha esposa Ay ako era
funcionria pblica da Provncia de Hiroshima e estava em servio na repartio
pblica nesse dia e tinha testemunhas vivas. Foi uma grande emoo quando
recebemos em nossas mos as nossas carteiras de sobrevivente! Agora podamos
provar, sem dvida, que ramos hibakushas. Naqueles tempos e por muitos anos
mais, a nica maneira de conseguir esse documento comprobatrio dos
sobreviventes era indo ao Japo, numa viagem que demora cerca de 24 horas
contando somente o tempo de voo.
Antes de retornarmos para o Brasil, Tooro Tamura, nosso conselheiro,
conseguiu agendar por meio de um parente seu, que era um poltico japons, um
encontro no Ministrio do Exterior. O objetivo era solicitar a visita de uma
comisso de mdicos japoneses para que os sobreviventes que estavam no Brasil
fossem examinados periodicamente, conforme j ocorria com aqueles que
viviam nos Estados Unidos. Apesar de toda a nossa insistncia, deixamos o Japo
sem saber se o pedido seria atendido.
Outro momento especial dessa viagem foi poder reencontrar minha me. Meu
pai, infelizmente, j havia falecido alguns anos antes, mas rever membros da
famlia foi emocionante. Matamos as saudades e conversamos sobre a nossa vida
no Brasil e nosso trabalho junto associao. Havamos partido com o plano de
voltar aps dez anos, mas esse retorno s aconteceu 28 anos depois, e ainda
tnhamos de voltar para o Brasil. Era preciso continuar o que havamos
comeado.
Numa manh de sol, em dezembro de 1984, Ay ako e eu estvamos abrindo as
portas da nossa mercearia. Desde ento, essa rotina faz parte da minha vida.
Passo muito tempo aqui, trabalhando, conversando com hibakushas, atendendo
meus amigos e clientes, cercado de muito carinho dos funcionrios, que j so
como meus familiares. E aqui sempre funcionou a nossa associao, recebendo
amigos sobreviventes, dialogando com professores e jovens que querem saber
sobre as histrias da bomba atmica. Felizmente, a nossa loja ainda conserva
espao para mim.
Continuando a trajetria da associao, em janeiro de 1985, dois meses aps a
nossa petio, o ministro do Exterior do Japo, Shintaro Abe pai do atual
primeiro-ministro japons Shinzo Abe , divulgou a informao de que uma
comisso de mdicos faria uma visita para atender os sobreviventes da bomba
atmica residentes na Amrica Latina, incluindo a cidade de So Paulo. Diante
disso, mostrava-se muito importante a concluso do cadastro dos sobreviventes e
a atuao da associao. O pequeno passo que havamos dado nos trouxe uma
grande vitria e nos deu ainda mais fora para continuar em direo aos nossos
objetivos.
A primeira comitiva dos mdicos japoneses estava chegando. A quantidade
significativa de sobreviventes possibilitou ao governo japons montar uma
comitiva composta de mdicos e diversos agentes do governo para a realizao
de consultas e pesquisas em So Paulo. Os agentes do governo vieram para
entrevistar todos os membros cadastrados da nossa associao e certificaram que
eram realmente sobreviventes das bombas atmicas. A partir disso, todos eles
foram reconhecidos como hibakushas. Felizmente, no havia nenhum membro
do nosso cadastro considerado inelegvel. Desde ento, a cada dois anos, uma
delegao mdica do Japo vem ao Brasil para assistir o estado de sade dos
sobreviventes da bomba atmica, e tambm para avaliar e entrevistar os novos
inscritos que, aps a confirmao, passam a fazer parte da associao.
Desde ento, a cada dois anos, uma delegao mdica do Japo vem
ao Brasil para assistir o estado de sade dos sobreviventes da bomba
atmica.
A experincia, porm, que deveria durar trs meses, acabou durando quatro,
pois foi necessrio trocar de navio em virtude de um problema mecnico. No
perodo em que o navio ficou parado, foram escolhidos trs sobreviventes para
viajar a Nova York e fazer um depoimento na ONU. Fiquei muito feliz e surpreso
quando me selecionaram e pude, mais uma vez, estar nos Estados Unidos.
Essa passagem por Nova York foi muito agradvel para mim. No hotel em que
estvamos, concedi diversas entrevistas, em que falei sobre minha experincia.
