Roland - Barthes - A Camara Clara PDF
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A CMARA CLARA
Nota sobre a lotogralia
Traduo de
Jlio Castaon Guimares
9" impresso
EDITORA
NOVA
FRONTEIRA
um ola,
Um dia, ha
h mutto
muito tempo, dei
dei com uma fo.
fo-
tografia do ltimo irmo de Napoleo, Jer.
nimo (1852). Eu me disse ento, com urn
espanto que jamais pude reduzir: ,,Vejo os
olhos que viram o Imperadot." Vez ou outra,
eu f.alava desse espanto, mas como ningum
parccia compartilh-lo, nem mesmo compreen-
d-lo (a vida , assim, feita a golpes de peque-
nas solides), eu o esqueci. Meu interesse pela
Fotografia adquiriu uma postura mais cultural.
Decretei que gostava daFoto contra o cinema,
do qual, todavia, eu no chegava a sepa-La",
11
Essa questo se fazia insistente. Em relao nais/Amadores), ou retricas (paisagens/Ob-
Fotografia, eu era tomado de um desejo "onto- jetos/Reuatos/Nus), ou estticas (ahsmo/
lgico": eu queria saber a qualquer preo o Pictorialismo), de qualquer modo exterores
que ela efa "em si", pot que tro essencial ela ao objeto, sem rclao com sua essncia, que
se distinguia da comunidade das imagens. Um s pode ser (caso exista) o Novo de que la
desejo como esse queria dizer que, no undo, foi o advenro, pois essas classificaes pode-
fora das evidncias provenientes da tcnica e riam muito bem aplicar-se a outrds foimas,
do uso e a despeito de sua formidvel expanso antigas, de representao.Diramos que a Foto-
contempotnea, eu no estava certo de que a grafia inclassificvel. Perguntei-me enro a
Fotografia existisse, de que ela dispusesse de que poderia dever-se essa desordem.
um "gnio" prprio. Em primeiro lugar, encontrei o seguinte. O
que a Fotografia reproduz ao infinito s ocor-
reu uma vez: ela repete mecanicamente o que
nunca mais poder repetir-se existencialmente.
Nela, o acontecimento iamais se sobrepassa
2 pata oua coisa: ela reduz sempre o corpus de
que tenho necessidade ao corpo que vejo; ela
o Particular absoluto, a Contingncia sobe-
tana, fosca e um tanto boba, o Tal (tal foto, e
Quem podia guiar-me? no a Foto), em suma a Tique, a Ocasio, o Lacan,
Encontro, o Real, em sua expresso inatig- 53'66
Desde o primeiro passo, o da classificao
( pteciso classificar , rcalizat amostragens, caso vel. Para designar a rcalidade, o budismo diz
se queira constituir vm corpu.r), a Fotogtafia sanya, o vazio; mas melhor ainda: tathata, o watts,
se esqulva. As divises s quais ela sub- fato de ser tal, de ser assim, de ser isso; tat 85
t6 T7
cultufa. Assim eu prosseguia, tanto sem ousar
que exi-stia em rnim (por. mais ingnua que
reduzir as fotos inumerveis do mundo, quan-
fosse): a resistncia apaixonada a qualquer
to sern estender algumas das minhas a toda a
sistema redutor. Pois toda vez que, tndo re-
Fotografia: em suma) eu me encontrava num
corrido um pouco a algum, sentia uma lingua-
impasse e, se me cabe dizer, "cientificamente"
gem adquirir consistncia, e assim resvalar
sozinho e desarmado.
pam. areduo e a reprimenda, eu a abandona-
va tranqilamente e procurava em outra paftei
punha-me a alat de outto modo. Mais valra,
de uma vez por todas, transformar em ruzo
minha declarao de singularidade e tentar a-
3
zer da"antigasoberania do eu" (Nietzsche) um
princpio heutstico. Resolvi tomar como pon-
to de partida de minha busca apenas algumas
fotos, aquelas que eu estava certo de que exis-
Conclu ento que essa desordem e esse di- tiam para mirn. Nada ver com um corpasi
lema, evidenciados pela vontade de escrever somente alguns corpos. Nesse debate, no fim
sobre a Fotografia, refletiam uma espcie de das contas convencional, entre a subjetividade
desconforto que sempre me fora conhecido: e a cincia, eu chegava a essa idia bizana:
o de se-r um sujeito jggadg,gntre duas lingqa- por que no haveria, pot assim dizer, uma cin-
gens, uma expres.siv4, outra cttica; e dentro
cia nova por objeto? Uma Matbesis singularis
desta ltima, entre vrios discurss, os da so- (e no mas uniuersalis) ? Aceitei ento tomar-
ciologia, da semiolgiu . da psicanlise me por mediador de toda a Fotografia: eu ten-
que, pela
pera insatisfao em que
msatlslaao em ilm --ma.s
que por fim me en- taria formular, a partir de alguns movimentos
<intrava em relao tanto a uns quanto a ou- pessoais, o ffao fundamental, o universal sem
ffos, eu dava testemunho da nica coisa qegura o qual no haveria Fotografia.
18 t9
4 (Polaroi.? Divertido, mas decepcionante, a
no ser em mos de um grande fotgrafo). Eu
podia supor que a emoo o Operator (e pot-
tanto a essncia da Fotografia-segundo-o-Fo-
Eis-me assim, eu prprio, como medida do
tgrafo) tinha alguma relao com o "pequeno
"saber" otogrfico. O que meu corpo sabe da
orifcio" (estnopo) pelo qual ele olha, limita,
Fotografia? Observei que uma foto pode ser
enquadra e coloca em perspectiva o que ele
objeto de trs prticas (ou de rs emoes,
quer "captar" (surpreender). Tecnicamente, a
ou de us intenes) : fazer, suportar, olhar.
Fotografia est no entecruzamento de dois
O_Operator o Fotgrafo. O Spectator so-
processos inteiramente distintos: um de or-
moffirarrros, noffiais, dem qumica: trata-se da ao da luz sobre cer-
nos livros, nos lbuns, nos arquivos, colees
tas substncias; outro de ordem fsica: tra-
de fotos. E aquele ou aquela que fotogtafa-
ta-se da formao da imagem atravs de um
do, o alvo, o referente, espcie de pequeno
dispositivo ptico. Parecia-me que a Fotografia
simulacro , de edoloa emitido pelo objeto, que
de bom grado eu chamaria de Spectruntja
do Spectator descendia essencialmente, se
possvel assim dizet, da revelao qumica do
Fotografia, porque essa palavru ffifiatra-
objeto (cujos raios recebo com atraso) e que a
vs de sua taiz, uma relao com o "espet-
Fotografia o Operator estava ligada, ao con-
culo" e a ele acrescenta essa coisa um pouco
terrvel que h em toda otografia: o retorno
rrio, viso recortada pelo buraco de fecha-
do morto.
dura da canera abscura. No entanto, dessa
emoo (ou dessa essncia) eu no podia falar,
Uma dessas prticas me estava barrada e eu
na medida em que nunca a conheci; no podia
no devia procurar question-la: no sou ot-
graf.o, sequer amador: muito impaciente pr^
unir-me coorte daqueles (os mais numerosos)
que ratam da Foto-segundo-o-Fotgrafo. Eu
isso: preciso ver imediatamente o que produzi
tinha minha disposio apenas duas expe-
20
2l
rincias: a do sujeito olhado e a do sujeito que coecidos pelos policiais de Thiers e quase
olha. todos fuzilados).
Posando diante da objetiva (quero dizer:
sabendo que estou posando, ainda que fugi-
diamente) , no me arrisco tanto (pelo menos
por enquanto). Sem dvida, metaforicmen-
5 te que fao minha existncia depender do fo-
tgrafo. Mas essa dependncia em vo procura
ser imaginfuia (e do mais puro Imaginrio), eu
a vivo na angstia de uma iliao incerta: uma
Pode ocorrer que eu seja olhado sem que eu imagem minha imagem nascet: vo
saiba, e disso eu ainda no posso falar,ia qur- - -.vai
me f.azer nascer de um indivduo antiptico ou
decidi romar como gaia aconscincia de minha de um "sujeito distinto"? Se eu pudesse "sair"
comoo. Mas com muita reqncia (realmen_ sobre o papel como so-bre uma tela clssica, do-
te muira, em minha opinio) fui foto gtafado tado de um ar nobre, pensativo, inteligente,
sabendo disso. Ora, a partir do momeito q.r. etc.! Em suma, se eu pudesse ser "pintado"
me sinto olhado pela objetiva, tudo mrra, (por Ticiano) ou "desenhado" (por Clouet)!
ponho-me a "posaf',, fabrico-me instantanea_
No entanto, como o que eu gostaria que osse
mente um outro corpo, metamorfoseio_me an_ captado uma textura moral fina, e no uma
tecipadamente em imagem. Essa transformao mmica, e como a Fotografia pouco sutil, sal-
ativa: sinto que a Fotografia cria meu .orpo vo nos grandes retratistas , no sei como, do
ou o mortifica, a seu bel-prazer (aplogo desse interior, agir sobre minha pele. Decido "dei-
Fre1njl., poder mortfero: alguns partidri, d" Comr-r_
101 xar flutuar" em meus lbios e em meus olhos
na pagaram com a vida seu consentimento em um leve sorriso, que eu gostaria que fosse "in-
posar sobre as banicadas: vencidos, foram re_
definvel", no qual eu daria a ler, ao mesmo
22 2)
tempo que as qualidades de minha natuteza, a ferena que etira o peso da imagem sada
conscincia divertida que tenho de todo o ce_
como uma oto "objetiva", do tipo "Photoma- -
rimonial fotogrfico: presto-me ao jogo social, ton", palz f.azet de voc um indivduo conde-
poso, sei disso, quero que vocs saibam, mas
nado, vigiado pela polcia o amor, o amor
esse suplemento de mensagem no deve alte_
exuemo). -,
r.ar em nada (paru dizer a verdade, quadratura
do crculo) a essncia preciosa de rneu indiv Ver-se a si mesmo (e no em um espelho):
duo: o lue sou, fora e toda efgie. Eu que_ na escala da Histria, esse ato recente, na
medida em que o retrato, pintado, desenhado
ria, 9m suma, que minha imagem, mbil, sa-
ou miniatutizado, eta, a diuso da Foto-
cudida enme mil fotos varivei, ao sabor'das ^t
grafia, um bem resffito, destinado, de resto,
situaes, das idades, coincidisse sempre com
meu "eu" (profundo, como sabido); mas
a aptegoar uma situao financeira e social
de qualquer maneira, um retrato pintado, por -
o conffrio que preciso dizet: sou ,,eu,' que
mais semelhante que seja ( o que procuro pto-
no coincido jamais com minha imagem; pis
a imagem que pesada, imvel, obstinada var), no uma fotognfia. curioso que no
se tea pensado no distrbio (e civilizao)
(por isso a sociedade se apia nela), e sou ,,eu,,
que esse ato novo ftaz.Eu queria uma Histria
que
_sou leve, dividido, disperso e que, como dos Olhares. Pois a Fotograia o advento de
um ludio, no fico no lugar, agitano-me em
meu frasco: ah, se ao menos a Fotografia pu-
mimo mesmo como outro: uma dissociao
astuciosa da conscincia de identidade. Ainda
desse me dar um corpo neutro, anatLico, Lm
mais curioso: foi antes da Fotografia que os
corpo que nada signifique! Infelizmente, estou
homens mais falaram da viso do duplo. Cos-
condenado pela Fotografia,. eu pensa agir
bem, a ter sempre uma cara; meu corpo jamis * o pronome francs "moi" correspondem em potugus,
encontra seu grau zeto, ningum o d, a ele conforme sua funo na orao sujeito su 211i$r1e
(talvez apenas minha me? pois no a indi- - a forma "mim", o que
ora a forma pronominal "eu", ora -,
impede um paralelismo pereito da ttaduo. (N. do T.)