Os jornalistas estavam muito curiosos para ouvir minha histria. Outro momento
muito marcante foi uma palestra que dei em uma escola, onde um jovem norte-
americano se levantou, chorando, e me pediu desculpas pelo que o seu pas havia
feito a mim e ao meu povo. Eu, que no guardo rancor nem mesmo culpo os
Estados Unidos pelo que aconteceu, respondi: Voc no tem que pedir
desculpas! No foi voc, no foi seu povo, toda a culpa da guerra. Nesse
momento, acredito ter plantado nesse jovem a semente da paz e espero que ele
possa cultiv-la e espalh-la a todos ao seu redor.
Outro momento muito marcante foi uma palestra que dei em uma
escola, onde um jovem norte-americano se levantou, chorando, e me
pediu desculpas pelo que o seu pas havia feito a mim e ao meu povo.
Pude participar novamente do Peace Boat em 2010, e mais uma vez foi uma
experincia muito enriquecedora. Dessa vez, samos do Rio de Janeiro e
visitamos alguns pases da Amrica do Sul como palestrantes convidados.
alarmante e muito triste saber que h muitos pases que j tiveram
problemas com radiao, que pode ser muito prejudicial sade. Como dito
anteriormente, isso j aconteceu at no Brasil, quando, em setembro de 1987, em
Gois, uma nica cpsula com csio foi descartada incorretamente e a radiao
causou problemas sade de muitas pessoas na regio. Esse um inimigo
perigoso, que pode estar muito prximo de todos ns.
As atividades da nossa associao foram muito bem apresentadas e
documentadas pelo cineasta argentino Roberto Fernandez, radicado no Brasil.
Com auxlio da Fundao Japo, concluiu um documentrio, 08:15 de 1945,
apresentado ao pblico em 2012. Esse filme teve a sua verso em japons feita
pelo diretor Seiji Arihara, um ativista conhecido no Japo pelos seus lindos filmes
em estilo de mang que relatam temas da bomba atmica.
Em 2011 tive a honra de ter meu nome escolhido para uma escola tcnica
estadual na cidade de So Paulo. A E T E C Santo Amaro passou a se chamar E T E C
Takashi Morita a partir de 22 de julho de 2011, pela Lei 14.497/11, apresentada
pelo deputado estadual Carlos Giannazi ( PSOL - SP). Nessa escola, no s a minha
histria como tambm a da bomba atmica de Hiroshima se tornou muito
conhecida.
Em junho de 2015, recebi o ttulo de cidado paulistano, na Cmara Municipal
de So Paulo, pela iniciativa do vereador Toninho Vespoli ( PSOL - SP). Fiquei muito
emocionado pela homenagem que recebi desta cidade, que, de braos abertos,
em maro de 1956, recebeu a minha famlia. Participei tambm de uma pea do
dramaturgo Rogrio Nagai, intitulada Os trs sobreviventes, na qual relato minha
histria ao lado dos meus companheiros Junko Watanabe e Kunihiko Bonkohara.
A Associao Hibakusha Brasil pela Paz permanece em atividade at hoje.
Quase todos que faziam parte da diretoria inicial faleceram, exceto eu e minha
filha, que coordena o setor em portugus. Lembro com muito carinho de todos os
meus companheiros que se foram. Atualmente conto com a dedicada ajuda do
vice-presidente, senhor Kunihiko Bonkohara, dos diretores senhora Junko
Watanabe e professor Andr Lopes Loula, alm da minha filha, Yasuko Saito.
Sempre contei com a ajuda dos meus filhos, tanto na associao como na
mercearia e na vida pessoal, o que me deixa muito grato. Essa ajuda foi
especialmente importante quando perdi minha companheira de toda a vida,
Ay ako. Moro com meu filho Tetsuji e minha nora Clara desde que abrimos a
loja. A dedicao e o carinho deles sempre foram a energia que Ay ako e eu
tnhamos para nos empenhar no trabalho da associao. Em torno de 2005,
Ay ako comeou a apresentar sinais de perda de memria e dificuldade de
comunicao. Logo foi diagnosticada com a doena de Alzheimer. Perdi minha
companheira pouco a pouco e, at hoje, sinto o vazio que ela deixou. Ela faleceu
em 2009. Apesar de sentir muito a sua falta, sou grato e feliz pelos momentos que
passamos juntos e por tudo o que superamos em dcadas de casamento. Ay ako
no passou pela vida em vo, ela deixou uma marca no mundo.