24 25
Gayral,
209
tuma-se aproximar a heautoscopia de uma alu- em sua passagem paa a imobilidade: esse
cinose; ela foi, durante sculos, um grande apoio par:a a cabea era o soco da esttua que
tema mtico. Hoje, porm, como se recal- eu ia tornar-me, o espartilho de minha essn-
cssemos a loucura profunda da Fotogtafia: cia imaginra.
ela lembra sua herana mtica apenas por esse A Foto-retrato um campo cemado de for-
ligeiro mal-estar que me toma quando ,.me', as. Quatro imaginfuios a1 se cruzam, a se
olho em um papel. arontam, a se deformam. Diante da ohietiva,
Esse distrbio no fundo um distrbio de sou ao mesmo tempo: aq,r!* eu me_julge,-
propriedade. O direito disse isso a seu modo: assem,
Chevrier- a quem pertence a foto? ao sujeito (fotogra- -
ffi
ar,el- q"e ;- traI
Thibaudeau fado)? ao fotgrufo? A prpria paisagem no que l-
passa de urna espcie de emprstimo fito jun- paalau ato curioso' aro-Aeme imitar, e
to ao proprietrio do terreno? Inmeros pro- por isso que, cada vez que me ao (que me
cessos, segundo parece, exprimiram essa incer- deixo) otografar, sou infalivelmente tocado
teza de uma sociedade para a qual o ser basea- por uma sensao de inautenticidade, s vezes
va-se em ter. A Fotografia mansfotmava o su- de impostura (como certos pesadelos podem
jeito em objeto, e mesmo, se possvel proporcionar). Imaginariamente, a Fotografia
^tde museu: para ur., o,
falar assim, em objeto (aquela de que tenho a inteno) representa
primeiros retratos (em torno de 1840), era esse momento muito sutil em que, paru dizer
preciso submeter o sujeito a longas poses atrs a verdade, no sou nem um sujeito nem um
de uma vidraa em pleno sol; tornar-se objeto, objeto, mas antes um sujeito que se sente tor-
isso fazia sofrer como uma operao cirrgica; nar-se objeto: vivo ento uma microexperin-
inventou-se ento um aparelho, um apoio para cia da morte (do parntese): torno-me verda-
Freund, a cabea, espcie de prtese, invisvel paru a deiramente espectro. O Fotgrafo sabe muito
68
objetiva, que sustentava e mantinha o cofpo I
bem disso, e ele mesmo tem medo (ainda que
26 27
"{
i
por razes comerciais) dessa morte em que seu nei Todo-Imagem, isto , a MorJg glqjqsgei
gesto ir embalsamar-se. Nada seria mis en- ,s ffi aap-ropriarn+ne de
graado (se no fssemos sua vtima passiva, mirn mesmo, .azem de mim, com ferocidade,
o plastro,o como dizia Sade) que as contor- urn objeto, mantm-me merc, disposio,
ses dos otgrafos para "dar vida',: tristes amumado em um fichrio, preparado para to-
iniciativas: .azem com que eu sente diante de das as trucagens sutis: uma excelente fotgra-
meus pincis, .azem com que eu saia (,,fora,' fa, certo dia, fotografou-me; julguei ler nessa
tem mais vida que "denffo,') , f,azem com que imagem o pesar de um luto recente: por uma
eu pose diante de uma escada porque um grupo vez a Fotografia me devolvia a mim mesmo;
de crianas brinca atrs de mim, avistam um um pouco mais tarde, porm, eu encontrava
banco e logo (que oportunidade) fazem com essa mesma foto na capa de um panfleto; em
que eu sente nele. Seria possvel dizer que, virtude do artifcio de uma tiragem, eu tinha
terrificado, o Fotgrafo tem de lutar *rrito apenas uma horrvel face desinteriorzada, si-
para que a Fotografia no seja a Morte. Mas nistra e rebarbativa, como a imagem de minha
eu, j objeto, no luto. Pressinto que desse linguagem que os autores do livro queriam
mau sonho ser preciso que eu despere de ma- ffansmitir. (A "vida privada" no nada mai i
neira ainda mais dura; pois no sei o que a que essa zona de espao, de tempo, em que no
(de qua-lqer m-f,o-' [ t;ir^" .ifirra$de=uma_ defender meu direito poltico de ser um su- i
28 29
me fotogtaam, o rudo da mquina. pata 6
mim, o tgo do Fotgrafo no o olho (ele
me terrifica), o dedo: o que est ligado ao
disparador da objetiva, ao deslizat etlico
dasplacas (quando a mquina ainda as rem).
Gosto desses rudos mecnicos de uma manei- A desordem que desde o pflmelro passo eu
ra quase voluptuosa, como se, da Fotografia, constatara na Fotografia, com todas as ptti-
feen-
eles fossem exatamente isso
apenas isso era e
a que meu desejo se atm, quebrando com
-
seu breve estalo a camada
-ortf.r, da pose.
Para mim, o barulho do Tempo no triste:
gosto dos sinos, dos relgios e lembro-me
$:--er-.- eletry!+-lte .o -
-matelia! fqrosfee
49n9n4i1dast_cnicas.{4-_m-41cen4ri1e__fu ;1qs- o tudo-o-que-for)." Todavia, enue as que fo-
cic d prisao, ur" -aq,rirur, *
f,rrdo,
ram escolhidas, avaliadas, apreciadas, reunidas
rm relgios d vi, e taui .-
,rrim lei"
em lbuns ou revistas, e que assim passaram
gluito antis inda a, mi,diina foosr.-
fica o rudo vivo da madeira. pelo filuo da cultura, eu constatava que algu-
mas provocavam em mim pequenos ibilos,
como se estas fmetessem a um centro silen-
ciado, um bem ertico ou dilacerante, enterra-
do em mim mesmo (pot mais bem comportado
que aparentemente fosse o tema); e que outras,
30 3l
ao conrrio, me eram de tal modo indiferen-
tes, que a forya de v-las se multiplicarem,
como erva daninha, eu sentia em relao a elas
uma espcie de averso, de irritao mesmo:
h momentos em que detesto a Foto: que
posso eu ter a ver com velhos troncos de rvo_
res de Eugne Atget, nus de Piere Boucher,
sobreimpresEes de Germaine Krull (cito ape-
nas antigos nornes)? Mais ainda: eu constata-
va que no fundo jamais gostava de todas as
fotos de um mesmo fotgrafo: de Stieglitz, en-
canta-me (mas intensamente) apenas srla foto
mais conhecida (O terminal dos bondes a ca-
ualo, New York, lgj); tal foto de Mapple-
thorpe me induzia a pensar que eu tinh en-
contrado "meu" fotgrafo; mas no, no gosto
de todo Mapplethorpe. Eu no podia, portan-
to, chegar a essa noo cmoda, quando i. qrr..
alat de histria, cultura, esttica, que cha-
"De Stieglitz encanta-ne
mada de estilo de um artista. Eu sentia, pela apenas sua loto mais conhecida ' ' '"
fora de meus investimentos, sua desord.a, A. Stieglitz: O terminal da estao de cavalos, New York, 1E9J'
seu acaso, seu enigma, que a Fotografia uma
afte pouco segura, tal como o seria (se colo_
cssemos na cabea que iramos estabelecJa)
32
uma cincia dos corpos desejveis 7
ou detest_
VETS.
* ry
vir,-"tp U.:l que esravam em questo
movirnentor O.
@3expiimimos: gosto/ Decidi ento tomar como guia de minha
@ e. fr ,
-J;- t ha-frie _ nova anlise a attao que eu sentia por certas
9f.: -g:lto $'sostm;
resamenG
inirenai i.-as
sennpr -i*ndffi;
fotos. Pois pelo menos dessa attao eu estava
certo. Com cham-la? Fascinao? No, tal
"rg-
humores; no pam justific_ls;
,-i,,h;il;:
::::, T.y para preen.h.r-.om
otogtafia que destaco e de que gosto no tem
T:no: lnda nud do ponto brilhante que balana diante
vidualidade a cena do texto; *rr, ,o dos olhos qrr. .az a cabea oscilar; o que ela
conm-
paru oferec-la, estend_la, essa
-tio, individua- produz em mim exatamente o contrrio do
Iidade, a uma cincia ao ,"jiil
pouco me importa,.deldg que
*io nome estupor; antes uma agitao interior, uma fes-
ela ul.ur..-(o ,u, ,]- trabalho tambm, a presso o indiz'
que ainda no est decididoiuma
generalidade vel que quer se dzer. Ento? Interesse? Isso
que no me redui
Portan- insuiciente; no tenho necessidade de in-
ro, era preciso orJ,.ff:'gue' terrogar minha comoo para enumerar as di-
ferentes tazes que temos para nos interessar-
mos por uma fto; podemos: seja desejar o
objet, a paisagem, o corpo que ela represen-
ta; sei'a amat ou ter amado o ser que ela nos
d, a rcconhecer; seia espantarmo-nos com o
que vemos; seja admirat ou discutir o desem-
.nho do fotgrafo, etc.; mas esses interesses
,o fro.r"or, ht.rogneos; tal foto pode satis-
34 35
f.azet a um deles e me interessar pouco; e se
humanos, sem intencionalidade particular.
tal outra me interessa muito, .,, gort"ria de Flutuam entre a margem da percepo, a do
saber o que, nessa foto, me d o ,rlo. Assim,
signo e a da imagem, sem jamais abordar qual-
parecia-me que a palavta mais adequada para
quer uma delas."
des i gn ar ( provi soriamen te a a rag+que_qbre
) Nesse deserto lgubre, me surge, de repen-
mim exercem certas fotos ,r^'rrruro.\T^l
te, tal foto; ela me anima e eu a animo. Por-
foto me adum, tal outra no. T tanto, assim que dev ! a atrao que
O princpio da aventura e f.azer
permite-m a faz existir: umaffiirnaig' prpria foto
a Fotografia existir. De modo inverso, sem no em nada animld-(o auedito nas fotos
Sartre, aventura, nada de foto. Cito Sartre: ,,As fotos "vivas") mas ela me agggq:jqggg lojx eg-g:*-
39
de um jornal podem muito bem ,nad a dize.- tura ptoduz.
p', o que quer dizer que eu as olho sem p_
Ias em posio de existncia. Assim as pessoas
cuja otogmia vejo so bem alcanads arra_
vs dessa fotografia, mas sem posio existen-
cial, exatamente como o Cavaleiro e a Morte, 8
gue so alcanados auavs da gravura cle
Drer, mas sem que eu os ponha- podemos,
alis, deparar com casos em que a fotografia
me deixa em um tal estado de indifer.rrf q,r"
Nessa pesquisa sobre a Fotografia, a feno-
no efetuo nem mesmo a ,colocao em ima- menologia emprestava-me, ento, um pouco
gem'. A fotografia est vagamente consttuda
de seu projeto e um pouco de sua linguagem.
como objeto, e os personagens que nela figu-
Mas era uma fenomenologia vaga, desenvolta,
ram esto constitudos como personagens, mas
cnica mesmo, de tal forma aceitava ela defor-
apenas por causa cle sua semelhana com seres
mar ou esquivar seus princpios segundo o at-
36 )7
btrio de minha anlise. Em primeiro lugar, bem verdade que eu aolvlnnav.a
luto. E adivinhava na
't.a
eu no saa e no tentava sair de um paradoxo: ;;;"*n.