Hoje, aos 93 anos, continuo minha misso pela paz. No quero que mais
pessoas passem por experincias como a minha. Para isso, divulgarei minha
histria, a histria do que aconteceu em Hiroshima e Nagasaki. Sei que no
sobrevivi ao pior dia da minha vida sem um motivo maior, ento honrarei a vida
at o fim a minha e a de todos os que habitam comigo este planeta.
Em 2017, seria o correspondente a R$ 684. (N. E.)
- onze -
ERA UMA MANH DE SE XTA- FE IRA, em fevereiro de 2002. Em minha loja, estavam
meus filhos, meu genro e minha nora, alm dos funcionrios. Naquela poca,
havia sido diagnosticado com diabetes na consulta feita no Japo e, por sugesto
do mdico, usava uma injeo de insulina, para controle da doena, ainda que
sem o conhecimento de minha famlia.
Eu no havia contado nada a respeito, pois no queria preocupar ningum, e
tambm porque temia a restrio alimentar que minha esposa Ay ako, junto de
minha filha, iria impor. Nesse dia, alguns minutos aps eu ter aplicado a injeo,
perdi completamente os sentidos e desmaiei na frente de todos. Meus familiares
ficaram muito assustados, e meu genro, que mdico, tomou a frente da
situao. Assim que recuperei a conscincia, ele me levou para o hospital mais
prximo. Eu estava sofrendo um problema cardaco!
Para minha sorte, no Hospital Santa Cruz fui atendido prontamente pela
senhora Yuli Fujimura, responsvel pela assistncia aos pacientes japoneses. Ela
me encaminhou diretamente para o mdico especialista. Em menos de 3 horas
do incio dos sintomas, tinham feito o tratamento completo para desobstruir as
veias afetadas. Passei por uma cirurgia de emergncia, em razo de um
princpio de infarto do miocrdio e precisei ficar internado na UT I. Mais uma vez,
estive entre a vida e a morte.
Ao meu lado, no hospital, havia diversas pessoas que viviam seus ltimos
momentos. Muitos deles eram imigrantes japoneses de idade avanada; eles
gemiam e murmuravam em japons, trazendo-me de volta imagem do
sofrimento que presenciei no dia dos bombardeios. Algumas dessas pessoas
morreram enquanto eu ainda estava ali.
Uma vez mais, perguntei-me se iria sobreviver at o dia seguinte. Era uma
sensao conhecida para mim: experimentei-a logo aps meu nascimento; mais
tarde, durante o bombardeio em Tquio; na viagem de Tquio a Hiroshima, na
qual fomos perseguidos por caas norte-americanos; no dia da bomba atmica;
durante a passagem do tufo Makurazaki, que destrura, um dia depois de minha
alta, o hospital em que eu ficara internado; e quando fui diagnosticado com
leucemia, anos depois em Hiroshima Em todas essas ocasies nas quais minha
vida esteve por um fio, o destino decidiu mant-la.
Sete chances de morrer.
Sou muito grato por ter sobrevivido a todas elas, por chegar aos 93 anos e
poder contar minha histria. Mas, de todas essas provas, a mais dura foi a bomba
atmica. Durante todos os outros momentos difceis que enfrentei, essa
lembrana no deixou de me acompanhar. Apesar de ter sobrevivido bomba,
ela se tornou uma parte da minha vida.
O mais triste pensar que pessoas tenham sido capazes de causar tamanha
destruio a seus semelhantes. Ainda assim, no posso acreditar que a guerra
esteja na alma do ser humano, que nosso desejo seja a destruio. No posso e
nunca vou acreditar nisso.
No entanto, vejo, com muita tristeza, que as guerras continuam acontecendo.
Hoje, podemos assistir em tempo real a tudo o que acontece nelas. Tambm
podemos pesquisar e saber que mais de trinta pases j sofreram graves
consequncias por causa da energia nuclear. Mesmo com alegaes de que o uso
pacfico da energia nuclear traz muitos benefcios humanidade, no consigo
acreditar que ela possa ser domada pelo homem.
Temo que sejamos surpreendidos novamente, como aconteceu em Fukushima.
L, havia usinas nucleares consideradas as mais seguras do mundo, num pas
onde a segurana estudada com muita seriedade. Mas soubemos que houve
muitas falhas humanas que no conseguiram se sobrepor ao desastre da natureza,
um terremoto de intensidade inimaginvel.