Fotografia,
por um lado, a vontade de poder enfim nomear
uma redE do-ssncias: essncias materlals
uma essncia da Fotografia e, portanto, esbo_ ( q bf igm stdo-fGc, @mco,-ptr
(umteriibl"riascomom_fer-,1$lJ_eijJ1qt!2-
mado de desejo, de repulsa, de nostalgia, de portanto-lt, lti e Penso'
euforia? A fenomenologia clssica, q.r. ..,
conhecera em minha adolescncia "(e desde
ento no houve outr), eu no me lembrava
de que ela alguma vez falasse de desejo ou de
38 39
9
42
5t
L3 da Foto,
tro. Na origem da Foto, sempre colocamos
Niepce e Daguerre (mesmo que o segundo te-
nha usurpado um pouco o lugar do primeiro);
ora, Daguerre, quando se apossou da inveno
O primeiro homem que viu a primeira foto de Niepce, explorava, rta, praa do Chteau (na
(se excetuarmos Niepce, que a fiiem)
deve ter Rpublique), um teatro de panoramas anima-
pensado que se ffatava de uma pintura: mes- doi por movimentos e jogos de luz. A carnera
mo enquadramento, mesma perspectiva. A Fo_ obscuta,em suma, deu ao mesmo tempo o qua-
tograia foi, ainda atormentad pelo fantas- dro perspectivo, a Fotografia e o Diorama, sen-
ma da-Pintura (Mapplethorpe representa um do todos ffs artes de cena; mas se a Foto me
ramo de ris tal como poderia faz-loum pintor parece mais prxima do Teatro, isso ocorre
oriental); a Fotografia fez dela, auavs de ,.ras truus de um revezamento singular (talvez eu
cpias e de suas contestaes, a Referncia seja o nico a v-lo): a Morte. -conhecida a
absoluta, patetna, como se tivesse nascido do rclao original do teatro e do culto dos Mor-
Quadro (isso verdade, tecnicamente, mas tos: os preirot atores destacavam-se da co-
apenas em parte; pois a camera obscura dos
munidae ao desempenharem o papel dos Mor-
pintores no mais que uma das causas da Fo- tos: caracterizar-se era designar-se como um
togtafi4 o essencial, talvez, tenha sido a des_ corpo ao mesmo tempo vivo e morto: busto
coberta-qumica). Eideticamente, neste ponto pintado de branco do teatto totmico, homem
de minha busca, nada distingue ,-, foiog.u_ lo- ,orro pintado do teatro chins, maquia-
fia, por mais realista que sela, de uma pint,ra.
O "pictorialismo" apenas um exagero do q.r.
. a but. de pasta de arcoz do Katha Kali
Indiano, mscan do N japons' Ora, essa
a Foto pensa de si mesma. mesma telaoque encontro na Foto;
por mais
No , porm (parece-me), pela pintura que conceb-la (e esse
viva que nos esforcemos por conceb-la
a Fotografia tem a ver com a arte, pelo Tea- furor^de "dar vida" s pode ser a denegao
52 53
mtica de um mal-estar de morte), a Foto de t'surpres-ag"
ciente. Assim, toda uma gatma
como um teaffo primitivo, como um
euadro
'(s Para
Vivo,.a figurao da face imvel e pintaa sob
a qual vemos os mortos.
Fsrilao=*desemp4[aq;1;*-**:-"
-
n piineirurp*r?;Auro" (raridade
do re?erente, bem entendido); um otgtao,
dizem-nos com admirao,levou quauo anos
de pesquisas para compor urna antologia foto-
grica-demonstros (homem com duas cabeas,
L4 uher com trs seios, criana com cauda, etc'i
todos sorridentes). A segunda surpres , por
sua vez, bem conhecida da Pintura, que com
freqncia reproduziu um gesto apreendido no
Imagino ( tu-do o que posso .azer, j que pono de seu trajeto em que o- olho normal no
no sou fotgrafo) que o gesto essencial do pod. imobilzr-lo (em outro local chamei esse
Operator o de surpreend.rlg,r-" coisa ou al_ g.tto de numen do quadro histrico): Bona-
gum (pelo pequeno orifcio da cmaru) e que e Jaffa;
esse gesto , portanto, perfeito quando se rea_
iurt acaba de tocar s Empestadosaproveitan-
lna mo se redra; do mesmo modo,
liza sem que o sujeito fotografado t.nha conhe_
do sua ao instantnea, a Foto imobiliza uma
cimento dele. Desse gesto derivam abertamen_
cenapda em seu tempo decisivo: Apestguy,
te todas as fotos cujo Uiepio (seria melhor no incndio do Publicis, fotogtaauma mulher
dizer cujo libi) o ,,hoq.,,; pois o ,,cho_ que est pulando de uma ianela' A terceira sur-
gyg-iel9g3&ejbslq- d-drrs q@
constste menos em traumatizat do que em fe_
t.tu e i d^ proezai "H meio sculo,
Harold
- L.*a q
il. ag..rorrotogrua a queda de uma gota de
v:ea ui I _*q u e eSava t-m-oculio, qu e o
leite, em um milionsimo de segundo" (nem
pipii roidte _i;'tanasim preciso confessar que esse tipo de oto no me
,4 55
toca nem me interessa: muito fenomenlogo svel; em ltima instncia, deve desafiar as do
para gostar de outra coisa que no uma aparn- interessante: a foto se torna "surpreendente"
cia minha medida). Uma qrrafia surpresa a a pattit do momento em que no se sabe por
que o fotgrafo espera das contores da tcni- que ela oi tftada; qual motivo e qual interesse
ca: sobreimpresses, anamorfoses, explorao fara otogruf.at um nu, contra aluz, no vo de
voluntria de certos clefeitos (desenquadramen- uma porta, a frente de um velho automvel na
to, desfocamento, perturbao das perspecti- gram , um cargueiro no cais, dois bancos em
vas); grandes fotgrafos (Germaine Krull, Ker- uma prad aria, ndegas de mulher diante de
tsz, !illiam Klein) jogaram com essas surpre- uma janela rstica, um ovo sobre uma barriga
sas, sem me convencer, ainda que eu compre- nua (fotos premiadas em um concurso de ama-
enda seu alcance subversivo. Quinto tipo de dores)? Em um primeiro tempo, a Fotografia,
surpresa: o achado; Kertsz fotografa a janela para surpreender, fotogtafa o notvel; mas
de uma mansarda; por rs da vidraa dois bus- logo, por uma inverso conhecida, ela decreta
tos antigos olham pa a rua (gosto de Kertsz, notvel aquilo que ela f.otograa. O "no im-
mas no gosto do humor nem em msica nem porta o qu" se torna ento o ponto mais
sofisticado do valor.