Mais uma vez o Japo teve de encarar um desastre nuclear, resultando em
inmeros hibakushas, que tiveram suas vidas destrudas pela discriminao e
problemas de sade. Ser que nunca aprenderemos? Novas pesquisas esto sendo
necessrias para desvendar esse outro tipo de afetados da radiao.
Tive tambm a oportunidade de conhecer Angra dos Reis ( RJ), onde ficam as
usinas nucleares brasileiras. Um lugar to bonito que est sob o risco de
vazamentos que contaminariam e destruiriam toda a beleza da regio. Alm
disso, no h planos de fuga e resgate da populao em caso de acidente, o que
faz com que as pessoas que moram na regio vivam constantemente sob tenso.
No me canso de alertar para os perigos da radiao. Por isso, apoio o trabalho
da Coalizo por um Brasil Livre de Usinas Nucleares liderado pelo arquiteto, ex-
deputado e importante ativista nas causas ambientais, Chico Whitaker e sua
esposa, Stella. Ao v-los sempre juntos trabalhando por seus ideais, relembro de
minha esposa, Ay ako, que sempre esteve ao meu lado lutando em busca dos
nossos objetivos.
Sei que a humanidade e a radiao no conseguem conviver em harmonia.
Mesmo assim, vrios pases ainda investem em energia nuclear, inclusive o
Brasil. Ser que vale a pena? Para mim, NO!
A lembrana daqueles dias, da destruio de toda uma cidade em segundos, de
tantas mortes sem sentido, do sofrimento das pessoas perdendo seus entes
queridos sem poder fazer nada, tudo isso me faz ter a certeza de que no vale a
pena.
E as consequncias no acabaram com o fim da guerra. Para todos os
hibakushas restou uma vida de incerteza em relao sua sade, sempre com o
temor de manifestar aquela doena de pika-don que os acompanharia em sua
mente enquanto vivessem. E muito mais do que isso, o medo de ser discriminado,
de ter algum dos seus descendentes com deformidades provocadas pela
exposio s radiaes atmicas, toda essa incerteza gerou em muitos
sobreviventes problemas fsicos e psicolgicos. As pesquisas sobre os efeitos
dessa radiao continuam ainda hoje.
Sei que nunca saberei sobre os resultados dessas pesquisas, assim como nunca
relataram sobre o meu estado de sade quando fiz muitos exames no Centro de
Pesquisas Americanas montado no topo do monte Hijiy ama em Hiroshima,
alguns anos aps o fim da guerra.
No saberei, mas talvez essas pesquisas, se utilizadas e divulgadas
corretamente, possam um dia impedir a detonao de alguma arma nuclear no
futuro Espero que NUNCA mais se repita esse dilema. Bomba atmica NUNCA
MAIS!
Foi com imenso pesar no corao que relembrei esses tempos e contei minha
histria at aqui. No entanto, sei que minha experincia pode ajudar outras
pessoas a perceber as consequncias de uma guerra, os riscos da energia nuclear
e o que pode acontecer quando estamos cegos por algum idealismo radical e
egosta.
Acredito que saber a verdade dos acontecimentos, conhecer as histrias vivas,
seja um passo importante para que tornemos o mundo um lugar melhor para
todos.
Vou continuar contando minha histria e acreditando na paz.
Espero que outras pessoas possam se juntar a mim, pois esse um caminho
longo, o qual no podemos trilhar sozinhos.
- CARTA DE AGRADECIMENTO -
por Yasuko Saito
1. CAPA PGINA
2. PGINA DE TTULO
3. DIREITOS AUTORAIS PGINA
4. NDICE
5. PREFCIO
6. UM. A VIDA ANTES DA GUERRA
7. DOIS. ABANDONANDO AS BRINCADEIRAS DE CRIANA
8. TRS. EXPERINCIAS NO EXRCITO
9. QUATRO. INGRESSO NA POLCIA MILITAR
10. CINCO. O DIA 6 DE AGOSTO DE 1945
11. SEIS. O PRIMEIRO ATAQUE ATMICO DA HISTRIA
12. SETE. A VIDA PS-BOMBA ATMICA
13. OITO. O RETORNO PARA CASA
14. NOVE. O RECOMEO NO BRASIL
15. DEZ. ASSOCIAO HIBAKUSHA BRASIL PELA PAZ
16. ONZE. A HISTRIA DE SADAKO E O TSURU
17. EPLOGO
18. CARTA DE AGRADECIMENTO