56 57
L5
58
sentido (no digo o efeito) causa muita impres-
so logo desviada; consumida estericamen-
te, no politicamente. A Fotografia da Ms-
cara , de fato, suficientemente crtica para
inquietar (em L934, os nazistas censuraram
Sander porque seus "rostos da poca" no cor-
respondiam ao arqutipo nazista da raa), mas,
por ouffo lado, muito discreta (ou muito
"distinta") paru constituir verdadeiramente
uma crtica social eficaz,pelo menos segundo as
.^.1
exigncias do militantismo: qual cincia enga-
jada reconheceria o interesse da fisiognomo-
nia? A aptido para perceber o sentido, pol-
tico ou moral, de um rosto no rem si mesma,
um desvio de classe? E isso ainda dizer mui-
to: o Notrio de Sander est marcado por im-
portncia e rigidez, seu Oficial de Justia por
afumao e brutalidade; mas jamais um nt-
rio ou um oficial de justia poderiam ler esses
signos. Como distncia, o olhar social passa
aqui necessariamente pelo revezamento de uma
esttica fina, que a torna v: s crtico na-
queles que j esto aptos p^ta a crtica. Esse
impasse um pouco o de Brecht: ele foi hostil
Fotografia em virtude (dizia ele) da fraqueza
"Os nazistas ceflsutaram Sander
porque seus rostos da Poca
60
no coruespondiam esttica
da raa nazista."
Sandr: Notrio.
de seu poder crtico; mas seu teatro, por sua L6
vez, jamais pde ser politicamente eficaz, por
causa de sua sutileza e de sua qualidade est-
tica.
Se excetuarmos o setor da Publicidade, Uma velha casa, um prtico com sombra,
onde o sentido s deve ser claro e distinto em telhas, uma ornamentao fuabe envelhecida,
virtude de sua natvteza mercantil, a semiolo- um homem sentado de costas pata a parede,
gia da Fotografia est,, portanto, limitada aos uma rua deserta, um rvore mediterrnea
desempenhos admirveis de alguns remadstas. (Albambra, de Charles Clifford): essa foto
Para o resto, pao tudo-o-que-vier das "boas" antiga (1854) me toca: simplesmente porque
fotos, tudo o que podemos dizer de melhor tenho vontade de viver a. Essa vontade mer-
que o obieto fala, induz, vagamente, a pensar. gulha em mim a uma profundidade e segundo
E ainda: mesmo isso corre o risco de ser sen- ruzes que no conheo: calor do clima? Mito
tido como perigoso. No ponto exmemo, abso- mediterrneo, apolinismo? Ausncia de her-
lutamente nenhum sentido, pois mais segu- deiros? Aposentadoria? Anonimato? Nobre-
ro: os redatores de Lif e recusaram as fotos de za? No importa o que seja (de mim mesmo,
Kertsz, quando chegou aos Estados Unidos, de meus mveis, de meu fantasma), tenho von-
em L 937 , porque, disseram eles, suas imagens tade de viver I, com linura e essa finura
".alavam demais"; elas f.aziam refletir, suge- -
jamais satisfeita pela foto de turismo. Para
riam um sentido um outro sentido que no mim, as otografias de paisagens (urbanas ou
-
a letra. No fundo, a Fotogmfa subversiva, campestres) devem set babitaeis, e no visi-
no quando atenoriza, perturba ou mesmo tveis. Esse desejo de habitao' se o observo
estigmatiza, mas quando pensatiua. bem em mim mesmo, no nem onrico (no
soo com um local exff avagante) nem emp-
rico (no procuro comprar uma casa segundo
62 6)
s vistas de um prospecto de agncia imobili-
ria); ele fantasmtico, prende-se a uma esp-
cie de vidncia que parece levar-me adante,
para um tempo utpico, ou me reportar para
trs, paru no sei onde de mim mesmo: duplo
movimento que Baudelaire cantou em Conaite
Viagem eVida Anterior. Diante dessas pai-
sagens de predileo, tudo se passa como se
eu estiuesse certo de a ter estado ou de a
dever ir. Ora, Freud diz do corpo materno que
"no h outro lugar do qual possamos dizer
com tanta certez^ que nele j estivemos"' Tal fff#:'i;",
seria, ento, a essncia da paisagem (escolhida
pelo dese jo): beimlich, despertando em mim a
Me (de modo algum inquietante).
t7
65
"E a que eu gostaria de aiuer..."
Charles Clifford: Alhambra (Granada), 1854-18j6.
tas fotos, parecia-me constatar que o stadiurn,
zar mas nada de distio; a foto pode
na medida em que no aravessado, fustiga- -, no ferir. Essas fotos de reportagem
"gtitat",
do, zebtado por um detalhe (punctu*) iu, so recebidas (de uma s vez), eis tudo. Eu as
me aftai ou me fere, engendrava um tipo de
olheio, no as rememoro; nelas, nunca um de-
foto muito difundido (o mais difundio do talhe (em tal canto) vem cortar ma leitura:
mundo), que poderamos chamar de lotogralia
interesso-me por elas (como me interesso pelo
anria. Em gramtica gerutiva, uma transfor-
mundo), no gosto delas.
mao unria se, atravs dela, uma nica se-
Uma outra foto unria aoto pornogrica
qncia gemda pela base: essas so as trans- (no digo ertica: a ertica um pornogrfico
fotmaes: passiva, negativa, interrogativa e desviado, fissurado). Nada de mais ho-mogneo
enftica. A Fotografia unrtia quando trans- que uma otograia pornogrica. E sempre
forma enfaticamente a "realidad, ,.- dupli- ma foto ingnua, sem inteno e sem clculo.
c-la, sem az-la vacilat (a nfase uma f*"
Como uma vitrine que mostrasse, iluminada,
de coeso): neum duelo, neum indiret, apenas uma nica iia, ela inteiramente cons-
neum distrbio. A Fotografia unna rem tituda pela apresentao de uma nica coisa, o
tudo para ser banal, na medida em que a ,,uni- sexo : jamaisobjeto segundo, intempestivo, que
dade" da composio a primeira regra da re- venha ocultar pela metade, retardar ou distrair.
ttica vulgar (e especialmente escolar): ,,O Prova a contrario: Mapplethorpe faz seus gtan-
tema, diz um conselho aos fotgrafos amado- des planos de sexos passarem do pornogfico
res, deve ser simples, livre de acessrios in- ao ertico, fotograando de muito perto as
teis; isso tem um nome: a busca da unidade.,, malhas da suhga: a foto no mais unria, i
As fotos de reportagem so com muita fre- que me interesso pelo gro do tecido.
qncia fotografias unrias (a foto wria no
forosamente pacfica). Nessas imagens nada
,
de punctun: choque aletra pode ffaumati-
-
66 67
18 foto sem dvida dual, mas essa dualidade no
o -oror de qualquer 'l{esgnvolvimento"'
perce-
como ocorre no discurso clssico ' Para
ber o punctum,neuma anlise, portanto'
me
Nesse espao habitualmente unrio, s ve- r.tit itil
(mas talvez, como veremos' s vezes'
zes (mas, infelizmente, com raridade) um ;i;;il;a): bast4 que a imagem seia. sufi-
cientemente grande, q,tt ttt no tea de
es-
"detalhe" me arai. Sinto que basta sua pre-
sena para mudar minha leitura, que se ttata crut,-la (isso no servifla p^ra nada)' 9ue'
de uma nova foto que eu olho, marcada a meus ;d^ em'plena pgina, eu a receba em pleno
olhos por um valor superior. Esse "detalhe" rosto.
o puncturn (o que me punge).
No possvel estabelecer uma regra de liga-
o entre o studium e o punctum (quando ele
est presente). Trata-se de uma co-presena,
L9
tudo o que se pode dizet: as freiras "estavam
'\)Tessing
l" , passando no fundo, quando foto-
grafou os soldados nicaragenses; do ponto de
vista darcalidade (que talvez seja o do Opera-
tor), toda uma causalidade explica a presena Com muita freqnci^, o paflctutn um
do "detalhe": a Igreja est implantaa nesses "detalhe", ou seja, um objeto parcial Assim'
pases da AmricaLatina, as freiras so enfer- d;t-;;;;plo, d" Punctunt , de certo modo'
meiras, deixam-nas circular, etc.; mas, do meu entregar-ne.
ponto de vista de Spectator, o detalhe dado Ei, ,rma amLia negrl- americana' fotogra-
fada em 1926 Por Jmts Van der Zee'
O
por acaso e par:a nada; o quadro em nada est
"composto" segundo uma tgica criativa; a t"a;" claroi interesso-me com simpatia'
69
como bom sujeito cultural, pelo que a oto diz,
pois ela ala (trata-se de uma "boa" foto): ela
di, d^ responsabilidade, do familiarismo, do
.ottfotrnito, do endomingamento, um esfor-
com os
o de promoo social para enfeitar-se
atributos do Branco (esoro comovente, na me-
dida em que ingnuo). O espetculo me in-
teressa, mas no me "punge"' O que me pun-
g., .oit" curiosa de dizer, alarya cintura da
irm (ou da filha) oh negra numiz seus
- -,
braos cruzados por trs das costas, maneira
. colegial, e sobretudo seus sapatos de
"-u
presilha (por qu. algo ora de moda e to ata-
o *. toca? Qn.t izerz a que data ele me
remete?). Esse punctum agita em mim uma
grande benevolncia, quase um entemecimen-
io. Todavia, o punciuru no leva em conside-
,at umoral ou o bo* gosto; o punctun pode
,.i *"1 educado. \lilliam Klein fotograou os
York
;;;;;; de um bairro italiano de New o q9e
tglql; comovente, engraado' nas
;; .- obttinao, so os maus dentes do
e*. Kertsz, em L926, fez um retrato de
lr r^ jovem (com monculo); mas oque que
observo, por esse suplemento de viso'
20
76 77
vvel, uma essncia (de ferida), o que no pode
transformar-se, mas apenas repetir-se sob as
espcies da insistncia (do olhar insistente).
Isso aproxima a Fotografia (certas fotografias)
do Haiku. Pois a notao de um haiku tambm
indesenvolvvel: tudo est dado, sem provo-
car a vontade ou mesmo a possibilidade de uma
expanso retrica. Nos dois casos, poderamos,
deveramos falar de uma imobilidade uiaa:
ligada a um detalhe (a um detonador), uma
exploso produz uma estrelinha no vidro do
texto ou da foto: nem o Haiku nem a Foto
.azem "sonhaf".
Na experincia de Ombredane, os negros
vem na tela apenas a minscula galia que
atravessa em um canto a grande ptaa da al-
deia. Eu tambm, das duas crianas anormais
de uma instituio de New Jersey (otogtaf.a- "DesPrezo todo saber,
das em L924 por Lewis H. Hine), no vejo as toda cultura. ' ' oeio tPeltas
cabeas monstruosas e os perfis deplorveis a irnensa gola Danton do gatoto'
(isso faz parte do studium); o que vejo, como o ctutiao no dedo da nenina ' ' '"
Lewis H. Hine: Anormais em uma instituio' New Jersey'
1924'
os negros de Ombredane, o detalhe descen-
trado, a imensa gola Danton do garoto, o cura-
tivo no dedo da menina; sou um selvagem, uma
criana ou um manaco; mando embora to-
-
78
do saber, toda cultura, abstenho-me de herdar
de um outro olhar.
22
usado por uma pessoa de minha famlia e que, da dizet, fechar os olhos, deixar o detalhe re-
vma vez desaparecida essa pessoa, ficou fecha- montar sozinho conscincia aetiva.
do em uma caixa familiar de antigas jias (essa
irm de meu pai jamais se casara, vivera soltei-
rona junto de minha me, e eu sempre tive pe-
na dela, pensando na misteza de sua vida pro-
vinciana). Eu acabava de compreender que por 23
mais imediato, por mais incisivo que fosse, o
punctunz podia conformar-se corh uma certa
latncia (mas jamais com qualquer exame).
No fundo ou no limite p^ra ver bem ltima coisa sobre o punctun: quer esteja
- -
uma foto mais vale erguer a cabea ou fechar delimitado ou no, trata-se de um suplemento:
os olhos. "A condio prvia paru a imagem o que acrescento foto e qae todaaia i, est
a viso", diziaJanouch aKaka. E Kafka somia nela. As duas crianas anormais de Lewis H.
e respondia: "Fotografam-se coisas paa ex- Hine, no acrescento de modo ulgo* a degene-
puls-las do esprito. Minhas histrias so uma rescncia do peril: o cdigo o diz antes de
maneira de fechar os olhos." A fotografia deve mim, toma meu lugar, no me deixa f'alag o
ser silenciosa (h fotos tonitruantes, no gosto que acfescento e que, bem verdade, i6'
delas): no se trata de uma questo de i,dis- et na imagem - a gola, o curativo. Ser
crio", mas de msica. A subjetividade abso-
-
que no cinema acrescento imagem? Acho
-
que no; no teo tempo: diante da tela, no
luta s atingida em um estado, um esforo
de silncio (fechar os olhos fazer a imagem estou livre para echar os olhos; seno, ao tea'
falar no silncio). A foto me toca se a reti- bri-los, no reenconuaria a mesma imagem:
ro de seu blablabl costumeiro: "TcnicA,', estou submetido a uma voracidade contnua;
85
84
muitas outras qualidades, mas no pensatiui-
dade;.donde o interesse, pata mim, do foto-
gtama.
Todavia, o cinema tem um poder que, pri-
meira vista, a Fotogra{ia no tem: a tela (ob-
servou Bazin) no um enquadramento, mas
um esconderijo; o personagem que sai dela
continua a viver: um "campo cego" duplica
incessantemente a viso parcial. Ora, diante
dos milhares de fotos, inclusive daquelas que
possuem um bom studium, no sinto qualquer
campo cego: tudo o que se passa no interior
do enquadramento morre de maneira absoluta,
uma vez ultrapassado esse enquadramento.
Quando se define a Foto como uma imagem
imvel, isso no quer dizer apenas que os per-
sonagens que ela representano se mexem; isso
quer dizer que eles no saeln: esto anestesia-
dos e fincados, como borboletas. No entanto,
a partfu do momento em que h punctum,
cria-se (adivinha-se) um'campo cego: por cau- "Queen Victoria, entirely unaestbetic. .
sa de seu colar, a negta endoming ada teve, pata
(Yirginia'Vool)
mim, toda uma vida exterior a seu reffato; Bob
\7ilson, dotado de um punctum insituvel, te- G. \V. !ilson: A rainha Victotia, 1861.
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ria fotogtafada (em L863) por George \. do sexo um objeto central; ela pode muito bem
Iilson; ela est sobre um cavalo, cuja garup no mostr-lo; ela leva o espectador pata foru
sua saia cobre dignamente (isso o interesse de seu enquadramento, e nisso que essa foto
histrico, o studiurn); mas ao lado dela, atain- me anima e eu a animo. O puncturn , poftan-
do meu olhar, um auxiliar de kilt segura a r- to, uma espcie de extracampo sutil, como se
dea da montaria: o punctum, pois mesmo que a imagem lanasse o desejo paru alm daquilo
eu no conhea bem a posio social desse es- que ela d a vet: no somente pafa "o resto"
(criado? estribeiro?),
cocs (criado? estribeiro? ), vejo bem sua fun- danudez,no somente para o fantasma de uma
o: velar pelo bom comportamento do animal: pttica, mas para a excelncia absoluta de um
se ele se pusesse de sbito a voltear? O que ser, alma e corpo intricados. Esse jovem de
aconteceria com a saia da ninha, ou seja, com brao estendido, de sorriso radiante, ainda que
sua maiestade? O punctum, f.antasmaticamen- sua beleza no seja de modo algum acadmica
te, {.az o personagem vitoriano ( o caso de di- e que ele esteja pela metade fora da foto, de-
z-lo) sair da otogtafia, ele prov essa foto de portado ao extremo pa um lado do enqua-
um campo cego. dramento, encarna uma espcie de erotismo
A presena (a dinmica) desse campo cego vivaz; a foto me induz a distinguir o desejo
, penso eu, o que distingue a oto ertica da pesado, o da pornograia, do desejo leve, do
foto pornogrica. A pornografia representa, desejo bom, o do erotismo; no im das contas
costumeiramente, o sexo, faz dele um objeto talvez seja uma questo de "oportunidade": o
imvel (um fetiche), incensado como um deus otgrafo fixou a mo do jovem (o prprio
que no sai de seu nicho t paa mim, no h Mapplethorpe, penso eu) em um bom grau de
panctum algum n^ imagem pornogrfica; abertura, em sua densidade de entrega: alguns
quando muito ela me diverte (e ainda: o tdio milmetros a mais ou a menos e o corpo suspei-
surge rapidamente). A foto ertic^, contr- tado no mais teria se ofertado com benignida-
rio (o que a sua prpria condio)^o, no faz de (o corpo pornogrfico, compacto, mosffa-
88 89
se, no se d, nele no h nenhuma generosi-
dade): o Fotgrafo encontrou o bom momento,
o kairos do desejo.
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